Terapia biológica em artrite reumatoide Terapia biológica em artrite

Transcrição

Terapia biológica em artrite reumatoide Terapia biológica em artrite
ISSN 0047-2077
Maio/Junho 2012
Volume 100
Número 2
Terapia biológica
em artrite
reumatoide
O contexto do transplante
de órgãos no Brasil em 2011
Insuficiência exócrina do
pâncreas
Hipertensão arterial
resistente
Etiopatogenia do diabetes
mellitus tipo 2
Asma — A arte do
encontro
A arte da Clínica Médica
editorial
ISSN 0047-2077
Editor: José Maria de Sousa e Melo
In memoriam
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A
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efetivamente da atualização continuada de milhares e milhares de
médicos brasileiros, o Jornal Brasileiro de Medicina — JBM, criado
e cuidadosamente mantido pela EPUC — Editora de Publicações Científicas
e liderado pelo saudoso e empreendedor Sr. José Maria de Sousa e Melo,
busca manter a tradição, porém, adequando-se aos tempos modernos, privilegiando a ainda charmosa comunicação escrita, mas reformulando-se na maneira de se expressar.
A partir desta edição, lançada no tradicional Centro de Convenções do
Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) em 15 de junho de 2012, pretende
sua Coordenação e seu renovado Conselho Científico retornar ao caminho
e à arte de divulgar e transmitir a Clínica Médica com o que temos de melhor na medicina brasileira.
Publicidade
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Com especial atenção ao mundo acadêmico, privilegiando os temas comuns e necessários a uma boa prática clínica, o JBM inicia um período de
renovação, porém, mantendo a meta da qualidade ética e didática. Temos
por objetivo principal atingir clínicos e especialistas em medicina interna
que, na solidão de seus consultórios, tomarão sábias decisões que poderão
mudar favoravelmente o destino de nossos pacientes.
Jornal Brasileiro de Medicina é uma revista médico-científica bimestralmente enviada a mais de
25.000 médicos com clínica ativa em todo o território nacional. JBM NÃO ACEITA EM HIPÓTESE
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Uma revista bimestral, com seis artigos de revisão e atualização, seções
especializadas em apresentações de casos clínicos, imagens e avaliação laboratorial que serão motivo de desejo e expectativa pela próxima edição.
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tradução, em todos os países signatários da Convenção Pan-Americana e da Convenção Internacional sobre Direitos Autorais.
Os trabalhos publicados terão seus direitos autorais
resguardados pela EPUC que, em qualquer situação, agirá como detentora dos mesmos.
A revista JBM, que tenho a honra e satisfação de presidir, coloca-se de
maneira ambiciosa a tornar-se o principal e maior veículo de transmissão
do conhecimento da Clínica Médica no Brasil, especialidade que atinge o
todo, abordando e decodificando sintomas e sinais de maneira a desenvolver um raciocínio diagnóstico lógico e a solicitação de exames complementares de maneira objetiva e parcimoniosa.
O JBM terá como seu grande alicerce o médico, figura ímpar, que, com
seu conhecimento e experiência, poderá tornar o exercício da medicina
ciência e arte. Com a parceria ética e construtiva de nossos patrocinadores,
poderemos atingir praticamente todas as localidades deste imenso Brasil,
e levar a nossos colegas a atualização, essencial a um bom exercício da
profissão.
É com um entusiasmo invulgar que abraçamos este desafio, motivo de
orgulho e de compromisso com o mundo científico brasileiro.
Peço a Deus que nos ilumine.
José Galvão-Alves
Publicações do Grupo:
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
3
sumário
3
7
16
A arte da Clínica Médica
editorial
Conselho Científico
Presidente
José Galvão-Alves
O contexto do transplante de órgãos
no Brasil em 2011
artigos
Bahia
Zilton A. Andrade
Luis Guilherme Lyra
Drs. José O. Medina Pestana, Valter Duro Garcia, Claudia Rosso Felipe,
Mário Abbud-Filho, Nelson Zocoler Galante, Eliana Regia Barbosa de
Almeida e Emil Sabbaga
Brasília
Columbano Junqueira Neto
Hipertensão arterial resistente — Diagnóstico
e tratamento
Espírito Santo
Carlos Sandoval
Drs. Evandro Tinoco Mesquita e Antonio José Lagoeiro Jorge
Goiás
Celmo Celeno Porto
23
Insuficiência exócrina do pâncreas — Etiologias
39
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
Dr. Leão Zagury
Paraná
Miguel Riella
Sergio Bizinelli
44
Asma — A arte do encontro
Pernambuco
José Roberto de Almeida
57
Dr. Hisbello S. Campos
Rio de Janeiro
Aderbal Sabas
Azor José de Lima
Evandro Tinoco
Fábio Cuiabano
Gilberto Perez Cardoso
Jorge Alberto Costa e Silva
José Manoel Jansen
Marta C. Galvão
Mauro Geller
Henrique Sergio Moraes Coelho
Glaciomar Machado
Terapia biológica em artrite reumatoide — Novas
perspectivas no controle e remissão
Drs. W. A. Bianchi , G. B. Maretti, D. V. Bianchi, R. F. Elias e B. V. Bianchi
Relato de caso
31
Minas Gerais
Julio Chebli
Dr. José Galvão-Alves
seções
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária
e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo — Associação
incomum ou mera casualidade?
Drs. J. Galvão-Alves , M. C. Galvão , D. A. Cavalcanti e H. Rzetelna
São Paulo
Capital
Adib Jatene
Flair José Carrilho
José Eduardo Souza
Nestor Schor
Sender Miszputen
Botucatu
Oswaldo Melo da Rocha
Imagem em medicina interna
36
6
Coordenação: Dra. Marta Carvalho Galvão
Apendicite aguda
Dras. Marta Carvalho Galvão, Beatriz da Cunha Raymundo e Mariana de
Magalhães Bastos
55
Panorama Internacional
66
Noticiário
JBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
O contexto do transplante de órgãos
no Brasil em 2011
JOSÉ O. MEDINA PESTANA
NELSON ZOCOLER GALANTE
Doutorado em Nefrologia. Professor titular
do Departamento de Medicina Ð Disciplina
de Nefrologia da Universidade Federal de
São Paulo.
Doutorado em Nefrologia Ð Hospital do Rim
e Hipertensão. Departamento de Medicina,
Disciplina de Nefrologia da Universidade
Federal de São Paulo.
VALTER DURO GARCIA
ELIANA REGIA BARBOSA DE ALMEIDA
Doutorado em Nefrologia Ð Unidade de
Transplante de Rim e Pâncreas do Complexo
Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.
Mestrado em Clínica Médica. Coordenadora
da Central de Transplante do Estado do
Ceará.
CLAUDIA ROSSO FELIPE
EMIL SABBAGA
Doutorado em Nefrologia Ð Hospital do Rim
e Hipertensão. Departamento de Medicina
Ð Disciplina de Nefrologia da Universidade
Federal de São Paulo.
Doutorado em Nefrologia Ð Departamento
de Medicina, Disciplina de Nefrologia da
Universidade de São Paulo.
transplantes
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
MÁRIO ABBUD-FILHO
Doutorado em Nefrologia Ð Departamento de
Medicina, Disciplina de Nefrologia da Faculdade
de Medicina de São José do Rio Preto.
Resumo
Summary
O Sistema Nacional de Transplantes
(SNT) brasileiro coordena e regulamenta o
maior programa de transplantes público do
mundo. Com o seu estabelecimento, em
1997, o número de transplantes renais aumentou de 920 (5,8 por milhão de população Ð pmp), em 1988, para 4.957 (26 pmp)
em 2011. Existem disparidades geográficas
evidentes nos desempenhos entre as cinco
regiões nacionais. Estas disparidades são diretamente relacionadas à densidade populacional regional, ao produto interno bruto
e ao número de médicos com treinamento
em transplante. Acompanhando o desafio
de atenuar as disparidades regionais no
acesso ao transplante, o sistema pode ser
aperfeiçoado pela criação de um registro
nacional para receptores de transplante e
de doadores vivos de rim, e também pela
promoção de estudos clínicos e experimentais voltados a melhor compreender a resposta imune relacionada ao transplante em
nossa população.
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The Brazilian National Transplant System
(SNT) coordinates and regulates perhaps the
largest public transplant program worldwide.
Since its establishment in 1997, the number
of kidney transplants increased from 920 (5.8
pmp) in 1998 to 4,957 (26 pmp) in 2011.
There are clear regional disparities in performance across all national regions. These disparities are directly related to regional population density, gross domestic product, and
number of transplant physicians. Besides the
challenge of reducing the regional disparities
related to the access to transplantation, it can
be further improved by creating a national
outcome registry for transplant recipient and
for living kidney donors, and also by promoting clinical and experimental studies aimed
to better understand the immune response
related to transplantation in our population.
Unitermos: Transplante
de órgãos; doação de
órgãos; sistema único de
saúde; sistema nacional
de transplantes.
Keywords: Organ
transplantation; organ
donation; health care
system; national system
for transplants.
7
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
Introdução
O sistema público de saúde brasileiro é caracterizado pela cobertura universal
gratuita, que inclui o atendimento médico completo, ambulatorial e hospitalar, e
o fornecimento de vários medicamentos,
incluindo aqueles listados no Programa de
Medicamentos Excepcionais, inserido no
atendimento ambulatorial de alta complexidade para tratamento de enfermidades raras
ou de baixa prevalência (Portaria MS/SAS
no 105, de 29/03/99) (1). Nesse programa
estão duas áreas terapêuticas reconhecidas
internacionalmente: o transplante de órgãos
e o tratamento de pacientes portadores do
vírus da imunodeficiência adquirida (HIV).
O programa nacional de transplantes de
órgãos é provavelmente o maior programa
público de transplantes do mundo, com uma
logística de alocação de órgãos justa e sem
privilégios sociais ou culturais. O Ministério
da Saúde disponibiliza perto de 1 bilhão de
reais anualmente neste programa, destinado
às despesas relacionadas à organização de
procura de órgãos, despesas hospitalares
com a realização dos procedimentos cirúrgicos e readmissões hospitalares para tratamento de suas complicações, atendimento
ambulatorial e fornecimento de medicamentos imunossupressores. Mais de 95% dos
transplantes são realizados dentro do sistema único de saúde, sendo que o acompanhamento de todos estes pacientes, em ge-
ral, é vinculado às equipes de transplantes.
O acompanhamento dos doadores também
está regulamentado, determinando remuneração equivalente a uma consulta ambulatorial do receptor de transplante (2).
Desenvolvimento do Sistema
Nacional de Transplantes (SNT)
Desde a sua criação, em 1997, a organização e a legislação brasileira de transplante têm sido aprimoradas e regulamentadas, estabelecendo atualmente uma rede
descentralizada de colaboradores, dividida
em três níveis hierárquicos totalmente integrados: (1) em nível nacional, no Ministério
da Saúde em Brasília; (2) em nível regional,
em cada Secretaria Estadual de Saúde; (3)
em nível intra-hospitalar (Gráfico 1). No
nível nacional o programa de transplantes
é coordenado pelo Sistema Nacional de
Transplantes (SNT), órgão localizado no
Ministério da Saúde em Brasília e regulamentado pela Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. O SNT credencia equipes e
hospitais para a realização de transplantes
e define o financiamento e portarias que
regulamentam todo o processo, desde a
captação de órgãos até o acompanhamento dos pacientes transplantados. O SNT
coordena a Central Nacional de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos
(CNNCDO), também localizada em Brasília,
responsável pela alocação de órgãos entre
Gráfico 1: Organização do Sistema Nacional de Transplantes.
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O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
os estados. O SNT também coordena as
23 de setembro de 2005, que estabeleceu
Centrais de Notificação, Captação e Disque todos os hospitais com mais de 80 leitribuição de Órgãos (CNCDOs) presentes
tos devem dispor de Comissões Intra-hosnas secretarias de saúde dos 27 estados da
pitalares de Doação de Órgãos e Tecidos
federação (3). Em nível regional, as centrais
para Transplantes (CIHDOTT), direcionadas
estaduais (CNCDOs) são responsáveis por
à detecção pró-ativa de potenciais doadocoordenar as atividades do transplante no
res (6). O Brasil tem 6.489 hospitais (154
âmbito estadual, realizando as inscrições e
são hospitais universitários) distribuídos
ordenações dos receptores, além de receem seu território, sendo cerca de 2 mil com
ber as notificações de potenciais doadores
mais de 80 leitos (7).
e coordenar a logística de todo o processo
O resultado dos investimentos e do aperde doação, desde o diagnóstico de morte
feiçoamento da legislação para transplantes
encefálica, a abordagem dos familiares e a
é demonstrado claramente pela evolução
retirada e alocação dos órgãos. As secredo desempenho nacional observado nos últarias estaduais podem criar Organizações
timos anos. O número de transplantes renais
de Procura de Órgãos (OPOs), também decresceu de 920 no ano de 1988 para 1.722
nominadas Serviço de Procura de Órgãos
em 1993, 2.394 em 1999, 3.466 em 2004 e
e Tecidos (SPOT), regionalizando a capta4.957 em 2011 (8). A relação entre o númeção em estados com população elevada
ro de transplantes com órgãos de doadores
ou com território geográfico extenso. No
vivos e falecidos se manteve próximo de
estado de São Paulo, cuja população che50% entre 1994 e 2007. Nos últimos anos,
ga a 40 milhões de habitantes, existem seis
a proporção de transplantes com órgãos de
SPOTs, quatro na capital e dois no interior.
doador falecido cresceu substancialmente,
Entre várias medidas implementadas
sendo que, em 2011, 66,8% dos transplancom o intuito de aumentar o número de potes renais foram realizados com órgãos de
tenciais doadores de órgãos, entre 1997 e
doadores falecidos (N = 3.314) (Gráfico 2).
2001 foi regulamentada a retirada de órgãos
No mesmo período, o número de transplande doadores falecidos baseada no consentites hepáticos cresceu de 1.008 em 2007
mento presumido, onde o indivíduo não era
para 1.492 em 2011, sendo que o número
considerado potencial doador de órgãos sode transplantes com doador vivo caiu de
mente se tivesse registrado este seu desejo
146 (14%) para 104 (7% do total).
em vida. Essa forma de obtenção de autorização familiar para a retirada de
órgãos não resultou em aumento
do número de doadores e trouxe
desconforto à população, sendo
revogada posteriormente (4, 5).
Entre 2001 e 2011, restabelecido o consentimento familiar
para a doação de órgãos, foi
observado um grande aumento
no número absoluto e relativo
de transplantes com órgãos de
doadores falecidos, resultado
de uma série de outras medidas
e regulamentações governamentais e da incorporação positiva da imagem do programa
de transplantes na cultura na
sociedade. Um avanço significativo no processo de captação
de órgãos foi determinado pela
portaria ministerial no 1.752, de Gráfico 2: Número atual de transplantes renais realizados no Brasil.
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Entre 2001 e 2011,
restabelecido o
consentimento familiar
para a doação de órgãos,
foi observado um grande
aumento nos números
absoluto e relativo de
transplantes com órgãos
de doadores falecidos,
resultado de uma série
de outras medidas
e regulamentações
governamentais e da
incorporação positiva da
imagem do programa de
transplantes na cultura na
sociedade.
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O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
A
Para todos os órgãos
existem critérios
circunstanciais rigorosos
para se estabelecer
prioridades na lista de
espera em situações
extremas. Pacientes com
hepatite fulminante,
choque cardiogênico,
sem acesso vascular ou
peritoneal para realização
de hemodiálise ou com
perfuração de córnea
são priorizados para
receberem transplantes
de fígado, coração, rim e
córnea, respectivamente.
necessidade de transplantes
A necessidade estimada de transplantes
de órgãos por milhão de habitantes bem
como o número de transplantes realizados
em 2011 são mostrados no Gráfico 3. Cerca
de 19.500 pessoas aguardam transplante de
rim, 1.100 de fígado, 440 de pâncreas-rim,
200 de coração e 144 de pulmão. Em vários
estados brasileiros, como no estado de São
Paulo, já não existe lista de espera para transplante de córnea, o que deve ocorrer também nos demais, considerando que não existe limite de idade para doação de córneas
e sua retirada pode ser realizada em quase
todos os doadores em até seis horas após a
morte. O grande e crescente número de pacientes em lista de espera para o transplante
renal decorre da progressiva melhora na qualidade e expectativa de vida proporcionada
pela diálise, podendo esta opção terapêutica ser até mesmo melhor para certos grupos
de pacientes (9). Os transplantes de coração,
fígado e pulmão estão indicados em pacientes cuja expectativa de vida relacionada ao
órgão insuficiente seja menor que 30 meses, o que mantém a lista pequena quando
comparados ao transplante renal, no qual os
candidatos podem ser mantidos por décadas
em diálise.
O perfil da demografia de candidatos a
transplante renal com rim de doador falecido
no estado de São Paulo pode ser represen-
tativo da média nacional. Analisando 7.123
pacientes em lista de espera para transplante
renal, observamos que 76% dos candidatos
têm idade entre 21 e 60 anos, e apenas 51%
têm idade inferior a 18 anos, correspondendo a menos de 1,5 candidato em faixa etária
pediátrica em lista de espera por milhão de
habitantes (10).
Alocação de órgãos
A alocação de órgãos de doador vivo
ou falecido é regulamentada pelo SNT. Não
existem irregularidades comprovadas relativas à alocação de órgãos, sejam eles provenientes de doador falecido ou vivo, sendo
que denúncias existentes são prontamente
investigadas pelo Ministério Público.
A alocação dos órgãos de doador falecido
é controlada pelas centrais estaduais, sendo o
rim distribuído de acordo com a melhor compatibilidade HLA (antígeno leucocitário humano). O coração, o pâncreas e o pulmão são
alocados de acordo com o tempo em lista de
espera. O fígado é destinado ao paciente de
maior gravidade na lista de espera, com base
no escore Model for End-stage Liver Disease
— MELD (11). Para todos os órgãos existem
critérios circunstanciais rigorosos para se estabelecer prioridades na lista de espera em
situações extremas. Pacientes com hepatite
fulminante, choque cardiogênico, sem acesso
Gráfico 3: Necessidade estimada e transplantes realizados em 2011.
10
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O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
Gráfico 4: Evolução da captação de órgãos no Brasil no período de 1999 a 2011.
vascular ou peritoneal para realização de hemodiálise ou perfuração de córnea são priorizados para receberem transplantes de fígado, coração, rim e córnea, respectivamente.
Crianças menores de 18 anos têm prioridade
e concorrem com os adultos em todas as situações, tendo preferência absoluta quando o
doador for desta faixa etária (12).
Entre 1999 e 2011 o número de potenciais doadores falecidos aumentou 107%,
de 18,3 pmp para 37,9 pmp. O número de
doadores falecidos aumentou 181,6%, de
3,8 pmp para 10,7 pmp (13) (Gráfico 4). Vale
salientar a mudança progressiva do perfil
dos doadores falecidos, muito semelhante
ao observado em centros internacionais. Os
dados obtidos da Secretaria Estadual de São
Paulo, no período entre 2000 e 2009, demonstram um aumento da idade média dos
doadores, de 33 anos em 2000 para 41 em
2009. Observa-se uma progressiva diminuição do número de doadores com idade inferior a 34 anos, cuja principal causa de óbito
é por morte violenta (14), e um crescimento
proporcional do número de doadores com
idade superior a 50 anos, cuja principal causa
de óbito é o acidente vascular cerebral. Para
exemplificar essa mudança, a proporção de
transplantes de rim de doador com critério
expandido, definido segundo os critérios
da OPTN (Organ Procurement and Transplantation Network) (15), aumentou de 4%
em 2000 para 31% em 2010 no Hospital do
Rim e Hipertensão. Das 158 notificações de
potenciais doadores recebidas no primeiro
semestre de 2010 pelo SPOT UNIFESP, 49%
dos diagnósticos de morte encefálica foram
de acidente vascular cerebral, 27% de traumatismo craniencefálico, 18% de anóxia e
5% de outras causas. O índice de efetivação
JBM
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VOL. 100 No 2
da doação foi de 40%, sendo que 22% não
foram concretizados devido à negativa familiar e 38% dos potenciais doadores foram
desconsiderados por motivos relacionados
à notificação tardia, resultando em parada
cardíaca antes que o processo de doação se
completasse (10). Mesmo assim, no ano de
2010 apenas 211 rins (12,8%) foram descartados por terem sidos considerados inadequados para transplante, seja por alteração
da função ou da histologia renal. Este percentual de descarte é inferior àquele que
ocorre nos Estados Unidos e Espanha, onde
o descarte é superior a 20% (16, 17). A notificação mais rápida de potenciais doadores
deve não só aumentar a proporção de efetivações de doações como também aperfeiçoar a manutenção do doador, aumentado a
viabilidade e qualidade funcional dos órgãos
retirados e possivelmente reduzindo ainda
mais a taxa de descarte.
A alocação de órgãos de doador vivo
(tanto para rim como para fígado e pulmão)
permite o transplante com órgãos de parentes
até o quarto grau (grau I — pais e filhos; grau II
— avós e irmãos; grau III — tios e sobrinhos;
grau IV — primos e filhos de tios consanguíneos) e também de cônjuges. O transplante
com órgãos de doadores vivos não relacionados ou amigos só é permitido depois de extenso trâmite, que envolve justificativa médica
e autorização ética e judicial para o procedimento. O resultado dessa regulamentação é
evidenciado pelo pequeno número de transplantes renais com doadores vivos não aparentados realizados no ano de 2011: apenas
113 (7%) (não parentes e não cônjuges) entre
os 1.643 transplantes renais intervivos do ano.
Definição e abordagem criteriosas na seleção
do doador vivo são fundamentais para a segu-
A alocação de órgãos de
doador vivo permite o
transplante com órgãos
de parentes até o quarto
grau e também de
cônjuges.
11
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
Apesar da crescente
desproporção entre o
número de doadores e
o número de potenciais
receptores em lista de
espera para receber um
transplante, acreditamos
que a doação de órgãos
de filhos para pais, cerca
de 100 doadores por
ano na análise realizada,
deve ser questionada e
intensivamente debatida.
12
rança do doador. Além das avaliações clínicas
e laboratoriais estabelecidas, podemos considerar também o seu peso ao nascer, visto
que o baixo peso está relacionado a posterior
déficit de função renal (18), e a presença de
microalbuminúria, mais prevalente em portadores de rim único, que constitui fator de risco
isolado para desenvolvimento de doença cardiovascular (19).
Apesar da crescente desproporção entre
o número de doadores e o número de potenciais receptores em lista de espera para
receber um transplante, acreditamos que a
doação de órgãos de filhos para pais, cerca
de 100 doadores por ano na análise realizada,
deve ser questionada e intensivamente debatida. A idade jovem por ocasião da doação, o
crescente aumento na expectativa de vida da
população e o caráter hereditário de muitas
doenças renais são fatores de risco que podem estar associados com o desenvolvimento
e progressão mais rápida de doenças renais
em doadores com rim único. Este mesmo
conceito deve ser empregado na seleção de
jovens candidatos a doadores que apresentam antecedentes paternos de hipertensão
arterial, diabetes mellitus ou doença cardiovascular precoce, que poderão, a exemplo
dos pais, desenvolver doenças renais com
progressão mais acelerada após a doação.
A mesma mudança no perfil de doadores
falecidos quanto ao aumento da idade também é observada entre os doadores vivos, com
a crescente utilização de órgãos de doadores
vivos cada vez mais idosos. A idade média dos
doadores vivos cresceu cinco anos na última
década, de 40 para 45 anos, sendo frequentemente utilizados doadores vivos com mais de
70 anos (10). Na casuística do Hospital do Rim
e Hipertensão o doador mais idoso foi uma
mãe, que doou o rim ao filho aos 81 anos, e
permanece sadia atualmente, aos 95 anos.
Não está disponível um registro brasileiro de doadores de rim, o que impossibilita a
avaliação da repercussão da nefrectomia na
função renal do rim remanescente e na sobrevida do doador em longo prazo. O doador vivo, embora não considerado paciente,
deve receber orientação sistemática em relação aos riscos do sobrepeso, hipertensão
arterial, tabagismo e demais hábitos associados a um maior risco de desenvolvimento e
progressão da doença renal e cardiovascular.
Disparidades regionais no número
de transplantes
Embora a logística do SNT esteja bem
estabelecida, resultando em números anuais
crescentes de transplantes, existem disparidades regionais acentuadas entre os estados.
Enquanto em São Paulo, Distrito Federal, Rio
Grande do Sul e Santa Catarina o desempenho observado na captação de órgãos
se aproxima de países com programa de
transplantes já bem alicerçados, em outros
estados, como Amazonas, por exemplo, não
ocorre nenhuma captação de órgãos de doadores falecidos.
Em 2011 o número médio de doadores
falecidos foi de 10,7 por milhão de habitantes, variando entre 0,6 e 25,4 entre os estados da União.
Analisando a distribuição dos transplantes de rim realizados em 2011 por cada região geográfica brasileira, observamos que a
maioria foi realizada nas regiões Sul e Sudeste, o que bem caracteriza a discrepância geográfica mencionada. Estas regiões concentram 57% da população brasileira, 73% do
produto interno bruto (PIB) e a maioria dos
profissionais afiliados à Associação Brasileira
de Transplantes de Órgãos (8). Essas características demográficas e socioeconômicas
influenciam diretamente o número de publicações científicas indexadas na área de transplante de órgãos, que nos últimos 10 anos foi
80% proveniente da Região Sudeste, 16% da
Região Sul e 4% das demais regiões. No entanto destacamos o importante desempenho
do estado do Ceará na Região Nordeste, que
apresentou participação significativa nos números de transplantes de fígado e coração.
O desempenho dos estados que se destacam
está relacionado ao maior incentivo governamental nessas regiões, estruturação adequada dos centros transplantadores além da formação e motivação permanente das equipes
envolvidas.
O número total de transplantes renais realizados em 2011 foi de 4.957, sendo 2.010
(40,5%) realizados no estado de São Paulo
(48,7 pmp), 468 (9,4%) no Rio Grande do Sul
(43,8 pmp) e 263 (5,3%) em Santa Catarina
(42,1 pmp). Por outro lado, nesse mesmo
período, estados como Sergipe, Alagoas e
Bahia apresentaram números de transplanJBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
tes pmp de 2,4, 4,8 e 5,2, respectivamente
(Gráfico 5).
Em relação ao transplante hepático,
embora o estado de São Paulo tenha realizado 45,8% dos transplantes, os estados
com maior número de transplantes pmp
foram Ceará (18,6 pmp) e Santa Catarina
(17,1pmp), enquanto os estados da Paraíba,
Bahia e Minas Gerais apresentaram menores
índices — 0,8, 3,5 e 4,1 pmp, respectivamente (Gráfico 6).
O transplante cardíaco é realizado em
nove estados brasileiros, sendo que o estado
de São Paulo foi o responsável por 43% dos
transplantes do país em 2011, seguido pelo
Ceará, que realizou 15% do total. O número
de transplantes por milhão de população, no
entanto, foi maior no Distrito Federal (3,5) e
no estado do Ceará (3,0), enquanto São Paulo realizou 1,7 transplante pmp.
O transplante pancreático está quase que
exclusivamente destinado a pacientes portadores de nefropatia diabética avançada,
sendo realizado em combinação com o transplante renal. Apenas seis estados brasileiros
realizam este tipo de transplante, sendo que
dos 181 realizados em 2011, 66,2% ocorreram
no estado de São Paulo (2,9 pmp) e 13,8% no
Gráfico 5: Número atual de transplantes de rim, por estado, durante 2011.
Gráfico 6: Transplantes de fígado, por milhão de população, por estado, durante 2011.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
13
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
Paraná (2,4 pmp). Os estados de Minas Gerais, Ceará, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul também realizam este procedimento.
Apenas 49 transplantes de pulmão foram
realizados no Brasil em 2011, em quatro estados, sendo 55% no Rio Grande do Sul (2,5
pmp) e 34,7% em São Paulo (0,4 pmp). Quatro
transplantes ocorreram no Ceará (0,5 pmp).
A disparidade geográfica em relação ao
acesso ao transplante também está presente no transplante de córnea, demonstrado
no Gráfico 7. Trata-se de procedimento cirúrgico do cotidiano do oftalmologista, que
não exige equipamentos específicos, seleção imunológica ou mesmo imunossupressão; sendo assim, esta discrepância geográfica indica a existência de limitações não
relacionadas à disponibilidade de recursos
financeiros ou estruturais. Em 2011 foram
realizados 14.696 transplantes de córnea no
Brasil. Os estados que se destacaram pelo
número de transplantes por milhão de população foram Goiás (139,2 pmp), São Paulo
(133,9 pmp) e Distrito Federal (124,1 pmp).
No entanto, Rio de Janeiro, Amazonas e
Bahia apresentam um índice menor que 20
transplantes pmp (Gráfico 7).
Pesquisa em transplante no Brasil
O desempenho da atividade da pesquisa aplicada à área de transplantes tem
acompanhado o crescente aprimoramento do sistema. A aprovação de diretrizes e
Gráfico 7: Transplantes de córnea, por milhão de população, por estado, durante 2011.
