O PERCURSO INTELECTUAL-RELIGIOSO DE CLIVE STAPLES
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O PERCURSO INTELECTUAL-RELIGIOSO DE CLIVE STAPLES
O PERCURSO INTELECTUAL-RELIGIOSO DE CLIVE STAPLES LEWIS Daniel de Resende Travessoni1 RESUMO A autobiografia é uma narrativa imprescindível para bem compreender as crenças, os sentimentos e o modo de ser de um determinado autor. O objetivo do presente artigo é fazer uma apresentação da autobiografia de Clive Staples Lewis que se encontra no livro “Surpreendido pela Alegria”. A narrativa de C. S. Lewis não se resume a relatar eventos pessoais, também é composta por um conjunto de argumentos que o autor elabora para esboçar uma antropologia filosófica, a antropologia filosófica do homem C. S. Lewis. A vida do autor e, de maneira mais específica, o período entre a infância e o final da juventude descrevem como os fatos e as afirmativas do cristianismo puderam ser identificados como a verdadeira religião, religião baseada em fatos históricos e em uma convincente compreensão da realidade. A experiência pessoal da “Alegria” foi um evento norteador no processo de conversão do autor ao cristianismo. Como uma espécie de antropologia filosófica, a autobiografia de C. S. Lewis, além do mais, apresenta uma interdependência entre a experiência de fé cristã e a experiência intelectiva. Palavras-chave: C. S. Lewis; Autobiografia; Cristianismo; Vida Intelectiva; Antropologia Filosófica; Alegria. ABSTRACT The autobiography is a fundamental narrative to understand the beliefs, the feelings and the way of life of a certain author. The purpose of this article is to present the autobiography of Clive Staples Lewis founded in the book “Surprised by Joy”. The autobiography of C. S. Lewis is more than a narrative of personal events, is too a set of arguments that the author uses to sketch a philosophical anthropology, the philosophical anthropology of the man C. S. Lewis. The life of C. S. Lewis, especially the period from his childhood to the end of his youngness, describes how the narratives and the affirmatives of Christianity were identified as the true religion, a religion based upon an historical facts and an convincing comprehension of reality. The personal experience of “Joy” is a lead event in the author conversion’s process. As a philosophic anthropology, the C. S. Lewis’s autobiography shows an interdependency between the experience of Christian faith and the intellective experience. Keywords: Autobiography, C. S. Philosophical Anthropology, Joy. 1 Lewis, Christianity, Intellective Life, Daniel de Resende Travessoni é mestre e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, especialista em Filosofia / Temas Filosóficos pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, advogado, professor da Faculdade Batista de Minas Gerais, e membro do Conselho Acadêmico da AKET – Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares. 2 1. INTRODUÇÃO Dentro do rico patrimônio literário ocidental, as “Confissões” de Agostinho2 podem ser tratadas como uma das mais vigorosas e graciosas narrativas autobiográficas; aliás, as Confissões ultrapassam o gênero biográfico (ou autobiográfico), porquanto ensejam uma obra que incorpora aguda argumentação filosófico-teológica a uma exposição comovente das experiências de vida de seu autor. Guardadas as proporções devidas, o irlandês Clive Staples Lewis oferece aos seus interlocutores uma pequena (comparada à extensão da obra de Agostinho) mas cativante exposição de seu “percurso” de vida entre suas primeiras lembranças e até o momento em que se tornou um cristão, exposição na qual a experiência intelectual se encontra imbricada na experiência religiosa – tal como se dá a partir da leitura da obra do Bispo de Hipona. O objetivo do presente artigo é fazer uma apresentação da autobiografia de C. S. Lewis que se encontra no livro “Surpreendido pela Alegria”.3 Como é notório, C. S. Lewis (1898 – 1963) foi um destacado acadêmico de Oxford e posteriormente de Cambridge, especialista em literatura medieval e renascentista, autor de uma curiosa epopeia infanto-juvenil que forja uma instigante alegoria do cristianismo (“As Crônicas de Nárnia”),4 de narrativas apologético-cristãs – embora sejam muito mais do que simples escritos apologéticos, como a antropologia filosófica “A Abolição do Homem”.5 Enfim, Lewis trouxe à luz uma vasta produção ficcional e não-ficcional de alta qualidade literária e intelectual. Não por acaso tem sido considerado um dos mais destacados literatos cristãos do século XX. Escrita em 1955, momento em que o autor já se encontrava em fase de maturidade, a arguta pena de Lewis constrói uma autobiografia permeada de elegante ironia e de fino humor ao melhor estilo chestertoniano - aliás, figura determinante na formação do anglo-cristão autor das Screwtapes Letters, 2 AGOSTINHO. Confissões. 