Carta do Prior Geral FERNANDO MILLÁN
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Carta do Prior Geral FERNANDO MILLÁN
RECOMENDO-VOS OS MEUS POBRES E MEUS DOENTES... Carta do Prior Geral FERNANDO MILLÁN ROMERAL a toda a Família Carmelita por ocasião da beatificação de Padre Ângelo Paoli 19 de Março de 2010 Solenidade de São José Introdução O Carmelo, nos seus diversos ramos e grupos, estende-se hoje pelos cinco continentes, estando presente em culturas e contextos sociais muito diferentes. A par dos apostolados mais convencionais (paróquias, colégios, casas de espiritualidade), não poucos carmelitas levam a cabo um trabalho muito louvável no campo da justiça e da paz, na promoção social, na assistência aos mais desfavorecidos. Já há várias décadas existe na Ordem uma Comissão internacional de “Justiça e paz e integridade da criação”, tendo o Carmelo tomado consciência da dimensão profética do nosso carisma e identidade que nos leva a descobrir os sinais da presença de Deus nos pobres e nos mais desfavorecidos. Uma vez que essa presença aparece por vezes sub contrario (na opressão, na miséria, no sofrimento…), só a partir dum profundo olhar contemplativo, iluminado pela fé e cheio de caridade, nos poderemos aproximar dela com a ternura e a confiança do crente, com a fé do místico e com o compromisso transformador do profeta. Ora bem, este trabalho em prol dos mais pobres e necessitados das nossas sociedades modernas receberá um impulso e deparará com um exemplo estupendo na figura do Venerável Ângelo Paoli, que será beatificado no próximo dia 25 de Abril em São João de Latrão, em Roma. A sua beatificação suporá um motivo de alegria e de são orgulho para toda a família carmelita que vê como outro dos seus filhos é elevado à glória dos altares. Recentemente tivemos a felicidade de ver outros carmelitas beatificados ou canonizados: a Madre Curcio e a Madre Scrilli, fundadoras de duas Congregações carmelitas italianas; um grupo de mártires do século XX em Espanha; a Madre Candelária de São José, fundadora das carmelitas venezuelanas; e Nuno de Santa Maria. Cada um deles sublinha um matiz do carisma carmelita, oferecendo-nos pistas para o viver hoje em plenitude. Eles são um exemplo e um presente para o Carmelo dos nossos dias. O testemunho deste Carmelita que viveu entre os séculos XVII e XVIII é muito sugestivo e até mesmo provocante, tendo, apesar da distância temporal que nos separa, uma grande atualidade. Já indicamos noutras outras ocasiões que estas beatificações não são a mera evocação de um passado glorioso, nem uma atividade “arqueológica” (uma espécie de recuperação de fósseis), mas um sinal vivo que nos interpela e questiona sobre o nosso presente e nos ilumina e orienta para o futuro. Convido, por isso, toda a Ordem do Carmo e a família carmelita em geral a viver com alegria esta solene beatificação, a dar graças a Deus por este reconhecimento oficial, por parte da Igreja, da santidade de um de nossos irmãos, e a aprofundar a biografia e o testemunho do novo Beato. Confio-lhe de um modo muito especial todos os carmelitas (religiosos, religiosas, leigos, grupos, etc.) que vivem e trabalham em zonas de pobreza, contribuindo para aliviar as condições de vida dos mais abandonados. Que, por sua intercessão, o Senhor os abençoe e acompanhe nesta tarefa tão difícil, quão necessária. ***** 1. A disponibilidade de um frade O P. Ângelo Paoli nasceu a 1 de Setembro de 1642 em Argigliano, aldeia de Casola in Lunigiana próxima de Fivizzano. No batismo recebeu – como que a título premonitório – o nome de Francisco, o poverello de Assis. Como ele, também Paoli viria a apaixonar-se pela Senhora Pobreza, servindo-a com toda a sua alma. Foi um jovem piedoso e devoto, demonstrando já desde muito cedo uma inclinação para a vida religiosa, optando entre outras possibilidades pelo Carmelo, talvez por causa do seu forte cunho mariano. A primeira parte da vida religiosa do novo Beato decorreu em diversas cidades da Toscana, em Itália