37º Encontro Anual da ANPOCS ST07 A metrópole na

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37º Encontro Anual da ANPOCS ST07 A metrópole na
37º Encontro Anual da ANPOCS
ST07 A metrópole na sociedade contemporânea
Diferenciação social e moral na vida urbana: reflexões em torno do preconceito
como processo de individualização
Julien Zeppetella (FAK) ; Luiz Fábio Silva Paiva (UFC)
Esta comunicação é resultado de um trabalho a quatro mãos. Seus méritos e
deficiências são resultados de dois processos de pesquisa que se encontraram em um
momento muito particular. A ideia para sua realização partiu de instigantes e intensas
conversas sobre como, em pesquisas realizadas em na periferia de Fortaleza,
observamos não apenas formas de preconceitos sofridos pelos moradores, como,
também, formas de elaboração e reelaboração de certos preconceitos contra outros
moradores do próprio bairro. Passamos, a partir daí, à nos deter em falas de nossos
interlocutores com interesse em ver como suas moralidades construíam o lugar de si e do
outro, sobretudo a luz de enunciados discriminatórios fundamentados em suas relações e
condição social. Observamos então situações nas quais o mundo social era interpretado
pelo morador a partir de suas reflexões morais, pesando para ele a identificação de si
distintamente da de outros a quem os preconceitos poderiam ser aplicados de maneira
mais conveniente. Exemplo disso foram os interlocutores que moravam em áreas
consideradas violentas no contexto urbano de Fortaleza. Mesmo reconhecendo que seus
locais de moradia são marcados por situações de crime e violência, nossos interlocutores
preferiram, em certos momentos de interação conosco, estabelecer perímetros, arranjos,
relações e pessoas que poderiam ser qualificadas de maneira mais cômoda em
categorias como perigosas e violentas. Este outro reside no Bairro, mas era de outra
espécie e portanto não podia ser confundido com a pessoa de bem com a qual
conversamos. Ao estabelecer o outro como moralmente negativado no contexto social,
moradores com os quais conversamos estabeleciam a si mesmo como sujeitos morais
que estavam vivendo ali, mas deveriam ser conhecidos e reconhecidos de outra maneira.
Assim, eles não podiam, sob hipótese nenhuma, serem confundidos com aqueles que
deveriam ser o alvo da discriminação que eles mesmos sofriam.
Ao reagruparmos nossas entrevistas oriundas dos respectivos trabalhos de
campo1, encontramos uma série de dados sobre as moralidades dos moradores que nos
ofereceram informações importantes a respeito de como preconceitos são construídos no
interior de dois bairros da periferia de Fortaleza. Apesar de características distintas, as
falas dos moradores sobre seus locais de moradia nos ajudaram a observar elementos
comuns sobre como as moralidades internas dessas áreas urbanas criam lugares morais
para si e para os outros. Percebemos que os moradores constroem suas
individualizações em territórios cujo preconceito não é simplesmente resultado de marcas
territoriais. As moralidades dos moradores, presentes em suas formas de individualização
1 Para melhores informações sobre estes trabalhos ver: PAIVA, L. F. S. Contingências da violência em um
território estigmatizado. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Ceará, 2007.
e nas falas sobre si e sobre os outros, nos colocaram diante de questionamentos sobre
como o preconceito atualiza determinadas condições sociais relacionadas a problemas da
periferia como a pobreza, violência, conflitos sociais, condição de classe, faixa etária,
gênero etc. Não nos interessa aqui esgotar a complexidade do problema, mas tecer
considerações sobre como os processos de individualização de moradores da periferia
atualizam preconceitos que não podem ser lidos de maneira generalizada. Dividir o
mesmo lugar de moradia, embora possa ser um elemento de generalização, envolve um
conjunto de relações e conflitos sociais que marcam a vida em bairros populares. Existem
séries de outras possibilidades de abordar o problema, mas nos detemos aqui a questão
do preconceito como um elemento moral que ajuda a construir identidades e formas de
reconhecimento. Estes estão presentes nas maneiras como os moradores se
individualizam em singularidades revestidas de significativos conteúdos morais que são
chaves, dentre outras coisas, para novas problematizações de cunho sociológico e
antropológico da vida em bairros populares.
Partimos então da ideia mais geral de que a sociedade brasileira apresenta-nos
modelos de moralidade que no cotidiano reverberam de múltiplas formas. Isto nos leva a
compreender que existem particularidades e sociabilidades que se valem de pressupostos
morais para sua organização, rotinização e naturalização. Como destaca Jessé de Souza,
existem também formas de hierarquia moral que permeiam o imaginário social de maneira
muito particular. Isto significa, segundo ele, que “perceber a forma particular que essa
hierarquia moral assume significa compreender, também, o modo peculiar como os
indivíduos e grupos sociais de uma sociedade concreta se percebem e se julgam
mutuamente.” (SOUZA, 2001, p. 31).
Assim, esse trabalho propõe analisar certos efeitos do preconceito em meio
urbano a partir de duas etnografias realizadas por cientistas sociais em diferentes
localidades da cidade de Fortaleza. Os trabalhos de campo foram realizados em bairros
específicos da metrópole de Fortaleza (CE), o primeiro de classe média e os dois outros
de classes populares. Estas etnografias dialogam aqui na tentativa de entender como o
preconceito pode ser compreendido não apenas como forma de discriminar o outro, mas
também como uma maneira do indivíduo construir sua própria relação com o mundo,
estabelecendo códigos que emprestarão sentidos a relações sociais das quais ele faz
parte.
Ao se deparar com a recorrência dos preconceitos nas falas dos indivíduos em
meio urbano, surgiu certos questionamentos sobre esse fenômeno. O que faz a força do
preconceito em meio urbano? Como e porque os preconceitos são mobilizados pelos
indivíduos?
1. Contextualização e metodologia das pesquisas
1.1. a pesquisa de campo no conjunto habitacional reassentamento Gengibre e no bairro
Cidade 2000
Parte desse trabalho se baseia numa pesquisa de campo efetuada em várias
épocas. A primeira foi uma breve incursão no ano de 2005 e se desenvolveu até o ano de
2010, em diversos períodos. Durante esses anos, o aprendiz etnólogo se deparou com
um fato interessante, o nome do bairro que ele pesquisava mudava de nome tanto com as
diversas épocas, como dependendo das pessoas e das situações. Esse fato rendeu uma
inquietação sobre o sentido dessas mudanças que orientou uma análise sobre as
categorias de moradias urbanas, a partir da representação de si e do lugar de moradia. As
falas recolhidas ao longo da etnografia apontaram também muitos julgamentos de valor
produzidos pelos pesquisados, sejam eles informantes privilegiados ou outros indivíduos
encontrados ao longo das pesquisas. Esses dois mecanismos sociais apontaram para a
importância dos enunciados como práticas morais que, em determinados momentos,
deixaram transparecer formas de preconceito na vida urbana.
A minha primeira visita como pesquisador no bairro estudado aconteceu no ano
de 2005, durante somente três semanas. Foi uma primeira incursão semi-científica para
escolher e delimitar um campo de pesquisa para o doutorado em antropologia sobre os
laços com a cidade realizado sob a orientação de Michel Agier. Retornei de lá com uma
promessa de moradia numa casa do próprio conjunto habitacional, então denominado
administrativamente “Sociedade Habitacional 2001” e mais comumente por seus
moradores de comunidade do “Marrocos” 2.
O conjunto habitacional popular contava, em 2005, com 200 unidades
habitacionais (casas). Ele está localizado na região administrativa da Secretaria Executiva
Regional II do município de Fortaleza e pertence ao bairro chamado antigamente de
Dunas e atualmente de Manuel Dias Branco.
