A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco
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A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco
I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR A Harpa e a Sombra: Um Exercício Barroco MACHADO, Janer Cristina. (Programa de Pós-Graduação em Letras – UFSM – Universidade Federal de Santa Maria) RESUMO: O cubano Alejo Carpentier é apontado nos estudos de Seymour Menton como o pioneiro da chamada Nova Novela Histórica na América Latina. Também é adepto manifesto do barroquismo, traduzido em suas obras por meio, sobretudo, da conjunção entre os claros e escuros de relatos que reinventam a História Oficial. Tal recriação promove uma simbiose entre os contextos telúrico e épico-político, assim como suscita reflexões sobre as diferenças entre Velho e Novo Mundo, enfatizando uma ótica carnavalizada da existência de terras e gentes. Partindo dessa caracterização do autor e de sua obra, escolhemos como objeto de investigação o romance A Harpa e a Sombra (1979), que narra em estrutura tripartite a saga de Cristóvão Colombo na vida e na morte, apresentando-nos uma narrativa autobiográfica do genovês que descobriu a América, bem como os intentos do papa Pio IX por canonizá-lo e o malogro dessas intenções. O mote de nossa discussão é a delimitação de um espaço de intersecção entre a escritura do texto e a construção de uma trama metafórica, espaço este para o qual convergem as concepções de barroco, neobarroco e realismo maravilhoso, intrínsecas à criação carpentieriana. Neste espaço, delineia-se também o diálogo entre ficção e História, com a experiência histórica tendo como fio condutor de sua revelação o oximoro, encarnado em pares como cultura global e cultura local, publicidade e privacidade, certeza e incerteza, realidade e representação. PALAVRAS-CHAVE: Neobarroco; História; escritura do texto; trama metafórica; oximoro ABSTRACT: The Cuban Alejo Carpentier is pointed in the studies of Seymour Menton as the pioneer of the so-called New Historical Novel in Latin America. It is also clear supporter of the Baroque, translated into their works by means, above all, the conjunction between dark and light of reports that reinvent the Official History. Such recreation promotes a symbiosis between telluric and epic and political environments and raises thoughts about the differences between Old and New World, emphasizing the carnivalesque like a privileged perspective about the existence of lands and people. From this characterization of the author and his work, the present text chooses as the object of investigation the novel A Harpa e a Sombra (1979), which tells the saga in tripartite structure of Christopher Columbus in the life and death, presenting us with an autobiographical narrative by the Genoese discoverer of America, as well as the intents of Pope Pius IX to canonize him and the failure of these intentions. The theme of this discussion is the delineation of an area of intersection between the writing of the text and the construction of a metaphorical plot, a space for which converge to the concepts of Baroque, neo-Baroque and marvelous realism, intrinsic to the Carpentier’s creation. In this space, this work also situates the dialogue between fiction and history, with historical experience having its guiding principle of revelation in the oxymoron, embodied in pairs as global culture and local culture, public and private, certainty and uncertainty, reality and representation. KEYWORDS: Neo-baroque; History; textual writing; metaphorical plot; oxymoron O conceito de barroco é algo que tem atravessado as fronteiras da periodização temporal e espacial para ingressar, cada vez mais, no âmbito das manifestações ligadas à construção de um modus vivendi e de toda uma atitude perante a existência humana e as ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR transformações da História. Deixando de ser exclusivamente uma perspectiva sob a qual se analisar as expressões artísticas de um povo e de uma época, passa a trair o olhar, geralmente estarrecido, de um ser que busca se identificar e também reconhecer o orbe ao qual pertence, cônscio apenas de que navega entre as vagas tempestuosas de uma transição não de todo pacífica entre Modernidade e Pós-Modernidade. Tal estado de coisas só faz intensificar quando adentramos o espaço-tempo latinoamericano, cujas especificidades comportam a constante interrogação da vigência barroca e\ou neobarroca em suas demandas pela assunção de uma identidade cultural própria, sobretudo no que tange à criação literária. No entanto, estudiosos como Sánchez (2006, p.137), não se furtam a salientar: Ciertamente, dentro del amplio espectro de los estudios literarios contemporáneos, referir-se a la “cuestión del Barroco” o al Neobarroco, y em particular a la elaboración criolla del primero neobarroquismo hispanoamericano, significa enfrentar complejas problemáticas que comprometen saberes cruzados de teoria, história y crítica literarias. Por