central. Chama-nos a atenção na vida deste jovem frade o facto de ter sido destinado a lugares muito diferentes, desempenhando ministérios muito variados na sua Província: foi, entre outros ofícios, mestre de noviços em Florença, Pároco em Corniola, professor de Gramática em Montecatini, sacristão e organista em Fivizzano e, finalmente, chamado pelo Geral para Roma, onde foi mestre de noviços, cargo que deixaria em 1698 a fim de se dedicar completamente aos pobres. Foi apelidado, e não sem razão, viandante e giróvago da obediência. Daqui deduz-se o primeiro traço da sua personalidade que gostaria de realçar: o P. Paoli foi um homem obediente, aberto aos caminhos de Deus e sempre disponível para o que lhe pediam os seus superiores. Confrontados com a organização mais estruturada das congregações modernas, com a especialização de outras congregações num âmbito mais concreto (educação, saúde, missões), com a estabilidade do monge ou com a relação íntima de um padre com um território, os mendicantes são frequentemente acusados de desorganização, de improvisação, de falta de projetos a longo prazo, etc., e, por vezes, não sem razão. Mas o mendicante também tem sua espiritualidade. O mendicante está mais aberto à mudança, à necessidade concreta que leva alguém um lugar para outro. As ordens mendicantes, com o seu espírito itinerante, preservaram aquela flexibilidade e capacidade de se adaptar às necessidades dos tempos e dos lugares, com simplicidade e com dedicação. Neste sentido, talvez o Venerável Paoli também nos lembre hoje algo de essencial: nós não nos podemos fechar e reduzir a certas formas de apostolado, a lugares e situações concretas, mas, como mendicantes, continuamos abertos ao sopro do Espírito que nos conduz a novas situações, a novas necessidades, a novas realidades sociais e eclesiais que requerem a nossa presença. O seu exemplo também implica – porque não dizê-lo – uma chamada de atenção aos carmelitas do século XXI para que evitem toda a instalação, aburguesamento excessivo ou falta de disponibilidade no nosso serviço à Ordem e à Igreja e um desafio a renovar a nossa consagração religiosa. Que o exemplo do novo Beato nos ilumine nos nossos projetos pastorais; que ele nos ajude a aprofundar, como mendicantes, a nossa vocação e nos interpele de forma a vivermos com disponibilidade, abertura e generosidade. 2. Devoção à cruz e amor aos crucificados O mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor é o mistério central da nossa fé e o eixo em volta do qual gira toda a história da salvação. A cruz é, ao mesmo tempo, pergunta e resposta, escuridão e luz, símbolo de morte e tortura, símbolo de vida para o crente. O mistério da cruz prolonga-se na nossa vida de uma forma particularmente intensa no mistério dos crucificados: as vítimas do pecado em todas suas formas, as vítimas do mal, da violência e da injustiça. O Carmelo teve ao longo dos séculos uma profunda e íntima devoção pela cruz. Basta recordar, entre muitos outros: S. João da Cruz, que evoca a morte do Pastorinho-amante, Cristo, “numa árvore onde abriu os seus belos braços” (P 10); Santa Teresa de Jesus que, chamando atrevidamente a cruz de “bem-vinda” (P 7), nos convidava a fixar os olhos no crucificado para que tudo “nos pareça pouco” (7M 4,8); João de S. Sansão e Santa Maria Madalena de’ Pazzi que descobriram que a cruz é a melhor atalaia para contemplar o céu; Francisco da Cruz, carmelita castelhano dos s. XVIXVII que foi em peregrinação a Jerusalém, carregado com uma pesada cruz pesada de madeira; Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face, que se consome no desejo de ir para terras de missão para aí plantar a “cruz gloriosa” (Ms B, IX, 3rº); Edith Stein, que mergulha na profundidade insondável da Ciência da cruz; ou o Beato Tito Brandsma, pregando sobre uma gaveta sebenta, na Sexta-feira Santa de 1942 no campo de concentração de Amersfoort, tendo escrito, pouco antes, na prisão de Scheveningen, o seu célebre poema Perante um quadro