Marie Gouze e a Revolução do Mirena
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Marie Gouze e a Revolução do Mirena
Nesta edição, publicamos o interessante texto de José Adércio Leite Sampaio, Procurador Regional da República e Professor Universitário, que trata da possibilidade de um novo mundo, mais feminino e cooperativo, que poderá nascer a partir de um maior alcance do Poder em geral pelas mulheres. Marie Gouze e a Revolução do Mirena “Homem, és capaz de ser justo? Uma mulher te faz essa pergunta”. (Olympe de Gouges) Dois livros que li recentemente me deixaram com a sensação de agenda enfadada e, ao mesmo tempo, de que vivemos tempos agitados, embora, às vezes, se pareçam mornos e sem gosto. “Legends: Women Who Have Changed the World Through the Eyes of Great Women Writers [Lendas: Mulheres Que Mudaram o Mundo por meio dos Olhos de Grandes Escritoras]”, organizado por John Miller e Anjelica Huston (New World, 1998), e “Marie-Olympe de Gouges”, de Olivier Blanc (René Viénet, 2003). Nos dois, há a glória e mistificação da mulher sob um olhar,em parte, machista; na outra parte, pós-feminista, o que pode significar para muitas uma coisa só. Minha curiosidade para os ler foi aguçada por uma leitura descompromissada sobre o estado da arte do feminismo e uma frase perdida entre tantas frases desse movimento: até o Neolítico, as sociedades eram matriarcais e os deuses eram na verdade divas. O mundo devia ser mais colorido e feminino. Tenho de confessar que essa leitura foi coincidentemente acompanhada por uma conversa de café entre duas mulheres. Elas, entre diversos assuntos, das trivialidades do cotidiano aos comentários do novo filme de Polanski, faziam apologia ao Mirena, esse DIU, DIU não, SIU, que trouxe uma nova revolução à vida das mulheres: nada do incômodo bolorento dos mênstruos (razão de terem sido associadas na Idade Média aos vapores de Lúcifer), e, de quebra, redução do humor infernal da TPM. Redução, pois, dizia uma delas, o humor se diluíra por todo o mês. Mulheres,permitam-me, essa concentração de gênio e beleza, instabilidade e emoção, o deslumbre da natureza (para o deslumbrado Schopenhauer), estão fadadas a recuperar o poder. Fico a imaginar como será esse tempo. Haverá ainda guerras, opressão, injustiça? Mudaremos o calendário, os símbolos nacionais e as datas comemorativas? O vestuário, o blush e o batom terão nova simbologia e importância? O catálogo de direitos fundamentais será redefinido? O poder deixará de ser dominação, como o definiu o mal-humorado Weber, e significará cooperação, como o via (trocadilho deliberado) a apaixonada Arendt? Tanta pergunta que até fico a hesitar nas respostas, provavelmente, sob o contágio daquelas que conseguiram romper as barreiras masculinas de acesso aos mais altos cargos civis e públicos. Elas, em meus olhos míopes, mas não nas entusiastas escritoras de “Legends”, costumam ser mais rigorosas, menos tolerantes, mais estridentes. Mas até que ponto não será o ranço do caráter pueril dos homens impregnado na cultura comum e o rescaldo da necessidade de autoafirmação? O tempo feminino ensinará outras lições quando esse legado passar. Triunfarão, é certo. Queira ou não essa legião de paletós e chapéus invisíveis; os herdeiros de Nietzsche que acham mesmo que mulheres cultas, obstinadas e competentes são símbolos de mulheres com problemas de sexualidade. Que o diga Marie-Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, que conquistara os requintados salões parisienses no final do século XVIII, espalhando beleza e inteligência, arrasando mentes, casamento e corações. Foi ela a autora dos Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791, uma resposta feminina e feminista ao unilateralismo masculino da Declaração de Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789. A Declaração de 1791 proclamava uma sociedade humana justa e igualitária, garantindo-se o voto da mulher e o fim da escravidão. Marie era ainda intransigente defensora do direito ao divórcio e, contam alguns biógrafos, das relações extraconjungais. Todo monopólio, dizia, era deletério, uma negação da liberdade humana. Há quem diga que ela não passava de uma libertina e oportunista que vivia à custa de seus amantes. Mas isso parece mais um desdém de quem, feito Robespierre, a prefere na guilhotina a viver com a sua sombra, o seu perfume e sua sagacidade no rosto e corpo de suas herdeiras que andam a desfilar seus saltos, sua sexualidade e, por que não, a revolução do, do não, da Mirena nos cafés da vida. Não os escutem, todavia, pois são clamores de quem prepara a própria guilhotina, endométrios renegados à sorte dos condenados e dos suicidas.São mesmo tempos agitados esses em que vivemos. Fonte: Revista digital domtotal.com, link: http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=2194
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