14
normas reguladoras para o desenvolvimento de pesquisa envolvendo seres humanos
pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), em
1996, deu início ao processo de regulamentação da pesquisa clínica no Brasil. O estabelecimento da Comissão Nacional de Ética
em Pesquisa (CONEP), para definir diretrizes,
normas e padrões éticos de pesquisa, e de
Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), órgãos de abrangência institucional local com
responsabilidade de monitorar diretamente
o desenvolvimento dos projetos de pesquisa envolvendo seres humanos, ampliou as
oportunidades de colaboração dos centros
de pesquisa brasileiros tanto no âmbito nacional quanto internacional. Em 1987, o primeiro estudo multicêntrico nacional de fase IV
foi finalizado no Brasil e o ano de 1999 marcou a conclusão do primeiro estudo multicêntrico nacional de fase III envolvendo
dois centros brasileiros. Atualmente cerca de
3 mil receptores de transplante renal estão
incluídos em estudos clínicos nacionais e/ou
multicêntricos internacionais, situando os
centros brasileiros em posição de destaque
no cenário internacional dos estudos clínicos. Centros brasileiros participam de estudos clínicos envolvendo everolimo (21-23),
FTY720 (24-28), sirolimo (29-31), micofenolato mofetil (32-36), micofenolato sódico (37-39), tacrolimo (40, 41), tacrolimo de liberação modificada (42, 43), valganciclovir (44),
belatacept (45), sotrastaurina (clinicaltrials.gov
NCT00504543 e NCT01064791) e inibidor de
JAK3 CP690,550 (clinicaltrials.
gov NCT00483756).
O Brasil tem avançado
também no desenvolvimento
de projetos de pesquisa experimental envolvendo imunologia de transplantes. As
principais linhas de investigação incluem métodos de diagnóstico precoce da rejeição
aguda do enxerto (46-48), monitoramento não invasivo da
resposta imune (49), avanços
na compreensão dos mecanismos moleculares e celulares
envolvidos na lesão de isquemia e reperfusão (50-52) e na
tolerância operacional em humanos (53).
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
O contexto do transplante de órgãos no Brasil em 2011
Perspectivas
O Brasil vem apresentando um aprimoramento de sua organização social, que pode ser
evidenciado pelo crescimento da expectativa
de vida ao nascer, que atualmente é de 76 anos
para mulheres e de 69 anos para homens (54),
pelo índice de natalidade, que diminuiu de 5,6
para 2,1 nos últimos 30 anos (55), pela redução da mortalidade infantil e pela diminuição
da violência urbana e do número de mortes
violentas, que no estado de São Paulo decresceu de 13.257 em 1999 para 4.436 em 2007
(56). Nesse contexto, o programa brasileiro de
transplantes é um sistema avançado e organizado, justo e igualitário no seu propósito, que
deve ser preservado como uma conquista da
sociedade na atuação médica de alta complexidade, sendo considerado uma referência internacional da saúde pública brasileira.
A análise apresentada demonstra a existência de grande disparidade geográfica nas
variáveis métricas do transplante, que pode
ser interpretada como consequência intrínseca
das diferenças regionais no acesso à saúde e
na qualidade de assistência médica observadas
nas diferentes regiões do país. Entretanto, esse
cenário pode ser atenuado com o envolvimento dos governos estaduais e com a motivação
coletiva da sociedade e das equipes de transplante. A prova do resultado da efetividade
dessas estratégias vem do estado do Ceará,
Referências
1. CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL — Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Brasília, Subchefia para Assuntos Jurídicos
da Casa Civil da Presidência da República; 1988; disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm.
2. MINISTÉRIO DA SAÚDE — Portaria no 257 de 28 de julho
de 2009 — anexo PT/SAS/MS no 257, de 28 de julho de
2009 — compt. agosto, procedimento 0506010031. 2009;
disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/
sas/2009/prt0257_28_07_2009.html.
3. CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL — Decreto no 2.268, de 30 de junho de
1997. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da
Presidência da República; 1997; disponível em http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1997/D2268.htm.
4. CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL — Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência
da República Federativa do Brasil [acesso em 10/05/2011];
disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9434.htm.
5. CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL — Lei no 10.211, de 23 de março de 2001.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
onde ocorreu aumento acentuado do número
de transplantes, graças à atuação alinhada entre o poder público e as equipes de transplante.
O amadurecimento e o aprimoramento
do programa nacional de transplantes, apesar das disparidades geográficas, estão prosseguindo. Além dos esforços contínuos no
aumento do número de doadores, necessitamos de ações para identificar pacientes passíveis de transplante renal preemptivo, considerando os resultados nitidamente superiores
observados nessa população. Enquanto a implementação dessa estratégia pode ser mais
simples para receptores de órgãos de doador
vivo, maior discussão será necessária para
implementar essa estratégia nos candidatos
de órgãos de doador falecido. No momento, a inscrição em lista de espera é restrita,
por legislação, a pacientes com clearance de
creatinina inferior a 10ml/min; também devemos aprimorar a identificação e seleção de
pacientes que obterão maior benefício após
o transplante renal que sua manutenção em
diálise, e promover estudos que ampliem o
entendimento da resposta imune e avaliem a
influência das doenças infecciosas endêmicas
na população brasileira. Estas abordagens
podem melhorar também os resultados em
grupos específicos, como os dos pacientes
de etnia negra, cuja modulação da resposta
imune requer maior monitoração (57).
Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República Federativa do Brasil; 2001 [acesso em
10/05/2011]; disponível em http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10211.htm.
6. MINISTÉRIO DA SAÚDE — Portaria GM/MS no 1.752, de 23 de
setembro de 2005; disponível em http://www.saude.mg.gov.
br/atos_normativos/legislacao-sanitaria/estabelecimentos-de-saude/transplantes-implantes/Portaria_1752.pdf.
7. MINISTÉRIO DA SAÚDE — Coordenação geral do Sistema
Nacional de Transplantes, 2011 [acesso em 17/03/2011];
disponível em http://dtr2001.saude.gov.br/transplantes/
index_gestor.htm.
8. ABTO — ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TRANSPLANTE DE
ÓRGÃOS. 2011; disponível em http://www.abto.org.br/.
9. KJELLSTRAND, C.M.; BUONCRISTIANI, U. et al. Ð Short daily haemodialysis: Survival in 415 patients treated for 1,006
patient-years. Nephrol. Dial. Transplant., 23(10): 3283-9,
2008.
10. SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO.
CENTRAL DE TRANSPLANTES — Secretaria de Saúde do
Estado de São Paulo; 2011 [acesso 10/05/2011]; disponível
em http://ctxses.saude.sp.gov.br/.
Endereço para
correspondência:
José Osmar Medina
Pestana
Rua Borges Lagoa,
960/11o andar – Vila
Clementino
04038-002
São Paulo-SP
Obs.: As 47 referências restantes que compõem este artigo se
encontram na Redação à disposição dos interessados.
15
cardiologia
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
EVANDRO TINOCO MESQUITA
Da Universidade Federal Fluminense. Do Hospital Pró-cardíaco.
ANTONIO JOSÉ LAGOEIRO JORGE
Mestre em Ciências Cardiovasculares Ð
Unitermos: Hipertensão
arterial resistente;
diagnóstico; tratamento.
Keywords: Resistant
hypertension; diagnosis;
treatment.
16
Universidade Federal Fluminense.
Resumo
Summary
A hipertensão arterial (HA) resistente
pode ser definida como a pressão arterial
(PA) sistólica e/ou diastólica que permanece
sem controle, apesar do tratamento mantido
com doses ótimas envolvendo três classes
diferentes de agentes anti-hipertensivos,
sendo um deles um diurético. A HA resistente não deve ser considerada sinônimo
de hipertensão arterial não controlada ou
pseudorresistência. O objetivo desta revisão
é mostrar a importância do correto diagnóstico, a identificação de fatores associados que
podem ser reversíveis e também de novas
abordagens terapêuticas.
Resistant hypertension can be defined as
the systolic or diastolic blood pressure who remain uncontrolled despite maintained treatment with optimal doses from three different
classes of antihypertensive agents, one being
a diuretic. Resistant hypertension should not
be considered synonymous of uncontrolled
hypertension or pseudo-resistance. The aim
of this review is to show the importance of
correct diagnosis, the identification of factors
associated that may be reversible and novel
therapeutic approaches.
Introdução
definição é arbitrária e imprecisa, pois os
pacientes que estão controlados com o uso
de quatro ou mais medicamentos estariam
caracterizados como tendo HA resistente (1).
A HA resistente não deve ser considerada sinônimo de hipertensão arterial não controlada ou pseudorresistência. Os portadores
de pseudorresistência são aqueles que estão
sem controle da PA, como, por exemplo, os
que recebem um regime de tratamento inadequado, que tenham aderência ruim, que
tiveram sua PA avaliada por equipamentos
com manguitos inapropriados e os portadores da HA do “jaleco branco” (37% a 44%
dos pacientes identificados como portadores
de HA resistente) (6). Os pacientes com HA
não controlada deveriam ser submetidos a
uma cuidadosa avaliação, para exclusão dessas causas antes de se estabelecer o diagnóstico (6).
A verdadeira prevalência da HA resistente
permanece desconhecida, pela falta princi-
A hipertensão arterial (HA) acomete
aproximadamente 25% da população adulta
mundial, causando 7 milhões de mortes por
ano, apesar do conhecimento atual sobre o
seu cuidado e da disponibilidade de medicamentos para o seu controle. O controle da
HA permanece como um desafio assistencial
para os cardiologistas e clínicos, e um número significativo e crescente de pacientes são
considerados portadores de hipertensão arterial resistente (1).
A hipertensão arterial resistente pode ser
definida como a pressão arterial (PA) sistólica
e/ou diastólica que permanece sem controle
— PA ≥ 140 x 90mmHg na população geral
e ≥ 130 x 80mmHg em diabéticos e renais
crônicos — apesar do tratamento mantido
com doses ótimas envolvendo três classes
diferentes de agentes anti-hipertensivos,
sendo um deles um diurético (2-5). Esta
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
ª Hipertensão arterial
resistente pode ser
definida como a pressão
arterial sistólica
e/ou diastólica que
permanecem sem
controle, apesar do
tratamento mantido com
doses ótimas, com três
classes diferentes de
agentes anti-hipertensivos
sendo um deles um
diurético.º
Pontos-chave:
> A HA resistente pode ser
devida a uma causa secundária
potencialmente curável de HA;
> Dentre essas estão: estenose
de artéria renal, feocromocitoma,
hiperaldosteronismo primário e
apneia do sono;
> O hiperaldosteronismo
primário parece ser mais
comum como causa de HA.
18
palmente de um grande estudo especificamente desenhado para sua caracterização. A
prevalência tem derivado de estudos clínicos
que estimam a taxa de 10% a 30% para todos os indivíduos com HA; entretanto, esta
estimativa não é acurada, devido principalmente aos critérios de inclusão e exclusão
utilizados nesses estudos (1).
Um grupo significativo de pacientes classificados com HA resistente são aqueles que
apresentam persistência de níveis elevados
da PA sistólica, mesmo após tratamento, em
relação à PA diastólica. Esse achado é observado principalmente na população idosa.
Não dispomos também de estudos para
estabelecer o prognóstico de pacientes portadores de HA resistente, porém estudos
populacionais que comparam hipertensão
com lesões de órgão-alvo mostram que os
níveis da PA se relacionam diretamente com
o risco de infarto do miocárdio (IM), acidente vascular cerebral (AVC), insuficiência
cardíaca (IC) e insuficiência renal (IR). Estas
observações, em conjunto com as comorbidades mais associadas a pacientes com
HA resistente, como obesidade, diabetes e
doença renal crônica, mostram um prognóstico ruim se o controle da PA não for alcançado (5).
O objetivo da presente revisão é apresentar ao clínico a importância do correto diagnóstico da HA resistente, a identificação de
novos fatores associados que podem ser reversíveis, como apneia do sono, hiperaldosteronismo primário, uso de medicamentos, e
também de novas abordagens terapêuticas,
como a ablação dos nervos da artéria renal,
estimulação barorreflexa carotídea e baixas
doses dos antagonistas dos receptores da
aldosterona.
Outro conceito importante é o da pseudo-hipertensão, que é uma falsa elevação da
PA obtida de modo indireto, devido à perda
da complacência arterial. Ocorre principalmente em idosos. Deve ser suspeitada em
pacientes que, apesar da HA resistente, não
apresentam nenhuma evidência de lesão de
órgão-alvo. No estudo SHEP (7) observou-se
que 7% dos pacientes estudados tinham
pseudo-hipertensão. O diagnóstico definitivo requer medida direta da PA (2).
A investigação de um paciente com
suspeita de HA resistente deve conter uma
história clínica detalhada. Os pacientes devem ser submetidos a exame físico, exames
laboratoriais, monitorização ambulatorial da
pressão arterial (MAPA) ou da medida da
pressão arterial domiciliar (MRDA) e à avaliação das artérias renais, para pesquisa de
estenose arterial pela ultrassonografia. Hiperaldosteronismo primário e feocromocitoma devem ser afastados. No Quadro 1 resumimos as principais etapas para o correto
diagnóstico da HA resistente no consultório.
Os pacientes com HA resistente devem
ser avaliados através da técnica correta para
avaliação da pressão arterial (8), excluindo-se
resistência aparente devido à hipertensão
do “jaleco branco” com o uso da MAPA ou
da MRDA. Deve ser realizada uma acurada
monitorização da medicação utilizada, para
afastar a falta de aderência ao tratamento (1).
Fatores relacionados ao estilo de vida do
paciente devem ser identificados, monitorados e revertidos. Medicamentos que possam
interferir na PA deveriam ser descontinuados.
Lesões de órgão-alvo (LOA), como hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE), retinopatia e insuficiência renal, devem ser documentadas.
Como diagnosticar a hipertensão
arterial resistente
Causas de hipertensão arterial
resistente
A hipertensão arterial resistente pode ser
dividida em duas grandes categorias: a hipertensão resistente verdadeira e a aparente,
ou pseudorresistência. A pseudorresistência
inclui a não aderência ao tratamento, o uso
de doses inadequadas dos hipotensores, o
emprego incorreto do equipamento utilizado
para medir a PA e a hipertensão do “jaleco
branco”.
As principais causas de HA resistente verdadeira são listadas no Quadro 2 (1).
A HA resistente pode ser devida a uma
causa secundária potencialmente curável de
HA, como estenose de artéria renal, feocromocitoma, hiperaldosteronismo primário
e apneia do sono. O hiperaldosteronismo
primário parece ser mais comum como causa
de HA do que geralmente se acreditava.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
Uma taxa de prevalência de 20% tem sido
relatada em pacientes com HA resistente (9).
A apneia do sono foi diagnosticada em
83% de uma série de 41 pacientes com HA
resistente, em sua maioria obesos e com
pescoço curto (10).
Sobrecarga de volume pode estar associada à HA resistente, principalmente em
pacientes com insuficiência renal, com terapia inadequada de diuréticos ou que façam
grande ingestão de sal na alimentação (1). Um
fator importante de muitos casos de HA resistente é o excesso de sal na dieta, que causa
uma sobrecarga de volume. Dados obtidos
de pequenos estudos mostram que 90% dos
pacientes com HA resistente têm expansão de
seu volume plasmático (11). Os pacientes com
HA resistente em média ingerem mais sal do
que a população de modo geral, excedendo
10 gramas de sal/dia (12). O excesso de sal
na dieta observado em países desenvolvidos
e em desenvolvimento, como o Brasil, está
relacionado principalmente ao consumo de
alimentos processados. A dosagem da excreção urinária de sódio em urina de 24 horas
é um método útil para avaliar o excesso de sal
na dieta e a resposta à terapia com diuréticos.
Uma causa comum de HA resistente é a
presença de doença renal parenquimatosa. A
doença renal é a causa mais comum de HA
secundária e a não observância dessa relação
pode levar a uma escolha inadequada de
agentes hipotensores, principalmente em
relação aos diuréticos. A falta de uso de diuréticos é a principal causa de HA resistente
em pacientes que apresentam doença renal
parenquimatosa (13).
Fatores biológicos ou o estilo de vida dos
pacientes podem contribuir para o desenvolvimento da HA resistente. Medicamentos
podem produzir aumentos transitórios ou
persistentes da PA. Os anti-inflamatórios não
esteroides (AINHs) são medicamentos de uso
comum e também uma causa frequente de
piora do controle da PA. Eles podem aumentar a PA em torno de 5mmHg, em parte devido à inibição da prostaglandina renal, o que
leva à retenção de sódio e água (14).
Tratamento não farmacológico
A causa da HA resistente é quase sempre multifatorial. Todos os fatores que de
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
QUADRO 1: Diagnóstico de hipertensão arterial resistente
Hipertensão não controlada
Confirmar hipertensão arterial resistente
Uso correto das técnicas de medida da pressão arterial
Excluir pseudorresistência — hipertensão arterial do “jaleco branco”
Avaliar aderência ao tratamento
Identificar fatores relacionados ao estilo de vida e uso de substâncias lícitas e ilícitas
Documentar lesões de órgão-alvo e complicações cardiovasculares
Hipertrofia do ventrículo esquerdo
Retinopatia
Insuficiência renal
Investigar causas secundárias de hipertensão arterial
Estenose de artéria renal
Doença renal crônica
Feocromocitoma
Hiperaldosteronismo primário
Apneia do sono obstrutiva
Tireotoxicose
Coarctação da aorta
Vasculites
Modificado de Fagard, R.H. — Heart, 93: 254-61, 2012.
algum modo possam contribuir para a manutenção da HA devem ser investigados e
tratados.
A obesidade é a causa mais comum de
HA reversível e o aumento da PA se correlaciona com o aumento do peso. O ganho de
peso progressivo está associado à HA, bem
como a resistência ao tratamento. A obesidade é complicada pela resistência à insulina e
pela dislipidemia, que podem agravar a resposta à terapia anti-hipertensiva (2).
A ingestão de sal na dieta é um dos elementos responsáveis pela dificuldade de controle da PA. Em indivíduos idosos e da raça
negra a ingestão excessiva de sódio piora a
hipertensão e reduz a resposta à terapia. Os
pacientes mesmo com leve redução da função renal têm tendência a ser sensíveis ao sal
(2). O ideal em pacientes com HA resistente
seria a redução do sódio na alimentação para
100mEq/24 horas (6 gramas de sal) (1).
Os AINHs podem aumentar a PA através
de um efeito vasoconstritor direto, pela inibição da prostaglandina. Também pioram a
natriurese e podem induzir a expansão de
volume, particularmente em pacientes sensíveis ao sal (2).
Pontos-chave:
> A causa da HA resistente é
quase sempre multifatorial;
> A causa mais comum é a
obesidade;
> Em indivíduos idosos e da
raça negra a ingestão excessiva
de sódio piora a hipertensão e
reduz a resposta à terapia;
> O ideal em pacientes com
HA resistente seria a redução
do sódio na alimentação para
100mEq/24 horas (6 gramas
de sal).
19
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
O uso de cafeína provavelmente tem somente um modesto
efeito na PA. Meta-análise mostrou
Causas de hipertensão arterial secundária
que, em média, para cada copo
Estenose de artéria renal
de café consumido a PA sistólica
Doença do parênquima renal
aumenta 0,8mmHg e a diastólica,
Feocromocitoma
Aldosteronismo primário
0,5mmHg (15).
Como a cafeína, a nicotina
Síndrome de apneia obstrutiva do sono
causa uma elevação transiente,
mas não induz elevação crônica
Sobrecarga de volume
da PA (16). A cessação do hábito
Insuficiência renal progressiva
de fumar deve ser recomendada
Elevada ingestão de sódio
para todos os pacientes como
Terapia diurética inadequada
adoção de um estilo de vida mais
Hipertensão arterial induzida por
saudável.
medicamentos/drogas
A ingestão excessiva de álcool
Uso de anti-inflamatórios não hormonais
(mais de duas doses por dia) tem
Cocaína, anfetamina
um efeito modesto, mas previsível,
Agentes simpaticomiméticos
sobre a PA. Individualmente, no
Anticoncepcionais
Ciclosporina
entanto, esse efeito pode ser cliniEritropoetina
camente significativo. Portanto, a
Corticosteroides
moderação no consumo de bebidas
alcoólicas deve ser encorajada (2).
Causas associadas ao estilo de vida
A apneia do sono aumenta
Ganho de peso, obesidade
a PA, pela estimulação do sisteUso excessivo de bebidas alcoólicas
ma nervoso simpático através da
Modificado de Fagard, R.H. — Heart, 93: 254-61, 2012.
hipoxia-hipercapnia (17). Estudos
recentes sugerem que a apneia
ocorra em 40% dos pacientes com hipertensão arterial. Seu tratamento reduz a PA tanto
diurna como noturna (18). O exame de polissonografia deve ser realizado em pacientes com HA resistente e com outros sinais
e sintomas de apneia, incluindo obesidade,
tamanho do pescoço, ronco excessivo, interPontos-chave:
rupções do sono, sonolência diurna, policitemia e retenção de dióxido de carbono. O
> A HA resistente está quase
tratamento com CPAP reduz os níveis da PA,
sempre relacionada à falta ou
e com isso auxilia no controle de pacientes
subutilização de diuréticos,
com HA resistente (19).
necessários para controlar
Recentes evidências apontam que o
expansões de volume;
quadro de hiperaldosteronismo presente
> Seu tratamento pode
na HA resistente promove hipervolemia, aurequerer a adição de diurético,
mento do volume das estruturas do pescoço
a troca de medicamento ou
e agrava os episódios de apneia do sono.
alteração da dose;
O tratamento com ARA reduziria então os
episódios de apneia e hipopneia nesses pa> Estudos não controlados têm
cientes (20).
mostrado o efeito benéfico
QUADRO 2: Causas de hipertensão
arterial resistente
de pequenas doses (12,5mg a
25mg) de espironolactona na
redução da PA em pacientes
com HA resistente.
20
Tratamento farmacológico
A HA resistente está quase sempre relacionada à falta ou subutilização de diuréticos,
necessários para controlar expansões de volume. O tratamento da HA resistente pode
requerer então que um diurético seja adicionado, ou que a dose seja aumentada ou o
diurético seja trocado. A clortalidona deveria
ser preferencialmente utilizada, porque tem
mostrado produzir maior redução da PA em
24 horas do que a hidroclorotiazida (21). A
furosemida deve ser iniciada nos pacientes
que apresentam taxa de filtração glomerular
estimada menor que 30ml/minuto, ou nos casos de HA resistente com edema persistente
em uso de clortalidona na dose de 25mg/dia
(20).
Muitas combinações de duas ou mais
drogas anti-hipertensivas produzem benefícios adicionais. As seguintes combinações
seriam mais adequadas, por causa do seu
efeito pronunciado na redução da PA, proteção cardiovascular e ótima tolerabilidade:
diurético ou bloqueador de canal de cálcio
(BCC) com inibidor da enzima conversora
da angiotensina (IECA) ou um bloqueador
do receptor da angiotensina (BRA). Embora ainda não existam dados consistentes, a
combinação do diurético com o BCC e um
IECA, ou BRA combinado com baixas doses de antagonistas dos receptores de aldosterona, combinado ou não a betabloqueadores, é provavelmente o mais racional regime para tratamento da HA resistente. Outros
medicamentos — como os alfabloqueadores
e vasodilatadores como a hidralazina ou o
minoxidil — podem ser incluídos numa abordagem de múltiplas drogas, embora efeitos
colaterais possam ser mais comuns (2, 20). A
combinação de um IECA com um BRA não
é recomendada, devido à incidência aumentada de efeitos colaterais, como observados
em pacientes do estudo ONTARGET (22). O
mesmo foi notado com a associação entre
um BRA e um inibidor de renina no estudo
ALTITUD (23).
Na última década, uma série de pequenos estudos não controlados tem mostrado o
efeito benéfico de pequenas doses (12,5mg
a 25mg) de espironolactona na redução da
PA em pacientes com HA resistente (24). Durante o uso da espironolactona, os níveis de
potássio e a função renal devem ser regularmente monitorados
Dois estudos randomizados, duplo-cegos, placebo-controlados (25, 26) avaliaram
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
o papel de um novo antagonista seletivo
da endotelina A — darusentan — em 379 e
849 pacientes com PA sistólica > 140mmHg
(> 130mmHg para diabéticos ou portadores
de doença renal crônica) que estavam em uso
de pelo menos três medicamentos para redução da PA, incluindo um diurético em doses
máximas toleradas. Os resultados desses dois
estudos sugerem que o uso de antagonista
seletivo do receptor da endotelina pode ter
um papel no tratamento da HA resistente, porém não existe consenso sobre a retenção de
líquidos e o risco de insuficiência cardíaca.
Novas abordagens no tratamento
da hipertensão arterial resistente
Ablação percutânea dos nervos simpáticos
da artéria renal
Os rins desempenham um papel essencial na regulação da PA através da modulação da renina, sódio, volume e interações
simpático-renais. Dependendo do cenário,
a contribuição para a hipertensão pode ser
mediada principalmente pela ativação dos
ramos do sistema simpático aferente ou eferente, os quais se localizam adjacentes à parede das artérias renais, e, então, a ablação,
com a utilização de cateter de radiofrequência, dos nervos aferentes e eferentes poderia
resultar, em longo prazo, na atenuação da
pressão arterial (27). A ativação crônica do
sistema nervoso simpático tem papel central
tanto na fisiopatologia da HA como no desenvolvimento de hipertrofia do ventrículo
esquerdo (28).
A ablação da artéria renal é um método
promissor que vem sendo avaliado em estudos clínicos em pacientes que apresentam PA
sistólica ≥ 160mmHg (≥ 150mmHg em diabéticos tipo 2) e em uso de três ou mais medicamentos anti-hipertensivos (27) (Figura 1).
A ablação da artéria renal estaria contraindicada em pacientes que apresentam
inadequação anatômica da artéria renal (diâmetro < 4mm e comprimento < 20mm),
displasia fibromuscular, estenose grave da
artéria renal e taxa de filtração glomerular
< 45ml/min/1,73m2 (29) (Quadro 3).
Estudos multicêntricos foram realizados
para avaliar a segurança e a eficácia da ablação da artéria renal no tratamento da HA resistente — o estudo Symplicity HTN-1 (30) e
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
o estudo randomizado controlado Symplicity
HTN-2 (31).
ª HA resistente é quase
O estudo HTN-2, randomizado e multisempre relacionada a
cêntrico, avaliou 106 pacientes, sendo 52 do
falta ou subutilização de
grupo submetido à denervação renal e 54 do
diuréticos, necessários
grupo-controle, por seis meses (31). Medidas
para controlar expansões
da PA no grupo de denervação renal revelaram
de volume. Seu
queda de 32/12mmHg (DP 23/11, basal de
tratamento pode requerer
178/96mmHg, p < 0,0001), enquanto que
então que um diurético
no grupo-controle não houve diferença enseja adicionado, que a
tre os dados iniciais e a avaliação após seis
dose de diurético seja
meses (mudança de 1/0mmHg, basal de
aumentada ou que o
178/97mmHg, p NS). Não ocorreram commesmo seja trocado.º
plicações relacionadas ao equipamento e
a ocorrência de eventos adversos foi semelhante entre os dois grupos. Esse estudo
mostrou que a ablação da artéria renal em
pacientes com HA resistente é um procedimento seguro e reduz a PA sistólica em até
32mmHg, enquanto que a TFG permaneceu
estável.
Estudo recente avaliou o efeito da ablação
renal na hipertrofia do ventrículo esquerdo e
nas funções sistólica e diastólica de pacientes
com HA resistente (32). O estudo avaliou 64
pacientes, sendo que 46 foram submetidos à
ablação bilateral da artéria renal e 18 fizeram
parte do grupo-controle. Foi realizado ecocardiograma no início do estudo, com um
mês e após seis meses. O estudo demonstrou
redução da PA sistólica (–22,5/–7,2mmHg em
um mês e –27,8/–8,8mmHg em seis meses,
p < 0,001) e da massa indexada do VE de
53,9 ± 15,6g/m2 (112,4 ± 33,9g/m2) para
47,0 ± 14,2g/m2 (103,6 ± 30,5g/m2) e 44,7 Figura 1: Representação esquemática
± 14,9g/m2 (94,9 ± 29,8g/m2) (p < 0,001) em da ablação por cateter de
um e seis meses, respectivamente. A relação radiofrequência da artéria renal.
QUADRO 3: Critérios para indicação de ablação da artéria renal
— Pressão arterial sistólica ≥ 160mmHg (≥ 150mmHg para pacientes com diabetes
tipo 2)
— Em uso de três ou mais medicamentos anti-hipertensivos (resistência verdadeira em
paciente com boa aderência)
— Exclusão de causas secundárias de hipertensão
— Normal ou leve redução da função renal; taxa de filtração glomerular estimada
≥ 45ml/min/1,73m2)
— Adequada anatomia renal: sem intervenções prévias na artéria renal; sem estenose
significativa ou outras anormalidades significativas, diâmetro da artéria > 4mm e
comprimento > 20mm.
Atenção: Todos os critérios deverão ser atendidos. Adaptado de Mahfoud, F. et al. — Dtsch. Arztebl. Int., 108(43):
725-31, 2011.
21
Hipertensão arterial resistente
Diagnóstico e tratamento
E/E’ diminuiu, após ablação, de
9,9 ± 4,0 para 7,9 ± 2,2 em um
mês e 7,4 ± 2,7 em seis meses
(p < 0,001), o que indica uma redução das pressões de enchimento
do VE. Não ocorreram mudanças
significativas no grupo-controle
após seis meses.