2 Nomeação semi-pejorativa do conjunto habitacional devido ao fato do nome Marrocos representar uma
categorização pejorativa oriunda de uma novela (reforçado pela estrutura física do conjunto habitacional não
sendo asfaltado e com ruas de areia em meio à dunas nessa época). O substantivo “comunidade” é mais
ambivalente sendo um eufemismo que se refere à favela, mas usado para reforçar a ideia da existência de
uma representação e uma organização politica, mas acabando negando as diferenças e os conflitos
internos nesses espaços urbanos segundo Lícia Valladares. Ver: L. Valladares, La favela d'un siècle à
l'autre: Mythe d'origine, discours scientifiques et représentations virtuelles, 2006, p. 177.
Ao voltar para o trabalho de campo, no início do ano de 2007, não foi possível
residir no bairro. Ele havia adquirido mais 60, em virtude de um programa de política
pública de moradia do governo do estado do Ceará 3. Assim, a falta de um lugar para
morar no interior do bairro impediu a “aplicação” stricto sensu da famosa metodologia de
pesquisa chamada de observação participante tal qual teorizada por Bronislaw
Malinowski, por não poder ter uma imersão total e constante no meio estudado. No
entanto, já que não existe uma metodologia pronta para o uso numa pesquisa etnográfica
(ainda mais numa pesquisa sobre a cidade), fui pouco a pouco construindo uns arranjos
(ou “bricolagem”) como a maioria dos etnógrafos. O primeiro passo consistiu em alugar
uma
casa
no
bairro
de
classe
média
vizinho
(Cidade
2000),
localizada
a
aproximadamente 300 metros da entrada do conjunto habitacional da pesquisa. Isto
permitiu o recolhimento de muitos dados sobre a visão dos moradores de classe média
sobre o bairro que era o campo de pesquisa da etnografia proposta.
Nos primeiros passos da pesquisa de campo, o pesquisador começou visitando
quase diariamente alguns moradores que havia conhecido durante a primeira e curta
estadia. A imersão no campo se deu com a participação em “rachas” (jogos de futebol),
compras nos mercadinhos próximos, usos dos serviços locais, tais como os de costura
etc. Em cada um desses momentos, criavam se diálogos com as pessoas presentes e
observa-se tudo o que tinha acesso.
Essa abordagem assemelha-se a uma técnica chamada de observação flutuante
(“observation flottante”). Essa técnica foi elaborada e teorizada por Colette Pétonnet, com
base em reflexões provenientes de uma pesquisa de campo num cemitério parisiense
chamado “Père-Lachaise”. Trata-se resumidamente numa maneira de “flanar” ("flâner"),
tendo um objetivo científico e de se envolver com as pessoas e as conversações num
lugar específico. Esse método privilegia e enfatiza o encontro e pareceu, diante do
exposto, uma maneira mais prática de realizar a pesquisa. Sobretudo, quando
começaram a construir mais 600 moradias a partir do ano de 2007, pela facilidade em
encontrar certos moradores que foram contratados para os serviços na construção das
novas casas4. Contudo, apesar dos “felizes” encontros que vieram a suscitar, esse
método por si só não permitiu tratar a pesquisa de maneira meticulosa.
Posteriormente, o reforço do laços entre o pesquisador e os pesquisados permitiu
3 Durante a minha ausência, o conjunto habitacional foi urbanizado com o asfalto na maioria das ruas e a
ligação ao outro bairro vizinho denominado Cidade Dois Mil por uma rua asfaltada também. Antes, as ruas
eram de areia e a ligação com o outro bairro vizinho se fazia atravessando uma duna.
4
As referidas casas foram entregues ao longo do ano de 2009, e o conjunto habitacional começou a
se chamar administrativamente de “Reassentamento Gengibre” (devido ao nome da favela da qual a maioria
dos moradores são oriundos) como veremos mais tarde nesse texto.
de fazer parte das redes de algumas pessoas do conjunto. A partir daí, as visitas a campo
se tornaram mais fáceis e podia aproveitar-se para visitar as casas dos moradores do
conjunto habitacional. Outra oportunidade de fazer campo se apresentou durante uma
determinada época através de uma “agente de leitura” do programa estadual 5 de mesmo
nome, podendo assim coletar dados, bem como entrar em diferentes casas, ouvindo e
participando das conversas.
Foi possível também participar de alguns momentos políticos (devido aos laços
estabelecidos com a líder comunitária), tais como as reuniões do Orçamento Participativo
de Fortaleza, por exemplo.
Ademais, pode-se acompanhar, via as redes de amizade, pessoas em seu dia a
dia, indo às compras com elas, as vezes saindo para atividades de lazer, sendo
convidado e convidando as mesmas para a própria casa do pesquisador. Enfim, aos
poucos a etnografia foi se consolidando com uma rica participação do pesquisador na
vida social dos moradores e vice-versa.
A princípio, o objetivo dessa pesquisa era tratar o tema da violência nas classes
populares. Contudo, frente ao pelo qual ela se desenvolveu, o questionamento sobre a
violência se fez cada vez menos importante e começou a interessar a etnografia às
modalidades e sentidos da urbanidade para os indivíduos.
Assim, a pergunta central que emergiu desse encontro entre a curiosidade do
pesquisador e a vivência com eles. Posto isto, o interesse das incursões etnográficas se
concentrou em saber como os moradores “viviam” a cidade de Fortaleza a partir dos
modos de sociabilidades e das representações sobre ela, assemelhando à visão da
etnografia de Magnani (2003, p.84-85):
[...] a etnografia é uma forma especial de operar em que o
pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e
compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para
captar e descrever a lógica de suas representações e visão de
mundo, mas para, numa relação de troca, comparar suas próprias
representações e teorias com as deles e assim tentar sair com um
modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova,
não prevista anteriormente.
Para responder a essa problemática, delimitou-se dois eixos complementares. O
5
Esse programa propõe um tipo de biblioteca itinerante, visitando e permanecendo em todas as
casas de determinadas comunidades. Os agentes eram escolhidos dentro dos próprios bairros e recebiam
certa quantia de livros, os quais eles iam propondo de casa em casa (as famílias que podiam ter acesso a
esse serviço tinham que ser cadastradas e pertencer a uma faixa de renda muito baixa). O tipo de visita do
programa me permitiu conhecer várias casas e seus respectivos moradores.
primeiro se resume a conhecer as redes sociais desses indivíduos associadas a uma
análise das localidades em quais se encontram os membros dessas redes, traçando os
elos que se formam com a cidade. O segundo ponto questiona as modalidades da
individualização desses moradores “pobres” e os problemas de reconhecimento
enfrentados nesses processos6.
Num estágio mais avançado de pesquisa, foram realizadas entrevistas semidirigidas sobre os temas de pesquisa que surgiram ao longo de três anos de trabalho
campo. As entrevistas foram realizadas em momento oportuno, após aquisição de elos de
confiança recíprocos que se estabeleceram entre o pesquisador e seus interlocutores.
Esse método é oriundo da sociologia, mas permitiu, em alguns casos, aprofundar certos
dados sobre as representações da cidade pelos moradores pesquisados e o
entendimento de certas redes sociais que não eram muito frequentadas pelo etnógrafo
(como as redes religiosas, por exemplo).
Dessa forma, a construção de uma metodologia e os questionamentos que
surgiram sobre a problematização da pesquisa se influenciaram de maneira recíproca.
Isso se reflete também nas próprias ferramentas de gravação física de dados. Assim,
além do clássico diário de campo do etnógrafo 7, foi usado um método de fichamento
individual dos pesquisados mais relevantes e o fichamento de certas redes sociais
(familiares, amizades, etc.) inspirado pela abordagem metodológica de Michel Agier.