18ª edição. Petrópolis: Vozes, 2002. LEWIS, Clive Staples. Surpreendido pela Alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998. 4 LEWIS, Clive Staples. As Crônicas de Nárnia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 5 LEWIS, Clive Staples. A abolição do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 3 3 embora não apenas Gilbert K. Chesterton,6 mas uma grande e diversa fileira de vidas cuja influência se faz em maior ou menor medida, sejam seus pais, sejam colegas do exército britânico, com os quais manteve contato durante o período que esteve em trincheiras francesas durante a Iª Guerra Mundial. Autobiografias (como a de Lewis, as “Confissões” de Agostinho, o livro “O Filósofo e o Teólogo” de Étienne Gilson)7 e romances autobiográficos (como "Recordações da Casa dos Mortos”,8 de Dostoievski) fornecem aos leitores quadros vivenciais nos quais argumentos filosóficos e crença científicas tornam-se tangíveis em situações distintas daquelas em que comumente são evocados, como em seminários universitários, rotinas laboratoriais e expedientes em escritórios ou estúdios. A leitura de tais obras é um complemento imprescindível à reflexão e à atividade acadêmica. 2. A ALEGRIA E O CAMINHAR DO HOMEM DE LETRAS Na autobiografia de C. S. Lewis, ao leitor é oferecida uma compreensão peculiar de como a formação acadêmica de um indivíduo acompanha pari passu a constituição de seu substrato religioso. O declarado esforço narrativo do autor – sua caminhada até a fé cristã – acaba por resultar em uma exposição de como intelectualidade e religiosidade se encontram vinculadas entre si, pondo em xeque perspectivas que aventam a contradição entre essas duas experiências fundamentais do humano. Sejam acadêmicos, sejam militares, sejam camponeses, enfim, há um costume arraigado em ser afirmada a vida humana como um procedere, como um caminhar em direção a um escopo ou outro. A analogia usada para a compreensão da vida ativa dos indivíduos – enquanto um "percurso a ser trilhado, mas nunca concluído" – tem uso recorrente na literatura e nas máximas do senso comum, se justificando não apenas pelo mero hábito linguístico, mas pelos significados existenciais que dá azo, sobretudo por evocar o ser-intencional, prático e histórico dos homens. Isto é notório no texto de Lewis. 6 CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. GILSON, Etienne. O Filósofo e o Teólogo. Santo André: Acadêmica Cristã, 2009. 8 DOSTOIEWSKY, Fiódor. Recordações da Casa dos Mortos. São Paulo: Martin Claret, 2006. 7 4 A partir de um protestantismo irlandês raso e pueril, passando por um misticismo diga-se panteísta, por um ateísmo materialista, por um idealismo peculiarmente britânico, até finalmente um cristianismo puro e simples, sua caminhada de vida é um mosaico de crenças e perspectivas. Mas o que lhe motivava? O que lhe inclinava a andar numa e não em outra direção? Um ingênuo diletantismo? A falta da presença materna (perdida muito cedo)? O temor da morte? O entorpecimento da consciência em face à ausência de sentidos do existir? Desde cedo, a experiência daquilo que denomina “Alegria” lhe condicionou seu viver. E o que Lewis chama de “Alegria”, visto que a busca pela mesma se tornou uma meta fundamental de seu existir? A descrição muito particular de um enlevo vivenciado de maneira imprevista em (três momentos de sua infância) é o ponto de partida para uma busca ao longo de toda a vida, pelo menos até sua juventude, quando passa a tratá-la como um evento “psicológico” e, depois, ao recuperar parte do sentido original da “Alegria”, é surpreendido pelo cristianismo, ou melhor, por quem estava por trás do cristianismo. A vivência da “Alegria” – ou a “experiência da bem-aventurança”, citando Milton na narrativa (mas sem o conteúdo religioso que se suporia ao mencionar o poeta inglês) – é que põe em marcha os anseios do jovem Lewis, influenciando sua formação, suas leituras, sua compreensão de quem era. E aquela “Alegria” envolve uma experiência de “desejo”, se bem que “desejo” não esteja vinculado ao sentido de luxúria, de ganância ou de poder; como o próprio Lewis tenta descrever, diz respeito a um gozo surgido por algo ainda não encontrado, como se tratasse de uma agradável vivência causada por algo que se quer e se encontra ainda distante. Aquela ditosa experiência funcionaria posteriormente como um indicativo, um índice. É certo que o evento “Alegria” se deu em um garoto