Esse estudo demonstrou que a
ablação
da artéria renal ao reduzir
Figura 2: Sistema Rheos Ð http://medgadget.
a
PA
reduz
também de modo sigcom/2010/01/rheos_system_for_hypertension_
tested_in_new_clinical_trial.html.
nificativo a massa do VE e melhora
a função diastólica, o que poderia
ter um impacto prognóstico importante nestes pacientes.
Endereço para
correspondência:
Evandro Tinoco Mesquita
Rua General Polidoro,
192 — Botafogo
22280-000
Rio de Janeiro-RJ
[email protected]
22
Estimulação barorreflexa do seio carotídeo
Outra terapia utilizando equipamento
para pacientes com HA resistente é a ativação barorreflexa do seio carotídeo, na
qual eletrodos são implantados no espaço
perivascular ao redor dos seios carotídeos.
O equipamento (Rheos Baroreflex Hypertension Therapy System) aumentou o fluxo do
nervo aferente dos barorreceptores para os
centros de controle cardiovascular no cérebro, o qual reduziu então o fluxo simpático e
a pressão arterial (1).
O Device Based Therapy in Hypertension
foi um estudo multicêntrico, prospectivo não
randomizado, com o objetivo de avaliar a
segurança e a eficácia do sistema Rheos (Figura 2) por três meses em 45 pacientes com
HA resistente, definida como PA sistólica
≥ 160mmHg, apesar de estarem recebendo
três agentes anti-hipertensivos, sendo um
deles um diurético (33).
Nos 37 pacientes avaliados após três
meses houve mudança na média da PA,
de 21/12mmHg de um valor inicial de
179/105mmHg, e uma redução da frequência cardíaca (FC) de 8bpm (média inicial:
80bpm). Uma coorte de 10 pacientes elegíveis para o procedimento, mas que se recusaram a utilizar o equipamento, não mostrou
mudanças significativas nas medidas da PA.
Com respeito à segurança, sete pacientes
relataram efeitos adversos relacionados ao
procedimento considerados graves. Um paciente relatou efeito adverso relacionado ao
equipamento considerado grave. Não houve
evidências de hipotensão ortostática (33).
Em outro estudo randomizado multicêntrico utilizando o sistema Rheos (34),
265 pacientes com HA resistente (PA ≥ 160/
80mmHg) receberam o equipamento e foram randomizados para uma taxa de 2:1
para ativação de terapia barorreflexa por
12 meses (grupo A) ou tratamento-controle
por seis meses, com o sistema desligado e
ativação do sistema nos últimos seis meses
(grupo B). Ao fim de seis meses do período
duplo-cego, o percentual de pacientes que
alcançaram uma redução ≥ 10mmHg foi de
54% no grupo A e de 46% no grupo B, não
sendo alcançada a meta de diferença > 20%.
Com respeito à segurança, os autores
concluíram que os desfechos de longo prazo
de segurança do equipamento foram alcançados, enquanto que os de curto prazo não
o foram, já que somente 75% dos pacientes
estavam livres de efeitos adversos do procedimento ao final de 30 dias (34).
A ablação renal e a ativação barorreflexa têm mostrado reduzir a PA em pacientes
usando múltiplos medicamentos para HA resistente. Entretanto, existe ainda necessidade de um estudo duplo-cego para a ablação
renal, e questões relacionadas à segurança
da terapia de ativação barorreflexa carotídea
precisam ser resolvidas (1).
O paciente portador de HA resistente,
pela sua elevada prevalência, deve ser avaliado e conduzido primariamente pelo generalista, com auxílio do cardiologista, nefrologista e do endocrinologista nos casos em que
uma forma secundária ou lesão de órgão-alvo for suspeitada, ou frente a um inadequado
controle da PA após o uso de quatro ou mais
medicamentos.
Conclusão
Na última década foi observado um aumento dos casos de HA resistente nos consultórios, particularmente associados ao envelhecimento, à obesidade, à apneia do sono,
ao diabetes e à doença renal crônica. Ao lado
disso observam-se aumento do conhecimento
fisiopatológico e o surgimento de novos alvos
terapêuticos. A ablação dos nervos simpáticos renais, o emprego do CPAP na apneia do
sono e o uso de baixas doses de espironolactona representam importantes avanços nesta
área do conhecimento.
Referências
Obs.: As 34 referências que compõem este artigo se encontram
na Redação à disposição dos interessados.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
gastroenterologia
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
José Galvão-alves
Chefe da 18a Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro
— Serviço de Clínica Médica. Professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina
da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques. Professor titular de Pós-graduação em
Gastroenterologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro titular da
Academia Nacional de Medicina. Presidente da Federação Brasileira de Gastroenterologia
(2010-2012). Professor de Clínica Médica da UniFOA — Universidade da Fundação Osvaldo
Aranha.
Resumo
Summary
Insuficiência exócrina do pâncreas tem
sido revisitada em vários compêndios médicos internacionais e suas novas etiologias
avaliadas e reconfirmadas. Neste artigo
abordamos as causas mais comuns e tradicionais, pancreatite crônica e fibrose cística,
bem como as recentemente mais enfatizadas
como doença celíaca e diabetes mellitus. Comentamos a clínica e o diagnóstico precoce
e o tratamento com reposição enzimática.
Pancreatic exocrine insufficiency has
been broadly discussed in international medical literature. New aetiologies have been
studied and reaffirmed. In this paper we describe common and traditional causes such
as chronic pancreatitis and cystic fibrosis as
well as the most recently emphasised celiac
disease and diabetes. We also review clinical
features, early diagnosis and pancreatic enzyme replacement therapy.
Introdução
gico seria para a saúde e qualidade de vida
dos pacientes um diagnóstico mais precoce
e, por conseguinte, uma terapêutica também
precoce.
O diagnóstico de insuficiência exócrina
do pâncreas deve ser pensado a partir de
condições clínicas que possam causá-la.
A literatura atual tem reforçado a necessidade de diagnóstico precoce de todas as entidades médicas, e para isto busca conhecer
mais profundamente os seus fatores predisponentes. Isto tem sido bastante enaltecido com
a insuficiência exócrina (IE) do pâncreas, outrora condição relacionada quase que exclusivamente à pancreatite crônica, fibrose cística
do pâncreas e pós-ressecções cirúrgicas. Hoje,
com base em estudos de fisiologia pancreática, descortinam-se inúmeras outras condições
capazes de produzir menor secreção de enzimas e bicarbonato pelo pâncreas, causando
desde a “má digestão”, dispepsia relacionada
à ingestão de alimentos gordurosos até a má
absorção expressa pela esteatorreia.
Nos textos clássicos admite-se que a IE
só ocorra quando a função do pâncreas é
mantida em apenas 10% do seu total. Isto
significa perda de gordura fecal > 7g/dia,
emagrecimento extremo e hipovitaminoses
A, D, E e K. Entende-se, pois, que mais lóJBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Unitermos: Insuficiência
exócrina do pâncreas;
pancreatite crônica.
Keywords: Pancreatic
exocrine insufficiency;
chronic pancreatites.
Etiologias
Pancreatite aguda — O conhecimento da
capacidade secretora do pâncreas durante
a fase aguda da pancreatite aguda ainda é
limitado. Durante a fase subaguda parece
ocorrer uma alteração na função pancreática exócrina em uma considerável porcentagem de pacientes com doença necrosante.
Dependendo da gravidade da pancreatite
aguda e do grau de necrose, as alterações
podem ser permanentes, embora isto seja
incomum.
Tumores pancreáticos — Devido ao prognóstico sombrio, ainda é limitado o número de
23
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
Nos textos clássicos
admite-se que a IE só
ocorra quando a função
do pâncreas é mantida
em apenas 10% do
seu total. Isto significa
perda de gordura
fecal > 7g/dia,
emagrecimento extremo
e hipovitaminoses
A, D, E e K.
Pontos-chave:
> Fibrose cística é uma doença
hereditária que afeta as
funções secretora e motora no
trato gastrointestinal;
> Estudos recentes mostram
que ocorre insuficiência
exócrina em mais de 80% dos
portadores desta doença,
principalmente em crianças;
> Cerca de 40% dos
pacientes com doença celíaca
apresentam insuficiência
exócrina leve a moderada
relacionada a alterações da
mucosa intestinal.
24
estudos que avaliam a secreção exócrina do
pâncreas nessas doenças. Evidências sugerem que a disfunção exócrina e a má absorção (presentes em 80% a 90% dos pacientes)
estão associadas a uma secreção diminuída
de enzimas e a obstruções dos dutos que
carreiam o suco pancreático ao duodeno.
Fibrose cística — É uma doença hereditária
que afeta as funções secretora e motora no
trato gastrointestinal e causa alterações morfológicas no pâncreas. Com isso, ocorrem
mudanças do pH, da motilidade e do trânsito.
Estudos recentes mostram que ocorre insuficiência exócrina em mais de 80% dos portadores desta doença, principalmente em crianças.
Cirurgias gastrointestinais — Ressecções
pancreáticas naturalmente causam diminuição na capacidade secretora do pâncreas,
porém, isso depende muito da doença que
originou o procedimento cirúrgico, e também do tipo e extensão da ressecção realizada. Em pacientes com função pancreática
previamente normal, ressecções não muito
extensas do pâncreas geralmente são bem
toleradas sem que os pacientes apresentem
alterações clínicas de insuficiência exócrina
importante (Tabela 2).
Ressecções gástricas parciais e totais, e
a síndrome da alça curta, também estão associadas à carência de enzimas pancreáticas;
isto porque ocorre falta de sincronia entre a
chegada do alimento e a liberação de enzimas pancreáticas no duodeno.
Em pacientes operados devido a tumores malignos, uma extensa desenervação do
pâncreas, incluindo a vagotomia, também
contribui para disfunções pancreáticas.
Doença celíaca — Aproximadamente 40%
dos pacientes com doença celíaca apresentam insuficiência exócrina leve a moderada,
sendo que geralmente esta disfunção não
está diretamente ligada ao pâncreas, e sim a
alterações da mucosa intestinal. Estas alterações provocam diminuição dos mediadores
estimulatórios, causando redução na secreção de enzimas e bicarbonato de sódio, e,
ainda, assincronia entre as funções secretoras
e motoras do tubo digestivo.
Diabetes mellitus — O diabetes mellitus é
uma doença ligada principalmente à função
endócrina do pâncreas, porém, não é raro
pacientes diabéticos também apresentarem
certo grau de insuficiência exócrina pancreática (Tabela 3). Isto ocorre devido a vários
fatores, como a atrofia glandular, que ocorre pela diminuição da produção de insulina
e pela isquemia causada pelas arteriopatias,
a alteração de hormônios produzidos nas
ilhotas que atuam na regulação da função
exócrina e a neuropatia diabética, que causa
diminuição do reflexo enteropancreático.
Doença de Crohn — Alguns sinais de patologia pancreática frequentemente estão presentes na doença de Crohn. Diminuição da
função exócrina do pâncreas é observada em
cerca de 5% a 15% dos portadores dessa doença. Esses pacientes apresentam fatores de
risco para desenvolvimento de doença pancreática, como aumento da incidência de litíase biliar, envolvimento da papila duodenal
e reações adversas a drogas (sulfassalazina,
azatioprina). Em geral, o distúrbio na regulação da secreção pancreática e o distúrbio
entre a interação da secreção gastrointesti-
TABELA 1: Esteatorreia nas cirurgias pancreáticas
Cirurgia
Pré-cirurgia
Pós-cirurgia
Duodenopancreatectomia
5%
55%
Duodenopancreatectomia preservando piloro
4%
64%
Ressecção distal (40%-80%)
3%
19%
Ressecção distal (80%-95%)
9%
38%
Pancreatojejunostomia
19%
33%
Julio Iglesias Garcia 2005 — Santiago de Compostela.
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
TABELA 2: Insuficiência exócrina do pâncreas no diabetes mellitus (1.015 pacientes)
Função exócrina
Elastase fecal
N
%
Normal
> 200μg/g
602
59,3
Insuficiência leve
100-200μg/g
181
17,8
Insuficiência grave
< 100µg/g
232
22,9
Hardt, P.D. — Pancreatology, 3: 395-402, 2003.
nal e a função motora explicam a diminuição
da secreção de enzimas e bicarbonato. Mais
recentemente advoga-se uma concomitância
de alterações autoimunes pancreáticas na
doença inflamatória intestinal.
Síndrome de Zollinger-Ellison — É uma causa rara de insuficiência exócrina do pâncreas.
Está associada à produção de gastrina por
tumores (gastrinomas), estimulando a hipersecreção ácida e biliopancreática, causando
uma incapacidade absortiva intestinal. A lipase, por exemplo, acaba não exercendo sua
função lipolítica, já que sua ação ocorre na
porção proximal do delgado (duodeno), e
essa região se encontra com um pH muito
baixo, o que a inativa.
AIDS — A esteatorreia é um sintoma muito
comum nos pacientes com AIDS, estando
presente em aproximadamente 26% das
crianças e 71% dos adultos. Isto ocorre devido a alterações intestinais (atrofia das vilosidades, hipertrofia de criptas e coinfecções
por organismos oportunistas e não oportunistas) e a alterações pancreáticas (estando a
insuficiência exócrina presente em 30% desses pacientes), por causa dos medicamentos
utilizados para o tratamento da própria doença (DDI, DDC) e das infecções decorrentes
dela (citomegalovírus, Cryptosporidium).
TABELA 3: Testes de função pancreática
Teste da secretina/pancreozimina
Teste da secretina endoscópico
Diretos
Soro
Teste do pancreolauril
Teste do consumo de aminoácidos
Enzimas pancreáticas
Urina
Teste do pancreolauril
Teste da bentiromida
Indiretos
Fezes
Elastase-1
Quimiotripsina
Gordura fecal
Teste respiratório
C, 14C, H2 ligados aos triglicerídeos
13
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Pontos-chave:
> A síndrome de
Zollinger-Ellison é uma causa
rara de insuficiência exócrina
do pâncreas;
> Está associada à produção
de gastrina por tumores
(gastrinomas), estimulando
a hipersecreção ácida e
biliopancreática, causando
uma incapacidade absortiva
intestinal;
> A esteatorreia é um sintoma
muito comum nos pacientes
com AIDS, estando presente
em aproximadamente 26% das
crianças e 71% dos adultos.
25
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
Pâncreas exócrino em Geriatria — A massa
pancreática diminui a partir da sexta década
e, em um grande estudo populacional envolvendo 1.000 idosos, 15% mostraram limitação na função exócrina do pâncreas, sendo
que 5% apresentavam elastase-1 fecal menor
que 200μg/g de fezes. Esta prevalência aumenta com a idade.
Insuficiência exócrina na
pancreatite crônica
Pontos-chave:
> A pancreatite crônica (PC),
em especial a de etiologia
alcoólica, é a principal causa
de insuficiência exócrina do
pâncreas no mundo;
> A digestão de gordura
no intestino delgado é
resultado principalmente da
ação combinada de lipase
pancreática e seus cofatores,
em especial a colipase e ácidos
biliares;
> Aproximadamente 50%
dos pacientes com PC
desenvolverão esteatorreia, em
torno de 10 a 12 anos do início
da doença, e este início nem
sempre é fácil de determinar;
> Estudos têm mostrado que
o tratamento com suplemento
de enzimas pancreáticas
melhora a esteatorreia, reduz
a excreção de gordura fecal
e melhora a frequência e
consistência das fezes.
26
A pancreatite crônica (PC), em especial a
de etiologia alcoólica, é a principal causa de
insuficiência exócrina do pâncreas no mundo.
A expressão clínica da insuficiência exócrina é um evento geralmente tardio na PC
alcoólica (após 10 anos do início da doença),
e ainda mais na PC de outras etiologias —
20 a 30 anos. Isto se deve à grande reserva
pancreática, em que se observa que a esteatorreia (7 gramas de gordura fecal/dia) só é
percebida após a destruição de sua função
exócrina em 90% ou mais.
A digestão de gordura no intestino delgado é resultado principalmente da ação combinada de lipase pancreática e seus cofatores,
em especial a colipase e ácidos biliares.
A lipase é a mais instável das enzimas pancreáticas. A amilase em quantidade significativa e as proteases em mais de 20% são recuperadas no íleo terminal, ao passo que a lipase
está presente em menos de 1% neste local. Ela
se encontra e atua principalmente no duodeno. Isto se deve ao fato de a lipase ser altamente sensível à atividade proteolítica das enzimas
tripsina e, principalmente, quimiotripsina.
A lipase é também inativada em pH ácido, o que é comum no portador de PC, em
razão da pobreza de bicarbonato no suco
pancreático. Agravando os fatores acima citados, tem-se o fato de os mecanismos não
pancreáticos de secreção de lipase serem
muito pobres (lipase gástrica e lingual). Logo,
quando da insuficiência exócrina do pâncreas,
a má absorção de gordura e os micronutrientes lipossolúveis (vitaminas A, D, E e K)
serão os mais prejudicados. A consequência
é perda calórica, emagrecimento, desnutrição e hipovitaminoses.
Aproximadamente 50% dos pacientes
com PC desenvolverão esteatorreia, em torno de 10 a 12 anos do início da doença, e
este início nem sempre é fácil de determinar.
Acreditamos que tanto o início da PC (diagnóstico precoce) quanto o início da má absorção sejam diagnosticados tardiamente.
Estudos randomizados e placebo têm
mostrado que o tratamento com suplemento
de enzimas pancreáticas melhora a esteatorreia, observada pelo aumento da absorção
de gordura, reduz a excreção de gordura fecal, diminui o peso e a frequência de evacuação e melhora a consistência das fezes.
A reposição enzimática diminui os distúrbios de motilidade observados na insuficiência exócrina do pâncreas, decorrentes da
liberação anormal de colecistoquinina (CCK)
e polipeptídio pancreático (PP), que tem
como consequência um maior tempo de esvaziamento gástrico, alteração da motilidade
antroduodenal e dismotilidade da vesícula
biliar, com redução de seu débito. Estes fatores contribuem para a diarreia da PC.
Embora incomuns, as deficiências de vitaminas A, D, E e K podem cursar com diminuição da visão noturna, osteoporose, ataxia
cerebelar e aumento do tempo de protrombina, respectivamente.
Em adição, pode-se observar carência de
vitamina B12, em razão de sua menor liberação
de complexo B12-fator intrínseco e de supercrescimento bacteriano, comum na PC.
Com a reposição enzimática notam-se
ganho de peso e aumento de micro e macronutrientes, porém, com dieta e reposição
vitamínica adequadas.
Insuficiência exócrina —
manifestações clínicas
As manifestações clínicas poderiam subdividir-se naquelas relacionadas à causa da
insuficiência exócrina (pancreatite crônica,
fibrose cística, etc.) e à deficiência da função
pancreática propriamente dita.
O que devemos nos atentar é que pequenas manifestações, como intolerância a
alimentos gordurosos, dispepsia, distensão
abdominal e flatulências, podem ser expressão de uma insuficiência exócrina leve que,
se não valorizada, agrava a qualidade de vida
do paciente e o torna usuário de inúmeros
medicamentos desnecessários.
Já a forma mais extrema de insuficiência
exócrina do pâncreas cursa com diarreia, esteatorreia, emagrecimento, hipovitaminoses
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
e desnutrição. Seus portadores são indivíduos por vezes caquéticos, e a reposição
criteriosa e adequada de enzima pode ser
um meio de recuperação de sua saúde física,
emocional e recondução social.
Avaliação da função exócrina
A avaliação laboratorial da função exócrina do pâncreas pode ser feita através de métodos diretos (invasivos), que medem o débito de fluido pancreático após estímulo com
secretina e/ou colecistoquinina (pancreozimina). A secretina estimula os dutos pancreáticos a secretar água e bicarbonato, enquanto
a pancreozimina estimula as células acinares
a produzir enzimas. Portanto, podemos usar
como estímulo a secretina e/ou a pancreozimina endovenosa e avaliaremos com tubagem duodenal o débito de bicarbonato e/ou
enzimas pancreáticas, respectivamente. Método não disponível em nosso meio e realizado apenas em 10 centros norte-americanos.
Já os métodos indiretos, menos sensíveis, podem requerer avaliações no soro, na
urina, nas fezes e testes respiratórios (Tabela 3),
sendo que em nosso meio o mais difundido,
porém também pouco disponível, é a mensuração da elastase-1 fecal.
A avaliação do grau de insuficiência exócrina com esses testes funcionais é capaz de
classificá-la em leve, moderada ou grave (Tabela 4). Sempre que factível, devemos utilizá-los como diagnóstico da insuficiência exócrina (IE), para avaliação do grau de disfunção e
na observação da resposta terapêutica.
Reposição enzimática
Entre as preparações disponíveis, as enzimas pancreáticas de origem suína são consideradas a melhor opção para o tratamento da insuficiência exócrina do pâncreas, e,
quando com revestimento acidorresistente,
não serão degradadas no estômago, podendo atingir o duodeno, seu principal local de
ação. A pancreatina e a pancrelipase são as
duas formas primárias de lipase disponíveis.
As enzimas bovinas são indicadas para
aqueles que não podem usar a suína, por
motivos alérgicos ou religiosos, e contam
com 75% menos lipase, o que limita seu uso
em casos de esteatorreia.
JBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
TABELA 4: Insuficiência exócrina do pâncreas
Função exócrina
Elastase fecal
Normal
> 200mg/g
Insuficiência leve/moderada
100-200mg/g
Insuficiência grave
< 100µg/g
Preparações de enzimas pancreáticas
originárias de micróbios (fungo e bactérias)
também existem, e parecem resistentes à
degradação ácida do estômago. No entanto,
a lipase fúngica é rapidamente degradada
no duodeno por ácidos biliares e proteases.
Já a lipase bacteriana mostra-se estável em
ambos, estômago e duodeno, podendo no
futuro ser utilizada com sucesso.
Genes de lipase humana têm sido transferidos e expressados por adenovírus recombinante; no entanto, aguardam-se pesquisas
futuras. Outra característica do suplemento
enzimático é a capacidade de ser transportado através do antro-duodeno, junto com
o alimento triturado no estômago. Isto se
consegue com os compostos na forma de
microesferas (1-2mm de diâmetro) que são
transportados juntos ao quimo gástrico.
Por fim, a dose ideal de lipase em caso de
insuficiência exócrina do pâncreas diagnosticada (> 7g de gordura fecal/dia) é de 25.000
unidades, de acordo com a nomenclatura
farmacêutica internacional (UI), administrada
durante as duas principais refeições. Aqueles
que se alimentam fartamente no desjejum devem utilizar enzimas também nesta refeição,
porém, em dose menor.
Um estudo recente, prospectivo, comparou a ingestão de enzimas antes, durante e
após as refeições. Não houve diferença de
eficácia quando ingeridas durante e após,
mas a eficácia nesses casos foi superior à ingestão antes das refeições. Nós reforçamos a
administração no meio das refeições.
Em caso de insucesso de reposição enzimática em doses convencionais, devemos
dobrar ou triplicar a dose e/ou associar um
bloqueador H2 de histamina (ranitidina,
150mg, duas vezes ao dia) ou um inibidor
de bomba de prótons (omeprazol ou pantoprazol, 20mg/dia). Se apesar disso o quadro
diarreico se mantiver, deve-se investigar a
presença de enteroparasitoses (giardíase ou
As enzimas pancreáticas
de origem suína são
consideradas a melhor
opção para o tratamento
da insuficiência exócrina
do pâncreas, e, quando
com revestimento
acidorresistente, não
serão degradadas no
estômago, podendo
atingir o duodeno, seu
principal local de ação
Pontos-chave:
> A avaliação laboratorial da
função exócrina do pâncreas
pode ser feita através de
métodos diretos (invasivos);
> Eles medem o débito
de fluido pancreático após
estímulo com secretina e/ou
colecistoquinina;
> A secretina estimula os
dutos pancreáticos a secretar
água e bicarbonato, enquanto
a pancreozimina estimula as
células acinares a produzir
enzimas.
27
Insuficiência exócrina do pâncreas
Etiologias
estrongiloidíase) e supercrescimento bacteriano (algoritmo).
Quando iniciar a reposição
enzimática
Embora exista consenso na literatura de
que a reposição enzimática deva iniciar-se
na PC quando existe esteatorreia, temos considerado também
Insuficiência Exócrina do Pâncreas
Reposição Enzimática
a presença de emagrecimento
e/ou dispepsia, sem causa determinada, como indicativos de
seu uso, ainda que na dose de
10.000UI/refeição.
Efeitos colaterais
Reações alérgicas a proteínas
suínas podem ocorrer. Hiperuricemia e hiperuricosúria com cristalúria e disúria têm sido descri-
Referências
Endereço para
correspondência:
José Galvão-Alves
Rua Real Grandeza,
108/Sala 123 — Botafogo
22281-034
Rio de Janeiro-RJ
[email protected]
28
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tas em pacientes com fibrose cística (FC) em
uso de suplemento enzimático. Colonopatia
fibrosante tem sido descrita em crianças com
FC usando 24.000 unidades de lipase/kg/dia.
Estudos recentes têm demonstrado que tal
paraefeito estaria relacionado com enzimas
que têm altas doses de copolímero metacrílico usado como revestimento resistente ao
ácido.
Outras indicações
Pacientes com PC e câncer de pâncras,
especialmente aqueles que obstruem o ducto pancreático; pacientes submetidos à ressecção de parênquima pancreático; e um
grupo muito especial, que são os diabéticos
de longa data com dispepsia, flatulência e
diarreia recorrente, pode apresentar disfunção exócrina do pâncreas e se beneficiar da
reposição enzimática (ver quadro).
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JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Associação incomum ou mera casualidade?
J. GALVÃO-ALVES
Professor de Clínica Médica da UniFOA
— Universidade da Fundação Osvaldo
Aranha.
M. C. GALVÃO
Professora de Radiologia da UniFOA
— Universidade da Fundação Osvaldo
Aranha.
D. A. CAVALCANTI
H. RZETELNA
Doença de Crohn, colangite
esclerosante primária e síndrome
do anticorpo antifosfolipídeo
relato de caso
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
Associação incomum ou mera
casualidade?
Da 18a Enfermaria — Serviço do Prof.
José Galvão-Alves — da Santa Casa da
Misericórdia do Rio de Janeiro.
Resumo
A doença inflamatória intestinal (DII)
associa-se frequentemente a manifestações extraintestinais e a outros distúrbios
autoimunes. A colangite esclerosante
primária (CEP) é a principal manifestação extraintestinal hepatobiliar da DII
(1). Embora mais frequente na retocolite
ulcerativa (RCU), ocorrendo em 2% a 7%
dos casos em algumas séries, sua frequência na doença de Crohn (DC) é estimada entre 0,7% e 3,4% (2, 6). Nota-se um
risco aumentado de tromboembolismo
arterial e venoso em ambas as formas
de doença inflamatória intestinal, sendo
esta a mais importante complicação vascular da DII (3). No entanto, a associação
da síndrome do anticorpo antifosfolipídeo (SAAF) com a doença de Crohn tem
sido relatada na literatura apenas em casos clínicos isolados.
Introdução
A doença inflamatória intestinal
pode ser considerada sistêmica, uma
vez que está frequentemente associada com manifestações e complicações
extraintestinais e outras desordens autoimunes. Praticamente todos os sistemas podem estar envolvidos, porém os
olhos, pele, articulações, rins, fígado,
vias biliares e os vasos são os locais mais
comumente envolvidos (2) (ver quadro).
A real patogênese das manifestações
extraintestinais não é conhecida, porém
sabe-se da importância de fatores genéticos, autoimunes e mesmo ambientais.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Quando diagnosticada, a CEP está
associada em 70% a 80% dos casos à
RCU. O contrário é menos comum. Em
portadores de RCU, a CEP ocorre em
cerca de 2% a 7% e na DC em 0,7% a
3,4% (2). Isto nos obriga a uma busca
ativa destas associações.
A prevalência dos anticorpos antifosfolipídeo na DII é alta. Aichbichler
et al. avaliaram a prevalência do anticorpo anticardiolipina, em estudo com 136
pacientes com DII e 136 controles. Encontraram prevalências de 18,1% e de
15,6%, na RCU e na DC, respectivamente, em comparação com 3% no grupo-controle, enquanto o anticorpo anti-β2-glicoproteína I esteve presente em
8,6% dos pacientes com DII (4).
Além disso, a incidência de tromboses arteriais e venosas é frequentemente
observada na DII, com taxas variando de
1% a 7,7% em estudos clínicos, podendo chegar a 39%-41% em estudos post
mortem (3).
A síndrome do anticorpo antifosfolipídeo é definida como a associação de
um evento trombótico e/ou obstétrico
sustentável com a presença de anticorpo antifosfolipídeo (anticorpos anticardiolipina, anti-β2-glicoproteína I e anticoagulante lúpico) (5). Esta síndrome
pode estar associada a muitas doenças
sistêmicas, incluindo a DII. No entanto, a associação tripla entre doença de
Crohn, CEP e SAAF não é comumente
descrita.
QUADRO: Doença inflamatória intestinal — manifestações extraintestinais
Musculoesqueléticas
• Artrite periférica
• Sacroileíte
• Espondilite anquilosante
• Baqueteamento digital
• Osteoporose
• Necrose asséptica do osso
Hepatobiliares
• Colelitíase
• Colangite esclerosante primária
• Elevação de enzimas hepatobiliares
• Pericolangite
• Esteatose hepática
• Hepatite autoimune
Mucocutâneas
• Eritema nodoso
• Pioderma gangrenoso
• Doença de Crohn “metastática”
• Úlcera aftoide da boca
• Queilite angular
Renais
• Cálculos (ácido úrico e oxalato)
• Compressões e fibrose da via urinária
• Glomerulonefrite membranosa
• Amiloidose renal
Oculares
• Episclerite
• Esclerite
• Uveíte
• Retinite (rara)
• Neurite óptica (rara)
Vasculares e de coagulação
• Trombose venosa
• Hipercoagulabilidade
31
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
Associação incomum ou mera casualidade?