1.2. Contexto do trabalho de campo no bairro Bom Jardim
Uma das pesquisas que subsidiou este artigo se deu no Bairro Bom Jardim, com
objetivo de compreender como os moradores percebiam as situações de violência no seu
local de moradia e desenvolviam praticas cotidianas para lidar com elas no seu dia a dia.
Ao revisitar os dados desse trabalho, observou-se elementos comuns as duas
investigações que compõem esse paper. São dados que revelam moralidades sobre
como os moradores se identificam, reconhecem e estabelecem marcações morais e/ou
sociais que aproximam, separam, elaboram laços e fronteiras que passam a fazer parte
de seu cotidiano no Bairro.
6
No presente artigo, irá ser tratado somente das questões decorrente dos efeitos do preconceito na
vida urbana.
7
Onde são registradas todas as observações diárias do campo de um lado do caderno e algumas
elaborações furtivas do outro lado.
Antes de tudo é importante contextualizar o leitor da realidade social do campo de
pesquisa. Sobre o Bom Jardim, é importante destacar algumas questões preliminares.
Esse bairro localiza-se a sudoeste do Centro da cidade de Fortaleza, entre os bairros
Granja Lisboa, Granja Portugal, Siqueira e Canindezinho. No entanto, conforme o
sentimento de pertença dos moradores locais, o Parque Santa Cecília também faz parte
do bairro. De acordo com a cartografia oficial da Prefeitura Municipal, a comunidade faz
parte do bairro Granja Portugal. Não obstante, foi possível observar que é significativo o
reconhecimento dos moradores como “comunidade do Bom Jardim”. Um dado importante
sobre o Bom Jardim diz respeito ao fato das diversas localidades existentes no interior do
dele serem reconhecidas como espaços relativamente autônomos. O nome Bom Jardim
surgiu a partir das lutas sociais que, desde a década de 1970, mobilizam associações,
entidades de classe, Igrejas, Organizações Não Governamentais (ONG’s) e moradores
em torno de formação de redes de solidariedade em prol de melhorias nas condições de
vida dos moradores. O Bom Jardim é um lugar classificado como perigoso e violento no
contexto urbano da cidade de Fortaleza. O sistema de diferenciação territorial presente no
imaginário dos moradores das diversas localidades reorganiza esta representação,
permitindo que apareça nas falas dos moradores várias versões sobre a classificação
geral aplicada ao seu lugar de moradia. Deste modo, para segmentos de moradores
identificados com certas localidades, o bairro em si não é nem violento, nem perigoso,
mas, no seu interior, existem determinadas localidades que, “estas sim”, são violentas e
perigosas.
Observou-se que enquanto parte dos moradores reproduziam o discurso do lugar
violento, inclusive narrando uma série de acontecimentos que justificavam sua visão,
outros explicavam que essa imagem era fruto da discriminação e responsabilidade da
mídia, que só aparecia no lugar para “cobrir acontecimentos” que envolviam,
principalmente, homicídios. Neste universo de percepções diferenciadas dos moradores
locais sobre seu lugar de residência, havia um sentimento de que a imprensa da cidade
de Fortaleza contribuía para a formação de uma imagem negativa do Bom Jardim. Isso
porque, de acordo com os moradores, a imprensa local só aparece no bairro quando é
acionada para cobrir acontecimentos violentos. Em sua visão, a imprensa local não
aparece no Bom Jardim para apresentar, por exemplo, experiências e trabalhos
realizados pelas associações de moradores e ONG’s existentes no bairro, mesmo quando
“insistentemente” convidada por entidades e movimentos sociais. Desta maneira,
enquanto as experiências positivas aparecem raramente nas páginas e nas telas dos
jornais, os crimes, principalmente os mais graves, são exaustivamente apresentados e
reapresentados diariamente para toda a Cidade.
É importante destacar que muitos moradores reconhecem, mas destacam que
não existe apenas violência no Bom Jardim e a maior parte da sua população é de gente
muito trabalhadora. Não raramente, eles explicam o problema da violência urbana como
característica da cidade de Fortaleza, e não apenas do Bom Jardim. Isto revela uma
noção de que a Cidade em si é violenta, e não o Bairro. Segundo os moradores locais,
atualmente há uma generalização das atividades violentas que são praticadas pelos mais
diversos agentes, nos mais diversos lugares da Cidade. Ademais, como eles também
apresentaram em suas falas, o problema da violência urbana atinge todas as cidades do
Brasil. Isto deixa transparecer que existe, no plano cognitivo da população local, uma
expectativa dos fenômenos relacionados à violência urbana estarem ligados a uma
generalidade do País e não a uma especificidade do lugar onde residem.
Sobre o fato do Bom Jardim ser classificado por segmentos sociais da cidade
como um lugar violento e perigoso, parte dos moradores acreditam que, apesar de haver
situações de violências e crimes no bairro, essa classificação está associada muito mais a
uma espécie de estigma, que é uma marca preconceituosa e que desqualifica os
moradores, imprimindo uma imagem de pessoas perigosas sobre os mesmos. O estigma
é um atributo depreciativo que, como explica Goffman (1988), expressa uma linguagem
de relações e não apenas de atributos, pois o atributo que se aplica a um indivíduo, grupo
ou segmento é o que caracteriza a normalidade de outrem. Deste modo, o Bom Jardim é
um lugar violento e perigoso em relação a outros lugares da cidade de Fortaleza que,
supostamente, seriam mais calmos e tranquilos ou, pelo menos, abrigam os segmentos
mais pacificados da população local, enquanto na periferia residem “as pessoas
realmente perigosas”. Não obstante, internamente, existem as localidades classificadas
como as “realmente perigosas” e as áreas “realmente calmas”. O estigma de lugar
violento e perigoso acaba funcionando como uma espécie de medidor das possibilidades
de manifestação da violência em territórios mais ou menos perigosos. Os moradores das
áreas classificadas como as mais perigosas enfrentam, além do perigo real de ser vítima
de um crime, por exemplo, a depreciação inerente ao estigma de ser morador de um lugar
reconhecido socialmente como degradado pela violência e onde supostamente residem
os “elementos perigosos”. Diante disso, a pesquisa nesse campo se deu ao longo de dois
anos, com objetivo de compreender como os moradores retratavam a situação de
violência no seu local de moradia e lidavam com essa questão no seu espaço de relações
sociais.
Ao longo do trabalho, foram realizadas cerca de cento e dez entrevistas com
moradores, sendo setenta e duas com uso de gravador e as outras com anotações à
mão. Por diversos motivos, o gravador não foi útil e nem recomendável em certas
entrevistas. Em muitos casos os entrevistados solicitaram explicitamente para não gravar.
Como boa parte dos entrevistados solicitou anonimato, se estabeleceu isto como regra no
trabalho, dando nomes fictícios aos informantes, com exceção daqueles que fizeram
questão de serem identificados.
O objetivo das entrevistas era saber do morador como era a vida no Bairro, dando
enfoque a questão da violência urbana quando ela aparecesse espontaneamente na fala
do morador. Isto aconteceu em praticamente todas as oportunidades sem grande esforço,
pois para os moradores do Bom Jardim a marca de lugar perigoso em função da violência
é algo muito significativo e com o qual eles estão lidando a todo momento. Foi somente
depois de feita todas as entrevistas que a questão das moralidades me surgiu como
problemática presente, visível na maneira como os moradores reconheciam que havia
violência no bairro, mas que a mesma não poderia ser interpretada como um problema
geral e sim como específico a determinados lugares e grupos que compõem segmentos
muito específicos daquela população.
Antes de conhecer aqui o Bom Jardim, eu pensei que isso aqui fosse
tudo uma favela. (Professora do Ensino Médio de escola pública, há
dois anos trabalhando no Bom Jardim).A gente que vem de fora
pensa que isso aqui tudo é uma coisa só, mas não é. Você veja só,
tem casa aqui no Bom jardim de todo jeito. Com muro, sem muro,
duplex, acabada, inacabada, e assim é o pessoal, tem gente de todo
jeito aqui no Bom Jardim (Proprietária de um comércio, moradora há
13 anos do Bairro).