que já exercitava sua imaginação literária, visto que recebe de seus pais na tenra idade o apreço pela leitura. E, imbuído da busca pelo “desejo” da Alegria, sua própria “formação” foi influenciada. Aliás, ponto de destaque para um texto autobiográfico como o de Lewis, é verificar a sólida e profunda formação do escritor irlandês: seja a tradição literária de língua inglesa, sejam os clássicos gregos e latinos, seja a produção romântica europeia, seja enfim a tradição 5 filosófica ocidental, o leitor será levado a constatar uma distinção entre uma educação “clássica” (a do próprio Lewis) e entre uma educação “humanista”, “progressista” e “modernizante” – aliás, tema tratado na antropologia filosófica “A Abolição do Homem” – tal como nós contemporâneos temos sido acometidos pelas políticas educacionais estadistas. Por outro lado, vê-se não apenas que a “Alegria”, mas uma vocação própria de Lewis o dirige a uma vida de erudito, a uma vida de acadêmico. E, a despeito de não aludir aos trabalhos de Martin Buber,9 e apesar de uma dificuldade inicial em se relacionar intimamente com os outros, a experiência de Lewis permite ao leitor aceitar a hipótese do filósofo judeu segundo a qual o conhecimento é uma atividade inter-subjetiva, mesmo que implique também na atuação do silencioso diálogo do homem consigo mesmo (tal como Hanna Arendt entenderia o "pensamento" individual)10 – e, de fato, a prática da reflexão pessoal é uma característica de Lewis, um evento frequente, intercalada com suas leituras e contatos com mestres e colegas, segundo nos narra. Cada "componente" de seu cabedal literário, de seu conjunto valorativo, cada crença, cada proposição filosófica, cada um deles é, em uma extensão considerável, resultado da atuação do indivíduo Lewis junto a seus interlocutores – mesmo que tais interlocutores estivessem distantes no tempo e espaço, ou sequer fossem conhecidos, à guisa do(s) autor(es) de mitos nórdicos, ou se tratassem de pessoas próximas, como seu pai, seu irmão ou J. R. R. Tolkein11 J. R.R. Tolkein, entre outros. Neste sentido, considerar a formação (bildung) ou a educação (paidéia) de um acadêmico como um “percurso” é afirmar o itinerário através do qual o indivíduo alcança plagas nas quais ainda não havia estado, e junto às quais se deparará com novos indivíduos, quando que se apropriará de novas crenças e de novos hábitos. A caminhada de Lewis exibe uma vívida narrativa de como interesses “acadêmicos”, de como objetivos “filosóficos”, de como hábitos e posturas herdadas de uma cultura chamada de “literária” e “científica”, encontram-se 9 BUBER, Martin. Eclipse de Deus – Considerações Sobre a Relação entre Religião e Filosofia. Campinas: Verus Editora, 2007. 10 ARENDT, Hanna. Entre o Passado e o Futuro. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. 11 TOLKEIN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 6 necessariamente vinculados às impressões pessoais, ao círculo de amizades e de mestres, às preferências estéticas, enfim, à personalidade de um scholar. A vivência “intelectual”, portanto, não é um momento hermético e autônomo do ser do indivíduo, mas uma entre outras experiências humanas articuladas entre si. Ademais, ocorrerá ao leitor mais atento que a vinculação entre crenças “acadêmicas” (referentes a valores, teorias científicas, argumentos filosóficos, costumes políticos etc.), entre vivências de senso comum, entre inclinações psicológicas, todas reunidas na dinâmica de vida do indivíduo, implicará em uma interdependência para com os sentidos “básicos”, para com as experiências prático-compreensivas fundamentais do existir – sendo que nestas se concretiza o ser religioso do homem. A jornada intelectiva é também a jornada existencial do indivíduo, não havendo qualquer incompatibilidade entre a prática acadêmica e a vivência religiosa – a vida de Lewis é prova cabal deste fato, o qual ecoa na biografia de indivíduos como P. Ricoeur, H. Gadamer, H. Dooyeweerd, E. Husserl, G. Chesterton W. James, B. Pascal, A. Agostinho, entre muitos outros – a lista, sabe-se, é extensa. 