Relato de caso
L.C.V.L., sexo masculino, 47 anos de
idade, branco, casado, fotógrafo, natural do Rio de Janeiro.
Queixa principal: Diarreia sanguinolenta há dois dias.
História da doença atual: Internado
em 18/02/2011, com dor intensa e parestesia em membro superior esquerdo, devido à trombose de artéria ulnar
esquerda (Figura 1). Em vigência de
anticoagulação, apresenta quadro de
diarreia sanguinolenta (cerca de cinco
evacuações ao dia), que evolui para en-
terorragia após dois dias. Apresenta instabilidade hemodinâmica, necessidade
de hemotransfusão e de internação em
unidade de terapia intensiva.
História patológica pregressa: Tuberculose pulmonar aos 17 anos, adequadamente tratada. História de síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, por
apresentar episódios tromboembólicos
desde os 20 anos de idade, incluindo
tromboses venosas profundas, tromboembolismo pulmonar, trombose peniana e acidente vascular encefálico transitório, associado a anticorpo anticardio-
Figura 1: Doppler arterial dos membros superiores exibindo oclusão de aspecto agudo na
artéria ulnar esquerda, aparentemente com boa compensação de perfusão distal.
Figura 2: Colonoscopia — novembro/2010: áreas focais
de hiperemia esparsas no sigmoide.
32
lipina positivo em altos títulos.
Em tratamento com varfarina,
mantendo INR entre 2,0 e 3,0.
Internação, em novembro
de 2010, com quadro de astenia intensa, após ter apresentado episódios consecutivos
de diarreia sanguinolenta por
cinco dias. Foram realizadas
hemotransfusão, endoscopia
digestiva alta e colonoscopia,
cujos resultados demonstraram erosão duodenal isolada
e áreas focais de hiperemia
esparsas no sigmoide, respectivamente (Figura 2). Histopatológico do colón: colite leve
ativa de caráter inespecífico,
exibindo infiltrado inflamatório misto
no córion, rico em neutrófilos e com
participação de eosinófilos. Tomografia
computadorizada de abdome, realizada
na ocasião, apresentava moderada dilatação de vias biliares intra-hepáticas,
hepatocolédoco exibindo redução gradual do seu calibre até sua porção intrapancreática e discreto espessamento
parietal, sem fator obstrutivo aparente,
além de linfonodomegalias junto ao hilo
hepático e múltiplos linfonodos mesentéricos e no retroperitônio perivascular.
História psicossocial: Ex-tabagista há
cinco anos.
História familiar: Colangiocarcinoma
(pai).
Exame físico
Ao exame apresentava-se desidratado (++/4+), hipocorado (++/4+), sonolento.
Aparelho cardiovascular: Ritmo cardíaco regular em dois tempos, bulhas normofonéticas, sem sopros. FC: 100bpm;
PA: 100 x 60mmHg.
Aparelho respiratório: Murmúrio vesicular presente em ambos os hemitóraces, sem ruídos adventícios.
Abdome: Atípico, depressível, peristáltico, sem visceromegalias ou massas
palpáveis, doloroso à palpação superficial e profunda em abdome inferior.
Membro superior esquerdo: Edema,
pulso radial palpável.
Membro superior direito: Hematoma.
Membros inferiores: Lesões hipercrômicas cicatriciais, lesão ulcerada em
calcâneo esquerdo.
Evolução
Paciente de 47 anos, com diagnóstico de SAAF, em anticoagulação, apresentando trombose arterial atual e hemorragia digestiva baixa, internado em
unidade de terapia intensiva.
Após suspensão da anticoagulação
e adotadas medidas para restabelecer a
estabilidade hemodinâmica, o paciente
foi submetido a nova colonoscopia, cujo
resultado evidenciou edema da mucosa,
com perda do padrão vascular habitual,
do ceco ao reto, com áreas focais de
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
Associação incomum ou mera casualidade?
Figura 3: Colonoscopia — fevereiro/2011:
edema da mucosa com perda do padrão
vascular habitual, do ceco ao reto, com
áreas focais de hiperemia e reflexo
luminoso alterado, sugestiva de doença
de Crohn do cólon.
hiperemia e reflexo luminoso alterado
sugerindo doença de Crohn do cólon.
Análise histopatológica demonstrou
pancolite crônica moderada, com áreas
de erosão e comprometimento inflamatório transmural sugestivo de doença de
Crohn (Figura 3).
Iniciada hidrocortisona venosa, com
boa resposta ao tratamento e condições de retorno à anticoagulação com
heparina.
Solicitados ASCA e p-ANCA, cujos
resultados foram negativos.
Figura 4: Espessamento pleuroapical bilateral; áreas de enfisema parasseptal em ambos os
ápices; granulomas residuais em ápice esquerdo e lobo superior do pulmão direito; bandas
parenquimatosas associadas a espessamento pleural na base esquerda.
Planejou-se iniciar tratamento com
imunobiológico, sendo solicitado HBsAg
(não reagente). Foi realizada tomografia
computadorizada de tórax (imagens residuais) (Figura 4) e iniciou-se isoniazida
profilática. O paciente desenvolveu intolerância gástrica à droga e ocorreu elevação das enzimas hepáticas, o que, em
conjunto, levou à suspensão da mesma.
Devido à excelente melhora clínica
com o corticoide venoso, o mesmo foi
readaptado para a via oral, ocasião em
que houve retorno da diarreia (porém,
sem sangue), associado a febre e taquicardia. O corticoide voltou então a ser
utilizado por via venosa, sendo associada antibioticoterapia venosa (ciprofloxacino e metronidazol). Foram realizados hemocultura, coprocultura, exame
parasitológico das fezes e pesquisa das
toxinas A e B do Clostridium difficile nas
fezes, todos negativos. Após alguns dias
de medicação houve melhora expressiva do quadro clínico. O corticoide e os
antibióticos voltaram a ser utilizados por
via oral e introduziu-se azatioprina para
Figura 5: Hepatocolédoco com paredes levemente irregulares, ectasiado.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
33
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
Associação incomum ou mera casualidade?
tratamento de manutenção. O paciente
evoluiu com dor abdominal em barra,
com irradiação para dorso e elevação
de enzimas pancreáticas, o que levou à
suspensão da droga.
Foram realizados trânsito do intestino delgado e enterografia por tomografia computadorizada para avaliação
da doença de Crohn, com resultados
normais.
Uma colangiorressonância, realizada
para avaliar CEP, evidenciou ausência
de dilatação das vias biliares intra-hepáticas, porém, hepatocolédoco com paredes levemente irregulares, ectasiado
(Figura 5).
O paciente teve alta após alguns dias
em uso de medicação oral (varfarina,
prednisona). Em consulta subsequente
foi iniciado o desmame do corticoide,
juntamente com mesalazina via oral. Permanece assintomático, em uso de varfarina e mesalazina, após seis meses de
acompanhamento.
foi de 26,2% e 2,25%, respectivamente.
A presença do anticorpo anticardiolipina IgG, na CEP, se correlacionou com a
duração da doença e com a atividade
bioquímica (12). Porém, não foi descrita
associação entre CEP e SAAF.
Embora descrita pela primeira vez
em 1924, muitos aspectos continuam
pouco compreendidos acerca da CEP,
principalmente no que diz respeito a sua
etiologia e terapêutica efetiva (6).
O diagnóstico é baseado em achados colangiográficos típicos, associados
Discussão
Adaptado de Braham, A.; Safer, L. et al. — Antiphospholipid antibodies in digestive diseases. Presse Med., 30(38): 1890-7, 2001.
A originalidade desse caso consiste
na raridade da associação dessas três
patologias.
É certo o diagnóstico de SAAF em
nosso paciente, pois desde os 20 anos
de idade ele apresentava quadros clínico e laboratorial compatíveis: eventos
tromboembólicos associados à positividade de anticorpo antifosfolipídeo em
mais de uma ocasião.
Diversos estudos descrevem a maior
prevalência de anticorpos anticardiolipina em pacientes com DII (4, 11) (ver
tabela). No entanto, a associação da
doença de Crohn com a síndrome do
anticorpo antifosfolipídeo não é comumente descrita.
Estudo analisando a presença de
anticorpo anticardiolipina em pacientes
com doença hepática colestática autoimune encontrou prevalência de 40%
de anticorpo anticardiolipina nos pacientes com cirrose biliar primária e colangite esclerosante primária, enquanto
que nos controles — cirróticos por outra causa e saudáveis — a prevalência
34
langiográficas de CEP na ausência de
alterações bioquímicas hepáticas e sintomas clínicos (6).
Quando presentes, os sintomas sugestivos de CEP são: fadiga, prurido, icterícia e desconforto abdominal (2).
Embora sem sintomas sugestivos
ou alteração bioquímica hepática, o paciente apresentou irregularidade ductal
à CPRM, no contexto do diagnóstico de
doença de Crohn do cólon — o que é
definido como fase inicial ou assintomática da doença hepática.
TABELA: Prevalência dos anticorpos anticardiolipina IgG
Pacientes
Chamouard
et al.
Reumaux
et al.
Reight
et al.
Perri
et al.
Souto
et al.
Doença de Crohn
22%
21%
25%
45,3%
–
Retocolite ulcerativa
19%
16%
20%
–
–
Doença inflamatória
intestinal
–
–
21%
–
5%
Controle
–
0%
12%
2,5%
3,9%
a achados clínicos, bioquímicos, sorológicos e histopatológicos, assim como à
exclusão de causas secundárias (6).
O padrão ouro para o diagnóstico é
a colangiopancreatografia endoscópica retrógrada (CPER), porém apresenta
risco de complicações em mais de 10%
dos pacientes com CEP. A colangiopancreatografia por ressonância magnética
(CPRM) vem substituindo a CPER no
diagnóstico da CEP, por ser método não
invasivo e por apresentar sensibilidade
comparável à da CPER (6).
A associação de CEP com DII é
maior naqueles com acometimento extenso do cólon. A prevalência de CEP
é de aproximadamente 5,5% naqueles
com pancolite, em contraste com 0,5%
naqueles com colite distal apenas. A
CEP não parece ocorrer em associação
com a DC, que acomete apenas o intestino delgado (6).
Os pacientes com CEP podem apresentar-se assintomáticos em aproximadamente 15% a 44% dos casos,
demonstrando apenas evidências co-
Devido aos agentes usados no tratamento da DII, pode haver um largo espectro de injúria hepática, como hepatite
aguda ou crônica, atribuída às drogas utilizadas (sulfassalazina, mesalazina, tiopurinas, antagonistas do TNF, antibióticos
como as quinolonas), e toxicidade hepática, causada pelas drogas usadas contra
complicações dos imunomoduladores e
pelos antagonistas do TNF (como a isoniazida para tratar a reativação da tuberculose ou profilaticamente) (10).
A reativação da tuberculose latente
é um conhecido efeito adverso do uso
da terapia anti-TNF. Por isso, a identificação e o tratamento da tuberculose são
necessários antes de se iniciar a terapia
imunobiológica (13).
Ao se planejar o uso da anti-TNF no
paciente citado foi iniciada quimioprofilaxia para tuberculose com isoniazida,
pois o mesmo apresentou tuberculose
pulmonar aos 17 anos. Porém a droga foi suspensa após ocorrer elevação
de enzimas hepáticas (TGO = 132U/l e
TGP = 102U/l). Tal fato nos impede de
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo
Associação incomum ou mera casualidade?
usar imunobiológicos no tratamento da
doença inflamatória, pelo risco de reativação da infecção pelo Mycobacterium
tuberculosis.
A pancreatite aguda é uma das raras
complicações da doença de Crohn. Na
maioria das vezes sua etiologia é medicamentosa (7).
A azatioprina é um análogo da purina frequentemente usado na terapia
de manutenção da doença de Crohn.
Porém, a ocorrência de efeitos adversos
é a principal desvantagem do uso desta
medicação. Em mais de 23% dos pacientes com DII a retirada da azatioprina
deve-se a efeitos colaterais que aparentemente são mais frequentes na DII do
que em outras doenças autoimunes. Um
dos mais graves efeitos colaterais da
azatioprina é a pancreatite aguda, vista
em aproximadamente 5% dos pacientes
com DC e muito raramente em pacientes tratados com azatioprina devido a
outras doenças (9).
Estudo realizado em pacientes com
DII em uso de azatioprina encontrou
incidências de pancreatite aguda de
2,6% e 3,7% na DC e na RCU, respectivamente (8).
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JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Após iniciar a azatioprina, para terapia
de manutenção da doença de Crohn, nosso paciente evoluiu com dor abdominal
em barra e elevação de enzimas pancreáticas, o que levou à suspensão da droga.
Conclusão
A associação das doenças autoimunes, e a consequente concomitância de
sinais e sintomas, tem sido por vezes
um fator complicador no diagnóstico
e na terapêutica destas condições. É
frequente a associação de tireoidite de
Hashimoto e pancreatite autoimune,
hepatite autoimune e lúpus eritematoso sistêmico, bem como de inúmeras
outras doenças relacionadas, de origem
imunológica. Neste paciente, além da
raridade da associação — doença de
Crohn, colangite esclerosante primária
e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo — a dificuldade na condução da
terapêutica torna o caso ainda mais intrigante.
As complicações trombóticas que
necessitam de anticoagulação e a hemorragia digestiva decorrente da doença inflamatória intestinal exemplificam a
17. MOOLSINTONG, P.; LOFTUS JR., E.V. et al. —
Acute pancreatitis in patients with Crohn’s disease: Clinical features and outcomes. Inflamm.
Bowel Dis., 11(12): 1080-4, 2005.
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of agents used in the management of inflammatory bowel disease. Dig. Dis., 28(3): 508-18, Epub
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central London hospital. Clin. Rheumatol., 30(3):
399-401, Epub 2010 Oct 23, 2011.
dificuldade no manejo terapêutico nesta
eventualidade.
O passado de tuberculose pulmonar,
obrigando-nos a uma terapêutica profilática antituberculostática que cursou
com hepatotoxicidade, a tentativa do
uso de azatioprina com dor em barra e
a elevação das enzimas pancreáticas são
sutilezas que requerem conhecimento e
cautela no uso das drogas.
Este paciente com passado de tuberculose não poderia usar infliximabe
(biológico) nem imunomodulador (azatioprina), por causa de seus efeitos tóxicos ao fígado e pâncreas.
Apesar do risco de estimular a trombogênese e mesmo reativar a tuberculose, fomos obrigados a optar pela corticoterapia endovenosa, que por sorte foi
segura e eficaz.
A presente apresentação — com a
tríade doença de Crohn, colangite esclerosante primária e síndrome do anticorpo antifosfolipídeo — aparece uma
vez na literatura, sendo por isto nossa
comunicação não só rara, mas também
intrigante.
Trata-se de simples coincidência ou
de uma nova entidade?
Endereço para correspondência:
M. C. Galvão
Santa Casa da Misericórdia do RJ
— Enfermaria 18
Rua Santa Luzia, 206 — Centro
20030-041
Rio de Janeiro-RJ
35
imagem em medicina interna
Coordenação:
MARTA CARVALHO GALVÃO
MARTA CARVALHO GALVÃO
Professora de Radiologia da Fundação
Técnico-Educacional Souza Marques
— FTESM. Radiologista do Hospital
Federal da Lagoa, RJ. Professora
mestre responsável do Curso de
Radiologia da UniFOA — Universidade
da Fundação Osvaldo Aranha.
BEATRIZ DA CUNHA RAYMUNDO
MARIANA DE MAGALHÃES BASTOS
Médicas residentes de Radiologia (R3)
do Hospital Federal da Lagoa, RJ.
Introdução
A utilização da imagem na apendicite aguda tem se tornado rotineira, não
apenas para confirmação do diagnóstico clínico, mas também para acrescentar informações que fundamentam a
conduta dos cirurgiões, sobretudo em
tempos de cirurgia laparoscópica. Embora os diagnósticos clínico e laboratorial sejam de fundamental importância, a
experiência acumulada e a literatura têm
mostrado que a taxa de laparotomias
negativas caiu de 20% para 4% quando
a imagem foi incorporada à propedêutica. Pode reduzir o tempo de permanência hospitalar indicando pronta cirurgia
ou redirecionar a investigação, excluindo causas não cirúrgicas, como a doença inflamatória pélvica e a apendagite.
A escolha do método — ultrassonografia (US) ou tomografia computadorizada (TC) — deve levar em consideração
a acurácia, o grau de invasibilidade, o
conforto do paciente, o tempo de execução e o custo, sendo ainda decisivas
a existência ou não de recursos técnicos
e pessoais para a sua realização e as
condições clínicas do paciente, idade e
sexo. O uso da radiação ionizante com
a utilização da TC deve ser um fator de
considerável importância, sobretudo em
se tratando de uma doença benigna,
36
Apendicite aguda
que usualmente acomete pacientes jovens e em idade reprodutiva. A decisão
varia ainda segundo a preferência da
instituição, e, dentro de uma mesma instituição, pode variar com a experiência
do radiologista.
Ambas, US e TC, são métodos de
excelente acurácia quando analisadas
por operador e leitor competentes, respectivamente.
A radiografia panorâmica do abdome não traz informações relevantes, por
carecer de especificidade. No entanto,
deve-se conhecer os achados que, indiretamente, apontam para apendicite,
uma vez que pode ser o único método
disponível. Assim, a presença de escoliose antálgica de concavidade à direita,
apagamento da linha do músculo psoas,
presença de alça distendida na fossa ilíaca direita ou mesogástrio (íleo), espasmo funcional do cólon direito, apendicolito e efeito de massa na fossa ilíaca
direita podem ser altamente sugestivos,
na presença de clínica compatível.
A US atinge uma acurácia em torno
de 94% e a TC, 98%, o que nos leva a
considerar que o uso inicial da US pode
prescindir do uso do contraste oral e/ou
venoso e do contraste iodado, necessários para a TC, sobretudo em pacientes
jovens, mulheres (em que o diagnóstico
diferencial com doença inflamatória pélvica se impõe) e nos não obesos. Nos dilemas abdominais, nos pacientes obesos
a tomografia pode ser mais informativa.
O protocolo utilizado na TC também
é bastante variado, sendo que alguns
radiologistas optam por iniciar o exame
sem nenhum contraste; outros utilizam
apenas o venoso, o oral ou o retal, e ainda outros, uma combinação entre estes.
Importante observar que a imagem,
através de um mapeamento pré-operatório, é capaz de informar ao cirurgião
a localização, tamanho, grau de distensão, presença de apendicolito, perfuração, abscesso (aumentam o risco de
infecção da ferida operatória) e fístula,
demonstrações que podem predizer o
prognóstico, riscos e melhor orientar o
uso da técnica laparoscópica.
Os principais achados à US são:
— Imagem tubular em fundo cego não
compressível ao transdutor.
— Calibre do apêndice maior ou igual a
7mm.
— Gordura periapendicular hiperecogênica.
— Apêndice de paredes espessadas,
laminadas.
Figura 1: US: Imagem tubular em fundo cego, distendida (diâmetro de 13mm), paredes
espessadas, com gordura adjacente hiperecogênica na fossa ilíaca direita.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Apendicite aguda
Figura 2: TC no plano coronal: Imagem tubular alongada, de paredes
espessadas, com diâmetro > 7mm, infiltrando a gordura adjacente
localizada na fossa ilíaca e flanco direitos, estendendo-se até o bordo
hepático inferior. Observa-se linfonodo adjacente.
Figura 3: TC: Mesmo caso anterior, em plano sagital, mostrando
a topografia retrocecal do apêndice inflamado.
Figura 4: TC com contraste
oral: Observa-se, na fossa
ilíaca direita, ceco deslocado
medialmente com parede
espessada na sua porção
lateral e infiltração da gordura
mesentérica adjacente com gás
fora de alça (pneumoperitônio).
O aspecto é sugestivo
de apendicite perfurada,
confirmada cirurgicamente.
— Líquido periapendicular.
— Apendicolito.
À TC, além dos achados de infiltração da gordura, aumento de calibre e
espessamento parietal, complicações
como resultado da perfuração são mais
bem demonstradas, tais como presença
de coleções, pneumoperitônio, espessamento de planos fasciais, apendicolito
fora da luz e infiltração da gordura periapendicular. Importante lembrar que a
TC não sofre limitação (como a US) pela
gordura, o que a torna o melhor método
nos pacientes obesos.
JBM
MAIO/JUNHO
VOL. 100 No 2
Parece não existir mais dúvidas de
que o uso da imagem na apendicite
aguda reduz a taxa de laparotomia não
terapêutica, devendo ser sempre utilizada quando disponível.
Em relação aos custos destes procedimentos, cabe lembrar que a apendicectomia negativa, além dos riscos
inerentes ao procedimento anestésico-cirúrgico, é aproximadamente 16 vezes
mais onerosa do que uma tomografia da
pelve, e traz, sem dúvida, conforto e segurança ao médico e seu paciente.
Referências
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disease from acute appendicitis in women of childbearing age. Am. J. Emerg. Med., 25: 152-7, 2007.
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adults: Clinical manifestations and diagnosis. UpToDate. 2011. Disponível em: http:/www.uptodate.
com/online. Acesso em 19 de maio de 2012.
Endereço para correspondência:
Marta Galvão
Santa Casa da Misericórdia do RJ
Enfermaria 18
Rua Santa Luzia, 206 — Centro
20030-041
Rio de Janeiro-RJ
37
Leão Zagury
endocrinologia
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
Fellow of the American College of Physicians. Professor da Pós-graduação em Endocrinologia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Titular da Academia de Medicina do Rio
de Janeiro. Presidente da Sociedade Brasileira de Diabetes (2004-2005). Chefe do Serviço de
Diabetes do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (1996-2003).
Resumo
Summary
Introdução
anos antes do diagnóstico. No DM2 devido à
RI a gliconeogênese hepática não é suprimida por níveis plasmáticos de insulina, mesmo
em concentrações elevadas. Nos músculos,
se manifesta por redução da captação da
glicose (5, 6). Nos indivíduos resistentes à
insulina, como os obesos e os sedentários
(7), inicialmente a RI é compensada através
do aumento da secreção das células beta. A
hiperinsulinemia assim gerada mantém a homeostase glicêmica (8). Entretanto, as células
beta vão gradualmente perdendo a capacidade de manter esses níveis de secreção de
insulina, a glicemia vai gradualmente se elevando e clinicamente se instala o que chamamos de intolerância à glicose (9). Inicialmente
desaparece a primeira fase, e a glicemia pós-prandial aumenta. No momento em que as
células perdem capacidade secretora a hiperinsulinemia se transforma em hipoinsulinemia e o DM2 se instala.
A manutenção da glicemia dentro da
normalidade depende do perfeito equilíbrio
dinâmico entre sensibilidade dos tecidos à
insulina e secreção do hormônio.
Neste artigo descrevemos os mecanismos envolvidos na gênese da hiperglicemia
do diabetes mellitus tipo 2. Serão analisadas
a resistência insulínica, as características da
secreção de insulina, a redução da secreção
de insulina, a secreção hepática de glicose,
a captação e a secreção hepática de glicose, o aumento da secreção de glucagon e
da lipólise e a reabsorção da glicose pelos
túbulos renais. Também serão revistos os
defeitos das incretinas, a resistência insulínica
cerebral e as alterações na flora intestinal.
Os principais defeitos fisiopatológicos do
diabetes mellitus tipo 2 (DM2) são, sem qualquer dúvida, a resistência insulínica (RI) e a
falência das células beta. Sabe-se atualmente
que a falência das células secretoras de insulina é mais precoce do que se pensava (1). Inúmeros outros defeitos fisiopatológicos ocorrem em diferentes órgãos também implicados
na gênese da hiperglicemia. Estão também
envolvidos, além dos músculos, fígado e pâncreas, o tubo gastrointestinal (TGI), os rins e o
cérebro. Ralph A. DeFronzo, da Universidade
de San Antonio, no Texas, organizou e agregou inúmeros conceitos para o melhor entendimento da fisiopatologia do DM2, apresentados em sua excepcional Banting Lecture (2).
Resistência à insulina
Os indivíduos que desenvolvem DM2
herdam genes que tornam seus tecidos resistentes à insulina (3, 4). Alterações na sensibilidade e na secreção de insulina, intolerância à glicose e alterações na fase rápida de
secreção de insulina podem ser identificadas
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
In this article we describe the mechanisms
involved in the genesis of hyperglycemia in
type 2 diabetes mellitus. Will be analyzed
separately insulin resistance, the characteristics of insulin secretion, the decrease in insulin
secretion, the liver’s secretion of glucose and
hepatic uptake of glucose and the increased
glucagon secretion and lipolysis and glucose
reabsorption in the kidney. Also will be review
defects of the incretins, cerebral insulin resistance and changes in intestinal flora.
et ent quist, nimilique voluptaturia.
Unitermos: Diabetes;
etiopatogenia.
Keywords: Diabetes;
etiopathogenesis.
39
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
SECREÇÃO DE INSULINA
Glicotoxicidade
1a fase
Hiperglicemia
Falência das células
beta
Hipoinsulinemia
2a fase
Redução da
supressão hepática
de glicose
Aumento da
produção de glicose
DM2
Não DM2
Figura 1: Representação esquemática da secreção fisiológica bifásica
de insulina em não diabéticos e em diabéticos tipo 2.
Maior
secreção de
insulina
Figura 3: Representação esquemática da sequência de alterações que
conduzem ao DM2 (segunda etapa).
DM2
Hiperglicemia
Hiperinsulinemia
Hipoinsulinemia
Esgotamento
do
pâncreas
Redução da captação
de glicose
A
red hiper pesa
hepução insuli r da
átic da s nem
a d upr ia,
e g ess
lico ão
se
Figura 2: Representação esquemática da sequência de alterações que conduzem ao DM2
(primeira etapa).
Secreção de insulina
Muito precocemente se observam alterações na secreção fisiológica bifásica de
insulina. Nos não diabéticos, em resposta à
ingestão de alimentos, a insulinemia se eleva
rápida e precocemente, antecipando-se à hiperglicemia (primeira fase). A esta elevação
inicial se segue uma segunda fase, de secreção mais suave e prolongada (Figura 1).
Esta secreção bifásica é fundamental
para manter os níveis glicêmicos pós-prandiais dentro da normalidade, garantir a supressão hepática e manter a glicemia normal
40
entre as refeições. Elahi et al. (10) administraram somatostatina via endovenosa a não
diabéticos, com o objetivo de suprimir a
produção endógena de insulina. Em seguida
infundiram insulina, pela mesma via, em percentual constante, isto é, diferente da curva
bifásica, em concentrações equivalentes à da
insulina endógena, demonstrando desta forma que a liberação hepática de glicose foi
suprimida apenas parcialmente (43%). Caracterizaram assim que a secreção bifásica de insulina é fundamental para a manutenção do
bloqueio da gliconeogênese. É esse padrão
de resposta bifásica que mantém a glicemia
em estreitos limites, só se elevando discretamente após a alimentação. No DM2 não
se identifica a primeira fase de secreção e se
observam também anormalidades na pulsatilidade, cinética, quantidade e na qualidade
da secreção de insulina (Figura 1).
História natural do diabetes
mellitus tipo 2
A história natural do DM2 está bem demonstrada, através de inúmeros estudos muito bem conduzidos (11). Nas Figuras 2 e 3 se
encontram representações esquemáticas da
sequência de eventos que conduzem ao DM2.
A redução da captação de glicose nos músculos requer aumento da produção e secreção de
insulina, visando manter os níveis glicêmicos
dentro da normalidade. Apesar do aumento
da insulinemia, a supressão da gliconeogênese
hepática não ocorre integralmente, contribuindo para aumentar os níveis de glicose plasmáJBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
ticos. Isto leva as células beta a aumentarem
ainda mais a secreção de insulina até que se
esgotem, quando se instalam hipoinsulinemia,
hiperglicemia, e glicotoxicidade e DM2.
Lipotoxicidade
O aumento dos níveis plasmáticos de ácidos graxos livres (FFAs), que muitas vezes se
observa nos diabéticos descompensados e
nos obesos, determina o que se convencionou chamar de lipotoxicidade. A lipotoxicidade prejudica a secreção de insulina, induz
alterações na ação da insulina e apoptose de
células beta (12). Estudos de Kashyap et al.
sugerem que altas concentrações por período de apenas 48 horas são suficientes para
comprometer de maneira significativa a secreção de insulina. Nestes estudos a solução
lipídica prejudicou a primeira e a segunda
fase da secreção de insulina, analisadas através da dosagem do peptídio C. A redução
da concentração dos FFAs com acipimox em
não diabéticos com história familiar de DM2
melhorou a secreção de insulina (13).
Glicotoxicidade
Ao se instalar e se manter elevada, a glicemia desencadeia o fenômeno conhecido
como glicotoxicidade, que também prejudica a função celular beta (14), através da
redução dos transportadores intracelulares
de glicose localizados no interior das células
beta (GLUT). Nos músculos reduz a captação
de glicose estimulada pela insulina. A secreção de insulina em ratos e em seres humanos
diabéticos melhorou após a normalização da
glicemia nos tratados com phlorizin.