una parte, es necesario actualizar la discussión sobre la naturaleza del Barroco, si es estilo de época, formalización estética específica, código cultural, constante metahistórica del espíritu humano que reencarna ciclicamente em circunstancias determinadas. Por otra, es necesario repensar las dinâmicas de la história literaria dentro de la História General de la Cultura, com el objeto de percibir las condiciones de producción y de recepción de textos literarios e objetos culturales que hoy reconocemos como barrocos. Neste ato de repensar o conceito de Barroco, confrontamos o mesmo, primeiramente, como possível período artístico vinculado a um determinado recorte espaço-temporal, inserto no auge do século XVII e parte do século XVIII ocidentais. Aqui julgamos ser oportuna a transcrição do pensamento de Pfandl e Sáinz – na interpretação de Coutinho (1997, p.22), para descrever o pensar e o agir de toda uma época: O naturalismo barroco exprime-se em ávido impulso vital, brutalidade, imoralidade, crueldade, cínico espírito de burla, criminalismo, ao lado de desengano, truculência, melancolia, hipocondria. O ilusionismo é a parte da espiritualidade que persistiu e constitui uma das contradições da época, o que explica o bifrontismo dos homens, santos e libertinos a um tempo, as festas mistas, religiosas e profanas, bailes sacramentais em catedrais e procissões, o deleite da meditação sobre a morte e o inferno, as misturas de blasfêmias e atos de contrição e exaltação religiosa, etc(...). O homem barroco é dotado de “furor ingenii”, pelo qual é levado à egolatria e ao egocentrismo, ao gosto da polêmica, do panfleto, da intriga. Por último, o homem barroco humaniza o sobrenatural, ligando o céu e a terra, misturando ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR os dois planos na sua vida cotidiana, sem que seja preciso deixar de ser pícaro para participar da visão das coisas celestiais. Esta identidade simultaneamente pícara e mística pode muito bem ser transladada para o homem da transição entre Modernidade e Pós-Modernidade, especialmente o cidadão latinoamericano, em quem o dito Neobarroco sublinha as contínuas tensões entre cultura local e cultura global, privacidade e publicidade, certeza e incerteza, realidade e representação. Neste sentido, as manifestações reconhecidas como barrocas, em pleno curso do século XX, surgem como reações a uma Modernidade equiparada ao Classicismo, na medida em que apregoam o equilíbrio, a harmonia e a certeza do sucesso como corolários do boom científico-tecnológico, malgrado a vigência de um abismo entre as realizações da ciência e da tecnologia e a condição sociocultural marginalizada de grandes estratos da sociedade. Aqui, Chiampi (1994, p.5) toma o conceito de alegoria barroca proposto por Walter Benjamin e insiste em uma alteridade barroca da atualidade, a qual compreende uma modernidade totalmente diversa daquela que sustem concepções progressistas, pois emerge, quase sempre violentamente, de uma crise abissal. Sarduy (apud CHIAMPI, 1994, p.5) acrescenta: El barroco actual, el neobarroco, refleja estructuralmente la inarmonia, la ruptura de la homogeneidad, del logos em tanto absoluto, la carencia que constituye nuestro fundamento epistêmico. Neobarroco del desequilíbrio, reflejo estructural de um deseo que no puede alcanzar su objeto, deseo para el cual el logos no ha organizado más que una pantalla que esconde la carência (...) Neobarroco: reflejo necesariamente pulverizado de um saber que ya no está “apaciblemente” cerrado sobre si mismo. Arte del destronamiento y de la discusión. Outrora, o tempo seiscentista requisitou o retorno do passado sobre o presente, em um processo reiterativo da identidade divina, enquanto ordenadora ad aeternum dos vários recortes históricos que convergem para o ápice da salvação. Outra, porém, é a visão do tempo neobarroco, despido da onipresença da deidade, conforme destaca Hansen (2008, p.214): Hoje, quando as utopias iluministas foram postas de lado, a analogia das produções contemporâneas com a representação seiscentista é determinada pelas novas formas que a existência do tempo vem assumindo na troca generalizada. Agora também o tempo aparece como estacionário e “frio”, porque o futuro, donde até ontem o moderno irrompia como negação revolucionária do presente, aparece bloqueado. No presente, em que ficou chato ser moderno, a cultura é a eternidade do arquivo que acumula tudo o que foi e é como multiplicidade disparatada de ruínas ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Neste viés de desestruturação/reestruturação dos arcanos temporais, a América Latina neobarroca, espaço-tempo de fracionamento e de discussão, revela-se como caleidoscópio de formas e faces, em uma leitura que atinge também seu fazer literário. Obra aberta – cunhando-se a já clássica terminologia usada por Umberto Eco – à construção e reconstrução das vivências de distintas línguas, raças, credos, tradições, mitos e práticas, a literatura latinoamericana da segunda