de Jesus na minha cela, onde confessa: “a Cruz é a minha alegria, não a minha dor”. A esta lista seria necessário acrescentar, sem dúvida alguma, a figura do frade pobre Ângelo Paoli, também ele apaixonado pela cruz de Cristo. O Beato Ângelo Paoli viveu esta devoção profundamente e difundiu-a pastoralmente ao longo de toda a sua vida. Já entre os pastores das montanhas próximas da sua aldeia, quando, ainda jovem frade, por lá esteve convalescente ao longo de vários meses, difundira aquela devoção, convidando-os a erigir cruzes no alto das montanhas e pregando-lhes com grande afeto. Mais tarde, pároco de Corniola, também propagou esta devoção, e, já em Roma, é muito célebre o facto de ter erguido várias cruzes em lugares emblemáticos da cidade, tais como o Monte Testaccio ou o Coliseu. Aproveitando a proximidade do nosso convento de S. Martinho aos Montes, o P. Ângelo visitava a Igreja da Santa Cruz de Jerusalém e, de regresso da mesma, detinha-se a cuidar dos doentes do hospital de S. João de Latrão, levando-lhes comida, socorrendo-os nas suas necessidades mais básicas e animando-os continuamente, chegando mesmo a distraí-los com teatros improvisados ou músicas. O P. Ângelo morreu, beijando devotamente crucifixo. A iconografia insistiu frequentemente neste ponto. O Carmelo dos nossos dias encontra no testemunho do novo Beato uma esplêndida fonte de inspiração, e, mais ainda, um apelo provocador. A nossa vocação contemplativa faz-nos penetrar na espessura das noites escuras mais dolorosas e sangrentas da nossa regeneração, onde vislumbramos a presença misteriosa do Senhor da vida. Não só isto, mas o novo Beato também soube “descobrir” ao longo da sua vida novas formas de pobreza: pobrezas escondidas ou pobrezas ignoradas, perante as quais a sociedade do seu tempo mostrava pouca ou nenhuma sensibilidade. O P. Ângelo teve a sensibilidade suficiente para perceber o sofrimento das jovens que, por falta de dinheiro, vinham a desembocar numa vida celibatária praticamente sinónima de miséria; o sofrimento dos que abandonavam os hospitais, uns, convalescentes, outros, fisicamente recuperados, mas que, de qualquer forma, acabavam por cair na mendicidade; o sofrimento das famílias arruinadas em consequência das inundações do rio Tibre; o sofrimento dos que se curavam das suas doenças, mas que sofriam a solidão, a tristeza e o abandono. Da sua atenção a todos estes grupos constam exemplos maravilhosos na biografia do nosso Carmelita. O seu testemunho leva-nos pois a abrir os olhos do coração, a escutar os frémitos do nosso tempo e a responder generosa e solidariamente às novas formas de pobreza e de marginalização criadas pela nossa sociedade. Nas últimas décadas, a teologia e a prática pastoral da Igreja sublinharam a importância do pobre, considerando-o mesmo um “lugar teológico”. Numa primeira fase, o pobre foi considerado basicamente e quase exclusivamente como um “pobre económico”, recorrendo-se a critérios meramente sociológicos ou económicos. Mais tarde, as teologias da liberação alargaram gradualmente a sua noção de pobre, tomando consciência de outras formas de pobreza, igualmente cruéis e dolorosas (pobreza de cultura, de afeto, de respeito, de dignidade, de horizontes, de saúde…). Nos nossos dias, o perigo consista talvez em cair no extremo oposto, isto é, o de espiritualizar excessivamente o conceito de pobre, esquecendo que, embora existam muitas formas de pobreza, a pobreza económica continua a ser a mais cruel. A miséria material é, em muitos casos, a génese de todas as outras. Por isso a pobreza económica vem normalmente acompanhada por um séquito horrível de sofrimentos, de carências, de misérias… O exemplo do novo Beato leva-nos também a fugir de uma devoção sentimental ou sentimentalista da cruz que não se traduza de forma espontânea numa atitude de serviço e de respeito, de amor e de sensibilidade, de compromisso responsável com os crucificados do nosso tempo. Uma espiritualidade desencarnada e espiritualista que ignore sistematicamente o sofrimento dos homens e mulheres do nosso tempo nem é uma verdadeira espiritualidade cristã, nem condiz com o carisma e a tradição carmelitas. Que o testemunho do novo Beato nos leve a ser verdadeiros adoradores e amigos da cruz de Cristo, tornando-nos cada vez mais sensíveis ao sofrimento dos nossos irmãos, comprometendo-nos cada vez mais com a transformação do nosso mundo, fazendo-nos cada vez mais humanos e entranháveis com todos. 