Pâncreas — células beta
A população celular beta desde o início
do processo está comprometida, apesar de
conseguir, durante certo tempo, manter a
secreção de insulina em quantidades suficientes. Butler et al. (1), fundamentados em
análise post mortem, sugerem que os pré-diabéticos já perderam aproximadamente
metade da massa celular, o que constitui
significativo comprometimento das células
beta antes mesmo do desencadear do DM2.
Ferrannini et al. (15) vão além, demonstrando
que os intolerantes à glicose perderam cerca
de 80% da função beta. Por outro lado, estes
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
mesmos pesquisadores demonstraram que
não existem pontos de corte entre tolerância
à glicose normal, intolerância e DM2, que na
verdade constituem um continuum. DeFronzo entende que a tolerância à glicose constitui um risco contínuo, da mesma forma que
os níveis de colesterol — isto é, quanto maior
for a glicemia pós-prandial, maior será o risco
de complicações (2).
É fundamental considerar alguns aspectos em relação à função beta, como o fato de
ocorrer progressivo declínio da capacidade
secretora com o passar dos anos (16), e que
existem claras evidências genéticas de comprometimento destas células.
Ao se instalar e se
manter elevada, a
glicemia desencadeia
o fenômeno conhecido
como glicotoxicidade,
que também prejudica
a função celular beta,
através da redução
dos transportadores
intracelulares de glicose
localizados no interior das
células beta (GLUT).
Polipeptídio amiloide da ilhota
É possível que a deposição de substância amiloide, que resulta da polimerização do
peptídio produzido pela célula beta, conhecido como amilina ou polipeptídio amiloide da
ilhota (IAPP), esteja associada à redução da
massa de células beta. Os portadores de DM2
que necessitam tratamento com insulina apresentam grande redução da massa celular e
maiores depósitos de substância amiloide, indicando que o grau de amiloidose pode estar
relacionado à gravidade da doença. Entretanto, como estes depósitos não são detectáveis
em todos os casos, não devem ser essenciais
para a lesão das células beta (17).
Tubo gastrointestinal (TGI) —
incretinas
Pâncreas — células alfa
Após a ingestão, durante a passagem
dos nutrientes pelo TGI, ocorre ativação
neural e hormonal dos sinais que controlam
o esvaziamento gástrico, a mobilidade e a
absorção dos alimentos. Células altamente
especializadas, dispersas ao longo do TGI,
desempenham importante papel através
dos seus principais hormônios: o glucagon-like
peptide 1 (GLP-1), o glucagon-like peptide 2
(GLP-2) e o glucose-dependent insulino-tropic polypeptide (GIP). As células K liberam GIP no jejuno proximal e no duodeno e
as células L liberam GLP-1 no íleo e cólon,
ambos inativados pela clivagem promovida
pela enzima dipeptidil peptidase IV (DPP-IV),
presente em vários tecidos. Cerca de 50%
desses hormônios são inativados rapidamen-
Pontos-chave:
> O aumento dos níveis
plasmáticos de ácidos graxos
livres (FFAs) determina o que
se convencionou chamar de
lipotoxicidade.
> A lipotoxicidade prejudica
a secreção de insulina, induz
alterações na ação da insulina
e apoptose de células beta.
> Estudos de Kashyap e
colegas mostraram que a
redução da concentração dos
FFAs com acipimox em não
diabéticos com história familiar
de DM2 melhora a secreção de
insulina.
41
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
Não diabéticos
Supressão da
secreção do
glucagon
Aumento da
secreção de
insulina
Diabéticos
Aumento da
secreção do
glucagon
Redução da
secreção de
insulina
Figura 4: Alterações da secreção
do glucagon e insulina nos
diabéticos tipo 2.
te, em um período que varia de um a sete
minutos. O conceito de incretinas foi criado
a partir da observação de que a ingestão de
alimentos ou a administração de glicose via
enteral provocava maior liberação de insulina,
quando comparada à determinada pela administração venosa de quantidades semelhantes
de glicose (18). Apesar da passagem efêmera pelo organismo, estes hormônios têm importantes ações metabólicas. O GLP-1, além
de aumentar a secreção de insulina glicose-dependente, reduzida nos diabéticos tipo 2,
melhora a sensibilidade insulínica, suprime a
secreção de glucagon pós-prandial, diminui o
apetite e a ingestão alimentar, reduz a liberação hepática de glicose, aumenta a saciedade, regula o esvaziamento gástrico, melhora o
perfil hemodinâmico e, em roedores, aumenta a massa de células beta. O GIP não parece
ter efeito na secreção de glucagon.
Nos não diabéticos, após a ingestão
alimentar a glicemia e a secreção de insulina se elevam e a de glucagon é suprimida.
Nos diabéticos a elevação da glicemia não é
acompanhada pela elevação da insulina e o
glucagon se eleva, não ocorrendo, portanto,
a supressão observada nos não diabéticos
(Figura 4). O GLP-1 nos diabéticos se encontra em níveis mais baixos (19) e observa-se
resistência à ação do GIP-1 (20).
Tecido adiposo
O tecido gorduroso não
é responsável apenas
pela estocagem e
fornecimento de energia;
é um órgão endócrino
metabolicamente ativo.
Ao acumularem gordura,
os adipócitos normais
se transformam em
depósitos ectópicos
e liberam citocinas
indutoras de RI.
42
O tecido gorduroso não é responsável
apenas pela estocagem e fornecimento de
energia; é um órgão endócrino metabolicamente ativo (21). Ao acumularem gordura,
os adipócitos normais se transformam em
depósitos ectópicos e liberam citocinas indutoras de RI. Esses adipócitos, devido ao
acúmulo de gordura, têm seu metabolismo
desorganizado e se tornam resistentes ao
efeito antilipolítico da insulina, contribuindo
dessa forma para a elevação dos FFAs plasmáticos, e consequentemente para a lipotoxicidade. Os ácidos graxos depositados no
fígado diminuem a ação da insulina nesse
órgão, permitindo a produção exagerada de
glicose. Nos músculos e no pâncreas essas
citocinas também induzem RI, determinando, nas células beta, redução da síntese e da
secreção de insulina e apoptose das próprias
células beta.
Fígado
A demanda cerebral de glicose é atendida na maior parte pela secreção hepática, e
em uma pequena parte pelos rins. O ritmo
de produção de glicose (gliconeogênese)
pelo fígado dos diabéticos está aumentado
(22), devido a grave RI. Outros fatores, como
hiperglucagonemia, lipotoxicidade e glicotoxicidade, atuando através do aumento da
expressão e atividade enzimática, também
favorecem o aumento da produção hepática
de glicose.
Músculos
Sabe-se hoje que, além das ações fisiológicas clássicas (redução da secreção hepática
de glicose, da lipogênese, da captação de
glicose e da síntese do glicogênio), a insulina tem ações não envolvidas no metabolismo da glicose: regula a ingestão alimentar,
a secreção de grelina, a produção de óxido
nítrico e a vasodilatação.
Essas ações se efetivam através da transdução do sinal da insulina em uma sequência
que se inicia com a ligação ao receptor das
células-alvo, que é ativado através da fosforilação pela tirosina (23, 24), determinando
a translocação do substrato do receptor de
insulina IRS-1 para a membrana plasmática,
de onde segue para a fosforilação pela tirosina. Prossegue ativando a PI3 quinase e AKT,
determinando aumento do transporte da glicose no interior da célula e ativação da ON
sintetase, que provoca vasodilatação arterial
(25) e estimulação dos múltiplos processos
metabólicos intracelulares.
DeFronzo e colaboradores demonstraram que esse processo estava prejudicado
em seres humanos com RI. Nestes casos, a
fosforilação se faz em serina e segue a via
MAP (proteína mitogênica ativada), ativando inúmeras vias intracelulares, reduzindo
o transporte de glicose, comprometendo a
produção de ON e desencadeando múltiplos
defeitos metabólicos intracelulares responsáveis por disfunção endotelial, inflamação,
aterosclerose e proliferação celular (26, 27).
Rim
A ausência de glicose na urina se deve
ao fato de que quase toda a glicose filtrada é
reabsorvida através da ação dos transportaJBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Etiopatogenia do diabetes mellitus tipo 2
dores SGLT2 (90%) nos túbulos contornados
proximais e SGLT1 (10%) nos túbulos proximais descendentes. Essa capacidade nos
diabéticos está muito aumentada (28), na
tentativa de garantir as demandas energéticas do organismo, particularmente do cérebro, e dessa forma contribui para aumentar
ainda mais a glicemia.
Cérebro
Atualmente sabe-se que a insulina é um
potente inibidor do apetite, diferentemente
do que se pensava (29, 30). Entretanto, os
obesos, diabéticos ou não, apesar de resistentes à insulina e hiperinsulinêmicos, ingerem mais alimentos do que os não obesos.
Deveriam, portanto, ter menos fome e, consequentemente, ingerir menos alimentos.
Para tentar esclarecer se nesses indivíduos
estaria ocorrendo RI em nível cerebral, Matsuda et al. examinaram, através de ressonância magnética, a resposta do cérebro a uma
carga de glicose (31). Observaram inibição
dos núcleos ventromedial e paraventriculares, áreas responsáveis pela regulação do
apetite. A magnitude da inibição estava redu-
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14. KASHYAP, S.; BELFORT, R. et al. — A sustained
increase in plasma free fatty acids impairs insulin
secretion in nondiabetic subjects genetically predisposed to develop type 2 diabetes. Diabetes,
52: 2461-74, 2003.
15. PENDERGRASS, M.; BERTOLDO, A. et al. — Muscle glucose transport and phosphorylation in type 2
diabetic, obese non-diabetic, and genetically predisposed individuals. Am. J. Physiol. Endocrinol.
Metab., 292: E92–E100, 2007.
16. GROOP, L.C.; BONADONNA, R.C. et al. — Glucose and free fatty acid metabolism in non-insulin-dependent diabetes mellitus: Evidence for multiple sites of insulin resistance. J. Clin. Invest., 84:
205-13, 1989.
17. DEFRONZO, R.A. — Pathogenesis of type 2 diabetes: Metabolic and molecular implications for
identifying diabetes genes. Diabetes Rev., 5: 177-269, 1997.
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
zida em obesos, resistentes à insulina. Obici
et al. demonstraram o mesmo em roedores
(32). Esses resultados sugerem que o cérebro
também pode ser resistente à insulina.
Flora intestinal
A colonização do intestino por microrganismos se inicia logo após o nascimento, sofre alterações com o tempo e pode mudar com muita
rapidez, de acordo com a dieta. Estudos com
transplante de microbiota intestinal demonstraram que a dieta é um fator importante na
regulação da composição da microbiota intestinal. Magros e obesos têm composição da flora
intestinal diferente, e já foi demonstrado que a
obesidade está associada a mudanças na composição da flora intestinal. Assim, parece que a
flora intestinal é capaz de aumentar a extração
de energia de polissacarídeos indigeríveis, de
modular níveis plasmáticos de lipopolissacarídeo (LPS), iniciando um processo inflamatório
crônico de baixo grau, e de modular genes de
proteínas que regulam o estoque e gasto energético. Embora ainda demandem comprovação
(33), todos esses processos podem, teoricamente, desencadear obesidade e DM2.
18. DIAMOND, M.P.; THORNTON, K. et al. — Reciprocal variation in insulin-stimulated glucose uptake
and pancreatic insulin secretion in women with normal glucose tolerance. J. Soc. Gynecol. Invest., 2:
708-15, 1995.
19. SAAD, M.F.; KNOWLER, W.C. et al. — Sequential
changes in serum insulin concentration during
development of non-insulin-dependent diabetes.
Lancet i: 1356-9, 1989.
10. ELAHI, D.; MENIELLY, G.S. et al. — Escape of hepatic glucose production during hyperglycemic
clamp. Am. J. Physiol., 257: E704-E711, 1989.
11. DEFRONZO, R.A. — Pathogenesis of type 2 diabetes
mellitus. Med. Clin. North Am., 88: 787-835, 2004.
12. UNGER, R.H. — Lipotoxicity in the pathogenesis of
obesity-dependent NIDDM: Genetic and clinical
implications. Diabetes, 44: 863-70, 1995.
13. KASHYAP, S.; BELFORT, R. et al. — A sustained increase
in plasma free fatty acids impairs insulin secretion in
nondiabetic subjects genetically predisposed to develop type 2 diabetes. Diabetes, 52: 2461-74, 2003.
14. ROSSETTI, L.; GIACCARI, A. & DEFRONZO, R.A.
— Glucose toxicity (review). Diabetes Care, 13:
610-30, 1990.
15. FERRANNINI, E.; GASTALDELLI, A. et al. — Beta
cell function in subjects spanning the range from
normal glucose tolerance to overt diabetes mellitus: A new analysis. J. Clin. Endocrinol. Metab.,
90: 493-500, 2005.
Endereço para
correspondência:
Leão Zagury
Rua Visconde de Pirajá,
414/Sala 706 — Ipanema
22410-002
Rio de Janeiro-RJ
[email protected]
Obs.: As 18 referências restantes que compõem este artigo se
encontram na Redação à disposição dos interessados.
43
pneumologia
Asma
A arte do encontro
Asma
A arte do encontro
Hisbello s. Campos
Médico do Instituto Fernandes Figueira — FIOCRUZ. Doutor em Clínica Médica, Pneumologia,
pela UFRJ. Membro do Comitê Técnico da ONU. Membro do Global Initiative for Asthma (GINA)
da OMS.
Unitermos: Asma;
patogenia; tratamento.
Keywords: Asthma;
pathogenic mechanisms;
treatment.
44
Resumo
Summary
A asma é um importante problema de
Saúde Pública. Estima-se que ela comprometa cerca de 300 milhões de pessoas e mate
250 mil a cada ano, em todo o mundo. Trata-se
de uma alteração inflamatória crônica das
vias aéreas, cujas principais características incluem, também, grau variável de obstrução
ao fluxo aéreo e hiper-responsividade brônquica. O tratamento é baseado em fármacos
anti-inflamatórios e broncodilatadores. Para
pacientes que permanecem sintomáticos
vêm sendo desenvolvidas novas terapias,
desenhadas para atingir alvos-chaves na patogenia.
Asthma is a serious health problem
throughout the world. It is estimated that
300 million people are affected and 250
thousands are killed by asthma worldwide.
Asthma is a multifactorial chronic inflammatory disorder of the airway in which the chief
features include a variable degree of airflow
obstruction and bronchial hyper-responsiveness, in addition to the underlying chronic
airway inflammation. Asthma’s treatment is
based on anti-inflammatory and bronchodilator drugs. For patients who remain symptomatic new therapies tailored to target key
pathways in asthma pathology are being
developed.
Introdução
gravidades e respostas ao tratamento. Por
essa razão, a asma não pode ser considerada
uma doença, mas uma síndrome. Isso porque há um conjunto de situações clínicas que
compartilham características comuns: inflamação do trato respiratório, obstrução intermitente ao fluxo aéreo, hiper-responsividade
brônquica (HRB), hipersecreção de muco e
hipertrofia e hiperplasia da musculatura lisa
peribrônquica (6). Seus sintomas cardeais são
dispneia, sibilo, tosse (geralmente seca e noturna) e sensação de opressão torácica. Há
grande variação na intensidade desses sintomas tanto inter como intraindividualmente.
Do mesmo modo, o padrão de apresentação
clínica varia desde sintomas raros e ocasionais até diários, podendo mudar ao longo do
tempo.
Nesse artigo serão apresentados, de
modo simplificado, dados sobre a magnitu-
A asma é o produto do encontro entre
predisposição genética, comportamento celular alterado e mecanismos inflamatórios
específicos e variados. Na maior parte das
vezes está associada à atopia, e os sintomas
agudos costumam ser desencadeados por
alérgenos. Entretanto, em parte dos asmáticos, inexiste o componente atópico e outros
fatores, tais como elementos ambientais e irritantes inespecíficos, infecções virais, fatores
dietéticos e estresse oxidativo, estão implicados na sua patogenia (1, 2, 3, 4).
Como resultado da interação entre mais
de uma centena de genes potencialmente
envolvidos (5) e fatores multivariados, desenvolvem-se processos inflamatórios alérgicos
e não alérgicos que podem coexistir e interagir, gerando uma grande variedade de apresentações clínicas (fenótipos e endotipos),
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Asma
A arte do encontro
de da asma, mecanismos patogênicos, apresentações clínicas e estratégias diagnósticas
e terapêuticas usuais no tratamento regular e
das exacerbações.
Magnitude da asma
Apesar de existir uma definição internacional de asma aceita pela comunidade médica (7) (ver Quadro), ainda não foi possível
obter uma definição simples que possa ser
usada como instrumento único e universal
em inquéritos populacionais de prevalência.
Por essa razão, os dados epidemiológicos
são imprecisos, dificultando a estimativa de
sua real magnitude. Mais ainda, as definições
operacionais empregadas nos diversos estudos de prevalência variam, contribuindo para
a incerteza sobre a real prevalência do problema. Como exemplo, uma busca bibliográfica no PubMed, visando avaliar definições
usadas para diagnosticar asma na infância
(6-18 anos), identificou 122 artigos que incluíam
60 definições diferentes (8). Esses fatos, associados às diferenças étnicas (que se refletem
na diversidade de predisposições genéticas
para a asma), ambientais, nos graus de desenvolvimento regionais e nos desenhos dos
inquéritos epidemiológicos, podem ser responsáveis pela grande variação observada
nos estudos de prevalência da asma.
Segundo estimativas da Iniciativa Global
da Asma (GINA) da OMS, entre 1% e 18%
das populações de diferentes países, incluindo adultos e crianças, têm asma. Imagina-se
que ela comprometa 300 milhões de pessoas, sendo responsável por 15 milhões de
anos de vida prejudicados (DALYs — disability-adjusted life years) e por 250 mil mortes
anualmente (7). Diversos são os fatores enQUADRO: Definição de asma (7)
Asma é uma alteração inflamatória crônica das vias aéreas da qual participam muitas
células e elementos celulares. A inflamação
crônica está associada à hiper-responsividade
brônquica, que leva a episódios recorrentes
de sibilos, falta de ar, aperto no peito e tosse, particularmente à noite ou de manhã cedo.
Esses episódios estão usualmente associados
com obstrução ao fluxo aéreo disseminado,
mas variável, dentro do pulmão, usualmente
reversível espontaneamente ou com tratamento (GINA, OMS).
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
volvidos na mortalidade por asma: tratamento inadequado, seja por falha na adesão ou
no manejo terapêutico; dificuldade no acesso ou uso da medicação; falhas ou atraso no
atendimento médico nas exacerbações e distúrbios psicossomáticos ou psiquiátricos.
Na maioria das vezes, os sintomas da
asma surgem na infância. Nesse caso, até
metade desses pacientes apresentará remissão durante a adolescência e início da idade
adulta, podendo voltar a ter sintomas mais
tarde. Algumas pessoas só apresentam sintomas de asma mais tardiamente, por vezes
após os 40 anos de idade (9).
As várias formas de asma
Tradicionalmente, as diferentes formas
de apresentação da asma são categorizadas em fenótipos clínicos. Entretanto, tentar
classificar a asma usando uma ou poucas variáveis, como idade de início dos sintomas,
presença de atopia, escore de sintomas,
variabilidade no grau de obstrução brônquica, celularidade no escarro, índice de massa
corporal e outras, é inadequado, já que essa
forma não aponta para um esquema terapêutico 100% efetivo nem define o prognóstico
com acurácia.
Por essa razão, a categorização fenotípica
poderia ser mais útil se agrupasse asmáticos
de acordo com a semelhança de múltiplas
variáveis, incluindo características clínicas
(idade de início, gravidade, limitação fixa do
fluxo aéreo, por exemplo), fatores associados com ou desencadeantes de sintomas
asmáticos (alérgenos, aspirina, obesidade)
e características biopatológicas (inflamação
eosinofílica ou neutrofílica). O objetivo da categorização é identificar “tipos clínicos” de
asmáticos, visando à orientação terapêutica
e previsão prognóstica.
Entretanto, muitas das características usadas para compor os fenótipos da asma são
clínica e fisiopatologicamente inespecíficas,
gerando numerosos subgrupos. Indiscutivelmente, a definição de fenótipos é clinicamente relevante, já que descreve a apresentação
clínica, fatores desencadeantes e pressupõe
a resposta ao tratamento. Porém, o fenótipo
não está diretamente relacionado ao processo subjacente determinante da alteração. Na
abordagem individual do asmático, fenótipos baseados apenas em características clíni-
Na asma, como resultado
da interação entre mais
de uma centena de
genes potencialmente
envolvidos e fatores
multivariados,
desenvolvem-se
processos inflamatórios
alérgicos e não alérgicos
que podem coexistir e
interagir, gerando uma
grande variedade de
apresentações clínicas,
gravidades e respostas ao
tratamento.
Pontos-chave:
> Entre 1% e 18% das
populações de diferentes
países, incluindo adultos e
crianças, têm asma;
> Na maioria das vezes, os
sintomas da asma surgem na
infância;
> Até metade desses pacientes
apresentará remissão durante a
adolescência e início da idade
adulta.
45
Asma
A arte do encontro
Pontos-chave:
> Quatro fenótipos de asma
são determinados pela
celularidade do escarro:
eosinofílico, neutrofílico,
mista granulocítica e
paucigranulocítico;
> Os fenótipos estão
associados a padrões clínicos
e fisiopatológicos diferentes,
com respostas terapêuticas
distintas;
> Endotipos representam
uma forma de classificação
diferente de fenótipos,
compreendendo uma etiologia
definida e/ou um mecanismo
fisiopatológico consistente.
46
cas e inespecíficas não bastam para definir a
melhor abordagem terapêutica. O reconhecimento desse fato, associado à evolução do
conhecimento sobre os mecanismos envolvidos na asma, vem fazendo com que as categorizações fenotípicas passem a ser baseadas nos mecanismos moleculares envolvidos
e, em particular, nas citocinas determinantes
das alterações observadas.
Até o momento, pelo menos quatro fenótipos de asma são determinados pela celularidade do escarro: eosinofílico (> 3% de
eosinófilos), neutrofílico (> 61% de neutrófilos e < 3% de eosinófilos), mista granulocítica
(> 61% de neutrófilos e > 3% de eosinófilos)
e paucigranulocítico (< 61% de neutrófilos
e < 3% de eosinófilos). Cada um deles está
associado a padrões clínicos e fisiopatológicos diferentes, com respostas terapêuticas
distintas. O reconhecimento de que a asma
compreende diferentes mecanismos inflamatórios vem estimulando a identificação de
biomarcadores (celularidade do escarro, fração exalada de óxido nítrico [FeNO] e marcadores Th2 ou Th1) que possam ser empregados na definição da conduta terapêutica mais
apropriada para cada paciente. Nesse cenário, surge uma nova classificação, que utiliza o
termo “endotipo” para rotular um subtipo de
asmático, definido por um mecanismo funcional ou fisiopatológico distinto (10). Dessa
forma, endotipos representam uma forma
de classificação diferente de fenótipos, compreendendo uma etiologia definida e/ou um
mecanismo fisiopatológico consistente. Nessa perspectiva, a asma compreenderia diversos endotipos que, associados às influências
genéticas e ambientais, buscariam explicar
as diferentes apresentações clínicas e respostas aos diferentes tratamentos (11). Sob essa
perspectiva, as características fenotípicas representam a asma vista sob uma dimensão
clínica, enquanto os endotipos representam
entidades clínicas com mecanismos inflamatórios específicos. Visto assim, cada endotipo
pode compreender diversos fenótipos, assim
como alguns deles podem estar presentes
em mais de um endotipo (10).
Apesar de objeto de muitos estudos,
os mecanismos subjacentes em muitos dos
endotipos propostos ainda não foram esclarecidos. Provavelmente, a compreensão
desses mecanismos permitirá a identifica-
ção de alvos terapêuticos e biomarcadores
capazes de fornecer critérios diagnósticos e
prognósticos formais, possibilitando personalizar e tornar o tratamento mais efetivo.
Poderá, também, indicar a melhor maneira e
momento de usar as alternativas terapêuticas
atualmente disponíveis e apontar os perfis
necessários para os novos desenvolvimentos
farmacológicos (12).
Asma — doença inflamatória
crônica do trato respiratório
A asma é o resultado de diferentes mecanismos inflamatórios que envolvem todas as
células estruturais e funcionais do trato respiratório. Processos complexos determinam
alterações no comportamento dessas diversas células, gerando as alterações anatomopatológicas e funcionais observadas na asma
(13). Dado o valor da predisposição genética,
pode ser que as alterações comecem no período fetal ou nos primeiros anos de vida. Atualmente, viroses respiratórias na fase inicial da
vida vêm sendo consideradas o principal fator predisponente na indução da asma (14).
Em indivíduos geneticamente suscetíveis, a
exposição a fatores ambientais — fumaça de
tabaco, poluentes atmosféricos, dieta pobre
em antioxidantes (vitamina E, por exemplo) e
rica em gorduras e proteínas, exposição pré
e perinatal a estímulos oxidantes potentes e
infecções por vírus respiratórios — pode resultar em alterações na morfogênese do tecido pulmonar (3), determinando asma. Embora os mecanismos envolvidos na cronicidade
da asma ainda não estejam esclarecidos, as
mudanças estruturais decorrentes, incluindo
metaplasia epitelial, deposição de proteínas
de matriz e aumento da musculatura lisa peribrônquica e da microvascularização, determinam a cronicidade.
Há mais de um mecanismo inflamatório
das vias aéreas envolvido na patogenia da
asma. Esses diferentes processos, alérgicos ou
não, podem coexistir e interagir, abrangendo
diferentes células e seus mediadores. Entre
estes, temos as citocinas (proteínas usualmente menores que 80KDa) secretadas por linfócitos, eosinófilos, mastócitos, macrófagos, célula epitelial brônquica e célula muscular lisa,
capazes de ativar outras células. Sua função
é diversificada, mediando respostas imunes
e inflamatórias e atuando sobre processos de
JBM

MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Asma
A arte do encontro
síntese de RNAm. Além de imunomoduladores, atuam em células-alvo ativando a proliferação celular, a quimiotaxia, a liberação de
outras citocinas ou mediadores inflamatórios,
o crescimento e a diferenciação celulares e
a apoptose. O padrão de citocinas liberadas
costuma ser próprio de cada enfermidade.
Dessa forma, ele é diferente na asma e na
doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC),
por exemplo (15). Entretanto, mais uma vez
ressaltando a complexidade patogênica da
asma, há diferentes padrões de citocinas entre os diferentes fenótipos e endotipos da
asma (16, 17, 18). As citocinas incluem as interleucinas (IL), fator de necrose tumoral (TNF)
e interferons (IFN). As IL estão envolvidas na
comunicação entre células, atuando em diferentes células-alvo com efeitos específicos sobre cada uma. São identificadas por números:
IL-1, IL-2, por exemplo. Suas ações incluem o
reconhecimento de antígenos estranhos por
células T; a amplificação da proliferação de
células T ativadas; a atração de macrófagos e
a identificação de mecanismos efetivos para
fagocitose de microrganismos. O processo
de ativação e recrutamento celular para as
vias aéreas asmáticas também envolve outro
grupo de proteínas, as quimiocinas (proteínas
com 8-10KDa), que regulam o trânsito das células inflamatórias em direção ao pulmão (19).
Na maior parte das vezes, a alergia está
associada à asma. Sintomas asmáticos são desencadeados por alérgenos inaláveis em 75%-80% dos asmáticos (20). O mecanismo inflamatório da asma alérgica costuma ser uma
reação de hipersensibilidade do tipo 1, caracterizada por inflamação, obstrução recorrente do fluxo aéreo, hipersecreção de muco e
hiper-responsividade brônquica (HRB). Nesse
mecanismo, as principais células envolvidas
são os linfócitos T CD4+, mastócitos, macrófagos, linfócitos B e eosinófilos (21). Sob a ação
das IL-25, 33 e da linfopoetina estromal tímica (TSLP), os linfócitos T CD4+ diferenciam-se em linfócitos Th2. A partir daí, citocinas
moduladas pelo linfócito Th2 (IL-4, IL-5, IL-9
e IL-13) amplificam a resposta inflamatória, ativando e recrutando células inflamatórias para
o território pulmonar (22). Os mastócitos são
as principais células determinantes da reação
imediata observada na asma. Após uma exposição inicial, alérgenos e antígenos patogênicos promovem a degranulação dos mastóJBM

MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
citos em poucos minutos, através de um mecanismo IgE-dependente, levando à liberação
de moléculas pró-inflamatórias pré-formadas:
histamina, proteases, heparina e TNF, dentre
outras. Desencadeiam, também, um processo
de geração e liberação de novos mediadores
inflamatórios (leucotrienos, fator ativador de
plaquetas e prostaglandinas, principalmente),
responsáveis por nova reação em poucas horas (reação tardia). Os mediadores e citocinas
liberados por esse conjunto celular ativam basófilos, eosinófilos, linfócitos T, macrófagos,
neutrófilos e outras células imunes no tecido
do trato respiratório, amplificando o processo
e causando as alterações características dos
asmáticos: edema inflamatório, contração da
musculatura lisa peribrônquica e hipersecreção de muco.
