Carta do Prior Geral FERNANDO MILLÁN

Transcrição

Carta do Prior Geral FERNANDO MILLÁN
RECOMENDO-VOS OS MEUS POBRES E
MEUS DOENTES...
Carta do Prior Geral
FERNANDO MILLÁN ROMERAL
a toda a Família Carmelita
por ocasião da beatificação
de Padre Ângelo Paoli
19 de Março de 2010
Solenidade de São José
Introdução
O Carmelo, nos seus diversos ramos e grupos, estende-se hoje pelos
cinco continentes, estando presente em culturas e contextos sociais muito
diferentes. A par dos apostolados mais convencionais (paróquias, colégios,
casas de espiritualidade), não poucos carmelitas levam a cabo um trabalho
muito louvável no campo da justiça e da paz, na promoção social, na
assistência aos mais desfavorecidos.
Já há várias décadas existe na Ordem uma Comissão internacional de
“Justiça e paz e integridade da criação”, tendo o Carmelo tomado
consciência da dimensão profética do nosso carisma e identidade que nos
leva a descobrir os sinais da presença de Deus nos pobres e nos mais
desfavorecidos. Uma vez que essa presença aparece por vezes sub
contrario (na opressão, na miséria, no sofrimento…), só a partir dum
profundo olhar contemplativo, iluminado pela fé e cheio de caridade, nos
poderemos aproximar dela com a ternura e a confiança do crente, com a fé
do místico e com o compromisso transformador do profeta.
Ora bem, este trabalho em prol dos mais pobres e necessitados das
nossas sociedades modernas receberá um impulso e deparará com um
exemplo estupendo na figura do Venerável Ângelo Paoli, que será
beatificado no próximo dia 25 de Abril em São João de Latrão, em Roma.
A sua beatificação suporá um motivo de alegria e de são orgulho para toda
a família carmelita que vê como outro dos seus filhos é elevado à glória dos
altares.
Recentemente tivemos a felicidade de ver outros carmelitas
beatificados ou canonizados: a Madre Curcio e a Madre Scrilli, fundadoras
de duas Congregações carmelitas italianas; um grupo de mártires do século
XX em Espanha; a Madre Candelária de São José, fundadora das
carmelitas venezuelanas; e Nuno de Santa Maria. Cada um deles sublinha
um matiz do carisma carmelita, oferecendo-nos pistas para o viver hoje em
plenitude. Eles são um exemplo e um presente para o Carmelo dos nossos
dias.
O testemunho deste Carmelita que viveu entre os séculos XVII e
XVIII é muito sugestivo e até mesmo provocante, tendo, apesar da
distância temporal que nos separa, uma grande atualidade. Já indicamos
noutras outras ocasiões que estas beatificações não são a mera evocação de
um passado glorioso, nem uma atividade “arqueológica” (uma espécie de
recuperação de fósseis), mas um sinal vivo que nos interpela e questiona
sobre o nosso presente e nos ilumina e orienta para o futuro.
Convido, por isso, toda a Ordem do Carmo e a família carmelita em
geral a viver com alegria esta solene beatificação, a dar graças a Deus por
este reconhecimento oficial, por parte da Igreja, da santidade de um de
nossos irmãos, e a aprofundar a biografia e o testemunho do novo Beato.
Confio-lhe de um modo muito especial todos os carmelitas (religiosos,
religiosas, leigos, grupos, etc.) que vivem e trabalham em zonas de
pobreza, contribuindo para aliviar as condições de vida dos mais
abandonados. Que, por sua intercessão, o Senhor os abençoe e acompanhe
nesta tarefa tão difícil, quão necessária.
*****
1. A disponibilidade de um frade
O P. Ângelo Paoli nasceu a 1 de Setembro de 1642 em Argigliano,
aldeia de Casola in Lunigiana próxima de Fivizzano. No batismo recebeu –
como que a título premonitório – o nome de Francisco, o poverello de
Assis. Como ele, também Paoli viria a apaixonar-se pela Senhora Pobreza,
servindo-a com toda a sua alma. Foi um jovem piedoso e devoto,
demonstrando já desde muito cedo uma inclinação para a vida religiosa,
optando entre outras possibilidades pelo Carmelo, talvez por causa do seu
forte cunho mariano.
