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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Professor Ênnio Amaral – Marco em extensão, pesquisa e ensino na Escola Técnica Federal de Pelotas – ETFPEL Uma história de vida ligada à Educação Profissional N E I C A R L O S Pelotas, 2011 D E M O U R A 2 NEI CARLOS DE MOURA Professor Ênnio Amaral – Marco em extensão, pesquisa e ensino na Escola Técnica Federal de Pelotas – ETFPEL Uma história de vida ligada à Educação Profissional Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências (área do conhecimento: História da Educação). Orientador: Prof. Dr. Elomar Antônio Callegaro Tambara Co-orientador: Profª. Drª. Denise Nascimento Silveira Pelotas, 2011 3 Banca examinadora: Prof. Dr. Elomar Antônio Callegaro Tambara – orientador ...................................................................................................................... Profª. Drª. Denise Nascimento Silveira – co-orientadora ..................................................................................................................... Profª. Drª. Cleoni Maria Barboza Fernandes ..................................................................................................................... Profª. Drª.Giana Lange do Amaral .................................................................................................................... 4 OFERTÓRIO Na brecha entre o passado e o futuro, que pode ser este presente que vivo, ofereço minhas lembranças para todos que eu amo, retomando a vida de muitos que me são caros. Laranjal, verão de 2011. 5 AGRADECIMENTOS Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. José Saramago Ao realizar este trabalho tão significativo para mim, habitado pela memória, que contribuiu para o meu crescimento, propondo-me momentos de dúvidas, reflexões e possíveis conclusões, é chegado o momento de agradecer àqueles que estiveram ao meu lado em mais esta etapa que cumpro. Percebo que muitas pessoas dividiram comigo a expectativa da realização deste trabalho, muitos demonstraram carinho e incentivo, outros compreenderam a presença de minhas ausências. Mas ainda existem aquelas pessoas que se diferenciam pela forma de estarem presentes, através de estudos, revisões, conselhos e, acima de tudo pela amizade sincera. Todos tiveram muita importância e, por tudo isso, tem minha gratidão! Aos meus pais in memoriam, pela vida que tiveram e pela vida que me deram. A Dani, minha esposa, companheira, compreensiva e presente, compartilhando meus projetos de vida. Aos meus filhos, Camily, Otávio e Aline, pelo carinho, apoio e compreensão. À minha nora Bidi e ao meu genro Neco, que, pela convivência, tornaram-se meus filhos. Aos meus netos, Isadora e Leonardo, presentes que os meus filhos me deram. Aos meus irmãos e familiares pelo incentivo. À minha amiga e Co-orientadora Denise, que, em todos os momentos da realização deste trabalho, esteve presente, ensinando-me os caminhos das pedras, estendendo-me a mão, incentivando-me quando eu tendia a esmorecer, pelas muitas horas de leitura e filosofia, por sua dedicação e carinho, compreensão e amizade, sem os quais, talvez, não teria realizado este trabalho. Ao meu Orientador, Prof. Dr. Elomar Tambara, que acreditou na possibilidade de eu realizar este trabalho, acolhendo minha proposta. Com seu olhar comprometido, provocou-me a muitas leituras, reflexões e produções, com suas negações e afirmações que culminaram neste relatório. 6 À amiga Glaucia, pela ajuda nas transcrições e estímulo à minha vida acadêmica. À amiga Conceição, pelo exemplo de uma práxis socialista. À amiga Teresa, pelos diálogos, correções e sempre bom humor. Aos professores do Programa de Pós-Graduação da FAE/UFPEL e, em especial, às professoras que constituem a minha banca, Profas. Dras. Cleoni Fernandes e Giana Amaral, exemplos de vida acadêmica. Ao pessoal da secretaria da FAE. Ao amigo Edelbert Kruger, pela troca de idéias e apoio. Ao amigo Renato, pelo apoio e colaboração na troca de idéias. Aos meus amigos Jair e Vilela, pela amizade e companheirismo sinceros. Aos entrevistados, amigos que, com suas narrativas, constituem-se em uma parte importante desse trabalho, Sebastião, Gilfredo, Platão, Jorge, Virgínia, Reinaldo, Flávio, Júlio, Cleber e Darci. Aos colegas do IFSul e, em especial, aos do Curso de Eletromecânica, pelo apoio e compreensão. Ao amigo Antônio Brod, pela amizade e apoio sempre demonstrados. Enfim, agradeço a todos pela disponibilidade que sempre me dedicaram, pois mesmo em minhas ausências, a amizade prevaleceu. 7 O conhecimento exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer [...]. Paulo Freire 8 Resumo Este relatório de dissertação, apresentado para defesa, na linha de Filosofia e História da Educação do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas, tem sua gênese básica na investigação da história de vida do Prof. Ênnio Amaral, nascendo de várias circunstâncias e questões que procuro responder, sendo basilares para esta pesquisa sua vida pessoal e trajetória profissional. Tais questões se revestem na problemática de como um professor de educação profissional de nível médio engendrou ensino, pesquisa e extensão, em uma época em que as bases para essa modalidade de ensino eram o tecnicismo. Além disso, mesmo no ensino superior, algumas universidades empreendiam somente o ensino, outras, o ensino e a pesquisa, sendo raras aquelas que se pautavam pela indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão. Essa trilogia foi estabelecida constitucionalmente em 1988 e referendada na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 e, mesmo na atualidade, passados 14 anos da implantação desta Lei e 22 anos da nova Constituição do Brasil, evidencio que tal trilogia não é observada ou realizada em todos os níveis universitários. Nessa perspectiva, tendo como referencial teóricometodológico básico Histórias de Vida, procuro explicitar e dar visibilidade ao protagonismo desse professor, através da análise documental, ouvindo narrativas de seus colegas de trabalho, seus familiares e beneficiados pelo seu trabalho. O Prof. Ênnio experienciava e fazia acontecer o trabalho institucional de extensão, com os princípios do Tratado de Córdoba e, também, com a perspectiva freireana de extensão, produzindo, dessa maneira, a melhoria das condições de vida dos camponeses da região e do País. Tal proposta de extensão institucional, à época, em uma instituição técnica, contrariando alguns interesses regionais, poderia gerar atravessamentos impeditivos de outras instituições, que, nem sempre, tinham interesse em implantar melhorias de baixo custo, pretendendo a lucratividade, sem a preocupação com a verdadeira condição dos receptores desses benefícios. Por essas e outras razões, eu o tenho como um marco em extensão, ensino e pesquisa, na Escola Técnica Federal de Pelotas (ETFPEL), atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSul). Esse legado pode apontar caminhos alternativos para a solução de problemas sociais. Palavras Chave: História da Educação. Extensão. História de vida. 9 Abstract This report of dissertation presented to defense research line, in philosophy and history of education of the pos-graduation program of the education faculty of the Federal University of Pelotas, has its genesis in the investigation of the life history of Ênnio Amaral and comes up of many circumstances, and questions that intend to answer, being the base of this research is his personal life and his professional trajectory. These questions are involved in the problematic of how a teacher of professional education of the secondary school, brought teaching, research and extensions in a time when the bases to this type of education was the tecnicism. Furthermore, even in the superior education, some universities undertook only teaching, others, teaching and research, being uncommon the ones that prioritized teaching, research and extension as indissociable things. This trilogy was constitutionally established in 1988 [and authenticated on the ―Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional‖ (LDB), law nº 9.394 of December, 20, 1996, and till today, 14 years after the implantation of this law and 22 years after the new Brazilian Constitution, I evidence that this trilogy is not observed in all universitarian levels. From this perspective taking as basic theoretical-methodological referential the life history, I intend to explain and make visible the acting of this professor, through the documental analyses, listening to his work colleges narratives, his family and the ones who where beneficed by his work. Professor Ênnio experimented and made happen the institutional work of extension, with the principles of the Córdoba Tract, and with the Freire perspective of extension, improving and making better life conditions of the rural people of this area and of the nation. This proposal of institutional extension, for that time, in a technical institution, opposing some regional interests, could make confronts with other institutions, which did not intend to promote benefits through low costs, intending just lucrativity, with no concerns about the real condition of the beneficiaries. For these and for other reasons, I consider him as a mark in teaching, research and extension in ―Escola Técnica Federal de Pelotas‖ (ETFPEL), nowadays ―Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense‖ (IFSul). This legacy can show alternative ways for the solution of social problems. Key-words: History of Education. Extension. Life history. 10 Lista de Figuras Figura 1- Linha de tempo das atividades de extensão não universitária................ 62 Figura 2 – Relação de cursos oferecidos aos alunos. .......................................... 70 Figura 3 – Atestado de Conclusão do Curso Industrial Básico.............................. 72 Figura 4 – Ficha do Curso de Formação de Professores de 1964.......................... 74 Figura 5 – Entrevista à repórter Ana A. Lemos, TV Gaúcha, no aeroporto de Brasília.................................................................................................... 77 Figura 6 – O Profs. Ênnio e Sebastião na Comissão De Ciência e Tecnologia Na Câmara Federal............................................................................... 77 Figura 7– Membros da Comissão de Ciência de Tecnologia .................................. 77 Da Câmara Federal Figura 8 – O Prof. Ênnio discorre sobre suas pesquisas e trabalhos...................... 77 Figura 9 – Matéria veiculada pelo Jornal Diário Popular em 16 de maio de 1979... 80 Figura 10 –Prof. Ênnio e Sebastião em reunião com o Prefeito de Piratini ............ 81 Figura 11–Placa de inauguração da rede de Herval do Sul...................................... 83 Figura 12– O Prof. Ênnio explana sobre redes rurais e unidades transformadoras 84 Figura 13 – Obra editada em 1979 sobre processos de eletrificação rural.............. 84 Figura 14 – Jornal O Estado de São Paulo, de 31-05-1979, p.10........................... 86 Figura 15 – Planta que mostra o local da rede elétrica de travessia sobre o canal de acesso ao Porto da Cidade de Rio Grande, com a finalidade de levar energia à cidade de São José do Norte................. 90 Figura 16 – Revista Energia Elétrica de maio/junho de 1984, p.26......................... 92 Figura 17 – Rede elétrica da travessia que gerou polêmicas, quanto ao local........ 99 Figura 18 – Outro aspecto da mesma rede elétrica polêmica, mostrando a altura das estruturas ....................................................................................... 99 11 Figura 19 – Moradores da comunidade executando o levantamento de poste......................................................................................................103 Figura 20 – Matéria veiculada na revista Guia Rural Nº 2, de abril de 1987, p. 90..107 Figura 21 – Correio do Povo de 2-09-1983. ........................................................... 110 Figura 22 – Folder produzido pelo Governo Gaúcho...............................................110 Figura 23 – O Prof. Ênnio e o Transformador protótipo. ....................................... .111 Figura 24 – Transformador Protótipo ..................................................................... 111 Figura 25 – Protótipo de transformador monobucha em teste em Canguçu RS. Fonte: Revista Raízes de abril de 1983. .......................................112 Figura 26 – Entrevista ao Jornal O Interior. ............................................................115 Figura 27 – Figura 27 – Reportagem da Revista Quero-Quero da UFSM .............115 Figura 28 – Relatório de Pesquisa. ........................................................................ 116 Figura 29 – Reportagem do Jornal O Interior. No poste os dois transformadores....................................................................................116 Figura 30 – Os transformadores de igual potência. ............................................... 116 Figura 31 – Convite da Secretaria de Estado do Interior do Governo do Paraná...119 Figura 32 – Obra que trata da eletrificação rural do Estado do Paraná. ................120 Figura 33 – Ênnio Amaral, simplificar o que já é simples, para atender a todos... 128 Figura 34 – Reportagem do Jornal o Interior de 12-04-1985, sobre a rede de Cancelão-Alegre ............................................................................129 Figura 35 – Ofício recebido pelo Diretor da ETFPEL da parte do Governador Amaral de Souza, agradecendo o projeto de rede para levar energia elétrica de Rio Grande –RS, para São José do Norte – RS...............130 Figura 36– Ofício da Fundação de Ciência e Tecnologia solicitando esclarecimentos sobre dúvidas quanto às redes...............................131 Figura 37 – Reunião de membros da comissão de pesquisa e diretores da ETFPEL com o Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Jair Soares..........................................................................................132 Figura 38 – Portaria da Direção da ETFPEL nomeando membros da comissão de pesquisa. .......................................................................133 12 Figura 39 – Matéria publicada no Jornal O Interior, de 25-04-1983. .......................134 Figura 40 – Reportagem da Revista Raízes de abril de 1985. ................................135 Figura 41– Conjunto de fotos que mostram aspectos das redes Monofilar com Retorno por Terra — MRT Sistema Alternativo de Eletrificação Rural...136 Figura 42 – Vista de dispositivos alternativos de baixo custo para redes MRT.......137 Figura 43 – Propriedades rurais com o seu transformador próprio, devido às longas Distâncias entre propriedades .............................................138 Figura 44 – Operação Camoatim. ...........................................................................149 . Figura 45 – O Prof. Ênnio recebe placa de Honra ao Mérito. .................................155 . Figura 46 – O Prof. Ênnio recebe placa de Amigo de Escola. ................................156 Figura 47– Notícias sobre o passamento do Prof. Ênnio veiculadas em vários órgãos de imprensa da região..............................................................156 Figura 48 – O pavilhão do Curso de Eletromecânica recebe a denominação de Prof. Ênnio Amaral...........................................................................158 Figura 49 – Placa da Rede de Figueirinhas — Açoita-cavalo. ................................158 Figura 50 – Autoridades presentes na inauguração Figueirinhas — Açoitacavalo....................................................................................................159 Figura 51 – Editorial do Jornal Diário Popular, de 06-09-1988.................................160 13 Lista de Abreviaturas e Siglas ABEAS.......................Associação Brasileira de Educação Agrícola ABEE/RS....................Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas ABER.........................Academia Brasileira de Extensão Rural ABCAR.......................Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural ACAR.........................Associação de Crédito e Assistência Rural ANPED.......................Associação Nacional dos Pesquisadores em Educação BIRD..........................Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento CAPES......................Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAVG........................Centro Agronômico Visconde da Graça CBAI..........................Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial CEEE.........................Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul CEFET-RS.................Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas CENAFOR..................Fundação Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para a Formação Profissional COPEL.......................Companhia Paranaense de Eletricidade CPC............................Centro Popular de Cultura CRUTAC....................Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária DEOPS.......................Departamento de Ordem Política e Social EMATER.....................Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural EMBRAPA..................Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EMBRATER................Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão ETFP...........................Escola Técnica Federal de Pelotas E T P...........................Escola Técnica de Pelotas ETFPEL......................Escola Técnica Federal de Pelotas FAPERGS...................Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul FECOERGS................Federação das Cooperativas de Eletrificação Rural do Rio Grande do Sul Ltda 14 FETAG.........................Federação dos Trabalhadores da Agricultura – RS FORPROEX.................Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras IBGE.............................Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFSul...............................Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense ISEB..............................Instituto Superior de Estudos Brasileiros LDBE.............................Lei de Diretrizes e Bases da Educação MEB...............................Movimento de Educação de Base MEC...............................Ministério da Educação MCP...............................Movimento de Cultura Popular MRT...............................Rede Monofilar com Retorno por Terra (Rede Elétrica) NERECA........................Associação Nacional dos Engenheiros de Cooperativas de Eletrificação Rural dos Estados Unidos da América SEPLAN.........................Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Nacional SIE-E.............................Serviço de Integração Escola-Empresa UCPEL ..........................Universidade Católica de Pelotas UFPEL...........................Universidade Federal de Pelotas UFRGS..........................Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRN.............................Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFSM.............................Universidade Federal de Santa Maria UNE...............................União Nacional dos Estudantes USAID............................United States Agency of International Development USP................................Universidade do Estado de São Paulo 15 SUMÁRIO OFERTÓRIO..............................................................................................................04 AGRADECIMENTOS.................................................................................................05 EPÍGRAFE.................................................................................................................07 RESUMO...................................................................................................................08 ABSTRACT................................................................................................................09 LISTA DE FIGURAS .................................................................................................10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS.....................................................................13 1.0 APRESENTAÇÃO ............................................................................................17 2.0 PRIMEIRO CAPÍTULO: minha história.., ou, um pouco de mim ......................21 3.0 SEGUNDO CAPÍTULO: o caminho teórico metodológico ................................32 3.1 – O problema da pesquisa e as questões auxiliares.................................36 3.1.1– Roteiro de questões direcionadas aos membros da comissão de pesquisa, e, outras pessoas, que tiveram envolvimento com os trabalhos ou a pessoa do Prof. Ênnio..............................38 3.1.2– Roteiro de questões direcionadas aos membros da família........39 3.1.3– Roteiro de questões direcionadas às pessoas que se beneficiaram dessa pesquisa.......................................................40 3.1.4– Roteiro de questões direcionadas a ex-alunos do Prof. Ênnio Amaral e outros professores da Disciplina de Instalações Elétricas e com uma unidade do programa que abordava Eletrificação Rural.......................................................40 3.2 – Elucidando a entrevista qualitativa..........................................................41 3.3 – Elucidando a análise documental............................................................42 3.4 – Aproximação da História da Educação com a História de Vida..............44 4.0 TERCEIRO CAPÍTULO: uma possível teorização sobre extensão .................48 16 4.1 – A indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão .......................51 4.2 – A extensão...............................................................................................53 4.3 – Matizes fenomenológicos nos trabalhos de pesquisa e extensão.........65 5.0 QUARTO CAPÍTULO: vida e obra de Ênnio Amaral.......................................69 5.1 – A trajetória estudantil na ETP, atual IFSUL...........................................69 5.2 – A Trajetória profissional..........................................................................75 5.3 – A Vida pessoal.......................................................................................139 5.3.1 – Aspectos de lazer e prazer de Ênnio Amaral e seus colegas...147 5.4 – Homenagens à Ênnio Amaral................................................................154 6.0 QUINTO CAPÍTULO: categorias.......................................................................162 6.1 – Primeira categoria: a extensão..............................................................163 6.2 – Segunda categoria: o companheirismo.................................................168 6.3 – Terceira categoria: a negação do conhecimento não acadêmico........170 6.4 – Quarta categoria: a perda social...........................................................173 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................175 REFERÊNCIAS........................................................................................................177 17 1 APRESENTAÇÃO As pesquisas na área da História da Educação ocupam um importante espaço nos estudos sobre Educação, como uma das formas de compreender o passado e buscar a origem de alguns fatos do presente. E, ao imbricar esses dois aspectos, reporto-me ao pensamento de Nóvoa (2004, p.9), quando diz O mínimo que se exige de um historiador é que seja capaz de pensar a história, interrogando os problemas do presente através das ferramentas do seu ofício. O mínimo que se exige de um educador é que seja capaz de pensar a sua ação nas continuidades e mudanças do tempo, participando criticamente na renovação da escola e da pedagogia. Segue o autor, enfatizando que uma moeda tem sempre dois lados, desse modo, a junção de historiadores e educadores se mostra extremamente promissora, reforçando a formulação kantiana ―A teoria sem a história é vazia; a história sem teoria é cega‖ (Id. p.9). E, como educador, acredito que a reflexão sobre a História não serve apenas para descrever o que passou, mas, sim, para ―nos colocar perante um patrimônio de idéias, de projetos e de experiências‖ (Ibid. p.11), que nos podem proporcionar uma compreensão crítica de quem fomos, de como chegamos aqui e das possibilidades do nosso devir. E, sem me afastar de minha essência de professor, do lugar de onde vim, de minha natureza como pessoa, faço uma introspecção sobre minha profissionalidade em uma instituição de ensino técnico e me questiono: o que posso (ou se pode) compreender pela expressão Educação Tecnológica? Quais as dimensões presentes nessa modalidade educacional? Qual é o nosso entendimento e interpretação sobre tecnologia? Permaneço com essas interrogações e, pela História, recordo que, um dia, tivemos a pedra. Do trabalho com e na pedra vieram instrumentos e/ou ferramentas, 18 em uma época em que não existia a ciência tal como a conhecemos. Assim percebo que a técnica precede a ciência, e, numa sucessão de fatos, chegamos ao cavalo a vapor e, com ele, à Revolução Industrial. Seguimos caminhando e chegamos à Lua. Graças à tecnologia, explodimos o átomo e, assim, salvamos e, também, lamentavelmente, eliminamos vidas. A tecnologia não se esgota em conhecer, construir o conhecimento, mas penso que esteja muito mais ligada a nossa postura como homens, para vivermos com e para ela. Se, hoje, parece-nos impossível viver sem ela, em função dos avanços consideráveis e descobertas até então impossíveis, ainda não tenho clareza sobre qual educação deveremos dar aos nossos alunos — que são criadores/produtores/consumidores de tecnologia — para que eles se aliem a ela e não a transformem em simples objeto de consumo acrítico. Mas sei que tudo isso é muito complexo, que não é tarefa fácil desenvolver um trabalho desses em uma sala de aula, visto que, muitas vezes, não parece muito clara a proposta de Educação Tecnológica para o País. Percebo-me, algumas vezes, um tanto ingênuo, pois continuo trabalhando por uma educação e sonhando com uma educação com pensamento crítico, que permita aos meus alunos, pelo menos, ver as duas faces dessa moeda. Com essa perspectiva, apóio-me no pensamento de Vieira Pinto (1969), quando nos diz que, no homem, quanto mais elaborada é a sua capacidade de trabalhar, mais humanizado ele se torna, ou seja, ―um produzido produtor do que o produz [...] o homem passa a ser em extensão, cada vez mais ampla, o criador das condições que o criam‖ (p.85). Esses pensamentos, reflexões e conflitos me reportam a uma figura humana, que foi meu professor e colega de trabalho — o grande professor, mestre, Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral — que, como poucos, personificou esse pensamento, com um trabalho que hoje acredito ser de extensão1, produziu a humanização/hominização de regiões do Estado e País. Soube ser produtor e usuário da tecnologia para a produção do bem-estar social, quando essa discussão não estava presente no meio educacional do ensino técnico, melhorando as 1 Aqui considerado na perspectiva de extensão universitária. 19 condições de vida dos habitantes da zona rural, através do trabalho criador, que usa a tecnologia para o bem comum. E, mais uma vez, busco em Vieira Pinto a compreensão para essa experiência Para a mentalidade ingênua a nação é coisa que ―já existe‖, e precisamente existe enquanto coisa. Está feita, sua realidade é completa, ainda que se admitindo que sofra modificações ao longo da história.[...] ora, o que a consciência crítica desvendará é justamente o oposto: é a minha atividade que torna possível a existência da nação. A nação não existe como fato, mas como projeto. Não é o que no presente a comunidade é, mas o que pretende ser, entendendo-se a palavra ―pretende‖ em sentido literal, como ―pré-tender‖, tender antecipado para um estado real. (1960, in: Vieira Pinto, 2005, p.xx). Acredito que a consciência crítica de Ênnio Amaral, como educador de uma instituição técnica e como cidadão capaz de perceber as necessidades que o rodeavam, permitiu sua intervenção para mudar a realidade posta em uma região da metade sul do Rio Grande do Sul, que se estendeu por outras regiões. Penso que a clareza de pensamento desse homem sobre as possibilidades de uma tecnologia econômica e de custo reduzido, para mudar o seu entorno, é que permitiu a realização e consequente aplicação desse conhecimento, em forma de um trabalho de extensão. Dessa forma, neste relatório de dissertação, à luz da História da Educação, pesquiso a história de vida2 desse professor, entrelaçando-a com a perspectiva da extensão universitária, com uma proposta teórico-metodológica de cunho qualitativo e princípios de estudo de caso, apoiando-me em narrativas concedidas por pessoasfonte (familiares, companheiros de trabalho, pessoas beneficiadas pelo projeto do 2 Considero relevante trazer que os estudos com História de Vida se iniciaram na década de setenta, num primeiro momento com a Sociologia e Antropologia, que a utilizaram para mapear aspectos culturais de comunidades e indivíduos, objeto de suas pesquisas. Posteriormente, outras áreas se apropriaram da metodologia para dar significados às trajetórias de formação dos professores, suas experiências pessoais e profissionais, suas apropriações teóricas e experiências analisadas através do tempo. A utilização da História de Vida foi introduzida, no meio acadêmico, em 1920, pela Escola de Chicago (estudo de grupos de imigrantes poloneses e sua adaptação à cultura norte americana). Ela foi desenvolvida por Znaniescki na Polônia. Informações retiradas da revista da Escola de Enfermagem da USP. 2003; 37 (2): 119 – 26. 20 Prof. Ênnio), documentos pessoais e institucionais, correspondências, fotografias, matérias publicadas em jornais e revistas, dentre outros. Este texto tem a seguinte sequência: no primeiro capítulo, situo a minha história de vida, com a intenção de apresentar o lugar de onde falo, e exemplificar uma típica família campesina pouco favorecida. No segundo capítulo, apresento a proposta metodológica que desenvolvi; trago a problemática da pesquisa, as questões auxiliadoras e o referencial teórico dessa etapa. No terceiro capítulo, apresento as leituras, ressignificadas por mim, sobre a extensão. Sigo, neste trabalho, apresentando, no quarto capítulo, a história de vida — pessoal e profissional — do professor Ênnio Amaral. No quinto capítulo, apresento as categorias com maior representação. A seguir, apresento as considerações finais desta dissertação. Assim sendo, minha pesquisa também se norteou pelos pressupostos teórico-metodológicos de Histórias de Vida, em que Abrahão (2004), ao citar Santamarina e Marinas (1994) e Pujadas (1992), teóricos que defendem, entre tantos outros, esse tipo de ferramenta para a pesquisa citada, afirma serem histórias de vida de professores [...] adequada à proposta teórico metodológica de pesquisa que adotamos, justamente ao pretender construir um conhecimento privilegiando a profissionalização do educador, trazendo aportes das histórias contextualizadas de educadores na dimensão não só pessoal, mas também nas demais dimensões, principalmente na profissional e sócio-política que àquelas se imbricam (p.18). Vislumbrando todos esses espaços e possibilidades, com o compromisso de trazer à tona um trabalho de cunho tecnológico-social, no Instituto Federal Sul-riograndense — IFSul, estou encaminhando este relatório de pesquisa, para ser submetido para defesa no Curso de Mestrado do Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas, sob a orientação do Prof. Dr. Elomar Tambara. 21 2 PRIMEIRO CAPÍTULO — minha história... ou, um pouco de mim O golpe de gênio de Proust está em não ter escrito ―memórias‖, mas, justamente, uma ―busca‖, uma busca das analogias e das semelhanças entre o passado e o presente. Proust não reencontra o passado em si – que talvez fosse bastante insosso –, mas a presença do passado no presente e o presente que já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do que o tempo que passa e se esvai sem que possamos segurá-lo. A tarefa do escrito não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas ―subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora‖. Walter Benjamin O recorte em que narro uma parte de minha vida e falo da família tem dois propósitos: mostrar minhas origens, o local de onde atualmente falo, e exemplificar como era uma família campesina típica, menos favorecida, nos anos de 1960 e 1970, similar àquelas as quais o professor Ênnio Amaral dirigia suas atividades de extensão. A formação ou educação do homem começa, para muitos, no momento do nascimento, quiçá, no ventre da mãe, e só será interrompida com sua morte (será?). Nessa perspectiva, a experiência profissional, ou o simplesmente viver poderá contribuir para a formação do que denominamos Educação, dada pela família, pela sociedade e pela Escola. Diante do desafio de escrever aspectos de minha vida, recorro a um historiador reconhecido nos meios acadêmicos, detentor de vasto conhecimento teórico-metodológico. Refiro-me a Le Goff (1989), na obra Ensaios de Ego-História, então com 62 anos, que o instrumentalizava a textualizar sua história de vida tão rica em detalhes, fluência, lembranças, que, então, ainda se mostravam tão vivas, também se justificavam pelos conhecimentos que ainda, na escola, nas séries iniciais, começava a adquirir. 22 Tecendo comentários de seu professor, o autor escreve falava-nos da idade média [...] com uma mistura rara de talento para recriar, de dom da vida e de rigor técnico. Foi com ele que percebi, pela primeira vez, o que eram os documentos e as regras estritas que sua utilização impõe e que, mais do que contar, a história deve explicar (p.196). Assim, não tendo adquirido o conhecimento em tenra idade, e, sendo um pesquisador novato, enfrento as dificuldades inerentes a esse processo inicial: narrar um pouco de mim, e, em outros capítulos, a história de vida do Prof. Ênnio Amaral. Nasci em uma família do meio rural, muito simples, com todas as dificuldades inerentes a essa forma de convivência. Minhas experiências profissionais começaram muito cedo — no início da década de 60 — com apenas seis anos de idade, como filho de pequenos agricultores sem terra e, à medida que o tempo passava, outras atividades foram por mim desenvolvidas. O meu pai trabalhava na prefeitura, reparando as estradas da colônia; morreu aos 49 anos, quando eu contava com onze anos, deixando mulher e seis filhos. Dos seis filhos, duas mulheres e quatro homens, os únicos que concluíram o primário fomos eu e um irmão mais velho; os demais, apenas concluíram a segunda série do primário. Aprenderam a ler e a escrever precariamente e a realizar as operações matemáticas, sendo que o domínio dessa última competência se dava em apenas duas habilidades — adição e subtração ou conta de mais e conta de menos. Quando ingressei no primeiro ano do primário, apesar de minha mãe me levar até a escola, eu só chorava e acabava voltando para casa. No ano seguinte, (o primeiro eu não concluí pela razão referida acima) ingressei novamente na escola, mas, como no ano anterior, não queria ficar em aula, chorava, inventava dor de barriga, entre outras dores, para que a professora me mandasse embora para casa Um dia, ao voltar, minha mãe, diante da minha queixa de dor de barriga, preparou uma lavagem intestinal, realizada, na época, com uma espécie de bexiga de látex, com uma ponta para a sucção de água por onde era introduzida, no paciente, a água morna. Naturalmente eu tive que confessar que não tinha dor 23 alguma, diante disso, minha mãe me deu uma bela surra, com uma vara de guanxuma. Assim, comecei a ir à escola. Isso é o que minha mãe achava, pois, na maior parte das tardes, passava caçando passarinho com meu bodoque. Consequentemente, minha mãe me retirou da escola. Com os passarinhos mortos, dezenas deles, eu fazia os rituais de seus enterros, carregando-os em minha carreta, cujos bois eram dois sabugos de espiga de milho, presos ao jugo e à carreta, que era uma lata com a forma quadrada, com duas rodas serradas de um pau roliço; em cada cova, colocava uma cruz amarrada com embira, e, às vezes, rezava pela alma dos pássaros mortos pelo meu bodoque. Só vim realmente a cursar o primeiro ano com quase nove anos. Pelo que apresento acima, nota-se que, no início dos anos sessenta, não havia preocupação com a preservação do meio ambiente; isso não era passado nem pela família, nem pela escola; era normal matar pássaros, além de uma série de outros animais da natureza, que serviam como alimentação, ou pelo prazer de caçar. O Padre Católico da Paróquia de N.S. do Bom Fim visitava a escola quase todos os sábados pela manhã, fazendo o trabalho de catequese e rezas ao começo das aulas, como forma de inculcar a Fé Católica e manter um grande controle de comportamento. Assim, ao fazer o que qualquer menino de minha idade fazia, sentia-me com imenso sentimento de culpa. Então pedia perdão a Deus dezenas de vezes, com muitas orações. Percebo hoje que a fixação das ideologias da igreja católica, perdidas na primeira Constituição Republicana3, em realidade, ocorreram apenas oficialmente, pois a igreja continuou presente e em expansão. Essas ideologias foram recuperadas, em parte, na Constituição de 1937, embora o empenho dos maçons 4 por um ensino leigo, em disputa acirrada no final do século XIX e início do século XX, na década de 1960, ainda se faziam presentes. Talvez seja por essa forte 3 Segundo Tambara (1995), no Rio Grande do Sul, no último quartel do século XIX, e início do século XX, as políticas públicas educacionais, seguiam os ideais positivistas, além de o ensino estar praticamente um terço particularizado, seguindo-se o pressuposto: ensine quem quiser o que quiser para quem quiser. Com a Proclamação da República, houve a separação entre Estado e Igreja. 