Historicamente, acreditava-se que o processo inflamatório da asma era coordenado
apenas pelo linfócito Th2, como descrito
acima. Entretanto, estudos recentes demonstram que os linfócitos Th1, Th9 e Th17 (23,
24, 25) também podem coordenar o processo inflamatório das vias aéreas na asma.
Nesses casos, surge uma forma clínica mais
grave e não responsiva aos corticosteroides,
na qual o neutrófilo predomina entre as células efetoras. O perfil neutrofílico também
está associado às exacerbações causadas por
infecções virais ou bacterianas, assim como
às formas fatais da asma (26).
O eosinófilo é uma célula intimamente
ligada às disfunções observadas na asma,
definindo um fenótipo (27). Após exposto a
sinais inflamatórios, invade o trato respiratório e, secretando uma grande variedade de
proteínas catiônicas, mediadores lipídicos,
citocinas e quimiocinas, age como mediador
importante das funções efetoras e respostas
imunes modulando células T, células dendríticas e mastócitos (28).
O epitélio brônquico (EB) constitui interface entre o ambiente atmosférico e nosso
organismo. Na asma, sua função como barreira protetora está prejudicada, permitindo
o ingresso de alérgenos e poluentes. Entretanto, o EB é mais do que uma barreira física, pois desempenha também importantes
funções imunogênicas e imunorregulatórias,
produzindo e liberando IL-25, IL-33 e TSLP,
em resposta a estímulos ambientais, microbianos ou por lesão celular. Essas citocinas
Pontos-chave:
> Na maior parte das vezes,
a alergia está associada à
asma. Sintomas asmáticos são
desencadeados por alérgenos
inaláveis em 75%-80% dos
asmáticos;
> As principais células
envolvidas no mecanismo
inflamatório da asma alérgica
são os linfócitos T CD4+,
mastócitos, macrófagos,
linfócitos B e eosinófilos;
> Estudos recentes
demonstram que os linfócitos
Th1, Th9 e Th17 também
podem coordenar o processo
inflamatório das vias aéreas na
asma.
47
Asma
A arte do encontro
O diagnóstico de
asma deve sempre ser
considerado em pacientes
com tosse recorrente,
sibilos, dispneia e
sensação de opressão
torácica. Quando esses
sintomas são variáveis,
ocorrem depois da
exposição a alérgenos ou
irritantes inaláveis, pioram
à noite e melhoram com
medicamentos usados
no tratamento da asma,
o diagnóstico é muito
provável.
Pontos-chave:
> Mudanças estruturais nas
paredes da via aérea são uma
das características responsáveis
pela cronicidade da asma;
> As CMLs e os FBs
subepiteliais têm papel ativo
na fisiopatologia da asma,
interagindo entre eles e
com células inflamatórias e
mesenquimais;
> O linfócito T natural killer
(TNK) também vem sendo
visto como mediador potencial
da inflamação asmática. Ele
representa uma ponte entre
a imunidade natural e a
adquirida.
48
induzem e promovem resposta inflamatória
do tipo Th2, além de causarem remodelamento (alteração definitiva da arquitetura
brônquica) e alterações patológicas da parede da via aérea. Dessa forma, o epitélio da
via aérea não pode ser visto apenas como
uma barreira estrutural, e sim como um agente ativo na patogênese da asma e de outras
doenças alérgicas (29).
A observação de mudanças estruturais
marcantes na parede da via aérea (remodelamento) é uma das características responsáveis pela cronicidade da asma. Essas alterações incluem a deposição de proteínas de
matriz extracelular e o aumento do número
de células musculares lisas (CMLs) e fibroblastos (FBs) subepiteliais. Ambas as células
produzem diversas citocinas, fatores de crescimento e mediadores fibrogênicos; promovem a proliferação, migração e liberação de
proteínas de matriz extracelular; modulam
metaloproteinases de matriz e seus inibidores teciduais. Além dessas ações ligadas ao
remodelamento das vias aéreas, aparentemente as CMLs e os FBs subepiteliais têm
papel ativo na fisiopatologia da asma, interagindo entre eles e com células inflamatórias e
mesenquimais (30). Na verdade, nesse complexo conjunto de mecanismos inflamatórios
independentes, mas interativos, todas as
células constitucionais e funcionais do trato
respiratório têm ação ativa (31).
Aparentemente, toda a orquestração
celular envolvida na asma tem o linfócito T
como regente, o que torna flagrante a diversidade de mecanismos inflamatórios da
asma. Como mencionado anteriormente,
acreditava-se que apenas o desequilíbrio
entre as respostas Th2 e Th1, com predominância da primeira, estava envolvido na patogenia da asma. Posteriormente, os linfócitos
Th1, Th9 e Th17 foram identificados como
reguladores importantes das reações inflamatórias observadas na asma. Mais ainda,
recentemente foi demonstrado que o desequilíbrio entre os linfócitos Th17 e linfócito T
regulatório (Treg) também desempenha um
papel importante na patogenia da asma (32).
O Treg é um importante agente mediador
da tolerância alérgeno-específica através da
secreção da IL-10, uma citocina supressiva
(33). O linfócito T natural killer (TNK) também
vem sendo visto como mediador potencial
da inflamação asmática. Ele representa uma
ponte entre a imunidade natural e a adquirida. A partir de sua função imunorregulatória,
tem importante papel protetor em algumas
doenças (infecções, câncer, por exemplo) e
papel patogênico em outras, como a asma,
a DPOC e a pneumonite de hipersensibilidade (34). Particularmente na asma, vem sendo
ligado ao fenótipo de asma predominantemente neutrofílico (35). Estudos recentes demonstram que a resposta Th1 também tem
papel importante na gênese do outro mecanismo inflamatório presente na via aérea de
parte dos asmáticos (23, 36). Os mediadores produzidos em resposta a essas células,
particularmente o IL-17 e o fator de necrose
tumoral alfa (TNF-a), têm sido implicados na
modalidade neutrofílica da asma grave e nas
exacerbações (37).
Diagnosticando a asma
Na maior parte das vezes, fazer o diagnóstico de asma pode ser muito fácil; em raras situações, pode ser extremamente difícil.
Por exemplo, fazer o diagnóstico diferencial
com doença pulmonar obstrutiva crônica
(DPOC) em um adulto atópico, fumante,
sem antecedentes pessoais, mas com antecedentes familiares de asma, que começa a
apresentar quadros repetidos de dispneia e
sibilos, com pouca resposta ao emprego de
broncodilatadores pode ser difícil. O diagnóstico de asma envolve anamnese detalhada, exame físico e medidas objetivas da
função pulmonar. Em situações particulares,
pode ser necessário fazer testes de broncoprovocação (38).
O diagnóstico de asma deve sempre ser
considerado em pacientes com tosse recorrente, sibilos, dispneia e sensação de opressão torácica. Quando esses sintomas são variáveis, ocorrem depois da exposição a alérgenos ou irritantes inaláveis, pioram à noite
e melhoram com medicamentos usados no
tratamento da asma, o diagnóstico é muito
provável. O diagnóstico diferencial deve ser
feito primordialmente com DPOC (em especial em adultos fumantes), bronquite, sinusite
crônica, refluxo gastroesofageano, infecções
respiratórias recorrentes e doença cardíaca.
A história familiar positiva para asma
ou outras doenças atópicas, e/ou a história
pessoal de doença atópica ou rinite alérgiJBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
Asma
A arte do encontro
ca reforçam a possibilidade do diagnóstico.
Durante a anamnese, é importante identificar
os agentes desencadeantes de sintomas (gatilhos). Habitualmente, eles incluem poeira
doméstica (ácaros), mofo, polens, exercício,
mudanças climáticas e cheiros fortes. Os testes alérgicos cutâneos também podem ser
úteis, identificando possíveis gatilhos. O exame físico pode ser normal quando o doente
não está sintomático no momento da consulta. Na presença de sintomas, podem ser
ouvidos sibilos na ausculta pulmonar.
A espirometria é a medida objetiva preferida para avaliar a obstrução reversível ao fluxo aéreo, quando feita pré e pós-inalação de
um broncodilatador inalatório de ação rápida. Deve ser feita apenas por profissional especificamente capacitado e seguir protocolo
padrão. O diagnóstico de asma é confirmado
quando o volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) aumenta pelo menos
12% ou 200ml 15-20 minutos depois da inalação do broncodilatador. Dada a variabilidade da asma, nem sempre a espirometria
estará alterada. Quando a prova de função
pulmonar está normal, mas a história clínica
sugere o diagnóstico de asma, medidas da
função pulmonar usando broncoconstritores
inalados (histamina ou metacolina) podem
ajudar a confirmar o diagnóstico. Esses testes de provocação brônquica só podem ser
feitos por técnicos capacitados em serviços
equipados para manejar as descompensações ventilatórias, que podem ser graves.
Modernamente, marcadores não invasivos da inflamação das vias aéreas vêm sendo
avaliados para o diagnóstico e monitoramento da asma. A contagem de eosinófilos no
escarro e a fração exalada de óxido nítrico
(FeNO) são dois promissores exemplos de
biomarcadores úteis no diagnóstico e acompanhamento da asma.
Uma situação particular é a da asma
ocupacional — forma de asma induzida por
exposição a poeiras, vapores ou fumaças no
ambiente de trabalho, com ou sem asma preexistente. Os fatores desencadeantes desse
tipo de asma são múltiplos e envolvem diferentes mecanismos. Se confirmada a presença da asma, o diagnóstico baseia-se na história detalhada e acurada sobre o ambiente de
trabalho e na documentação de associação
temporal entre os sinais/sintomas e a expoJBM
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sição no local de trabalho. O manejo do doente é centrado na prescrição da terapia habitual da asma em conjunto com estratégias
preventivas, tais como prevenção dos desencadeantes ambientais, restrições no trabalho
e equipamento de proteção individual (39).
Tratando o asmático
Inicialmente, é importante ter claro que
o tratamento do asmático pressupõe mais
do que a prescrição de medicamentos. As
disfunções, sintomatologia, evolução clínica,
gravidade, riscos de exacerbações, resposta
terapêutica e progressão são produto de um
emaranhado complexo envolvendo diferentes graus de fatores genéticos, comportamento celular alterado, citocinas, mediadores, uma ampla gama de alérgenos, irritantes
ambientais, viroses, fármacos, estresse oxidativo e fatores emocionais. Dessa forma, o tratamento do asmático deve ser personalizado
e compreender ações preventivas da exposição ambiental e ações educativas que o
capacitem a tomar a iniciativa necessária, dependendo da situação presente. Na chamada asma atópica, a prevenção de alérgenos
desencadeantes de sintomas é componente
fundamental do tratamento. Entretanto, deve
ser lembrado que ninguém vive numa redoma, num ambiente isento de alérgenos, de
exposições fortuitas a poluentes ambientais
e/ou vírus, sem mudanças climáticas bruscas.
Por isso, o esclarecimento ao asmático sobre
as ações necessárias na vigência de exacerbações é outro componente fundamental.
Ao mesmo tempo, esse processo educativo
deve compreender estímulos para assegurar
a adesão ao tratamento, que geralmente é
longo; por vezes, por toda a vida. Esse processo educacional, tão importante quanto o
uso de medicamentos, deve ser adaptado a
cada doente. Ele tem que ser visto como um
caminho de mão dupla que envolve o emissor, a mensagem e o receptor. A mensagem
tem que ser clara, objetiva e compreensível
pelo receptor. O médico deve entender que
ele não é somente o emissor desse processo.
Deve ser capaz de ouvir e compreender os sinais emitidos por seu paciente. Diante de um
problema como a asma, que interfere com o
cotidiano, com a qualidade de vida, com a
escolha profissional, devem ser esclarecidos,
desde o início, os limites e a duração prevista
Os medicamentos
empregados no
tratamento da asma
podem ser administrados
pelas vias inalatória,
oral ou parenteral. A via
preferencial é a inalatória,
que possibilita atingir
concentrações locais mais
altas com menores doses.
O início da ação é rápido
e os efeitos sistêmicos,
na maior parte das vezes,
mínimos e irrelevantes.
Pontos-chave:
> O tratamento do asmático
pressupõe mais do que a
prescrição de medicamentos;
> Deve ser personalizado
e compreender ações
preventivas da exposição
ambiental e ações educativas
que o capacitem a tomar
a iniciativa necessária,
dependendo da situação
presente;
> O médico deve entender
que ele não é somente o
emissor desse processo.
Deve ser capaz de ouvir
e compreender os sinais
emitidos por seu paciente.
49
Asma
A arte do encontro
Pontos-chave:
> A compreensão da grande
variedade de mecanismos
etiopatogênicos e
apresentações clínicas sugere
uma abordagem terapêutica
personalizada;
> Os pilares básicos
do tratamento são as
ações anti-inflamatória e
broncodilatadora;
> A via preferencial é a
inalatória; por ela, a medicação
é colocada diretamente
nas vias aéreas, atingindo
concentrações locais mais altas
com menores doses.
50
do tratamento, as evoluções clínicas potenciais e os riscos advindos da terapia medicamentosa. Infelizmente, a realidade da maior
parte dos ambientes de trabalho na área da
Saúde dificulta as ações educativas; como
resultado, o asmático é, quase sempre, um
turista de consultórios médicos. Desinformado, suas expectativas nunca são alcançadas e
ele está sempre buscando outro médico que
o livre da carga imposta pela asma.
Por muito tempo, buscou-se padronizar
o tratamento do asmático, visando torná-lo
efetivo a todos os doentes. Recentemente,
com a compreensão da grande variedade
de mecanismos etiopatogênicos e apresentações clínicas, ficou claro que a abordagem
terapêutica deve ser personalizada, embora com pilares básicos — anti-inflamatório
e broncodilatador — que têm como alvo
o processo inflamatório das vias aéreas e a
contratura da musculatura lisa peribrônquica. Na medida em que a compreensão dos
mecanismos inflamatórios vai aumentando,
novas células, citocinas e mediadores vão
sendo incorporados nos processos patogênicos identificados e a importância dos fatores
farmacogenéticos vem sendo ampliada, possibilitando um leque de opções terapêuticas
que vem sendo estudado.
Os medicamentos empregados no tratamento da asma podem ser administrados
pelas vias inalatória, oral ou parenteral (injeções subcutânea, intramuscular ou intravenosa). A via preferencial é a inalatória; por ela,
a medicação é colocada diretamente nas vias
aéreas, atingindo concentrações locais mais
altas com menores doses. O início da ação é
rápido e os efeitos sistêmicos, na maior parte
das vezes, são mínimos e irrelevantes.
A seguir são listados os medicamentos
habitualmente usados no tratamento do asmático.
Glicocorticosteroides inalatórios (GCSis)
— Os GCSis são os anti-inflamatórios mais
efetivos para o tratamento da asma. Reduzem os sintomas, melhoram a qualidade de
vida e a função pulmonar, reduzem a HRB,
a frequência e gravidade das exacerbações
e a mortalidade por asma (7, 40). Entretanto, eles não curam a asma e, quando interrompidos, a deterioração do controle clínico
costuma ocorrer após algum tempo (41). A
ação anti-inflamatória dos glicocorticosteroides (GCSs) se dá através de diferentes
mecanismos moleculares, fazendo desse
fármaco o mais completo, potente e fisiológico anti-inflamatório. Os efeitos indesejáveis dos GCSis não costumam ocorrer em
doses terapêuticas (400mcg de budesonida
diária ou equivalente). Os efeitos colaterais
sistêmicos que podem surgir após longos
períodos com doses altas incluem lesões
cutâneas, supressão de adrenal e menor
densidade mineral óssea.
Beta 2 adrenérgicos (b2) — Dividem-se em
b2 de ação curta (SABAs), b2 de ação prolongada (LABAs) e ultra b2. Os primeiros têm
início de ação em poucos minutos e seu
efeito dura quatro a seis horas. Incluem salbutamol, fenoterol e terbutalina e estão indicados para o resgate dos episódios agudos de broncoespasmo. Seu efeito se dá,
principalmente, relaxando a musculatura
lisa peribrônquica (42). Os LABAs (formoterol e salmeterol) têm tempo de ação maior
(12 horas). Nunca devem ser usados como
monoterapia na asma, devendo sempre estar combinados aos GCSis. Deve-se empregar a associação LABA-GCSi quando doses
médias de GCSis isolados são insuficientes
para controlar a asma (43). Finalmente, os
ultra b2 (o indacaterol é o único no mercado
no momento) têm tempo de ação de 24 horas, possibilitando ser usados um dose única diária. Do mesmo modo que os LABAs,
só devem ser usados associados aos GCSs
(44). Os efeitos indesejáveis dos b2 estão ligados à superdosagem e à absorção oral
da medicação inalada (a lavagem da boca
após cada inalação reduz sua frequência).
São resultantes das ações extrapulmonares
desse grupamento medicamentoso e costumam incluir taquicardia e alterações de
ritmo e tremor de extremidades (45).
Anticolinérgicos (ACs) — Na asma, os ACs
têm efeito broncodilatador menos potente
que os b2 e não acrescentam efeito broncodilatador aos b2 em dose plena. Em situações particulares, como quando o componente colinérgico do broncoespasmo é
importante, eles podem agregar benefício.
Os efeitos indesejáveis incluem boca seca e
sabor amargo (46).
JBM
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Asma
A arte do encontro
Metilxantinas (aminofilina e teofilina) — As
metilxantinas são consideradas medicamentos de segunda linha no tratamento da asma,
já que seu efeito broncodilatador é inferior
ao dos beta 2 agonistas e o risco potencial
de efeitos tóxicos é elevado. A proximidade
entre os níveis terapêutico (que é variável e
influenciado por diferentes fatores: tabagismo, dieta, uso concomitante de outros medicamentos e comorbidades, principalmente)
e tóxico é um dos principais inconvenientes
de seu uso. Por muito tempo acreditou-se
que sua ação se resumia ao efeito relaxante
na musculatura lisa peribrônquica. Posteriormente, foi demonstrado que mecanismos
adicionais poderiam ser responsáveis pelos
efeitos terapêuticos desse grupo medicamentoso. Elas não são recomendadas para o
tratamento das exacerbações da asma, exceto quando houver obstáculos para o uso de
beta 2 agonistas e corticosteroides. Sua adição a um esquema contendo esses últimos
não traz vantagens, a não ser em situações
particulares (fadiga da musculatura respiratória) (47). Embora não seja recomendado usar
metilxantina no tratamento regular, inegavelmente pode ser útil adicioná-la ao corticosteroide inalatório visando reduzir a dose desse
último (48).
Antagonistas de receptores de leucotrienos
(ARLTs) — Os ARLTs têm pequeno efeito
broncodilatador, reduzem sintomas (inclusive
a tosse), inflamação das vias aéreas e exacerbações, e melhoram a função pulmonar. Podem ser particularmente úteis em situações
específicas, como na asma induzida por aspirina ou quando a corticosteroidofobia for um
impedimento ao tratamento com GCSis. São
menos efetivos que os b2 quando associados
aos GCSis (49). Normalmente a incidência de
efeitos indesejáveis é baixa, mas já foram associados à toxicidade hepática. Não devem
ser usados isoladamente no tratamento do
asmático.
Anti-IgE — O anticorpo monoclonal anti-IgE
é uma opção terapêutica para pacientes com
níveis elevados de IgE e asma grave. Melhora o controle da asma reduzindo sintomas e
exacerbações; permite, também, reduzir a
dose de GCSs necessária para controlar o
paciente (50).
JBM
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Resumindo, há evidências irrefutáveis de
que adicionar um LABA ao GCSi é a melhor
opção terapêutica para o asmático sintomático. Os efeitos complementares dessa associação são vantajosos e há sinergismo entre
os dois fármacos, de modo que os GCSs amplificam o efeito dos LABAs e esses potencializam o dos GCSs. A associação do LABA ao
GCSi num esquema diário melhora o escore
de sintomas e a função pulmonar, reduz a
asma noturna, o emprego de medicação de
resgate e o número de exacerbações, possibilitando atingir o controle da asma em mais
pacientes e em menos tempo. Isso, usando
menor dose de GCS do que aquela necessária se ele fosse usado de forma isolada (51).
Recentemente, com a política de fundamentar as diretrizes de tratamento em evidências científicas, virtualmente, as cromonas e o cetotifeno desapareceram do arsenal
terapêutico da asma. Novos fármacos, em
especial antagonistas de citocinas e de mediadores, vêm sendo testados. Entretanto,
excepcionalmente, estudos clínicos demonstram grande valor de um ou outro. No momento, parece que a associação GCSi/b2LD
vai permanecer como a abordagem terapêutica mais efetiva.
O objetivo do tratamento é atingir o controle da asma, o que inclui atingir o controle sintomático no cotidiano e reduzir o risco
futuro (medido pela ausência de crises), prevenção da deterioração acelerada da função
pulmonar ao longo do tempo e evitar os
efeitos indesejáveis da medicação. Segundo
as diretrizes nacionais e internacionais (7, 52,
53), a organização do tratamento prevê cinco
etapas, de acordo com a frequência e intensidade dos sintomas e disfunções, gravidade e
grau de controle da asma. Na etapa 1 (asma
leve e ocasional), broncodilatador inalatório
beta 2 agonista de ação rápida (b2AR), quando necessário. Nas quatro etapas seguintes,
o tratamento inclui um corticosteroide inalatório (CI), com dose variando de baixa a alta,
associado a beta 2 agonista de ação prolongada (b2AP), até a etapa 5, na qual essa combinação (CI + b2AP) está associada ao corticosteroide oral. Gradativamente, na medida
em que o controle vai sendo atingido, a medicação vai sendo reduzida. Caso contrário, o
tratamento é incrementado na etapa seguinte. Entretanto, há poucos dados orientando
Pontos-chave:
> Beta 2 adrenérgicos de ação
prolongada (LABA) adicionados
aos glicocorticosteroides
inalatórios (GCSi) são a melhor
opção terapêutica para o
asmático sintomático;
> A associação do LABA ao
GCSi num esquema diário
melhora o escore de sintomas
e a função pulmonar, reduz
a asma noturna, o emprego
de medicação de resgate e o
número de exacerbações;
> O objetivo do tratamento
é atingir o controle da asma,
o que inclui atingir o controle
sintomático no cotidiano e
reduzir o risco futuro (medido
pela ausência de crises).
51
Asma
A arte do encontro
Pontos-chave:
> A crise de asma é o
momento de maior risco de
morte para o doente. Na
maior parte das vezes, ela
se apresenta de branda a
moderada; quando grave,
pode ser fatal;
> A avaliação deve ser rápida,
objetiva e focar os sinais de
gravidade;
> A presença de sinais ou
informações características
de crises graves deve ser
sempre buscada na chegada
do asmático no Serviço de
Emergência.
52
a redução gradual da medicação, deixando
muitas dúvidas sobre a maneira ideal de fazê-lo. As diretrizes internacionais recomendam
reduzir a dose de GCSis em 25%-50% a cada
três meses, até se atingir a dose mínima que
mantenha o doente controlado. Não há, no
entanto, qualquer estudo que assegure nível
de evidência A, B ou C para essa recomendação, fazendo do julgamento clínico individual o instrumento mais usado para reduzir
ou mesmo interromper a medicação. Sabe-se, apenas, que interromper o GCSi pode
fazer com que a asma recidive em parte dos
asmáticos totalmente controlados por meses
a anos.
A crise de asma é o momento de maior
risco de morte para o doente. Na maior parte das vezes, ela se apresenta de branda a
moderada; quando grave, pode ser fatal.
O tempo é o fator de maior importância no
atendimento de um asmático exacerbado.
A avaliação deve ser rápida, objetiva e focar os sinais de gravidade. Perder tempo na
definição e implementação da abordagem
terapêutica pode significar a morte para o
asmático. A presença de sinais ou informações características de crises graves deve ser
sempre buscada na chegada do asmático no
Serviço de Emergência.
Habitualmente, a principal queixa é representada por graus variáveis de dispneia.
Deve-se ressaltar que, conforme antigo
aforisma, “nem tudo que sibila é asma” (alterações nas vias aéreas superiores, corpo
estranho, cardiopatias, tromboembolismo e
outras condições podem mimetizar uma crise de asma) e que nem sempre o sibilo está
presente (obstruções graves nas quais o fluxo
aéreo está muito reduzido). Se houver informações sobre intubação e ventilação mecânica em crises anteriores, de acidose respiratória sem necessidade de intubação ou
de hospitalização por asma no ano anterior,
o doente deve ser considerado candidato à
terapia intensiva.
Estes sinais podem refletir extrema gravidade ao exame clínico:
• frequência cardíaca superior a 120bpm
(> 140bpm na criança);
• frequência respiratória maior que 30/minuto;
• pulso paradoxal maior que 12mmHg (queda
superior a 12mmHg na pressão arterial sistólica durante a inspiração);
• incapacidade de falar ou fala monossilábica;
• uso acentuado da musculatura respiratória;
• sudorese;
• tórax silencioso;
• cianose;
• alteração do sensório.
Sempre que possível, deve-se tentar fazer
uma medida objetiva do grau da obstrução.
Na prática, a medida do pico de fluxo expiratório (PFE) é a mais usada. Valores inferiores
a 33% do esperado são indicativos de crise
grave. A saturação do oxigênio medida pela
oximetria digital (SaO2) também é uma medida rápida e simples que traz informações importantes. Quando menor que 92% em adultos, ou abaixo de 95% em crianças, há risco de
evolução para insuficiência respiratória.
A abordagem terapêutica deve ser iniciada logo, e é modulada pela gravidade
da crise. Os objetivos do tratamento da exacerbação incluem manter a SaO2 em níveis
seguros, aliviar a obstrução ao fluxo aéreo,
reduzir a inflamação das vias aéreas e reduzir
o risco futuro de novas exacerbações. A oxigenoterapia deve ser iniciada sempre que a
SaO2 estiver igual ou abaixo de 92%. A administração do oxigênio deve ser feita através
de cânula nasal com fluxo de 2 a 3L/min. Nos
casos mais graves, devem-se utilizar fluxos
mais elevados: 4-5L/min. Os broncodilatadores são os medicamentos de primeira linha,
devendo-se dar preferência aos beta 2 agonistas (b2) inalatórios, seja por aerossol dosificador (spray) ou por nebulizador mecânico.
Nessa última opção, é melhor usar oxigênio
do que ar comprimido para gerar o aerossol.
A dose do b2 é objeto de divergência na
literatura, mas há conformidade na prescrição do spray de salbutamol (100mcg/jato)
em três doses de quatro a oito jatos a cada
20 minutos, num total de três doses, para
adultos. Esse esquema deve ser repetido
de hora em hora, até a melhora clínica e/ou
funcional. Outra opção seria o salbutamol
(ou fenoterol) em solução para nebulização
(5mg/ml) na dose de 2,5 a 5mg, do mesmo
modo que o spray. O uso intravenoso só se
justifica em situações particulares. Os anticolinérgicos são broncodilatadores menos poJBM
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Asma
A arte do encontro
tentes e com início de ação mais lento que
os b2. Em algumas situações (predominância
do componente colinérgico do broncoespasmo) podem ser úteis, adicionando valor ao
esquema terapêutico. A dose do brometo de
ipratrópio (BI) em spray é de 4-8 jatos a cada
20 minutos por uma hora, seguida de 4-8
jatos a cada 2-4 horas, até a melhora clínica
e/ou funcional. Se usada a solução para inalação (0,25mg/ml), a dose é de 0,25 a 0,5mg
nebulizado a cada 20 minutos, por uma hora,
e, após, a cada 2-4 horas, até a melhora clínica e/ou funcional. Os GCSs são essenciais
no tratamento da crise de asma e sua ausência pode representar fator de risco de morte
na crise. A via sistêmica (oral ou parenteral)
deve ser a preferida, embora haja evidências
de que a via inalatória pode trazer vantagens
quando usada associada. Quando usados
pela via oral, a dose preconizada é de 1-2mg
por quilo de peso de prednisona ou prednisolona até de 6/6 horas. A redução da dose será
ditada pela resposta clínica. O uso de GCSs
reduz o risco de hospitalização e melhora a
função pulmonar. Em crises muito graves, com
obstrução significativa (PFE < 25% do previsto), o sulfato de magnésio pode ser útil, na
dose de 2g diluídos em 50ml de soro fisiológico, podendo ser repetido em 20 minutos.
A aminofilina intravenosa deve ser reservada
para situações particulares, já que seu efeito
broncodilatador é inferior ao dos b2 e a taxa
de efeitos adversos, potencialmente perigosos, é elevada. O emprego de heliox (mistura
de hélio e oxigênio) é passível de discussão,
embora seja considerado uma alternativa para
postergar a exaustão respiratória. Intubação
endotraqueal e ventilação mecânica estão
indicadas se persistir o quadro de exaustão
e/ou de alteração do estado mental, apesar
do uso de doses plenas de broncodilatador.
Se o tratamento na Emergência não reverter
a sintomatologia e a função pulmonar estiver
abaixo de 50% do esperado, o asmático é
candidato à hospitalização. A internação em
terapia intensiva está indicada se houver:
• deterioração progressiva, apesar do tratamento pleno;
• hipoxemia (SaO2 < 90%) e/ou hipercapnia
(PaCO2 > 45mmHg), apesar da oxigenoterapia;
• confusão mental, sonolência ou inconsciência;
JBM
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• parada respiratória ou cardiorrespiratória;
• necessidade de ventilação mecânica.