A primeira parte da vida religiosa do novo Beato decorreu em
diversas cidades da Toscana, em Itália central. Chama-nos a atenção na
vida deste jovem frade o facto de ter sido destinado a lugares muito
diferentes, desempenhando ministérios muito variados na sua Província:
foi, entre outros ofícios, mestre de noviços em Florença, Pároco em
Corniola, professor de Gramática em Montecatini, sacristão e organista em
Fivizzano e, finalmente, chamado pelo Geral para Roma, onde foi mestre
de noviços, cargo que deixaria em 1698 a fim de se dedicar completamente
aos pobres. Foi apelidado, e não sem razão, viandante e giróvago da
obediência.
Daqui deduz-se o primeiro traço da sua personalidade que gostaria de
realçar: o P. Paoli foi um homem obediente, aberto aos caminhos de Deus e
sempre disponível para o que lhe pediam os seus superiores. Confrontados
com a organização mais estruturada das congregações modernas, com a
especialização de outras congregações num âmbito mais concreto
(educação, saúde, missões), com a estabilidade do monge ou com a relação
íntima de um padre com um território, os mendicantes são frequentemente
acusados de desorganização, de improvisação, de falta de projetos a longo
prazo, etc., e, por vezes, não sem razão. Mas o mendicante também tem sua
espiritualidade. O mendicante está mais aberto à mudança, à necessidade
concreta que leva alguém um lugar para outro. As ordens mendicantes, com
o seu espírito itinerante, preservaram aquela flexibilidade e capacidade de
se adaptar às necessidades dos tempos e dos lugares, com simplicidade e
com dedicação. Neste sentido, talvez o Venerável Paoli também nos lembre
hoje algo de essencial: nós não nos podemos fechar e reduzir a certas
formas de apostolado, a lugares e situações concretas, mas, como
mendicantes, continuamos abertos ao sopro do Espírito que nos conduz a
novas situações, a novas necessidades, a novas realidades sociais e eclesiais
que requerem a nossa presença.
O seu exemplo também implica – porque não dizê-lo – uma chamada
de atenção aos carmelitas do século XXI para que evitem toda a instalação,
aburguesamento excessivo ou falta de disponibilidade no nosso serviço à
Ordem e à Igreja e um desafio a renovar a nossa consagração religiosa.
Que o exemplo do novo Beato nos ilumine nos nossos projetos
pastorais; que ele nos ajude a aprofundar, como mendicantes, a nossa
vocação e nos interpele de forma a vivermos com disponibilidade, abertura
e generosidade.
2. Devoção à cruz e amor aos crucificados
O mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor é o mistério
central da nossa fé e o eixo em volta do qual gira toda a história da
salvação. A cruz é, ao mesmo tempo, pergunta e resposta, escuridão e luz,
símbolo de morte e tortura, símbolo de vida para o crente. O mistério da
cruz prolonga-se na nossa vida de uma forma particularmente intensa no
mistério dos crucificados: as vítimas do pecado em todas suas formas, as
vítimas do mal, da violência e da injustiça.
O Carmelo teve ao longo dos séculos uma profunda e íntima devoção
pela cruz. Basta recordar, entre muitos outros: S. João da Cruz, que evoca a
morte do Pastorinho-amante, Cristo, “numa árvore onde abriu os seus
belos braços” (P 10); Santa Teresa de Jesus que, chamando atrevidamente a
cruz de “bem-vinda” (P 7), nos convidava a fixar os olhos no crucificado
para que tudo “nos pareça pouco” (7M 4,8); João de S. Sansão e Santa
Maria Madalena de’ Pazzi que descobriram que a cruz é a melhor atalaia
para contemplar o céu; Francisco da Cruz, carmelita castelhano dos s. XVIXVII que foi em peregrinação a Jerusalém, carregado com uma pesada cruz
pesada de madeira; Teresinha do Menino Jesus e da Santa Face, que se
consome no desejo de ir para terras de missão para aí plantar a “cruz
gloriosa” (Ms B, IX, 3rº); Edith Stein, que mergulha na profundidade
insondável da Ciência da cruz; ou o Beato Tito Brandsma, pregando sobre
uma gaveta sebenta, na Sexta-feira Santa de 1942 no campo de
concentração de Amersfoort, tendo escrito, pouco antes, na prisão de
Scheveningen, o seu célebre poema Perante um quadro de Jesus na minha
cela, onde confessa: “a Cruz é a minha alegria, não a minha dor”. A esta
lista seria necessário acrescentar, sem dúvida alguma, a figura do frade
pobre Ângelo Paoli, também ele apaixonado pela cruz de Cristo.
