Revista Convergência Lusíada, 23

Transcrição

Revista Convergência Lusíada, 23
Revista Convergência Lusíada, 23
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
DIRETORIA
(Biênio 2006/2008)
Antonio Gomes da Costa (Presidente)
Alcides Martins (Vice-Presidente Administrativo)
DEPARTAMENTOS
Centro de Estudos:
Gilda da Conceição Santos (Vice-Presidente)
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Torne-se sócio do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.
Revista Convergência Lusíada, 23
Número especial
Centenário de Agostinho da Silva
(1906–2006)
Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
Centro de Estudos
1º Semestre - 2007
Revista Convergência Lusíada
ISSN 1414-0381
CONSELHO EDITORIAL
A. Gomes da Costa
António Basílio Rodrigues
António da Silva Peña Loulé
Beatriz Berrini
Carlos Reis
Cleonice Berardinelli
Elza Mine
Esther Bertoletti
Evanildo Bechara
Gilberto Velho
Gilda Santos
Izabel Margato
Jorge Fernandes da Silveira
Laura Cavalcante Padilha
Lélia Parreira Duarte
Marisa Lajolo
ORGANIZAÇÃO DESTE NÚMERO
António Gomes da Costa - Editor
Amon Pinho Davi
Carlos Francisco Moura
Gilda Santos
Revisão de textos em inglês:
Berty Biron e Natália Guerreiro
Preparação de originais:
Sebastião Edson Macedo
Revisão: José Bernardino Cotta
Capa: Rossana Henriques
Editoração: Rossana Henriques e Ruy Barbosa
Ilustração da capa: “Agostinho da Silva, poeta
à solta” – Ilustração de Victor Hugo Marreiros segundo idéia de Luís Sá Cunha (edição
do “Elos Clube de Macau”, Junho de 2006)
Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje. On demande l’échange.
Man bittet um Austausch. Chiedesi scambio.
Os artigos assinados são de inteira responsabilidade dos seus autores.
SUMÁRIO
Pórtico
A. Gomes da Costa
Homenagem a Agostinho.............................................................................11
Depoimento
Luís Sá Cunha
Com Agostinho: Macau no Quinto Império................................................15
Ensaios
Adriano de Freixo
A Língua Portuguesa como Utopia: Agostinho da Silva
e o Ideal da Comunidade Lusófona.............................................................21
Amon Pinho
A diáspora da inteligência lusa na hermenêutica histórica
de Agostinho da Silva: uma teoria antielitista
da história de Portugal?...............................................................................28
António Braz Teixeira
Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo”..............................................45
António Cândido Franco
Nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva...............................55
António Telmo
Agostinho da Silva e os Titãs........................................................................63
Carlos Francisco Moura
O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação e
Informação de História Regional da Universidade
Federal de Mato Grosso..........................................................................68
Celeste Natário
A arte de viver em Agostinho da Silva.........................................................75
Constança Marcondes César
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito.............................79
Dalila Pereira da Costa
Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia.......................88
Germán Labrador Méndez
Poética da Nação em Agostinho da Silva. Comunidades
de discurso globalizadas e hermenêutica da literatura nacional.................93
Helena Maria Briosa e Mota
Agostinho e a Literatura Portuguesa..........................................................112
Henryk Siewierski
Brasil, país do futuro: segundo Stefan Zweig
e Agostinho da Silva...................................................................................148
Isaque Pereira de Carvalho
Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva ......................159
João Ferreira
O pensamento filosófico de Agostinho da Silva..........................................170
João Maria de Freitas Branco
Subsídios para um perfil filosófico..............................................................180
Joaquim Domingues
Ser ou não ser filósofo.................................................................................205
José Eduardo Reis
A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva....................212
José Santiago Naud
Deus e liberdade em Agostinho da Silva....................................................228
Magda Costa Carvalho
Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo
do que o anterior”: Agostinho da Silva e Henri Bergson .........................232
Manuel Cândido Pimentel
O Fingimento – Permanência de um tema pessoano
em Agostinho da Silva................................................................................244
Maria Leonor L. O. Xavier
Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge..........................259
Miguel Real
Agostinho da Silva, personificação do intelectual português......................272
Olga Pombo
A Escola como Memória do Futuro...........................................................281
Paulo Borges
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística
de Agostinho da Silva.................................................................................292
Pinharanda Gomes
Tito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva.........................................326
Renato Epifânio
A Visão de Agostinho da Silva da Galiza,
da Ibéria e da Europa.................................................................................331
Romana Valente Pinho
O racionalismo-místico: a herança de António Sérgio
no pensamento de Agostinho da Silva........................................................342
Documentos
Amon Pinho
Antologia Comemorativa: nota prévia......................................................356
Agostinho da Silva
Filosofia Nova ...........................................................................................358
O Problema das Penínsulas Mediterrâneas ..............................................362
Duas Idades de Ouro ................................................................................372
Reflexão sobre Dinheiro ............................................................................375
Comunidade e Política ..............................................................................379
Filosofia Nacional .....................................................................................382
Perspectiva Brasileira de uma Política Africana .......................................386
Fontes e Pontes do Futuro. Tema:
Educadores Portugueses – António Sérgio............................................394
Alguma Nota sobre Casais.........................................................................400
Ombrear com Herculano...........................................................................405
Resenhas
Miguel Real
Sobre o pensamento de Agostinho da Silva
Visão analítica e plural..............................................................................409
Visão culturalista ......................................................................................418
Visão espiritualista.....................................................................................422
Visão racionalista.......................................................................................438
Quem somos: o PPRLB . ......................................................................444
Normas editoriais da revista Convergência Lusíada .........445
PÓRTICO
11
Homenagem a Agostinho
No 1º centenário de nascimento de Agostinho da Silva, o Real Gabinete
Português de Leitura dedica à memória do Mestre este número especial da
Convergência Lusíada.