A crise de asma deve ser vista como um
aviso e uma oportunidade para rever a abordagem terapêutica. Ela pode representar o
resultado de falha na adesão ao tratamento
regular, de esquema medicamentoso inadequado, de comportamento indevido do paciente que se expôs a alérgenos, ou mesmo
uma fatalidade. Nas três primeiras situações,
o momento pós-crise é a oportunidade ideal
para rever o tratamento ou reforçar a adesão ao mesmo. Após a alta, é fundamental
reorganizar o esquema terapêutico, visando
evitar recidivas. Por isso, é inadmissível não
prescrever glicocorticosteroide oral (CO) na
dose de 40-60mg (adultos), por um prazo de
7-15 dias após a alta. Se usado apenas durante esse período, não há necessidade de
redução gradual da dose.
Uma situação particular é a da asma grave, refratária ao tratamento. Essa situação,
que acomete uma parcela pequena dos doentes (~10%), é caracterizada pela presença
de sintomas asmáticos persistentes apesar
do uso adequado da medicação, incluindo
múltiplas doses de CO. Esses são os asmáticos com altas taxas de hospitalização e mortalidade, geralmente portadores de comorbidades — que costumam ser responsabilizadas pela dificuldade no controle da asma.
Habitualmente, seu tratamento inclui CO e
anticorpo monoclonal anti-IgE. No momento, alguns fármacos não convencionais vêm
sendo testados para o tratamento desses
doentes.
Antibióticos — Os macrolídeos (claritromicina
e azitromicina) têm efeito anti-inflamatório, reduzindo a IL-8 e a neutrofilia. Há indícios de
que infecções por atípicos (Chlamydia pneumoniae e Mycoplasma pneumoniae) estão
associadas a respostas inflamatórias aumentadas e à asma (54). Embora ainda não esteja
formalmente recomendado nas diretrizes da
asma, estudos demonstram que a adição de
um macrolídeo aumenta a qualidade de vida
e a função pulmonar basal, além de reduzir os
sintomas noturnos e a contagem de neutrófilos, particularmente no asmático grave. Entretanto, deve ser ponderado o risco de desenvolvimento de resistência bacteriana (55).
Pontos-chave:
> Os GCSs são essenciais no
tratamento da crise de asma e
sua ausência pode representar
fator de risco de morte na
crise;
> Quando usados pela via
oral, a dose preconizada é de
1-2mg por quilo de peso de
prednisona ou prednisolona
até de 6/6 horas. A redução da
dose será ditada pela resposta
clínica;
> Se o tratamento na
Emergência não reverter a
sintomatologia e a função
pulmonar estiver abaixo de
50% do esperado, o asmático
é candidato à hospitalização.
53
Asma
A arte do encontro
Antifúngicos — A aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA) é uma complicação
frequente na asma grave. O emprego de
cetoconazol ou itraconazol em asmáticos
graves sensibilizados por fungos permite a
diminuição da dose de CO e leva à redução
dos indicadores inflamatórios, da frequência
das exacerbações e à melhora da função pulmonar (56).
Imunomoduladores — 1. Metotrexato: antagonista do ácido fólico com efeitos antineoplásico, imunossupressor e anti-inflamatório,
é um fármaco muito estudado no tratamento
da asma grave. O mecanismo de ação ainda não está claro, mas há indicativos de que
inibiria neutrófilos e potencializaria a sensibilidade dos monócitos aos GCS. Tem valor
na asma grave, pois possibilita a redução das
doses de CO, mas seus efeitos indesejáveis
devem ser ponderados. 2. Ciclosporina: metabólito fúngico, inibe a ativação da célula T
CD4+, permitindo redução discreta da dose
de CO e pequena melhora da função pulmonar. Como seu uso costuma estar associado à
elevação da pressão arterial e do nível sérico
de creatinina, só deve ser usada por especialistas capacitados.
Referências
Endereço para
correspondência:
Hisbello S. Campos
Rua do Catete, 311/
Sala 708 — Catete
22220-001
Rio de Janeiro-RJ
[email protected]
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Biológicos — A degranulação de basófilos,
mastócitos e eosinófilos desempenha papel
central na asma alérgica. O anticorpo monoclonal recombinante humanizado (omalizumabe) liga-se na molécula de IgE, impedindo
sua ligação nos mastócitos e consequente liberação de mediadores patogênicos. Reduz,
também, os receptores de IgE em basófilos
circulantes, mastócitos e em células apresentadoras de antígenos. Seu emprego em asmáticos alérgicos graves reduz a dose de CO
e o número de exacerbações, melhorando a
qualidade de vida.
Conclusão
A asma envolve múltiplas formas clínicas
com mecanismos inflamatórios distintos. Esses mecanismos, modulados por diferentes
linfócitos T e gerando orquestrações celulares diversas, podem coexistir e interagir, promovendo uma grande diversidade de apresentações clínicas e respostas terapêuticas.
Por essa razão, seu tratamento é diversificado e deve ser personalizado. Na medida em
que a compreensão dos mecanismos patogênicos evoluiu, novas opções terapêuticas
são imaginadas e testadas e o arsenal terapêutico vai sendo aumentado.
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20. HOLGATE, S.T. — Pathogenesis of asthma. Clin. Exp. Allergy,
38(6): 872-97, 2008.
21. MADONE, A.M. & LAPRISE, C. — Immunological and genetic aspects of asthma and allergy. J. Asthma Allergy, 3:
107-21, 2010.
Obs.: As 36 referências restantes que compõem este artigo se
encontram na Redação à disposição dos interessados.
JBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
panorama internacional
Profa. Dra. Andréa F. Mendes
Acalásia
N. Engl. J. Med.
Infecção do trato urinário não
complicada
N. Engl. J. Med.
Paciente do sexo feminino, 30 anos
de idade, previamente saudável e sem comorbidades, busca atendimento médico
referindo ter iniciado há dois dias quadro
progressivo de disúria, urgência e frequência urinárias. Nega febre, calafrios, dor ou
sintomas ginecológicos. Refere ser esse
o terceiro episódio no último ano, tendo
apresentado quadro semelhante há cerca
de um mês, com diagnóstico presuntivo
de cistite. Na época, fez uso de sulfametoxazol e trimetoprima durante três dias,
havendo resolução. Qual deve ser a conduta adotada? É essa pergunta que Hooton, T.M. busca responder, ao longo do
artigo “Uncomplicated Urinary Tract Infection”, publicado em 15 de março de 2012
no periódico The New England Journal of
Medicine (NEJM 2012; 366:1028-37).
A infecção do trato urinário (ITU) lidera a lista dos quadros infecciosos que
levam pacientes a buscar atendimento
ambulatorial, sendo a cistite aguda a forma mais comum, seguida da pielonefrite
aguda. Acomete aproximadamente 12%
das pacientes e estima-se que cerca de
metade das mulheres já tenha apresentado ao menos um episódio de ITU aos 30
anos de idade; em 25% delas a infecção
recorre em um período de até seis meses.
Quando tais episódios de ITU ocorrem
em mulheres previamente saudáveis, não
gestantes, sem história de anormalidade
anatômica do trato urinário e no período pré-menopausa a ITU é classificada
como não complicada. O agente etiológico mais comum é a Escherichia coli,
responsável por aproximadamente 75%-95% dos casos. Há fatores considerados
de risco, a exemplo de atividade sexual,
uso de espermicidas, episódios prévios e
relato de parente de primeiro grau com
quadro de ITU. Do ponto de vista clínico,
a cistite aguda caracteriza-se por disúria,
que pode acompanhar-se de frequência,
JBM
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urgência, dor suprapúbica ou hematúria.
Febre alta com calafrios, dor em flanco,
náuseas e vômitos devem sugerir pielonefrite aguda. Cabe ressaltar a importância
do diagnóstico diferencial com infecções
ginecológicas. Assim, é fundamental indagar sobre leucorreia ou desconforto vaginal; quando ausentes, em paciente com
disúria, a probabilidade de ITU é maior
que 90%. Para comprovação do diagnóstico, destaca-se a pesquisa de elementos
anormais na urina (EAS), com demonstração de piúria, bacteriúria e teste de nitrito
positivo (sensibilidade e especificidade de
75% e 82%, respectivamente). O autor ressalta que a urinocultura está indicada para
todas as mulheres com suspeita de pielonefrite, mas nem sempre é necessária na
cistite. Entretanto, sua realização permite
confirmar a bacteriúria e avaliar a suscetibilidade do uropatógeno infectante aos
antimicrobianos.
A cistite aguda não complicada é um
quadro benigno que tende a apresentar resolução espontânea em aproximadamente
25% a 40% dos casos. Entretanto, quando
as pacientes buscam auxílio médico, antimicrobianos são rotineiramente prescritos,
com o objetivo de promover rápido alívio
sintomático. Estudos internacionais recentes, avaliando a suscetibilidade da E. coli
à terapia antimicrobiana, têm comprovado
altas taxas de resistência em todo o mundo.
Ainda assim, conforme recomendações da
IDSA (Sociedade Americana de Doenças
Infecciosas), permanecem como principais
opções terapêuticas a associação sulfametoxazol-trimetoprima, as fluoroquinolonas
e a nitrofurantoína. Para a cistite aguda,
um pequeno curso de antimicrobiano (no
máximo cinco dias) costuma ser suficiente,
enquanto que na pielonefrite aguda geralmente 10 a 14 dias são necessários. Ao término do tratamento da ITU não complicada
não há indicação para repetir a urinocultura
rotineiramente, sendo o acompanhamento
baseado na resolução clínica. Para a paciente do quadro descrito, com diagnóstico de cistite recorrente, o autor recomenda
nitrofurantoína durante cinco dias.
A acalásia é um distúrbio da motilidade esofágica, caracterizado por destruição
do plexo mioentérico, com aperistalse do
corpo esofágico e perda do relaxamento
do esfíncter esofágico inferior (EEI). Como
consequência, há dificuldade de passagem
do alimento deglutido do esôfago para o
estômago, resultando em dilatação esofágica progressiva — megaesôfago. A forma
mais comum da acalásia é a idiopática ou
primária, mas em áreas onde a doença de
Chagas é endêmica a infecção pelo Trypanosoma cruzi deve ser sempre considerada. Clinicamente, os pacientes com acalásia podem apresentar-se com disfagia,
regurgitação alimentar, pirose, dor torácica
e emagrecimento. O diagnóstico pode ser
feito através de exame radiológico simples (alargamento do mediastino) ou contrastado, como a esofagografia (esôfago
dilatado com afilamento da extremidade
distal — topografia do EEI); o método de
escolha, entretanto, é a manometria esofágica, capaz de evidenciar a aperistalse do
corpo esofágico, com graus variados de
hipertonia do EEI, que é incapaz de relaxar
adequadamente em resposta à deglutição.
As opções terapêuticas incluem medidas
farmacológicas (nitratos, bloqueadores de
canal de cálcio) ou endoscópicas (injeção
de toxina botulínica, dilatação, miotonia).
A edição de 12 de abril de 2012 do
periódico The New England Journal of
Medicine traz, na seção Imagens em Clínica Médica, o artigo intitulado “Achalasia”,
de Jafferbhoy, S. & Rustum, Q. (N. Engl.
J. Med. 2012; 366:e23). Nele, os autores
revisam os pontos-chave da doença, ao
demonstrarem a imagem de um estudo
baritado do esôfago onde se evidencia
o aspecto típico da acalásia (afilamento
em “bico de pássaro”). O exame é de
paciente do sexo feminino, 43 anos de
idade, com disfagia progressiva e emagrecimento (12kg em oito meses). Seu
exame físico apresentava-se inalterado,
exceto por palidez cutaneomucosa. A
avaliação laboratorial revelava anemia normocítica e normocrômica (hemoglobina:
9,8g/dl). À endoscopia digestiva alta, não
foi possível progredir o endoscópio além
da junção gastroesofágica. A paciente foi
submetida à miotomia de Heller. A imagem e a descrição do caso podem ser
vistas acessando-se o endereço eletrônico http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/
NEJMicm1108474.
55
Novas perspectivas no controle e remissão
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
reumatologia
Terapia biológica em artrite reumatoide
W. A. BiAnchi
Chefe do Serviço de Reumatologia da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Professor
titular de Reumatologia — Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da
Universidade Gama Filho (UGF).
G. B. MAretti — D. V. BiAnchi — r. F. eliAs — B. V. BiAnchi
Assistentes do Serviço de Reumatologia da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro.
Professores assistentes de Reumatologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de
Medicina da UGF.
Resumo
Summary
O tratamento das doenças autoimunes
sofreu grande avanço nos últimos anos. A
artrite reumatoide, de etiologia desconhecida, porém com uma desregulação do sistema imunológico relacionada à sua eclosão
e evolução, é hoje passível de tratamento,
visando à remissão tanto clínica quanto das
lesões estruturais. Além dos anti-inflamatórios e analgésicos utilizados para alívio dos
sintomas, várias outras drogas, rotuladas de
modificadoras do curso da doença (DMCDs),
que visam controlar este distúrbio imunológico expresso pela atividade de diversos mediadores inflamatórios, estão contribuindo
para a melhoria da qualidade de vida e do
prognóstico dos pacientes.
Autoimmune diseases, as rheumatoid arthritis (RA) had a strong development in their
treatment last years. Over the past years,
the knowledge about the pathophysiological mechanism of RA has advanced dramatically, with the development of new classes
of drugs and the implementation of different
strategies of treatment and follow-up. Beside
this new drugs, the associated use of the anti-inflammatory drugs, corticoids, sintetic or
traditionals disease-modifying antirheumatic
drugs allow control or suppress the disease
activity giving a better quality of life and
prognosis to the patients.
Unitermos: Artrite
Introdução
A artrite reumatoide (AR) é definida como
uma doença inflamatória crônica autoimune,
de etiologia desconhecida, que se caracteriza por um quadro de sinovite poliarticular e
simétrica, cumulativa de pequenas e médias
articulações de mãos, pés, punhos, cotovelos
e coxofemorais. O envolvimento extra-articular em órgãos como coração, pulmões, rins
e olhos, apesar de infrequente, ocorre num
pequeno número de casos, sendo o nódulo
reumatoide subcutâneo, presente em cerca
de 10% dos pacientes, o mais comum (1, 2).
É uma doença de distribuição universal,
atingindo 1% a 1,5% da população mundial,
com várias formas de acometimento, desde
JBM
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um curso benigno e insidioso até formas graves e rapidamente incapacitantes. No Brasil,
Marques Neto et al. (1993), estudando a prevalência em diferentes regiões, encontraram
taxas que variaram de 1% na Região Norte,
0,57% na Região Nordeste, 0,50% no Centro-Oeste, 0,60% no Sudeste e 0,20% no Sul (3).
A predominância é maior no sexo feminino
(duas a três mulheres para um homem), podendo ocorrer em qualquer faixa etária, porém com pico de incidência entre a quarta e a
sexta décadas. Casos de remissão espontânea
podem ocorrer, mais frequentemente em grávidas. Fatores psicológicos como depressão,
ansiedade, traumas psíquicos, agressividade
reprimida e outros transtornos do humor são
reumatoide; terapia
biológica; drogas
modificadoras da doença.
Keywords: Rheumatoid
arthritis; biological therapy;
disease-modifying drugs.
57
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
O objetivo principal
do tratamento da AR
contempla a qualidade
de vida dos pacientes
numa perspectiva de
tempo prolongada,
visando manter a
funcionalidade do
indivíduo, sua plenitude
social, laboral, intelectual
e sua participação ativa
na sociedade.
Pontos-chave:
> A predominância da artrite
reumatoide (AR) é maior no
sexo feminino (duas a três
mulheres para um homem);
> Casos de remissão
espontânea podem ocorrer,
mais frequentemente em
grávidas;
> Um tratamento mais
agressivo no período inicial,
especialmente nos primeiros
12 meses do início dos
sintomas, pode mudar o curso
da doença em longo prazo,
diminuindo a morbimortalidade
e melhorando a qualidade de
vida dos pacientes com AR.
58
descritos como causas capazes de afetar o
curso da doença, agravando-o ou mesmo desencadeando o início da doença (4, 5).
Nos últimos 10 anos, devido ao grande
avanço no conhecimento de sua fisiopatologia, novos alvos terapêuticos foram identificados, o que levou a uma total revolução
na maneira de conduzir esses pacientes. Um
tratamento mais agressivo no período inicial,
especialmente nos primeiros 12 meses do
início dos sintomas, pode mudar o curso da
doença em longo prazo, diminuindo a morbimortalidade e melhorando a qualidade de
vida dos pacientes com AR (6).
Nesse contexto, o objetivo principal do
tratamento passa a contemplar a qualidade
de vida dos pacientes numa perspectiva
de tempo prolongada, com a finalidade de
manter a funcionalidade do indivíduo, sua
plenitude social, laboral, intelectual e participação ativa na sociedade.
Por outro lado, a ausência de um agente etiológico definido, de algum sintoma
clínico patognomônico ou achado laboratorial específico que possa ser usado para
diagnóstico de certeza da doença contribuiu
para que um conjunto de sinais e sintomas
clínicos associados aos achados laboratoriais
fossem agrupados, dando origem a critérios
de classificação (7).
Novos critérios classificatórios para o
diagnósticos da AR foram elaborados pelo
American College of Rheumatology (ACR),
em conjunto com a European League
Against Rheumatism (EULAR), sendo divulgados em 2010, privilegiando o diagnóstico
e tratamento precoces (Tabela 1).
Diversos consensos vêm sendo propostos para a padronização do tratamento da
AR. Nesse intuito, a Sociedade Brasileira de
Reumatologia (SBR) divulgou em 2012 sua última atualização (Tabela 2), direcionada para
a situação socioeconômica do nosso país,
visto que as novas terapêuticas biológicas
geram custos elevados para nosso sistema
de saúde, tanto público quanto complementar, e também apresentam maiores riscos de
infecções em áreas de maior insalubridade e
densidade populacional (6, 7).
É imputada à predisposição genética peculiar de determinados indivíduos a expressão
de antígenos de histocompatibilidade (HLA-DR4) que confeririam, dessa forma, maior
suscetibilidade à doença quando expostos
a estímulos presentes no meio ambiente, da
qual fazem parte agentes infecciosos, como
alguns dos possíveis gatilhos desencadeadores da cascata imune inflamatória característica da AR. A presença da AR em gêmeos
homozigóticos é observada em somente 10%
a 30% das séries publicadas, indicando que,
apesar de fatores genéticos conferirem suscetibilidade à doença, não são suficientes para
desencadeá-la de forma plena. Neste caso,
fatores do meio ambiente se mostram fundamentais na eclosão de todo o processo (5, 8).
O primeiro evento de estimulação deste
processo inflamatório parece ser a apresentação de um peptídeo ainda não identificado
por um macrófago, por meio da sua molécula
de superfície, através do sistema HLA. Este reconhecimento é feito por um linfócito T auxiliar, através do seu receptor específico (TCR).
A partir da formação deste complexo trimolecular (molécula do HLA, peptídeo específico
e TCR), com o envolvimento de outras moléculas coestimuladoras, o linfócito auxiliar torna-se ativado, mudando suas características
fenotípicas. Essas moléculas passam então
a produzir um perfil específico de interleucinas (interferon gama, IL-2, IL-12) com ação
estimuladora na proliferação de linfócitos e
macrófagos ativados, que são denominados
linfócitos TH1. Por sua vez, tais macrófagos
ativados passam a produzir também citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-6, TNF-alfa),
que participam diretamente na estimulação
de fibroblastos sinoviais, condrócitos, osteoclastos e linfócitos B (5, 9). A participação de
todos estes mediadores solúveis e celulares
perpetua o processo inflamatório, levando à
progressão da doença e consequente dano e
destruição articular (5, 8, 9).
A membrana sinovial (MS) é o local primariamente acometido pelo processo inflamatório, que, tornando-se hipertrofiada ao
sofrer uma transformação funcional das suas
células — os sinoviócitos —, atrai outras células de linhagem inflamatória, produtoras de
mediadores pró-inflamatórios, como as interleucinas citadas anteriormente, responsáveis
pela perpetuação do processo inflamatório,
explicando os achados clínicos e a cronicidade da enfermidade. O pannus é a expressão
clínica, numa articulação diartrodial, desse
tecido hipertrofiado, povoado de células inflamatórias, rico em enzimas lesivas às articulações acometidas (5, 8, 9).
Muito também tem sido, contraditoriamente, dito sobre o papel do fator reumatoiJBM
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Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
TABELA 1: Paciente com pelo menos uma articulação com sinovite clínica definida (edema).*
Sinovite que não seja melhor explicada por outra doença
* Os diagnósticos diferenciais são diferentes em pacientes com diferentes apresentações, mas podem incluir condições tais como lúpus
eritematoso sistêmico, artrite psoriática e gota. Se houver dúvida quanto aos diagnósticos diferenciais relevantes, um reumatologista deve
ser consultado.
Critério de classificação para AR (algoritmo baseado em pontuação: soma da pontuação das categorias A-D). Pontuação maior ou
igual a 6 é necessária para classificação definitiva de um paciente com AR
Envolvimento articularA
1 grande articulaçãoB ............................................................................................................................................................................................0
2-10 grandes articulações .....................................................................................................................................................................................1
1-3 pequenasC articulações (com ou sem envolvimento de grandes articulações) ..............................................................................................2
4-10 pequenas articulações (com ou sem envolvimento de grandes articulações) .............................................................................................3
> 10 articulaçõesD (pelo menos uma pequena articulação)..................................................................................................................................5
SorologiaE (pelo menos o resultado de um teste é necessário para classificação)
FR negativo e AAPC negativo ..............................................................................................................................................................................0
FR positivo em título baixo ou AAPC positivo em título baixo ............................................................................................................................2
FR positivo em título alto ou AAPC positivo em título alto ..................................................................................................................................3
Provas de fase agudaF (pelo menos o resultado de um teste é necessário para classificação)
PCR normal e VHS normal ....................................................................................................................................................................................0
PCR anormal ou VHS anormal ..............................................................................................................................................................................1
Duração dos sintomasG
< 6 semanas..........................................................................................................................................................................................................0
≥ 6 semanas ..........................................................................................................................................................................................................1
A
O envolvimento articular se refere a qualquer articulação edemaciada ou dolorosa ao exame físico e pode ser confirmado por evidências de sinovite detectada por um método de imagem.
As articulações interfalangeanas distais (IFDs), primeira carpometacarpiana (CMTC) e primeira metatarsofalangeana (MTF) são excluídas da avaliação. As diferentes categorias de acometimento articular são definidas de acordo com a localização e o número de articulações envolvidas (padrão ou distribuição do acometimento articular). A pontuação ou colocação na categoria
mais alta possível é baseada no padrão de envolvimento articular.
B
São consideradas grandes articulações: ombros, cotovelos, quadris, joelhos e tornozelos.
C
São consideradas pequenas articulações: punhos, MTCF, IFP, interfalangeana do primeiro quirodáctilo e articulações MTFs.
D
Nesta categoria, pelo menos uma das articulações envolvidas deve ser uma pequena articulação; as outras articulações podem incluir qualquer combinação de grandes e pequenas articulações, bem como outras não especificamente mencionadas em outros lugares (por exemplo, temporomandibular, acromioclavicular e esternoclavicular).
E
Negativo refere-se a valores (unidade internacional — UI) menores ou iguais ao limite superior normal (LSN) para o método e laboratório. Título positivo baixo corresponde aos valores (UI)
maiores que o LSN, mas menores ou iguais a três vezes o LSN para o método e laboratório. Título positivo alto: valores maiores que três vezes o LSN para o método e laboratório. Quando
o FR só estiver disponível como positivo ou negativo, um resultado positivo deve ser marcado como “positivo em título baixo”.
F
Normal/anormal é determinado por padrões laboratoriais locais. (Outras causas de elevação das provas de fase aguda devem ser excluídas.)
G
Duração dos sintomas se refere ao relato do paciente quanto à duração dos sintomas ou sinais de sinovite (por exemplo, dor, inchaço) nas articulações que estão clinicamente envolvidas
no momento da avaliação, independentemente do status do tratamento.
FR = fator reumatoide; AAPCs = anticorpos antiproteína/peptídeo citrulinados; LSN = limite superior do normal; VHS = velocidade de hemossedimentação; PCR = proteína C-reativa.
de (FR) na gênese da doença, implicado tanto
como causa quanto como efeito na AR. Durante muito tempo achou-se que estaria envolvido na etiopatogenia da doença; entretanto,
estudos posteriores mostraram que além de
não estar presente em todos os pacientes,
também era encontrado em outras doenças e
em indivíduos saudáveis, principalmente idosos, o que contribuiu contra esta teoria.
JBM
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Atualmente se aceita que a desregulação
do linfócito B, associado à produção do FR,
esteja envolvida na fisiopatogenia da AR a
partir da ativação do sistema do complemento, com consequente amplificação da resposta inflamatória local (7, 9).
O diagnóstico da AR, entretanto, tem
como base a história clínica, o exame físico e os achados laboratoriais e de imagem.
59
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
TABELA 2: Fluxograma para o tratamento medicamentoso da artrite reumatoide
Em todas as fases:
Monoterapia
(preferencialmente MTX)
• Prednisona até 15mg/dia
ou equivalente (usar pelo
menor tempo possível)
Primeira
linha
Falha após 3 meses
Resposta parcial ao MTX
Intolerância ao MTX
• Corticoide intra-articular
e/ou AINH e analgésicos
Falha após 3 meses
Combinação de DMCDs
sintéticas
Troca entre as DMCDs
sintéticas
Segunda
linha
Falha após 3 meses
DMCD sintética
(preferencialmente MTX)
+
DMCD biológica
(anti-TNF como primeira opção ou ABAT ou TOCI)
Terceira
linha
Falha após 3-6 meses
Falha ou intolerância à DMCD biológica:
Manter DMCD sintética (preferencialmente MTX) e
mudar DMCD biológica para outro anti-TNF ou ABAT
ou RTX ou TOCI
Falha após 3-6 meses
Doença ativa:
Considerar os ICADs visando à remissão, ou pelo
menos baixa atividade de doença
ABAT: abatacepte; AINHs: anti-inflamatórios não hormonais; DMCD: droga modificadora do curso da doença; ICADs: índices compostos de atividade da doença; MTX: metotrexato; RTX: rituximabe; TOCI: tocilizumabe.
Pontos-chave:
> O diagnóstico da AR tem
como base a história clínica,
o exame físico e os achados
laboratoriais e de imagem;
> Dentre os sintomas
articulares, dor e calor,
relatados de forma simétrica,
e rigidez matinal de longa
duração, envolvendo
preferencialmente pequenas e,
depois, grandes articulações;
> Ao exame físico, as
formas crônicas mostram o
espessamento sinovial (pannus),
que contribui para facilitar o
diagnóstico.
60
Dentre os sintomas articulares, dor e calor,
relatados de forma simétrica, e rigidez matinal de longa duração, envolvendo preferencialmente pequenas e, depois, grandes
articulações, em especial as interfalangeanas proximais (IFPs), as metacarpofalangeanas (MCFs), as metatarsofalangeanas
(MTFs), punhos, cotovelos, tornozelos e joelhos. As articulações temporomandibulares
(ATMs), que podem ser causa de otalgia ou
odontalgia, bem como as articulações coxofemorais, que podem causar uma grande incapacidade funcional para locomoção
destes pacientes (5-8, 10). O aparecimento
de manifestações extra-articulares, como oftalmia, diminuição da acuidade visual, além
de xerose ocular e oral, que podem sugerir
uma associação com a síndrome de Sjögren,
deve não só ser valorizado para identificar
possíveis complicações da doença, mas
também para afastar outras doenças que
mimetizam a AR (8, 9).
Ao exame físico, as formas crônicas mostram o espessamento sinovial (pannus), que
contribui para facilitar o diagnóstico. Nódulos reumatoides subcutâneos ou outras
alterações cutâneas sugestivas de vasculite,
encontrados nos casos mais graves e raros,
podem levar a infartos digitais e úlceras cutâneas de difícil cicatrização, que implicam em
tratamento com imunossupressores. Os nódulos reumatoides, subcutâneos, localizam-se em áreas de maior pressão, como superfície extensora dos antebraços, pernas,
tendões de Aquiles, e raramente têm outras
localizações, como olhos, pulmões e rins (8).
Em casos mais avançados encontram-se
deformidades características, como desvio
ulnar dos dedos e punho, atrofia dos músculos interósseos das mãos, deformidades
JBM
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Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
em pescoço de cisne e botoneira, ou ainda
subluxações das articulações metacarpofalangeanas (MTCs) e polegares. Deformidades semelhantes podem ser encontradas nos
pés, onde, algumas vezes, as queixas dolorosas e as limitações são mais importantes e
precoces, exacerbadas por sobrecargas posturais ou ponderais destes pacientes.
O diagnóstico laboratorial da AR está
fundamentado na pesquisa e detecção do fator reumatoide (FR) por diferentes métodos.
Constitui-se na sua grande maioria de anticorpos IgM contra a região Fc de imunoglobulinas da classe IgG. Está presente em aproximadamente 80% dos pacientes, em títulos
acima de 20UI/dl (técnica de nefelometria
FR-IgM — com sensibilidade de 75%-80% e
especificidade de 80%-95%). Títulos altos se
associam a manifestações extra-articulares e
incapacidade funcional, significando doença
mais agressiva ou de difícil controle (8, 11). O
FR, entretanto, não é específico da AR, sendo
encontrado em outras enfermidades, como
hanseníase, sarcoidose, hepatites e outras
hepatopatias, doenças do tecido conjuntivo
como lúpus eritematoso sistêmico, neoplasias e em idosos hígidos (2, 5, 9, 12-19).