O Beato Ângelo Paoli viveu esta devoção profundamente e
difundiu-a pastoralmente ao longo de toda a sua vida. Já entre os pastores
das montanhas próximas da sua aldeia, quando, ainda jovem frade, por lá
esteve convalescente ao longo de vários meses, difundira aquela devoção,
convidando-os a erigir cruzes no alto das montanhas e pregando-lhes com
grande afeto. Mais tarde, pároco de Corniola, também propagou esta
devoção, e, já em Roma, é muito célebre o facto de ter erguido várias
cruzes em lugares emblemáticos da cidade, tais como o Monte Testaccio ou
o Coliseu. Aproveitando a proximidade do nosso convento de S. Martinho
aos Montes, o P. Ângelo visitava a Igreja da Santa Cruz de Jerusalém e, de
regresso da mesma, detinha-se a cuidar dos doentes do hospital de S. João
de Latrão, levando-lhes comida, socorrendo-os nas suas necessidades mais
básicas e animando-os continuamente, chegando mesmo a distraí-los com
teatros improvisados ou músicas. O P. Ângelo morreu, beijando
devotamente crucifixo. A iconografia insistiu frequentemente neste ponto.
O Carmelo dos nossos dias encontra no testemunho do novo Beato
uma esplêndida fonte de inspiração, e, mais ainda, um apelo provocador. A
nossa vocação contemplativa faz-nos penetrar na espessura das noites
escuras mais dolorosas e sangrentas da nossa regeneração, onde
vislumbramos a presença misteriosa do Senhor da vida. Não só isto, mas o
novo Beato também soube “descobrir” ao longo da sua vida novas formas
de pobreza: pobrezas escondidas ou pobrezas ignoradas, perante as quais a
sociedade do seu tempo mostrava pouca ou nenhuma sensibilidade. O
P. Ângelo teve a sensibilidade suficiente para perceber o sofrimento das
jovens que, por falta de dinheiro, vinham a desembocar numa vida
celibatária praticamente sinónima de miséria; o sofrimento dos que
abandonavam os hospitais, uns, convalescentes, outros, fisicamente
recuperados, mas que, de qualquer forma, acabavam por cair na
mendicidade; o sofrimento das famílias arruinadas em consequência das
inundações do rio Tibre; o sofrimento dos que se curavam das suas
doenças, mas que sofriam a solidão, a tristeza e o abandono. Da sua
atenção a todos estes grupos constam exemplos maravilhosos na biografia
do nosso Carmelita. O seu testemunho leva-nos pois a abrir os olhos do
coração, a escutar os frémitos do nosso tempo e a responder generosa e
solidariamente às novas formas de pobreza e de marginalização criadas
pela nossa sociedade.
Nas últimas décadas, a teologia e a prática pastoral da Igreja
sublinharam a importância do pobre, considerando-o mesmo um “lugar
teológico”. Numa primeira fase, o pobre foi considerado basicamente e
quase exclusivamente como um “pobre económico”, recorrendo-se a
critérios meramente sociológicos ou económicos. Mais tarde, as teologias
da liberação alargaram gradualmente a sua noção de pobre, tomando
consciência de outras formas de pobreza, igualmente cruéis e dolorosas
(pobreza de cultura, de afeto, de respeito, de dignidade, de horizontes, de
saúde…). Nos nossos dias, o perigo consista talvez em cair no extremo
oposto, isto é, o de espiritualizar excessivamente o conceito de pobre,
esquecendo que, embora existam muitas formas de pobreza, a pobreza
económica continua a ser a mais cruel. A miséria material é, em muitos
casos, a génese de todas as outras. Por isso a pobreza económica vem
normalmente acompanhada por um séquito horrível de sofrimentos, de
carências, de misérias…
O exemplo do novo Beato leva-nos também a fugir de uma devoção
sentimental ou sentimentalista da cruz que não se traduza de forma
espontânea numa atitude de serviço e de respeito, de amor e de
sensibilidade, de compromisso responsável com os crucificados do nosso
tempo. Uma espiritualidade desencarnada e espiritualista que ignore
sistematicamente o sofrimento dos homens e mulheres do nosso tempo nem
é uma verdadeira espiritualidade cristã, nem condiz com o carisma e a
tradição carmelitas.