4 Sobre o embate entre maçons e igreja católica em Pelotas, criação do Colégio Municipal Pelotense, consultar Amaral (2005). 24 presença que, por algum tempo, durante a minha adolescência, pensei em ser padre, mas essa idéia foi logo descartada. Quando eu estava no quinto ano primário, o dono das terras onde morávamos e realizávamos as atividades de agricultura, Sr. Hélio Schramm, prometeu que me levaria até a Escola Técnica de Pelotas, onde eu faria o exame de admissão para o ginásio. Ele assim o fez, e ainda me deixou ficar em sua casa, de março a novembro do ano em que cursava a primeira série. Na década de 60 do século passado, a vida cotidiana dos campesinos era bastante difícil, principalmente para os sem-terra que, para sua subsistência, cultivavam terras de proprietários, em regime de terça ou 1/3, ou seja, o proprietário entrava com a terra e o colono entrava com os insumos: adubo, sementes e inseticidas e seu trabalho. Após a colheita, o proprietário ficava com um terço do que foi produzido. Considerando que, se a natureza não fosse favorável, a plantação e a colheita se perdiam; o proprietário nada ganhava, mas nada perdia, já, o colono, arcava com todos os prejuízos, além de ficar sem pagamento por seu trabalho, visto que nada colheria. Era comum que esses, para completarem sua subsistência, plantassem cedo (fora do ciclo de cultivo normal) suas pequenas lavouras e passavam a trabalhar como bóia-fria, para os vizinhos mais abastados. Sendo, portanto, sua força de trabalho o único bem vendável para um ganho extra. Analisando as décadas de 60 e 70, percebo em Romanelli (1969, p.84) uma possível leitura dessa condição As deficiências do sistema educacional brasileiro, tanto no que concerne à elasticidade da oferta, quanto no que concerne à sua capacidade de criar uma demanda efetiva de educação, são, pois muito mais graves na zona rural do que na zona urbana. E isso se explica, pela forma como se vem processando a chamada revolução burguesa no Brasil. O campo ainda não foi atingido, pelo menos em sua maior parte, pelas transformações nas relações de produção que o capitalismo introduz e conseguiu introduzir, com a industrialização, na zona urbana. A sociedade agrária brasileira fundamenta-se ainda em relações de caráter semi-feudal e em processo arcaico de produção. Desse período de minha vida, minhas lembranças estão bem vivas. Minha mãe, eu e meus irmãos caminhávamos para a lavoura, distante de nossa casa, um imóvel alugado. Atravessando caminhos estreitos, quase fechados pela capoeira 25 (mata nativa de baixa estatura em torno de 2,5 m), o sereno ou orvalho desses matos nos deixavam com as roupas umedecidas, ou, até mesmo, molhadas, para amenizar tal fato minha mãe caminhava à frente, com um galho de faxina vermelha, batendo nas laterais do caminho, para que a água depositada nas folhas caísse antes que nós passássemos. As lavouras plantadas durante o inverno, como a cebola, por exemplo, tinham seu plantio realizado pela introdução da muda com o dedo indicador contra a raiz, em cova de cerca de dois centímetros de diâmetro, enquanto os demais dedos juntavam a terra em torno da muda. A terra, muitas vezes coberta de geada, congelava nossas mãos. Houve dias em que o frio era tanto que eu, o menor dos filhos, ficava em uma clareira em meio à capoeira, próximo de um fogo-de-chão improvisado, para me manter minimamente aquecido. Lembro que o valor da diária recebida pelo trabalho não era suficiente para custear a alimentação do dia. E o trabalho era pesado, insalubre, sem meios ou equipamentos de proteção. Nossas refeições eram frias e de baixo valor nutritivo. Ao escrever essas passagens, lembro do que li certa vez: ―[...] aquele horrível sistema de servidão que arruinava as vidas humanas que convertia os homens em feras e as mulheres em animais, que mantinham milhares de seres humanos em situação dez vezes pior que a situação dos escravos, [...]‖ (MARX, 2002, p. 22). Embora em contextos diferentes, nas palavras de Marx, que descrevem o cotidiano dos operários das indústrias inglesas no século XVIII, percebo uma aproximação entre o homem do campo, da nossa região em meados do século XX, e os trabalhadores ingleses. Lembro que a sobrevivência exigia que nossas roupas fossem remendadas, sendo a maioria delas, inclusive as roupas de cama e de mesa, confeccionadas com sacos de algodão usados, anteriormente, para armazenar farinha e açúcar, comprados nas vendas ou armazéns da cidade. Esses sacos brancos passavam por um processo que despendia muito trabalho. Retirávamos as costuras dos sacos e, no arroio mais próximo, esses eram bem ensaboados e batidos repetidas vezes contra alguma pedra que tivesse uma face plana, novamente ensaboados, então eram estendidos em campo aberto, para 26 o processo de quarar ao sol. Esse procedimento amaciava e retirava as manchas e letreiros dos sacos que se transformariam em lençóis, toalhas e roupas. Ainda recordo que vinha impresso, em alguns deles, Moinhos Sulriogradense ou Sanrig, entre outras marcas. A próxima etapa desse processo era o tingimento a quente, num caldeirão, sobre o fogo-de-chão, onde seriam imersos os tecidos. Mamãe, às vezes, amarrava o tecido em vários locais, formando pequenas bolas, para que, depois de tingido, o tecido ficasse com muitos círculos, num tom mais claro, que lhe dariam um aspecto mais bonito. As atividades de mamãe começavam às 5h 30 min. despertada pelo hábito ou pelo cantar do galo, acendia o fogão a lenha, preparava o café e, às 6h 30 min., éramos despertados, uns para trabalhar e outros para ir à escola. Seus afazeres eram muitos, a jornada acabava em torno das 21 horas, isto quando não ia costurar em uma máquina movimentada a pedal, sob um lampião a querosene, cuja luz era um pouco mais que o lusco fusco da aurora. No verão, quando as famílias, mais abastadas, se dirigiam a suas chácaras ou sítios na Cascata (5.o distrito da cidade de Pelotas-RS), nos possibilitava um ganho extra, com o trabalho em suas propriedades. Outra função que minha mãe desempenhava era a de trabalhar como operária nas fábricas que existiam da zona colonial, na verdade, indústrias de transformação alimentícia, cujos produtos industrializados eram principalmente pêssego, figo, pepino e aspargo. Foram tempos difíceis, famílias como a minha, possuíam as suas especificidades. Contudo, nós nos divertíamos com os banhos nos arroios, nos dias menos frios. Nos demais dias, o banho era semanal, visto que, por falta de água encanada, eles eram de bacias grandes, com água aquecida no fogão a lenha. A energia elétrica chegou à Cascata em 1972/73, mas a maioria dos colonos daquela micro região ficou sem esse benefício, dada a natureza da construção de redes de distribuição, altamente onerosa à concessionária e, também, por falta de políticas públicas para o setor agropecuário. 27 Com a maturidade, hoje percebo que trabalho havia; o que não havia era a valorização para ele, não havia como prosperar, as famílias dos sem-terra5 lutavam pela sobrevivência e suas esperanças eram depositadas nos filhos, que, de maneira geral, todos os pais desejavam que continuassem os estudos na cidade. Como isso seria possível? Era uma conquista quase impossível, tanto que poucos conseguiram terminar o Ginásio, ou o 1.o Grau; menos ainda eram os que conseguiram se formar no segundo grau e poucos da minha geração chegaram à Universidade. Descrevo aqui que os colonos mais favorecidos tinham a terra e o trabalho na Estação Experimental de Pelotas (área antiga), hoje Embrapa Cascata e, diante dessas condições, conseguiam proporcionar os estudos dos filhos na cidade. Esses jovens estudavam, na sua grande maioria, na Escola Técnica Pelotas — ETP ou na Escola Agrotécnica, Centro Agronômico Visconde da Graça — CAVG. Minhas dificuldades nessa época não foram poucas. Tinha o projeto de trabalhar durante o dia, na colônia, e estudar no turno da noite. Mas, para tanto, precisava usar o ônibus da Embrapa, que transportava os operários que moravam na cidade. Minha intenção era vir para a cidade, no final da tarde, com esse grupo de trabalhadores, e voltar, pela manhã, com eles. Mas esse projeto não se realizou, porque não obtive a autorização do diretor da empresa para viajar nesse veículo. Mas surgiu outra possibilidade: o Sr. Hélio Schramm me oportunizou ficar por um ano letivo em sua casa. E, assim pude iniciar os estudos na ETP. Passado algum tempo, o diretor da Estação Experimental de PelotasCascata, reviu meu pedido e permitiu minhas idas e vindas entre a Escola e Colônia, pois o ônibus trafegava com vários bancos vazios, condição que me possibilitou trabalhar durante o dia, na colônia, e estudar à noite, na cidade. Assim, com as dificuldades inerentes às famílias menos favorecidas, a escolarização profissional, nas décadas de 1950 a 1970 era encarada como forma de redenção social e econômica. 5 A) Os sem terra são considerados os trabalhadores rurais que vivem no campo e do campo, não possuem terras ou possuem menos de 5 hectares e aspiram à terra para nela trabalhar. Enderle, Georges ET AL. 1997, p.691. B) Relativo a, ou indivíduo, camponês ou trabalhador rural, que não tem a posse legal da terra em vive e trabalha ou que, por não possuir terra, serve de mão-de-obra agrícola. Houaiss, 2001, p.2544. 28 Nessa perspectiva, segundo Romanelli (1969, p. 69), ―a escola é tida como fator de mudança social‖. Prossegue a autora, ―a garantia de trabalho que a qualificação dada pela escola oferece é a pedra de toque da motivação concreta da população para a procura de educação escolarizada‖. Para explicar o processo de evolução do sistema educacional brasileiro, Romanelli (1969, p.128) divide esse processo em três etapas ou períodos: a primeira, de 1930 a 1937, engloba as reformas da educação de Francisco Campos. A segunda fase abrange o estado novo, de 1937 a 1946, quando começa a instalação de indústrias pesadas, sendo a educação um fator de desenvolvimento. A terceira fase, de 1946 a 1960, em que em paralelo com o desenvolvimento da indústria pesada, cresce também a indústria mais leve e a terciária, ou de serviços. A industrialização do País teve continuidade no governo de Juscelino Kubitscheck. Nos anos 60 e 70 houve a expansão da geração de energia elétrica. Todos esses fatores repercutiram no campo, onde a vida era difícil e a perspectiva de crescimento individual era mínimo pelo tipo de produção agrícola, o que fez aumentar o êxodo rural, iniciado, já na década de 40. Hoje percebo que o sistema de propriedade da terra6 era oriundo de uma política colonialista e arcaica, ainda vigente na contemporaneidade em alguns espaços. E, a população campesina, em boa parte alijada dos processos educacionais, acreditava que essa era a vida posta, o seu destino. Não havia reflexão ou criticidade, o cidadão era responsável pelo seu estado de vida e o pior, é que ele aceitava toda essa condição. Retomando a história da minha formação, o curso ginasial, iniciado em 1969, transcorreu, no sentido educativo de preparação para o trabalho, de acordo com a Lei nº. 3.552/59, da seguinte forma: na primeira e segunda séries os alunos recebiam aulas de marcenaria, funilaria, cerâmica, tipografia, instalações elétricas, entre outras. Já, na terceira e quarta séries, o aluno optava por um curso maior e Segundo o Dicionário de Ética Econômica, propriedade da terra quer dizer ―[...] a propriedade vai alem da simples posse, isto é, ela significa o poder de fato sobre uma coisa indicando um amplo direito de dispor dela, com exclusão de outros dessa disposição, a não ser que a lei e direitos de terceiros a isso se oponha [...]. Enderle, Georges et al, 1997, p. 51. 6 29 com terminalidade (dois anos de duração). Eu optei por fazer o curso de torneiro mecânico. A formação de Ensino Médio continuou sendo realizada na Escola Técnica Federal de Pelotas — ETFPEL. Em 1974, comecei a cursar o Curso Técnico em Eletrotécnica, concluído em 1976. Nessa fase da minha formação, freqüentei vários cursos extraordinários7 de curta duração, mais de vinte, com duração entre vinte e quarenta horas, de muita relevância para a minha Educação Profissional. Outra atividade relevante que realizei foi o curso de atualização para disciplinas especiais (Técnicas), ministrado pela Fundação Centro Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal para a Formação Profissional — CENAFOR, em 1988. No início da década de 80, também, foram muito relevantes para a minha formação docente os cursos denominados Micro Ensino, realizados pela Coordenadoria de Pedagogia da ETFPEL, como uma modalidade de formação continuada. Em 1983, conclui o Curso de Graduação de Professores da Parte de Formação Especial do Currículo do Ensino do Segundo Grau — Técnicas Industriais, Licenciatura Plena, realizado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas em convênio com a ETFPEL. Além da formação técnica e pedagógica, esse curso muito contribuiu para as minhas atividades em sala de aula, uma vez que possibilitou reflexões sobre a atividade docente em relação aos processos de ensino e aprendizagem. Em 2005, concluí, no Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas — CEFET-RS, o curso de Pós-Graduação em Educação Profissional em nível de Especialização. A monografia apresentada foi Influência da busca por qualidade de ensino dentro do curso técnico de Manutenção Eletromecânica, na formação dos profissionais nessa área, no CEFET-RS. Considero relevante citar todas as atividades que desenvolvi ao longo de minha vida: agricultor, bóia-fria, ajudante de pedreiro, pintor de residências, ajudante 7 Na então Escola Técnica Federal de Pelotas, cursos extraordinários era a denominação dada aos cursos de curta duração que tinham por objetivo dar complementaridade a formação; esses cursos se caracterizavam como formação continuada em educação profissional. Havia os que aconteciam na própria instituição e os que acorriam em empresas conveniadas com a Escola. 30 de cozinheiro em restaurante colonial, porteiro de pousada, eletricista instalador residencial e predial, eletricista de manutenção e montagem de quadros elétricos em baixa e alta-tensão. Muitas dessas experiências profissionais se desenvolveram na informalidade, isto é, o único vínculo entre patrão e empregado era o pagamento no final da semana, ou ao término do serviço prestado. Saliento ainda que, nos finais de semana e feriados, trabalhava como garçom ou porteiro de baile na colônia. Daí se percebe que não havia descanso, semanal, mensal ou até mesmo anual (eram raros os dias em que não havia tarefas a realizar). Tenho lembranças boas e amargas desse tempo, que fazem parte da minha história; uma delas (amarga) foi quando uma determinada professora da disciplina de Moral e Cívica, ao fazer a avaliação do período, mandava o aluno se levantar; à medida que ela os chamava pelo nome, fitava-os e proferia a nota (sentença), que para mim foi: Tu és feio e mal arrumado, nota seis (o que significava extrema humilhação). Também atuei como estagiário em manutenção elétrica na Escola Técnica Federal de Pelotas (no período 75/76); e, como técnico em Eletrotécnica, chefiando a manutenção elétrica da Escola (período 76 / 81). No ano de 1976, tive um salto qualitativo e quantitativo em meu labor, além da melhora em nível econômico e social, pois passei a fazer parte do quadro de servidores da Instituição. Desde então, sempre buscando melhorar minha formação, tenho participado de seminários, cursos de formação continuada, eventos, que agora culminam no curso de pós-graduação stricto sensu, junto à Faculdade de Educação — FAE, da Universidade Federal de Pelotas — UFPEL, na linha da História da Educação, com o propósito de realizar o curso de Mestrado. Minha história, como a de todos, que vivem em transformação, continua... Assim sendo, para fechar este capítulo, lanço mão das palavras de Le Goff (1989, p. 235) [...] não tenho testamento científico ou moral a redigir, nem testamento jurídico e material. Tenho a felicidade de não possuir nada. Não posso ambicionar depois de minha morte senão um pouco de memórias e sei que a minha obra como todas as 31 produções científicas ou que tendam a sê-lo, terá uma vida frágil e limitada. Mas ajudei, na minha profissão, alguns jovens que viverão e criarão — já criam— por sua vez depois de mim. [...] Tenho 62 anos. Não acabei e não me sinto acabar. Sem dúvida serei presunçoso e mesmo temerário ao escrever isto. Mas o historiador não dominará nunca o futuro mesmo que deva preparar-se para ele e preparar os outros. E, no entanto, não vejo, para um historiador habituado às continuidades assim como aos acasos e mesmo às catástrofes, em que ponto da duração colocar um testamento. A história não precisa de notários (e, todavia, que bela fonte, os registros notariais!), mas de historiadores. Assim, como historiador e pesquisador novato, começo a compreender que meus escritos serão lidos por muitos, e até já o foram, mas seu destino está limitado a ser frágil e superado. Entretanto, no que diz respeito aos que me lerem, espero contribuir, mesmo que de forma singela, na compreensão e transformação de suas e outras vidas, e da educação. 32 3 SEGUNDO CAPÍTULO — o caminho teórico-metodológico Neste trabalho, a metodologia é de cunho qualitativo, pois considero que essa modalidade de pesquisa evita tomar, como ponto de partida, uma teoria simples, redutora de idéias, e considero essa base teórica como um mapa marítimo, cheio de possibilidades, não uma via férrea, que se mostra linear. Dessa forma, creio que o mote da pesquisa pode ser, ao mesmo tempo, um ponto de partida e um ponto de chegada. Assim, o estudo que desenvolvo se caracteriza como estudo de caso (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 17), apoiado na perspectiva de Stake (1998, p. 11) quando esse nos diz que, ―de um estudo de caso se espera que abarque a complexidade de um caso particular [...] o estudo de caso é o estudo da particularidade e da complexidade de um caso singular‖. Nesta pesquisa, o caso se configura na vida e obra do professor Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral. Penso que o que se vai pesquisar pode ser, geralmente, definido como uma lacuna que é preciso preencher, ou seja, o que se quer pesquisar deve superar o que nós sabemos e consideramos insuficiente, podendo impulsionar outros trabalhos e fazer avançar o conhecimento através de pesquisas. Ou, como diz Eco (2004, p.2), um trabalho de pesquisa deve ser ―capaz de fazer avançar a disciplina a que se dedica [...] onde é necessário conhecer a fundo o quanto foi dito sobre o mesmo argumento pelos demais estudiosos. Sobretudo, é necessário descobrir algo que ainda não foi dito por eles‖. Acredito que, para descobrir o que não foi dito, um caminho possível é ouvir e reinterpretar as narrativas daqueles que conviveram com o prof. Ênnio e, ao se somarem a sua luta, ―escovando a história no contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 33 225), ou, dito de outra maneira, neste trabalho, procuro trazer a perspectiva dos que ainda não foram ouvidos, ou não tiveram eco para suas vozes. Para tentar registrar este estudo de caso escrevendo esta história a contrapelo, optei por adotar, como um dos instrumentos de pesquisa, os questionários semi-estruturados como base para ―uma entrevista de tipo qualitativo” (POUPART, 2008, p.215). Também a análise documental será uma ―técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p.38). Amado e Ferreira (2006), na apresentação da obra por elas organizada, intitulada Usos & abuso da História Oral8, contextualizam uma série de abordagens relacionadas à história oral, entre elas (p. xi) esta o uso de entrevistas gravadas [...] editar os depoimentos sem explorá-los suficientemente, tendo em vista um aprofundamento teórico-metodológico; também é comum a utilização de entrevistas, em associação com fontes escritas, como fornecedoras de informações para elaboração de teses ou trabalhos de pesquisa, sem que isso envolva qualquer discussão acerca da natureza das fontes ou de seus problemas. Saliento que os depoimentos ou entrevistas suscitados neste relatório não são apresentados em sua totalidade. Mas, após analisados e confrontados com outros documentos, retirei recortes que se transformaram também em documentos que, juntamente com aqueles de época, tais como jornais, revistas, documentos oficiais, fotografias e, até mesmo, objetos materiais passaram a compor o escopo do meu trabalho, portanto, problematizados, objetivados e analisados, com a intencionalidade de evidenciar, dar visibilidade, de comprovar (ou não) hipóteses, de explicitar as grandes expressões deste trabalho: a extensão; a vida pessoal e trajetória profissional, ou seja, a história de vida do sujeito. Amado e Ferreira (2006) trazem para discussão (p. xii) os três enfoques, ou status dados à história oral: como técnica; como disciplina; como metodologia. 8 A respeito da expressão história oral, consultar, na obra acima citada, o texto de Danièle Voldman; sobre história da história oral, os artigos de Alistair Thompson, Michael Frisch e Paula Hamilton e de Ronald J. Grele. 34 Assim, os que advogam a história oral como técnica lhe negam ―qualquer pretensão metodológica ou teórica”. Aqueles que defendem a história oral como disciplina, evidenciam que ela possui suas próprias teorias e métodos específicos, entretanto, de acordo com as autoras, algumas questões teóricas apresentam algumas nebulosidades ainda por serem esclarecidas. No que se refere às teorias ou campo teórico, Barros (2009, p. 80) assinala que ―a teoria refere-se a um modo de pensar’‖. Já, para os que evidenciam a história oral como metodologia (p. xv) — entre as quais as organizadoras da obra citada — a história oral ―apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho”, ou, citando Barros (2009, p. 80), quando se refere à metodologia ―vincula-se a ações concretas, dirigida à resolução de um problema; mais do que ao pensamento, remete à ação [...] refere-se a um ‗modo de fazer‘, ou ao campo de atividades humanas que em filosofia denomina-se práxis‖. Nesta dissertação, a respeito do campo teórico, não adoto uma única linha, mas várias, e, pela natureza e escopo do trabalho, a teoria ou teóricos, que o respaldam, que me auxiliam na reflexão, entendimento, justificativas e explicações, apresentam-se ao longo do mesmo. Assim, estão presentes elementos da História Cultural — representação e imaginário — que serão explicitados mais adiante. Alguns estudiosos se destacam na História cultural, entre eles Burke (2005), Pesavento (2004), Chartier (1990), Falcon9, dentre outros. Mas é do texto de Falcon (2006, p. 335-6) que trago um entendimento da História Cultural [...] a história cultural compreende tanto a cultura intelectual (ou do espírito) quanto a cultura material, ou seja, a erudita e a popular, a cultura científica, filosófica e artística, mais sofisticada, e a cultura cotidiana, ou do senso comum. [...] há os que definem o cultural como tudo aquilo não classificado como econômico, político, social; mas há também quem veja o cultural como uma dimensão transdisciplinar, inerente ao próprio real, própria de todo o fazer humano. Logo, não haveria como circunscrever o cultural em termos de região ou nível, pois, a rigor, ele faz parte de todos os níveis. [...] Afirma Georges Duby (1982, p. 14) que ―a história cultural tem como proposta observar no passado, em meio aos movimentos de conjunto de uma civilização, os mecanismos de produção dos objetos culturais‖ (da produção vulgar a mais refinada), (grifos meus). 9 Francisco José Calazans Falcon: História cultural e história da educação. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n32/a11v11n32.pdf> Acesso em: 10 nov. 2010 35 Assim, é possível auferir que a História Cultural — com mais intensidade a partir da década de 1970 — pode ser uma das possibilidades de entendimento das práticas e do cotidiano do homem no mundo (BARROS, 2009). Dessa forma o conceito de representação, neste texto, é: “seriam matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade” (PESAVENTO, 2004, p.39). Da mesma autora (2004), o conceito de imaginário adotado pode ser explicado como o conjunto de idéias, de imagens de representação comum, que os humanos, por todas as épocas ou eras, construíram para si, conseguindo assim um sentido para o mundo. Ainda, de acordo com o pensamento de Pesavento (2004), evidencia-se como um desafio, no trabalho do historiador, a incorporação da subjetividade. Esse desafio se dá na consciência da própria subjetividade do historiador, envolvendo sua individualidade, intuição, trajetória de vida e sua entrada no meio acadêmico e social. Em outro momento, ao levar em conta a subjetividade dos atores a resgatar o passado. A História Cultural tem como característica dar visibilidade ao indivíduo como sujeito da História, recompondo histórias de vida, em particular, no que diz respeito aos sujeitos das camadas populares. Também, nesta dissertação, estão presentes elementos ou pequenos recortes da História Econômica, da Política e da Social, pois, nesta história de vida, os seus imbricamentos aparecem em várias textualizações ou ocasiões. Na econômica, estão presentes os benefícios para os rurícolas10 e os desdobramentos em termos de consumo de vários bens, atingindo a cadeia produtiva de várias matrizes. Os custos da implantação de um sistema de eletrificação rural de baixo custo é outro fator econômico que, por outro lado, leva a questionamentos políticos quanto a sua implantação, pois sua apreciação e oficialização dependerão de órgãos governamentais, contrariando interesses de poder, de classes e corporativos. 10 Rurícola é aquele que mora no campo; que ou quem trabalha a terra; que cultiva o campo; camponês.Houaiss, 2001, p. 2484. 36 No que se refere ao social, esse seria a pedra angular ou de toque, pois o seu alcance não medeia classes, não faz distinções, busca a qualificação da vida. Situando-se na esfera da História Social, Barros (2009, p. 97) manifesta que, ―em certo sentido, argumenta-se que toda a História que hoje se escreve é de algum modo uma História Social — mesmo que se direcionando para dimensões política, econômica ou cultural‖. Assim, infiro que o trabalho que apresento está mais inserido na História Cultural e Social. Para justificar o que evidencio acima, apóio-me em Barros (2009, p. 86-8-9), quando, textualizando sobre o quadro teórico, em várias passagens, assim se manifesta [...] não há um único modelo, ou uma ―receita‖ que funcione para todas as ocasiões. É importante que o pesquisador adquira a personalidade e a firmeza intelectual requeridas para encontrar o padrão de lógica que mais se adapte ao seu tema e às especificidades da sua pesquisa [...]. É importante ressaltar que a adesão teórica a uma linha única não é de modo algum obrigatória. É possível compor uma combinação de abordagens teóricas, desde que compatíveis, ou utilizar livremente conceitos oriundos de matrizes diversas, contanto que de maneira coerente e fazendo as adaptações necessárias. Portando, ao longo deste relatório, aparecem os autores, teóricos e estudiosos com quem procuro dialogar. 3.1 O problema da pesquisa e as questões auxiliadoras O que eu pretendo com este trabalho, é demonstrar que uma das razões de ser de uma Instituição de Ensino como o atual IFsul deve ser o atendimento das necessidades da Região onde está encravado, destinando-se à educação, como seu próprio nome anuncia. Mas, também, à extensão e à pesquisa de tecnologias, nos moldes do que já foi feito em outras épocas, pelo professor Ênnio Amaral. 37 Na sua gênese, essa escola foi criada para levar a educação aos menos favorecidos11, mas, com o trabalho, esse homem levou o progresso para toda uma geração. Além disso, esta investigação tem como objetivo mostrar (mais anunciar do que denunciar) através da História desta vida – Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral, que, suas pesquisas, aparentemente singelas e sem o respaldo dos técnicos da academia e tecnocratas de alguns órgãos governamentais, mostram-se, bastante eficazes até os dias de hoje, trazendo progresso e qualidade de vida para os rurícolas, além de apresentar características típicas de uma extensão universitária, o que expresso no terceiro capítulo deste relatório. Tudo leva a crer que o IFsul12, em tempos idos, cumpriu o papel da pesquisa e extensão bem mais que nos dias atuais. As entrevistas estão focadas em dar visibilidade, em evidenciar fatos e atos da história de vida da personagem. Nesse sentido, para um melhor desenvolvimento desse trabalho, apoio-me em Tourtier-Bonazzi13 (2006, p. 233-7), que escreve A exploração inteligente do testemunho oral [...] pressupõe que ele tenha sido colhido sistematicamente. Contudo, é preciso dedicar certa atenção à qualidade do trabalho a ser realizado. Vamos nos ater aqui essencialmente a três questões: a seleção da testemunha, o lugar da entrevista e o roteiro da entrevista. [...] de modo geral, devese dar prioridade a entrevistas com pessoas de certa idade [...]. Em casa, ele pode criar um ambiente mais favorável à conversação e receber melhor o entrevistado. [...] Nenhuma entrevista deve ser realizada sem uma preparação minuciosa [...]. A entrevista semidirigida é com freqüência um meio-termo entre um monólogo de uma testemunha e um interrogatório direto. 11 Entre as reformas implementadas pelo Ministro Gustavo Capanema, as denominadas Leis Orgânicas do Ensino, por Decretos-Leis, a partir de 1942, estava o de nº 4.073, que tratava do Ensino Industrial. A Escola Técnica de Pelotas, inaugurada em outubro de 1943, ministrava o ensino industrial sob a égide do Artigo 129 da Constituição de 1937, que destinava o ensino pré-vocacional e profissional às classes menos favorecidas (MEIRELES, 2007). 12 Para um entendimento das denominações atribuídas ao Instituto Federal de Educação, Ciência e o Tecnologia Sul-rio-grandense — IFSul, criado pela Lei n. 6.095, de 24 de abril de 2007, retrospectivamente, denominava-se Centro Federal de Educação Tecnológica de Pelotas — CEFETo RS, criado em 19 de janeiro de 1999, de acordo com a Lei n. 8.948 de 08 de dezembro de 1994; em o 1973 denominava-se Escola Técnica Federal de Pelotas — ETFPEL; pela Lei n. 4.759, de 20 de o agosto de 1965, denominava-se ETFP; de acordo com o Decreto-Lei n. 4.127, de 25 de fevereiro de 1942, denominava-se Escola Técnica de Pelotas — ETP; é oriunda da Escola Technico Profissional, o criada pelo Decreto Municipal n. 1.795, de 08 de março de 1930. (grifos meus). 13 O autor tem como tema de seu artigo: Arquivos: propostas metodológicas, que constituiem o capítulo 2 da obra editada pelos Archives Nationales de France, Le térmoignage oral aux archives: de La collecte á La communication. Paris, 1990. Ainda sobre depoimento oral ver o capítulo 20 da obra Usos & abusos da história oral. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 247- 65. 38 Quanto ao local da entrevista que o autor aponta, ou seja, a casa do entrevistador, não creio que seja o local mais tranqüilo, afora o deslocamento do entrevistado. Assim, infiro que a primeira opção deva ser a casa do entrevistado. As minhas entrevistas, ou testemunhos, foram realizadas no domicílio dos entrevistados, por solicitação desses, que alegaram ser o local mais tranquilo para o fim proposto. A escolha das pessoas a serem entrevistadas foi determinada em função de seu conhecimento das atividades desenvolvidas pelo Prof. Ênnio Amaral, bem como de seu envolvimento com ele. Esperava-se que, de suas narrativas, aflorassem aspectos para além dos documentos, o que, de fato ocorreu, constituindo-se, assim após sua transcrição, também em documentos. A representatividade dos vários campos da sociedade que permeiam esta história de vida fez-me definir quatro tipos de grupos de entrevistados, com questões específicas, sendo a última questão totalmente aberta, o que possibilitou ao entrevistado narrar assuntos que as questões anteriores não contemplaram. Os entrevistados foram os seguintes, segundo seu grupo: membros da Comissão de Pesquisa ou que mantinham contato profissional e/ou afetivo com o Prof. Ênnio; membros da família (filha, primo-irmão e amigo); membros beneficiados por suas pesquisas e alunos. Esses depoimentos foram suficientes para atingir aos objetivos propostos. Assim, para um melhor desenvolvimento da problemática, apoiei-me nas seguintes questões que integram um roteiro de pesquisa qualitativa: 3.1.1 Roteiro de questões direcionadas aos membros da comissão de pesquisa, e, outras pessoas, que tiveram envolvimento com os trabalhos ou a pessoa do Prof. Ênnio 1. Identifique-se (nome, idade, formação). 2. Qual o período de convivência que teve com o Prof. Ênnio Amaral? 3. Que opinião o Sr. tem sobre a vida e obra do Prof. Ênnio Amaral? 39 4. O que sabe sobre sua vida e obra? 5. O Sr. possui algum documento de época que não conste dos documentos oficiais arquivados no IFSul? (fotos, cartas, recados, bilhetes, documentos oficiais ou cópias etc.), que possa enriquecer esta pesquisa? 6. Contextualizando o período do Brasil e a realização da pesquisa do Prof. Ênnio, qual a relevância desse trabalho para a instituição e para as comunidades beneficiadas? 7. O que o Sr. sabe sobre a posição da Empresa CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica do RS), com relação ao projeto ou pesquisa do Prof. Ênnio Amaral (posição inicial e posterior a sua implantação)? 8. O que o Sr. sabe ou pensa sobre o apoio que instituições (a própria ETFPEL, Governo do Estado, Universidades, Prefeituras, etc.) e também pessoas físicas deram ao projeto do Prof. Ênnio Amaral? 9. Sinta-se à vontade para falar sobre aspectos da vida do Prof. Ênnio Amaral que as questões acima propostas não contemplaram. 3.1.2 Roteiro de questões direcionadas aos membros da família 1. Identifique-se (nome, idade, formação). 2. O que o (a) Sr.(a) gostaria de narrar sobre a vida e obra do Prof. Ênnio Amaral. 3. O (a) Sr. (a) possui algum documento de época dos documentos oficiais arquivados no IFSul14? (fotos, cartas, recados, bilhetes, documentos oficiais ou cópias etc.). 4. Como o (a) Sr. (a) percebe a relevância do Trabalho do Prof. Ênnio? 5. O que o (a) Sr. (a) sabe sobre a posição da Empresa CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica do RS) com relação ao projeto ou pesquisa do Prof. Ennio Amaral (posição inicial e posterior a sua implantação)? 14 A História do atual IFSul, antes CEFET-RS, ETFPEL, ETFP, entre outra denominações, pode ser conhecida através do recorte do mestrado de Ceres M. da S. Meireles, sob orientação do Prof. Dr. Elomar Tambara. A obra, para além da história dessa instituição, reveste-se de importantes dados referentes à educação profissional no século XX. MEIRELLES, C. M. da S. Das artes e ofícios à educação tecnológica: 90 anos de história. Pelotas: Ed. da UFPEL, 2007. 136p. 40 6. O que o (a) Sr. (a) sabe ou pensa sobre o apoio que instituições (a própria ETFPEL, atual IFSul), Governo do Estado, Universidades, Prefeituras, etc.), e pessoas físicas deram ao projeto do Prof. Ênnio Amaral? 7. Sinta-se à vontade para falar sobre aspectos da vida do Prof. Ênnio Amaral, que as questões anteriores não contemplaram. 3.1.3 Roteiro de questões direcionadas às pessoas que se beneficiaram dessa pesquisa 1. Identifique-se (nome, idade, formação). 2. O Sr. participou do mutirão de construção dessa rede? Se participou, qual foi a forma de participação? 