3. INVENTÁRIO DE TRADIÇÕES CLÁSSICAS E MODERNAS Aquele que toma contato com a autobiografia de Lewis se depara com um apinhado convivendo de com crenças crenças “tradicionalmente” “tradicionalmente” tratadas tratadas como como religiosas filosóficas, convivendo na mente e coração de um indivíduo ansioso por compreender adequadamente cada proposição que lhe apresentasse como válida, como verdadeira para fins explicativos, para fins existenciais. Este rigor nunca deixou de lado sua busca pela “Alegria”, ao contrário, foi inclusive incrementado no afã de se apreender o significado e a explicação para a ocorrência da “Alegria”. Lewis foi educado em uma família de posses bastante razoáveis (seu pai era advogado com certo sucesso financeiro), tendo recebido da mesma o prazer pela leitura e uma educação religiosa britânico-protestante. Durante sua infância e início de adolescência, cultivou um cristianismo raso e nominal por assim dizer, a não ser durante a estadia em uma escola (que lhe parecia um campo de concentração, tal era o tratamento que recebeu dos que compunham 7 a instituição), quando questões a respeito da eternidade da existência lhe incomodaram. Junto ao seu nominalismo religioso (talvez causado também pelo falecimento de sua mãe ainda muito cedo, já que suas preces não foram atendidas e com a morte foi-lhe retirada a presença de quem extraía segurança e tranquilidade), manteve uma perspectiva imaginativa formada por leituras ficcionais. A partir da adolescência, passa a tomar contato gradual com a literatura clássica, com música erudita e vai abandonando as práticas religiosas que mantinha por hábito. O cristianismo se lhe mostrou apenas uma tradição herdada sem uma efetiva concretude, supostamente sem uma sólida base intelectiva e fática (além de, também se perguntar, por que motivo a sua religião tradicional seria a verdadeira em face de tantas outras). Passou a comungar um ateísmo, voltando sua atenção somente para o que seus sentidos (e seu raciocínio) lhe pudessem convencer. A compreensão “religiosa” de Lewis (enfatizada por um preceptor racionalista - o Velho Knock – aos moldes do Século XIX, e que teria sido certamente um positivista lógico caso tivesse tido a oportunidade de tomar contato com os ensinos do Círculo de Viena, segundo o autor assevera) passa a ser aquela que muitos aceitam como a explicação última e inquestionável de como o mundo é: a afirmação do primado da materialidade e do hipotético vínculo daquele com o primado da autonomia da capacidade intelectiva dos homens. Para o autor, as premissas do realismo empirista tornaram-se profundamente convincentes, aliadas a um racionalismo de cunho russeliano. De maneira coerente, ao longo de sua narrativa, a compreensão pessoal do que seria a “Alegria” é modificada à medida em que o autor adquire e substitui perspectivas e crenças. O anseio da “Alegria”, que ao final de sua infância parecia ter-lhe abandonado e que retornou revigorada através da música de Wagner, da poesia romântica e da mitologia nórdica (fontes para sua vivência ou experiência "imaginativa"), passaria a ser pensado como uma simples expressão de sua estrutura psicológica, desde que paulatinamente aderiria às teses empiristas e a uma compreensão freudiana da psique humana, embora durante algum tempo de sua adolescência a experiência "imaginativa" (que lhe resultava como locus para a "Alegria), houvesse convivido de maneira dicotômica com sua experiência intelectiva. 8 De um empirismo tipicamente britânico e de um ateísmo materialista, Lewis começa a gradativamente se interessar por questões que fugiam ao molde típico da erudição ateísta – despertado inclusive por leituras que fizera de autores influenciados por crenças esotéricas e ocultistas como Yeats. Começava a se perguntar se os homens seriam capazes de demonstrar que somente há uma realidade material uma vez que, tanto nossos argumentos quanto nossos procedimentos experimentais encontram-se baseados em pressupostos empiristas. Por outro lado, a experiência da quase-morte, quando foi atingido em combate durante a Iª Guerra Mundial, leva-o a admitir, em alguma medida, uma noção de um "eu" em si e um "eu" contingente - um pedaço de carne e osso a ponto de desfalecer. É também da época dos campos de batalha (e de seu período de convalescença) que datam as primeiras leituras do “impertinente” cristão, mas perspicaz Chesterton e de H. Bergson, dos quais iria extrair posteriormente uma série de convicções distintas à sua então compreensão "moderna" de mundo. 