Que o testemunho do novo Beato nos leve a ser verdadeiros
adoradores e amigos da cruz de Cristo, tornando-nos cada vez mais
sensíveis ao sofrimento dos nossos irmãos, comprometendo-nos cada vez
mais com a transformação do nosso mundo, fazendo-nos cada vez mais
humanos e entranháveis com todos.
3. Os pobres são os irmãos de Jesus
Como dissemos, o P. Ângelo Paoli caracterizou-se por atender com
solicitude e caridade os necessitados do seu tempo. A caridade e a
assistência aos pobres são um elemento essencial da Igreja desde as suas
origens, chegando-se muitas vezes ao ponto de se considerar a esmola, a
caridade e a entrega generosa aos pobres e doentes os traços distintivos do
cristianismo.
Também no tempo do P. Paoli, a Igreja tinha também uma multidão
de entidades, associações e pessoas que dedicavam à assistência dos
desamparados. O P. Ângelo destacou-se heroicamente neste serviço, a que
se dedicou com todas as suas forças. Mas talvez haja também certos traços
do seu trabalho que pressuponham uma certa novidade ou, pelo menos,
definam a peculiaridade do seu perfil biográfico. Assinalaremos apenas
alguns.
Em primeiro lugar, o P. Ângelo dedicou-se aos pobres com
verdadeira paixão. Embora tenha trabalhado em muitos outros serviços
conventuais e apostólicos – como já o referimos –, a assistência aos
necessitados foi o que realmente o entusiasmou. Quiçá na raiz dessa paixão
esteja a sua vigorosa e profunda espiritualidade. O P. Paoli foi um homem
de profunda e contínua oração, um frade de uma piedade constante e
autêntica, um místico que procurava o silêncio e a mortificação. Paoli não
se aproxima dos pobres como um político, nem como um ideólogo, nem
como um filantropo; para ele, os pobres não são uma metáfora, nem o
tópico de um discurso ou cifras de uma estatística. Ele aproxima-se dos
pobres como um contemplativo que vê neles o próprio Cristo, o Cristo
sofredor, pobre e crucificado, pelo qual nutria tanta devoção. Daí a sua
frase célebre, que costumava repetir com humildade: “Quem ama a Deus
deve procurá-lo entre os pobres”.
Esta atitude espiritual do nosso frade traduziu-se imediatamente
noutras atitudes que adornaram o seu perfil espiritual: a alegria que sempre
conservou, mesmo nos momentos mais difíceis, e que procurou transmitir e
difundir entre os doentes e os mendigos; a total confiança em Deus; a
ternura e apreço com que tratava os necessitados, para que nunca se
sentissem humilhados na sua triste condição... Eles são – novamente no
dizer textual do novo Beato – “os irmãos de Jesus”, devendo ser tratados,
“considerando-os como sendo o próprio Jesus em pessoa”. E porque punha
toda a sua confiança em Deus, apesar do aparente ativismo em que se
desdobrava, nunca perdia a calma, nem o sorriso, costumando repetir:
“Tenho uma dispensa onde nunca falta nada…”. E assim,
miraculosamente, continuava a acolher de modo infatigável todos os que
batiam à sua porta pedindo ajuda.
Para levar a cabo esta tarefa, o P. Ângelo sabia recorrer aos
poderosos do seu tempo. É bem sabido que o pobre frade, com quem algum
prior teve que discutir seriamente para que vestisse um hábito novo, e que
era amigo dos mais carentes e andrajosos dessa Roma barroca, também
gozou de muitas e boas amizades entre os mais poderosos do seu tempo.
Nobres, altos dignitários, embaixadores e cardeais batiam à porta do frade
carmelita para lhe pedir conselho ou para lhe dar alguma ajuda para o seu
trabalho caritativo. Embora em mais de uma ocasião tivesse dito que a
relação com os nobres e os ricos era a sua maior cruz, ele soube – como as
pessoas realmente grandes – tratar todos com a mesma dignidade, respeito
e afeto: sem afetação servil em relação aos ricos, sem altivez nem
impaciência para com os mais pobres. Ângelo Paoli também soube
descobrir a pobreza que às vezes se esconde atrás da riqueza económica.