3. Os pobres são os irmãos de Jesus Como dissemos, o P. Ângelo Paoli caracterizou-se por atender com solicitude e caridade os necessitados do seu tempo. A caridade e a assistência aos pobres são um elemento essencial da Igreja desde as suas origens, chegando-se muitas vezes ao ponto de se considerar a esmola, a caridade e a entrega generosa aos pobres e doentes os traços distintivos do cristianismo. Também no tempo do P. Paoli, a Igreja tinha também uma multidão de entidades, associações e pessoas que dedicavam à assistência dos desamparados. O P. Ângelo destacou-se heroicamente neste serviço, a que se dedicou com todas as suas forças. Mas talvez haja também certos traços do seu trabalho que pressuponham uma certa novidade ou, pelo menos, definam a peculiaridade do seu perfil biográfico. Assinalaremos apenas alguns. Em primeiro lugar, o P. Ângelo dedicou-se aos pobres com verdadeira paixão. Embora tenha trabalhado em muitos outros serviços conventuais e apostólicos – como já o referimos –, a assistência aos necessitados foi o que realmente o entusiasmou. Quiçá na raiz dessa paixão esteja a sua vigorosa e profunda espiritualidade. O P. Paoli foi um homem de profunda e contínua oração, um frade de uma piedade constante e autêntica, um místico que procurava o silêncio e a mortificação. Paoli não se aproxima dos pobres como um político, nem como um ideólogo, nem como um filantropo; para ele, os pobres não são uma metáfora, nem o tópico de um discurso ou cifras de uma estatística. Ele aproxima-se dos pobres como um contemplativo que vê neles o próprio Cristo, o Cristo sofredor, pobre e crucificado, pelo qual nutria tanta devoção. Daí a sua frase célebre, que costumava repetir com humildade: “Quem ama a Deus deve procurá-lo entre os pobres”. Esta atitude espiritual do nosso frade traduziu-se imediatamente noutras atitudes que adornaram o seu perfil espiritual: a alegria que sempre conservou, mesmo nos momentos mais difíceis, e que procurou transmitir e difundir entre os doentes e os mendigos; a total confiança em Deus; a ternura e apreço com que tratava os necessitados, para que nunca se sentissem humilhados na sua triste condição... Eles são – novamente no dizer textual do novo Beato – “os irmãos de Jesus”, devendo ser tratados, “considerando-os como sendo o próprio Jesus em pessoa”. E porque punha toda a sua confiança em Deus, apesar do aparente ativismo em que se desdobrava, nunca perdia a calma, nem o sorriso, costumando repetir: “Tenho uma dispensa onde nunca falta nada…”. E assim, miraculosamente, continuava a acolher de modo infatigável todos os que batiam à sua porta pedindo ajuda. Para levar a cabo esta tarefa, o P. Ângelo sabia recorrer aos poderosos do seu tempo. É bem sabido que o pobre frade, com quem algum prior teve que discutir seriamente para que vestisse um hábito novo, e que era amigo dos mais carentes e andrajosos dessa Roma barroca, também gozou de muitas e boas amizades entre os mais poderosos do seu tempo. Nobres, altos dignitários, embaixadores e cardeais batiam à porta do frade carmelita para lhe pedir conselho ou para lhe dar alguma ajuda para o seu trabalho caritativo. Embora em mais de uma ocasião tivesse dito que a relação com os nobres e os ricos era a sua maior cruz, ele soube – como as pessoas realmente grandes – tratar todos com a mesma dignidade, respeito e afeto: sem afetação servil em relação aos ricos, sem altivez nem impaciência para com os mais pobres. Ângelo Paoli também soube descobrir a pobreza que às vezes se esconde atrás da riqueza