Essas ideias ajudaram a perceber que o Bairro é uma complexidade física social
e moral. Não ser “tudo favela” significa dizer que ali há lugares que não podem ser
interpretados a luz do que é social e moralmente reconhecido como uma favela. Os
moradores reconheciam que a favela era um lugar perigoso, repleto de disputas
territoriais, tráficos de droga e armas, além de conflitos que recorrentemente terminam em
mortes violentas. A favela ainda é também o lugar em que vivem pessoas
desavergonhadas, criminosas, vagabundas, depravadas e sem Deus no coração. A favela
no interior do próprio Bairro é o lugar do crime e da violência em virtude das moralidades
depravadas das pessoas que residem no lugar. Para saber mais sobre isso, o
pesquisador passou a frequentar lugares muito específicos que eram reconhecidos
socialmente no interior do Bairro como favelas. Não obstante, longe de se ter alguma
comprovação do que era tido sobre estes lugares, foram encontradas pessoas com a
mesma visão dos moradores de outras localidades. O seu lugar de moradia nunca
poderia ser lido como um todo, mas a partir de suas particularidades, pois apesar de ser
uma área mais pobre, estes lugares também eram reivindicados por seus moradores
como um lugar em que vivia gente muito boa e trabalhadora que não poderiam ser
classificadas em função dos “maus elementos” que viviam ali. Observou-se então que
existe uma mobilidade muito grande de classificações sociais revestidas de moralidades
que são ativadas em contextos muito específicos para demarcar, em situações chaves, o
lugar de si e do outro no contexto social.
2. As artimanhas sociais dos preconceitos
Ao se deparar com diversas falas durante as pesquisas de campo, os
pesquisadores ficaram confrontados em vários momentos com julgamentos alheios vindo
dos seus interlocutores. Vários desses julgamentos constituem uma fonte para acessar as
representações sociais e culturais dos pesquisados. Vários deles também estavam
fundamentados em visões preconceituosas, ou seja, formas de avaliação de outras
pessoas sem um conhecimento adequado ou exame crítico da opinião expressa sobre o
outro. Muitas dessas opiniões estavam fundamentadas em estereótipos depreciativos
sobre as atitudes dos outros. Isto permitiu que os pesquisadores observassem como
expressões como vagabundos, bandidos, drogados, raparigas, gente sem futuro, dentre
outras, serviam como demarcadores morais do lugar do outro em distinção do lugar de
nossos interlocutores.Ao longo do processo de pesquisa e das trocas de informações
entre os pesquisadores, era possível perceber que os informantes, na medida em que se
sentia mais a vontade, expressavam relativamente sem pudores opiniões e julgamentos
de valor sobre outros moradores. Esses momentos se tornaram fontes de informação e
muitas vezes possibilitaram aos pesquisadores se confrontar com os preconceitos na fala
de seus informantes. Essas expressões de preconceitos relevam dispositivos morais e
sociais sobre os quais este estudo se debruça.
Para Michael Hertzel, uma das maiores tarefas da antropologia consiste em
analisar os preconceitos dos “outros”, tanto quanto os “nossos”. Segundo ele, os
preconceitos e os estereótipos são sempre redutores, pois visam indagar a ausência de
uma característica supostamente desejável. Podem ser considerados como arma de
poder que tem uma ação na vida social e tira ativamente do outro um certo atributo 8.
Nesse artigo, importa saber como esses atributos negados atualizam formas de ver o
outro e ver a si mesmo diante do outro ao falar sobre o outro em seu contexto de moradia.
Ao por exemplo falarem de lugares perigosos no interior de lugares perigosos em
seus bairros ou sobre sujeitos perigosos que vivem ali, os moradores fazem usos de
preconceitos para estabelecer mediações, separações e fronteiras morais frente aos seus
interlocutores. Além disso, os preconceitos funcionam como marcadores sociais que
visam estabelecer o lugar daqueles que são seu alvo daqueles que o utilizam como
instrumento de distanciamento moral do outro.
É bastante comum que nas cidades e nas metrópoles, os preconceitos entre
classes sociais sejam formas recorrentes de se estabelecer as fronteiras morais entre os
mais diversos segmentos sociais. Além da distinção de classe, os bairros urbanos são
esquadrinhados em torno de distinções territoriais, nas quais se estabelecem distinções
morais entre pessoas que, mesmo pertencentes a uma mesma classe social, se
diferenciam socialmente conforme sua melhor ou pior qualificação territorial.
Pode-se verificar na fala dos moradores que existem uma série de enunciados
preconceituosos que se modelam em função de formas estigmatizadas comuns aos mais
diversos territórios urbanos. Assim é o caso da palavra favela, utilizada de maneira
completamente desprovida de um padrão normalizado institucionalmente e manejada
politicamente para falar de um lugar de gente suja, pobre, desqualificada, despudorada e
marginal. Se a favela não for suficiente como meio de desqualificar o outro, a residência
ou o estilo de vida são outros atributos presentes nas falas dos moradores para expor sua
visão desprovida de uma conhecimento mais profundo sobre o outro.
Para parafrasear um artigo famoso, a grande proximidade espacial nas cidades
provocam várias estratégias de distenciamento social 9. Pode-se considerar os
preconceitos entre classes sociais (e também dentro das mesmas classes sociais) como
fazendo parte dessas estratégias de distenciamento social. Essa mesma distenciamento
social através dos preconceitos se redobra muitas vezes de um caráter moral de vontade
8
As análises de Michael Hertzel sobre os preconceitos e os estereótipos se baseiam numa
etnografia dele sobre a Grécia atual. Mesmo se Michael Hertzel introduz uma diferenciação entre
preconceito e estereótipo, o primeiro sendo quase sistematicamente negativo e o segundo podendo ser
positivo mas sendo usado de forma estratégica, a analise dele sobre preconceito resta valida no que diz
respeito ao âmbito desse trabalho. Cf. M. HERTZEL, La pratique des stéréotypes, in L'Homme, 1992, p. 67.
Machillot usa também essa diferenciação. Ver: D. Machillot, Pour une anthropologie des stéréotypes:
Quelques propositions théoriques, Horizontes Antropológicos, 2012.
9 Cf. J.-C. CHAMBOREDON e M. LEMAIRE, Proximité spatiale et distance sociale. Les grands ensembles
et leur peuplement ,Revue française de sociologie, 1970.
reflexiva de diferenciação. Para simplificar pode-se considerar que as hierarquias
socioeconômicas são reforçadas com os preconceitos, com o objetivo de aumentar uma
distância entre quem enuncia e aquele que é alvo dessa enunciação. Assim, tratar o outro
como de maneira depreciativa não é apenas uma maneira de excluí-lo, mas incluí-lo em
um modo de refletir sobre o que o enunciador do preconceito não é, portanto é distinto,
detém um outro valor, embora isso não possa necessariamente ser provado
objetivamente. A fala de umas das interlocutoras desse ilustra bem essa questão.
O fato da gente ser pobre não diz nada. Porque a pessoa pode ser pobre e não ser suja,
não ser vagabunda ou uma pessoa sem cuidado consigo mesma e com a sua casa. Então o
pessoal ali daquela família que mora nessa rua ali mais para baixo é um exemplo. É tudo sujo lá,
cheio de bicho e os menino andam tudo sujo. É um horror... Eu nunca nem entrei lá não, mas você
passa em frente e ver aquele povo tudo ali sem fazer nada e pensa logo como é que eles vivem.
Deus me livre de julgar os outros, mas você ver logo que ali não tem gente de bem. (Dona de
casa que mora em uma rua considerada uma das mais perigosas de seu bairro).