3. Quais os benefícios que essa rede trouxe a sua região/sua propriedade/sua produtividade? E de quais você usufrui até hoje? 4. Sinta-se à vontade para falar sobre todos os aspectos relacionados com esse processo de eletrificação rural. Considero relevante salientar que a última questão de cada bloco é livre, para que os entrevistados, na condição de atores, sintam-se livres para abordar assuntos que julgam pertinentes e que promovam a emergência de outras dimensões e informações não previstas. 3.1.4 Roteiro de questões direcionadas a ex-alunos Prof. Ênnio Amaral e outros professores da Disciplina de Instalações Elétricas com uma unidade do programa que abordava Eletrificação Rural 1. Identifique-se (nome, idade, formação). 2. Você como estudante, conviveu com o Prof. Ênnio e outros professores, ministrando a unidade temática sobre Eletrificação Rural. O que representava essa temática na formação dos futuros técnicos? 3. Você possui algum documento da época (caderno, apontamentos, etc.), que identifique esse trabalho do Prof. Ênnio e outros professores, na sala de aula? 41 4. O que representou na sua vida profissional esse conhecimento? 5. Sinta-se à vontade para falar sobre aspectos a vida do Prof. Ênnio Amaral que as questões acima propostas não contemplaram. 3.2 Elucidando a entrevista qualitativa Sem pretender esgotar a temática das entrevistas, apresentarei alguns argumentos para justificar minha escolha por essa técnica. Apoiando-me no trabalho de Poupart (2008, p. 216), há três bons argumentos para usar a entrevista do tipo qualitativo. O primeiro é de ordem epistemológica, ou seja, ―a entrevista é necessária, uma vez que uma exploração em profundidade da perspectiva dos atores sociais é considerada indispensável para uma exata apreensão e compreensão das condutas sociais‖. O segundo argumento apresentado pelo autor é de ordem ética e política, ou seja, ―a entrevista de tipo qualitativa parece necessária, porque ela abriria a possibilidade de compreender e conhecer internamente os dilemas e questões enfrentadas pelos atores sociais‖ (2008, p. 216). Finalmente, o autor apresenta os argumentos metodológicos, defendendo que ―a entrevista de tipo qualitativo se imporia entre as ferramentas de informação capazes de elucidar as realidades sociais, mas principalmente, como instrumento privilegiado de acesso à experiência dos atores‖ (2008, p. 216). Com esses argumentos, considero que compete ao entrevistador facilitar, por suas atitudes e intervenções, a livre expressão dos pontos de vista do entrevistado. Deixar o entrevistado livre para abordar os assuntos que ele julga pertinentes, favorece a emergência de dimensões novas e não imaginadas, com o afluxo de informações que podem ser determinantes para a compreensão do universo do entrevistado e do sujeito pesquisado. 42 Acredito que nenhuma forma de entrevista pode apreender a totalidade de uma experiência, mesmo as investigações que se podem prolongar por várias seções. Contudo, essa técnica pode permitir um aprofundamento na experiência do entrevistado. Assim, uma boa entrevista é aquela em que o entrevistado fala sobre o que verdadeiramente importa para ele e, dessa forma, o entrevistador obtém dimensões/informações inesperadas, que podem levar a certa saturação do tema tratado. As entrevistas depois de transcritas são transformadas em documentos. Considerando que os acontecimentos que motivaram as entrevistas ocorreram entre 25 e 40 anos passados, optei por fazer uma entrevista semiestruturada, com a última questão totalmente aberta, conforme aponta o autor. Outro motivo é a idade avançada de alguns entrevistados. 3.3 Elucidando a análise documental O uso dessa técnica é de grande valia, se considerarmos que as capacidades da memória são limitadas, sendo extremamente difícil memorizar tudo. E, outro fato relevante, é que a memória pode, também, alterar lembranças, apagar fatos importantes, ou deformar acontecimentos, em função das culturas que nos cercam, de nossas representações sociais, dentre outros fatores. Dessa forma, os documentos escritos se constituem numa fonte extremamente preciosa para todo pesquisador. Como pesquisador novato que me considero, penso que a análise de documentos é uma técnica fundamental para qualquer reconstituição referente ao passado, remoto ou recente, pela quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinada época estarem neles registrados. Percebi que, muitas vezes, o papel permanece como o único testemunho de atividades particulares específicas, (como o caso dos relatórios das operações de Sexta-Feira Santa do Prof. Ênnio). Outra percepção que tenho refere-se à dimensão temporal do documento, pois ele permite que se realize um corte longitudinal sobre os fatos, o que pode 43 favorecer a observação do processo de maturação e/ou evolução, ou não, de indivíduos, grupos, comportamentos, projetos, desde sua gênese até os nossos dias, o que parece uma dimensão fundamental na História da Educação. Outra vantagem apresentada por Lüdke e André (1986, p. 39) nos diz que os documentos ―são uma fonte não-reativa, permitindo a obtenção de dados quando o acesso ao sujeito é impraticável (pela sua morte, por exemplo) ou quando a interação com os sujeitos pode alterar seu comportamento ou seus pontos de vista‖. Mas, paralelamente às vantagens, deve-se ressaltar que podem existir desvantagens, como apontam alguns autores (CELLARD, 2008; GUBA e LINCOLN, 1981 apud Ludke). Cabe ao pesquisador avaliar a credibilidade, bem como a representatividade dos documentos e do autor desses documentos. Esses autores ainda enfatizam que, inicialmente, a noção de documento seria quase que exclusivamente para textos e arquivos oficiais, mas, no transcorrer do tempo, pela evolução da disciplina histórica, mais particularmente pela Escola dos Anais15, com uma abordagem mais globalizante, a história social ampliou consideravelmente a noção de documento. Dessa forma, tudo o que é vestígio do passado, tudo o que serve de testemunho, é considerado como documento ou fonte. As fontes podem ser textos escritos, mas também documentos de natureza iconográfica e cinematográfica, ou qualquer outro tipo de testemunho registrado, objetos do cotidiano, elementos folclóricos. Neste estudo, os documentos consistem em todo texto escrito, manuscrito ou impresso, registrado em papel. Mais precisamente, considero fontes primárias ou secundárias16 todos os documentos em que apoiarei minha análise. A divisão que 15 Estabelecendo um diálogo com o homem comum do passado, a Escola dos Anais busca desvendar seus sentimentos e idéias para melhor compreender seus meios de existência. A tradução direta do russo possibilita a difusão do trabalho do medievalista Aaron Guriêvitch, que avalia a Nova História, sem perder de vista seus problemas, contribuições e a crítica acerca da abordagem de alguns de seus principais historiadores. A Escola dos Anais é hoje uma referência obrigatória na historiosofia e historiografia do século XX e de seus desdobramentos mais recentes, como é o caso da História sob o prisma das mentalidades. Aaron Guriêvitchi. Ed.Perspectiva, 2003. 16 De acordo com Cellard (2008), tradicionalmente, os historiadores chamam de ―fontes‖ os depoimentos de contemporâneos do acontecimento que eles desejam reconstituir. Distinguem-se, 44 pretendo realizar entre eles tem apenas a finalidade organizativa, pelo grande volume encontrado. Esclareço que, mostrar alguns documentos escritos, em tamanho suficiente que se possa ler diretamente neles, foi intencional, possibilitando ao leitor realizar sua própria análise e contextualização. 3.4 Aproximações da História da Educação com a História de Vida Na obra História e Histórias de Vida, organizado por Abrahão (2004, p.209), a autora escreve: Zilah Mattos Totta: Síntese da educação e do educador. Eu acreditei. Esse, o lema da grande educadora rio-grandense, cuja História de Vida, sem dúvida, representa a síntese da educação e do educador, ou seja, confunde-se a história de vida dessa professora com a história da educação, por ser um exemplo para todos nós, educadores ou não. Também na obra acima citada, Eliana Perez Gonçalves de Moura (2004, p.141), sobre história de vida, expressa que, ―nessa modalidade, a liberdade de escolha diz respeito à construção do objeto científico, seguindo uma elaboração teórica e operacional própria‖. Nessa perspectiva, a autora, narra a história de vida do Prof. João Roget Perez, como pesquisador e professor, com um trabalho profícuo para a comunidade, Estado e País, que poderia ter ficado apenas nas lembranças de contemporâneos desse e familiares. No entanto, tal pesquisa contribuiu para que tivéssemos acesso à vida e à obra desse grande personagem. Como sempre ouvi dizer — mesmo que o ditado provenha da doxa, que o tempo é o senhor da razão e que a história faz julgamentos, associando tudo isso às leituras e cursos de educação continuada realizados nos últimos tempos, pensei em tomar a vida e a obra de Ênnio Amaral como objeto de estudo para uma dissertação de mestrado. Para tanto, comecei, desde o ano de 2004, a arquivar documentos, conversar com pessoas que conviveram com ele, conversar, também, com colegas que realizaram seus estudos de mestrado em História da Educação, com foco no Ensino Técnico. geralmente, as fontes primárias, produzidas por testemunhas diretas do fato, das fontes secundárias, que provêm de pessoas que não participaram dele, mas que o reproduziram posteriormente. Nesse texto me utilizo da expressão ‗pessoas-fonte‘ para me referir a todos que conviveram com o professor Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral. Como já afirmado anteriormente, faço uso de aspectos da História Cultural que não utiliza estas divisões. 45 Foi uma larga trilha seguida, com trabalho e dedicação, inerentes a essa construção, mas que me proporcionaram muitos conhecimentos e novos horizontes nas pesquisas da História da Educação, pois tentar reconstituir a história de uma vida não é trabalho fácil. Mas é meu objetivo reconstituir e compreender o passado reflexivamente, registrar a experiência adquirida, sendo eu um dos partícipes dessa experiência, buscando torná-la possível, dentro da perspectiva da História da Educação e, dentro dessa, os enfoques são a extensão universitária, as histórias de vida, as análises de documentos, as entrevistas de cunho qualitativo. Segundo Abrahão (2004), que se refere à possível perda das histórias individuais, pois nem sempre existem acervos dessas, ou eles estão espraiados, de posse de várias pessoas e instituições, como documentos, na memória das pessoas que narram suas próprias histórias, ou as histórias são narradas por outras vozes de pessoas fontes, sendo este último um dos meios que utilizei em minha pesquisa. Ainda citando a autora, História de vida é um estudo de caso para uma determinada pessoa, podendo também ser de um grupo de pessoas. Foram parte deste estudo de caso, ou História de Vida, os relatos de vida e outros tipos de informação por outros meios, se tornam documentos, que permitem uma reconstrução da vida e obra do ator ou atores. No livro organizado por Abrahão (2004, p. 18), a autora afirma que As Histórias de Vida de reconhecidos educadores deixam aflorar aspectos de sua formação – formação, essa, também realizada nos percursos de vida desses educadores – que permitem um constructo que aponta subsídios para a formação de educadores realmente profissionalizados. Para realizar este trabalho, tentei me afastar do objeto ou sujeito da pesquisa o máximo possível, mas não posso desconhecer que faço parte da história desse professor. A esse respeito, no prefácio do livro acima citado, assim se pronuncia Nóvoa (2004, p. 9): 46 Logo na introdução, Maria Helena Menna Barreto Abrahão explica com lucidez que a história de vida é sempre uma ―construção‖, na qual participa o próprio investigador, sendo impossível confundi-la com um mero relato. E apresenta as três categorias que serviriam de matriz analítica: formação, vida pessoal/profissional e construção de identidade. Diferenciando o mero relato de História de vida, assume Nóvoa (2004 p.7-8) que [...] não se trata de uma mera descrição ou arrumação de factos, mas de um esforço de construção (e de reconstrução) dos itinerários passados. É uma historia que nos contamos a nós mesmos e aos outros. O que se diz é tão importante como o que fica por dizer. O como se diz revela uma escolha, sem inocências, do que se quer falar e do que se quer calar. Sobre o risco que um pesquisador pode enfrentar, e como pode utilizar recursos na tentativa de se afastar do objeto ou sujeito pesquisado, Nóvoa (2004, p. 9), nos relata Não heroificando, mas para compreender a construção cultural complexa da vida e da experiência é preciso que nos dotemos de novos instrumentos teóricos e metodológicos. Caso contrario caímos na armadilha de ―naturalizar‖ as vozes dos professores ou de ―sacralizar‖ as histórias de vida. O pesquisador deve afastar-se do seu objeto de investigação, sob pena de obter como resultado de seu trabalho, uma obra pouco científica e acadêmica. Sobre esse assunto, busco o que textualiza Bédarida (2006, p. 227) sobre história e ética [...] se o historiador deve manter um distanciamento crítico em relação ao seu objeto de estudo e proceder com discernimento e rigor, nem por isso ele consegue ser neutro. É mais que uma esquiva: uma renúncia. Pois nele existe apenas uma consciência e somente uma: sua consciência de historiador é sua consciência de homem. E segundo as palavras de Rabelais, que nunca é demais repetir em virtude de seu alcance permanente e universal, ―ciência sem consciência é somente ruína da alma‖. 47 Nóvoa (2004, p.11), ao se referir a determinados traços que apresentam muitos educadores, em qualquer parte do mundo, cita quatro deles, dos quais um, em especial, vem ao encontro do que pautou a vida do Prof. Ênnio, a saber: ―A dicotomia teoria — prática é inútil e infértil. O que importa é descobrir esse mais que nasce da ligação entre o fazer teórico e o pensar prático”. Seguindo o mesmo raciocínio, constata Le Goff (1989, p. 209) “se o ensino sem investigação é frustrante, a investigação sem ensino é lúgubre”. Eu me atreveria a acrescentar a sentença do autor acima citado, que sem extensão, é incompleto. 48 4 TERCEIRO CAPÍTULO — uma possível teorização sobre extensão Pensando sobre a extensão para a construção teórica sobre a temática que conduz a buscar uma compreensão sobre a Universidade e a razão de ser dessa instituição, optei pela compreensão sócio-histórica, em função da permissão que as ciências sociais fornecem para possíveis análises dos contextos. Com essa perspectiva, encontrei, pelo caminho da História, que a Universidade nasceu contemporânea ao período europeu de transição dos dogmas e feudalismo para o alvorecer do renascimento do conhecimento e da racionalidade científica. Dessa forma, a Universidade foi um dos instrumentos da criação do novo saber que serviria ao outro mundo, surgido entre o fim do feudalismo dogmático e a consolidação do liberalismo capitalista (BUARQUE, 2000). Santayana (2000) nos recorda que essa instituição nasceu, de certa forma, na Itália medieval do século XII, mais especificamente na cidade de Bolonha, provavelmente pela reunião de famosos professores de Direito Canônico e Direito Civil. Esses professores aceitavam em seu convívio, às vezes lhes oferecendo abrigo, estudantes, como aprendizes das chamadas essências universais. A esses grupos de alunos e mestres deu-se o nome de universidade, ou corporação. Essa marca de origem pode ser a razão de dois vícios históricos dessa instituição, que são ―o pensamento conservador (muitas vezes reacionário) e a arrogante presunção de monopolizar o saber‖ (SANTAYANA 2000, p.11). 49 O mesmo autor defende essa idéia, por considerar que a universidade não se aventura, não desce até o chão do mundo, onde a vida é o grande desafio de parte do Universo, textualizando O papel da universidade deve ser o de estimular e desafiar a razão, o de libertar a inteligência para a plenitude de sua possibilidade, mais do que isso, para descoberta apaixonada do outro, esse nosso parceiro na imensa e enigmática aventura de viver (SANTAYANA, 2000, p.12). Outro estudioso que comunga com esse pensamento é Cristovam Buarque. Esse autor apresenta, em seu livro A aventura da Universidade (2000), uma história contada por Bautista Vidal. O professor Vidal conta que fez uma mesma pergunta para um grupo de crianças e para um grupo de estudantes de biologia de uma universidade brasileira. A pergunta feita foi esta: quantas patas têm uma lagarta? (p.70). Os universitários foram procurar a resposta nos livros, e as crianças foram ao quintal e contaram o número de patas da primeira lagarta que encontraram. Com essa atitude, elas demonstraram que tinham consciência de que as perguntas teóricas tem algo a ver com a realidade. Mas é provável que, na universidade, quando adultos, Serão levadas a quebrar a relação entre teoria e prática e a pensar o mundo como produto dos livros. Como conseqüência, só verão aquilo que alguém escreveu. Saberão tudo que os textos de biologia dizem sobre plantas, mas não perceberão que a universidade tem um jardim. Se virem uma planta nova, em vez de catalogá-la, acharão que ela não existe (Ibid., p.71). Essa narrativa nos aponta para o fato de que o mundo muda e a universidade deve acompanhá-lo. Ao não assimilar o novo, o diferente, ela poderá ter uma relação enviesada com a realidade. Ao fugir do real, a comunidade universitária, algumas vezes, pode afastar-se de problemas presentes na comunidade, no seu entorno, relegando para segundo plano as atividades de extensão. 50 Em que pesem os excelentes trabalhos nessa área, Buarque (2000, p.137) escreve que O trabalho de extensão, no sentido de ir além do campus, é básico para a universidade que deseja revolucionar idéias. Sem um toque de fora do campus, proporcionado pela extensão, a universidade perde grande parte do seu poder de criação. Sem atingir a comunidade, a universidade se limita a exercícios fechados em si mesma. A atividade de extensão é o caminho básico para a universidade descobrir o mundo e para o mundo descobrir a universidade. Essas palavras nos aproximam do pensamento de Vieira Pinto (1969, p.225): ―[...] a ciência só pode ser agora criada pela ação convergente de grupos de pesquisadores, trabalhando conjuntamente sobre determinado problema, e com uma institucionalização de relações pessoais antes inexistentes‖. Minha interpretação é a de que essas relações podem emergir através das atividades da extensão. Assim, chega-se ao que Buarque (2000, p.123) denomina de universidade tridimensional. Para ilustrar essa condição, conta que o escritor argentino Jorge Luis Borges, um dia, visitando o deserto do Saara, agarrou um punhado de areia, levantou-o e derramou-o, sem enxergar, virando-se para o acompanhante e dizendo: Acabo de transformar o Universo. Sobre esse episódio, Buarque diz que, além de transformar o Universo, Borges teve a percepção de que o mudava e sentia prazer ao perceber isso. Sua aventura apresentou três gestos: o gesto técnico, de manipular e transformar o mundo, que se iniciara dias antes, ao tomar um avião em Buenos Aires para chegar ao Cairo. O segundo foi o gesto epistemológico, de conhecer o deserto; o terceiro foi o gesto poético de sentir a beleza do deserto e de usufruir com prazer da aventura dos gestos de manipular e transformar o mundo para fazê-lo mais útil e mais belo. Mas, para viver essa aventura, a academia necessita substituir a síndrome de Salamanca17 pelo sentimento borgiano de exercer e usufruir dos objetivos teleológicos da universidade. 17 A Síndrome de Salamanca refere-se às discussões sobre a viagem de Colombo, ocorridas nesta Universidade, a pedido do Rei e Rainha da Espanha, se seria possível chegar às Índias viajando para 51 Na seqüência deste texto, apresento uma retrospectiva da instituição da extensão na universidade brasileira. Mas, para tal, antes faço uma retomada histórica da criação da extensão nas universidades no Brasil. 4.1 A Indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão A constituição de 1988, em seu artigo 207, institui, como fazeres da universidade, a indissociabilidade da trilogia: ensino, pesquisa e extensão. Nessa perspectiva, deve-se entender que esses conceitos serão aqueles que, implementados, definirão a realidade, a concretude, a materialidade da instituição universidade ou de outras formas de instituição de ensino superior, como exemplos os institutos federais, recentemente criados. Ivetti Magnani18 (p.1), em artigo publicado na ANPED, faz uma análise dos decretos n.o 2.207/97, n.o 2.306/97 e n.o 3.860/01, evidenciando a desconstrução da indissociabilidade da trilogia que compõe a universidade brasileira de acordo com o artigo 207 da Constituição. Dessa forma, ela textualiza o [...] mais recente o de n. 3.860, de 9 de julho de 2001, a questão da indissociabilidade nas universidades desapareceu da legislação educacional, o conforme a redação dada ao artigo 8. desse Decreto: ― As universidades caracterizam-se pela oferta regular de atividades de ensino, de pesquisa e de o o extensão...‖ (grifos meus). Já os dois Decretos anteriores, o de n. 2.207/97 e o de n. 2.306/97 afirmam que ―as universidades, na forma do disposto no artigo 207 da Constituição Federal, caracterizam-se pela indissociabilidade das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão...‖ (grifos meus). Nessa perspectiva, para a autora, a intencionalidade desses decretos relativos à LDB de 1996 (Lei n.o 9.394, de 20 de dezembro de 1996), visam, na ótica neoliberal, a criar sistemas educacionais diferenciados, ou seja, de acordo com oeste. A conclusão foi que não seria possível, pois Colombo estimara um diâmetro pequeno para a terra. No entanto, a Rainha financiou a viagem e Colombo acabou por chegar à América. Embora Colombo tenha morrido acreditando ter chegado às Índias, descobriu um novo continente. Portanto essa síndrome refere-se ao não se aventura e sair de seus muros, o que as universidades pouco fazem. 18 Disponível em: < www.anped.org.br/reunioes/25/ivettimagnanit11.rtf>. Acesso em: 2 de jul. 2010. 52 artigo 7.o do decreto n.o 3.860/01, estabelece a criação, classificação e organização acadêmica das instituições em universidades; centros universitários; faculdades integradas, faculdades institutos ou escolas, ou escolas superiores. A trilogia, ensino, pesquisa e extensão seria característica apenas das universidades. Quanto às outras instituições, a pesquisa e a extensão seriam meramente facultativas. Magnani (Ibid., p. 6) destaca o modelo de universidade que prioriza o ensino e a pesquisa em detrimento da extensão, de fato, tem o intuito de Formar elites, que são as pessoas que pensam melhor, que vão assumir a liderança ou que vão criticar as lideranças. As instituições que oferecem esse ensino também serão as produtoras de conhecimento, ou seja, terão pesquisa. Modelos: Harvard, Princeton e Yale, nos EUA. 2) Formar profissionais, como dentistas, médicos, advogados, engenheiros. São áreas onde não dá para operar sem vencer uma linguagem própria, que se adquire em um período longo de aprendizagem específica. Esse ensino tem necessidade de professores com experiência profissional, o que colide com a política brasileira de impedir que profissionais sejam professores universitários de primeira grandeza. 3) Formar técnicos. É semelhante à profissional mas trata-se de áreas que ―subiram o morro‖. São práticas, com linguagem própria, mas que antes eram aprendidas no nível secundário. Exemplo: contadores, técnicos em eletrônica, fisioterapeutas. Como o ensino profissional, este deve ter laços estreitos com o mercado de trabalho – as empresas têm que interferir nesse ensino. Mas é de duração bem mais curta. 4) Formar pessoas com uma educação geral, não essencialmente voltada para uma única profissão. Os exemplos são os cursos denominados nos EUA como ―liberal arts‖ (artes liberais). ―É a área que exige menos investimento‖. No entanto, de acordo com os últimos fóruns de pró-reitores de extensão universitária, dos quais participam inclusive os Institutos Federais de Educação, há um firme propósito de dar maior visibilidade, institucionalização, efetivação do ensino, da pesquisa e da extensão, como o escopo dessas instituições. O que se tem de mais atual em produção sobre extensão universitária são as discussões do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX), apresentadas no XXVI Encontro Nacional, em novembro de 2009, na cidade do Rio de Janeiro e que serão retomadas no próximo fórum, em julho de 2010, de onde poderá sair um documento oficial sobre tais discussões. A partir dos documentos analisados, é possível perceber o progresso da institucionalização da extensão; eles demonstram um trabalho expressivo e 53 minucioso, reflexivo e crítico, na busca de dar maior visibilidade e igualdade com o ensino e a pesquisa. Desse documento, ainda em elaboração destaquei parte do texto onde constam dois conceitos propostos Recuperando a conceituação instituída pelo FORPROEX nos anos 80 e a partir do debate feito pelo Fórum nos Encontros Nacionais em 2009 e em 2010, foi elaborado o seguinte conceito: [PROPOSTA I]: ―A Extensão Universitária articulada ao Ensino e à Pesquisa de forma indissociável, é processo educativo, cultural e científico, e viabiliza a interação transformadora entre Universidade e outros setores da Sociedade‖. [PROPOSTA II]: ―A Extensão Universitária, sob o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, é um processo interdisciplinar educativo, cultural e científico, que amplia a interação transformadora entre Universidade e todos os setores da Sociedade‖. A partir daí, infiro que as intenções desse grupo de trabalho, são de fato, tornar a extensão universitária um dos fazeres em igualdade com o ensino e a pesquisa. 4.2 A Extensão A extensão universitária se iguala aos outros fazeres da universidade. Mesmo que meu estudo se situe nas décadas de 1970 e 1980, me utilizo de instrumentos que textualizam a preocupação com a extensão em décadas posteriores. Um exemplo é a construção do documento referente ao XXVI Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX, 2009), do qual destaquei alguns objetivos propostos Oferecer uma reavaliação crítica do conceito atual de Extensão Universitária. Rever e repactuar as grandes diretrizes que devem nortear todas as ações de extensão: impacto e transformação, interação social, interdisciplinaridade e indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão. Conquistar o reconhecimento, por parte do poder público e da sociedade, de que a extensão universitária não se coloca apenas como uma atividade acadêmica, mas integrada a uma concepção de universidade e a seu projeto político institucional. Contribuir para que a extensão universitária interfira na solução dos grandes problemas sociais do país. Conferir uma unicidade aos programas temáticos que se desenvolvem em diferentes universidades brasileiras. Garantir um financiamento público transparente e unificado destinado à execução das ações extensionistas em todo território nacional, viabilizando a continuidade dos programas e projetos das universidades. Reafirmar a extensão universitária como processo acadêmico definido e efetivado em função das exigências da realidade, indispensável na formação do aluno, na qualificação do professor e no intercâmbio 54 com a sociedade. Dar prioridade às práticas voltadas para o atendimento de necessidades sociais emergentes como as relacionadas com as áreas de educação, saúde, habitação, produção de alimentos, geração de emprego e ampliação e redistribuição da renda; Estimular atividades de extensão cujo desenvolvimento implique relações multi, inter e/ou transdisciplinares e interprofissionais de setores da universidade e da sociedade. Enfatizar a utilização de tecnologia disponível para ampliar a oferta de oportunidades e melhorar a qualidade da educação em todos os níveis; Considerar as atividades voltadas para o desenvolvimento, produção e preservação cultural e artística como relevantes para a afirmação do caráter nacional e de suas manifestações regionais; Inserir a educação ambiental e desenvolvimento sustentado como componentes da atividade extensionista Tornar permanente a avaliação institucional das atividades de extensão universitária como um dos parâmetros de avaliação da própria universidade; Criar as condições para a participação da universidade na elaboração das políticas públicas voltadas para a maioria da população, bem como para se constituir em organismo legítimo para acompanhar e avaliar a implantação das mesmas; Possibilitar novos meios e processos de produção, inovação e transferência de conhecimentos, permitindo a ampliação do acesso ao saber e o desenvolvimento tecnológico e social do país; Valorizar os programas de extensão interinstitucionais, sob a forma de consórcios, redes ou parcerias, e as atividades voltadas para o intercâmbio e a solidariedade. Atuar de forma solidária para a cooperação internacional, especialmente a latinoamericana (p.18). Nas discussões desse Fórum, na sua intencionalidade, há uma preocupação e contextualização com as novas demandas do país e também em termos de globalização. Tal afirmativa esta baseada na referência adotada para início das discussões, em texto de Boaventura de Souza Santos19 A área de extensão vai ter no futuro próximo um significado muito especial. No momento em que o capitalismo global pretende funcionalizar a universidade e, de facto, transformá-la numa vasta agência de extensão ao seu serviço, a reforma da universidade deve conferir uma nova centralidade às atividades de extensão (com implicações no curriculum e nas carreiras dos docentes) e concebê-las de modo alternativo ao capitalismo global, atribuindo às universidades uma participação activa na construção da coesão social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental, na defesa da diversidade cultural. (2004, p. 73) (sic). A partir das leituras e estudos que realizei, organizei um breve estado da arte sobre a extensão universitária. Meu propósito é evidenciar trabalhos de extensão no país. 19 A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção Questões da Nossa Época, v. 120), p.73. 55 No Brasil, a extensão aparece no Governo (provisório) de Getúlio Vargas, quando era ministro dos Negócios da Educação e Saúde Pública, Educação Francisco Campos, através do Decreto n.o 19.851, de 11 de abril de 1931, Arts. 32 e 109. É nessa época que os escolanovistas20 tem uma maior aproximação do governo. Dessa forma, nas comunidades em que estavam inseridas as Instituições de Ensino Superior, era recorrente o uso de cursos, palestras, peças teatrais. De acordo com Mauro Gurgel (1986), a Universidade Livre de São Paulo, surgida em 1911, foi uma das universidades populares criadas no Brasil, pela ação de Augusto Ribeiro Guimarães, positivista que, como tal, propagava a educação livre. Foi fechada em 1917. Outras universidades populares foram criadas (com existência efêmera), no Rio de Janeiro, Amazonas e Maranhão. Na Universidade Livre de São Paulo, aconteceu a primeira experiência de extensão universitária (GURGEL, 1986). Eram palestras que aconteciam semanalmente, abertas ao público, cujos assuntos evidenciavam o despreparo na condução desse trabalho. Como exemplos, o autor cita os títulos das palestras oferecidas ao público: O Fogo Sagrado da Idade Média, A Latinidade Rumania ou A importância e o Progresso da Otorrinolaringologia, entre outros. Essas palestras não invalidam a idéia, mas não possuíam o alcance que poderiam ter. A partir da criação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, com a agregação de algumas faculdades isoladas e a criação da Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro), em 1935, a extensão universitária passou a ofertar cursos, divulgar pesquisas, realizar palestras, com apoio de meios tecnológicos, como o rádio, o cinema e, mais tarde, a televisão. Alguns cursos eram de aperfeiçoamento dos próprios servidores das instituições. 20 Movimento de renovação de ensino constituído na primeira metade do século XX. No Brasil se destacaram logo após a divulgação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, ocorrido em 1932, em defesa da escola pública, laica, obrigatória, gratuita e única. (ROMANELLI, 1969). 56 Na década de 1960, o artigo 69 da LDB n.o 4.024/61 considera a extensão como oferta de curso que atendam à comunidade, tais como especialização ou aperfeiçoamento. As manifestações estudantis lideradas pela União Nacional dos Estudantes — UNE, criada em 1937, organizaram congressos em várias cidades do país, tais como Salvador, Curitiba, Belo Horizonte, entre outras, onde as exigências era uma educação superior para as camadas populares urbanas. A extensão deveria ofertar serviços e soluções para os problemas da comunidade. Aqui, as reflexões, os ideais, a filosofia de Paulo Freire são muito discutidos e utilizados como pressupostos teóricos. Há de se considerar a Aliança para o Progresso21 (1961 a 1970), acordo de colaboração econômica que tentava evitar que os países sul-americanos se aproximassem do ideário socialista e/ou cubanismo. Todos esses movimentos ficaram comprometidos pelo golpe militar em 1964. O primeiro Fórum Nacional de Pró-Reitor de Extensão aconteceu em 1987, em Brasília. A partir daí, todos os anos, em cidades diferentes, com enfoques diferentes, vem-se realizando esses encontros. Isso denota a diferença temporal histórica dos trabalhos desenvolvidos na ETFPEL, que começaram em meados da década de 1970. Abaixo, o conceito auferido neste fórum para extensão universitária Processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e a sociedade. A extensão é uma via de mão dupla, com trânsito assegurado à comunidade acadêmica que encontrará, na sociedade, a oportunidade de elaboração da práxis de um conhecimento acadêmico. No retorno à universidade, docentes e discentes trarão um 21 A Aliança para o Progresso foi um programa dos Estados Unidos da América, realizado entre 1961 e 1970, com o objetivo de promover o desenvolvimento econômico mediante a colaboração financeira e técnica em toda a América Latina. Seriam investitos 20 milhões de dólares. A proposta estabelecida na reunião ocorrida em Punta del Este, Uruguai, de 5 a 17 de Agosto de 1961, no Conselho Interamericano Econômico e Social – CIES, da Organização dos Estado Americanos – OEA. A Declaração e Carta de Punta del Este foram aprovadas por todos os países presentes, com a exceção de Cuba. 57 aprendizado que, submetido à reflexão teórica, será associada àquele conhecimento. Este fluxo que estabelece a troca de saberes sistematizado, acadêmico e popular, terá como conseqüência: a produção de conhecimento resultante do confronto com a realidade brasileira regional; a democratização do conhecimento acadêmico e a participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. Além de instrumentalizadora deste processo dialético de teoria/prática, extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora social. (Fórum, l987). Para complementar esse estado da arte sobre extensão universitária, há registro no período de 1977 a 2007, de 197 dissertações e teses nos bancos da Capes, o que, em um primeiro momento, poderia indicar que o tema parece esgotado em suas interpretações. Se considerarmos os artigos publicados na internet, revistas, entre outros meios, seria difícil mensurar todos, afora os grandes autores que teorizaram e escreveram, sobre o assunto, tais como Rocha (2001) Sousa (2001), Pons (1998), Nogueira (2000), Freire (2002), Gurgel (1986), Melo Neto (1994, 1996, 1997), dentre outros. Mas, como ainda persistem interrogações em relação à organicidade, constituição, instituição e função da extensão, em algumas universidades, ela ainda é objeto de novas investigações. Para justificar, pelo menos em parte, essa dissertação, busquei parte da gênese, do desenvolvimento da extensão, onde na Europa 22, nas idéias dos jesuítas, os quais, transpondo os muros de suas escolas, prestavam vários tipos de assistencialismo aos menos favorecidos. Inclusive, para uma melhor formação desses padres e, para melhor atender às comunidades, universidades foram criadas. Na Inglaterra, a Universidade de Cambridge, em meados da década de 1860, se destacava em suas palestras abertas ao povo, nas universidades ou em lugares determinados por catedráticos experimentados. Também nos Estados Unidos, a extensão rural já era utilizada logo após a Guerra de Secessão, mas com outras formas de extensão, tais como prestação de serviços, difusão técnicocientífica, educação permanente, cursos noturnos, entre outras ações que influenciaram muitos países, como os latino-americanos. Essa extensão — a norteamericana é considerada clássica. Mas foi na Universidade de Oviedo, na Espanha (de orientação anárquica), com a colaboração de seus dirigentes, docentes e também de alunos de alguns 22 Segundo Rocha (2001), a extensão, mesmo que assistencialista, iniciou-se em Portugal no ano de 1260, no Mosteiro de Alcabaça, estendendo-se a outras escolas religiosas e, com a criação da Ordem dos Jesuítas, esses movimentos se espraiaram pela Europa, chegando à América Colonial. 