económica. Uma vez mais o seu exemplo é instrutivo para nós hoje, chamados, enquanto carmelitas do século XXI, a detetar essas formas de pobreza não só nos países do impropriamente chamado “terceiro mundo", mas também nas sociedades ocidentais, onde há uma grande presença carmelita e onde, por detrás de um relativo bem-estar económico, se escondem também pobrezas lacerantes de diversos tipos. O Venerável manteve sempre a mesma atitude humilde, sóbria, digna, franca e amável, tanto com os mais pobres e miseráveis da cidade, como com os ricos e nobres. Mais ainda: sem os julgar, granjeou o seu respeito e soube ganhá-los para a causa dos pobres, implicando-os nos projetos sociais e chamando-os suavemente – de modo realmente profético –, à conversão e à caridade, no meio daquele mundo de luxos e boatos que contrastavam escandalosamente com a miséria dos pobres. Teve também amizade com vários Papas, sobretudo com Clemente XI, o qual sentiu muito a morte de Paoli e que, na sua doença, lhe mandou o seu próprio médico pessoal. Seria este Papa a insistir que se gravasse no seu túmulo a inscrição “pai dos pobres”, epíteto que lhe fora aplicado desde a sua juventude. 4. Um serviço integral ao pobre Um último traço da personalidade do novo Beato, no que se refere à assistência aos pobres, chama fortemente a atenção por causa da sua própria atualidade. O P. Ângelo intuiu já nos começos do século XVIII que a atenção aos necessitados deveria ser integral, não se limitando apenas ao assistencialismo ou a responder às necessidades mais básicas. Quando o nosso frade se aproximava dos pobres, não lhes levava apenas comida, roupas e as coisas mais básicas para sobrevivência, mas também o acompanhava com uma formação catequética, e do que hoje chamaríamos uma atenção psicológica, principalmente aos doentes, a quem o P. Ângelo levava música, pequenos teatros improvisados e, sem mais, alegria e esperança. Seria talvez conveniente incluir aqui a sua reputação de taumaturgo. De facto, depreende-se dos processos que gozou, sem dúvida alguma, daquela fama (que não só não procurou, mas que inclusive foi voluntariamente escondida pelo P. Paoli durante a sua vida). Este é um campo onde devemos ser mais cautelosos com a hagiografia barroca. Mais do que fixar-nos na historicidade deste ou daquele elemento da sua biografia, o seu testemunho incita-nos, também a nós, carmelitas do século XXI, a assumir o sentido da sua faceta taumatúrgica: ajudar os doentes, tratar as feridas, curar as situações, enxugar as lágrimas, paliar pobrezas e misérias, abrir janelas a novos horizontes; em suma, fazer pequenos milagres com a graça de Deus. Neste sentido poderíamos ainda salientar muitos outros aspetos do perfil espiritual do novo Beato. Mencionaremos apenas a sua austeridade e coerência de vida (basta ver a reprodução da sua cela em S. Martinho aos Montes); a prudência e o bom senso de que fez gala nas situações mais difíceis; o seu interesse em formar os jovens carmelitas para terem também eles a mesma sensibilidade para com os pobres (o que constitui, sem dúvida, um grande desafio – aliás já recolhido na nossa Ratio Institutionis Vitae Carmelitanae – aos nossos processos formativos); a sua perseverança e constância neste serviço aos pobres, sem cair no desânimo e no cansaço, mesmo nos momentos de incompreensão e de crítica (uma verdadeira “advertência ao navegantes”, aos amantes da “solidariedade de fim de semana”, muito em voga nos nossos dias); o facto de saber conjugar (antecipando em vários séculos a atual sensibilidade da Igreja) a caridade e a assistência com um profundo sentido de justiça. Queira Deus que a Ordem do Carmo conserve essa mesma atitude de confiança cega na sua providência e de entusiasmo no serviço criativo aos pobres deste mundo. Queira Deus que as nossas dispensas continuem a estar cheias de fé, esperança e caridade. Queira Deus que nunca venha a decair o nosso compromisso de solidariedade, a nossa caridade e a nossa compaixão perante todas as formas de sofrimento de humano. 