Ao falar de outros moradores, a entrevistada destaca que apesar de morar em
uma rua considerada muito perigosa, esse atributo cabe a alguns ou a algum lugar no
interior desse lugar, segundo ela, tratado como um “todo muito perigoso”. Para ela a
situação não é bem assim, pois ali existem “realmente maus elementos”, contudo não se
trata de todos e sim de alguns. Essa mesma tática de requalificação de um preconceito
mais amplo é usual em uma série de outros casos em escalas diferentes. Em linhas
gerais, isto reelabora uma forma de preconceito comum a sociedade brasileira que,
segundo o sociólogo Jessé Souza, cristaliza um amplo espetro de preconceitos da classe
média sobre as classes populares que se encontra na nomeação provocativa de “ralé”. Os
membros das classes sociais inferiores ou seja essa “ralé” “[...] só é percebida no debate
público como um conjunto de “indivíduos” carentes ou perigosos 10”. Não obstante, a “ralé”
recria suas próprias formas de preconceito sobre si mesma, reelaborando as nomeações
sobre si em escalas, muitas vezes, microscópicas.
Na experiência de investigação do bairro de classe média adjacente ao conjunto
habitacional estudado, pode se encontrar várias falas de indivíduos de classe média sobre
os das classes populares. Exemplo disso é uma situação muito peculiar quando, ao se
estar em uma fila de uma agência bancárias da mediações, os indivíduos de classe média
demonstram um profundo incômodo em estar ali ao lado de pessoas que esperam pelo
recebimento de benefícios sociais. “Olha, esperando só por isso… Bolsa Família… E a
gente sabe que a maioria disso acaba em cachaça!” (morador de classe média do bairro
10 Cf. J. Souza, Introduçao, in J. Souza, A ralé brasileira : quem é e como viva, 2009, p. 21.
cidade 2000 de aproximativamente 50 anos). Para o interlocutor, os pobres que recebem
uma ajuda financeira do governo só podem ser pessoas que gastam com bebidas
alcoólicas. O uso do dinheiro do benefício pelos pobres é um alvo comum de preconceitos
das classes mais abastardas sobre as camadas populares. Em geral, o consumo de
álcool das elites e das classe médias não é colocado em questão, enquanto os membros
das camadas populares aparecem recorrentemente como alvos de preconceito por parte
dos segmentos mais abastados não apenas pelo seu consumo como pela possibilidade
dele.
Segundo Crocker, Major e Steele, as pessoas de estatuto elevado podem
estigmatizar pessoas de menor estatuto para justificar suas vantagens, sendo que os
preconceitos serviriam essencialmente para justificar ou legitimar desigualdades sociais
existentes em uma dada sociedade. Assim, desqualificar o outro que pertence a uma
classe social inferior é uma maneira de valorizar a sua posição socioeconômica de forma
reflexiva a partir da crença no mérito referente aos ganhos que me cabem e, portanto,
podem ser desfrutados merecidamente.
Em outros momentos da pesquisa, observou-se que as pessoas de classe média
continham uma advertência sobre a periculosidade de um estrangeiro se encontrar
naquele espaço urbano. Apesar da preocupação com o bem estar do outro, nessas falas
são recorrentes a assimilação do pobre a um indivíduo perigoso e aos locais de moradia
deles é vinculado uma percepção moral negativa, o que Robert Ezra Park chamaria de
região moral negativa.
Não obstante, um dado interessante, é que em circunstancias é comum encontrar
os mais diversos segmentos das áreas estudadas em certos bares e restaurantes que
aglutinam pessoas e criam a possibilidade de certos laços de afetividade e redes de
amizade. contudo, observou-se que
estes eventos não anulam as “barreiras” socioeconômicas, embora pareçam
relativizá-las. Pode-se ver que essas “barreiras” sociais ficam mais porosas em certas
situações de interação que, na tipologia das situações elementares da vida cotidiana
proposta pelo antropólogo Michel Agier (1999, p.97), corresponderiam aproximadamente
às situações rituais. Essas situações são marcadas por um distanciamento do cotidiano
regulado por diversas formas liminares. Elas realizam de maneira efêmera a unidade
entre o indivíduo, o espaço e a sociedade. Segundo esse autor, uma ordem específica de
relações e de identidades se cria e se torna possível pela definição consensual da
situação como momento de liminaridade. De um ponto de vista e em relação à pesquisa,
a mediação da liminaridade no enfraquecimento (mesmo se momentâneo) do estigma
social e das “barreiras” socioeconômicas nas interações interindividuais não é anódina.
Liminaridade essa que permite de sair por um “tempo” dos constrangimentos e das
dificuldades objetivas da “estrutura” 11.
Na dinâmica local de convivência, apesar das separações, percebe-se que existe
uma mixidade entre as classes que frequentam as áreas de calsse média e pobre da
Cidade 2000. Há certa aceitação de convívio determinada pela localidade em qual ela
acontece, nesse caso um determinado bar ou restaurante. no entanto. A investigação
também permitiu verificar que quando se trata de outros espaços (casa, bares em outros
bairros da cidade, etc.), os indivíduos marcam encontros entre aqueles da mesma classe
social. Assim, observa-se que há uma relação de ambivalência que depende do espaço
social e geográfico de convivência. Se a mixidade é até prezada em certos lugares, ela é
evitada em outros lugares. Isto acontece porque integrantes da classe média irão julgar a
presença de membros das classes populares inadequada. peresença de membros da
classe popular podem desqualificar um lugar eu, em geral, pode ser qualificado como
lugar de “gente bonita” ou “gente bacana”. Assim a presença de membros das classes
populares ali deve ser evitada, em geral pelas dinâmicas do preço, uso de roupas caras e
preconceitos devidamente mobilizados para manter “certo tipo de pessoa” longe dali.
É importante destacar que os fortalezenses sabem reconhecer as classes sociais
dos indivíduos em situações de interação. A hexis corporal, conforme teorizada por Pierre
Bourdieu, revela um conjunto de condutas, domínios do idioma e vestuário adequado para
o reconhecimento da condição de classe. A hexis corporal é diretamente ligada ao habitus
correspondente a determinado grupo social. É um conjunto de disposições e práticas
corporais que se desdobram jeito de se manter, falar, andar, olhar, conversar etc. Essas
disposições corporais são socialmente construídas e se baseiam num sistema especifico
de representações. Através dessas hexis corporais diferenciadas os indivíduos são
capazes de reconhecer a classe social de outro.
As investigações revelaram que as diferenças socioeconômicas são reforçadas
moralmente, reforçando as hierarquias sociais entre indivíduos de classe média e de
classe popular. Se de fato o individuo de classe popular deveria ter uma educação de
menor porte (diplomas inferiores, formação acadêmica inferior, etc.), o que Pierre
Bourdieu chamaria de capital cultural diferenciado, os preconceitos agregam a isto uma
série de desqualificações que irão reverberar das mais diversas maneiras na vida social
dos integrantes das camadas populares. É possível observar isso nas falas de moradores
sobre a busca de emprego.
11
Sobre essa questão ver o conceito de communitas do antropólogo Victor Turner (1990, p.160-176).
Sendo daqui, não basta ser bom. Você pode ser uma pessoa
esforçada, honesta e inclusive ter qualificação adequada para
ocupar aquele emprego que você tá buscando. O problema é que
quando você diz que é daqui daí já viu. O pessoal virá logo a cara,
nem olha teu currículo. Acham que por tu ser desse bairro tua já é
ladrão. Por isso eu minto! Dou endereço de outro lugar (universitária,
residente do Bom Jardim, relatando sua peregrinação em busca de
trabalho em outros bairros de Fortaleza).
