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título: JOSEPH BEUYS - AS PORTAS DA PERCEPÇÃO
autor: Emanuel Dimas de Melo Pimenta
ano: 2001
Joseph Beuys, arte, filosofia, estética
editor: ASA Art and Technology UK Limited
© Emanuel Dimas de Melo Pimenta
© ASA Art and Technology
www.asa-art.com
www.emanuelpimenta.net
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JOSEPH BEUYS - AS PORTAS DA PERCEPÇÃO
emanuel dimas de melo pimenta
2001
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No ano de 2001 �������
Joseph Beuys
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completaria oitenta anos de idade.
Vinte anos antes, Beuys alertava para o facto de o mundo ter sido
desflorestado com uma violência sem precedentes.
Sete mil carvalhos para dar início a um reflorestamento planetário.
Um momento de acção.
Um ponto de mutação cósmico, social, político.
Beuys acreditava que em cinquenta anos, a partir daquela data, a
população mundial estaria mais consciente da importância das questões
ambientais.
Quando lhe perguntaram a razão para o uso do carvalho e não de outra
árvore qualquer, insinuando alguma ligação com um Germanismo, Beuys
respondeu defendendo que, ao contrário do que se acreditou durante algum
tempo, o carvalho era uma árvore predominante presente em países anglosaxãos e não nos germânicos.
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Beuys dizia com indisfarçada admiração do facto de o carvalho ter sido
não somente a árvore que caracterizou profundamente a cultura das mais
diferentes sociedades do norte e do sul da Europa durante mais de dois mil anos,
como também por ter sido a árvore símbolo para a cultura Druídica Celta.
Mas, para Beuys um símbolo era articulado numa dinâmica rede de outros
símbolos, tudo em acção. Não havia, para ele, ao contrário do que algumas
pessoas poderiam supor, algo que fosse único, exclusivo, privilegiado.
Tudo para Beuys era cunhado sob o signo da diversidade.
Vinte anos se passaram.
No início do terceiro milénio existem, em todo o mundo, cerca de
seiscentos milhões de automóveis em circulação e cerca de setecentos milhões
de aparelhos telefónicos em permanente utilização. Nesse contexto, mais da
metade da população mundial vive em absoluta miséria.
Apesar de tudo, em geral, as pessoas parecem ter ficado um pouco mais
alerta a tudo o que diga respeito ao ambiente – pelo menos no que diz respeito
ao plano físico do ambiente.
O lixo reciclado que há trinta ou quarenta anos era considerado uma
proposta utópica de Beuys é hoje uma realidade em praticamente todos os
países do chamado Primeiro Mundo.
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O que eu gostaria de focalizar aqui, neste momento, é algo um pouco
diferente.
Primeiramente, o facto de que Joseph Beuys era um artista. De que
estamos lidando, neste momento, com uma reflexão sobre a arte – sobre a
história da arte, da arte contemporânea. Que estamos falando de estética, e
também de poder, de ética, e de religião.
Tudo simultaneamente.
Mas, não estamos falando de algo material, de algo que possamos tocar
fisicamente.
Esse curioso e fascinante espelho – a estética, o poder, a ética e a religião
tomados num único fôlego; e a imaterialidade, a desmaterialização da cultura
material – é algo que me parece essencial na obra pensamento de Joseph
Beuys.
Com grande velocidade, podemos enfeixar aqueles quatro elementos
numa única síntese: o sagrado.
Não indiquei aqui quatro elementos sem alguma razão. Quando Beuys
pensava a Natureza, o número quatro era uma referência primeira. Quatro
princípios, quatro seres vivos, quatro vegetais, quatro pontos cardeais, quatro
portas da percepção.
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Também no Egipto Antigo, quatro eram os elementos que diferenciavam
o mundo dos mortos do mundo dos vivos, o oeste e o leste, a noite e a manhã
– tudo cruzando os dois lados do Nilo.
Essa visão cósmica e ecológica de Beuys articulava o alecrim, o louro, a
oliveira e o carvalho, quatro portas, quatro mundos – o amor, a comunicação, a
criatividade e os valores humanos.