metade dos novecentos tece engenhos de aparência e profundidade únicas. Mais uma vez, comenta Sarduy (apud CHIAMPI, p.7): Espacio de dialogismo, de la polifonia, de la carnavalización, de la parodia y de la intertextualidad, lo barroco [y el neobarroco] se presentaría, pues, como una red de conexiones, de sucesivas filigranas, cuya expresión gráfica no sería lineal, bidimensional, plana, sino em volumen, espacial y dinâmica. O tempo deste neobarroco filigranado aplaude a reinvenção da linguagem e da cultura americanas, confrontando-as com o Velho Mundo no que tange ao poder de reelaboração da história. Assim, a América possui uma história única não pela sua originalidade, mas sim pelo poder de criação/recriação do futuro, inscrito na carnavalização das temporalidades do Novo Mundo. Como acrescenta Sánchez (2006, p.146): La reorganización de la memória cultural deviene em una poética del entendimiento histórico: el indiano antes de suprimir la tradición europea, la evalúa desde la parodia de um concierto que diluye el tiempo y el espacio, hasta redefinir la identidad como figuración fluctuante de um lenguaje metamórfico y transformador. A partir de uma linguagem carnavalizada, polimórfica e multifacetada, nasce uma literatura que comporta amplos processos poéticos, abrangendo desde a construção metafórica até a organização textual, em um exercício que vai muito além das reciclagens paródicas, cenarizações, reiterações organizadas, ilusionismos, representações ambíguas e perversões arquetípicas. Sua matriz fractual amplia-se ao ponto de cindir a proposta temática, determinando o oximoro como fio condutor da revelação da experiência histórica. Como destaca Sánchez (2006, p.151): La factura neobarroca del lenguaje se deleita en enunciados antitéticos, los cuales, a la postre, debilitan la contradicción de sus proposiciones: mientras el relato histórico contiene una naturaleza fictícia, el discurso ficcional encarna um incuestionable principio de realidad. ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR É desta convivência ímpar entre ficção e realidade na literatura latinoamericana que nascem concepções como a do real maravilhoso de Alejo Carpentier, que, de acordo com Barreda-Tomás (1972, p.43), ressalta o caráter cíclico e imprevisível da História em uma simbiose de contextos telúricos e épico-políticos, com a narrativa desprendendo-se paulatinamente da experiência histórica para a constatação da força da lenda e da sobrevivência do mito enquanto expressões privilegiadas da condição humana. De Carpentier, que Sánchez (2006) e Chiampi (1994) destacam como mestre do barroquismo na literatura latinoamericana do século XX, assim como Menton (1993) aponta ser o pioneiro da chamada Nova Novela Histórica, escolhemos o romance A Harpa e a Sombra (1979) como objeto de estudo do presente texto. Nossa meta compreende a investigação da presença de matizes de barroco e\ou neobarroco nesta que pode ser classificada como uma visão muito particular da descoberta da América, pois que se propõe a desnudar a alma do célebre genovês em uma viagem antitética aos arcanos da condição existencial de homens e de povos. Buscamos, na intersecção entre os espaços de escritura do texto e de construção da metáfora, encontrar a imago da terra americana e de seu dito descobridor, imago esta que vislumbramos colorida com tintas barrocas na riqueza contraditória de seu ser. A ESCRITURA DO TEXTO Obra romanesca dividida em três partes, A Harpa e a Sombra relata, em um primeiro capítulo, o início de um processo eclesiástico em prol da beatificação do navegante genovês, proposta esta advogada pelo então papa Pio IX. O segundo capítulo traça uma narrativa autobiográfica do passado de Colombo, que rememora seus feitos já às portas da morte, enquanto aguarda a chegada de um confessor. O último segmento do romance retrata o julgamento da proposta de beatificação do descobridor da América, enfatizando os libelos defensivos de prosélitos do almirante e as invectivas veementes de seus opositores de diversos períodos da História, ao passo que, em um plano sobrenatural, Colombo assiste a tudo na forma de um espectro errante e desiludido. Tal condição tripartite da narrativa remete diretamente à estética barroca, se considerarmos a valorização do fractual e do dissoluto, instaurando uma polifonia de vozes que recuperam os diversos sujeitos de um discurso que compreende a identidade do continente americano. ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Segundo Moreira (1993, p.78), por meio do relato cuidadosamente documentado da saga do cônego Mastaï, mais tarde papa Pio IX, na América, divisamos uma faceta da História que se quer realística, pois recorre constantemente ao aporte cronológico e geográfico; já na narrativa autobiográfica de Colombo, o fato histórico se dissolve na autoreferência de um sujeito que toma o leitor como cúmplice de suas rememorações e reflexões, muitas vezes postas em dúvida ou ironizadas; por fim, o julgamento do processo de beatificação do navegador oblitera definitivamente a História Oficial ao conclamar discursos do presente e do passado, mesclando pessoas e fantasmas em uma cena carnavalizada. Porém, é da união aparentemente incoerente destas três visões da terra e do homem que vai se construir o todo da obra, com o coro das diversas vozes perseguindo a unidade final, assim como a obra de arte barroca procura a manifestação do todo através da expressão – ainda que conflituosa – de cada uma de suas partes. A fragmentação do discurso caminha pari passu a outra característica acorde com os preceitos barrocos, qual seja a do texto em tomadas assimétricas, com longos parágrafos quase beirando à verborragia, mas plenos de imagens e de sentidos, em que se privilegiam a vírgula, o ponto-e-vírgula e o ponto final sobre todos os outros signos de pontuação. Vejamos uma passagem extraída do primeiro capítulo, a qual narra o percurso de Mastaï em meio à natureza americana: E logo começou a lenta e trabalhosa subida aos cumes que, engendrando e distribuindo rios, dividiam o mapa, por caminhos em beiras de precipícios e quebradas aonde se arrojavam fragorosas torrentes caídas do alto de algum invisível pico nevado, entre nevadas sibilantes e ululantes respirações de abismos, para conhecer, acima, a desolação dos páramos, e a aridez das punas, e o pânico das alturas, e a fundura das covas, e o estupor diante dos alocamentos graníticos, a pluralidade de escarpas e penhasqueiras, as lajes negras alinhadas como penitentes em procissão, as escalinatas de xistos, e a mentirosa visão de cidades arruinadas, criada por rochas muito velhas, de tão longa história que, soltando farrapos minerais, acabavam mostrando, desnudas e lisas, suas ossamentas planetárias (CARPENTIER, 1987, p.29). Aqui, sente-se a força do fluxo verbal que, qual as torrentes descritas, se despenha em orações intercaladas, batendo-se na reiteração contínua da conjunção “e”, assim como vivifica a imagética natural por meio do recurso aos símiles, metáforas e prosopopéias vigorosas, capazes de retratar à perfeição o furor de uma natureza que se faz barroca em seus contornos tanto agressivos como belos. ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Da abundância discursiva que caracteriza a obra, podemos ainda aventar traços conceptistas, ao nos reportarmos à valorização da palavra como instrumento de sedução e de convencimento, tão bem utilizada, de modo confesso, pelo navegante genovês. Como ressalta Moreira (1993, p.72), “ A Harpa e a Sombra constitui também um lugar de discussão da força da palavra e da construção do texto ficcional (e do texto histórico)”. É assim que lemos: E como o importante é começar a falar para continuar falando, pouco a pouco, ampliando o gesto, retrocedendo para dar maior amplitude sonora às minhas palavras, meu verbo se foi acendendo e, escutando-me a mim mesmo como quem ouve outro falar, começaram a rutilar em meus lábios os nomes dos mais rutilantes monarcas da história e da fábula (CARPENTIER, 1987, p.115). Da sanha discursiva de Colombo, impulsionada por “diabólica energia interior” (CARPENTIER, 1987, p.116), brota o tecido de ouropéis com que ele encanta as majestades católicas e os marinheiros de suas expedições, calando dúvidas e vencendo resistências, em um exercício barroco das habilidades da palavra. A sedução do verbo também se deixa capturar no recurso do narrador – seja a entidade heterodiegética do primeiro e terceiro capítulos, seja o autodiegético Colombo no segundo capítulo – às passagens em latim, as quais recuperam algo do tom dos sermonários barrocos em sua intenção de conferir credibilidade ao discurso. Leiamos: “Post hominum salutem, ab incarnatio Dei Verbo, Domino Nostro Jesu Christo, feliciter instauratam, nullum profecto eventum extitit aut praeclarius, aut utilius incredibili ausu Januensis nautae Christophori Columbi, qui omnium primus inexplorata horrentiaque Oceani aequora pertransiens, ignotum Mundum detexit, et ita porro terrarum mariumque tractus Evangelicae fidei propagationi duplicavit” ... Bem dizia o Primado de Bordéus: o descobrimento do Novo Mundo por Cristóvão Colombo era o acontecimento máximo contemplado pelo homem desde que no mundo se havia instaurado uma fé cristã e, graças à Proeza Ímpar, se dobrara o espaço das terras e mares conhecidos aonde levar a palavra do evangelho ... (CARPENTIER, 1987, p.15). No entanto, se o narrador-cronista do primeiro capítulo reproduz ciosamente o discurso do bispo de Bordéus para encampar a veracidade das inclinações do papa Pio IX em favor de Colombo, o narrador-descobridor-confitente que se apresenta no segundo tomo prefere recorrer à tragédia clássica para ilustrar suas veleidades premonitórias, escolhendo a Medeia de Sêneca como porta-voz de seu fado grandioso: assim é que virá um “Tethysque nouos”, capaz de alargar as dimensões do mundo conhecido para além do que se considerava ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR a “ultima Thule”, um novo Tífis cujo talento agourado pelos deuses