4. A NOVA FISIONOMIA INTELECTUAL E A SEMENTE DO ABSOLUTO A volta desmobilizado para Oxford e a retomada dos estudos propiciaram o que Lewis chamaria de sua nova fisionomia intelectual, na qual gradativamente deixou de lado o romantismo e a abertura para especulações sobrenaturais, reforçando o materialismo outrora professado. Estava, então, no fim de sua adolescência e no início de sua juventude. A nova face intelectual foi fortalecida pela convivência com um velho e cético pároco de Oxford, quem havia se envolvido com esoterismos diversos e buscava uma continuidade do "eu" para além da morte, e que passou seus últimos dias de vida enlouquecido. Lewis acompanharia o pároco em seus derradeiros momentos. O materialismo parecia a Lewis uma segurança intelectual e vivencial porquanto o afastaria de preocupações que não fossem a realidade corpórea e física, contentando-se com um utilitarismo enquanto estivesse perambulando por sobre a terra, evitando-se ao máximo a dor e o desconforto (e também temores a respeito de um “além”). Ao mesmo tempo, assume algumas noções da "nova" psicologia freudiana, o que lhe permite concluir que há um nexo 9 entre a experiência imaginativa e a pulsão erótica. As mitologias e poesias não mais seriam consideradas como agentes propiciadores da "Alegria", e esta não seria outro evento senão uma experiência estética, um gozo distinto. Curiosamente, a solidificação de seu realismo empirista, de seu racionalismo e de seu (chamemos assim) niilismo existencial passa a ser mitigado com as leituras de Bergson, segundo o qual (e contra Schopenhauer) a realidade não é uma simples alternativa em relação ao nada, mas uma necessidade. A existência deixara de ser uma feliz contingência para Lewis. Por outro lado, o autor se viu diante de situação inesperada: amigos de Oxford, antes ateístas e materialistas convictos, abraçaram crenças e práticas místicas – aqueles que seriam cabalmente "livres de supertições" se rendiam ao sobrenatural, ou a uma mentalidade medievalista como afirmava o autor. Aliás, o próprio Lewis deixa transparecer a irrupção de um conflito entre sua "religiosidade" materialista e não-sobrenaturalista e a perspectiva mística de seus amigos. O debate instaurado levou-o a paulatinamente abandonar seu "esnobismo cronológico" – uma espécie de progressismo iluminista, para o qual crenças e pensamentos sustentados no passado seriam inferiores ou retrógrados se comparados às conquistas cognitivas e filosóficas do presente. Aquela compreensão foi amainada uma vez que reconheceu que nem todas as proposições e tradições de outrora foram categoricamente refutadas, mas simplesmente (e em muitos casos, deliberadamente) relegadas ao silêncio por mera convenção, tal como grande parte da tradição medieval em relação à virada filosófica do sujeito. A discussão com seus amigos agora místicos conduziu-o também a analisar sua epistemologia realista. Chegou à conclusão de que o racionalismo, que afirmava verdades lógicas e apodíticas obtidas a partir de procedimentos intelectivos a priori, não se coadunava necessariamente com os juízos empiristas, a não ser através de uma via behaviorista (notem que Lewis se defrontava com questões muito similares ao agora clássico "Dois Dogmas do Empirismo" de Quine muitos anos antes do norte-americano trazer sua relevante argumentação à tona, embora não se pretenda afirmar uma antecipação da reflexão analítico-behaviorista de Quine). Para o autor, a via behaviorista seria rasa demais para abarcar a riqueza, a grandiosidade, a 10 multiplicidade do real (inclusive da experiência cognitivo, estética, entre outras, do homem). Foram abertas as portas para o idealismo, então ainda em voga na tradicional Oxford de Bradley. A mente humana simplesmente não poderia ser um epifenômeno tardio e contingente do universo e da realidade terrestre, mas uma capacidade única que dotava os indivíduos a tomarem contato e a acessarem uma ordem presente em toda a existência e na constituição do cosmo. Ocorre que, segundo as próprias palavras de Lewis, ao aceitar premissas idealistas, de algum modo ele começava a morder a isca do "Grande Pescador". 5. A TENDÊNCIA INTELECTIVA DO TEÍSMO-CRISTIANISMO A adesão gradativa de Lewis ao idealismo se deu em concomitante contato crescente com autores teístas-cristãos, é dizer, com a leitura de obras marcadamente influenciadas pelo cristianismo, v.g. Chesterton, G. MacDonald, George Herbert. Sua aceitação do idealismo também se fez acompanhar com a aproximação de colegas cristãos, como J. R. R. Tolkien. Isto resultou em uma curiosa disposição literária e intelectual: autores como B. Shaw, J. S. Mill e Voltaire se mostrariam sem qualquer profundidade, escapando-lhes a dureza e a densidade da vida, ao contrário de cristãos, a despeito de suas convicções religiosas. Os cristãos estariam "equivocados" quanto à sua mitologia, porém o que os faria muito mais interessantes em suas prosas e verves poéticas do que os outros – outros aborrecidamente enfadonhos? O autor, então, se propôs a investigar qual a causa ou qual a fonte desta marca distinta dos cristãos, encontrando uma explicação inicial na "abertura" que o cristianismo faria para a noção e para a realidade do "Absoluto". O idealismo de Lewis implicava na crença de que, havendo uma ordem comunicada a todo o universo e da qual o indivíduo