58 países latino-americanos, que se criaram novidades em termos de uma maior interação entre a universidade e o povo, com reivindicações estudantis que culminaram em alguns movimentos na América Latina. Os latino-americanos reivindicavam uma maior participação da universidade na vida das cidades ou comunidades em que estava inserida, como também a participação dos alunos através de seus representantes nos conselhos colegiados. Em Lima, Peru, em 1899, os professores reivindicavam um ensino de qualidade e voltado para o país. O primeiro dos eventos estudantis ocorreu em Montevidéu, no Uruguai, em 1908, no Primeiro Congresso de Estudantes Americanos, de 26 de janeiro a 8 de fevereiro. Outros congressos foram realizados em 1910, na Argentina e, em 1912, no Peru. Portando as discussões pelas reformas nas universidades eram de cunho continental, sendo suas vozes ouvidas em várias nações latinas. Em 1918, eclodiu, em Córdoba, Argentina, um movimento estudantil, que até hoje é basilar em termos de reivindicações de uma maior aproximação das universidades aos problemas sociais, assistenciais, estruturais, entre outros. Buscava-se a Universidade Popular. Rocha (2001) aponta que o movimento de Córdoba contribuiu par a abertura de muitas universidades populares na América Latina. Outros países, com diferentes reivindicações, tiveram movimentos estudantis, tais como o Peru e o México, nas primeiras décadas do século XX. Jezine (2001) nos relata que, no Brasil, as universidades populares ficaram conhecidas como Universidades Livres. Em 1909, um grupo de empresários criou a Escola Universitária de Manaus — Universidade de Manaus — em pleno ciclo da borracha (considerada por muitos estudiosos como a primeira a ser criada no Brasil). As universidades populares de São Paulo e do Paraná foram criadas em 1911. Nessa perspectiva, Cunha (1983, p.210) nos indica que 59 Em 1916, foi criada a Federação dos Estudantes do Peru, talvez a primeira que teve sucesso em nosso continente, seguida, em 1918, pelo nascimento da Federação Universitária Argentina, integrada por delegados de cada uma das universidades do país: Buenos Aires, Córdoba, La Plata, Tucumã e Santa Fé. Seu primeiro congresso foi realizado no mesmo ano, em Córdoba, sendo aprovada a ―Carta Magna da Reforma Universitária‖, consagrando a expressão – ―Manifesto de Córdoba‖. Esses princípios, idéias, reivindicações repercutiram no Brasil. Desde 1929, a Carta de Córdoba era conhecida por estudantes brasileiros, principalmente nos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Maranhão e Distrito Federal (Rio de Janeiro). Em Lavras-MG, no ano de 1921 com a criação das Escolas Superiores de Agricultura, é publicou-se a Revista O Agricultor. Em Viçosa-MG é criada mais uma dessas Escolas e, no espaço de três anos criou a atividade de extensão denominada Semana do Fazendeiro (Rocha. 2001). Mas, somente em fins de 1930 e início de 1940 é que as concepções e ideais de Córdoba começaram a ser propagados como experiências de práticas educativas de extensão. Sendo a cultura o principal foco, foram implantadas salas de leitura, difusão cultural, uso do rádio e, também, cursos e conferências abertas à população, com a intenção de discutir e buscar soluções para questões sociais. Pode-se inferir que esses movimentos estudantis e populares foram historicamente lentos, tendo seu apogeu nos movimentos estudantis da década de 1960, sendo sufocados pelo golpe militar de 1964. A extensão, no Brasil, a partir de 1940, começou a ser criada em diversas instituições, balizada no modelo clássico dos Estados Unidos, através de órgãos e associações geradas pelo governo federal e estadual, sem o caráter universitário. Em 1948, foi criada a Associação de Crédito e Assistência Rural — ACAR, em Minas Gerais. Logo após seria criada a Associação Brasileira de Crédito e Assistência Rural — ABCAR. Até 1960, a principal característica dos órgãos de extensão de diversas instituições era o assistencialismo. Após 1960, ela foi direcionada para o modelo do 60 difusionismo ou produtivismo, buscando atender os mercados interno e externo, com o aumento da produção e produtividade, segundo a ideologia do liberalismo e do capitalismo. A liberação de crédito era feita aos médios e grandes proprietários, deixando os pequenos e os que não tinham terra fora do sistema, abandonados a sua própria sorte, contando com seus próprios recursos e seu trabalho. Há que se considerar a preocupação de alguns governos estaduais com os pequenos produtores rurais, como foi o Governo de Brizola (1959 a 1963), no Rio Grande do Sul, que também tinha a educação como meta, construindo milhares de escolas no interior, as denominadas brizoletas. Então foram criadas 5 902 escolas primárias, 278 escolas técnicas e 131 ginásios, colégios e escolas normais, totalizando 6.302 novos estabelecimentos de ensino. Foram abertas 688 209 novas matrículas, sendo admitidos 42 153 novos professores.23 Tais quantificações não foram aquelas auferidas por Claudemir de Quadros, cujos números são: nos quatro anos de governo, construíram-se 1.045 prédios escolares, com 3.360 salas de aula e capacidade para 235.200 alunos; foram iniciados 113 prédios, com 483 salas e capacidade para 33.810 alunos; foram planejados 258 prédios, com 866 salas de aula e capacidade para 60.620 alunos, portanto, muito menores.24 Em 1968, contemplando alguns ideais de grupos estudantis, o governo do Brasil criou o Projeto Rondon, Operação Mauá (Ministério do Interior e Forças Armadas) e Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária — CRUTAC, concebido por Onofre Lopes, primeiro reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte — UFRN, em 1966. De acordo com Mattos (1981), esse modelo de extensão mostrava-se exequível. 23 Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Governo_Brizola_no_Rio_Grande_do_Sul >. Acesso em: 30 de maio 2010. 24 O capítulo XIII- A Educação (1930-80), textos de Elomar Tambara, Claudemir Quadros e Maria H. C. Bastos. In República: da revolução de 1930 à Ditadura Militar (1930-1985) / coordenação geral Tau Golin, Nelson Boeira. Passo Fundo: Méritos, 2007. -v. 4- (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul). 61 Visando ao atendimento das regiões norte-nordeste, por alunos de universidades do sul-sudeste levando o conhecimento de quem sabe, para quem não sabe, ou seja, havia certa invasão cultural (FREIRE, 1983) e, de acordo coma alguns autores, os alunos traziam consigo, na volta às universidades, dúvidas que os professores muitas vezes eram incapazes de resolver, além do que, tais projetos serviam para amainar o ímpeto reivindicatório do alunado. Em 1968, revogada a Lei 4024/61, foi implantada a nova Lei de Diretrizes e Bases — LDB, de n.o 5540/68, em que já constava a indissociação do ensino e pesquisa. Em meados da década de 1970, o governo elaborou políticas de extensão, cujos alcances foram pequenos. Assim, pode-se afirmar que, a partir de 1968, embora de maneira acanhada, institucionalizou-se a extensão nas Universidades Brasileiras, na forma de PróReitoria, nem sempre com essa denominação. Foram usadas expressões tais como Departamento Comunitário, e Decanato entre outras. As articulações públicas de pesquisa, de extensão rural e crédito, a partir de 1964, foram todas voltadas para o aumento da produtividade e produção. As reformas de base de João Goulart foram esquecidas. Nada de reforma agrária, de crédito ao pequeno produtor. Voltava-se o Brasil para o pensar grande, para os grandes projetos, tomando empréstimos externos, dada a grande oferta de capital internacional e falta de responsabilidade e projeto de nação do governo estabelecido que contemplasse todas as classes sociais. Na década de 1970, o governo militar criou a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão — EMBRATER e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária — EMBRAPA, sendo o objetivo dessas empresas transferir tecnologias aos produtores rurais, com a finalidade de incrementar a produção e produtividade. Em 1979, a EMBRATER, tomando algumas diretrizes consideradas inovadoras, tais como uma maior participação dos agricultores, uma atuação mais forte junto aos municípios, mais planejamento e preocupações ambientais, conseguindo financiamentos do Banco Mundial. No governo Collor, a EMBRATER foi extinta. 62 Em nível estadual, foi criada a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural — EMATER, que absorveu a ACAR e a ABCAR. O que se evidencia é que, até o final da década de 1980 e início da década de 1990, talvez ainda houvesse espaço para discussões e, assim, a extensão universitária se situaria em um quadro ou espaço político e teórico, sem definição ou aplicação. O fato é que essas entidades ou instituições de extensão não ligadas às universidades, ou, pelo menos, não diretamente, atingiram boa parte dos objetivos propostos na sua criação. Abaixo, na Fig. 1, apresento uma linha de tempo destas entidades, tendo como fonte a Academia Brasileira de Extensão Rural — ABER25, fundada em Brasília em 20-09-2006. Figura 1– Linha de tempo das entidades de extensão rural (não universitárias). 25 ACADEMIA BRASILEIRA DE EXTENSÃO RURAL — ABER. Disponível em: <http://www.asbraer.org.br/portal>. Acesso em 10 mar 2010. 63 Ao final da década de 1970, a Secretaria de Planejamento Desenvolvimento/Associação Brasileira de Educação Agrícola – e Seplan/Abeas, apresentou um relatório intitulado Programa de Ensino de Extensão em que objetivava uma formação de extensão rural. Criar condições para que os alunos, a partir de uma análise da problemática da agricultura brasileira e das diferentes estratégias de transformação da realidade rural, adquiram capacidade para, em suas futuras atividades profissionais, atuarem de maneira crítica e criativa no processo de mudança da sociedade. (Seplan/Abeas, 1978, p. 19). Em minhas pesquisas sobre extensão, que envolveram não apenas as universidades, mas outras instituições de ensino e órgãos criados para esse fim, como ACAR, ABCAR, EMBRATER, EMBRAPA, EMATER, levaram-me a alguns indícios, pois pesquisar em profundidade os órgãos de extensão rural ou os que com esses tivessem relação não é a proposta deste trabalho, mas devo apresentá-los a seguir. Apesar dos financiamentos colocados à disposição da atividade agropecuária, que chegava basicamente aos médios e grandes produtores, o País se encaminhava para a consolidação da inclusão dos pequenos produtores rurais. Entre eles, os sem terra, haja vista que a reforma agrária fazia parte das reformas de base do governo democrático de Jango, que contribuiriam significativamente para fixar o homem no campo, reduzindo o êxodo rural, que já havia começado no final da década de 1940, intensificando-se na década de 1960. O pequeno produtor, em sua grande maioria, não foi alcançado pelas políticas extensionistas praticadas pelos governos militares. As atividades de extensão que se efetivaram, em nenhum momento, tiveram o alcance social em grandeza, tecnologia nacional, custos e benefícios dentro das perspectivas freireanas de fazer extensão. A seguir, apresento a interpretação de Melo Neto (1996, p.10) para a extensão 64 A busca por uma ontologia da extensão carece da presença da crítica como ferramenta nas atividades que a constituem, ou como elemento constituinte de seu agir. Traz, dessa forma, a dimensão de superação do ―senso comum‖, ao expor e explicar, ou mesmo tomar contatos com os elementos da realidade. Elementos esses, presos, naturalmente, de formulações abstratas, sim, mas colocando a realidade, o mundo concreto, como anterioridade nas suas bases analíticas; a compreensão de que nesse movimento de análise da realidade um segundo movimento tem continuidade no campo das abstrações em busca de elementos mais abstratos, permeados, entretanto, pelo concreto inicial e base de análise; e, finalmente, como os recursos expostos dessas abstrações ser possível novo concreto, permeado das abstrações anteriores, ou um novo concreto, um concreto pensado. [...] Ao compreender a universidade como um aparelho de hegemonia, onde se debatem forças permeadas de contradições, as mais variadas, a extensão universitária pode ser entendida como trabalho social. Isso abre a possibilidade, talvez, de se avançar na formulação conceitual de extensão. Em sendo extensão um trabalho social, pressupõe-se que a ação do mesmo é uma ação, deliberadamente, criadora de um produto. Se constitui a partir da realidade humana e abre a possibilidade de se criar um mundo, também, mais humano. É pelo trabalho social que se vai transformando a natureza e criando cultura. A extensão, tendo como dimensão principal o trabalho social, será produtora de cultura. O trabalho social não se exerce apenas a partir dos participantes da comunidade universitária, servidores e alunos. Ele tem uma dimensão externa à universidade, que é a participação dos membros da comunidade e de movimentos sociais, dirigentes sindicais, associações, numa relação ―biunívoca‖, na qual participantes da universidade e participantes desses movimentos confluem. Extensão, como um trabalho social, é exercido, agora, pela universidade e pela comunidade sobre a realidade objetiva. [...] Vislumbrando a extensão como trabalho social, essa atividade extensionista gerará um produto desse trabalho. Um produto caracterizado no ―bojo‖ das relações de trabalho que, também, tem suas contradições, mas que, sobretudo, se constituirá como uma mercadoria. Portanto, terá um produto que será de conhecimento teórico ou tecnológico que deve ser, também, gerenciado pelos seus produtores principais - a universidade e a comunidade. A extensão em sendo ―... trabalho social sobre a realidade objetiva, gerado de um produto em parceria com a comunidade, a esta comunidade deverá retornar o resultado dessa atividade de extensão‖. Essa é outra dimensão fundamental caracterizada como a devolução de suas análises da realidade objetiva à própria comunidade. A devolução dos resultados do trabalho social à comunidade caracterizará a própria comunidade como possuidora de novos saberes ou saberes rediscutidos e que serão utilizados pelas lideranças comunitárias em seus movimentos emancipatórios e reivindicatórios. Isso faz crer a extensão exercendo e assumindo uma dimensão filosófica fundamental, que é a busca de superação da dicotomia teoria e prática. [...] Nessa perspectiva, o autor traz pressupostos teóricos consistentes que consideram a extensão um trabalho social sobre a realidade objetiva, gerado de um produto em parceria com a comunidade [...] (MELO NETO, 1996, p.15). Continuando com essa demonstração da teoria sobre extensão universitária, trago o pensamento do filósofo e educador Dermeval Saviani que, de maneira sintética, mas assertiva teoriza sobre as ações da extensão universitária indissociada do ensino e pesquisa. 65 Cabe à universidade socializar seus conhecimentos, difundindo-os à comunidade e se convertendo, assim, na força viva capaz de elevar o nível cultural geral da sociedade [...] é o contato com os problemas efetivos da sociedade que vai permitir à universidade transformar objetos de suas pesquisas em algo relevante para a sociedade e adequar o ensino às necessidades da sociedade [...] Como é que se resolveria este problema? Apenas na medida em que as populações se organizem e reivindiquem a prestação de serviços permanentes, reivindiquem, por exemplo, Posto de Saúde, médicos permanentes atendendo à população [...] Percebe-se, pelo que estou dizendo, que as três as funções da universidade estão interligadas. Com efeito, o problema da extensão não está desvinculado da pesquisa e do ensino, uma vez que a extensão terá maior chance de se realizar na medida em que o ensino e a pesquisa se vinculem cada vez mais à necessidade da sociedade em que a universidade se insere. E como é que uma extensão se torna uma atividade, uma função equiparada às duas outras? Na medida em que ela se articula com as demais e na medida em que o próprio ensino seja visto, também, como uma prestação de serviços à sociedade em seu conjunto, na medida em que a própria pesquisa seja vista como uma prestação de serviço à própria sociedade. Então vai desenvolver exatamente aquelas pesquisas que a sociedade está querendo, vai se preocupar em explorar aqueles problemas que são candentes à sociedade em que ela esta inserida (SAVIANI, 1986, p.62). Em síntese, a extensão universitária, como uma das funções da universidade, é um trabalho social que se materializa partindo da ausculta da realidade, tendo como protagonistas os membros da comunidade e da universidade, docentes, discentes e demais servidores, que, juntamente com as atividades de ensino e pesquisa, problematizando essa ausculta, em permanente diálogo, troca (ensino) e construção (pesquisa) de saberes, poderá solucionar as demandas da sociedade que o poder público deixa em aberto. 4.3 Matizes Fenomenológicos nos Trabalhos de Pesquisa e Extensão Com a idéia de aprofundar a compreensão sobre a extensão, fui buscar alguns matizes fenomenológicos para essa atividade. Para tanto, apoiei-me nos teóricos Martin Buber e Paulo Freire, opção que se justifica pela dialogicidade, pelas relações interpessoais, pela ação, pela reflexão, presentes nas obras dos autores elencados. 66 As teorias de Buber e Freire engendram um conhecimento do ser, da sua realidade, da sua natureza e relações ancoradas no diálogo, na ação e reflexão, que buscam dar entendimentos e encaminhamentos adequados na resolução dos problemas existenciais que afligem ao ser humano, aos sujeitos, aqui considerados aqueles que participam. Freire (1992, p.43) em seu livro Extensão ou Comunicação? diz que ser dialógico, para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. Segundo Freire, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens (1983, p. 93). É fenomenológico, quando privilegia a palavra como objeto auxiliar do pensamento, quando diz que, "não existe uma linguagem sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos‖ (1983, p. 102). Para Buber (2001), as relações entre sujeitos devem ser dadas, acontecidas, dialogadas, através da palavra princípio EU-TU, realizada face-a-face. Com a palavra princípio EU-ISSO, o homem é capaz de produzir conhecimentos e ciências. Portanto, para Buber, evidencia-se a importância da relação EU-ISSO e dos avanços tecnológicos e científicos advindas dessa relação. Nessa perspectiva, de acordo com o autor de Eu e Tu, os homens necessitam do ISSO, mas só se realiza a relação dialógica com um TU. Quando se anuncia o TU, o EU se abre para o Ser na sua totalidade. E é nessa relação com um TU que me torno EU (BUBER, 2001). O que apresento a seguir são os resultados desta minha reflexãosubjetivação, evidenciando serem estes uma possível elaboração para a extensão: a) 1.º movimento: observação – reflexão – ação; b) 2.º movimento: diálogo – reflexão – ação; 67 c) 3.º movimento: pesquisa – ação; d) 4.º movimento: ação – construção – observação. Esses movimentos, com suas categorias, seriam parte de um organismo totalizante e exeqüível o qual seria mentalizado por meio de ausculta realizada num processo de extensão. Viria a ser a base de execução do que denomino matizes fenomenológicos. Essa postura sugere uma práxis, tendo como resultado a concepção de um modo de interagir entre a universidade e as comunidades. Esses movimentos seriam os protagonistas de uma concepção, de um constructo, que parte de uma realidade posta (ou imposta), da concretude de fatos, de casos ou fenômenos observados na sociedade. Fica evidente que esses movimentos tem, como elemento central, a ação, mas também a reflexão e o diálogo, características basilares para a docência e as relações entre as comunidades e as universidades. O primeiro movimento se refere à disposição da universidade ou das comunidades, onde seus elementos constituintes estariam em ausculta, observando, refletindo sobre as possibilidades de uma intervenção ou de ações que poderiam resultar em uma transformação na sociedade ou comunidade. No segundo movimento, está presente o diálogo, mantido com membros ou membro da comunidade, na troca ou discussão de idéias, de opiniões, de conceitos, com vistas à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia; assim acontece a comunicação. Em meio aos saberes seus (do EU) e membros da comunidade (do TU), buscando, no senso comum, o bom senso, refletido, ou em reflexão, em ação, ou uma ação baseada na práxis. No terceiro movimento, começariam as pesquisas, sempre em ação. Aqui o ambiente é a sala de aula, são os laboratórios, as oficinas. Os partícipes são os 68 alunos, outros professores e, até mesmo, alguns servidores da instituição de ensino. Mas é possível que a pesquisa se dê sob determinadas condições, no próprio local onde ocorrem os trabalhos de extensão, inclusive com a participação de membros da comunidade. O quarto movimento seria a volta ao local em que ocorreu a intervenção ou a extensão. Sempre em ação, poderia já acontecer a construção ou o ato necessário para que houvesse a transformação. Os sujeitos envolvidos seriam membros da comunidade, professores, alunos, funcionários de prefeituras, entre outros interessados. O ato da observação novamente estaria presente, englobaria a verificação e avaliação dos resultados e, se necessário, interviria no próprio local para a solução, ou, por determinadas circunstâncias, aconteceria o retorno para a escola. O que fica claro é que a aplicação, construção do ensino, do conhecimento, da pesquisa, pode ocorrer tanto no próprio local da intervenção, como no ambiente escolar. Nessa perspectiva, o ensino, a construção do conhecimento e a própria pesquisa se podem dar em lugares que os sujeitos envolvidos reconhecem como de melhor proveito. No entanto, na volta para a escola, esses conhecimentos aplicados, reconhecidos, construídos, pesquisados seriam publicados. Esses movimentos caracterizam uma proposta de extensão universitária pautada na indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão.Nesse sentido, de acordo com Melo Neto (1996, p.15), um produto caracterizado no ―bojo‖ das relações de trabalho que, também, tem suas contradições, mas que, sobretudo, se constituirá como uma mercadoria. ―Portanto, terá um produto que será de conhecimento teórico ou tecnológico que deve ser, também, gerenciado pelos seus produtores principais — a universidade e a comunidade‖. Assim, a extensão se constitui como um trabalho gerado nas relações sociais dos mais diversos setores da sociedade civil, em conjunto com as instituições de ensino e órgãos governamentais em geral. 69 5.0 QUARTO CAPÍTULO — vida e obra do Prof. Ênnio Amaral 5.1 A Trajetória Estudantil na E T P, atual IFSul O efetivo ingresso na Escola Técnica de Pelotas — ETP do Prof. Ênnio Amaral, como aluno, foi em 1953, então com 17 anos, conforme pedido de matrícula na 1.ª Série do Ensino Industrial Básico, feito por seu padrinho de batismo e professor de oficina da ETP, Ayer Figueiredo, datado de 10 de março em 1953, após ter sido aprovado nos exames de admissão do Ensino Industrial Básico em fevereiro de 1953. Consta em sua ficha de pedido de matrícula a ordem de preferência dos cursos oferecidos, entre os quais ele escolheu os seguintes: -1. Aparelhos Elétricos e Telecomunicações; -2. Mecânica de Máquinas; -3. Máquinas e Instalações Elétricas; -4. Fundição. De acordo com o número de vagas e candidatos por curso, seguindo a média alcançada no exame, o aluno poderia não cursar a 1.ª opção e, assim, sucessivamente, poderia até vir a cursar a última. Assim, na turma D, ele começou como aluno do Curso de Aparelhos Elétricos e Telecomunicações, em regime de internato passando para a 2.ª série do Curso Industrial, que fazia parte do 1.º Ciclo26. 26 O ensino industrial deveria ser desenvolvido em dois ciclos: os cursos técnicos eram do 2.º Ciclo do Ensino Industrial, equivalendo ao 2.º Ciclo do Ensino Secundário. O 1.º Ciclo, denominado de Ensino Industrial Básico, de quatro anos, correspondia ao ginasial do sistema regular de ensino. Optou a Escola por iniciar pelo 1.º Ciclo, de acordo com o Decreto-Lei 4.073, de 30 de janeiro de 1942. Além do ensino industrial básico, o ensino de mestria, o ensino artesanal e a aprendizagem também faziam parte do 1.º Ciclo. No 2.º Ciclo, eram previstos o ensino técnico e o ensino pedagógico. Constavam, da 1.ª série, as seguintes disciplinas: Português, Matemática, Ciências Física e Natural, Geografia do Brasil, Desenho Técnico, Ajustagem, Aparelhos Elétricos. 70 A primeira tentativa de ingressar na ETP em 1951, e os ocorridos neste ato, estão nos apêndices, como também os dois atestados de freqüência do Curso Primário de Escolas de Piratini, estão nos anexos. Quando da inscrição para os exames de admissão, o candidato (ou o responsável) recebia um folheto com a relação dos cursos oferecidos pela ETP, onde, por ordem de preferência, seria escolhido o curso. O ingresso na escola, como já citado, ficaria dependente da média do exame de admissão e do número de vagas em cada curso. Abaixo, uma cópia deste documento (Fig. 2) Figura 2– Relação de cursos preferidos. No ano de 1954, então cursando a 2.ª série, de acordo com ofício do médico José Dagoberto de Moura, dirigido ao Diretor da Escola, Dr. Paulo Giorgis Brochado, o aluno Ênnio de Jesus Pinheiro do Amaral foi acometido de uma colecistite aguda. Assim, por sugestão do Serviço de Orientação Escolar, o jovem foi hospitalizado, com cura temporária, sendo também, portador de uma duodenite, requerendo tratamento dietético e repouso. Segundo o médico seria desaconselhável sua permanência como aluno interno, sendo oportuno seu afastamento. Mas, caso ficasse como aluno externo27, 27 A ETP mantinha os regimes de externato, para os que pudessem deslocar-se até a Escola; se tivessem aulas no turno da tarde, teriam direito às refeições. O regime de internato, destinados para alunos normalmente de fora da cidade, cursando o Ginásio, foi extinto em 1962. A partir desse ano a 71 deveria fazer as refeições fora da escola, devido aos cuidados alimentares necessários. No despacho do Diretor, encontramos: já foi combinado com o responsável sobre as refeições fora da Escola, em 25-10-54. Portanto, o Prof. Ênnio foi acometido de doença que o tornara frágil fisicamente, mas não o impediu de continuar seus estudos e, ainda no ano de 1955, servir ao Exército Brasileiro. Em 1956, voltou à Escola, após cumprir serviço militar, e cursou a 3.ª série, à qual, além das disciplinas da 2.ª série, foi acrescida a disciplina de Eletroquímica. No ano de 1957, cursou a 4.ª série, aprofundando os conhecimentos das disciplinas da 3.ª série, formando-se no final desse ano. A Fig. 3 mostra o Atestado de Conclusão do Curso Industrial Básico. Figura 3 – Atestado de Conclusão do Curso Industrial Básico. Escola só oferecia o almoço, inclusive para alunos dos cursos técnicos. A partir do ano de 1971, não foram mais oferecidas refeições. Os alunos carentes eram assistidos pela Caixa Escolar, instituída pela lei Nº. 3.552/59. Em 1978, por interferência direta em Brasília, o Vice-Diretor Sebastião R. Neto tentou conseguir verbas para o almoço e janta de alunos do curso técnico (2.º grau), o que lhe foi negado, visto que a merenda escolar se destinava apenas aos alunos do 1.º grau. Mas seu pedido ficou protocolado e meses depois chegaram caminhões lotados de mantimentos, tendo que se improvisar local para o seu estoque. O galpão crioulo, pertencente à Associação dos Servidores, foi utilizado como cozinha e refeitório. Desde então, a Escola vem mantendo almoço e janta para alunos carentes ou trabalhadores, em moderno refeitório e cozinha. 72 Quando o jovem Ênnio Amaral começou seus estudos na ETP, era Presidente do Brasil Getúlio Vargas e Governador do Estado o Tenente-Coronel Ernesto Dornelles. Concluiu seus estudos, sendo Presidente Jucelino Kubitschek (JK) e Governador do Estado, Ildo Meneghetti, em plena expansão industrial, com a internacionalização da economia, acelerada pelas políticas de JK. Com a Lei n.o 3.552/59, além de a Escola vir a ser uma autarquia, o Curso lndustrial Básico passou a se denominar Ginásio Industrial, tendo reformas em seu currículo: nos dois primeiros anos (1.ª e 2.ª séries), era dada ênfase à cultura geral, recebendo os alunos noções de todas as áreas da indústria (politécnica) nas aulas de oficina, tais como marcenaria, cerâmica, serralheria, funilaria, tipografia e encardenação. Nos dois últimos anos (3.ª e 4.ª séries), o aluno escolhia um curso com terminalidade, isto é, as aulas (8 horas aulas semanais) se destinavam a um só curso, um daqueles existentes antes da lei citada. Ênnio Amaral voltou a ser aluno da ETP em 1964, ingressando no Curso de Formação de Professores — 1.º Ciclo. O curso teve início em 9 de setembro e término em 31 de agosto de 1965, com carga horária de 550 horas. Esse curso fazia parte do Programa Intensivo de Preparação da Mão de Obra Industrial (PIPMO), criado no Governo de João Goulart, pelo Decreto n.o 53.324, de 18 de dezembro de 1963 e regulamentado pela portaria do MEC n.o 46, de 31 de janeiro de1964 Pelo exposto, percebe-se que os cursos pedagógicos, destinados á formação de pessoal docente e administrativo para o ensino industrial, de acordo com o Decreto Lei n.o 4.073, de 30 de janeiro de 1942, então já extinto, somente foram efetivados 22 anos depois na ETP. Evidencio que esses atrasos seriam uma constante na aplicação da legislação educacional. Os professores que ministraram esse curso eram aqueles que, na época possuíam curso superior e ministravam aulas na ETP, nas disciplinas de cultura geral. 73 Muitos dos alunos desse curso vieram a ser professores da ETP, outros já faziam parte do corpo de professores de oficina, como foi o caso do Prof. Ênnio Amaral, contratado como professor no dia 8 de abril de 1959. Pouco mais de um ano após se ter formado, em dezembro de 1957. Abaixo (Fig. 4), a ficha individual do curso de formação do Prof. Ênnio, cujo papel timbrado já estampa o nome Escola Técnica Federal de Pelotas — ETFP) 28. Figura 4 – Ficha de Formação Individual do Curso de Formação de Professores de 1964. 28 o A ETP, pela Lei n. 4.759, de 20 de agosto de 1965, assim como as outras escolas técnicas, incorporou a sua denominação a palavra Federal, passando, portanto, para Escola Técnica Federal de Pelotas (ETFP). O regime de internato (somente para o ginásio) acabou em 1962, no entanto, até 1971 era fornecido almoço aos alunos do 1.º e 2.º ciclos (Ginásio e Colégio Técnico) que comprovassem sua necessidade. 74 Convocado a dar aulas também para o curso de Eletrotécnica, o Prof. Ênnio Amaral começou a cursar, no turno da noite, o Colégio Técnico Industrial – Curso de Eletrotécnica, 2.º Ciclo29, no ano de 1967, formando-se em 1969. Pelo exposto, vê-se que a formação e a trajetória profissional deram-se na mesma instituição, onde as relações sociais discentes e docentes aconteceram em um ambiente em que se complementaram. Nesse caso, os professores do seu ontem, se tornaram colegas do hoje de então e, em determinado tempo, os dois se imbricaram, Ênnio vive um tempo histórico sui generis, sendo ao mesmo tempo, aluno e professor. 29 O primeiro curso técnico – Construção de Máquinas e Motores (futuro Curso de Mecânica) – foi implantado em 1954 passando a Escola a oferecer o Segundo Ciclo do Ensino Industrial, equivalente ao secundário. Em 1956, foi criado o Curso de Eletrotécnica e, em 1963 o Curso de Eletrônica. No ano de 1964, por aumento de demanda e políticas do governo, a Escola passou a ter aulas no turno da noite. 75 5.2 A Trajetória Profissional [...] concito-vos ao grande mutirão. “A cidadania não é a atitude passiva, ação permanente em favor da comunidade” Tancredo Neves 30 O professor Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral é uma personagem que faz parte da história da Escola Técnica Federal de Pelotas — ETFPEL, depois Centro Federal de Educação Tecnológica do RS — CEFET-RS, atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense — IFSul, como também da região. É notória a utilização de suas pesquisas em projetos de eletrificação rural, a baixo custo em, praticamente todo o território nacional e, até mesmo, fora dele, beneficiando as comunidades rurais, notadamente aquelas de baixo consumo e baixo poder aquisitivo, que formam a maioria dos consumidores dessa categoria de consumidor de energia elétrica. O Prof. Ênnio Amaral teve seu passamento em 17 de agosto de 1985, ás 19 horas, em Pelotas, no Hospital Sociedade Portuguesa de Beneficência. Contava com 49 anos de idade. Deixou a esposa, Maria Ieda Sedrez Amaral, e os filhos, Daltro de Jesus, Pura, Virginia, Eugênio, maiores de idade, e Sylvia, com 20 anos, Marta, com 16 anos, e Felipe, com 11 meses de idade. Um dos muitos feitos do Prof. Ênnio Amaral, verificando que o mercado de trabalho, em seus diversos segmentos, ressentia-se de profissionais de nível técnico, voltados para a manutenção elétrica e mecânica, mas que também pudessem operar, projetar, supervisionar sistemas de produção industrial, foi apresentar, à comunidade, a criação do Curso de Manutenção Eletromecânica, em 1973, iniciando suas atividades em 1974. O professor foi seu coordenador até 1977. 30 Revista Eletrificação Rural e Comunitária, Secretaria do Interior do Paraná, maio 1985. 76 Até o presente, ainda não encontrei documentos escritos relativos a convites para a Comissão da Câmara, mas as fotos e reportagens de jornais indicam que esses existiram. Quanto ao seminário que se realizou em Lima, no Peru, existe documentação comprobatória do convite. Sobre documentos, reporto-me ao que cita Meireles (2008. P. 13) [...] revelam tão rica história, quando não destruídos pela ação do tempo ou de outros fatores, estão na posse, com cortes e recortes, de determinadas pessoas, que, reconhecidamente, pelo amor que detêm à Instituição e por não terem confiança nas estruturas existentes, julgam ser mais importante preservá-los, mesmo que individualmente, em arquivos institucionais próprios ou até em arquivos particulares. A exposição de suas pesquisas aplicadas e informações que possuía, relacionadas à eletrificação rural pelo sistema alternativo, foram explanadas em Brasília, na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal, no dia 30 de maio de 1979. O prof. Ênnio se fazia acompanhar do Prof. Sebastião Ribeiro Neto, Vice-Diretor da ETFPEL. Nas fotos que se seguem, feitas no aeroporto de Brasília, temos: Fig. 5 mostra o câmera men, o Prof. Sebastião Ribeiro Neto, a repórter Ana Amélia Lemos, da TV Gaúcha, e o Prof. Ênnio Amaral. A Fig. 6 mostra, ao centro, o Prof. Ênnio Amaral, a sua esquerda, o Prof. Sebastião, sendo que o fotógrafo impede que se vejam alguns membros da Comissão, ao fundo, ao lado do Prof. Ênnio. Na Fig. 7, vêem-se membros da Comissão de Ciência e Tecnologia e, na Fig. 8, vê-se o Prof. Ênnio Amaral discorrendo sobre suas pesquisas. 77 Prof. Ênnio Figura 5 – Entrevista para Ana Amélia Lemos TV Gaúcha, no Aeroporto de Brasília. Figura 6– O Prof. Ênnio e Prof.Sebastião na Com. de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal. Figura 7 – Membros da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal Figura 8 – O Prof. Ênnio discorre sobre suas pesquisas e trabalhos. Um fato de que recentemente me inteirei e considero que necessita de maiores esclarecimentos, dada a sua relevância, foi-me relatado por sua filha Virginia. Ela trouxe, em sua narrativa, a informação de que, em 1979, o seu pai viajaria ao exterior (possivelmente para Lima — Peru) para apresentar seus trabalhos, no tentar embarcar, foi barrado pela Polícia Federal, que alegou o fichamento do professor junto ao Departamento de Ordem Política e Social — DEOPS, fato que impediu seu afastamento do Brasil. Quando Ênnio Amaral foi informar-se sobre a razão do seu registro junto ao DEOPS, soube que o motivo se devia ao fato de ele, na condição de professor de nível médio, possuir quase 300 hectares de campo, no interior do município de Piratini. Essas terras foram adquiridas ao longo de vários anos, em pequenas levas, mas considero curioso esclarecer que essas levas não eram próprias para a agropecuária, daí o seu baixo custo. 