Esta é uma situação recorrente relatada pelos moradores de classe populares em
relação ao preconceito sentido por eles, na pele, em momentos de entrevistas de
emprego. Este é um momento em que o preconceito generalizado contra o bairro popular
se reveste de negatividade ao impor limites para oportunidades de vida dos moradores
desses locais. Como foi possível observar, a existência desse preconceito, embora
considerada injusta, é atualizada de outra maneira no interior do local de moradia, sendo
a culpa por isso atribuída a outros moradores que, em tese, seriam os verdadeiros alvos
dos estereótipos presentes na mente de quem, supostamente, não contrata em virtude da
pessoa ser moradora daquela localidade.Outra situação emblemática, observada em
campo, diz respeito a um acontecimento que se deu em uma creche particular na qual
estudava o filho de uma das interlocutoras que residia na área de classe média
investigada. Segundo a moradora, o filho dela a colocou em uma situação constrangedora
ao, espontaneamente, falar para ela, na frente de outras mães, que uma outra criança da
sala dele morava na favela. Situação que ela disse ter revertido respondendo,
imediatamente, ao seu filho que essa criança morava em um conjunto habitacional e não
em uma favela. Isso pode apontar pela heterogeneidade da população do conjunto
habitacional (e dos bairros populares em geral). Ou, aos olhos de um indivíduo de classe
média baixa, um indivíduo de categoria popular não pode ser favelado porque investiu na
educação do seu filho na mesma creche particular. Logo, o bairro de moradia não é
considerado como favela por essa pessoa. Nessa configuração para se defender de uma
visão pejorativa de ser assimilada a uma pessoa que coloca o seu filho na mesma escola
que pessoas oriundos de favela, a nomeação conjunto habitacional foi valorizada e não
sob forma preconceituosa.
3. Os desdobramentos morais dos preconceitos
Ao falar do que há de ruim no interior do seu próprio bairro, os moradores
resgatam os problemas sociais estabelecendo diferenças morais entre eles e aqueles que
eles consideram os “verdadeiros” agentes dos problemas referentes a discriminação que
sofrem. Assim, há muita gente ruim no interior dos bairros investigados, que colaboram
negativamente para que o mesmo seja generalizado como lugar que alvo do preconceito
de outros. Dentre o público a qual os preconceitos sociais se instauram, o caso da
juventude pareceu emblemático aos pesquisadores. Jovens em geral podem ser alvos
dos preconceitos estabelecidos, mas são os mais pobres, do sexo masculino, com algum
tipo de envolvimento ilícito que parecem ser os principais alvos da discriminação presente
na fala dos entrevistados. Eles aparecem como “sujeitinhos” que são vistos como
possíveis maus elementos. Em geral, são culpados por uma visão mais ampla do
preconceito sofrido pelos moradores de áreas populares.
Observou também que jovens do sexo feminino são alvos de preconceito
constitutivo de moralidades construídas no plano da sexualidade. Seja porque são
apontadas como “depravadas” ou por exibir um comportamento considerado por
determinados moradores como inadequado. Estar em companhia de jovens do sexo
masculino que estão envolvidos em condutas desviantes também é um modo de ser alvo
do preconceito de moradores. Esta situação também se estende a mulheres adultas que,
porventura, estejam em relacionamentos como sujeitos classificados como bandidos no
interior da comunidade. Tal situação atinge inclusive mulheres que tem uma vivência em
comunidades religiosas, pois suas escolhas individuais não parecem poder ser lidas
independentemente das suas relações pessoais. Foi assim que uma moradora descreveu
uma “irmã” que frequentava uma comunidade evangélica o Bairro:
Tem uma irmã lá na Igreja que parece ser uma pessoa boa. O problema é
que o marido dela é um bandido conhecido aqui no Bairro. Daí, uma
pessoa dessa, a gente já fica com o pé atrás. A gente sabe que a pessoa
tá tentando seguir uma vida reta, mas é como diz o ditado: “me disse com
quem tu anda que eu te direi quem és”. Então eu assim não julgo a
pessoa, mas é uma pessoa que a gente não pode confiar completamente.
(Moradora aposentada, frequentadora de uma igreja evangélica).
Assim, observou-se que os preconceitos se movimentam em torno de situações
complexas que envolvem a condição social, o lugar de moradia, as práticas cotidianas, a
faixa etária, as relações pessoais e ainda o passado da pessoa. Mesmo indivíduos que,
segundo os moradores, estão hoje vivendo uma “vida direita” podem ainda sofrer em
função de experiências vividas em outros momentos da sua vida. Um morador certa vez
relatou que havia cometido muitos erros no passado, mas que agora era uma pessoa
direita. Mesmo assim, ele ainda sentia que, no dia a dia, as pessoas olhavam para ele
com desconfiança, com um olhar de suspeita em função dele já ter cometido crimes e
inclusive ter “curtido um bom tempo de cadeia”. Esses repertórios criam divisões sociais e
uma hierarquia moral na qual os moradores se inscrevem, tentando resguardar para si
mesmos valores que são positivados conforme o contexto em que estão envolvidos.
Em muitas ocasiões os pesquisadores se depararam com moradores que
pareciam se defender de algum tipo de acusação implícita presente no assunto suscitado
pelas perguntas. Situações em que, por exemplo, discutia-se as causa da violência nos
bairros pareciam inquietá-los, produzindo uma situação em que eles deviam afirmar sua
condição de boa pessoa diante de pesquisadores que, sobre hipótese nenhuma,
poderiam sair dali carregando alguma suspeita sobre a moral de seus interlocutores. Por
isso, os juízos de valor não poucas vezes tinham que ser compartilhados, exigindo dos
pesquisadores a sensibilidade de se fazerem, nos momentos de interação, interlocutores
morais capazes de ouvir atentamente com certo ar de certa reverência ao que estava
sendo dito.
Aprofundar certos questionamentos sobre o preconceito das pessoas também
não pareceu e ainda não parece uma atividade nada fácil. As pessoas não estão a
vontade para simplesmente reconhecerem seus preconceitos e expô-los a estranhos de
maneira consequente. Por isso, as informações com as quis os pesquisadores trabalham
estão nos entremeios de falas, considerando certo trabalho de abstração do que está
sendo dito de maneira relativamente controlada cognitivamente pelo interlocutor.
Trabalhou-se então com a ideia de escavar nas entrelinhas dos ditos aqueles elementos
que foram deixados ali meio a margem, por um descuido que muitas vezes não expressa
uma posição consolidada, reflexiva e inquestionável por parte de quem deveria ou não
expor tal visão sobre si mesmo e sobre os outros.
Ao estudar o racismo, Fanon (2008) demonstrou que o preconceito, longe de ser
algo que está escrito num lugar, movimentam-se no interior da cultura e do próprio grupo
discriminado por uma série de enunciações, práticas e representações muitas vezes
extremamente sutis, como um pequeno gesto de distinção. Em nossas pesquisas, foi
possível perceber que os moradores destacam a sua conduta moral como um modo de
ser diferente do de outros com quem moram. Frequentar certos lugares, participar de
organizações, ter uma história de vida digna, um emprego e profissão, ter fé em Deus,
estabelecer boas relações, ser uma pessoa responsável, alguém que tem uma boa
família, não se envolver em práticas ilícitas e ser conhecido como “boa pessoa” são
alguns elementos que o distinguem e estabelecem fronteiras morais importantes para a
sua identidade e reconhecimento.
Eu moro aqui nesse Bairro a mais de trinta anos e não tem nada do que as
pessoas daqui possam falar de mim. Hoje eu to aposentado graças a
Deus, minhas filhas todas criadas e bem encaminhada na vida... Tudo que
eu construí na vida foi com muito esforço e dedicação. Eu nunca me meti
em confusão com ninguém, nem mesmo quando eu devia porque aqui tem
muita gente ruim e invejosa que só quer o mau dos outros. Então eu acho
que eu moro aqui, mas mereço respeito como todo mundo porque eu sou
uma pessoa de bem. (Aposentado, casado e pai de três filhas).