levaria à descoberta de novas terras (CARPENTIER, 1987, P.64). Imbuído da força da palavra, Christo-Phoros, predestinado a conduzir o Evangelho até os confins do mundo conhecido e desconhecido, se deixa revelar através da escritura do texto, que tece uma malha barroca à qual ainda falta entrelaçar a tessitura metafórica, desvendando o ser integral do descobridor e de sua descoberta. A CONSTRUÇÃO DA METÁFORA Qual efígie barroca se desvelando entre a luz e a obscuridade, o Cristóvão Colombo que se desnuda para os leitores no segundo capítulo de A Harpa e a Sombra se apresenta como construto pleno de antíteses, imago de um homem torturado pelas lembranças, mas que não perde a capacidade de ironizar suas próprias realizações e seu próprio destino: Dentro desse corpo derrubado pelas fadigas e achaques, está o eu do fundo, ainda claro de mente, lúcido, memoriado e compendioso, testemunha de portentos, sujo de fraquezas, promotor de escarmentos, arrependido hoje do feito de ontem, angustiado diante de si mesmo, sossegado diante dos demais, por sua vez medroso e rebelde, pecador por Divina Vontade, ator e espectador, juiz e parte, advogado de si mesmo perante o Tribunal da Suprema Instância onde também quer ocupar cadeira de Magistrado para ouvir-se os argumentos e olhar-se no rosto cara a cara. E erguer as mãos e clamar; e alegar e responder, e defender-me diante do dedo tenso que me é fincado no peito, e sentenciar e apelar, alcançar as últimas instâncias de um juízo onde, ao final das contas, estou só, só com minha consciência que muito me acusa e muito me absolve ... (CARPENTIER, 1987, p.46-47). Este Colombo da hora derradeira propõe-se, em um primeiro olhar, à purgação de uma vida de pecados e engodos por meio do rito confessional: “E haverá que se dizer tudo. Tudo, mas tudo. Entregar-me em palavras e dizer muito mais do que desejaria dizer ...” (CARPENTIER, 1987, p.45). O “dizer tudo” remeterá fatalmente à exposição de uma existência em que sobraram todos os vícios – excetuando-se a preguiça – destacando-se, sobretudo, a luxúria exercitada com “fêmeas” de todas as partes e de todas as cores, e a soberba, diligentemente praticada na construção de uma rede de mentiras, com vistas a seduzir para seu empreendimento marítimo os poderosos de seu tempo. Nas palavras do próprio e autointitulado almirante: ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Armava meu teatro diante de duques e altezas, financistas, freis e homens ricos, clérigos e banqueiros, grandes daqui, grandes de lá, erguia uma cortina de palavras e, no instante, aparecia em desfile deslumbrante, o grande entrudo do Ouro, do Diamante, das Pérolas, e, sobretudo, das Especiarias (CARPENTIER, 1987, p.68). A contínua montagem de seu “Retábulo de Maravilhas” (CARPENTIER, 1987, p.78) logo converte Colombo em “grande e intrépido embusteiro” (Idem, p.67). Parco conhecedor dos fundamentos náuticos (os quais deve à sabedoria de Mestre Jacob), institui-se como experimentado marinheiro. Por último, torna-se incapaz de ler um texto sem enxergar presságios subliminares de sua grandeza, convertendo-se no mentiroso que se deixa enredar em sua própria mentira. Neste contexto de perpétua fraude, o navegante genovês sublinha a artificialidade de um mundo barroco, no qual o herói se assume como pícaro inveterado, useiro e vezeiro na arte de manipular a vontade alheia por meio da “cortina de palavras”: “Me fui fazendo gente e, como gente que era, manejava a intriga com maior sorte do que antes” (CARPENTIER, 1987, p.74). É assim que convence os reis católicos de Aragão e Castela – acrescendo-se ainda um parêntese para seu interlúdio amoroso com a rainha Isabel – a financiarem-lhe uma expedição às terras desconhecidas, na intenção de proclamar o evangelho ( e muito certamente de amealhar riquezas) na “aleluia de geografias deslumbrantes” (Idem, p.78) do oeste ainda ignorado. Adepto da Docta ignorantia (CARPENTIER, 1987, p.87), creditando seu sucesso à audácia e esperteza capazes de abrir portas mais rapidamente que a lógica e a sabedoria formalmente adquirida, Colombo acredita mais do que tudo na força da palavra, cujo encanto fluido seduz e contagia, convertendo o homem em metáfora daquilo que escapa de seus lábios, construto indelével de suas habilidades verbais. Neste sentido, o apreço do descobridor da América pela Medeia de Sêneca não se revela gratuito, pois Colombo se equipara plenamente ao herói grego Jasão, que, na leitura de Brandão (1993, p.156), vence os perigos de uma travessia para terras desconhecidas enganando todo um reino estrangeiro, assim como obtendo a riqueza almejada através da sedução de sua princesa. Qual novo Jasão, Colombo exercita sua loquacidade persuasiva em vida e também se sente assegurado por ela no post mortem , quando, convertido em espectador invisível, chega a ter certeza de sua promoção à entidade hagiográfica: ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Oh, grande, grande grande Christophoros, ganhaste a partida, tua auréola está nas portas, haverá