78 A iniciativa de levar o Prof. Ênnio Amaral à Brasília, perante a Comissão da Câmara, foi do Deputado Alexandre Machado (Arena – RS), com o apoio do Deputado Fernando Gonçalves e do Presidente da Comissão, Deputado Fernando Cunha (MDB – GO). Essa ida à capital do País, do Prof. Ênnio, acompanhado do Prof. Sebastião, repercutiu por quase todo o Brasil; vários meios de comunicação anunciavam um novo Sistema de Eletrificação Rural a baixíssimos custos, outros chegaram mesmo a colocar abaixo do Título da matéria o ovo de Colombo. Dias após a apresentação do Prof. Ênnio, na referida comissão, o Deputado Hugo Rodrigues da Cunha (ARENA – MG, 1979) discursou na Câmara sobre o tema eletrificação rural. Considerando a relevância para este projeto de pesquisa, cito parte do discurso, pois nele estão inscritos alguns cenários do País à época Senhor Presidente Senhores Deputados Por vocação voltada para os problemas do campo, temos notado que a carência de conforto, de assistência escolar e de saúde, além de outros fatores ligados à própria condição de trabalho penoso, têm sido os motivos do êxodo do Trabalho rural para as Grandes cidades. [...] De outra parte, sem mão de obra, o empregador restringe o cultivo da terra ou estimula o contrato dos bóias – frias, num agravamento constante do relacionamento de trabalho. Entendemos que, para a melhoria das condições do homem do campo, [...] a ENERGIA ELÉTRICA significará o grande passo do progresso rural, [...]. No entanto, dentro das normas atuais que exigem o emprego do de cobre ou alumínio, em constante alta de preços, além de pequena distância entre os postes sustentadores das linhas, tudo encarece sobremodo a construção desses melhoramentos. Eis que, na Comissão de Ciência e Tecnologia, tomamos conhecimento dos experimentos dos Professores Sebastião Ribeiro Neto e Ênnio Jesus Pinheiro, da ESCOLA TÉCNICA DE PELOTAS, que, pro recomendação do prezado colega, Deputado Alexandre Machado, nos trouxe a revelação de que é possível a utilização do fio de aço galvanizado para a condução de energia elétrica. [...] é muito importante registrar ainda que a mesma Escola tem construído um transformador de 1 kVA, no valor irrisório de pouco mais de 3 mil cruzeiros, [...] o menor transformador atualmente produzido, de 5 KVA, custa Cr$ 45.000,00; Quando tomamos conhecimento desse trabalho, promovemos o comparecimento dos professores da Escola Técnica de Pelotas a Belo Horizonte. [...] Será que o nosso país adotando as chamadas Normas Técnicas Brasileiras, que de nacionais não têm senão o nome, não estará apenas fazendo há tantos anos o jogo dos países exportadores, muito mais ricas, que nos mandam normas técnicas excessivamente rigorosas, um ―luxo‖ de tecnologia, quando poderíamos, sem maiores inconvenientes do que enriquecer sempre as multinacionais e os centros de decisão estrangeiros rever todas estas normas, dentro de um programa espartano, colocado na realidade nacional [...] quem sabe idealizando nossas próprias normas e criando tecnologia, a exemplo do Japão que constrói lages em que o ferro de 79 construção é substituído por bambu?!... Fica o alerta, [...] porque o Brasil tem pressa! Porque é preciso levar AGORA inovações ao campo, rompendo a rotina e os conceitos tradicionais, calcados nem sempre na racionalidade, no realismo da nossa extensão territorial, no realismo da nossa carência de desenvolvimento (grifos meus). No dia 16 de maio de 1979 (Fig. 9), o Diário Popular publicou Eletrificação rural com fio de aço tem dimensão nacional. Tratava a matéria da inauguração de uma rede troncal construída pelo sistema convencional, mas contendo três ramais, dela derivados construídos pelo Sistema Monofilar com Retorno por Terra — MRT, cujos condutores eram fios de aço (arame liso de alambrado). A matéria, pela primeira vez em meios de comunicação de massa, tratava de uma tecnologia que órgãos de governos, entidades de classe e outras instituições e, até mesmo pessoas físicas, viriam, ao seu devido tempo, a contestar, a tomar para si a sua difusão, impedindo a sua divulgação e o seu emprego, principalmente no Rio Grande do Sul, mesmo que essa tecnologia já fosse empregada em outros países. Nesse mesmo dia, o Presidente da CEEE, Eng.º Cláudio Fernandes Barbosa, informou que o Chefe do Departamento de Eletrificação Rural da Eletrobrás, Centrais Elétricas Brasileiras S. A., Eng.º Nelson da Silva Barbosa, aprovou a iniciativa de utilização do fio de aço galvanizado nos projetos de eletrificação rural. Discorria a matéria sobre os processos de pesquisa do Prof. Ênnio Amaral, da ETFPEL, dizendo que a Federação das Cooperativas de Eletrificação Rural do Rio Grande do Sul Ltda. — FECOERGS estava interessada no projeto; que o Gerente Regional de Camaquã, o Engº Hermenegildo Hernandes, fazia referência aos três ramais com fio de aço, pela primeira vez usado no Rio Grande do Sul, em substituição ao cobre (Saliento que o cobre é mais usado em zonas litorâneas, portanto deveria se referir também aos cabos de alumínio). Esses Ramais seriam os primeiros construídos sob a orientação do Professor Ênnio. 80 Figura 9 – Matéria veiculada pelo Jornal Diário Popular em 16 de maio de 1979. Nessa perspectiva, percebe-se que as pesquisas do professor Ênnio e seus pares da comissão da ETFPEL começavam a ser reconhecidas pelos órgãos governamentais, notadamente a CEEE. A primeira vez em que se noticia algo sobre construção de redes rurais, em sua totalidade, pelo processo desenvolvido pelo Prof. Ênnio, data do dia 21 de março de 1979, cuja matéria intitulava - se: Piratini será o primeiro município da Zona Sul a receber novo processo de eletrificação rural. Era o início das primeiras tratativas de implantação do denominado Projeto Piratini, que envolvia uma extensa área rural a ser eletrificada. Na Fig. 10 abaixo, à esquerda, o Prof. Sebastião R. Neto, representando a direção da ETFPEL, em pé, o Prefeito Paulo Goularte Borges, um membro Diretor da CEEE, o Prof. Ênnio Amaral, e também outro Diretor da CEEE. 81 Prof. Ênnio Figura 10 – Prof. Ênnio e Sebastião em reunião com o Prefeito de Piratini e Membros da CEEE e comunidade. Saliento a amizade existente entre os professores Ênnio Amaral e o Eng. Waldemar Correia Fuentes da Universidade Federal de Santa Maria — UFSM. Firmado o convênio entre essas duas instituições, os dois professores coordenavam as pesquisas em suas respectivas Instituições e as difundiam em todo o Brasil. Por ocasião da narrativa do Prof. Gilfredo R. Renck sobre a vida e a convivência com o Prof. Ênnio, fui agraciado com farta documentação relativa às atividades do Prof. Fuentes, em separado do Prof. Ênnio, em atividades comuns aos dois. O Prof. Ênnio iniciou suas pesquisas no início da década de 70, conforme a publicação Fios e Cabos de Aço Galvanizados nos Processo de Eletrificação Rural, ETFPEL, 2ª Edição (1979), na qual, em seu prefácio, justifica-se tal pesquisa A eletricidade constitui-se em nossos dias na mais importante forma de energia a serviço do homem [...], é necessário reconhecer que sua utilização tem sido um privilégio das comunidades urbanas, ficando o meio rural alheio aos benefícios. Era chegada a vez da eletricidade ir ao campo, descerrando novos horizontes à economia agropecuária [...]. É a técnica sendo transformada em progresso e bem estar. Diante de toda gama de possibilidades, professores e alunos [...] empunharam as ferramentas por serem co – participantes desse arrojado plano de levar a tecnologia ao homem do campo substituindo técnicas primitivas. E fomos bem sucedidos. Nosso ponto de partida foi a sala de aula [...]. Vimos que não havia mais lugar para estimularmos o consumo supérfluo da energia. Motivados pelo êxito dos estudos desenvolvidos, sempre alicerçados em bases científicas, passamos a 82 acompanhar os resultados das instalações. [...]. Contamos com a confiança da firma coronel Pedro Osório [...], através do Sr. Luis Osório Rechstein Filho, Diretor de Produção [...] projetou e construí uma rede elétrica [...] no ano de 1973 [...]. O espírito da pesquisa, da crítica construtiva e do encaminhamento de soluções deixa transparecer, assim, o patriotismo sincero e conseqüente de que é imbuída esta publicação. [...] uma atuação mais constante [...] dos técnicos da Escola Técnica Federal de Pelotas junto aos setores da Companhia Estadual de Energia Elétrica, onde reuniões foram uma constante. Destacam – se os encontros com os Chefes Responsáveis pelas gerencia Regionais de Pelotas, Camaquã, Bagé, e Subgerência de São Lourenço do Sul [...] o incentivo do Engenheiro Cláudio Fernandes Barbosa, Presidente da CEEE. [...] ao qual presta sua homenagem muito especial. Escalando os muros de seu academicismo exclusivo, a ETFPEL orgulha – se em incentivar a prática do binômio ―ensino – pesquisa‖ [...] para fixar o homem do campo em seu próprio ambiente [...]. Atuando sem sair do solo que o viu nascer, onde formou seus precipícios, espera-se, possa ser no amanhã, mais útil ainda, tal como hoje, é bem mais atuante do que o foi ontem (grifos meus). A primeira rede foi construída no Município de Herval do Sul, em torno de 100 Km, e não em Piratini. No interior deste município foi construído, em 1979, um ramal de aproximadamente 10 Km, que eletrificava a propriedade de um tio do professor e mais 3 consumidores. O projeto da rede de Piratini, na localidade de Cancelão, estava já há alguns meses em algum departamento da CEEE; a demora na avaliação, aprovação ou não, como veremos adiante, além de motivar discurso de deputado na Assembléia Legislativa do estado, levou o prof. Ênnio iniciar a construção da rede em processo de mutirão, sem a aprovação na íntegra do projeto. Inclusive, realizando uma série de modificações que não seriam aceitas pela CEEE. No arquivo morto do IFSul, encontrei cópias de dois projetos de eletrificação para Piratini, o primeiro anulado, data de 1979, o outro, que foi efetivado, data de agosto de 1984. Sendo natural de Piratini, terra da qual muito se orgulhava, é compreensível que, em seus planos, estivesse a construção de redes pelo processo alternativo de eletrificação rural. Na narrativa do Prof. Jorge Moraes, revelam-se as características reflexivas do Prof. Ênnio, convém salientar que essas redes nunca beneficiaram a propriedade do professor no interior do município de Piratini. 83 31 O Tio Ênnio , além de um educador emérito, sempre colocava seus olhos além do horizonte material. Destarte, das vezes em que ia para sua propriedade na Serra das Asperezas, no interior de Piratini, primeira capital farroupilha, ao deparar–se, nas primeiras horas da manhã, com os ranchinhos de barro, fumaceando, ainda imersos no telurismo pampiano, apiedava-se das limitações dos sofridos campônios. E, provavelmente, guardava na retina e armazenava na cacimba de sua sensibilidade as agruras de quem não dispunha de fogão a gás, não tinha os benefícios da energia elétrica, e isso o sensibilizava. Acentuavam-se as dificuldades à proporção que a escola ficava a duas ou três léguas, e o percurso deveria ser feito a pé, de bicicleta ou no lombo de um matungo: convite a perpetuar a falta de cultura. [...] A teorização respaldava-se na praticidade. Ele conhecera as dificuldades vividas pelos rurícolas. Sabia, como poucos, que a mão que prospera é a que a se abre para receber e levar 32 um pouco do que foi conquistado. (informação verbal) Na Fig. 11, pode-se ver a placa colocada por ocasião da inauguração da rede de Herval do Sul. Na Fig. 12 seguinte, o Prof. Ênnio, ao centro, aponta um transformador; a sua direita, o Prof. Sebastião R. Neto. O Prof. Ênnio explanava sobre redes rurais e unidades transformadoras de pequena potência, para prefeitos da zona sul e técnicos da CEEE. Figura 11– placa colocada por ocasião da inauguração da rede de Herval do Sul. 31 Os professores, colegas e alunos costumavam chamar ao Prof. Ênnio Amaral de Tio Ênnio, não que fosse de mais idade que muitos dos seus colegas, mas foi um apelido, que deixava transparecer o algo mais que esse homem possuía, nunca no sentido depreciativo. 32 Entrevista concedida no dia 12 de maio de 2009, às 8h30min. 84 Prof. Ênnio Figura 12 – O Prof. Ênnio explana sobre redes rurais e unidades transformadoras de pequena potência, para prefeitos da zona sul, e técnicos da CEEE. A Fig. 13 mostra a capa da obra: Fios e Cabos de Aço Galvanizado nos Processos de Eletrificação Rural, ETFPEL, 2.ª Edição (1979) Figura 13 – Obra editada em 1979 sobre processos de eletrificação rural. 85 Em princípio, com a construção de uma pequena rede de alta tensão (em torno de seis quilômetros) em 1973, que alimentava um pequeno transformador de distribuição de 5 KVA, na granja Coronel Pedro Osório – Industrial, Comercial e Agrícola, gerenciada, então, por Luis Osório Reichesteiner Filho, Diretor de Produção. O diferencial dessa rede é que ela era composta (sob o olhar do leigo) por apenas um condutor ou fio elétrico e, além do mais, o material usado como condutor não era cobre nem alumínio (condutores normais para redes e instalações elétricas), materiais considerados de alto custo e, na sua maioria, importados. Mas sim o aço, precisamente um fio de arame galvanizado, liso, usado na construção de alambrados, de custo baixo. Naturalmente, o outro condutor era a própria terra, SISTEMA MRT – Rede Monofilar com Retorno por Terra, também conhecido por Sistema Alternativo de Eletrificação Rural e Sistema ETFPEL e para muitos rurícolas as rede do Professor, para seus íntimos as redes do Tio Ênnio. Mais tarde, a Siderúrgica Belgo Mineira, orientada pelas pesquisas da ETFPEL, passou a fabricar fios de aço com alto teor de carbono e dupla galvanização, além de um cabo de aço de três fios trançados (3 x 2,25), usados como condutores nas redes de alta tensão. Era do conhecimento do prof. Ênnio que, em outros países, tais como os Estados Unidos, Canadá33, Inglaterra (desde 1946), Alemanha, União Soviética, Nova Zelândia, Austrália, utilizavam-se cabos de aço nas redes elétricas de distribuição em alta tensão, inclusive sem galvanização, e algumas estavam operando mais de 30 anos. 33 Datado de 05 de outubro de 1984, o Secretário de Estado do Interior do Paraná, Deputado Federal, Nelton Miguel Friedrich, segundo suas palavras: ―apresento como modesta contribuição os textos anexos, testemunho da simplificação tecnológica e da participação comunitária na construção de linhas de Eletrificação Rural, no Canadá, no Paraná e no Rio Grande do Sul‖. Os anexos referidos tratam de trabalho apresentado no Seminário Universitário, realizado na Universidade de Saskatchewan, Sakatoon, em 11 de março de 1969. Apresentado por D. Googeveem. P. Engenheiro. Experiências com MRT – Distribuição Monofilar com Retorno por Terra – Compilado por Marc Methe, Engenheiro – Hydro – Quebec. Segundo o documento, no Canadá, na época da implantação do sistema, não se sabia existir em qualquer outra parte. Mais tarde soube – se que sistemas similares existiam na Austrália e Nova Zelândia, esta última teria sido a protagonista. 86 As redes, nesses países, em sua maioria, eram de dois ou três condutores, com todos os acessórios normais em forma padrão para a eletrificação rural, ou seja: cabos de aço trançados com 3 ou mais fios, chaves fusíveis, cadeia de isoladores, postes de madeira tratada, de aço ou de concreto, entre outros; sendo que o uso de redes MRT (Monofilar com Retorno por Terra) era mais destinado a ramais, pouco utilizado, se comparadas às outras. O projeto do professor Ênnio desenvolveu a técnica de como construir redes de alta tensão, bem como seus acessórios, mas com baixo custo, isto é, o professor estava procurando desenvolver uma tecnologia acessível aos cidadãos de baixa renda e de acordo com o momento econômico que o nosso País atravessava. Elucidando as afirmativas, consta no Jornal O Estado DE São Paulo, em 31-051979, dia em que o Prof. Ênnio palestrava em Brasília, a Fig. 14 é esclarecedora Figura 14 – Jornal O Estado de São Paulo, em 31-05-1979, p.10 A construção das redes propostas pelo Professor envolvia, a partir de estudos de publicações que versavam sobre tais redes, das pesquisas técnicas, da construção de redes com todos os equipamentos desenvolvidos, colocando-os sob a 87 forma de pesquisa aplicada. As pesquisas continham uma série de técnicas que visavam a substituir as redes convencionais, destinadas ao mesmo fim, mas com custos muito elevados para os padrões brasileiros. Basicamente, as redes de eletrificação rural alternativas, eram compostas por: -1. sistema MRT, (monofilar com retorno por terra); -2. fios ou cabo de aço, em substituição aos cabos de alumínio ou cobre; -3. unidades transformadoras compactas, de baixa potência e custo; -4.uso de postes de eucalipto tratados no canteiro de obras ou nas prefeituras; -5. eliminação de alguns acessórios, sem descuidar da segurança; -6. preferência no uso de um único isolador por poste; -7. aproveitamento da topografia do terreno, diminuindo o nº de postes; -8. substituir acessórios de alto custo por outros de menor valor34; -9.construção das redes por processo de mutirão, envolvendo as comunidades beneficiadas, as prefeituras, as concessionárias, as instituições de extensão e o Governo Estadual e Federal. Estava, portanto, o Prof. Ênnio Amaral, juntamente com toda a comissão de pesquisa, desenvolvendo uma nova tecnologia. Sobre técnica e tecnologia, vejamos o que diz Raymond Williams (apud KOBER, 2004, p.11). [...] virtualmente todos os estudos e experimentos técnicos são empreendidos no interior de relações sociais e culturais já existentes, tipicamente para propósitos geralmente já previstos. Além do mais, uma invenção técnica em si tem comparativamente pouco significado social. É apenas quando ela é selecionada como investimento voltado à produção e quando é conscientemente desenvolvida para usos sociais particulares – ou seja, quando ela deixa de ser uma invenção técnica para se tornar o que pode ser chamado propriamente de tecnologia disponível – que o seu significado geral se inicia. Estes processos de seleção, investimento e desenvolvimento são obviamente de um tipo social e econômico, em meio a relações sociais e econômicas existentes, e são designados para usos e vantagens particulares em uma ordem social específica (grifo meu). 34 Estes acessórios eram constituídos de materiais de baixíssimo custo, alguns confeccionados de maneira artesanal. Entre estes, cito: mola desligadora com fusível, engate espiralado, descarregadores de chifre, estai de fio ou cabo de aço diferenciado do convencional, chave repetidora de 3 estágios, entre outros (as). 88 A construção das redes por processo de mutirão, da maneira como foi pensada, articulada, concebida e materializada, também constituiu um tipo de tecnologia, é um produto que, se utilizado, transforma a realidade social do local ou região. Evidenciando os estudos auferidos no capítulo sobre extensão universitária. Com sua verve criativa, segundo relato do Prof. Jorge Moraes, o professor e seu primo-irmão Reinaldo Afonso Amaral, em fins da década 1960 e início da década de 1970, sabedores das dificuldades que alguns proprietários tinham para dar arranque aos seus tratores de determinada marca (segundo narrativa do Sr. Reinaldo, os tratores eram da marca Deutz), buscaram uma solução. Nesse inverno, o professor inventou uma espécie de vela de ignição, que facilitava o arranque dos tratores, nas manhãs frias do Estado Gaúcho. Assim, colocou em teste e, posteriormente, à venda a sua criação, nas localidades para onde se dirigia. Também, em 1979, depois de tratativas entre o prefeito de São José do Norte-RS e o prof. Ênnio, um grupo de professores do Curso de Eletromecânica passou a realizar reuniões com a Capitania dos Portos de Pelotas-RS, alem de visitas às cidades de Rio Grande-RS e São José do Norte, com a perspectiva de colher informações técnicas, com vistas a realizarem um projeto de levar energia elétrica à Cidade de São José do Norte. A partir de um ponto localizado próximo ao Super Porto de Rio Grande, ligando a outro ponto denominado Pontal, em São José do Norte, estender-se ia uma rede trifásica em cabo de aço galvanizado, sobre o canal de acesso aos portos, sendo a menor distância, entre a lâmina da água e os cabos, nas condições mais adversas da natureza a de 60 m. O projeto se explica e justifica pelo fato de toda a energia consumida em São José do Norte ser produzida, por unidades geradoras a diesel, cujo consumo era de 150 mil litros ao mês, levando-se em conta a época da crise do petróleo, sendo o Brasil, ainda, um grande importador. 89 Os ofícios, juntamente com o projeto, foram enviados ao então Governador do Estado, Dr. José Augusto Amaral de Souza (ofício no. 452/79, de 28 de setembro de 1979) e ao Prefeito de São José do Norte (ofício n o. 451/79, de 28 de setembro de1979). A comissão, acima mencionada, era composta pelos professores Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral (coordenador), Enio Mancini, Paulo Luiz Carré e Alvacir Alves Tavares. Textualizando sobre a justificativa do projeto, em parte, assim se manifestava a comissão [...] Não é processo pioneiro, reconhecemos, mas é iniciativa sem precedentes em nosso Estado cuja proposta vai ao encontro das aflições maiores do Governo justamente na área que mais preocupa a economia nacional neste momento. Com os elementos fornecidos neste projeto de viabilidade e considerando [...] o quanto diminuiriam os custos de eletrificação no Município de São José do Norte. [...] no Estado do Espírito Santo, onde uma pequena ilha é ligada ao continente pelo processo aqui proposto. Só que empregando fios especiais e o aço como para – raio 35 o que comprova a sua resistência à maresia [...]. O texto acima exemplifica como as idéias do Prof. Ênnio eram trabalhadas, juntamente com seus companheiros de pesquisa, enquanto, no Estado do Espírito Santo, os cabos de aço eram usados para um emprego menos nobre, mas, por observação, que agrega todo um conhecimento teórico-prático, aquele cabo de aço, além de possibilitar o transporte de energia, suportaria a tração, à qual ficaria submetido pela distância entre suportes ou torres, permitindo a passagem de navios, suportando todas as intempéries que esse tipo de local possui. Na narrativa do Prof. Gilfredo, aflora mais uma das características de Ênnio Amaral: ―[...] ele era como se costuma dizer — um legítimo professor Pardal. Ele estava sempre estudando uma maneira de racionalizar um processo, de construir alguma coisa de uma maneira mais simples, enfim, ele era um pratico por excelência‖. A planta abaixo nos dá uma visão do projeto realizado pela comissão de pesquisa da ETEFPEL. A obra seria realizada anos mais tarde, pela CEEE, com 35 Documento enviado juntamente com o projeto de transposição do canal de acesso ao Porto de Rio Grande (RS), da rede elétrica para levar energia para a cidade de São José do Norte (RS). 90 materiais e processo diferentes do proposto pelo projeto da ETFPEL, mas com traçado e encaminhamentos semelhantes. O segmento em ponta de flecha, abaixo, na planta (Fig. 15), indica o trecho ou local exato em que a travessia da rede de transmissão se daria. Exatamente onde o canal de acesso ao Porto de Rio Grande apresenta menor largura. Naturalmente a luz mínima (menor distancia entre a lâmina de água e o cabo de transmissão de energia elétrica), que foi proposta em 60 m, tornar-se-ia pequena, na atualidade, em virtude das construções navais pesadas implantadas na zona do Porto de Rio Grande. Inclusive, mesmo com 70 m de luz mínima, conforme a construção efetuada pela CEEE foi insuficiente, sendo os cabos retirados para a passagem da plataforma (navio) exploradora de petróleo da Petrobrás. Os cabos aéreos possivelmente serão substituídos por cabos submarinos. Praia do Laranjal Local da Rede Élétria de travessia Novo (Super) Porto Praia do Cassino Canal de acesso aos portos Figura 15 – Planta que mostra o local da rede elétrica de travessia sobre o canal de acesso ao Porto da Cidade de Rio Grande, com a finalidade de levar energia à cidade de São José do Norte. 91 Assim, com essa perspectiva, prosseguiu o Professor Ênnio com suas idéias. Somente no final da década de 1970 é que foram realizadas comissões de pesquisa sob sua coordenação. A primeira comissão, nomeada pelo então diretor da ETFPEL, Platão Louzada Alves da Fonseca, era composta por professores de Eletromecânica e Eletrotécnica, além de professores de outros cursos, que também deram sua contribuição ao trabalho. O Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnológicas foi criado em 1979, na ETFPEL, mas antes disso, em 1978, fora constituída uma comissão de fiscalização que constatou, no local, o êxito do projeto de rede executado em 1973 na Granja Pedro Osório, já referida. O Prof. Ênnio Amaral colocava em suspeita o modelo de desenvolvimento adotado para a eletrificação rural no Brasil, feito aos moldes dos países ricos. Contestava, portando, um sistema que, na época, atendia 210 mil propriedades rurais, contra 240 mil a serem atendidas somente no Rio Grande do Sul. Segundo a Revista Energia Elétrica, de maio/junho de 1984, no Brasil; ―Há cinco milhões de propriedades no escuro; a meta é iluminar 40 %‖ (p. 26). Uma declaração de um porta-voz da Eletrobrás diz bem o que se passa no setor de eletrificação rural: ―Vivemos hoje a mesma situação dos Estados Unidos na década de 30. É preciso mais?‖ (grifo meu). Ou seja, 54 anos de atraso! Cópia da página da revista está na página seguinte (Fig. 16). Para reflexionar a posição do Prof. Ênnio, no que se refere ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil, cito Romanelli (1999. p. 56 -7) que traz uma interpretação dessa condição Quando o progresso é o impulsor, ele se torna a própria fonte do desenvolvimento. Quando, ao contrário, é a demanda a impulsora, o progresso tecnológico é sempre absorvido depois [...]. E vai ser este o modelo de desenvolvimento imperante [...]. As chamadas ―substituição de importações‖ passaram a ser feitas de forma que a importação de bens de consumo (e também serviços) fosse feita à base outro tipo de importação: a de equipamentos e Know-how, tanto mais sofisticados, quanto a produção passou a visar ao atendimento dos padrões de consumo da elite, próximos dos padrões de consumo das elites dos países industrializados.[...] Ao nosso ver, enquanto a modernização econômica implicar, como é o caso brasileiro, intensificação da importação tecnológica, a escola não será chamada a 92 desempenhar papel de relevo, a não ser num dos setores básicos da expansão econômica: a de treinamento e qualificação de mão de obra. O outro papel, aliás, o mais importante, que é o da formação de pesquisadores e desenvolvimento da pesquisa aplicada, continuará na penumbra, relegado a plano secundário (grifos meus). Figura 16 — Revista Energia Elétrica de maio/junho de 1984, p.26. 93 Ainda com relação à reportagem acima citada, para elencar as políticas para o setor, o porta-voz da Eletrobrás continua Quatro anos depois de terem passado ao largo das obras de eletrificação rural, [...] voltam a receber atenção da Eletrobrás. Dentro de 18 anos [...] cumprindo convênio com o Banco Mundial, no valor de US$ 700 mil, terá o diagnóstico completo da real situação na área rural do País. Cálculos preliminares indicam que 92 % das propriedades rurais não têm energia elétrica. [...] (em algumas propriedades)... é antieconômico levar a luz, através das concessionárias. Nestes casos os geradores próprios são mais aconselháveis [...] Nelson Rosa considera [...] que, se a Eletrobrás conseguisse atender a estes dois milhões de propriedades (num prazo de dez a quinze anos), estaria cumprida uma boa meta. [...] em junho, a estatal escolherá a empresa de consultoria (esta foi uma condição do Banco Mundial) que participará do projeto. Além disso, a Companhia Paranaense de Energia (Copel) e as Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemig) receberam financiamentos de US$ 221 milhões do Banco Mundial para desenvolver projetos – pilotos de eletrificação rural. ―Nosso plano nacional de eletrificação rural (que será definido com os estudos) abrirá as portas do Bird‖, comentou Rosas, animado e esperançoso. ―Afinal, nestes últimos anos, quando, por falta de recursos, as concessionárias de energia e a Eletrobrás não investiram nesta área, o Banco Mundial Aproveitou Para fazer estudo que barateassem a distribuição da energia elétrica nas áreas rurais‖. [...] de 1976 a 1980, quando 36 concessionárias levaram energia para 120 mil propriedades rurais. Rosa quer repetir, agora, o sucesso deste programa, que contou com dois fatores favoráveis às concessionárias: condições de financiamento vantajosas [...] e inovações tecnológicas – postes de madeira. Transformadores menos potentes do que os tradicionais, fios de aço, e não o de cobre e alumínio, sistemas monofilares, e não trifásicos, e até mesmo mão de obra local — reduziram os custos dos investimentos em 40 %. (Revista Energia Elétrica de maio/junho de 1984, p.28). Ressalta-se, do exposto acima, que as inovações mencionadas no último parágrafo referem-se àquelas pesquisadas pelo Prof. Ênnio Amaral. Dos estudos referidos, realizados com financiamentos do Banco Mundial pela Eletrobrás, publicados em 1981, fizeram parte os estudos dos professores Ênnio Amaral (ETFPEL) e Waldemar Fuentes (UFSM). Por tais pesquisas, nos trabalhos da Eletrobrás, as instituições e também seus membros de comissão não receberam verba alguma. É necessário esclarecer que, de acordo com a Revista Guia Rural n.º. 2/1987, com os empréstimos tomados pelo governo do Paraná, para eletrificar 88 373 propriedades, foram atendidas 120 mil, ou seja, mais 31 627 propriedades, com os mesmos recursos, pois o Paraná adotou quase que integralmente o sistema de 94 eletrificação rural desenvolvido pelos pesquisadores da ETFPEL, liderados por Ênnio Amaral. Na mesma revista, de acordo com cálculos realizados pelos profissionais da COPEL, são apresentados dados comerciais referentes as 120 mil propriedades ligadas significa criar, na hora, mercado para 100 000 geladeiras, 90 000 televisores, 50 000 ferros elétricos, 30 000 máquinas de lavar,40 000 congeladores, além de 100 000 outros eletrodomésticos, além de 20 000 bombas de água , 50 000 trituradores e mais de 100 000 motores. O exposto vem ao encontro do que o Prof. Ênnio propagava: que o governo poderia arrecadar impostos (IPI, ICMS, entre outros) que seriam superiores ao custo das redes, desde que, insistia, fossem construídas pelo Sistema ETFPEL, envolvendo as prefeituras, as concessionárias e a comunidade beneficiada. Neste caso, não seriam necessários empréstimos externos, e a eletrificação do Brasil rural não se daria em 10, 15 ou 20 anos, como muitos propagavam, mas poderia ser realizada em 5 ou 6 anos. A revista ainda traz uma reportagem que explica o porquê da presa em montar cooperativas de eletrificação rural, em sua maioria compostas por pessoas indicadas por diretores de estatais ou escolhidas por políticos que tinham pressa em botar a mão no dinheiro do Banco Mundial --- BID, conta o engenheiro José Hisbello Campos, assessor do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento — BIRD. O BID só financiava redes rurais se aprovadas pela National Electrification engineer Cooperative Association — NERECA (Associação Nacional dos Engenheiros de Cooperativas de Eletrificação Rural dos Estados Unidos da América [tradução minha]), que absorveu 1200 engenheiros e técnicos, amigos e desempregados, por ocasião do término da eletrificação rural nos Estado Unidos. Portanto, o dinheiro era liberado se os serviços de consultoria da NERECA estivessem inclusos e desde que a construção se desse por cooperativas, como 95 tinha sido feito nos Estados Unidos, onde os serviços de geração e distribuição eram, na sua maioria, privados. Já aqui no Brasil, a geração e distribuição eram do Estado. Nessa perspectiva, era de sua competência tanto a eletrificação urbana, quanto a rural. Percebo que muitos eram os contras, poderosos interesses políticos, econômicos e de instituições como cooperativas, concessionárias, empreiteiras, comerciantes de materiais elétricos e até membros de governos, que seriam prejudicados com a aceitação dos projetos do Prof. Ênnio Amaral. É inequívoco que a luta era muito desigual. Além disso, continuava ainda aquele estigma do pós 1964, ou seja, pensar o Brasil Grande; até mesmo cabe essa expressão ―imoral e antiética‖, quando, na realidade, as pessoas detentoras do poder deveria assumir que nosso País era pobre e, como tal, em um primeiro momento, dever-se-iam desenvolver tecnologias baratas e locais, para alavancar nosso desenvolvimento tecnológico. Os primeiros partícipes, quando da criação do Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnológicas, de acordo com a portaria n.o 136/79, de 28 de fevereiro de 1979, eram os seguintes: - Prof. Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral — Coordenador; - Prof. Alvacir Tavares; - Prof. Carlos Alberto Mattos Soares; - Prof. Ênio Mancini; - Prof. Gilfredo Rodrigues Renck; - Prof. Henrique Martins; - Prof. Paulo Luiz da Costa Carré; - Prof. Rubi Münchow; - Prof. Jorge Moraes – Revisão do Texto. 96 Nos anos seguintes, as portarias se foram sucedendo, às vezes agregando outras responsabilidades, todas relativas às pesquisas em curso. Já o número e os nomes dos participantes foram mudando, tendo em vista o fato de que alguns eram chamados a desempenhar cargos administrativos na ETFPEL, o que geralmente, trazia a impossibilidade de continuar com o grupo de pesquisa. Pela portaria n.o 226/83, de 26 de outubro de 1983 adentraram a essa comissão outros membros, entre os quais eu me encontrava: - Prof. Ronaldo Moreira da Silva; - Prof. Rudi Münchow; - Prof. Mário Farias; - Prof. Antônio Signorini Pinto; - Prof. Nelson Pinheiro Oliveira; - Prof. Nei Carlos de Moura. Por esse documento, a comissão teria 60 (sessenta) dias para elaborar relatórios sobre todos os trabalhos já realizados, juntamente com a Universidade Federal de Santa Maria — UFSM e em conjunto com a Companhia Estadual de Energia Elétrica — CEEE – RS. Esta comissão ainda devia: -1 realizar estudos sobre redes de eletrificação rural; -2 analisar projetos referentes ao assunto; -3 participar de reuniões técnicas. Semelhantes portarias foram expedidas pelo Diretor da ETFPEL, Platão Louzada Alves da Fonseca, tais como as de n.o 006/84, de 04 de janeiro de 1984, e a de n. o 292, de 02 dezembro de 1985. 97 A proposição do Prof. Ênnio Amaral era, na verdade, muito abrangente; suas convicções partiam de uma perspectiva de uma práxis em que o currículo da escola não era só o espaço da sala de aula, do laboratório, mas deveria transpor os muros do educandário, buscando o chão do mundo, dos campos, das comunidades mais necessitadas. Era de conhecimento de todos que alguns membros (técnicos e não técnicos) da Companhia Estadual de Energia Elétrica do Estado do Rio Grande do Sul — CEEE não aceitavam as inovações do Prof. Ênnio; mas o diálogo, mesmo difícil, continuava. Em outros estados, como o Paraná, as idéias da pesquisa do Prof. Ênnio foram mais aceitas do que no Rio Grande do Sul. Não se deve esquecer que tais pesquisas, como já citei, contrariavam interesses múltiplos, tais como de fabricantes e fornecedores de materiais elétricos para redes de distribuição, empreiteiras, construtoras, entidades de classe, cooperativas de eletrificação rural, políticos e políticas para o setor. Para elucidar tal desconfiança nos trabalhos desenvolvidos pela ETFPEL, recorro a um discurso do Deputado Estadual Lélio Souza, proferido na Assembléia Legislativa, em sessão do dia 18 de novembro de 1980 Assomo a tribuna para fazer exposição sucinta de um problema de eletrificação rural, no Município de Piratini [...] como qualquer outro município brasileiro, vive Piratini as agruras da falta de recursos [...], neste contexto, surge o problema da eletrificação rural, indispensável para assegurar as condições mínimas de progresso [...] a Prefeitura Municipal de Piratini com a colaboração de uma equipe técnica da Escola Técnica Federal de Pelotas, e, ainda, com a participação da Companhia Estadual de Energia, elaborou um Projeto de Eletrificação Rural que abrangia parte do primeiro distrito [...] e a totalidade do segundo e do quinto [...] este projeto foi trazido à consideração da Companhia [...] há um ano, estando, durante todo este tempo, confinado à alta apreciação técnica desta Companhia [...] Piratini espera uma solução a respeito do projeto [...] que é [...] um novo sistema de eletrificação [...] que a Escola Técnica Federal de Pelotas o tem, inclusive, levado a outros Estados da Federação. E cito aqui o caso de Minas Gerais [...]