Nos últimos anos têm sido utilizados outros
marcadores sorológicos, principalmente contra
o sistema filagrina-citrulina, denominados autoanticorpos contra peptídeos cíclicos citrulinados (anti-CCP) (5, 9, 16-20). Embora descritos
há mais de 40 anos, esses testes vêm sofrendo
modificações e aprimoramentos, tornando-se
de grande utilidade para confirmação laboratorial da AR em pacientes de difícil diagnóstico (5, 9, 20). Dentro dessa metodologia, em
1964, Nienhuis e Mandema (21) identificaram
pela primeira vez um destes novos anticorpos,
chamado de fator antiperinuclear (APF), que
tem a propriedade de descorar grânulos perinucleares nas células superficiais do epitélio
da mucosa bucal humana, com sensibilidade
de 86% e 87%-99% de especificidade para o
diagnóstico da AR, estando presente em 40%
dos pacientes com fator reumatoide negativo.
Outro desses novos marcadores que possui
alta especificidade, entre 91%-100%, com sensibilidade de 36%-59%, foi originalmente reconhecido por Young et al. (22) em 1979, sendo
chamado de anticorpo anticeratina (AKA), uma
IgG que se liga ao extrato córneo do esôfago
médio de rato (17).
O anti-CCP apresenta elevada incidência
em pacientes com AR, possuindo sensibiliJBM

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VOL. 100  No 2
dade de 85% e especificidade próxima de
100%. Por ser realizado pelo método ELISA,
seu uso vem aumentando na confirmação do
diagnóstico. É de utilidade no prognóstico de
maior gravidade da AR, já que pode ser detectado em fases precoces da doença, mesmo subclínica (24, 34). Em 2006, Aldifran et al.
demonstraram que a combinação da pesquisa
do anti-CCP com o FR pode ser bastante útil,
principalmente no diagnóstico diferencial da
AR, chegando sua especificidade próxima a
100% e sensibilidade a 90% naqueles pacientes com formas de início brandas, onde o FR é
mais frequentemente inconclusivo (20).
Ao lado desses testes específicos para
AR, outros, de caráter inespecífico, tornam-se
de importância no acompanhamento dos pacientes, como hemograma completo (anemia,
geralmente normocítica e normocrômica,
trombocitose), velocidade de sedimentação
das hemácias (VSH), proteína C-reativa ultrassensível (PCR), eletroforese de proteínas,
ferritina, etc., que demonstram o grau de atividade inflamatória da enfermidade naquele
momento. São parâmetros fidedignos para
monitoramento terapêutico dos pacientes.
Métodos de avaliação por imagem também são utilizados, sendo importantes no
acompanhamento das alterações estruturais,
principalmente na fase inicial da AR, quando
se observa apenas um aumento de partes
moles (melhor visualizado ao ultrassom e
ressonância magnética) e osteopenia justa-articular. Evolutivamente, ocorrem diminuição da interlinha articular, erosões ósseas
marginais e, mais tardiamente, naqueles pacientes com doença agressiva, subluxações e
luxações articulares (12, 13).
A AR costumeiramente apresenta curso
variável, estando comprovado que cerca de
15% a 20% dos pacientes podem apresentar
uma forma monocíclica, autolimitada, que
geralmente regride de forma espontânea, ou
com as propostas terapêuticas tradicionais,
mimetizando síndromes pós-virais. O maior
número de pacientes apresenta uma forma
recidivante, alternando períodos de acalmia
com fases de maior atividade inflamatória
(5, 9, 23). Neste grupo faz-se necessário
melhor e maior abrangência no diagnóstico diferencial com outras doenças do tecido conjuntivo, que aqui não abordaremos
(25, 28). Em um número menor de casos, em
média 10%, observa-se um curso mais agressivo, sem intervalos de remissão, evoluindo
Pontos-chave:
> O diagnóstico laboratorial
da AR está fundamentado na
pesquisa e detecção do fator
reumatoide (FR) por diferentes
métodos;
> Está presente em
aproximadamente 80% dos
pacientes, em títulos acima de
20UI/dl (técnica de nefelometria
FR-IgM — com sensibilidade de
75%-80% e especificidade de
80%-95%);
> Nos últimos anos têm sido
utilizados outros marcadores
sorológicos, principalmente
contra o sistema filagrina-citrulina, denominados
autoanticorpos contra
peptídeos cíclicos citrulinados
(anti-CCP).
61
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
As drogas modificadoras
do curso da doença
(DMCDs) sintéticas,
consideradas de primeira
linha, fazem parte do
arsenal terapêutico
de início, logo após
o diagnóstico, com
metas específicas de
remissão ou diminuição
da atividade da doença
baseada. As DMCDs
biológicas, de segunda
linha, são uma opção real
na falha das drogas de
primeira linha.
Pontos-chave:
> Dentre os principais fatores
de risco, e de pior prognóstico,
destacamos o sexo masculino,
idade avançada, baixos
níveis socioeconômicos e
educacionais, tabagismo,
manifestações extra-articulares,
grau de incapacidade funcional
já estabelecido e grande
número de articulações
envolvidas;
> Dados como alterações no
FR e anti-CCP em títulos altos
e presença de HLA-DR4, entre
outros, são úteis na predição da
gravidade;
> Outra variável relevante e
atual é a fadiga, um sintoma
extra-articular relatado pela
maioria dos pacientes, porém
pouco mensurado e pouco
avaliado pelos médicos.
62
com rápida destruição articular, que implica
numa intervenção terapêutica mais imediata
e intensa, com o propósito claro de evitar e
prevenir a destruição articular, incapacidade
e perda funcional (14, 23).
Dentre os principais fatores de risco,
e de pior prognóstico, destacamos o sexo
masculino, idade avançada, baixos níveis
socioeconômicos e educacionais, tabagismo, manifestações extra-articulares, grau
de incapacidade funcional já estabelecido e
grande número de articulações envolvidas.
Alterações em exames complementares,
como FR e anti-CCP em títulos altos, presença de HLA-DR4, níveis elevados persistentes
tanto de proteínas de fase aguda quanto da
velocidade de sedimentação das hemácias,
anemia, alterações radiológicas com erosões
ósseas e osteopenia justa-articular em pouco
tempo de doença (menos de três anos). Estes dados são particularmente úteis na predição da gravidade, agressividade e risco de
incapacidade funcional futura, o que leva a
um comprometimento da sobrevida destes
pacientes, em que o risco de doença cardiovascular se torna presente (5, 24).
Alguns instrumentos de mensuração são
utilizados para o correto e real acompanhamento da evolução da doença, dentre os
quais: Disease Activity Score 28 (DAS28) (25),
Clinical Disease Activity Index (CDAI) (26),
Score Clinical Disease Activity Index (SDAI)
(27). Outros, como o Medical Outcome Study
Short Form — 36 Health Survey (SF-36) (28),
foram elaborados para avaliar a qualidade de
vida, tendo sido validado no Brasil em 1997.
O Health Assessment Questionnaire (HAQ-II)
(15) avalia a capacidade funcional e as atividades de vida diária (AVDs). Tais protocolos,
associados ao exame físico de rotina, à VSH
ou PCR, tem-nos ajudado a melhor acompanhar os pacientes, facilitando a decisão de
ajustes na medicação utilizada por eles.
Outra variável relevante e atual é a fadiga, um sintoma extra-articular relatado pela
maioria dos pacientes, porém pouco mensurado e pouco avaliado pelos médicos. O
Functional Assessment of Chronic Ilness Therapy-Fatigue (FACIT-F) é um dos instrumentos validados para tal mensuração (5, 29-31).
Tratamento
O tratamento deverá ser instituído de
maneira precoce e eficaz, visando evitar ou
minimizar a incapacidade física e funcional. A
orientação e informação ao paciente sobre a
doença, suas particularidades e evolução, ao
lado do apoio familiar, psicológico, terapia
ocupacional e reabilitação, exercícios, todo
o arsenal terapêutico hoje disponível, são
fundamentais para o sucesso no controle da
atividade inflamatória, manutenção da qualidade de vida, capacidade funcional e bem-estar social dos pacientes.
Existem, de uma forma geral, três classes
de medicamentos utilizados no tratamento
da AR: drogas sintomáticas, como analgésicos, anti-inflamatórios não hormonais (AINHs)
e corticosteroides. Drogas modificadoras da
doença tradicionais, também chamadas de
sintéticos (DMCDs), como o metotrexato
(MTX), sulfassalazina (SSZ), antimaláricos, leflunamida (LEF), ciclosporina (CS), azatioprina
(AZA). Outras mais modernas, ditas biológicas e também modificadoras da evolução da
doença, como os anti-TNF-alfa (etanercepte,
infliximabe, adalimumabe, golimumabe, certolizumabe pegol), o anticorpo monoclonal
antilinfócito B, anti-CD20+ (rituximabe), o
bloqueador do segundo sinal de ativação do
linfócito T (abatacepte), e um antirreceptor
da IL-6, o tocilizumabe (5, 12-14).
O conceito atual do tratamento baseia-se
no imediato início das DMCDs sintéticas, tão
logo o diagnóstico tenha sido definido, e na
avaliação dos seus benefícios, pela monitorização rigorosa, tanto clínica quanto laboratorial e também por imagem, da resposta terapêutica do paciente à medicação empregada.
Estas medidas visam primariamente evitar o
dano estrutural articular e a incapacidade dele
resultante (5, 12, 13). A escolha da DMCD
sintética a ser iniciada recai sobre o MTX. Sua
forma de administração, isolada ou associada
a outra DMCD sintética ou não, dependerá da
gravidade, agressividade da doença e do discernimento clínico do médico.
Os AINEs são importantes para o controle da inflamação, e geralmente levam
à redução da dor. Existem várias classes
terapêuticas, porém não existe na literatura médica atual alguma referência que demonstre com segurança a superioridade de
uma delas sobre as outras classes. A escolha
recai comumente de acordo com o perfil
dos pacientes, suas comorbidades e/ou intolerâncias e hipersensibilidades, aliadas à
expertise do médico. De forma geral deve-se usá-los nas menores doses e pelo menor
espaço de tempo, com atenção aos efeitos
JBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
adversos mais frequentes de cada uma dessas drogas.
Os corticosteroides são geralmente usados em doses anti-inflamatórias. Dentre os
diversos compostos disponíveis privilegiamos aqueles de vida média menor que 24
horas e com via de administração oral. Atualmente o derivado mais utilizado é a prednisona ou prednisolona, geralmente em doses
iniciais de até 15 ou 20mg/d, conferindo boa
resposta e rápido início de ação, ajustando-se em poucas semanas a dose ideal em
longo prazo. Em alguns casos selecionados,
de evolução grave, com vasculite e/ou envolvimentos extra-articulares, podem-se usar
doses mais altas, visando sua ação imunossupressora. Os efeitos adversos clássicos, principalmente com o uso crônico, impõem uma
série de cuidados, como monitorização de
dislipidemias, glicemia, hipertensão arterial,
reposição de cálcio e vitamina D, para citar
apenas alguns (6, 32, 33, 34).
As DMCDs sintéticas, como MTX, SSZ,
LEF e hidroxicloroquina (HCQ) ou difosfato
de cloroquina (DCQ), são a base para o início
do tratamento da AR, tanto em monoterapia
como em associação, com o esquema tríplice
classicamente utilizando MTX + SSZ + HCQ,
ou a associação de MTX + HCQ, ainda amplamente utilizado, e, mais modernamente e
atual, a associação de MTX + LEF; devem ser
obrigatoriamente utilizados, antes de lançarmos mão das DMCDs biológicas. Em muito
raras situações estaremos confortáveis para
prescrever DMCDs biológicas sem antes ter
feito uso de duas das combinações anteriores, nos casos em que o paciente não tenha
demonstrado uma queda consistente da atividade inflamatória da doença, avaliada por
um período mínimo (seis meses) através dos
instrumentos de avaliação rotineiramente utilizados na AR (6).
Drogas biológicas anti-TNF-alfa
Após falha terapêutica com associação
de DMCDs sintéticas, intolerância ou em
casos de pior prognóstico, como erosão
precoce, altos títulos de FR e/ou anti-CCP,
grande número de articulações acometidas,
presença de nódulos reumatoides subcutâneos ou outro envolvimento extra-articular,
a terapia biológica deve ser instituída inicialmente com drogas anti-TNF-alfa. Atualmente temos cinco drogas dessa classe, e em
termos de eficácia não temos ainda como
JBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
afirmar a superioridade de uma sobre outra
(6, 35, 36).
Adalimumabe — É um anticorpo monoclonal humano contra o TNF-alfa, prescrito para
aplicação SC na dose de 40mg a cada 14
dias (6, 37, 38, 39-42).
Certolizumabe pegol — É um fragmento Fab
de um anticorpo anti-TNF-alfa humanizado,
conjugado com duas moléculas de polietilenoglicol. É prescrito para aplicação SC na
dose de 400mg a cada duas semanas (zero,
duas e quatro semanas), e, após, na dose de
400mg a cada quatro semanas (6, 43, 44).
Etanercepte — É uma proteína de fusão,
composta pelo receptor solúvel do TNF-alfa
mais a região Fc da IgG. É prescrito em dose
semanal de 50mg SC (6, 45).
Infliximabe — É um anticorpo monoclonal
anti-TNF-alfa quimérico humano-murino,
prescrito na dose de 3 a 5mg/kg IV, na linha
de base, com duas e seis semanas (período
dito de indução) e, após, a cada oito semanas. Em caso de resposta insuficiente pode
ser aumentado para 5mg/kg ou os intervalos entre as doses podem ser diminuídos
(6, 42, 46, 47).
Golimumabe — É um anticorpo monoclonal
humano contra o TNF-alfa, administrado na
dose mensal de 50mg, via SC (6, 44, 48).
Todos os agentes anti-TNF-alfa disponíveis
atualmente devem ser utilizados associados ao
MTX ou a outra DMCD sintética, em caso de
intolerância ou efeito adverso ao MTX, já que
todos os estudos realizados para aprovação
destes medicamentos demonstraram superioridade no controle da doença quando usados
em associação (6, 37, 38, 43-49).
Outro ponto ainda em discussão é o
real significado e importância sobre a eficácia destes medicamentos, em virtude da
produção, já demonstrada pelos pacientes,
de anticorpos (HACA) contra essa classe de
drogas. A associação de um anti-TNF-alfa e
MTX diminuiu a formação de anticorpos contra a droga em uso. Até o momento nada de
concreto pode ser afirmado sobre a perda ou
diminuição de eficácia (6, 50, 51).
Os efeitos adversos geralmente se referem à hipersensibilidade no local da injeção
com os subcutâneos, como eczemas, prurido
e vermelhidão, dor local ou reações infusio-
Pontos-chave:
> O conceito atual do
tratamento baseia-se no
imediato início das DMCDs
sintéticas, tão logo o
diagnóstico tenha sido
definido, e na avaliação dos
seus benefícios;
> Estas medidas visam
primariamente evitar o
dano estrutural articular e a
incapacidade dele resultante;
> A escolha da DMCD sintética
a ser iniciada recai sobre o
MTX;
> As DMCDs sintéticas,
como MTX, SSZ, LEF e
hidroxicloroquina (HCQ) ou
difosfato de cloroquina (DCQ),
são a base para o início do
tratamento da AR, tanto
em monoterapia como em
associação.
63
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
Pontos-chave:
> No capítulo das infecções
está hoje o grande desafio
para prevenção, diagnóstico e
tratamento destes achados;
> De acordo com registro inglês
de pacientes com AR em uso
de biológicos, as chances de
infecção estão aumentadas
principalmente nos primeiros
meses e no primeiro ano de uso;
> Além da tuberculose, que
é a principal causa nos casos
descritos, outras infecções
causadas por germes
intracelulares, como listéria,
histoplasma, legionelas e outras
micobactérias atípicas, devem
ser sempre investigadas.
64
nais ao IFX, como febre, calafrios, dor torácica, alteração da pressão arterial, dispneia,
prurido e/ou urticária. Manifestações mais
graves de hipersensibilidade têm sido descritas, como choque e crises hipertensivas, mas
de forma geral todos são bem tolerados se
os pacientes forem triados para o histórico de
alergias, HAS grave classes III e IV, segundo a
classificação da New York Heart Association,
doenças desmielinizantes, doenças pulmonares intersticiais ou infecções (6, 42, 52, 53).
No capítulo das infecções está hoje o
grande desafio para prevenção, diagnóstico
e tratamento destes achados. Em todos os
casos suspeitos está indicada a suspensão da
droga, sendo sua reintrodução discutida caso
a caso e, se possível, troca por outra classe de
DMCD biológica. De acordo com registro inglês de pacientes com AR em uso de biológicos, as chances de infecção estão aumentadas
principalmente nos primeiros meses e no primeiro ano de uso. Além da tuberculose, que
é a principal causa nos casos descritos, outras
infecções causadas por germes intracelulares,
como listéria, histoplasma, legionelas e outras
micobactérias atípicas, devem ser sempre investigadas. Herpes zoster e hepatites também
têm sido descritos, bem como casos de HIV
anteriormente não detectados (6, 53). São
contraindicados para mulheres grávidas ou
em período de amamentação.
No que tange à tuberculose, nossa maior
preocupação, seguimos o III Consenso da
SBTP, com a realização de PPD e Rx de tórax
nos casos suspeitos ou com história epidemiológica de risco, com o intuito de evitar e
prevenir a doença nestes pacientes. Com PPD
igual ou maior que 5mm já é indicada a profilaxia com isoniazida por seis meses, aguardando-se no mínimo o primeiro mês para iniciar a
droga — se possível, nesses casos optar por
outra DMCD biológica que não anti-TNF-alfa,
a seguir discutido. É regra solicitar PPD e Rx
de tórax antes do início de qualquer DMCD
biológica, principalmente se bloqueador de
TNF-alfa. Também é recomendado a atualização do calendário vacinal com vacina pneumocócica 23, DPTa, influenza.
Outras DMCDs biológicas para AR já são
de uso corrente, como o abatacepte (ABAT),
uma proteína de fusão CTLA-4-IgG que na
realidade atua inibindo e modulando a coestimulação dos linfócitos T (bloqueador do segundo sinal). Pode ser usado em associação
ou não ao MTX e mesmo como primeira linha,
isto é, antes de um dos anti-TNF-alfa. Mais frequentemente é utilizado em pacientes que tenham apresentado falha, intolerância ou outra
indicação em relação aos anti-TNF-alfa. Para
uso endovenoso rápido (30 a 60 minutos), em
doses de 500mg em pacientes com até 60kg,
750mg naqueles com 60 a 100kg e em doses
de 1.000mg em pacientes acima de 100kg.
Reações infusionais são pouco frequentes, porém deve-se evitar utilizá-lo em pacientes com
doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC).
Infecções têm sido descritas como seu maior
efeito adverso (6, 54, 55).
O tocilizumabe (TOCI), um bloqueador do
receptor da IL-6, é um anticorpo monoclonal
humanizado IgG1 que, ao fixar-se no receptor da IL-6, inibe o seu efeito. Pode ser usado
em monoterapia ou associado ao MTX, bem
como em primeira linha. Mostra-se como o
ABAT mais seguro em pacientes com maiores
riscos de tuberculose, mas equipara-se em
relação aos casos de outras infecções graves.
É prescrito na dose de 8mg/kg após diluição
apropriada e infusão endovenosa mensal. Outros efeitos adversos descritos dose-dependentes são baixa das plaquetas, neutropenia
e elevação das transaminases. Foram observadas também alterações nos valores de colesterol total e das LDLs (6, 56, 57).
O rituximabe (RTX) atua como um depletor de linfócitos B. É um anticorpo monoclonal
quimérico voltado contra o linfócito CD20+,
sendo inicialmente utilizado como tratamento
para linfomas não Hodgkin e mais recentemente (2006), após confirmação dos efeitos em AR,
liberado como droga de segunda linha após
falha do anti-TNF-alfa, em associação ao MTX
ou não. A dose inicialmente preconizada foi
de dois pulsos endovenosos de 1g, administrados com intervalo de duas semanas. Pode
ser repetida após a reativação da doença,
geralmente depois de seis meses, podendo
chegar a 18 meses. Não se recomenda a repetição da medicação em intervalos menores
que três meses. Apesar dos novos agentes
(DMCDs biológicas) atualmente disponíveis,
o RTX continua sendo uma boa opção naqueles pacientes com passado de tuberculose ou
com riscos maiores com o uso de anti-TNF-alfa
como primeira escolha. Entretanto, os pacientes com hepatite B ou HbsAg (+) devem evitar
o seu uso, já que foram descritos casos de pacientes com linfoma que evoluíram para formas
fulminantes de hepatite pelo vírus B. Infecções
de uma forma geral também têm sido descriJBM
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MAIO/JUNHO
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VOL. 100  No 2
Terapia biológica em artrite reumatoide
Novas perspectivas no controle e remissão
tas, bem como neutropenia e trombocitopenia.
Dentre todas as DMCDs biológicas, na aplicação do RTX é necessário uma pré-medicação
— 100mg de metilprednisolona EV, 1g de paracetamol e anti-histamínicos. Os eventos adversos (como cefaleia, palpitações e rash cutâneo) são mais frequentes na primeira infusão,
e não contraindicam o seu uso, ocorrendo em
35% dos pacientes. O tempo de infusão é prolongado, sendo mais seguro o uso de bomba
infusora. É de interesse que pacientes com FR
ou CCP (+) apresentem melhor resposta terapêutica (6, 58-60).
Em resumo, devemos reafirmar que as
DMCDs sintéticas, consideradas de primeira
linha, fazem parte do arsenal terapêutico de
início, logo após o diagnóstico, com metas
específicas de remissão ou diminuição da
atividade da doença baseadas nos instrumentos atuais para tal, como DAS28, SDAI
ou CDAI. As DMCDs biológicas, de segunda
linha, são uma opção real na falha das drogas
de primeira linha (Tabela 2) (6).
Não há, até o momento, dados que nos
permitam determinar com segurança um
tempo de uso destes medicamentos, sua retirada ou suspensão, nos casos de remissão
mantida. Atualmente deve-se manter indefinidamente o paciente em uso da medicação
que se mostrou eficaz para o controle da doença. A critério médico, e em concordância
com o paciente, em casos que apresentem
remissão completa e mantida por mais de
seis a 12 meses estaremos autorizados a re-
tirar a medicação gradual, lenta e cuidadosamente. Foi proposta pelo novo consenso
(2012) da SBR a retirada inicialmente dos AINHs
e/ou corticoides, seguidos das DMCDs biológicas, mantendo-se as DMCDs sintéticas.
A retirada de todas as drogas em consequência de remissão sustentada da doença é
muito rara, mas mesmo as DMCDs sintéticas
podem, excepcionalmente, ser suspensas (6).
Atualmente, o monitoramento desses pacientes se faz de forma mais rigorosa, com
revisões mensais, principalmente no primeiro
ano dos sintomas com doença ativa, visando
prevenir as lesões estruturais articulares nos
pacientes com doença mais agressiva, permitindo uma progressão rápida da estratégia de
tratamento mais apropriada. Esses pacientes
se beneficiarão com o encaminhamento precoce ao especialista, para evitar sequelas e
complicações corriqueiras da AR, factíveis de
serem evitadas atualmente (Tabela 2) (6).
Desta forma, vemos que as estratégias
para tratamento da AR têm evoluído rapidamente nos últimos anos, estendendo-se
todo esse arsenal e conhecimento para
muitas outras doenças de etiologia autoimune, da Reumatologia ou não. Cada vez
mais vemos que, além de todos os avanços
disponíveis com a incorporação de novas
tecnologias e drogas, é necessário que os
médicos se preparem para novas fronteiras
de bem-estar, controle e cura de doenças,
impensáveis até há pouco tempo.
Referências
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arthritis. In: Kelley’s textbook of Rheumatology. 7. ed., Philadelphia, Elsevier Saunders, 2005. p. 1079-100.
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fatigue among individuals with rheumatoid arthritis. Arthritis Rheum., 41(12): 2230-7, 1998.
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da artrite reumatoide em população de origem japonesa em Mogi das Cruzes, São Paulo. Rev. Bras. Reumatol.,
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7. ed., Philadelphia, Elsevier Saunders, 2005. p. 1079-100.
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[latu sensu em Musculação e Treinamento de Força]. Rio de
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initiative. Ann. Rheum. Dis., 69(9): 1580-8, 2010.
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MAIO/JUNHO

VOL. 100  No 2
Endereço para
correspondência:
W. A. Bianchi
Santa Casa da Misericórdia
do Rio de Janeiro —
Serviço de Reumatologia/
Amb. 39
Rua Santa Luzia 206
Centro
20020-022
Rio de Janeiro-RJ
Obs.: As 47 referências restantes que compõem este artigo se
encontram na Redação à disposição dos interessados.
65
noticiário
cobrem que têm câncer de crescimento
lento podem optar, de forma segura,
pelo não tratamento agressivo e evitar
efeitos adversos que podem mudar suas
vidas.”
Congresso
de Cirurgia
Dermatológica
Torrent lança Ecator Anlo
A Torrent do Brasil
lan
lançou um medicame
mento para o tratame
mento da hipertensão
aarterial:
ar
t
é o Ecator
Anlo, uma associação sinérgica e potente, à base de ramipril e anlodipino,
excelente para pacientes com hipertensão de difícil controle. O medicamento possui teste de bioequivalência e é o primeiro similar do mercado
nacional a combinar esta associação
de medicamentos, com a vantagem
de ter um preço 35% inferior ao do
seu único concorrente. Ecator Anlo
possui duas apresentações: 5mg
de ramipril com 5mg de besilato de
anlodipino e 2,5mg de ramipril com
5mg de besilato de anlodipino. As
duas vêm com 30 cápsulas.
Torrent do Brasil tem novo
gerente de grupo
Rogério Bacini, 36
anos, é o novo gerente
de grupo da linha SNC —
Sistema Nervoso Central
— da Torrent do Brasil.
O principal objetivo de
Rogério, que é formado em processamento de dados e com MBA em Marketing, é manter o crescimento da linha
Sistema Nervoso Central, que representa 59% do faturamento da empresa no
Brasil. Rogério está na Torrent há dois
anos, mas atua na indústria farmacêutica
há 11 anos. Antes de entrar na Torrent
trabalhava na Libbs Farmacêutica, como
gerente de produto.
66
Abbott, biomarcadores e
câncer de próstata
A Abbott
adquiriu licença exclusiva da
Universidade
de Stanford
para o uso de
vários biomarcadores inéditos no desenvolvimento de um teste diagnóstico molecular que poderá atender uma necessidade médica não suprida: diferenciar
o câncer de próstata agressivo do não
agressivo. Dados recentes indicam que determinados biomarcadores podem identificar quais pacientes apresentam rápido
crescimento de malignidades e devem
ser tratados de forma mais agressiva
versus quem pode ser apenas acompanhado e observado atentamente. As
normas de tratamento do câncer de
próstata emitidas pela Rede Nacional
sobre o Câncer (EUA) foram atualizadas
recentemente, visando incluir recomendações específicas para pacientes destas duas categorias (câncer de próstata
agressivo e não agressivo).
“Desenvolver um ensaio para o
prognóstico do câncer de próstata validado clinicamente é o Santo Graal no
avanço do controle da doença”, afirmou
o professor associado e chefe interino
do Departamento de Urologia do Centro Médico da Universidade de Stanford,
o médico James Brooks. “Este avanço
claramente atenderia uma necessidade
médica ainda não suprida, de ajudar
os homens com câncer de próstata a
conhecer quais opções de tratamento trariam os melhores resultados para
uma melhor qualidade de vida e mais
sobrevida. Quando alguns homens des-
As ampliações do uso da toxina
botulínica estão entre os temas que
serão abordados no XXIV Congresso
Brasileiro de Cirurgia Dermatológica.
O evento é promovido pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD), e acontecerá entre
os dias 20 e 23 de junho, no Centro
de Convenções Ulysses Guimarães,
em Brasília. Entre os outros temas do
congresso estão a imobilização de feridas cirúrgicas e a abertura palpebral
em casos de exoftalmia (olhos projetados).
VIII Congresso de Clínica
Médica do Estado do RJ
O VIII Congresso de Clínica Médica, o V Congresso Internacional de
Clínica Médica e a Annual Meeting
do Capítulo Brasileiro do American
College of Physicians acontecerão
entre os dias 3 e 5 de outubro, no
Centro de Convenções SulAmérica.
Temas abordados: Acidente Vascular Encefálico, Doença de Parkinson,
Neuropatia Periférica, Hipertensão
Arterial, Insuficiência Cardíaca, Arritmia Cardíaca, Trombose Venosa
Profunda e TEP, Apneia do Sono,
Aterosclerose, Diabetes Mellitus, Dislipidemia, Distúrbios Funcionais do
Trato Digestivo, Probióticos e Prebióticos, Doença de Crohn e Retocolite
Ulcerativa, Pancreatites e Insuficiência Exócrina do Pâncreas, DRGE, Hepatites Virais e outras, Cirrose e suas
complicações, Infecções Sistêmicas
e Sepse, Semiologia Médica, AIDS e
Artrite Reumatoide. O evento é promovido pela Sociedade Brasileira de
Clínica Médica/Regional-RJ. Data limite para recebimento dos resumos:
20 de julho. Informações: www.clinicamedicarj.com.br.
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