Uma vez mais o seu exemplo é instrutivo para nós hoje, chamados,
enquanto carmelitas do século XXI, a detetar essas formas de pobreza não
só nos países do impropriamente chamado “terceiro mundo", mas também
nas sociedades ocidentais, onde há uma grande presença carmelita e onde,
por detrás de um relativo bem-estar económico, se escondem também
pobrezas lacerantes de diversos tipos.
O Venerável manteve sempre a mesma atitude humilde, sóbria,
digna, franca e amável, tanto com os mais pobres e miseráveis da cidade,
como com os ricos e nobres. Mais ainda: sem os julgar, granjeou o seu
respeito e soube ganhá-los para a causa dos pobres, implicando-os nos
projetos sociais e chamando-os suavemente – de modo realmente profético
–, à conversão e à caridade, no meio daquele mundo de luxos e boatos que
contrastavam escandalosamente com a miséria dos pobres.
Teve também amizade com vários Papas, sobretudo com Clemente
XI, o qual sentiu muito a morte de Paoli e que, na sua doença, lhe mandou
o seu próprio médico pessoal. Seria este Papa a insistir que se gravasse no
seu túmulo a inscrição “pai dos pobres”, epíteto que lhe fora aplicado desde
a sua juventude.
4. Um serviço integral ao pobre
Um último traço da personalidade do novo Beato, no que se refere à
assistência aos pobres, chama fortemente a atenção por causa da sua
própria atualidade. O P. Ângelo intuiu já nos começos do século XVIII que
a atenção aos necessitados deveria ser integral, não se limitando apenas ao
assistencialismo ou a responder às necessidades mais básicas. Quando o
nosso frade se aproximava dos pobres, não lhes levava apenas comida,
roupas e as coisas mais básicas para sobrevivência, mas também o
acompanhava com uma formação catequética, e do que hoje chamaríamos
uma atenção psicológica, principalmente aos doentes, a quem o P. Ângelo
levava música, pequenos teatros improvisados e, sem mais, alegria e
esperança.
Seria talvez conveniente incluir aqui a sua reputação de taumaturgo.
De facto, depreende-se dos processos que gozou, sem dúvida alguma,
daquela fama (que não só não procurou, mas que inclusive foi
voluntariamente escondida pelo P. Paoli durante a sua vida). Este é um
campo onde devemos ser mais cautelosos com a hagiografia barroca. Mais
do que fixar-nos na historicidade deste ou daquele elemento da sua
biografia, o seu testemunho incita-nos, também a nós, carmelitas do século
XXI, a assumir o sentido da sua faceta taumatúrgica: ajudar os doentes,
tratar as feridas, curar as situações, enxugar as lágrimas, paliar pobrezas e
misérias, abrir janelas a novos horizontes; em suma, fazer pequenos
milagres com a graça de Deus.
Neste sentido poderíamos ainda salientar muitos outros aspetos do
perfil espiritual do novo Beato. Mencionaremos apenas a sua austeridade e
coerência de vida (basta ver a reprodução da sua cela em S. Martinho aos
Montes); a prudência e o bom senso de que fez gala nas situações mais
difíceis; o seu interesse em formar os jovens carmelitas para terem também
eles a mesma sensibilidade para com os pobres (o que constitui, sem
dúvida, um grande desafio – aliás já recolhido na nossa Ratio Institutionis
Vitae Carmelitanae – aos nossos processos formativos); a sua perseverança
e constância neste serviço aos pobres, sem cair no desânimo e no cansaço,
mesmo nos momentos de incompreensão e de crítica (uma verdadeira
“advertência ao navegantes”, aos amantes da “solidariedade de fim de
semana”, muito em voga nos nossos dias); o facto de saber conjugar
(antecipando em vários séculos a atual sensibilidade da Igreja) a caridade e
a assistência com um profundo sentido de justiça.
Queira Deus que a Ordem do Carmo conserve essa mesma atitude de
confiança cega na sua providência e de entusiasmo no serviço criativo aos
pobres deste mundo. Queira Deus que as nossas dispensas continuem a
estar cheias de fé, esperança e caridade. Queira Deus que nunca venha a
decair o nosso compromisso de solidariedade, a nossa caridade e a nossa
compaixão perante todas as formas de sofrimento de humano.
5. O carmelita
O P. Ângelo também viveu intensamente a sua vocação carmelita.