fazia parte, tal universo (ou cosmo) seria uma representação de uma realidade última, de um "Absoluto". Como nota o autor, a partir de então, as "peças no tabuleiro" de sua individualidade começavam a ser movidas para um desfecho para si inesperado. Se o idealismo implicou na renúncia à contingência do existir ao 11 mesmo tempo que à aceitação de uma realidade transcendente, tais tendências iam sendo ressaltadas pelas leituras dos curiosos cristãos e pela leitura de Eurípedes ("Hipólito"), leitura esta que lhe fez retomar o velho interesse pelo "além-deste-mundo". Sobretudo, Lewis expõem em sua narrativa que o "cerco" se tornou mais fechado quando anuiu com as teses esposadas por Samuel Alexander na obra “Space, Time and Deity”.12 Alexander ofereceu-lhe uma teoria a respeito da experiência do "desfrute" e da "contemplação", uma espécie de teoria da experiência humana em sentido estrito, abrangendo desde a vivência cognitiva, até a vivência afetiva e estética do indivíduo. A performance do ato de "ver" – isto é, o "desfrute" – uma determinada paisagem montanhosa não se confundiria com a ocorrência da apreensão e acesso – ou "contemplação" – do evento Pico Everest. Não se pode "ter" esperança ao mesmo tempo em que se "pensa" na esperança, da mesma maneira que a vivência estética de fruição de alguma obra de arte se distingue da análise daquela vivência estética. Essa nova compreensão, em todo o caso, não implicava em uma forma de irracionalismo ou mesmo em uma simples apreensão inconsciente do que estivesse ocorrendo no momento do "desfrute". Essa "dialética" da experiência humana franqueia-lhe o caminho para considerar a "Alegria" não mais como um simples estado mental, também como o sinal de algo que "é", algo que está além. As justificações (ou não) do conjunto argumentativo herdado de Alexander permitiu a Lewis retomar um antigo entendimento que já havia cunhado a respeito da "Alegria", é dizer, sua função "indicativa" - ora, se a "Alegria" é um anseio ou um "desejo", não será ela o "desejado". O autor chegará à conclusão de que a "Alegria" (Lewis se referirá a ela sempre com maiúscula) não se restringirá a um evento psicológico subjetivo, tratar-se-á de uma ausência sentida, de o anseio apercebido por alguém além de seu "eu", e que não se confundirá com uma necessidade biológica ou até mesmo social. A "Alegria" seria, pois, um índice do "Absoluto", perdendo todo o seu valor em si mesma. 12 ALEXANDER, Samuel. Time, Space and Deity. Whitefish: Kessinger Publishing, 2004. 12 Com este passo, o "Absoluto" se tornaria algo personalizável, algo como um "Totalmente Outro" (Lewis não evoca a noção neo-ortodoxa, mas talvez sua referência possa fornecer uma analogia interessante para o entendimento do que o autor passava lentamente a compreender), um "Espírito", um Divino tal qual o Bispo Berkeley argumentaria conquanto indo um pouco além do que a divindade dos deístas. Mesmo assim, naquele momento (durante meados da década de 1920), para Lewis, o "Espírito" não se poderia relacionar-se consigo, tal como Hamlet não poderia encontrar pessoalmente com Shakespeare. Por outro lado, como o deísmo, o “Espírito” não exigiria princípios para a ética pessoal de qualquer indivíduo. Ocorre que, a experiência do divino já se corporificava nitidamente na vida deste então acadêmico de Oxford. A narrativa do processo final de sua conversão ao teísmo, embora não ofereça em extensão os mesmos elementos dramáticos como os de Agostinho, concede ao leitor a mesma medida de autenticidade e argúcia intelectiva na descrição do episódio – aliás, um episódio inusitado, porquanto se deu no segundo andar de um ônibus britânico. A assunção de um "Espírito" com traços de pessoalidade lhe afastara do idealismo original. Como nos sugere, a raposa Lewis havia sido expulsa da floresta hegeliana e se encontrava então "perseguida" pela perspectiva do que um “Ente” poderia implicar. O autor descreve ter defrontado no ônibus com algo - ou alguém - cuja presença seria irresistível, ou quase irresistível, a despeito de que não houvesse para onde desvencilhar sua ação, como nos relata, a não ser aceitar o fato de que Ele, o "Espírito Divino" estava lá. Surpreendido – e não simplesmente "aceitando" uma crença – pelo Ser Divino, Lewis compreenderá que sua analogia shakespeareana, na verdade, lhe daria subsídios para ir além: se é certo que Hamlet não pudesse se encontrar com Shakespeare na peça, é verdade também que Shakespeare poderia resolver o entrave fazendo-se um tal qual seu personagem, inserindose na peça e fazendo-se conhecido. O autor já está então convicto que há uma empatia inerente na relação entre o