As trajetórias de vida são um demarcador moral, mas também estão sujeitas a
arranjos muito particulares. Nem sempre o que está dito reflete a opinião de todos e pode
ser compreendido como unanimidade. O mesmo pai zeloso apresentado na fala anterior
era tido pelas suas filhas como um mulherengo que já traiu a mãe várias vezes. Esta se
dizia indiferente ao que o marido fazia fora de casa, sendo o que mais a incomodava era
sua prática de beber e chegar em casa embriagado. Não obstante, apesar dessas
considerações, sobre a família pesava a visão de que eram pessoas boas que se
distinguiam de moradores envolvidos em “coisa muito pior”. É importante destacar esse
dado, porque, conforme foi verificado, o preconceito se movimenta em linhas tênues
dentre o que é aceitável ou não por determinado grupo social em determinados contextos
e situações. Assim, o sujeito nunca é alvo como um todo, mas a partir de práticas e
situações em que a sua moralidade frente a população com quem mora pode ser
questionada por outros mais bem disposto a achar, por exemplo, que trair a esposa e ficar
embriagado recorrentemente são coisas moralmente inaceitáveis e portanto dignas de
avaliações morais negativas.
Apesar de uma multiplicidade de situações e esquemas muito particulares, a
condição de morador de um Bairro estigmatizado pela pobreza e violência é algo que diz
muito sobre como os moradores lidam moralmente com uns e outros em seu cotidiano.
Muitos moradores entrevistados gostariam de sair do seu atual lugar de moradia por
acreditarem ser discriminados. Sair lhes garantiria não apenas uma melhor condição de
vida como significaria uma fuga dos preconceitos que sofrem no contexto urbano da
cidade de Fortaleza.
Eu queria sair porque morar aqui é muito difícil pela gente ser discriminado
o tempo todo. Hoje eu e minha esposa até ganhamos bem, mas o
problema é que a nossa casa aqui é própria e muito boa. A gente teria que
alugar ou vender por um preço que não daria pra gente comprar outra da
mesma qualidade em outro Bairro. Daí vamos ficando mas é complicado”.
(trabalhador de 34 anos da iniciativa privada).
Encontra-se na periferia de Fortaleza moradores com rendas de até dez salários
mínimos, mas que preferem ter sua casa própria, espaçosa e com um quintal do que
morar em outras partes da cidade em imóveis bem menos interessantes do ponto de vista
do seu conforto interno. Isso os mantem numa situação ambígua porque se sentem como
pessoas de classe média que residem em um bairro popular. Estes moradores muitas
vezes não estabelecem relações no interior do bairro e como dispõem de automóveis
muitas de suas interações e lazer se dão sobretudo fora do local de moradia, com
pessoas de outros bairros. A distinção moral entre eles e os que estão ali por
“necessidade” os coloca em uma posição social diferenciada, pois para estes sua
condição de classe média torna o entorno um peso sobre suas vidas. Os moradores do
bairro são algo diferente, com quem eles evitam ter contato, a não ser o menor possível.
Por isso, em suas falas, não poucas vezes, eles fazem questão de acentuar as relações
mais importantes para eles se encontram fora daquela região de pessoas que não
dispõem das mesmas condições econômicas e sociais.
A escolaridade também é algo reivindicado como um elemento moral de distinção
social. Para moradores escolarizados, sobretudo de nível universitário, as sociabilidades
nos bairros populares são consideradas difíceis pelo “pessoal ser muito ignorante”. Para
os moradores com melhores condições sociais, as escolas do bairro são lugares
desprovidos de bom ensino e, portanto, são evitados como forma garantir aos filhos não
apenas um melhor ensino como uma separação daqueles que “não tem futuro”. Os “sem
futuros” podem ser alvos tanto da ideia de investimentos precários do Governo e da
iniciativa privada nas escolas do bairro, quanto do fato de serem dotados de um
comportamento negligente em relação aos seus projetos de vida. São pessoas, em geral
jovens, que vão para escola só para “fazer baderna” e cometer atos ilícitos. Este espaço
então devem ser evitado e os jovens que desejam ter um futuro melhor devem buscar em
escolas fora do bairro as condições para construir seus projetos de vida e um bom
caminho. Cometer erros em relação as oportunidades da vida pode significar cair na vala
comum que estabelece uma série de preconceitos, sendo a pobreza um destino
considerado desqualificado pelos que acreditam na necessidade de “vencer na vida”
como algo moralmente importante.
A pobreza é assim um problema social que unifica uma série de outros problemas
e de certa forma cria uma base geral pela qual os moradores tergiversam e elaboram
seus preconceitos sobre os outros. Não obstante, do ponto de vista simbólico, não há um
índice de pobreza aceitável ou não, ela apenas é um fator que pode ser manejado para se
falar do outro e de suas precariedades morais. Ela não explica tudo, nem tão pouco é
desconsiderada pelos moradores para falar dos mais pobres, dos favelados, dos
vagabundos, dos sexualmente depravados, dos drogados, dos sem escolaridade
adequada etc. Ser destinado ou cometer ações que levem a condição de pobreza
mobiliza moralidades nas quais os preconceitos entre os próprios moradores são
alimentados e retroalimentados.
No que diz respeito, especificamente, a pesquisa de campo no conjunto
habitacional Reassentamento Conjunto Gengibre, percebeu-se que a vontade de
nominação do espaço de “conjunto habitacional” não é unicamente fruto de uma categoria
política ou arquitetônica de tipo de moradia. Pode se entender sob o prisma da vontade
de distinção entre os moradores do novo bairro popular de moradia em relação ao antigo.
Era o antigo Gengibre que aglomerava sobre si as categorias depreciativas e o estigma
de favela (poucas casas com saneamento básico, acessibilidade difícil, casebres de
material recuperado, etc.). Aliás, o bairro do Gengibre é chamado pelos moradores do
conjunto habitacional de “morro”, para enfatizar um tipo de distinção social em relação aos
moradores do Gengibre. Praticam o que o Loïc Wacquant (2006) chama de “difamação
lateral” junto a uma “distanciação mútua”. Noutras palavras, eles transferem os estigmas
dos quais são potencialmente vítimas sobre outras pessoas que, em relação às
representações sociais vigentes no contexto urbano, lhes são semelhantes. Eles
incorporam os preconceitos em vigor nas classes médias e superiores sobre as
populações menos favorecidas e recuperam os discursos de estigmatização para aplicálos aos próprios pares. Se Loïc Wacquant (2006) analisa de maneira diferente, porém
magistral, os efeitos negativos desse tipo de processos, o que se deseja aqui é se valer
desses mesmos processos sob outra perspectiva. Sem negar os efeitos negativos de tal
transferência de estigmatização que acaba servindo de apoio aos políticos, às mídias e ao
senso comum em geral para reforçar os discursos de estigmatização social (o “bom
pobre” e o “pobre ruim”), interessa neste trabalho observar como isso é ativado para
construção de formas morais de individualização. Através desses processos, os
moradores do conjunto habitacional procuram reforçar uma visão positiva deles mesmo
em relação a um espaço urbano de moradia valorizado ou em processo de valorização.
Em vários discursos dos moradores do conjunto habitacional, aparece essa
distinção. Num primeiro tempo sobre as próprias estruturas físicas dos bairros e das
casas. Mas essa distinção é também reforçada por eles na questão dos tipos de
moradores dos dois bairros. Numa conversa com uma jovem moradora do conjunto
habitacional, ela indaga que “as pessoas de lá [o bairro Gengibre] não têm as estruturas
para morar aqui. Pois, eles nem conseguiriam pagar as contas de água e luz”. Através
dessa fala, ela quer estabelecer uma diferença entre os tipos de moradores. Falando
assim, ela não indagava em si as diferenças de renda entre os moradores dos dois
bairros, mas a maneira de se organizar financeiramente. Sabendo dos critérios de escolha
dos beneficiados pelo programa de moradia, esse argumento não possui muito peso do
ponto de vista econômico, mas tem toda uma significação moral em sua elaboração.