Mas, não eram símbolos no seu sentido clássico – eram, antes, indicadores
de acção, de movimento.
Quem visitar Bolognano e a praça dedicada a Beuys, elaborada por
Lucrezia De Domizio, rapidamente identificará essas quatro portas. Mas, para o
fazer é preciso conhecer, é fundamental saber.
Essa é uma das mensagens de Beuys: estar imerso no maravilhoso tecido
do conhecimento.
A palavra símbolo lança as suas raízes no Grego symbolon, que significa
co-incidir, cair junto. Ou seja, tratam-se de relações complexas.
O símbolo opera no domínio da razão, e não há símbolo sem uma
complexa rede de conhecimento, de significados, de conteúdos.
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Em termos lógicos, o número quatro não pode ser impunentemente
reduzido ao número dois – como a luz e a escuridão, o sim e o não. Nem é
predicação, atributo por excelência do número três.
O número quatro é permanente rotação.
Mudança.
Dinâmica e turbulenta estratégia.
Quatro símbolos acção que cunham uma sinergética rede de relações.
O alecrim, desde tempos imemoriais, é identificado com os signos
zodiacais de capricórnio e de gémeos. No Antigo Egipto, pelo facto das suas
folhas estarem sempre verdes, era considerado símbolo da imortalidade. Luís
XIV chegou a considerar o alecrim como a verdadeira fonte da juventude.
Imortalidade, ideias que passam de uma a outra geração. Algo que
sobrevive aos nossos acanhados, precários e provisórios corpos. Algo que
transcende o nosso conhecimento individual.
Verdadeira transgressão do tempo e do espaço através da comunicação.
Quando pensamos no louro, como podemos evitar, onírica e magicamente,
uma viagem maravilhosa ao mundo de Ovídeo nas suas Metamorfoses?
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O primeiro amor de Apolo foi Dafne – Ovídeo começa assim a história.
Após uma dura discussão com Cupido, fazendo uso de um traiçoeiro ardil, Apolo
o vence numa disputa de arco. Dafne ainda não conhece o amor. Vencedor,
Apolo mergulha pela floresta. Mas, do alto dos céus, ferido pela traição, Cupido
dispara duas setas, destinadas a diferentes fins: uma põe em fuga o amor, outra
o provoca. Com esta, Apolo é ferido, com a outra, Dafne. E ela corre, fugindo
de Apolo, que está a todo o momento prestes a alcançar, que acompanha de
perto, de focinho estendido; ela, na dúvida, imagina que será apanhada, livrase das dentadas do cão e escapa da boca que a toca. Assim, o deus e a virgem,
ele repleto de esperança e ela de medo. ...roça as costas da fugitiva, junto à
nuca, cujos cabelos o seu próprio sopro agita. Exausta, Dafne implora ao pai,
Prometeu, e um pesado torpor lhe invade os membros – seu delicado peito se
reveste de fina casca, os cabelos se transformam em folhas; os pés, que até
agora corriam tão velozes, são raízes.
Metamorfose cruel, Dafne se transforma num loureiro.
Apolo, desesperado, toma as suas folhas como símbolo eterno daquele
momento profundo.
O amor e a alma possuem uma ligação vital. Em Grego, psyche significa
mente, espírito, sopro, vida, alma.
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Todos esses significados preenchem o nome da deusa Grega cuja beleza
era incontornável. Vénus, enciumada com a beleza da jovem Psiqué a decide
destruir. Chama o filho, Cupido, para que cumpra a missão.
Obedecendo às ordens da mãe Cupido parte mas, subitamente, assim
que vê a jovem Psiqué, fica perdidamente apaixonado.
Sem saber o que fazer, confuso, Cupido procura a ajuda de Apolo –
justamente aquele a quem ferira com a seta do amor.
No início contrariado, Apolo acaba por ceder à embriagante paixão de
Cupido e decide ajudá-lo.
Através de um oráculo, Apolo ordena que Psiqué seja abandonada pela
família, vestida como morta, no alto de uma montanha.
Desesperada, perdida no abandono, Psiqué adormece profundamente.