Divino e o homem: aquele saberia do que ocorre com o indivíduo, e poderia se apresentar ao homem, de maneira que sua divinal presença divinal impeliria o homem a uma atitude, a uma ação moral. Com isto, Lewis se vê levado a uma análise de conduta pessoal. O idealismo pode ser discutido e aceito como crença filosófica, mas não pode ser 13 vivenciado como se dá com o teísmo. Em relação a Deus, Lewis não ousaria mais "brincar de filosofia" ou "negociar com a realidade", somente se submeter a Aquele que é. Sua compreensão filosófica a respeito do que seria a Divindade Absoluta ultrapassa as apreensões intelectivas convencionais e "põe-se de pé para tornar-se presença viva". No período letivo subsequente à Páscoa de 1929 Lewis, pela primeira vez, dirige-se verbalmente à Pessoa Divina - Deus era Deus, apesar de toda a resistência que tal "encontro" provocara no autor. É curioso que esta primeira vivência quanto a Deus ainda não houvesse resultado na modificação da perspectiva do autor quanto à continuidade de sua existência para além da materialidade de seu corpo: a existência de Deus lhe condicionaria uma nova atitude, mesmo que sem a perspectiva de alcançar promessas ou benefícios, de maneira que todos os seus atos, intenções e pensamentos como homem houvessem de se harmonizar com o Divino Espírito. É também bastante curioso considerar que, em seu primeiro momento como teísta, Lewis acreditou que abandonaria a vivência da "Alegria", porquanto ela não se faria mais relevante em face à existência divina. Nesse momento, agir de maneira digna para com Deus implicava agir de maneira não interessada e sem qualquer esperança a respeito de um amparo e de um cuidado pessoal advindos do Divino. Mas, como relata, ele estava errado. O xeque-mate dado sobre Lewis se completa quando é, ao fim, surpreendido pelo próprio "Shakespeare vestido e aparentando" um homem - o Deus humanizado, o Deus encarnado. O encontro com o cristianismo também se deu através de uma jornada intelectual-existencial: interessado em saber e vivenciar a religião que teria atingido a “verdadeira maturidade”, e isto descartando o legado do paganismo porquanto, ao seu ver, este retivera apenas os primeiros traços de uma compreensão plena do divino. Sua individualidade tendeu à escolha entre o hinduísmo e o cristianismo, sendo que neste ponto a leitura de “O Homem Eterno”13 de Chesterton lhe valeu muito. Do hinduísmo concluiu haver um chamariz baseado exclusivamente na “coexistência” pouco depurada entre o 13 CHESTERTON, Gilbert Keith. O Homem Eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010. 14 paganismo e preceitos filosóficos; sobretudo, entendeu que o hinduísmo não detinha um conteúdo e uma base histórica imprescindível aos critérios de veracidade e concretude (objetivas, por dizer assim) que Lewis exigia. Para um experimentado crítico literário, como já o era Lewis (e seguindo uma tendência mui distinta daquelas professadas pela tradição liberal no seio da teologia protestante desde o quartel final do século XVIII), o contato com as narrativas evangélicas não lhe ensejou uma compreensão mítica dos textos que agora se inclinava a analisar. Os textos deixados por “judeus estreitos e pouco atraentes, cegos demais diante da riqueza mítica do mundo pagão em torno deles” apontavam para a atuação no tempo humano da essência à qual a literatura mítica pretendia evocar. Por outro lado, Lewis admitiu que nada da literatura (mítica ou nãomítica) da antiguidade se assemelhava às narrativas que tinha agora diante de si: nenhuma pessoa havia sido retratada como as descrições neotestamentárias legaram. A encarnação da Divindade somente poderia ter ocorrido à guisa do que se deu na pessoa de Jesus de Nazaré. Naquele momento, mais do que filosofia e do que religião (em uma compreensão tradicional), o autor entende que a Realidade se colocava diante de si. Em uma manhã de sol, passou por uma situação similar àquela vivenciada no alto de um ônibus, quando, indo até um zoológico, é posto diante do fato de que aquele judeu é Deus – mais do que um professor de moral, mais do que um agitador político inspirado pelas expectativas da escatologia judaica, uma singular Pessoa para a qual a experiência da noção a respeito do Deus que morre (tal como Frazer havia descrito) ultrapassou a prática mítica para se incorporar na história dos homens. Seja por necessidade ou seja por vontade (se bem que desdenha desta infindável dicotomia), Lewis age – ou é impelido pela pessoa do Nazareno. Enfim, a “Alegria” (“a seta disparada” e que atingia o autor), havia feito as vezes de um sinal do Divino, como o sinal daquele que, muito mais do que a própria “Alegria”, surpreendeu a mente e o coração do erudito de Oxford e de Cambridge. Embora ainda sentisse a “doce apunhalada” da “Alegria”, após terse surpreendido como um cristão, Lewis entendeu que aquele estado emocional e aquela reação a um “estímulo” vindo de Outro não se comparava a Este, ao próprio Deus encarnado. 