. O projeto em questão se situava na localidade do Cancelão/Cerro Alegre, em Piratini, e pela demora na sua aprovação, o Prof. Ênnio, coordenando um mutirão, começou a executar a obra, mesmo sem a sua aprovação. Esse fato gerou 98 um documento da CEEE, que, em resposta às solicitações da Gerencia de Pelotas responsável pelo recebimento, vistoria e posterior tombamento da rede, verificado um significativo número de modificações realizadas pelo Prof. Ênnio, não se achava em condições de analisar e nem poderia aceitar tais modificações. O documento ressaltava que o projeto de eletrificação rural, realizado em Herval do Sul, em 1981/82, já era considerado pela CEEE como experiência, e que aceitar a rede de Piratini seria aceitar que outras redes fossem construídas com iguais inovações. Contém o documento 14 páginas, nas quais se arrolam respostas a 14 proposições de modificações na construção de redes MRT feitas pelo Prof. Ênnio Amaral. Na resposta dada pela CEEE, com farto embasamento técnico e teórico dos mais diversos as modificações realizadas por Ênnio, não foram aceitas. O documento, por ser extenso e de ordem técnica, constará do arquivo do memorial do IFsul, juntamente com o projeto datado de agosto de 1984. Sabe-se que, por pressões políticas, a rede foi energizada ou ligada. Em documento datado de 14 de novembro de 1983, encontrei uma série de questionamentos feitos às concessionárias, entre os quais a possibilidade de construção de rede troncal (construída de maneira convencional), que só penalizaria os moradores, que não teriam como arcar com os elevados custos de tal rede, sendo a concessionária a maior responsável pelo seu alto custo. Nesse mesmo documento, ainda consta que o professor não se deixava abater com as constantes críticas ao seu trabalho. Com respeito a uma pequena rede construída em sistema trifásico, para alimentar bombas de irrigação de uma lavoura de arroz, de cujos levantamentos eu próprio participei, lembro que a maior parte do ramal atravessaria um banhado e Arroio Pelotas, por onde nem os animais circulavam. Escreveu o Prof. Ênnio Os técnicos da concessionária deveriam ter mais sensibilidade. O recente episódio em que nos envolvemos, no qual um plantador de arroz às margens do Arroio Pelotas, enviou através de uma empreiteira um projeto da alimentação de sua granja, onde utilizando-se das vantagens dos condutores de aço, possibilitando a travessia do rio, com um ramal de 800 m. Este ramal não foi aceito sob a alegação de que o mesmo situava–se em Zona URBANA. Em função do impasse, foi projetado um ramal 99 em alumínio que tomaria a energia a 4 km e, como é lógico, a um custo proibitivo para seu proprietário. Procuramos todas as circulares tratativas sobre condutores de aço e não encontramos nenhuma rejeição a tal aplicação. Questionamos os técnicos da CEEE, estes foram taxativos: ―não ligamos a área urbana‖, sem, contudo justificar. Recorremos ao Vice – Prefeito, e este, tornou zona rural para efeito de construções das redes e solucionou-se o impasse. Isto por si só explica tudo. - As exigências feitas às aplicações de condutores de aço e sistemas MRT dão margem a toda espécie de rejeição. [...] Este verdadeiro emaranhado de dificuldades que vem sendo imposto à eletrificação rural está a exigir um posicionamento político, que defina os reais propósitos dos nossos Governantes, que ao que parece mudaram; hoje eletrificação está situada na pauta das prioridades em primeiro lugar. E como é 36 sabido a falta de recursos nos levará a uma única definição, economizar. As fotos abaixo (Fig.17 e 18) são da travessia a que me referi. Pode-se notar que a altura das estruturas propiciou uma tração nos cabos, permitindo a luz mínima (menor distância entre o fio ou cabo condutor e a terra), para o local de construção da rede elétrica. Figura 17 – Rede elétrica da travessia que gerou polêmicas, quanto ao local Figura 18 – Outro aspecto da mesma rede elétrica mostrando a altura da estrutura. O prof. Ênnio, nos últimos anos da década de 1970 e no início da década de 1980, batalhava para que a energia chegasse ao campo com um baixo custo. Essa 36 Documento escrito pelo Prof. Ênnio, para ser distribuído à imprensa (1982, p.1). 100 luta se dava por meio da busca do apoio de várias instituições de ensino, prefeituras, políticos, amigos, entre outros. Faz-se necessário ressaltar que o Prof. Ênnio, por não ser engenheiro, por não possuir uma pós-graduação ou outro título, causava espanto e alvoroço entre alguns mais titulados, que corroboravam as idéias de que tais pesquisas não poderiam ser aceitas. Na fala do Prof. Gilfredo, membro da Comissão de Eletrificação Rural, fica explicitado que, entre os muitos argumentos utilizados pela CEEE, encontravam-se os embasados na pouca titulação37 do Prof. Ênnio. O depoente também expressou que o academicismo era uma característica da época. Já o Prof. Jorge Moraes em depoimento, diz, ‖ainda eram tempos de muitos anéis‖. Para apoiar tais reflexões, busco Cunha (2005. p. 1), que completando o que escrevera Baudelot & Establet (1972) e Antônio Santoni Rugiu (1998), disse [...] o ponto de vista da classe dirigente e – acrescento eu – de seus intelectuais é o de que a verdadeira educação é unicamente a que se assimila por meio do estudo dos livros e escutando a voz do mestre, nas carteiras das escolas ou da universidade, Para as classes dirigentes e seus intelectuais, nem mesmo pode ser considerada educação – ao menos a que se desenvolve nas inóspitas oficinas, sujando-se as mãos na produção de objetos materias com finalidade utilitária. Ainda validando os depoimentos dos professores Gilfredo Renck e Jorge Moraes, no que se refere ao preconceito de classe profissional, destaco matéria do Jornal do Comércio de 13 de junho de 1979, veiculada pela Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas — ABEE/RS Engenheiros são contrários ao emprego de arame de cerca em redes de eletrificação rural. A Utilização de aço galvanizado (arame de cerca), em redes de 37 Para muitos autores, o ensino pode-se dar de três formas básicas: o formal, sistematizado, intencional, e em ambiente próprio (episteme); o não formal, que pode ocorrer em qualquer ambiente, mas é intencional (sofia), e, aquele que denominamos de informal e aprendemos por toda a vida cotidiana (doxa). (SAVIANI, 2005). 101 eletrificação rural, classificado como ―um verdadeiro ovo de Colombo‖ por parlamentares gaúchos que patrocinaram a ida de professores da Escola Técnica Federal de Pelotas, responsáveis pela experiência, à Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal, foi contestada ontem nesta Capital, pela diretoria da Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas, secção do Rio Grande do Sul – ABEE/RS. [...] manifesta sua preocupação face a insistentes e substanciais notícias sobre recente ―descoberta‖ relacionada com o uso de ―arame de cerca‖ em linhas de eletrificação rural (de alta tensão) de autoria de um grupo de jovens da Escola Técnica de grau médio, do Sul do Estado. [...] Aparentemente, a matéria, ainda que propalada estar sendo testada e aprovada em laboratório da Escola não consta que assunto tão relevante esteja sendo acompanhado de perto por profissionais universitários com o devido respaldo e preparo técnico básico, [...] a ABEE/RS tem conhecimento que experiências deste tipo foram realizadas em nosso Estado, inclusive pela CEEE, e posteriormente, foram temporariamente abandonadas pelos problemas que causavam,não obstante as pesquisas neste setor, continuam sendo feitas pela mesma. [...] Por outro lado os países que já atingiram certo grau mais avançado na técnica e tecnologia mantêm instituições como a nossa Associação Brasileira de Normas Técnicas, onde não se encontra respaldo ao intento, pelo menos da forma como esta sendo apresentada. [..] preocupa-nos o fasto de estarem sendo criadas expectativas destituídas de qualquer fundamento. [...] preservar o profissional verdadeiramente habilitado e responsável, e mais, evitar que verdadeiros ―ovos de Colombo‖ que não existem dentro da boa técnica e tecnologia atual, salvo melhor juízo, venham a ser explorados com outros fins, inclusive políticos, em prejuízo de todos (grifos meus). Também em resposta às diligências do Deputado Carrion Junior levantadas, em reunião realizada na Assembléia Legislativa no dia 26 de maio de 1983, intitulada Alternativas Econômicas para Eletrificação Rural, da qual os professores. Ênnio Amaral e Waldemar Fuentes foram partícipes, que gerou um documento enviado ao Deputado no dia 15 de junho de 1983 e este os enviou ao Presidente da CEEE, Guilherme Socias Villela, constando de 10 questões relativas à construção de redes rurais (Documento semelhante foi enviado ao Governador pelos professores). Quem respondeu foi a Secretaria de Energia, Minas e Comunicações, assinado pelo Secretário de Estado, Romeu de Almeida Ramos, constata-se que eram bastante nebulosas as relações com determinados setores ou partícipes do corpo técnicoadministrativo da CEEE. Para elucidar algumas dessas constatações, todas balizadas em documentos enviados pela CEEE, afirma que, desde 1958, extra oficialmente tinha instaladas redes no Sistema MRT, sendo ela a pioneira, no Brasil a realizar tal tarefa. Sobre pioneirismo de redes MRT, a Companhia Paranaense de Eletricidade — COPEL, também se disse ―pioneira‖, desde 1963. Em 1982, foi publicada a 102 Circular Normativa n.o 01/82, baseada em estudos da Eletrobrás e que, em levantamento de 1982, havia em operação 1500 Transformadores no Sistema MRT. A Circular Normativa não contempla todas as alterações de baixo custo, pesquisadas pela ETFPEL, e os estudos da ELETROBRÁS foram feitos após as publicações de Ênnio Amaral. Quanto a isso tudo, cabe uma pergunta, por que a CEEE não continuou usando o sistema a partir de 1958? E, ainda mais, devem-se computar aí os transformadores (a maioria) instalados após o início dos estudos ou pesquisas da ETFPEL. Alguns profissionais da CEEE criticavam, também, a baixa capacidade de transporte de energia pelos fios ou cabos de aço, e justificavam a pequena distância entre postes, condenadas pelo Prof. Ênnio, como sendo necessária devido ao fato de conectar consumidores próximos. As redes MRT pelo Sistema ETFPEL se destinavam a zonas rurais com consumidores normalmente distante entre si, diferente, portanto, de zonas densamente habitadas. Isso propiciava distâncias muito maiores entre postes, sendo maiores ainda se o terreno favorecesse e o consumo ou demanda dos consumidores rurais fosse muito pequeno. Resalta-se que a demanda por energia elétrica nada tinha a ver com o tamanho da propriedade, mas, sim, com o tipo de atividade desenvolvida pela propriedade. E as redes, comprovadamente, operavam dentro das técnicas e tecnologias previstas. Com relação ao mutirão, a CEEE se manifestou favorável em 1. o de setembro de 1979. A formação de mutirões pelas prefeituras e beneficiados não era dificultada. Nota-se que as empreiteiras se sentiam prejudicadas. A construção de redes por meio de mutirão consistia em envolver toda a comunidade que seria beneficiada pela rede. Uma vez organizado o setor de eletrificação das prefeituras, as quais entraram com elementos mais qualificados para a construção, a CEEE também contribuiu, doando os postes. Esse processo contrariava comerciantes, empreiteiras e cooperativas, entre outros. Da narrativa de Platão Alves da Fonseca, então Diretor Geral da ETFPEL, retirei um recorte que demonstra algumas das dificuldades que o Prof. Ênnio vivenciou 103 [...] os empresários eram contra, por uma razão financeira, a cada construção que eles faziam, eles recebiam pelo material gasto, e a idéia era simplificar, exatamente este custo. [...]. Eu tive oportunidade, numa reunião com eles, de dizer isto a eles: 38 estavam trabalhando contra o povo, contra nós mesmo [...]. (informação verbal) . A Fig. 19 a seguir demonstra alguns aspectos das tarefas desenvolvidas por membros da comunidade, como o levantamento de postes. Figura 19– Moradores da comunidade executando o levantamento de poste. É importante destacar que até o ano de 1978/79, muito pouco se falava, escrevia, discutia ou se publicava a respeito de eletrificação rural pelo Sistema MRT, em fio ou cabo de aço, no Brasil. Sobre tal assunto o silêncio era geral, as redes rurais eram construídas por sistemas convencionais, pelas concessionárias e pelas cooperativas de eletrificação rural, muitas, inclusive, com vultosos empréstimos contraídos do Banco Mundial. A divulgação desse trabalho só foi possível devido ao idealismo do Prof. Ênnio Amaral, que jamais se preocupou aceitar benesses de qualquer natureza. Ele nem mesmo, documentava ou registrava suas pesquisas, de modo oficial, como suas. O que fazia era conclamar todos a se juntar, irmanados em um objetivo, levar 38 Entrevista concedida em 06-05-2009, às 15h. 104 energia elétrica ao campo. Para isso, era necessário reduzir, em muito, os custos de sua implantação. No pensamento de muitas pessoas ou entidades que tinham interesses contrariados, não passava que a formação ou desenvolvimento intelectual não se limitasse aos bancos escolares ou cátedras. O Prof. Ênnio era um autodidata; porém muitos dos professores membros da comissão de pesquisa eram engenheiros que tinham formação pedagógica e experiência do fazer e pensar teórico e prático. Nessa perspectiva, podem-se elencar quão difíceis eram os caminhos a percorrer pelo idealismo de um professor. Encontrei um documento em que o Prof. Ênnio faz duras críticas a determinados profissionais: ―nas áreas de engenharia elétrica e mecânica verifica-se um verdadeiro contra-senso‖. Para compreender tal reflexão do professor, apresento o seguinte texto Profissionais devidamente habilitados clamam por mercado de trabalho, compatível com suas especialidades, muitos deles subempregados ou desempregados, mas é o comércio que os absorve. Isso exige da sociedade um elevado ônus, como se explica a seguir. [...] pela falta de participação de profissionais nas atividades de campo e projeto, chega-se ao super dimensionamento [...] os custos dos investimentos alcançam valores proibitivos, o que condena os proprietários a viverem à margem do progresso [...] propriedades são alimentadas com redes trifásicas [...] transformadores de 45 KVA que pesam aproximadamente 400 kg [...] não precisariam mais do que um [...] de 5 KVA de apenas 40 kg e um só condutor de aço. Define–se engenharia como sendo a ciência de fazer com economia [...]. O profissional ao nosso entender, deve, sem dúvidas, questionar os padrões à procura de um melhor desempenho de equipamentos e materiais. Os que concordam simplesmente em vender assinaturas [...], são omissos. Um projeto enviado a concessionária não é aceito por seus fiscais se não for absolutamente dentro daqueles padrões pré-estabelecidos. Sabe-se que essas exigências são descabíveis; as desigualdades dos terrenos, suas diversas topografias estimulam procedimentos variados de engenharia [...] o bom senso ou o senso prático não é estimulado. [...] a livre concorrência em todos os setores de atividades sempre foi salutar. Só temem os incapazes. [...] o governo quando investe na formação de um profissional o faz com o propósito de entregar a sociedade um elemento que colabore na solução de seus problemas. A qualificação profissional deve ser vista pelo técnico como uma forma de servir à sociedade [...] a qualificação do nível médio ou superior antes de ser um privilégio, deverá tornar–nos devedores, responsabilizando-nos por retribuir com ensinamentos 39 que tornem a vida mais fácil à comunidade onde atuamos [...] (grifos meus). 39 Documento realizado pelo Prof. Ênnio, para vincular à imprensa (1983, p.1). 105 Destaco o trabalho do prof. Ayer, aposentado da ETFPEL, que muito colaborou com o Prof. Ênnio. Dado a habilidades manuais e também primando pelo esmero e acabamento, este professor fabricava os equipamentos desenvolvidos nos projetos de pesquisa. Num primeiro momento, produzia protótipos; a seguir, fabricava quantidades suficientes para as redes rurais, em execução em várias prefeituras do Rio Grande do Sul e outros estados. Esse professor ministrava aulas da Seção de Trabalhos de Metal: Curso de Forja e Serralheria e Curso de Fundição, 40 no Ginásio Industrial e nos cursos de Aprendizagem Industrial. A Revista Guia Rural n.2 (Fig. 20) apresenta reportagem realizada em Pelotas sobre eletrificação Os araminhos do professor Ayer O velho professor Ayer Figueiredo fabrica na oficina da Prefeitura de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, araminhos maravilhosos. O que ele chama de engate espiralado não custa 25 cruzados e substitui, na operação, nada menos do que a chave de fusível, de 1700 cruzados. Seu chispador de chifres é um eficaz substituto de dois cruzados para um pára-raios de 1850 cruzados. [...] chega gente do Espírito Santo para estagiar na acanhada oficina e aprender a baratear linhas rurais. Pelo menos um Estado, o Paraná, já adota, oficialmente, bijuterias domésticas semelhantes. O rosto corado do professor de 70 anos se ilumina ao falar do inventor das traquitanas, seu afilhado de batismo, Ênnio de Jesus Pinheiro Amaral — como ele professor da Escola Técnica Federal de Pelotas, até morrer em 1985, aos 49 anos. ―Inventar era fácil para o Prof. Ênnio‖, diz Ayer. ―Difícil continua sendo fazer emplacar suas idéias [...] que contrariam conveniências políticas [...] o primeiro político a aderir foi Otôni Amaro da Silveira, prefeito de Herval do Sul, [...] impressionado com Ênnio, ele comprou 10 toneladas de fio de aço e organizou o mutirão para fazer 86 km de rede, que a CEEE foi obrigada a assumir, entre outros motivos, porque um dos beneficiários era o então deputado arenista Alexandre Machado‖, [...]. Mais, porém, do que inventos, saudades e vitórias políticas, o inventor deixou discípulos, como Luis Henrique hottmann, Liernann, de São Borja [...]; José Hisbello Campos, no Rio de Janeiro e prefeitos capixabas e goianos. [...], conta sua mais fiel seguidora, a filha Pura Amaral Pinto, 26 anos, encarregada da eletrificação rural na Prefeitura de Pelotas. [...]. ”Ele veio da roça, de Piratini, e conhecia bem o 40 Os primeiros cursos, por seção, conforme a legislação que regulamentava o quadro de cursos do ensino industrial, (Lei Nº. 4073 de 30 de janeiro de 1942), foram: - Seção de Trabalhos de Metal: Curso de Forja e Serralheria e Curso de Fundição; - Seção de Indústria Mecânica: curso de Mecânica de Automóveis - Seção de Eletrotécina: Curso de Máquinas e Instalações Elétricas e Curso de aparelhos Elétricos e Telecomunicações; - Seção de Indústria da Construção: Curso de Carpintaria; - Seção de Artes Industriais: Curso de Artes de Couro, Curso de Marcenaria e Curso de Alfaiataria; - Seção de Artes Gráficas: Curso de Tipografia. 106 drama do colono descapitalizado, que acaba vendendo a terra para criar os filhos a margem das cidades”. [...] Júlio Elch Saldanha Silveira, 64 anos [...] liderou a briga política dos fazendeiros contra a CEEE, mobilizando–os para o mutirão e emprestando dinheiro aos que não tinham (mérito que ele nega, mas a vizinhança jura), [...] sem luz, eu ia acabar ficando sem os vizinhos [...]. “Mais o grande mérito é do professor Amaral”, [...] que ajudado por Waldemar Fuentes da Universidade de Santa Maria, inventou, por exemplo, um transformador com metade do peso e do preço do convenciona com a mesma potência (o ruralito, hoje fabricado pela Weg e Trafo, no sul) [...]. Pura, a filha do mestre criou uma comissão intermunicipal de eletrificação rural, que reuni periodicamente, na Prefeitura de Pelotas, representantes de prefeituras de cinco Estados. É nessa comissão que o engenheiro José Hisbello Campos, consultor do Banco Mundial para eletrificação rural do mundo inteiro, vê o embrião de União Nacional de prefeitos, forte o suficiente para acender as luzes do campo, que as concessionárias insistem em manter apagada (grifos meus). 107 Figura 20 – Matéria vinculada na revista Guia Rural Nº 2, abril de 1987, p. 90. 108 Em uma matéria do Jornal Correio do Povo, edição de 16 de julho de 1982, no encarte Correio Rural, comprovamos o apoio de particulares. Diz o jornal: Eletrificação fácil e barata Do leitor Júlio Elch Saldanha Silveira de Pelotas, recebemos estas valiosas informações sobre eletrificação rural. ―O correio do Povo Rural, 25 / 06, publicou notícia referente a eletrificação rural com amplo plano de ação da Federação das Cooperativas de Eletrificação do Rio Grande do Sul. A eletrificação rural, hoje, tem despertado grande interesse das autoridades, sobretudo do Sr. Governador do Estado, porém o alto custo das redes convencionais, não tem permitido estender à toda área rural [...] serviço indispensável ao bem estar social e auxiliar a conter o êxodo rural, que cria simultaneamente duplo problema, diminuição da mão de obra rural e acúmulo indiscriminado da povoação dos centros urbanos com novos habitantes muitas vezes despreparados para as lidas na cidade. Na eletrificação rural devemos considerar, conforme a demanda, zona de agricultura intensa (arroz), e zona estritamente de pecuária ou mesmo de pequena propriedade. Para o segundo caso, existe solução econômica e de rápida execução. Refiro–me a alternativa preconizada pelo Centro Tecnológico da Universidade de Santa Maria e Escola Técnica Profissional Federal de Pelotas. [...] Existem dúvidas, ceticismo sobre o sistema, porém, estou em condições de afirmar que é eficiente e não tem restrições para uso em fazenda de pecuária. Meu estabelecimento em Herval do Sul esta servido desde fevereiro, onde tenho toda aparelhagem que se necessita numa estância, serra circular, vulcanizadora, aparelho de solda. desintegrador de ração, além de chuveiro e outros eletrodomésticos. [...] O leitor Júlio Silveira acrescenta, em nota a parte que a CEEE já adotou o sistema, expediu normas, falta difusão [...] A Companhia Belgo Mineira fabrica o fio enriquecido de carbono apropriado para o uso em eletrificação. O amigo do Prof. Ênnio se referia a um padrão de construção de redes que ainda não era o ideal, aquele preconizado pelo professor, sendo a rede de Herval do Sul uma das primeiras, realizadas pelo professor, mas não continha todas as inovações já idealizadas ou por vir a ser. Também deixa claro que uma grande propriedade poderá ser um pequeno consumidor de energia elétrica, ou seja, o que define o consumo de energia elétrica é o tipo de produção dessa propriedade. Para melhor entendimento, uma lavora de arroz irrigado, que dependa de bombas movidas a motores elétricos, poderá ser, dependendo do tamanho de sua lavoura, um grande ou um pequeno consumidor. O mesmo raciocínio serve para uma estância de criação de gado extensiva, sua demanda por energia elétrica poderá ser baixa. 109 O êxodo rural era uma preocupação de todos os governantes, principalmente após a década de 1950. Sobre o êxodo rural gaúcho, o Jornal Zero Hora de 1.o de janeiro de 1986 traz reportagem sobre dados do livro RS: Terra e Poder, de Luiza Schmitz Kliemann, em que consta que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE, na década de 70, 1,3 milhões de pessoas deixaram a zona rural do Rio Grande do Sul. Pelos cálculos da Federação dos Trabalhadores da Agricultura - RS — FETAG, 230 mil fizeram isso entre 1980 e 1982. O Governo de Jair Soares demonstra essa preocupação no Jornal Correio do Povo, em 2 de setembro de 1983 (Fig. 21). Como se pode ver abaixo são bem apelativos os argumentos que utiliza, mencionando o uso de um único fio de aço nas redes. Ao lado, um folder (Fig. 22), distribuído pelo Governo do Estado do Rio G. do Sul com objetivo de manter as famílias no campo. 110 Figura 21 – Correio do Povo de 2-09-1983. Figura 22 – Folder produzido pelo Governo Gaúcho. Considero relevante apresentar que a participação da Universidade Federal de Santa Maria, no apoio às pesquisas desenvolvidas sob a coordenação do Prof. Ênnio Amaral, está registrada em um ofício datado de 10 de novembro de 1980, dirigido ao prof. Eng° Waldemar Correia Fuentes, enviado por Flávio F. Freitas, assistente executivo da CEEE. 111 Fuentes era professor dessa Universidade, mas o que nele consta é que o amigo de Freitas e, também, do Prof. Ênnio, o Eng° Flávio Pinho, Chefe dos Serviços Técnicos da Gerência Regional de Pelotas, departamento da CEEE, tinha se interessado pelos trabalhos do professor, por insistência do Eng° Pinho. Flávio Freitas pedia que, através do Eng° Fuentes, o Centro de Tecnologia da UFSM, pesquisasse um transformador rural simples e barato. Observa-se que tal transformador já tinha sido construído pelo prof. Ênnio em 1979, mas não tinha sofrido testes de laboratório, somente em campo em operação. Tanto é que o Eng° Pinho comentara sobre uma unidade instalada no Município Canguçu. A foto abaixo (Fig. 23) mostra o prof. Ênnio Amaral e o protótipo do transformado (Fig. 24) desenvolvido no Curso de Eletromecânica da ETFPEL. Na página seguinte (Fig.25), observa-se o mesmo instalado em Canguçu-RS. Na verdade o Prof. Ênnio fez vários protótipos de transformadores monobucha de baixa potência. Transformado protótipo no laboratório do Curso de Eletromecânica Figura 23 – Prof. Ênnio e o Transformador protótipo Figura 24 – Transf. Protótipo 112 Tranformador em teste Transformador protótipo em teste Figura 25 – Protótipo de transformador monobucha em teste em Canguçu – RS. Fonte: Revista Raízes de abril de 1983. 113 O prof. Fuentes participou de um grupo constituído de mais seis engenheiros e um economista e apresentou um trabalho, em Julho de 1973, intitulado Planejamento de Eletrificação Rural, envolvendo os municípios de Alegrete e Uruguaiana. Também encontrei um ofício datado de 22 de junho de 1981, do Centro de Tecnologia; Departamento de Eletromecânica e Sistema de Potência, dirigido a Construções Eletomecânicas S/A, sendo que o ofício se refere à aquisição de Tiras de Aço Silício M5 grãos orientados, material usado na fabricação de transformadores. Devido à natureza do Prof. Ênnio, de muita humildade, e somando forças a bem da proliferação de suas pesquisas, cujo objetivo era o de atender à comunidade rural, ele se uniu à UFSM e ao prof. Fuentes, que era um ex-aluno da ETFPEL. A união desses dois professores, em prol do campesinato, foi uma constante, até o falecimento do Prof. Ênnio. O Prof. Fuentes continuou os trabalhos, bem como a Comissão de Eletrificação Rural da ETFPEL. Outro fato que representa a afinidade entre estes dois professores, mas que denota preconceito profissional e pouco reconhecimento do trabalho do Prof. Ênnio, por parte do Prof. Flávio A. C. Quintana, da Pró-Reitoria de Extensão/UFSM – Assessor, que, ao enviar convites para um seminário, ainda sem data certa, a ser realizado pela UFSM, para diversas instituições do Governo Federal e Estadual, em seu segundo parágrafo, assim constava: ―o sistema, sob a orientação de professor da UFSM e colaboração de Técnico da ETFPEL, foi implantado em algumas propriedades rurais do município de Herval do Sul (RS), permitindo estudos de avaliação‖ (Grifos meus). Quando, na verdade, o orientador dos trabalhos era o Prof. Técnico Ênnio Amaral. O Prof. Fuentes, mais tarde, notou tal ―deselegância e pouca ética‖ de parte de seu colega de Universidade, remeteu um bilhete escrito por Quintana, dirigido a sua pessoa, no qual, também escreve um bilhete ao Prof. Ênnio Amaral, datado de 15-11-1983, contendo o seguinte: 114 Quintana para Fuentes: ―Fuentes: combina c/chefe Depto. organização encontro e participação direta e ativa da ETFPEL. Quintana. Fuentes para Ênnio: ―Vão todos os papéis por aqui enviados. Não foram escritos como gostaria, nem tomei conhecimento prévio, porém, não invalida a intenção, desde que passemos a assumir em conjunto o assunto‖ (grifos meus). Os documentos acima evidenciam certo preconceito profissional, entre membros de universidade, 3.o grau e, escola de 2.o grau, que em outros momentos nesse trabalho, já foram demonstrados, constituindo-se em impeditivos, que corroboram para obstaculizar os trabalhos sociais dessas instituições. Ainda em 10 de dezembro de 1981, era publicada a revista O quero – quero de número 32, Órgão Oficial da Universidade Federal de Santa Maria, a qual contém matéria sobre a eletrificação rural e sobre a instalação de rede experimental no seu Campus. A rede atendia um transformador trifrásico e um monofásico. A matéria era assinada pelos Profs. Waldemar Fuentes, Ildemar C. Decker e Ênnio Amaral. À esquerda embaixo (Fig.26), Prof. Fuentes em entrevista ao Jornal O Interior, p.15 do dia 9 de maio de 1983, à direita (Fig. 27) matéria publicada na revista O quero-quero. 115 Prof. Fuentes Figura 26 – Entrevista ao Jornal O Interior Figura 27 – Reportagem da Revista Quero-Quero da UFSM A partir dos protótipos de transformadores, desenvolvidos na ETFPEL por Ênnio Amaral, denominados de ruralitos, os Profs. Fuentes da UFSM e Ênnio da ETFPEL realizaram pesquisas para desenvolver unidades transformadoras compactas. A Fig. 28 mostra um relatório de pesquisa; a Fig. 29 traz reportagem do jornal O Interior em que mostra dois transformadores de igual potência instalados no mesmo poste; a Fig. 30 mostra os transformadores de igual potência, lado a lado. 116 Figura 28 — Relatório de Pesquisa Figura 29 — Reportagem do Jornal O Interior No poste os dois transformadores. O transformador ruralito Desenvolvido pelos pesquisadores, tem a metade do peso do Convencional. Figura 30 — Os transformadores têm igual potência 117 Embora Ênnio Amaral não aceitasse rótulos como inventor ou inovador e se apresentasse como uma pessoa muito simples, era, inegavelmente, portado de uma personalidade marcante. Levar a luz ao campo a baixo custo, reinventando equipamentos, desenvolvendo novas tecnologias, trabalhando diretamente com os agricultores ou com os que no campo residiam, formar parcerias e mutirões, para que esses cidadãos vislumbrassem outro horizonte, com mais lazer, produção, cultura e educação. Essa era a missão de Ênnio Amaral. Nessa perspectiva, buscava a extensão, não como uma invasão cultural, segundo Paulo Freire (1992, p. 22), no trecho que segue Parece-nos, entretanto, que a ação extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles que fazem, de ir até a ―outra parte do mundo‖, considerada inferior, para, à sua maneira, ―normalizá-la‖. Para fazêla mais ou menos mais ou menos semelhante a seu mundo. Daí que, em seu ―campo associativo‖, o termo extensão se encontre em relação significativa com transmissão, entrega doação [...] invasão cultural, manipulação, etc. Certamente, o que pretendia, era uma extensão em que o diálogo entre os rurícolas e os pesquisadores professores se desse em um ambiente em que os conhecimentos de um grupo interagissem com os conhecimentos do outro. Mais uma vez me apoio em Paulo Freire (1992): ―[...] o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações‖. Justificando essa preocupação de Ênnio Amaral para com os campesinos, recorro às palavras de Benjamin 41, quando afirma que: [...] uma família que vive no campo, mesmo que seja pobre, se tiver acesso a um pedaço de terra, tem sua roça, a sua casa, a sua criação, o seu pomar, a sua economia de trocas. Precisa de uma renda monetária para comprar aquilo que não 41 Anais do segundo Encontro Estadual das Escolas Técnicas –vol. 01 2001-ano I-Edição Especial- pág.20. 118 consegue produzir na sua própria economia natural. A grande base da sua sustentação vem do intercâmbio com a natureza e das relações de vizinhança. Quando você tira essa família do campo e coloca na cidade, você rompe suas relações com a economia natural e a mergulha inteiramente no mundo do mercado. Na cidade, ninguém tem roça ou criação [...] (2001, p.20). Nesse sentido, o grande valor do trabalho de Ênnio Amaral é justamente o de melhorar a vida do homem do campo, mantendo-o em seu ambiente, com mais conforto e condições de melhorar sua renda, por meio das facilidades e possibilidades oferecidas pelo acesso à eletricidade. A construção de redes recrudesceu a partir de sua ida a Brasília, sendo bastante difundida a partir de meados de 1979 e, durante os anos de 80 e 81, quando seus trabalhos tanto receberam elogios como também, críticas severas. Foi nesse período que encontrei muitos documentos que registram convites para que ele palestrasse, participasse de seminários e de encontros com membros de prefeituras, da CEEE, do Governo Estadual do Rio Grande do Sul e de outros Estados. O ano de 1982 foi de silêncio da imprensa, pelas poucas matérias em jornais e revistas especializadas. A partir de 1983, com novos governadores dos estados, como Jair de Oliveira Soares, no Rio grande do Sul, e outros governantes, do Paraná, Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Goiás, Maranhão, entre outros, que, dentro de suas metas e planos de governo colocaram a eletrificação rural como uma das principais realizações. O documento abaixo (Fig. 31) trata de mais um convite. Esse, da Secretaria de Estado do Interior do Paraná, dirigido ao Diretor da Escola Platão Louzada Alves da Fonseca, para que o Prof. Ênnio Amaral fosse liberado nos dia 26 e 27 de maio de 1983, para mais uma palestra, desta feita para um grupo de autoridades estaduais e entidades representativas da sociedade paranaense. Reveste-se tal documento, de importância singular pelo fato de que o Governo Paranaense colocou sob a responsabilidade da Secretaria do Interior, e não da COPEL, a coordenação da eletrificação rural, diferenciando-se do Estado Gaúcho, cuja responsabilidade foi da CEEE, dessa forma, causando entraves e impedimentos. 119 Termina o documento: aproveitamos para cumprimentá-los pelo trabalho que esta Escola vem realizando em torno deste problema, de grande alcance social. Tal afirmativa evidencia que os trabalhos desenvolvidos pelo professor se efetivaram ―como trabalho social‖, uma das características da extensão. Figura 31 – Convite da Secretaria de Estado do Interior do Governo do Paraná. 120 A obra abaixo (Fig. 32), Eletrificação Rural Comunitária, órgão da Secretaria do Interior do Paraná, no Governo de José Richa, retrata todas as técnicas de construção de redes rurais, o que ensejou a grande construção de redes rurais no Paraná, antes e após 1885. Na sua página 20, consta o histórico da implantação de um dos maiores projetos de eletrificação rural do País realizado no Estado do Paraná. Comunidade trabalhando em mutirão Figura 32 – Obra que trata da eletrificação rural do Estado do Paraná Muitas das pesquisas aqui relatadas se desenvolveram e foram apresentadas às comunidades, instituições, entidades e órgãos de classe durante o governo militar, quando os governos estaduais, nomeados, não detinham, de fato, o controle sobre alguns órgãos governamentais, responsáveis pelo desenvolvimento. 121 Dessa forma, muitas ações que se poderiam efetivar, foram prejudicadas pela falta de diálogo e sintonia entre governo e instituições. A narrativa do Prof. Platão Louzada Alves da Fonseca, então Diretor da ETFPEL, em encontros com o Governador Jair Soares, evidenciam o citado acima. De sua fala destaco o seguinte Eu estive com o governador Jair Soares na época, que a princípio ele era contra a idéia, mas depois de uma conversa que nós tivemos lá em Esteio, defendi as idéias de Ênnio, passou depois a ser também um aliado nosso, facilitando as reuniões com os engenheiros da CEEE e principalmente com os empresários, porque os empresários eram contra, por uma razão financeira, [...] a idéia era simplificar, [...] Este custo trazia como conseqüência a diminuição da remuneração dos empresários, eles eram contra. Eu tive oportunidade, numa reunião com eles, de dizer isto a eles, estavam trabalhando contra o povo, contra nós mesmo. [...] Tive a sorte de inaugurar um traço de rede juntamente com o governador e veio uma senhora chorando, porque nós inaugurávamos e ligou as luzes, ela dizia: ―puxa, que bom, agora vamos ter água gelada‖. É uma coisa que eu não esqueço, e o governador também olhou para mim – ―é verdade, é verdade‖. Ela já pensava nos benefícios que teria com a luz, com a energia em sua casa. Uma casa na beira da estrada. Para mim foi uma das constatações de fato que deveria ser comum. Outra pessoa que também defendia o Ênnio, o Saldanha (Júlio Silveira), em que uma vez estive em conversa com ele, me mostrou as vantagens que já estava tendo pelo fato de que a energia chegar até a casa dele. [...] o Ênnio sofria, era atacado, combatido, mas depois com o apoio do próprio governador e do Secretário, que agora não me lembro o nome, resolveu colaborar conosco, porque ele me disse uma vez, que se ele não fizesse isso, ele perderia o emprego (grifos meus). 