De facto, foi uma vocação bem meditada e discernida, uma vez que entrou
no convento só depois de previamente ter recebido a tonsura e de ter
pensado noutras formas possíveis de vida religiosa. Segundo os seus
biógrafos, poderia ter sido a devoção mariana a incliná-lo para o Carmelo,
a Ordem de Maria.
Desde muito jovem viveu uma profunda devoção mariana. Sabemos
que costumava visitar os eremitérios da Virgem nos campos próximos da
sua aldeia, passando aí longos tempos de oração. Mais tarde soube viver e
expressar essa devoção com a especificidade do Carmelo, especialmente
através do escapulário carmelita. Nos tempos livres fazia ele mesmo
escapulários que acabaram por ser “famosos”. Está comprovado o facto de,
aquando a fundação do hospital de convalescentes em Roma, o notário e os
empregados, ao ajustaram os contratos, se terem recusado a cobrar-lhe em
dinheiro, pedindo-lhe apenas escapulários feitos por ele mesmo. O P. Paoli
intuiu a força deste sinal tão singelo e tão querido à família carmelita.
Tal como corresponde à piedade carmelita daquele tempo, o P.
Ângelo viveu com zelo a vida conventual e os sinais que serviam para
expressar o amor à Ordem e à sua espiritualidade e tradições. Amante do
seu hábito (sinal, para ele, de pobreza e não de distinção), cumpridor fiel da
observância religiosa, apesar das suas múltiplas ocupações, obediente aos
superiores, fraterno e próximo dos irmãos da comunidade… o P. Ângelo
foi um carmelita exemplar, um homem que viu na sua vocação Carmelita,
não um impedimento ou um fardo, mas antes um incentivo e uma fonte de
inspiração para o seu trabalho social com os pobres.
*****
A sua biografia é em consequência (mesmo se despojada dos
exageros hagiográficos do Barroco) realmente excecional e aliciante. Em
mais de uma ocasião foram salientadas certas semelhanças com o perfil e a
biografia de S. Filipe Neri. É realmente comovedora a cena das últimas
horas do P. Ângelo. Ele, agonizando, rodeado pelos irmãos da sua
comunidade, perfeitamente consciente e assumindo a sua morte com um
verdadeiro espírito de fé e de piedade… Lá fora, na pequena praça em
frente do convento, comparecem os pobres, os mendigos, os andrajosos, os
necessitados, os doentes… para dar o último adeus àquele que tinha sido
para eles um verdadeiro pai nesta terra. Estava a morrer o “irmão caridade”
(“fratel carità”) ou “pai dos pobres”, tal como o chamavam desde a sua
juventude.
Estava a morrer, mas deixando um admirável testemunho. Na cidade
dos mártires, que fora cantada pelos poetas cristãos (purpurata pretioso
sanguine), e cujo testemunho apaixonou sempre o P. Ângelo desde a sua
chegada a Roma, morria também ele como um mártir, como uma
testemunha, um profeta de esperança, um verdadeiro sinal da ternura de
Deus para com os últimos desta terra.
A sua voz parece ressonar ainda com força para nós hoje, como fez
(então trémula e cansada) naquela enternecedora conversa final com o seu
amigo, o Príncipe Jerónimo Altieri, quando, ao pedir-lhe este que
intercedesse pela sua família diante do Senhor… o P. Ângelo, moribundo,
lhe responde com tremenda humanidade e um certo toque de humor: “… e
eu recomendo-lhe os meus pobres e meus convalescentes”. Que as suas
palavras (que nós adaptámos como título desta carta) sejam escutadas
atentamente, com emoção, por toda a Ordem e família carmelitas:
“Recomendo-vos os meus pobres e meus convalescentes”. Se formos fiéis a
esta mensagem, a sua beatificação será, sem dúvida, um momento fértil de
reflexão, de encorajamento, de impulso ao nosso serviço aos pobres do
nosso tempo.
Que o Beato Ângelo Paoli continue a acompanhar-nos na nossa
tarefa em prol dos mais necessitados. Que nós saibamos aprender dele e da
sua atitude para com os mais pobres. Que a Nossa Mãe do Carmelo, Estrela
do Mar, nos ilumine e guie na hora de levar adiante tão admirável repto.
Fernando Millán Romeral, O.Carm.
Prior Geral

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