5. O carmelita O P. Ângelo também viveu intensamente a sua vocação carmelita. De facto, foi uma vocação bem meditada e discernida, uma vez que entrou no convento só depois de previamente ter recebido a tonsura e de ter pensado noutras formas possíveis de vida religiosa. Segundo os seus biógrafos, poderia ter sido a devoção mariana a incliná-lo para o Carmelo, a Ordem de Maria. Desde muito jovem viveu uma profunda devoção mariana. Sabemos que costumava visitar os eremitérios da Virgem nos campos próximos da sua aldeia, passando aí longos tempos de oração. Mais tarde soube viver e expressar essa devoção com a especificidade do Carmelo, especialmente através do escapulário carmelita. Nos tempos livres fazia ele mesmo escapulários que acabaram por ser “famosos”. Está comprovado o facto de, aquando a fundação do hospital de convalescentes em Roma, o notário e os empregados, ao ajustaram os contratos, se terem recusado a cobrar-lhe em dinheiro, pedindo-lhe apenas escapulários feitos por ele mesmo. O P. Paoli intuiu a força deste sinal tão singelo e tão querido à família carmelita. Tal como corresponde à piedade carmelita daquele tempo, o P. Ângelo viveu com zelo a vida conventual e os sinais que serviam para expressar o amor à Ordem e à sua espiritualidade e tradições. Amante do seu hábito (sinal, para ele, de pobreza e não de distinção), cumpridor fiel da observância religiosa, apesar das suas múltiplas ocupações, obediente aos superiores, fraterno e próximo dos irmãos da comunidade… o P. Ângelo foi um carmelita exemplar, um homem que viu na sua vocação Carmelita, não um impedimento ou um fardo, mas antes um incentivo e uma fonte de inspiração para o seu trabalho social com os pobres. ***** A sua biografia é em consequência (mesmo se despojada dos exageros hagiográficos do Barroco) realmente excecional e aliciante. Em mais de uma ocasião foram salientadas certas semelhanças com o perfil e a biografia de S. Filipe Neri. É realmente comovedora a cena das últimas horas do P. Ângelo. Ele, agonizando, rodeado pelos irmãos da sua comunidade, perfeitamente consciente e assumindo a sua morte com um verdadeiro espírito de fé e de piedade… Lá fora, na pequena praça em frente do convento, comparecem os pobres, os mendigos, os andrajosos, os necessitados, os doentes… para dar o último adeus àquele que tinha sido para eles um verdadeiro pai nesta terra. Estava a morrer o “irmão caridade” (“fratel carità”) ou “pai dos pobres”, tal como o chamavam desde a sua juventude. Estava a morrer, mas deixando um admirável testemunho. Na cidade dos mártires, que fora cantada pelos poetas cristãos (purpurata pretioso sanguine), e cujo testemunho apaixonou sempre o P. Ângelo desde a sua chegada a Roma, morria também ele como um mártir, como uma testemunha, um profeta de esperança, um verdadeiro sinal da ternura de Deus para com os últimos desta terra. A sua voz parece ressonar ainda com força para nós hoje, como fez (então trémula e cansada) naquela enternecedora conversa final com o seu amigo, o Príncipe Jerónimo Altieri, quando, ao pedir-lhe este que intercedesse pela sua família diante do Senhor… o P. Ângelo, moribundo, lhe responde com tremenda humanidade e um certo toque de humor: “… e eu recomendo-lhe os meus pobres e meus convalescentes”. Que as suas palavras (que nós adaptámos como título desta carta) sejam escutadas atentamente, com emoção, por toda a Ordem e família carmelitas: “Recomendo-vos os meus pobres e meus convalescentes”. Se formos fiéis a esta mensagem, a sua beatificação será, sem dúvida, um momento fértil de reflexão, de encorajamento, de impulso ao nosso serviço aos pobres do nosso tempo. Que o Beato Ângelo Paoli continue a acompanhar-nos na nossa tarefa em prol dos mais necessitados. Que nós saibamos aprender dele e da sua atitude para com os mais pobres. Que a Nossa Mãe do Carmelo, Estrela do Mar, nos ilumine e guie na hora de levar adiante tão admirável repto. Fernando Millán Romeral, O.Carm. Prior Geral