Consistório, terás altares em todas as partes, serás como o gigante Atlas, cujos potentes ombros já carregam, para sempre, um mundo que tu fizeste redondo, posto que, graças a ti, veio a se arredondar uma terra que era plana, limitada, circunscrita ... (CARPENTIER, 1987, p.155). Porém, é a desmedida de sua própria vaidade que acaba por sabotar os projetos de beatificação, pois seus detratores logo inventariam a ganância de quem quis comerciar com a escravidão indígena, assim como a luxúria daquele que não se negou os amores ilegítimos. O Invisível, avatar sobrenatural do célebre navegante, em ideia tão cara à concepção de simulacro, acorde à estética de inspiração seiscentista, logo se depara com a derrubada de suas pretensões à santidade. É então que exclama: Me fodi (...) Antes de abandonar a estância, dirigiu um último olhar à pintura que mostrava o martírio de São Sebastião. – Como tu, fui flechado ... Mas as flechas que me trespassaram me foram disparadas, afinal de contas, pelos arcos dos índios do Novo Mundo, aos quais eu quis agrilhoar e vender (CARPENTIER, 1987, p.169). Em sua vida terrena, à semelhança do mito helênico, o genovês se deixa levar por sua ganância e ânsias de glória, acabando por terminar seus dias solitariamente. E, ainda mais do que Jasão, continua execrado por muitos, como atesta o terceiro capítulo do romance de Carpentier, no qual a pretensa santidade do navegador é definitivamente descartada diante de seus olhos espectrais, para que sua sombra de “Homem-condenado-a-ser-um-homem-comoos-demais” (CARPENTIER, 1987, p.175) se dilua em meio aos destinos mais banais de um Tífis obscuro. Tal dissolução se coaduna à concepção barroca da efemeridade da existência e da glória humanas, do homem metaforizado em pó, que é sombra e cinzas de qualquer sonho de grandeza, assim como joguete inevitável da inconstância dos fados. Tanto quanto a construção da metáfora humana, a obra de Carpentier também responde pela instituição de símiles da terra, pois é na América e pela América que Colombo se revela como descobridor de seu próprio destino. Leiam-se aqui as palavras do genovês ao fim do segundo capítulo: Fui o Descobridor-descoberto, posto ao descoberto; e sou o Conquistadorconquistado, já que comecei a existir para mim e para os outros no dia em que cheguei lá e, desde então, são aquelas terras as que me definem, cospem em minha figura, me param no ar que me circunda, me conferem, perante mim mesmo, uma estatura épica que todos já me negam, e mais agora que morreu Columba, unida a mim em uma façanha o já bastante povoada de prodígios para ditar uma canção de gesta apagada, antes de ser escrita, pelos ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR novos temas de romances que se oferecem à avidez da gente (CARPENTIER, 1987, p.140). Neste espaço de revelação de identidade que são as terras americanas, não encontra Colombo sua pátria, ele que toda a vida foi um estrangeiro, vivendo de simulacros e engodos. Para o fingido almirante, a América, antípoda completo da Europa, apresenta-se além da compreensão, locus “onde nada se te definiu jamais em valores de nação verdadeira” (CARPENTIER, 1987, p.141). Mesmo o encantamento do primeiro contato com o Novo Mundo já trai a incapacidade de compreensão deste por parte do navegador europeu, imbuído de todo um universo de referências que não encontra lugar na América recém descoberta, para a qual Colombo se confessa incapaz de tecer um código próprio: Fui sincero quando escrevi que aquela terra me pareceu a mais formosa que olhos humanos teriam visto. Era rija, alta, diversa, sólida, como que talhada em profundidade, mais rica em verdes-verdes, ,mais extensa, de palmeiras mais em cima, de arroios mais caudalosos, de altos mais altos e ribanceiras mais fundas, que o visto até agora em ilhas que eram para mim, confesso, como que ilhas loucas, ambulantes, sonâmbulas, alheias aos mapas e noções que me haviam nutrido. Havia que descobrir essa terra nova. Mas, ao tentar fazê-lo, me achei diante da perplexidade de quem tem de dar nomes a coisas totalmente diferentes de todas as conhecidas – coisas que devem ter nomes, posto que nada que não tenha nome pode ser imaginado, mas esses nomes me eram ignorados e eu não era um novo Adão, escolhido por seu Criador, para dar nomes às coisas (CARPENTIER, 1987, p. 99). O fausto hiperbólico da natureza americana, em que tudo é “mais” em relação aos parâmetros europeus, acaba por se converter em motivo de decepção para o genovês, na medida em que lhe nega a posse dos tesouros que cobiça. A conquista das novas terras logo se converte em mascarada barroca, na qual Colombo finge aceitar e tomar posse do Novo Mundo que lhe é oferecido, ao passo que os nativos parecem não reconhecer suas reais intenções, tampouco colaborando para que o genovês encontre seu tão ansiado ouro. Do fastio da hipérbole, passa então o navegador para as teias da ilusão, espelhando mais uma das facetas de sua incapacidade em reconhecer as alteridades de terra e gente