42 (Informação verbal) . A eletrificação rural era também um instrumento de política partidária eleitoreira43; daí se compreenda boa parte da negação do processo de construção das redes, que, pela maneira como eram propostas, dificultava o uso eleitoreiro desse trabalho. Mesmo assim, em algumas obras, podemos presenciar alguns políticos, na tentativa de angariar votos. Também se percebia que os trabalhos de pesquisa e extensão, em alguns casos, contrariavam interesses econômicos Selecionei os principais fatos e acontecimentos, reportagens de jornais, revistas e documentos recebidos ou enviados pela ETFPEL, para demonstrar, de maneira concisa, como se passaram os anos de pesquisa da Comissão de Pesquisa 42 Entrevista concedida em 06-05-2009, às 15h. Nesse texto partindo da idéia de que ―a política trata das formações coletivas e dos processos de decisão‖ (ENDERLE, et AL, 1997, p. 479) considero ―política partidária eleitoreira‖ as atitudes de alguns candidatos que prometiam, no período que antecedia as eleições, benefícios como a eletrificação rural, mas que ao cabo, essas promessas, na sua maioria, não se concretizavam. 43 122 de Sistemas Alternativos de Eletrificação Rural, recebendo também a denominação de Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnológicas, tendo à frente dos trabalhos o Prof. Ênnio Amaral: a- 1973: instalação de uma rede experimental de 6 Km de extensão para uma potência de 5 KVA, empregando fio de aço galvanizado como condutor, do tipo que se utiliza em alambrados. Trata-se da rede experimental construída na Granja Coronel Pedro Osório; b- 1978: constituição da primeira comissão encarregada de estudos sobre eletrificação rural, composta por professores da ETFPEL, para verificar o desempenho da rede piloto, até aquela data e acompanhar sua operação e instalação no devir; c- 1979: desenvolvimento de um transformador monobucha, como primeiro protótipo, nas oficinas do Curso de Eletromecânica, denominado de ruralito. Palestra do Prof. Ênnio na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara Federal em maio desse ano. Publicação em 2.a edição, do manual Fios de Aço Galvanizado nos Processos de Eletrificação Rural; projeto da rede de transposição do canal entre as Cidades de Rio Grande (RS) e São José do Norte(RS), a fim de levar energia elétrica a esta; d- 1980: implantação de redes de eletrificação rural, com base no projeto alternativo proposto pela ETFPEL, em vários municípios do Estado, bem como sua divulgação em nível nacional. Incremento nas pesquisas de transformadores monobuchas pela UFSM e ETFPEL, bem como de redes pelo Sistema Alternativo. 123 e- 1981: desenvolvimento de pesquisa de equipamentos e acessórios, como chave repetidora, para-raio alternativo (descarregador de chifre), sistema de captação de descargas atmosféricas e engate espiralado. Firmado convênio com ETFPEL— UFSM — FAPERGS, para o desenvolvimento de transformadores monobucha de baixo custo. Continuação da implantação, em vários municípios, do Setor ou Departamento de Eletrificação Rural, normalmente ligado às Secretarias de Desenvolvimento Rural das Prefeituras; f- 1982: implantação de 100 Km de rede no interior do Rio Grande do Sul, destacando-se o município de Herval do Sul. As experiências da ETFPEL colaboram para a elaboração, pela CEEE (e também Eletrobrás), da Circular Normativa 01/82 de 1.o de março de 1982 (condições para a utilização do sistema MRT e condutores de aço zincado — normatização provisória). Apresentação do primeiro relatório da UFSM — ETFPEL— FAPERGS, sobre o projeto de transformadores de pequena potência; g- 1983: obtenção comprovada de custos mais baixos no processo de eletrificação rural defendido pela ETFPEL e UFSM. A Fundação de Ciência e Tecnologia, pela primeira vez, manifesta-se, em ofício datado de 25 de agosto de 1983, N/Ref.: DEPROJ/ 032723, endereçado ao Prof. Ênnio Amaral, em que sugere que ele e a fundação mantenham entendimento, no sentido de promover uma avaliação técnico — econômica do sistema. Observa-se que já eram transcorridos 5 anos, quando a CIENTEC (Fundação do RS) se manifestou. Neste ano foi apresentado o relatório da 2ª fase do projeto de transformadores de pequena potência, envolvendo UFSM — ETFPEL — FAPERGS; 124 h- 1983: em 25 de abril, o jornal O Interior, na página 3, na coluna Mateando, em matéria A luz e a CEEE, faz críticas aos dirigentes da CEEE, que não são encontrados para comentar as pesquisas do prof. Ênnio, publicadas no dia 4 de abril de 1983, na edição de Nº. 427: No que se refere ao Paraná, não contando as diversas palestras e seminários que o prof. Ênnio Amaral fez ou participou em diversos estados, foi onde suas pesquisas foram mais observadas. De acordo com a revista Eletrificação Rural Comunitária de maio de 1985, o prof. Ênnio teve as seguintes participações: a- 08-05-83: palestra na 1.a Semana de Eng. Agrícola na FECIVEL, em Cascavel-PR, sobre a redução de custos em Eletrificação Rural; b- 26-05-83: palestra na Comissão de Estudos Municipais da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, a convite do Deputado Carrion JR. O Jornal Zero Hora publicou, no dia seguinte, ―CEEE acusada de gastar demais com novas redes‖. O professor não acusou ninguém, explanou suas idéias e pesquisas sobre eletrificação rural, que, de fato, eram de custo muito baixo, se comparados às convencionais; c- 09-05-83: Ênnio Amaral é recebido pelo Secretário do Interior do Paraná, Deputado Nelton Friedrich, que o encaminha à Direção da Copel; d- 28-05-83: os professores Ênnio Amaral, e Waldemar Fuentes, expõem sua proposta de redução de custos em Eletrificação Rural, aos Secretários Deni Schartz, Nelton Friedrich, Claus Germer e aos depudados Trajano Bastos Nilso Sguarezzi, Orlando Pessuti e Gernote Kirunus; 125 e- 20-05-83: o professor palestra no auditório da COPEL sobre Redução de Custos em Eletrificação Rural; f- 12-08-83: a Escola recebe um telex, anunciando que O Governador do Paraná José Richa, viria ao Rio Grande do Sul, para conhecer as experiências de eletrificação rural em Herval do Sul. No mês de agosto, a comissão cria um documento, assinado por Ênnio Amaral, para a divulgação de todo o projeto de pesquisa aplicada, para que fosse usado principalmente pelas prefeituras, na organização do Setor de Eletrificação Rural, ficando explicitada a forma de realização de mutirão, para a construção das redes elétricas. q- 03-08-83: os jornais Zero Hora e o Correio do Povo, publicaram reportagem do encontro do Governador Jair Soares com membros da Direção da ETFPEL, Sebastião R. Neto e Indu Ferrari, com os professores Ênnio Amaral — ETFPEL e Waldemar Fuentes — UFSM, e com Júlio Silveira representante dos produtores rurais da região; h- 28-12-83: a Diretoria da Escola recebe documento do gabinete do Governador Jair Soares, assinado por seu Secretário Particular, Paulo Roberto M. Thompson Flores, em que a CEEE, em resposta a 10 itens dos quais a Comissão de Estudos Sobre Eletrificação Rural pedia revisão da Companhia, indicando que praticamente todos eles não teriam sido aceitos; i- 1984: sistematização, pela comissão de eletrificação rural da ETFPEL, do trabalho de atendimento a solicitações e consultas a respeito da construção de redes elétricas rurais. Nesse mesmo ano, elaborou-se o 126 projeto de uma rede – piloto, para os municípios de Pelotas e Capão do Leão (Açoita Cavalo e Figueirinhas). Apresentou-se o 3.o relatório (final), sobre transformadores de pequena potência pela UFSM – ETFPEL – FAPERGS; j- 10-04-84: o Diretor da Escola, Platão L. A. da Fonseca, recebe ofício de agradecimento do Prefeito de Palmares do Sul, o Engenheiro-agrônomo Ney Cardoso Azevedo, pela contribuição dada ao município, através de palestras do Prof. Ênnio, durante 3 dias, sobre eletrificação rural, estações de bombeamento de água para lavoura de arroz e experiências com a distribuição de água em vilas. Vários prefeitos participaram como ouvintes, numa platéia de 120 pessoas; l- 29-04-84: o Jornal Diário da Manhã apresenta ampla reportagem sobre obras de eletrificação rural no Município de Canguçu, onde alguns políticos aparecem em fotos, junto aos colonos, construindo a rede em processo de mutirão. No dia 18 de maio a, Associação de Vereadores do PDS da Zona Sul é recebida pelo Governador Jair Soares e pede a expansão de redes rurais com o fio de aço; m-10-07-84: a ETFPEL e CEEE ratificam acordo de ação conjunta para o desenvolvimento da eletrificação rural, ficando definidos os municípios de Herval do Sul e Piratini como áreas de pesquisa. Nessa reunião, ficou definida a ligação da rede Cancelão – Cerro Alegre, em Piratini, desde que satisfeitas condições estabelecidas pela CEEE; n-1985: execução da primeira etapa da rede-piloto projetada (Figueirinhas 12 Km). Essa rede, por estar próxima da ETFPEL (em torno de 25 km), proporcionaria a construção, operação, manutenção, pesquisas, acompanhamentos, entre outras ações, que, em outras redes, não se 127 poderia alcançar, devido às distância dessas da ETFPEL. Friso que a ETFPEL não dispunha de recursos para pesquisas, portanto, na maioria das vezes, o deslocamento de membros da comissão se realizava por meio de carro próprio; também, em geral, os partícipes da comissão faziam suas refeições nas residências dos colonos. Algumas vezes os membros levavam a própria alimentação. Fato marcante, que deve ser destacado, foi o custo do poste de concreto, usado pela COPEL em suas redes, em maio de 1983. O preço era de 4,9 ORTNs, se comparado com os de novembro de 1982, cujos preços eram de 7,92 ORTNs. Isso se deu pelo fato de que, nas propostas do Prof. Ênnio, as redes rurais utilizariam postes de madeira, cujo custo era muito menor. Nessa perspectiva, nota-se que a pesquisa era impactante, no que se referia aos custos. Por outro lado, em uma época de inflação, o poste de concreto, em vez de subir, baixou de preço, o que denota superfaturamento, é mais um dado que confirma a hipótese de que essas pesquisas contrariavam muitos interesses econômicos. Nesse ano, em 19 de agosto o Professor Ênnio Amaral faleceu. O Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnológicas (Comissão de Pesquisa em Eletrificação Rural) continuou o seu trabalho, agora sem o seu o grande mentor. A partir daí, os professores Antônio Pinto e Mário Farias, membros da comissão de pesquisa, passaram a ser seus coordenadores. Mais tarde o Eng.º Renato Allemand, responsável por um certo período do setor de eletrificação rural da Prefeitura de Pelotas, também se somou à comissão, vindo a ser professor na ETFPEL. Abaixo (Fig. 33), destaco um recorte de uma das últimas entrevista concedidas pelo Prof. Ênnio para a Revista Raízes de abril de 1985 – Nº. 107 – ano X, p. 22. Neste documento, se expressa a participação de instituições que eram convidadas por Ênnio Amaral. Explicita também que a ETFPEL estava desenvolvendo estudos para atender proprietários rurais sem recursos nem mesmo para pagar os baixos custos do sistema de eletrificação proposto. 128 Figura 33 — Ênnio Amaral, simplificar o que já é simples, para atender a todos. Com relação à rede de Piratini (Cancelão – Cerro Alegre), sonho acalentado pelo Prof. Ênnio Amaral, membros da comissão de pesquisa e comunidade do local, já há alguns anos, o Jornal o Interior, edição de 12-04-1985, traz ampla matéria, conforme a Fig. 34. Foi nessa rede, uma das últimas participações do Prof. Ênnio Amaral, nos trabalhos sociais ou de extensão. 129 Prof. Ênnio Figura 34 — Reportagem do Jornal o Interior de 12-04-1985, sobre a rede de Cancelão — Cerro Alegre. Na seqüência apresento vários momentos que ficaram registrados através de fotografias, de reportagens, documentos ou correspondências oficiais e pessoas fontes, que foram partícipes destes momentos e fatos históricos. 130 O documento referido abaixo (Fig. 35) trata – se do Projeto de Transposição do canal Rio Grande – São José do Norte (RS), a fim de levar energia elétrica a este último. Figura 35 — Ofício recebido pelo Diretor da ETFPEL do Governador Amaral de Souza, agradecendo o projeto de rede para levar energia elétrica de Rio Grande –RS, para São José do Norte—RS. 131 O documento a seguir (Fig. 36), da Fundação de Ciências e Tecnologias (CIENTEC), é bem esclarecedor, quanto às dúvidas e críticas comentadas nos meios científicos, empresariais, educacionais e de comunicação, sobre as redes de eletrificação rural, desenvolvidas na ETFPEL. Figura 36— Ofício da Fundação de Ciência e Tecnologia solicita esclarecimentos sobre dúvidas quanto às redes rurais. 132 Reportagem documentando o encontro com o Governador e membros da Escola (Fig. 37), em 3 de agosto de 1983, noticiado pelo Jornal do Comércio. À esquerda o Governador Jair Soares, de frente, os Professores Indú Ferrari e Sebastião R. Neto, o Sr. Júlio Silveira (representante dos rurícolas) e o Prof. Ênnio Amaral e Prof. Fuentes. Prof. Fuentes Governador Jair Soares Prof. Ênnio Figura 37 — Reunião de membros da comissão de pesquisa e diretores da ETFPEL, com o Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Jair Soares. 133 Uma das muitas Portarias (Fig. 38), nomeando e distribuindo responsabilidades aos membros da Comissão de Pesquisa em Processos Alternativos para Eletrificação Rural. Figura 38 — Portaria da Direção da ETFPEL nomeando membros da comissão de pesquisa. 134 O Jornal O Interior, de 25 de abril de 1983 (Fig. 39), depois de várias tentativas frustradas de entrevistar diretores e técnicos da CEEE, no sentido de buscar justificativas para tantos questionamentos por parte da empresa às pesquisas da ETFPEL, não logrou êxito e criticou a CEEE. Figura 39 — Matéria publicada no Jornal O Interior, de 25-04-1983. 135 Reportagem da Revista Raízes de abril de 1985 – Nº. 107 – ano X, p. 24, (Fig.40) textualiza ampla matéria referente as redes elétricas rurais pelo processo alternativo, justificando o seu emprego em vários tipos de propriedades. Figura 40— Reportagem da Revista Raízes de abril de 1985. 136 Nas fotos que seguem, (Fig. 41) são mostrados alguns equipamentos convencionais, de alto custo, mas também condutores, estruturas, transformadores bem como os processos de construção são aqueles preconizados pelas pesquisas desenvolvidas pela ETFPEL. Figura 41— O conjunto de fotos que mostram aspectos das redes Monofilar com Retorno por Terra — MRT ou Sistema Alternativo de Eletrificação Rural. 137 Dados das redes Monofilar com Retorno por Terra (Fig.42). Na foto superior, uma chave repetidora (de proteção). Nas fotos seguintes, são usadas molas desligadoras nas derivações dos ramais. Essas simplificações diminuíam o custo das redes em até 70 %. Fio condutor (A. T.) Chave repetidora de proteção- corta circuito Mola desligadora Rede MRT (um só condutor, o outro é a terra) Poste Figura 42 — Vista de dispositivos alternativos de baixo custo para redes MRT. 138 As fotos abaixo (Fig. 43) retratam as pequenas e médias propriedades, beneficiadas com energia elétrica. Em virtude da distância entre propriedades, é comum utilizar-se transformador individual. A rede em alta tensão chega próximo das casas. Transformador monobucha, (ruralito) Figura 43 — Propriedades rurais com o seu transformador próprio, devido às longas Distâncias entre elas. 139 5.3 A Vida Pessoal do prof. Ênnio Amaral Para a organização deste recorte biográfico, foram muito importantes a entrevista com sua filha, Virginia Sedrez Amaral, bem como os depoimentos de alguns membros da comissão de pesquisa e da direção da Escola. Eu, como partícipe da comissão de pesquisa, antes aluno e mais tarde colega de profissão, tive a possibilidade de ter uma compreensão do que se refere às falas dos entrevistados, das quais afloraram fatos e histórias da vida pessoal e profissional de Ênnio Amaral. Como, neste trabalho, frequentemente lanço mão do termo imbricamento, consultei ao Dicionário Aurélio44, onde encontrei: dispor (coisas) de maneira que só em parte se sobreponham umas às outras, como as telhas do telhado ou as escamas do peixe (p. 263). Considerando que aqui pretendo demonstrar que a vida pessoal e a profissional do Professor estavam ligadas à Instituição ETFPEL, aos seus colegas, aos seus alunos, aos seus tantos amigos, por conta, talvez, de sua simpatia, carisma e, em especial, a grande capacidade de unir pessoas dispostas a transformar, sob sua liderança, idéias, ideais, em bens tecnológicos que tinham o poder de melhorar o viver das comunidades. Daí, a minha insistência no uso do termo imbricamento, pois ele define a trajetória de vida Ênnio Amaral. Justificando o que apresentei acima, busco as palavras de Abrahão (2004, p.13) [...] a história pessoal e profissional, antes de ser unicamente individual, tem natureza social, pois se inscreve na e constrói a própria História da Educação e da Profissão Docente [...]. A fala da filha Virginia, durante a Semana Santa de 2010, quando todos os irmãos estariam reunidos com a mãe, Dona Maria Ieda, no sítio da família Amaral, na Serra das Asperezas, traz informações que, segundo ela, mexeram nas 44 Dicionário Aurélio Eletrônico-Século XXI. Versão 3.0. Lexikon Informática Ltda. Ed. Nova Fronteira, 1999. 140 lembranças adormecidas da família, o que resultou em um colóquio agradável de rememorações. Nesse relato, encontrei mais indícios do imbricamento da vida pessoal e profissional. Diz ela que, na época, já havia inventado a vela incandescente de trator, a qual fabricava na oficina (de casa), e viajava ao interior, para vendê-la, onde se sensibilizou com a miséria no campo. Impulsivo, fascinado por aerodínamo, adorava viajar, e, nos finais de semana, convidava a família para viajar e vender seus projetos. Na fala de outra filha novamente encontro o imbricamento. Citando sua irmã Pura Alice diz que, consideravam o trabalho do pai como exemplo, que seguiam e do qual sentem orgulho até hoje. Os irmãos aprenderam a se divertir, nos finais de semana brincando em granjas e levantes (bombeamento de água mecanizado para irrigar lavouras); aprenderam a conviver e viver no campo, com o mínimo de estrutura. O Prof. Ênnio prestava assistência técnica para granjas e outros estabelecimentos e não raras vezes, levava a família consigo, quando ia trabalhar. A oficina em que desenvolvia seus Inventos, consertos elétricos e mecânicos. Comprava ferro velho e montava motores em sua casa. Por falta de espaço, os carros eram consertados na rua. Segundo Pura, meu pai teve sempre cheiro de mecânica e muitas prefeituras vieram a Pelotas, inclusive comitivas inteiras, onde lembro da casa se tornar pequena, pois um dos locais onde ele recebia as comitivas era em casa. Seguindo a narrativa, quando ele sentiu a realidade do campo, encontrou nova razão para pesquisar e começaram os estudos de eletrificação rural. Ênnio Amaral queria achar um jeito de a cidade ir até o campo, com conforto. Começa aí outro trabalho, pesquisas, viagens. O trabalho, por muitas vezes, esteve acima da família. Aos 46 anos, foi pai pela sétima vez e a esposa contou com o auxílio dos filhos nesta hora, pois ele viajara para uma conferência. Nos últimos anos de sua vida, intensificaram-se as viagens e, como antes era costume, já não poderia levar a família, que ressentia de falta desse convívio. 141 Apesar das viagens, o professor continuava com suas pesquisas e trabalhos nas comunidades, e, trazia para a sala de aula os conhecimentos auferidos nesses encontros. Nos depoimentos dos alunos e professores, percebi a importância para o ensino, desses movimentos. Quando o assunto é CEEE, a opinião de Virgínia é semelhante, para não dizer igual, à de alguns membros da Comissão de Pesquisa: a princípio soubemos que era por ser técnico de nível médio, depois, por seus colegas técnicos também serem donos de empreiteiras [...] foi alegado até fato político, partidário [...]. Perdeu muitos amigos, por se tratar de um projeto, de um idealismo acabando por se tornar mito. Quando se trata do apoio da ETFPEL e outras instituições, de pessoas físicas e políticos, a manifestação dos filhos, nas palavras de Virginia, deixa transparecer mágoas e ressentimentos. Menciona o grande amigo o Dr. Júlio Silveira, o Prefeito de Herval, Otoni Amaro. Suas palavras foram [...] dali (da Instituição), deveria partir a cobrança dos demais órgãos. Ele se desgastou a ponto de adoecer e, infelizmente, foi pouco assistido [...]. Com relação aos políticos, não havia (e hoje há), interesse de implantar redes para pobres e desassistidos! Burros! Em longo prazo, evitariam os cinturões de miséria nas cidades, que hoje tentam evitar com os assentamentos‖. Quando eu lhe pedi para falar sobre o pai, ouvi adjetivos semelhantes aos de outros entrevistados; ―homem simples, que nada mais é do que um exemplo, humilde, moralista, sincero, provedor, batalhador, inovado‖. Esses adjetivos eram comungados por toda a família. Ao pedir para narrar a vida de seu pai, afloraram alguns dados significativos, que até aquele momento me eram desconhecidos. Um deles foi a cirurgia realizada em 1956, de redução do estômago, para a retirada de úlcera desenvolvida em sua época de quartel, o que o deixou com seqüelas alimentares. Mas, em 1954, conforme atestado médico, já comentado na trajetória estudantil, ainda como aluno, 142 ele fora acometido de doenças estomacais severas, o que não foi mencionado na fala de Virgínia, levando-me a crer que não é sabedora, ou que não foi lembrado. Outro fato mencionado é que o prof. Ênnio, até 1964, era Católico, freqüentava a Igreja, mas, ocorrido o golpe militar, em 1964, torna – se, segundo sua filha Virginia, sem crença. Para elucidar o fato da mudança radical de Ênnio, em relação a suas crenças, busquei algumas leituras, como (BETIATO, 1985), (BUENO, 1997), (PUCCI, 1984), que escreveram sobre a participação da Igreja nos acontecimentos de antes, durante e após o golpe. Com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, para impedir que o seu Vice João Goulart, assumisse a presidência, implantou-se o parlamentarismo. João Goulart, com o apoio do povo, de sindicatos, dos partidos, movimentos e organizações de esquerda e de alguns membros das forças armadas conseguiu antecipar o plebiscito, que seria realizado em 1965, para definir a forma de governo, para 1962. Com a grande vitória do presidencialismo, João Goulart retornou ao comando da nação. Com isso, começou a implantação das reformas de base, tais como mudanças no sistema financeiro, no sistema educacional, no agrário, no urbano e, também, no fiscal. Essas mudanças, para os da esquerda, eram insuficientes, para os conservadores, estar-se-a caminhando para o comunismo ou cubanismo, segundo alguns historiadores. Portanto, o Brasil chegara a um ponto em que ou se defenderiam as reformas de base, buscando a industrialização com mais nacionalização, ou, com uma ruptura histórica, seriam implementadas mudanças que levariam a uma maior abertura ao capital internacional, como desejavam as classes média e alta, a elite, os partidos e forças conservadoras e, para isso, contavam com o apoio da maioria das forças armadas. 143 Romanelli (1999, p. 193) esclarece bem o que acontecia Os rumos do desenvolvimento precisavam então ser definidos, ou em termos de uma revolução social e econômico pró-esquerda, ou em termos de uma orientação dos rumos da política e da economia de forma que eliminasse os obstáculos que se interpunham à sua inserção definitiva na esfera de controle do capital internacional. Foi esta última a opção elevada a cabo pelas lideranças do movimento de 1964. A Igreja, historicamente, sempre exerceu o seu poder de inculcar ou influenciar o pensamento político — ideológico e social no Brasil e; os seus setores mais conservadores, que eram a grande maioria, estavam ao lado daqueles que combatiam o comunismo. Nessa perspectiva, apenas os setores mais progressistas da igreja estavam apoiando o governo de Jango, como algumas organizações de base. No combate ao comunismo, a Igreja mandou vir dos Estados Unidos um padre anticomunista ferrenho, que usaria da arte da persuasão para que, nas missas fosse inculcado, principalmente nas mulheres, o combate ao inimigo, o demônio comunista. Esse padre, Patrick Peyton, lançou a Campanha do Rosário em Família45, cruzada religiosa, cujo lema era a família que reza unida permanece unida. Em meados de março de 1964, empunhando rosários, milhares de mulheres tumultuaram um comício de Brizola, em Belo Horizonte. Em 2 de abril de 1964, eram várias passeatas, no Rio de Janeiro, em apoio ao novo regime. Portanto, com raras exceções (Dom Helder Câmara, Dom Candido Padim, Dom José Maria Pires e outros), a igreja apoiou e deu credibilidade ao golpe de 1964. No entanto, passados alguns anos, a Igreja tomou outras diretrizes com relação ao regime imposto. Consequentemente pode-se entender a descrença e a decepção de Ênnio Amaral com a Igreja Católica, em virtude de que ele se dizia socialista e brizolista46 ferrenho. 45 A história desse movimento e outros da sociedade civil, em apoio ao Golpe de 1964, além de autores citados no texto, acessar: < jeocaz.wordpress.com/.../atuacao-das-mulheres-no-golpe-militarde-1964/ >. Acesso em 12 fev 2010. 46 Brizolista é um termo utilizado fora da academia, mas que politicamente significa ser seguidor dos ideais de Leonel de Moura Brizola; líder político de nosso País desde a década de 1950. 144 A narrativa do Prof. Jorge Moraes, respondendo à pergunta sinta-se a vontade para falar sobre todos os aspectos da vida do Prof. Ênnio Amaral, que as questões antes, ou acima proferidas não contemplaram, é uma síntese do que representava, para o grupo de amigos que se reunia na Semana Santa, no sítio de Ênnio, no interior no município de Piratini (RS). Sua fala contempla o professor, o pai, o marido, o amigo [...] Um dos segmentos mais importantes a ser prolatado, dando-nos uma visão do homem, cientista e professor, é observá-lo no ambiente familiar. Como se havia o Tio Ênnio fora da escola? Seus projetos eram relegados a um segundo plano? Sua linguagem era distinta da usada em sala de aula? Sabemos que é muito difícil alguém se afastar integralmente daquilo com que atua com tanto denodo. O Ênnio pai, o Ênnio marido foi uma pessoa espetacular, venerado e reverenciado pelos filhos, que não eram poucos, e alguns, à semelhança do genitor, honraram-no na simplicidade, no procedimento honesto, e, inspirados no mentor, seguiram a sua atividade técnica como foi o caso de seu saudoso filho Daltro. Tio Ênnio tinha paixão muito grande por um pedaço de terra em Piratini. Lá punha em prática todo seu gênio inventivo. A solidão e a rudeza da terra foram elementos de inspiração. Era um desafio constante, porque o que mais havia, naquele fundão de mundo, era pedra. Campo, somente nas estampas dos calendários que adornavam as paredes do galpão e oficina. O aspecto inventivo do Tio Ênnio ali aflorava. As provas, as evidências, brotavam na sua inquietude fervilhante. Se faltasse uma janela, uma porta, ele conseguia enjambrar, eficientemente, com pedaços de folha de latas de óleo, alguns pregos enferrujados, arames... sucata, e funcionava. Motores, há muito desativados, mereciam sua particular admiração. Tirava uma vela daqui, um fiozinho dali, ficava um, dois dias, dissecando, remontando, improvisando, até que, com longas risadas atestava a consagração de seu esforço. Seu laboratório campestre era um atestado da desorganização. Contudo, ele encontrava o que queria até de olhos fechados. Inesquecíveis horas de integração foram vividas por um grupo privilegiado de amigos, colegas e professores da ETFPEL. Convidamos inicialmente o Dr.. Cornellis, professor de nossa escola e hoje médico residente da Holanda. E foram aderindo Gilfredo Rodrigues Renck, Carlos Alberto Matos Soares, Rubens Reis Freitas, Volni Machado Lisboa, João Manoel de Souza Peil, Gilberto Grecco, Rolf Hilmar Litchnow, Rubi Münchow, Rudi Münchow, Paulo Nunes Coutele, Neuci Bório, Mário Renato Azevedo, Seu Osmar (ferramenteiro) Luís Felipe Coelho, Paulo Luís Carré, Ronaldo Moreira, Élbio Pedra, Renato Fernandes, Francisco Guimarães, Idílio Brea Victória, Nélson Oliveira, Ignácio Vianna, Ênio Mancini, 47 Gonzaga, Reinaldo, Padre Ozy. Confeccionávamos livretos de cada caçada , entregavam-se diplomas e lembranças de participação. Tio Ênnio era o centro das atenções. Suas tiradas tais como ―cola de aerodínamo‖ para quem trocava de posição partidária ou de convicção ideológica; ―Cafuringa‖ em relação a atletas (e ele nada sabia de futebol): ―pomba com as asas sangrando‖ referindo-se a mulheres bonitas que recebiam olhares ou propostas; ―soda cáustica‖ a quem não conhecia limites; ―bodocaço‖ ato ou gesto agressivo. Brizolista ferrenho, em especial pelo nacionalismo e pela implantação da política educacional, multiplicando escolas e inspiradoras dos CIEPS. Saúde debilitada, comprometimento estomacal. Nem sempre obedeceu aos cuidados recomendados. Mesmo em sua fragilidade física, encontrava forças para longas caminhadas. Conhecia a palmo as grotas, os matos, as picadas da Serra das Asperezas. Defensor ardoroso da natureza, ecologista. Não 47 O termo caçada, nesse texto é utilizado como uma metáfora. Em verdade não havia nenhuma forma de abate de qualquer forma de caça. O termo caçada era utilizado para expressar a reunião de pessoas que se deslocavam para o interior da cidade de Piratini-RS e que na verdade nessas reuniões ―caçavam‖ ideais, amizades, lazer que caracterizavam uma congregação de pessoas com uma ideal comum. 145 só jogou ao solo sementes arbóreas, semeou idéias, granjeou admiradores, fez sua parte e a de tantos para a construção de um mundo melhor. Propalava que o educador não é o que despeja, impensadamente, conhecimentos. A missão de quem educa é instrumentalizar o educando, de tal sorte que ele descubra as variantes e crie, com recursos próprios, alternativas para chegar aos objetivos colimados. Ênio Jesus Pinheiro do Amaral: um educador, um cientista, um homem a quem devemos a admiração, o respeito e o privilégio de sua amizade 48 (grifos meus. Informação verbal) . O Prof. Gilfredo Renck enriquece a narrativa acima, dizendo [...] E para nós professores, e para nós alunos, para nós homens da ciência e da tecnologia, mais do que tudo, ficou o exemplo daquele homem fraco, mas que era um férreo defensor da tecnologia, e um férreo defensor de proteger, apoiar, e levar a eletricidade aos mais recônditos rincões da sua querência. [...] Eu sou suspeito de falar mais detalhes sobre o Ênnio, porque eu era muito amigo, eu freqüentava a casa do Ênnio, nós fazíamos, na época, caçadas na Semana Santa, na residência do Tio Ênnio, na Serra das Asperezas, no município de Piratini. Eu convivia com ele, eu convivi com seus filhos, com seus primos, eu fui professor de primos do Ênnio, de sobrinhos do Ênnio e eu, até hoje, a vida é a melhor escola, diz um sábio ditado, até hoje, me inspiro em coisas que o Ênnio deixou como lição de vida, principalmente a humildade. Ele era um homem humilde, ele era um homem amigo, ele era um homem rústico, e ele era um sábio por natureza. Eu sempre digo que não acredito em pessoas inteligentes, eu sou professor há 43 anos, e é raro a gente dizer – olha, tal aluno é inteligente, mas esse de fato era muito inteligente, ele era como se costuma dizer – um legitimo professor Pardal. Ele estava sempre estudando uma maneira de racionalizar um processo, de construir alguma coisa de uma maneira mais simples, enfim, ele era um pratico por excelência. Aquelas pessoas que hoje são tão raras no nosso meio. Hoje se valoriza muito a formação acadêmica, e não se valoriza o raciocínio, não se valoriza o trabalho feito com as mãos, como ele fazia, feito com o cérebro como ele fazia, sobre tudo feito 49 com o coração como ele fazia (grifos meus. Informação verbal) . Outra narrativa significativa vem do senhor Reinaldo Afonso do Amaral, primo irmão do prof. Ênnio, que salienta a precocidade de conhecimentos e a busca de soluções para problemas técnicos. De sua fala, extraí o que segue [...] quando ele (Ênnio) foi trabalhar, aos 15 anos aproximadamente, com meu pai na padaria, quando as máquinas estragavam, a luz elétrica, ele (Ênnio) é que consertava; [...] a CEEE dificultava muito o trabalho do Ênnio [...] no início, o 48 49 Entrevista concedida pelo Prof. Jorge Moraes em 12 de maio de 2009, às 8h30min. Entrevista concedida pelo Prof. Gilfredo Renck em 6 de abril de 2009, às 10h. 146 50 apoio de Piratini (prefeitura) foi apenas moral. O tio Raul Amaral no início é que deu todo apoio para ele (Ênnio). E o Ênnio disse: a primeira instalação vai ser aqui na sua propriedade. O Ênnio fez o ramal com cerca de um quilometro para eletrificar a propriedade do tio Raul Amaral, que era um local de difícil acesso. Esse ramal foi ligado porque a CEEE ou Prefeitura autorizou. Me lembro que o tio Raul, que só tinha luz de candeeiro e lampião. O tio, quando acendeu a luz na casa dele, ficou tão assombrado que depois de 48 horas, deu um infarto e morreu. [...] no inicio de 70, fomos numa granja que o Ênnio dava manutenção, vendo que as mulheres da vila retiravam água de um poço muito fundo, mas que tinha muita água, puxando com corda um balde, ele foi lá e olhou e disse: nós podemos puxar água com uma bomba. E foi o que fez, colocando uma bomba elétrica, fixada a uma câmara de ar de trator, e largou para dentro do poço, quando ligavam o gerador à diesel, a bomba puxava água para caixa d’água e daí era distribuída em várias torneiras pela vila [...]. Quando voltava na granja, as mulheres agradecidas ô chamavam de o homem da água, para elas foi uma 51 maravilha ter água na porta de casa [...]. (grifos meus. Informação verbal) . Do exposto acima, percebe-se mais uma vez que, pela observação em ação, o Prof. Ênnio mantinha diálogo, no sentido fenomenológico, com aqueles moradores. E, nesse dialogo, buscou a solução para uma problemática, o que conforma uma ação social, uma ação extensionista. Como um pequeno resumo desse sub-capítulo, retirei alguns fatos que o Prof. Ênnio conviveu. Nas narrativas, fica explicitada a preocupação do prof. Ênnio com as tentativas de alguns membros de determinados órgãos em querer desqualificá-lo e, até mesmo, chantageá-lo. De acordo com o testemunho do Prof. Sebastião, Ênnio Amaral teria recebido uma proposta em dinheiro, do grupo importador de cobre. Segundo o Prof. Jorge Moraes, os entraves eram quase intransponíveis. Ênnio encontrou, na sua vida, muita rejeição a seus projetos, porque sua idéia era baratear os custos, destacando-se a oposição da própria CEEE, de acordo com o Prof. Gilfredo. Por isso os empresários eram contra, segundo testemunha de narrativa do Diretor da ETFPEL, Prof. Platão. 50 O uso da expressão tio Raul não significa a exploração de privilégios pelos laços familiares, mas sim uma referência ao apoio recebido nos primórdios das pesquisas. 51 Entrevista concedida pelo Sr. Reinaldo Afonso Amaral em 2 de junho de 2010, às 15h. 147 5.3.1— Aspectos de lazer e prazer de Ênnio Amaral e seus colegas Passo a textualizar sobre uma programação denominada de operação ou caçada, que de caça, de acordo com o Prof. Jorge e Gilfredo, não tinha nada, caçava–se amizade, confraternização, divertimento, lazer e cultura. Em conversa como prof. Jorge Moraes ele citou, ―às vezes as conversas eram direcionados para assuntos da Escola, passávamos a discutir educação‖. (grifos meus). Estas operações começaram em 1968, sempre na Semana Santa, no sítio do Prof. Ênnio, adquirido, aos poucos, a partir de 1962, localizado na Serra das Asperezas, interior do Município de Piratini (RS). Segundo a fala do Prof. Jorge Moraes, nas primeiras operações eram poucos os participantes, mas a cada ano o grupo crescia em número. Reunido professores, servidores e amigos, partiam na quarta-feira às 24 horas rumo às terras do ―Tio Ênnio‖. Era uma espécie de acampamento, pois quando lá chegavam se acomodavam na casa e galpão da maneira que fosse possível. Assim, durante três dias se desenvolviam as mais diversas atividades, bem ao modo das tradições gauchescas. Cada operação, a cada ano, levava uma denominação, a título de ilustração, cito — ás: em 1968: Bosta na Cancela; em 1969: Gauderiando pelos Pagos; em 1970: Módulo Aspereza; em 1971: A Caçada do Século; em 1972: Lustro Crioulo; em 1973: Tapera da Saudade; em 1974: Safári Etepeano; em 1975: Piazito Carreteiro; em 1976: Negrinho do Pastoreio; em 1977: João Barreiro; em 1978: Coruja de Campo; em 1979: Cachoeira do Itapemirim; em 1980: À Sombra do Umbu; em 1981; Chaleira de Casco Preto; em 1982: Reverência Crioula; em 1983: Camoatim. 