No que diz respeito a diferenciação interna ao conjunto habitacional, pouco a
pouco vai se desenvolver percepções diferenciais entre moradores mais antigos e mais
novos. O estranhamento inicial vai desembocar em preconceitos e formas de
estigmatização baseadas no formato presente, em geral, na relação da classe média com
as classes populares classificadas e distanciadas por serem consideradas pela primeira
como classes perigosas. As ocorrências de violência urbana (que sejam no próprio bairro
ou no bairro adjacente da Cidade 2000) vão ser sistematicamente atribuídas aos últimos
que chegaram sem identificar exatamente a quem são os responsáveis por esses atos.
Esses preconceitos vão se redobrar e ampliar sobre a população que ocupou com
autoconstrução uma área do conjunto habitacional. Nesse caso, a partir de uma
diferenciação jurídica de moradia, um tipo de população passa a ser estigmatizada por se
apropriar de maneira considerada “ilegal” do espaço. Vão ser taxados de pobres sem
respeito e sem moralidade pelos outros moradores do conjunto habitacional. Essa
modalidade não deixa de conter certa dose de ironia, em virtude da população quase toda
ser oriunda de ocupações (de tipo favela) e acessarem à uma moradia nova apenas após
intervenções do Estado em forma de programas de moradia. Assim, foi possível observar
que a favela, menos do que uma questão territorial, envolve sentimentos e visões dos
moradores, tornando essa denominação o substrato de lutas simbólicas pela
denominação do lugar e as formas de reconhecimento de si e dos outros.
4. Considerações finais
A partir dos dados de campo, ao pensar sobre como na periferia das cidades os
moradores estabelecem formas de conhecimento e reconhecimento de si e dos outros,
questionou-se sobre certas formas de preconceito que escapam aos modelos tradicionais
do racismo ou contra os pobres em geral. A análise permitiu ver que os próprios pobres
constroem formas de interação na qual o preconceito apresenta certas peculiaridades
muito sutis e fugidias. Além de estabelecer a identidade moral do outro, as moralidades
presentes nas falas do moradores também estabelecem algo sobre si mesmos, sua
própria identidade e a forma como se sente no meio social em que vive.
Não é evidente que o preconceito apareça nas relações investigadas como uma
maneira explicita pelo qual pessoas de uma raça, cor, condição social ou educacional são
excluídas ou vítimas de uma violência simbólica. Este preconceito parece ser ativo e
subterrâneo, estando em uma atmosfera de relações implícitas que não são negadas ou
afirmadas como formas de bandeira. Percebeu-se que, em determinados momentos, as
falas dos moradores parecem estar acomodadas em repertórios que permeiam o fato dele
esperar se “sentir bem” frente aos seus entrevistadores. Falar com um estranho sobre sua
vida pode significar muito, pois o que está em jogo nesta interação não é apenas a
verdade, mas formas de parecer ser que devem comportar valores morais em que tanto
morador, quanto pesquisador estão implicados.
Ao falar da violência, observou-se que os moradores não encaram a realidade
dos seus bairros como um todo, mas a partir de considerações muito específicas e
julgamentos morais que reelaboram o preconceito que sofrem. Assim, ao pensar sobre os
problemas de seus bairros, os moradores ativam formas morais que discriminam e
incriminam determinados sujeitos no interior de uma população estigmatizada e
subalterna no contexto mais amplo da cidade de Fortaleza.
Os diversos exemplos oriundos dessas pesquisas de campo nos fazem refletir
sobre a forte presença dos preconceitos nas falas dos pesquisados. Se baseando em
estudos oriundos da sociologia e da psicologia social, Serge Guimond afirma que os
preconceitos seriam causados por fatores como a frustração pessoal, a privação
econômica, o feedback negativo, um revés pessoal ou a ameaça a estima de si 12. Esse
último caso, a ameaça a estima de si, parece ter um forte impacto social e simbólico na
enunciação de preconceitos a partir dos casos apresentados. Outro dado importante diz
respeito ao ponto de vista do individualismo. Ao tomar a cidade como espaço urbano
associado ao individualismo a análise adquire outra relevância. Essa individualização não
interessa a pesquisa como finalidade ou como imposição para o ser urbano se tornar um
indivíduo, mas como uma gramática do indivíduo que permite situar os apoios ou suportes
dos indivíduos nas suas relações com a cidade e com a diversidade “hibridada” dos
regimes de interação13.
Assim, pode-se considerar os preconceitos como uma forma de apoio ao
12
Cf. S. Guimond, La fonction sociale des préjugés ethniques, 2006, p. 2.
13 Ver D. Martuccelli, Grammaires de l'individu, 2002.
individualismo para com os indivíduos que os proferem. Eles são usados para se sentir
melhor consigo mesmo e frente a sociedade. Eles representam uma forma de se situar
em diversas hierarquias urbanas. Por um lado, eles são um modo de expressar para os
outros as diferenciações e os julgamentos de valores, e por outro lado eles são um modo
de expressar para si mesmo sua diferenciação com os outros. Os defeitos atribuídos aos
outros de forma preconceituosa colaboram na construção da individualidade para se situar
no mundo urbano.
Ao seguir a terminologia de Danilo Martuccelli sobre o individualismo, os
preconceitos podem ser concebidos também como armadilhas do individualismo. Caso o
apoio venha a “romper”, pode deixar o indivíduo numa postura delicada. Se o preconceito
atribuído ao outro se revelar falso para o indivíduo, a construção positivada de si é
desvalorizada ao mesmo tempo. De outra forma, quando um indivíduo de um bairro
estigmatizado começa a estigmatizar o seu vizinho na praça pública, ele reforça o
preconceito de outras pessoas contra o próprio bairro, o que pode acabar se voltando
contra ele mesmo.
Na França dos 1970, Jean-Claude Chamboredon e Madelaine Lemaire já
analisavam uma das características sociais das cidades, sendo que frente à proximidade
espacial, os indivíduos de classes diferentes expressavam vários tipos de distanciações
simbólicas. Essas estratégias simbólicas aconteciam também entre moradores dos
mesmos conjuntos habitacionais franceses. Os discursos preconceituosos sobre os outros
faziam parte dessas estratégias de diferenciação simbólica. No caso francês, um dos
recursos preconceituoso mais usados se refere aos preconceitos étnicos.
Nos contextos urbanos, ricos em diferenças, é importante entender os
preconceitos também como posturas defensivas ou agressivas de se situar de modo
hierárquico nas sociedades urbanas. Para Michel Wieviorka, a produção de uma diferença
deve comportar em si um princípio positivo. Isto permite ao ator construir sua estima por
ele mesmo e se representar aos seus próprios olhos tão quanto aos olhos da sociedade,
não somente sob o prisma da privação, da exclusão e da desqualificação, mas também
como ser capaz de agregar algo construtivo, positivo e culturalmente valorizado ou
valorizável14. Perceber como isto funciona nos contextos urbanos pesquisados é
compreender a forma pela qual os moradores de bairros populares, diante de uma
situação muito particular, agregam valor ao seu mundo e portanto a si mesmos diante de
um rearranjo de preconceitos sociais vividos por eles.
14 Alias para Michel Wieviorka, uma sociologia da diferença é necessariamente também uma sociologia da
hierarquia social, da dominaçao e da exclusao. Cf. M. Wieviorka, La différence. Identités culturelles: enjeux,
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