15 CONCLUSÃO Além do interesse por parte de leitores da extensa obra de Lewis, sua autobiografia é recomendada para os que se dedicam a analisar a proximidade entre a vivência intelectiva e a experiência religiosa; sobretudo, “Surpreendido Pela Alegria” será uma leitura de bom alvitre para os acadêmicos que se propõem a enfrentar aos problemas da existência efetiva de uma divindade pessoal e sua influência na individualidade o que aquela “presença” (ou sua “ausência”) implica na constituição das crenças cognitivas e não-cognitivas e no comportamento de um erudito. Por outro lado, a leitura da autobiografia nos leva a uma reconsideração de uma das mais tradicionais polêmicas filosóficas. Talvez os clássicos argumentos a respeito da existência de Deus não tenham sido refutados, ou pelo menos cabalmente refutados. Como explicar a adesão de Lewis a formas peculiares dos clássicos argumentos? A resposta a tal questão não envolve apenas a argumentação filosófica: há um dado “existencial” envolvido. Não se pode dar as costas ao fato (sociológico, antropológico, psicológico etc.) que literatos, cientistas, enfim, acadêmicos afirmem e ajam de forma inter-pessoal para com aquilo que experienciam no espaço-tempo como Deus. Um bom material para um estudo de caso tanto de psicologia cognitiva, quanto psicologia religiosa (ou, quem sabe, de sociologia do conhecimento); no entanto, mais do que o estudo do fato psicológico humano, o leitor do texto de Lewis se deparará com o fato “divino” – ou o fato “divino-pessoal” – que se irrompe efetivamente na vida de um indivíduo, após uma longa caminhada intelectual e existencial. Uma tal “linha” de pesquisa se deparará com um intrincado e incessante debate que envolve naturalismo, fenomenologia e premissas sustentadas por um “cristianismo puro e simples”: o “fato” divino será tratado como um resultado apenas da interação entre a unidade fisiológica e cognitivo-linguística do indivíduo e seus semelhantes, inseridos em uma cultura histórica, ou também da interação e intervenção do divino dentro da história, dentro da realidade físico-material? As contemporâneas escolas das ciências da religião, da psicologia, da sociologia, enfim, das ciências sócio-comportamentais mantém uma restrição 16 epistêmica prejudicial na medida em que admitem um convencional e acrítico reducionismo naturalista, fazendo do “fato” divino apenas um modo-de-ser da conduta individual e inter-individual, uma “expressão” da religiosidade. Esta matriz reducionista não é apta para compreender e nem para fornecer um modelo explicativo eficaz para o tratamento das situações vivenciadas por Lewis e por muitos outros sinceros teístas-cristãos no tocante ao “fato” divino – um “fato” aliás, que não resulta em qualquer contradição ou antítese com a aptidão intelectiva e com a cultura filosófico-científica do homem; encontram-se na verdade articulados de maneira interdependente ou até mesmo de maneira subordinada (em relação ao substrato religioso). A “Alegria”, um estado psicológico como o autor irá reconhecê-la, foi tratada também como um laivo de um ato praticado por Alguém, como uma “seta disparada” por uma pessoa – a “Alegria” não se limitaria a um mero “estímulo” exterior, e sim como uma “reação” à uma ação pessoal de outrem. Pois bem, a partir da leitura da autobiografia de Lewis, por qual razão estaria afastada cabalmente a hipótese de o divino se “personalizar” e se “comunicar” ao homem (como, por exemplo, se propõe na instigante obra recente de Nicolas Wolterstorff, “Divine Discourse: Philosophical Reflections on the Claim that God Speaks”,14 Cambridge University Press)? Lewis tinha e continua mantendo razão: sua narrativa é algo muito peculiar, pois não se confunde com usuais autobiografias. Quem sabe não seria mais adequado falar em uma antropologia filosófica autobiográfica na qual intelectividade e religiosidade humanas são compreendidas como momentos inseparáveis e interdependentes da experiência do que é ser homem? A quem é apto a (e que poderia ser definido em última análise por) manter-se surpreendentemente em contato com a presença pessoal de Outrem? A leitura de Lewis oferece uma tal senda a ser percorrida. BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO. Confissões. 18 ed. 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