Quando acorda, encontra-se num maravilhoso vale. Nele, há um palácio com
infinitas portas.
Portas da percepção.
É a vida que renasce do abandono, da rejeição.
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Penetrando pelo magnífico palácio ela encontra em cada sala novas
encantadoras surpresas – tudo envolto por misteriosas invisíveis vozes daqueles
que dizem ser seus criados.
À noite, sem que ela possa distinguir das sombras, ao leito vem o marido,
misterioso, invisível, delicado. Vê-lo significaria a desgraça para ambos.
Ela está morta, mas também viva.
Vénus e Cupido estão satisfeitos, porque nada se vê.
Depois de algum tempo, dias, meses talvez ou mesmo anos, durante uma
das mais apaixonadas noites, segreda ao marido o desejo de reencontrar as
irmãs. Ele, cauteloso, avisa-a do perigo. Ela implora.
Tudo lhe é concedido e Psiqué viaja para rever as irmãs. Pura, ingénua,
conta-lhes tudo, da insondável fortuna preparada pelo destino. Ódio disfarçado
pelos falsos lábios sorrisos, paralisia do mundo pelo veneno da inveja, as irmãs
a convencem romper o acordo e, finalmente, lançar os olhos sobre aquele que
era o misterioso ser.
Afinal, poderia ser um monstro!
Poderia, na sombria quietute nocturna, devorá-la.
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De volta ao palácio, calma noite, o misterioso ser está mergulhado
em sono profundo. Passo a passo, cuidadosamente, Psiqué o ilumina com a
lâmpada de óleo e vê o mais belo ser que jamais poderia imaginar. Comovida,
tocada pela própria traição, os seus passos se confundem, vacila, falta-lhe o ar,
as mãos tremem e da lâmpada uma pequena gota de azeite queima Cupido…
que se desintegra para a sua presença.
Todas essas histórias parecem costurar a permanente relação entre vida
e morte, conjunções e disjunções.
Mas, há ainda a história de fénix. Fabuloso pássaro mágico vindo da
Etiópia, lenda que generosamente se confunde com Hórus.
Uma gigantesca águia de todas as cores, símbolo da morte e da
ressurreição. Espécie única, reproduz-se sozinha. Busca mirra, louro, alecrim,
azeitonas, com as quais faz um ninho no alto de um carvalho. O ninho se queima
e o pássaro morre, para renascer das suas próprias cinzas.
A cada um dos seus ciclos de vida, nasce uma nova era na Humanidade.
Quantas imagens terão passado pela vida de Beuys!
Quantas descobertas, quantas surpresas terão impregnado a sua alma!
Quatro.
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O alecrim, o louro, a oliveira e o carvalho. O amor, a comunicação, a
criatividade e os valores humanos.
Estética, poder, ética e religião.
Eterna rotação.
Mudança.
Tudo estruturado num sistema para o qual o estereótipo não é possível.
A rede de símbolos, de co-incidências ao nível dos seus elementos, é
de tal forma interactiva que todas as relações se apresentam, a priori, como
possíveis.
É essa potencialidade que caracteriza o trabalho poético.
Algo que ficou conhecido na medievalidade como virtus.
O fundamento do sagrado é exactamente a negação do estereótipo. É a
virtualidade, a potencialidade de todas as relações.
Quando Joseph Beuys projecta um reflorestamento mundial, ele o faz
enquanto transformação da mente, tendo o planeta como uma complexa e
dinâmica rede de ideias em permanente mutação.
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Aquilo a que chamamos de civilização não é a competição tomada
enquanto concorrência permanente, mas sim a capacidade de contemplação,
de reflexão. Sem essa capacidade, não somos humanos.
O ambiente para o qual Beuys alertou não está restrito ao plano físico, mas
é uma abordagem complexa daquilo a que vulgarmente chamamos inteligência
pois, como o próprio Beuys considerou, o verdadeiro capital da humanidade é
a criatividade e o conhecimento, a capacidade humana.
O ambiente somos todos nós.
Algo que nos coloca face a face a William Blake quando defendia que «se
as portas da percepção estiverem limpas, as coisas parecerão ao ser humano
como realmente são: infinito».
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