americanas: E eu ficava em posse de suas terras sem que eles se inteirassem de nada e, sobretudo, sem que aquela tomada de posse, em nome de etcétera, etcétera, etcétera (o mesmo de sempre!), me trouxesse maiores benefícios. (E eu regressava a minha nau, em bote que passava lentamente sobre bancos de coral que sob o sol cambiante daqui, se tornavam para mim uma miragem ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR imersa, onde tudo parecia outra coisa e, vendo tais jogos de cores, se podia acreditar que neles entravam as cintilações mágicas da esmeralda e dos adamas, do astrião e dos crisóprasos das Índias, da selenita da Pérsia, e até do lincúrio que, como é sabido, nasce da urina do lince, e da dracontita, que se extrai do cérebro do dragão ... Mas só “se podia acreditar”, porque se metias a mão e agarravas algo, teus dedos ficavam ensanguentados sem maior benefício do que o de tirar alguma coisa que, ao secar-se, tornava-se algo como um pedacinho de ramo apodrecido ... E o que era tido como magnífica crisocola, que é das terras asiáticas onde as formigas, sozinhas, tiram o ouro do solo, virava, para teu grande despeito, crisopéia – e que me perdoem a piada de mau gosto (CARPENTIER, 1987, p.105). À sedução da hipérbole, sucede o desencanto da miragem: as duas faces da representação barroca encarnam aqui o encontro entre o exagero e a carência, com o deslumbramento e a decepção se entrelaçando em um abraço que não pode ser outro que não o da incompreensão, num primeiro momento disfarçada, mas logo em seguida escancarada no esboroar de lendas que se convertem em vestígios como o do coral putrefato. Contudo, se a América deixa de ser o legendário Eldorado para Colombo, continua sendo terra prometida para muitos. País da cocanha de seus primeiros descobridores – os vikings -, o Novo Mundo se faz esperança de futuras glórias da religião para o cônego Mastaï, fascinado pela desmedida de suas paisagens e pela impulsividade de seus povos: Uma natureza assim só podia engendrar homens diferentes – pensava – e o futuro diria que raças, que empenhos, que ideias sairiam daqui quando tudo isso amadurecesse um pouco mais e o continente adquirisse uma consciência plena de suas próprias possibilidades (CARPENTIER, 1987, p.29). Nesta América: Havia mais, muito mais do que gaúchos e gaudérios, índios pérfidos, portentosos, boleadores, ginetes de um magnífico aspecto, repentistas que, rasgando o violão, cantavam a imensidão, o amor, o desafio, a macheza e a morte. Por cima de tudo isso, havia uma humanidade em efervescência, inteligente e voluntariosa, sempre inventiva, embora às vezes desonesta, geradora de um futuro que, segundo pensava Mastaï, seria preciso emparelhar com a Europa (CARPENTIER, 1987, p.36). Porém, é novamente o descobridor-colonizador Colombo que, na tentativa de “emparelhar” à Europa a exuberância peculiarmente barroca do continente americano, grassa em falhas, definindo pela negação a sua “descoberta”: é uma terra que não tem ouro, nem especiarias, não é Cipango, nem Catai, pouco ou nada oferecendo ao europeu ávido de riquezas. Nas palavras do próprio Colombo: ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR Irritado perante esses índios que não me entregam seus segredos, que já ocultam suas mulheres quando nos aproximamos de seus povoados porque nos têm por gente desonesta e luxuriosa; perante esses desconfiados e atrevidos que já, de vez em quando, nos disparam flechas – embora sem nos causar maiores danos, para dizer a verdade – deixo de vê-los como seres inocentes, bondosos, inermes, tão incapazes de malícia como a de ver a nudez como indecorosa, que idilicamente pintei a meus amos no regresso da primeira viagem. Agora lhes vou dando, cada vez mais amiúde, o nome de canibais – embora jamais os tenha visto alimentar-se de carne humana (CARPENTIER, 1987, p.123). É assim que, habitada por “índios sacanas” (p.106), que não têm religião, nem utilizam língua conhecida, a “Índia das especiarias” se transforma logo na “Índia dos canibais” (p.123), inferno de almas ignorantes da santa fé cristã, metáfora de uma terra selvagem e de alteridades perigosas, que precisa ser dominada, submetida, por fim chacinada para ser compreendida. Por outro lado, a América incompreendida devolve a Colombo seu olhar de espanto mesclado ao desprezo, pontuando seu rechaço ao conquistador por meio da crítica desapiedada de um modus vivendi que lhe é tão estranho quanto indesejável: Eu soube que esses homens nem gostavam de nós nem nos admiravam: nos encaravam como pérfidos, violentos, mentirosos, coléricos, cruéis, sujos e fedorentos, estranhados por quase nunca nos banharmos, eles que, várias vezes ao dia, refrescavam seus corpos nos riachos, cascatas e canhadas de suas terras. Diziam que nossas casas eram empestadas de gordura rançosa; de merda, nossas ruas estreitas; de cheiro de sovaco, nossos mais lúcidos cavalheiros, e que se nossas damas vestiam tantas roupas, corpinhos, babados e enfeites, era porque, certamente, queriam ocultar