148 Estes sugestivos nomes tinham a ver com nossas tradições culturais campeiras ou gauchescas. A última caçada acampamento foi em 1983, denominada de Operação Camoatim.Os Profs. Gilfredo e Jorge Moraes, ofertaram-me um pequeno livro onde estão todas as tratativas, horários, mapa de como chegar ao local, atividades, divisão de tarefas e os responsáveis por elas, o cardápio de cada refeição, a relação de alimentos, de remédios, entre tantos outros. Todo o Livro é recheado de humor, de sentenças gaúchas, poesias, entre outros temas. Com a intenção de brinca, ou de fazer um a analogia com os trabalhos de ensino, pesquisa e extensão do Prof. Ênnio e membros da comissão, na página 6 do livro, consta: Operação Camoatim; Localização: Piratini (m) (ESTÂNCIA DO COBRE E DO ALUMÍNIO) – Propriedade do prof. Ênnio de Jesus Pinheiro do Amaral. Geograficamente situada entre a Serra das Asperezas e o Pico da Neblina. Evidencio que esta confraternização entre vários professores e amigos, tem sua gênese no ambiente escolar, também das seguidas idas às comunidades, notadamente as rurais, com esta perspectiva, é possível inferir que possua uma base curricular, introjetada pelos próprios professores, servidores e amigos como um ato de solidariedade, de amizade, união que corroborava de forma positiva com o cotidiano da vida escolar. Diante desse fato, e pela importância que o próprio Prof. Ênnio Amaral, colegas e amigos demonstravam nessa atividade, que observei em muitas das conversas e entrevistas, me levam a colocar nas próximas páginas, o conteúdo da ultima caçada, ou Operação Camoatim. Em cada página, a leitura, interpretação e imaginação, será a própria análise, dessa categoria, que denomino de aspectos de lazer e prazer de Ênnio Amaral e seus colegas, que entendo como parte de sua história de vida. O livreto, além da capa, possui 16 páginas que serão apresentadas em sequência compondo assim, partes de uma mesma figura (Fig. 44). 149 Figura 44— Operação Camoatim 150 151 152 153 154 5.4 Homenagens à Ênnio Amaral O Professor Ênnio Amaral recebeu algumas homenagens em vida, aquelas ofertadas a professores de carreira, oferecidas pela Escola pelos serviços prestados além daqueles de dever, inerentes à própria profissão, e outras, de diferentes instituições, também pela sua contribuição em diversas áreas. Considero importante mencionar que o professor era avesso a homenagens. Mas, as homenagens póstumas foram aquelas que efetivamente vieram a reconhecer o seu trabalho na área do conhecimento, notadamente no campo associativo com a extensão, ou seja, pelos relevantes serviços sociais prestados à comunidade escolar e às comunidades de diversos municípios, de diferentes estados brasileiros. Para alguns colegas, professores, amigos, simpatizantes, e pessoas que conheciam seu trabalho, suas pesquisas, o seu nome deveria ser mais lembrado, agraciado com outras homenagens, afora as que recebeu. Que homenagens póstumas recebeu o Prof. Ênnio Amaral? E, em vida? Quais? Onde? Por iniciativa de quem? Essas questões estão textualizadas ao longo desse trabalho, não necessariamente nessa ordem. Assim, apresento essa dissertação, também como uma forma de homenageá-lo, singelamente. As pesquisas que estou ensejando, relativas a essa categoria, levaram-me a dificuldades que, em princípio, pareciam não existir. No entanto, de posse de milhares de documentos oficiais, textuais, imagens, entrevistas, dentre outras fontes, esses não me ofertaram, em sua totalidade, as respostas buscadas. Segundo Virgínia, uma das filhas de Ênnio Amaral, muitas foram as homenagens de câmaras de vereadores, prefeituras de algumas cidades, que batizaram ruas e escolas com o nome de Professor Ênnio Amaral. Os dados são imprecisos, até porque seu filho Daltro, manteve sob sua guarda, em sua casa alguns documentos e objetos que pertenceram ao professor. Como Daltro veio a falecer, vítima de uma descarga elétrica natural (raio), esses objetos ficaram com 155 sua esposa, com a qual estou procurando manter contato, visto que ela mora em Santa Maria-RS. Assim, este subcapítulo, reveste-se não de incertezas, mas de incompletudes. Para melhor textualizar os registros das homenagens recebidas pelo Prof. Ênnio Amaral, dividirei esta categoria em duas partes: em vivo e post-mortem. Enquanto estava vivo, Ênnio Amaral recebeu as seguintes homenagens: a) em 10 de setembro de 1977, recebeu, da Direção da ETFPEL, uma placa de Honra ao Mérito (Fig. 45); b) em 10 de outubro de 1981, por ocasião dos festejos do aniversário da ETFPEL, recebeu a medalha de Amigo da Escola (Fig. 46); c) no ano de 1981, ainda, em Pelotas, recebeu o Troféu Paulo Padilha, referente ao Mérito Zona Sul II Edição; d) Recebeu o Título de cidadão dos municípios de Herval do Sul, Formigueiro e Putinga. Figura 45 — O Prof. Ênnio recebe placa de Honra ao Mérito 156 Figura 46 — O Prof. Ênnio recebe placa de Amigo de Escola. O passamento do Prof. Ênnio se deu e 17 de agosto de 1985, a Fig. 47, refere-se à página do Jornal Diário Popular de 19-08-1985. Figura 47 — Notícias sobre o passamento do Prof. Ênnio veiculadas em vários órgãos de imprensa da região. 157 As homenagens post-mortem foram expressivas: a) em outubro de 1885, o Pavilhão do Curso de Eletromecânica passa a denominar-se Ênnio Amaral (Fig. 48); b) em 27 e julho de 1987, o Rotary Clube — Pelotas Norte ofereceu uma placa in memoriam, a Título de Reconhecimento aos serviços prestados às comunidades; c) o município de Capão do Leão ofereceu a placa de Reconhecimento pelo Trabalho e Dedicação em favor da Eletrificação Rural, em 22 de janeiro de 1988; d) o Título de Cidadão Pelotense veio, em 1988, por iniciativa do Prof. Paulo Luis Carré da Costa e, em conseqüência desse fato, uma rua da cidade de Pelotas, situada no Bairro Jardim Europa, passou a se denominar Rua Prof. Ênnio Amaral; e) nessas homenagens póstumas, ainda foi agraciado como nome de rua nos seguintes municípios: Piratini, Putinga, Herval do Sul, Formigueiro e São Sépe; f) também algumas Escolas foram denominadas com seu nome nos municípios de Putinga e Herval do Sul. E, as redes de eletrificação rural, que foram motivações do seu trabalho, foram objeto de homenagem recebendo eu nome. Abaixo (Fig. 49) a placa da rede de Figueirinhas — Açoita Cavalo, na foto ao lado (Fig. 50) relativas a sua inauguração, estavam presentes, da esquerda para a direita, o Prefeito de Pelotas 158 Bernardo de Souza, o Deputado Estadual Érico Pegoraro, o Diretor da ETFPEL, o Prof. Platão Louzada A. da Fonseca, o Vice-diretor da ETFPEL, o Prof. Sebastião Ribeiro Neto e o Prefeito do Capão do Leão Getúlio Vitória. Figura 48 — O pavilhão do Curso de Eletromecânica recebe a denominação de Prof. Ênnio Amaral. Figura 49 — Placa em homenagem ao Prof. Ênnio, a Rede de Figueirinhas Açoita-cavalo recebe seu nome 159 Figura 50 — Autoridades presentes na inauguração da Rede Figueirinhas — Açoita-cavalo Editorial do Jornal Diário Popular de 06-09-1988 (Fig. 51) em suas últimas frases, assim textualiza ―A verdade é que nem o Estado gaúcho, e nem mesmo Pelotas, demonstraram ainda o devido reconhecimento pela obra do professor Ênnio Amaral. Pelotas, sobretudo, deve-lhe uma homenagem‖. (Cópia Eletrônica). 160 Figura 51 — Editorial do Jornal Diário Popular, de 06-09-1988. Em 10 de Novembro de 2009, realizou-se a 99.a Sessão Ordinária da Câmara Legislativa Estadual (RS), em que o Deputado Estadual Nelson Härter presta homenagem ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio- 161 Grandense (IFsul), criado pela lei Nº. 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Em seu pronunciamento, referiu-se ao Prof. Ênnio Amaral, dizendo [...] Lembrava-me hoje pela manhã que, ainda no período em que era vereador em Pelotas [...], o professor Ênnio Amaral implantou em Pelotas a utilização do fio de aço galvanizado nos processos de eletrificação rural, através do Núcleo de Estudos e Pesquisas Tecnológicas. Esse seu feito barateou o custo e levou o desenvolvimento para a zona sul. Naqueles momentos de dificuldades, foi encontrada no trabalho do professor Ênnio Amaral, realizado na nossa escola técnica, uma alternativa para levar a eletrificação rural aos agricultores. Sabemos o quanto isso significou para o desenvolvimento do nosso Município e da região sul do Estado. Considero relevantes as palavras do Deputado que, em uma homenagem ao IFsul, traz o passado da Instituição, que é significativo na comunidade, sendo que uma etapa dessa história se refere aos trabalhos desenvolvidos pelo Prof. Ênnio Amaral, o qual dessa forma foi igualmente homenageado. A fundação de apoio ao Ifsul, criada quando esse se denominava CEFETRS, com a denominação de FUNCEFET, segundo informação de sua atual diretoria, passará a se chamar Fundação Professor Ênnio Amaral. 162 6.0 QUINTO CAPÍTULO — categorias Ao analisar as narrativas geradas pelas entrevistas semi-estruturadas, documentos, fotos, jornais, revistas, dentre outros, levando em conta o olhar teórico do pesquisador e o lugar dos sujeitos que produziram os relatos, parti para o processo de construção teórica dessa experiência. Penso que pode haver alguma relatividade nas falas, em função da emoção, das lembranças, do tempo, mas creio que não houve prejuízo à essência do que foi dito. Saliento que, no relatório, as entrevistas não se mostram na íntegra, mas, na organização das categorias, muitos recortes dessas narrativas são expressos. Os fatos foram organizados a partir do que havia de comum entre eles, pois, conforme Moraes (1994, p.7) ―a categorização é um procedimento de agrupar dados considerando a parte comum existente entre eles‖. Nesse exercício de deciframento, procurei ir além do manifestado, auscultando o que estava oculto ou latente, mas sempre presente nas narrativas, nos documentos, nas fontes, de um modo geral, visto que uma entrevista, depois de transcrita, transforma-se em documento. Nessa etapa do trabalho, tive alguma dificuldade para separar os depoimentos, alguns documentos, pois muitos aspectos se sobrepuseram , se entrelaçaram, criando uma quase impossibilidade de perceber com clareza a parte comum. Saliento que essa separação tem um propósito didático, com a finalidade de favorecer a compreensão teórica da pesquisa, pois o sentimento de amálgama gerado pelos achados da pesquisa é forte. Dessa forma, organizei as seguintes categorias, caracterizadas como a extensão, o companheirismo, a negação do conhecimento não acadêmico, mesmo sendo inovador, e a perda social, com a morte do professor. 163 6.1 Primeira Categoria: a extensão Procurei, nessa categoria, mostrar como se deu o retorno do trabalho desenvolvido no campo e sala de aula — laboratórios e oficinas. Esse aconteceu tanto para as comunidades, que tiveram suas demandas atendidas, como para as instituições envolvidas nos processos, com a efetiva aplicação e construção do conhecimento. Evidenciei, ao longo de minhas pesquisas, a existência de um imbricamento entre a vida pessoal e profissional do Prof. Ênnio Amaral, que me leva a decalcar Bédarrida (2006, p. 227): ―nele existe apenas uma consciência e somente uma: sua consciência de professor é sua consciência de homem‖. Esse imbricamento viria a se repetir na categorização, principalmente no que se refere às duas primeiras — extensão e companheirismo, coligindo com o que teorizam autores como Freire (1992) e Buber (1982, 2001). No que se refere ao ensino, houve a reconstrução do conhecimento, com a alteração do programa da Disciplina de Instalações Elétricas do Curso de Eletromecânica, para contemplar a unidade de Projeto Eletromecânico de Linha de Distribuição, que gerou um polígrafo mimeografado. Também houve alterações no programa da Disciplina de Distribuição de Energia Elétrica do Curso de Eletrotécnica, sendo o professor dessa disciplina membro da Comissão de Pesquisa e professor do Curso de Engenharia Agrícola da UFPEL, à qual os conhecimentos foram estendidos. Realizei essa análise, por meio de documentos do arquivo do IFsul, através das narrativas de pessoas como Darci Roberto Schneid, ex-aluno do Curso de Eletromecânica, atualmente empresário de médio porte, atuando justamente em construção e manutenção de redes de distribuição de energia elétrica; do ex-aluno Cleber Fernando do Amaral, formado no Curso de Eletromecânica; de Júlio Elch S. Silveira, ex-professor e Diretor da Faculdade de Odontologia, pecuarista de Herval do Sul; dos professores Gilfredo Rencke, Jorge Moraes, Platão L. A da Fonseca e Sebastião Ribeiro Neto. Destaco o depoimento de Virginia Amaral, citando sua irmã, Pura Amaral, em que ficou evidenciada a criação do Setor de Eletrificação Rural em 164 várias prefeituras de cidades do Rio Grande do Sul, tais como Pelotas, Piratini, Putinga, Herval do Sul, Formigueiro, Palmares do Sul, entre outras. Em outros estados do País, como Paraná, Espírito Santo, Goiás, a eletrificação rural foi organizada com base no processo de construção de redes preconizado pelo grupo de pesquisa da ETFPEL. Havia ainda, envolvimento de outras instituições de ensino e pesquisa, tais como a UFSM e FAPERGS, que, juntamente com a ETFPEL, desenvolveram unidades transformadoras compactas e econômicas, além da participação da CEEE, através de vários departamentos e colaboradores, como o engenheiro Flávio Pinho. Também participaram dessa empreitada empresas privadas, tais como a Siderúrgica Belgo-Mineira, na construção de arame ou fio de aço com secção circular, com dupla galvanização, as empresas Trafo e Weg Transformadores, na construção das unidades transformadoras compactas. Houve a participação de políticos, Prefeitos, Vereadores, Deputados Federais e Estaduais, Governadores do Estado do Rio Grande do Sul, Amaral de Sousa e Jair Soares, do Paraná, José Richa. Saliento a participação de um cidadão que se envolveu na solução de várias reivindicações da comunidade de Herval do Sul, o Sr. Júlio E. S. Silveira. Tomaram parte desse processo, além de professores e alunos de instituições citadas, e outras não, por falta de prova documental, mas que juntamente com vários setores que compõem a comunidade e a sociedade, de maneira geral, desempenharam ou constituíram um verdadeiro exemplo de trabalho social, ou seja, a extensão. A solução de problemas, o ensino e a pesquisa se deram tanto nas instituições educacionais, como na própria comunidade, houve o registro e a difusão dos objetivos alcançados, em acordo com o que coligem teóricos, estudiosos e outros órgãos institucionais, tais como Buarque (2000), Freire (1992), Forproex (2009, 2010), Melo Neto (1996, 1997, 2010), Jezine (2006), Santos (2004), Saviani (1986), entre outros. Foi possível evidenciar as seguintes características nos trabalhos do Prof. Ênnio: 165 - ausculta, e problematização das necessidades das e nas comunidades; - ensino desenvolvido em sala de aula, laboratórios, oficinas e locais em que ocorriam os processos de extensão; - ensino em conhecimentos já construídos e em construção pela pesquisa e extensão; - extensão com características próprias de trabalho social; - ocupação de espaços sociais deixados pelo poder público; - envolvimento da maioria da comunidade (moradores) do local em que ocorria a extensão (mutirões); - Participação de professores, alunos, servidores, membros da comunidade, prefeituras e outras instituições públicas e privadas; - valorização e cruzamento dos conhecimentos das comunidades com os seus, movimento em que acontecia a dialogicidade do trabalho coletivo; - companheirismo e solidariedade; - retomada dos resultados de todas as atividades, repensadas criticamente, publicadas e difundidas para toda a sociedade; - transdiciplinaridade. Para evidenciar o que textualizo, trago alguns recortes documentais dessa categoria: - da Comissão de Pesquisa da ETFPEL: [...] escalando os muros de seu academicismo exclusivo, a ETFPEL orgulha – se em incentivar a prática do binômio “ensino – pesquisa” [...]; - do ex-aluno Cleber Fernando: [...] participei do trabalho desenvolvido na oficina e laboratório de transformadores [...] aquele pequeno transformador protótipo, acabou levando o nome de ruralito [...]. Nas aulas, se pesquisava. Hoje trabalho na CEEE, no setor de manutenção de transformadores faz 18 anos, 10 anos como chefe do setor; 166 - do ex-aluno Darci Roberto Schneid: . A disciplina de Instalações Elétricas possuía uma unidade, no programa, que tratava de Redes de Distribuição Elétrica pelo sistema MRT (Monofilar com Retorno por Terra), derivada das pesquisas das quais nós, alunos, participávamos. Esta disciplina se destacou na época, pois o projeto de pesquisa das redes de distribuição MRT, fazia uma real conexão entre o aprendizado teórico e a aplicação prática, em uma realidade que nos era familiar. [...] estudei muito, não só as disciplinas ligadas diretamente à eletricidade, mas também [...] química[...], para entender de tratamento de poste de madeira, ação de fungos, etc. ou física, para ver a possibilidade de determinar a resultante de forças em ângulos, vãos entre postes, ação do vento em um vão livre e por aí adiante, ou finanças, para entender o que era economicamente mais viável. [...] muito do que sou e possuo hoje se respalda naquelas aulas e pesquisas sobre eletrificação rural, aparentemente singela, mas que proporcionaram benefícios sociais significativos para as comunidades, especialmente as do campo. [...] Mas o que tornava o projeto/proposta da pesquisa do MRT familiar era a sua aplicação e resultado social. Isso nos mobilizava e a mim, em particular, muito mais, pois nasci e vivi até os 14 anos na área rural, sem energia elétrica na casa da minha família. [...] hoje dirijo uma empresa no setor de projetos, construção e manutenção de rede de distribuição e transmissão de energia elétrica, que fundei em 1989, temos hoje em torno de 500 pessoas trabalhando na empresa, somos a primeira e única empresa, por enquanto, a ser premiada em três níveis do Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade PGQP; - Júlio Elch Saldanha Silveira: veio gente de Minas Gerais, para ver a eletrificação rural na minha casa, [...] um dia chegou um ônibus cheio de gente, então tivemos que programar um almoço para 17 ou 18 pessoas [...] vinha gente de todos os Estado, até de Minas Gerais, veio gente do Paraná [...]. Vieram alunos da Escola Técnica, de universidades, acho que da Católica e da Federal de Pelotas; - Prof. Gilfredo Rencke: [...] e para nós, professores, e para nós, alunos, para nós, homens da ciência e da tecnologia, mais do que tudo, ficou o exemplo daquele homem fraco, mas que era um férreo defensor da tecnologia e um férreo defensor 167 de proteger, apoiar e levar a eletricidade aos mais recônditos rincões da sua querência;. - Prof. Sebastião Ribeiro Neto: esse é o diferencial dessa obra social magnífica, que hoje se esparrama por todo o Brasil, o projeto do Ênnio. Só tinha uma coisa, ideal, não tinha outros interesses. [...] inegavelmente, ela não tinha outro interesse a não ser o que brotava diariamente dentro do Ênnio, criar, fazer, buscar alternativas, sempre para atender os menos favorecidos economicamente; - Deputado Hugo Rodrigues da Cunha (ARENA – MG): [...] quando tomamos conhecimento desse trabalho, promovemos o comparecimento dos professores da Escola Técnica de Pelotas a Belo Horizonte [...]; - Deputado Estadual Lélio Souza, Assembléia Legislativa, sessão do dia 18 de novembro de 1980: [...] Piratini espera uma solução a respeito do projeto [...] que é [...] um novo sistema de eletrificação [...] que a Escola Técnica Federal de Pelotas o tem, inclusive, levado a outros Estados da Federação. E cito aqui o caso de Minas Gerais [...]; - Diário Popular de 16 de maio de 1979: Eletrificação rural com fio de aço tem dimensão nacional; - Jornal O Estado de São Paulo, em 31-05-1979: Tecnologia, fios de aço para economizar; - Revista Guia Rural Nº 2, de abril de 1987: [...] Pura, a filha do mestre (Prof. Ênnio), criou uma comissão intermunicipal de eletrificação rural, que reúne periodicamente, na Prefeitura de Pelotas, representantes de prefeituras de cinco Estados. É nessa comissão que o engenheiro José Hisbello Campos, consultor do Banco Mundial para a eletrificação rural do mundo inteiro, vê o embrião de uma união nacional de prefeitos, forte o suficiente para acender as luzes do campo, que as concessionárias insistem em manter apagada‖; 168 - Prof. Platão Louzada Alves da Fonseca, então Diretor da ETFPEL, em encontros com o Governador Jair Soares: [...] e veio uma senhora chorando, porque nós inaugurávamos e ligou as luzes [...] ela já pensava nos benefícios que teria com a luz, com a energia em sua casa. Uma casa na beira da estrada. Para mim foi uma das constatações de fato que deveria ser comum; - Prof. Jorge Moraes: [...] além de um educador emérito, sempre colocava seus olhos além do horizonte material; - Revista Guia Rural Nº 2, de abril de 1987: ―Júlio Elch Saldanha Silveira, 64 anos [...] liderou a briga política dos fazendeiros contra a CEEE, mobilizando–os para o mutirão e emprestando dinheiro aos que não tinham (mérito que ele nega, mas a vizinhança jura), [...] sem luz, eu ia acabar ficando sem os vizinhos [...]. ―Mas o grande mérito é do professor Amaral‖. Diante das falas e recortes apresentados concluo essa primeira categoria. 6.2 Segunda Categoria: o companheirismo O companheirismo se fez presente em todas as narrativas, por isso me reportei ao significado de ser companheiro. A palavra vem do latim cum panis, aquele que come o pão comigo, ou com quem partilho o pão. Trata-se aqui, em analogia com o pão, o conhecimento construído e em construção. O professor Ênnio foi um companheiro, dos seus familiares, alunos, colegas de trabalho, de membros de diversos setores da comunidade, enfim, sabia auferir amizades e solidariedade. As operações realizadas na Semana Santa, no sítio do professor, são mais um fato que evidencia essa categoria. Nas narrativas de Gilfredo, Jorge, Sebastião, Reinaldo, Platão, Flávio e em outros documentos, nos depoimento do beneficiado, o Sr. Júlio, e de Virginia, encontrei declarações que revelaram o sentimento de partilha presente no que teorizam Buber (1982, 2001) e Freire (1992). 169 Uma das características que marcaram essa categoria foi o trabalho desenvolvido em forma de mutirão, como uma modalidade de trabalho coletivo envolvendo os beneficiados pelas redes elétricas. Também na narrativa do Sr. Reinaldo que na década de 70, juntamente com o professor Ênnio, ao visitarem uma granja, observaram que as mulheres da vila se deslocavam e empregavam um grande esforço para levar água a suas casas, retirando-a de um poço profundo. Num momento de reflexão e ação, o professor buscou uma solução para essa dificuldade dos moradores. Montou uma bomba de água em cima de tábuas fixadas a uma câmara de ar de trator, desceu o conjunto até o fundo do poço e, através de uma caixa de água improvisada e mangueiras, colocou várias torneiras ao longo da vila. Assim, quando o conjunto motor-gerador elétrico da granja fosse ligado (para secagem e transporte de grãos), a moto-bomba levaria água para a caixa, abastecendo os moradores, dispensando o trabalho braçal dessas donas de casa. Tal ação se reveste das características de um ato de extensão, mas também de companheirismo, solidariedade e preocupação com o bem estar do próximo. Do Prof. Jorge Moraes ouvi: Ele (o Prof. Ênnio) conhecera as dificuldades vividas pelos rurícolas. Sabia como poucos que a mão que prospera é a que se abre para receber e levar um pouco do que foi conquistado [...] A teorização respaldavase na praticidade [...]. Inesquecíveis horas de integração foram vividas por um grupo privilegiado de amigos, colegas e professores da ETFPEL. [...] Defensor ardoroso na natureza, ecologista. Não só jogou ao solo sementes arbóreas, semeou idéias, granjeou admiradores, fez sua parte e a de tantos para a construção de um mundo melhor. Do Prof. Gilfredo trago: Ele era um homem humilde, ele era um homem amigo, ele era um homem rústico e ele era um sábio por natureza. Ficou o exemplo daquele homem fraco, mas que era um férreo defensor da tecnologia e um férreo defensor de proteger, apoiar e levar a eletricidade aos mais recônditos rincões da sua querência [...] sobretudo feito com o coração, como ele fazia. As idas e vindas às comunidades, para nós, aconteciam num clima de camaradagem, de alegria. 170 Da sua filha Virgínia ouvi: homem simples, que nada mais é do que um exemplo, humilde, moralista, sincero, provedor, batalhador, inovador. Do Eng. Flávio Pinho: ele sempre quis fazer tudo para o bem da coletividade. Com esses depoimentos, encerro a segunda categoria. 6.3 Terceira Categoria: a negação do conhecimento não acadêmico Considerei, como terceira categoria, a negação do conhecimento não acadêmico; aqui também encontrei, em muitos documentos, revelações inseridas nessa categoria. O Prof. Ênnio Amaral não possuía graduação em nível superior, sendo um técnico de nível médio, o que o tornava passível de um certo preconceito profissional. Evidencia-se que ele não poderia ser um pesquisador por muitos motivos, além do já citado, pois não teria responsabilidade técnica, contrariava entidades de classe, interesses políticos eleitoreiros e econômicos, entre outros. O modo de tentar impedir suas pesquisas foi a negação do seu conhecimento inovador. A inovação pode assumir alguns conceitos que dependem de áreas do conhecimento. Nesse caso, o conceito mais apropriado seria: ―o uso de uma nova tecnologia, item ou processo para mudar a maneira como os bens e serviços são fornecidos, a maneira que são produzidos, ou como são distribuídos‖52. Ou, ainda, como traz Souza Santos (2004), que considera inovação considerando o grau de superação do estabelecido. A inovação, muitas vezes, assusta a academia, como bem apresenta Buarque (2000), o qual afirma que a universidade deve aventurar-se mais, porém está engessada, padecendo do erro de Salamanca. Também, para apoiar tais reflexões, Cunha (2005), completando o que escrevera Baudelot & Estable (1972) e Antônio Santoni Rugiu (1998), disse que os dirigentes e seus intelectuais acreditam que a educação só pode ser dada em ambientes formais, por 52 Disponível em <http:// sites.ffclrp.usp.br/.../Inovação>. Acesso em 14 de Nov. 2010. 171 meio do estudo dos livros e pela voz do professor nas escolas, ou nas universidades. Assim, destaco alguns achados da pesquisa que configuram essa categoria. De matéria do Jornal do Comércio, de 13 de junho de 1979, veiculada pela Associação Brasileira de Engenheiros Eletricistas — ABEE/RS: engenheiros são contrários ao emprego de arame de cerca em redes de eletrificação rural ―[...] descoberta relacionada com o uso de ―arame de cerca‖ em linhas de eletrificação rural (de alta tensão), de autoria de um grupo de jovens da Escola Técnica de grau médio, do Sul do Estado [...] não consta que assunto tão relevante esteja sendo acompanhado de perto por profissionais universitários‖. Do Prof. Flávio A. C. Quintana, da Pró-Reitoria de Extensão/UFSM – Assessor, que, ao enviar convites para um seminário, expressa: o sistema, sob a orientação de professor da UFSM e colaboração de Técnico da ETFPEL, foi implantado em algumas propriedades rurais do município de Herval do Sul (RS), De Júlio Silveira trago: havia uma descrença que fosse funcionar, [...] diziam que não iria comportar três ou quatro lâmpadas e nada a mais, e que não tinha utilidade nenhuma, outros tinham motor-gerador em casa, então não foi muito fácil de convencer. Depois o pessoal foi vendo que não era bem assim, e, em setores oficiais que não aceitavam de bom grado, também não sei por quê [...]. Do jornal Correio do Povo, de 16 de julho de 1983, trago o recorte do leitor Júlio Elch Saldanha Silveira de Pelotas: ―recebemos estas valiosas informações sobre eletrificação rural. [...] Refiro–me à alternativa preconizada pelo Centro Tecnológico da Universidade de Santa Maria e Escola Técnica Profissional Federal de Pelotas. [...]‖. Do Eng. Flávio Pinho, trago o seguinte recorte: [...] para a CEEE, é uma coisa, como empresa fria quer vender mais energia, investindo menos mão de obra e manutenção. [...] ela já tinha uma equipe dimensionada para a rede que tinha, de uma hora para outra, eletrifica tudo, [...] a posição da empresa era ir com calma, 172 então o Ênnio queria tocar, tocar, e a CEEE sempre ficava com um pé atrás. O governo do estado é que queria, mas, na prática, ele consultava a cúpula da CEEE, que, corretamente, ficava com o pé atrás, [...] o governo do estado não avançava mais que a CEEE recomendava. Nenhuma ala ou outra tinha conhecimento real do que ia acontecer. Do Prof. Gilfredo: [...] se valoriza muito a formação acadêmica, e não se valoriza o raciocínio, não se valoriza o trabalho feito com as mãos, como ele fazia, feito com o cérebro como ele fazia, sobretudo feito com o coração, como ele fazia. Ele enfrentava até o próprio tabu da sua formação.[...]. Ele não tinha formação universitária, e, na época, ser engenheiro era um status, era o máximo, era o extremo da sapiência [...]. De Virginia, filha de Ênnio: a princípio soubemos que era por ser técnico de nível médio, depois, por seus colegas técnicos também serem donos de empreiteiras [...] foi alegado até fato político, partidário [...]. Ofício da Fundação de Ciência e Tecnologia datada de 25 de agosto de 1983, N/Ref.: 032723: ―solicita esclarecimentos sobre dúvidas que estariam sendo levantadas quanto às redes rurais‖. Do Prof. Platão, então diretor da ETFPEL: Eu estive com o governador Jair Soares, na época, que, a princípio, era contra a idéia, [...] defendi as idéias de Ênnio, passou depois a ser também um aliado nosso, facilitando as reuniões com os engenheiros da CEEE [...] porque os empresários eram contra, por uma razão financeira, [...] a idéia era simplificar, [...] Este custo trazia como consequência a diminuição da remuneração dos empresários, eles eram contra. Do Prof. Sebastião: [...] Ênnio chegou à minha casa a noite e disse, “olha, tu não vai acreditar, recebi um telefonema de um grupo que era do grupo que importava o cobre me fazendo uma proposta financeira para que eu desista desse projeto”. 173 Assim, com essas textualizações, evidencia-se, que, na época, era difícil aceitar um trabalho acadêmico, desenvolvido ou coordenado por alguém que não fosse portador de grau superior. 6.4 Quarta Categoria: a perda social... Aqui tento reunir aspectos revelados em todas as manchetes de jornais e revistas, dentre outros documentos que declaram a grande perda social que representou a morte precoce do Prof. Ênnio. O passamento do professor deu-se em 17 de agosto de 1985. A falta do mentor, de uma nova maneira de construir o conhecimento, unificando ensino, pesquisa e extensão, embora, na época, a expressão extensão fosse pouco usada entre os professores e alunos, ela era entendida como a necessidade da ETFPEL e da comunidade, como presença direta da escola nas comunidades e aberta a suas reivindicações e necessidades, a escola voltada para a comunidade, e esta, voltada para a escola. Os trabalhos tiveram continuação com os membros da Comissão de Pesquisa. Passo a textualizar as manifestações dessa perda social. Do Jornal Diário Popular, de 20-08-1985: causou profundo pesar o falecimento do Prof. Ênnio Amaral. Mensagem do Governador José Richa enviada à Escola: ―[...] o Prof. Era um técnico devotado ao seu povo [...] sua cooperação foi decisiva para o desenvolvimento de projetos de eletrificação rural no Paraná [...] ficará na memória de todos [...]‖. Várias mensagens destacam características do Prof. Ênnio, tais como: idealismo, pioneirismo, competência, dedicação, entre outras. A ETFPEL recebeu mensagens de muitas instituições, políticos e pessoas físicas: Prefeitura de Guarapuava; Centro Acadêmico-Agrícola de Cascavel; Diretoria 174 de Eletrificação Rural da CEEE; Diretor da CEEE, Eng. Helmuth Felbermann; Gerente Regional da CEEE-Pelotas, Eng. Paulo Bojunga; Diretoria de Eletrificação Rural da CEEE; Secretaria de Estado do Interior do Paraná; Câmaras Municipais de diversos municípios gaúchos. Do Prof. Gilfredo: Mas ficou a sua obra, ficou a sua história, ficou o seu exemplo, ficou a sua família e ficou, acima de tudo, um nome que nós temos que venerar muito [...]. Do Prof. Sebastião, que o acompanhava em muitas viagens: O Ênnio foi um iluminado. E foi contemplado, em tudo, porque quem deixa um legado social do tamanho desse, que o Ênnio deixou para o Brasil, é contemplado. Ele morreu prematuramente, foi uma perda irreparável, mas o tamanho da obra, ela não tem época, não interessa que você faça a obra com 20 anos com 30 ou 80, 90, o importante é que você, durante a vida, faça e tenha a graça de fazer, o que o Ênnio fez. [...] o centro que alavancou a ajuda ao pequeno proprietário: projeto Ênnio Amaral de Eletrificação Rural. De sua filha Virgínia: Em cada canto por onde estive, vi um pedaço da obra deixada por ele. [...] É lindo perceber que é possível. Prof. Jorge: Ênnio Jesus Pinheiro do Amaral: um educador, um cientista, um homem a quem devemos a admiração, o respeito e o privilégio de sua amizade. Do Prof. Platão: [...] o tenho como se levado uma parte, [...] estava em Porto Alegre, quando soube da morte dele. A perda social pode ser também evidenciada nas homenagens que a personagem recebe no post-mortem, assim no capítulo 5 item 4, trago algumas, pois não obtive prova documental de tantas outras. 175 Considerações finais Diante dos vários capítulos que transcrevem uma proposta de investigação, em meio a centenas de documentos, de entrevistas, de análises, da essência do que um documento ou uma narrativa nos pode revelar, nas contextualizações e compreensão temporal dos espaços ocupados e daqueles que permaneceram em busca de mais uma leitura, percebo que nem tudo foi exposto na sua totalidade. No entanto, todos os documentos analisados contribuíram para que eu revisitasse o passado, trazendo-o para o presente, o que me permitiu relembrar com outro olhar o que se passou e o que se passa. Esse contexto pode mostrar uma concepção crítica, não só do transcorrido e do que se apresenta, mas do que farei, ou faremos no futuro. Ou, como citou a Profa. Dra. Maria Stephanou (UFRGS), no 16.º Encontro Sul Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação — ASPHE, ―o estudo do passado tem relação com um projeto de futuro”. Também, Tambara (2000, p.85), nos diz: ―[...] que é preciso saber, é o que a História da Educação tem a contribuir em relação a um mundo baseado em estruturas permeadas por injustiças e como este pode ser transformado [...]‖. Dessa forma, essa dissertação traz, como pressuposto, inicialmente e intencionalmente, explicitar a história de vida do Prof. Ênnio de Jesus Pinheiro do Amaral. Dando visibilidade e expondo sua vida pessoal e profissional, para que, sob a luz de estudiosos e teóricos, evidencie-se que seu trabalho, respaldado em teorias e práticas, referendado no sentimento de solidariedade e companheirismo, seja materializado no protagonismo de uma educação diferenciada para seu tempo. Até para os atuais tempos, com base na indissociabilidade da trilogia ensino, pesquisa e extensão, Ênnio Amaral representa a possibilidade, a concretude do professor extensionista, que ensina e pesquisa, ou seja, estuda o seu entorno, 176 pesquisa-o, transforma-o e ensina e aprende com todos, com esse movimento na instituição e comunidade. Dessa forma, é possível inferir que seu exemplo de trabalho e de vida, transcrito e documentado neste texto, demonstra como um professor pode pautar sua docência. Infere-se, também, que nossas vidas estão imbricadas com todo o nosso ser, o EU, o TU, o ISSO, que nos impelem à construção, à transformação, a sermos os protagonistas de nossas vidas. Este viver não é fácil, possui as suas próprias especificidades, exige comprometimento, ausculta, reflexão, criticidade, mas, acima de tudo, requer uma ação social que compreenda, envolva a todos e a tudo que compõe a realidade da sociedade, objeto de nossas ações, mas fazendo a opção pelos oprimidos, pelos desiguais ou aqueles que são menos iguais, dentro de uma Nação em constante construção. Nessa perspectiva, associo-me novamente ao pensamento de Vieira Pinto (2005, p.xv), quando afirma que Para a mentalidade ingênua a nação é coisa que ―já existe‖, e precisamente existe enquanto coisa. Está feita, sua realidade é completa, ainda que admitindo-se que sofra modificações ao longo da história [...] Ora, o que a consciência critica desvendará é justamente o oposto: é a minha atividade que torna possível a existência da nação. A nação não existe como um fato, mas como projeto. Com esse pensamento, considero a história de vida desse professor como um dos caminhos para a construção da Nação, com uma formação crítica que revele o quanto a educação é capaz de fazer por um povo. Assim, o Prof. Ênnio Amaral, personagem da Educação Profissional, mostrase, de fato, um marco, um protagonista em extensão na EFPEL, atual IFsul. 177 Referências ABRAHÃO, M. H. Maria B. Construindo Histórias de vida para compreender a educação e a profissão docente no Estado do Rio Grande do Sul. In: ______. Histórias de vida: destacados educadores fazem a história da educação riograndense. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 13-33. ______. Elementos histórico-sociais — um olhar transversal no contexto espaçotemporal da história de vida. In: ______. Histórias de vida: destacados educadores fazem a história da educação rio-grandense. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. ______. Histórias de vida de destacados educadores rio-grandenses (Nossas histórias?). In:______. 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