deformidades e chagas que as tornavam repulsivas – ou então se envergonhavam de suas tetas, tão gordas que sempre pareciam prestes a lhes saltar para fora do decote. Nossos perfumes e essências – também o incenso – lhes faziam espirrar; se afogavam em nossos estreitos aposentos, e imaginavam que nossas igrejas eram lugares de escarmento e espanto pelos muitos entrevados, inutilizados, piolhentos, anões e monstros que se apinhavam em suas entradas. Tampouco entendiam por que tanta gente que não era da tropa andava armada, nem como tantos senhores ricamente ataviados podiam contemplar, sem se envergonhar, do alto de suas reluzentes montarias, um perpétuo e gemente mostruário de misérias, purulências, cotos e andrajos (CARPENTIER, 1987, p.121). No encontro destes dois mundos tão díspares, avulta o oximoro inconciliável entre o que vive de aparência e o que se faz verdadeiro, entre o que se oculta nas alcovas e o que se revela nu, entre o que valoriza a posse e o que ama a experiência. E dos pares antitéticos ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR emanam a impossibilidade de comunicação que não pela força, o intento de suplantar a linguagem do desconhecido pelo dialeto da conquista, buscando sufocar a polifonia das alteridades na ilusão do unificar e do civilizar. Ao optar pelo discurso do conquistador, Colombo se converte em representante daquilo que Todorov (1993, p.138) chama de sociedade de massacre, renunciando para sempre a encontrar sua identidade ou sua pátria na América “por ele” descoberta. É então que, figura inadequada à santidade dos altares de dois mundos, se vê relegado ao ostracismo da e na eternidade pelos mesmos indígenas que quis escravizar, povos para quem foi um estranho vindo de uma terra estranha, ator de mascaradas convencido de sua parte na epopeia, mas que, ao desvelar para o Velho o Novo Mundo, quis cingir uma terra que acabou lhe ficando grande demais. Ao encerrarmos nosso périplo pelos caminhos que Alejo Carpentier traçou como coordenadas da vida de Cristóvão Colombo, não podemos deixar de compreender A Harpa e a Sombra como um grande e singular exercício barroco. A escritura do texto se coaduna à construção da metáfora para desvelar um jogo de claros e escuros que reproduz fielmente as incertezas de identidade de homens e terras, considerados sob a ótica de olhos estranhos, olhos que ora enxergam, ora ignoram as profundezas do ser. Encontramos um Colombo que se entrega ao rito confessional como tentativa de catarse de toda a sua trajetória, mas não consegue renegar seu status de permanente fingidor, pois segue hesitante em relação ao teor de suas revelações, temendo trair de algum modo aquilo que não poderia “ficar escrito em pedra-mármore” (CARPENTIER, 1987, p.144). Artífice da palavra enganosa durante toda a sua existência, encarna o mundo como representação, tão caro à estética barroca, assim como recorre à fabulação épica na ânsia de reconstruir sua gesta de navegações, embora não escape da reflexão irônica sobre as vaidades e ganâncias que moveram suas peripécias. Despido de pátria tanto no Velho como no Novo Mundo, resta-lhe procurar a “única pátria possível”, “aquela que ainda não tem nome” (CARPENTIER, 1987, p.141) e que lhe mostrará quem verdadeiramente ele é. E se Colombo mergulha na incerteza de sua identidade, para depois fixar-se como Invisível sem face e sem altares, também permanece a América – sua “descoberta” – como uma incógnita identitária. Ela define seu “descobridor”, mas permanece sem definir a si própria, qual pérola barroca de superfície irregular, exibindo tantas faces quantas são as possibilidades de vê-la. De certa forma, ainda continua sendo a terra da Cocanha dos vikings, aquela de natureza exuberante e povos impetuosos, construindo sua história à sombra do ISSN 2175-943X I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória 21 a 23 de Setembro de 2011 UNIOESTE – Cascavel/PR sincretismo entre telúrico e político. País de “entresueños y sueños”, para cunhar versos borgianos, somente pode ser compreendida à luz de um olhar atemporalmente barroco, que divise a maravilha como parte integrante do real, olhar que Carpentier consegue magistralmente registrar por sobre os séculos de História que nos separam de um navegador genovês cujos sonhos também eram barrocos. REFERÊNCIAS: BARREDA-TOMÁS, P. Alejo Carpentier: dos visiones del negro, dos conceptos de la novela. Revista Hispania, v.55, nº 1, Mar.1972. Disponível em: <http://www.jstor.org/pss/338243> Acesso em: 08.jul.2011. BRANDÃO, J. Dicionário Mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1993.v.2. CARPENTIER, A. A Harpa e a Sombra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987. CHIAMPI, I. La literatura neobarroca ante la crisis de lo moderno. Revista Criterios. La Habana, nº 32, 1994. Disponível em: <http:// WWW.criterios.es/pdf/chiampiliteraturaneobarroca.pdf> Acesso em: 08.jul.2011. COUTINHO, A. O Barroco. In: A Literatura no Brasil. 4.ed. 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