Reuniram-se, além de textos dele próprio, vários estudos e trabalhos
de autoria de alguns de seus amigos, que tiveram o privilégio de conviver
com ele, no Brasil ou em Portugal, e de outros, que sendo também admiradores de sua Obra e de seu Magistério repartiram a distância com Agostinho
da Silva o “Reino do Espírito Santo” e a visão do “Quinto Império”.
Com feitiço e sem licença, todos foram condôminos de sonhos, de utopias e esperanças.
Em nome do Real Gabinete Português de Leitura, agradecemos penhoradamente a valiosa colaboração que recebemos para editar este número de
louvor e de homenagem a um Homem que, nas palavras de António Sérgio,
foi, acima de tudo, um Apóstolo. Que nos perdoem os demais autores dos
escritos ora publicados, mas permitimo-nos destacar, desde logo, o trabalho
admirável que teve para a edição deste número o Professor Amon Pinho, tanto
na seleção e organização da antologia agostiniana, como no empenho junto a
vários colaboradores e na excelência dos textos de sua autoria.
Conhecemos pessoalmente Agostinho da Silva depois de seu retorno
definitivo a Lisboa. Por várias vezes estivemos em sua casa – ou no Hotel Tivoli,
na Avenida da Liberdade – a ouvir as análises que fazia, com rara clarividência
e sem compromissos, sobre o Brasil e “o mundo que os portugueses criaram”.
Nem todas as suas projeções feitas, na maioria das vezes, em períodos de mutações políticas e sociais foram confirmadas pelos acontecimentos posteriores,
o que foi uma pena, como ele, talvez já desconfiasse, olhando os mapas dos
continentes, a insensibilidade dos políticos e os nevoeiros da costa...
Por seu conselho e com sua ajuda, elaboramos o esboço de estatutos de
uma Fundação que teria por escopo principal construir “pontes” de diversos
tamanhos e espécies entre os países e as comunidades de Língua Portuguesa.
E foi com base nesse projeto e nas conversas de Agostinho da Silva que pouco
tempo depois, juntamente com o Embaixador José Manuel Fragoso, fomos ter
12
com empresários portugueses e brasileiros (cerca de 20) para convencê-los a
criar a Fundação Cultural Brasil-Portugal. Tinha ela o objetivo de promover,
nos campos da Educação, da Cultura, das Artes, das Ciências e da Cooperação
o desenvolvimento entre os povos de Língua Portuguesa, independentemente
das diversidades étnicas, políticas ou religiosas. A missão foi cumprida com
êxito e, então, pensamos que poderia estar ali o embrião do sonho maior de
Agostinho da Silva. Sentimos que o fruto que tínhamos nas mãos poderia amadurecer. Nas “cartas várias” que mandava periodicamente a seus amigos, não
só de Portugal, mas também do estrangeiro, ele, que era homem de ação, mas
tinha o jeito de missionário e o olhar de monge contemplativo, nunca tocava
em meios materiais. Nem sequer nas despesas de fotocópias e de correio que
pagava do próprio bolso para enviar suas reflexões. A propósito desse traço de
seu caráter, vale a pena lembrar o encontro que teve com o Primeiro-Ministro
Cavaco Silva e do pedido que lhe fez ao final da conversa: “Um dia, se eu precisar de alguma coisa para a qual não me chegue o dinheiro, então, nessa altura,
tomarei a liberdade de lhe dizer quanto preciso...” (Vide A Última Conversa de
Luiz Machado.) No entanto, numa das tardes em que falávamos sobre a Fundação, deixou-nos entrever que a idéia já de anos não avançara, não porque
esperasse verbas do Governo ou o apoio de grandes mecenas, pois, no fundo,
o que queria era que se formasse uma corrente gigantesca de homens de boa
vontade, dispersos por todo o espaço da lusofonia, unidos pela Língua e pela
Cultura, parceiros de sonhos e de valores espirituais, que estivessem dispostos
a apontar caminhos de futuro e a lutar pela construção de um mundo novo
– e um mundo melhor.
A. Gomes da Costa
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Depoimento
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Com Agostinho:
Macau no Quinto Império
Luís Sá Cunha*
Foi há vinte anos. Vésperas da minha partida para a longíngua Macau (“a que foi que tão longe nos trouxeram?”, inquiria Camilo Pessanha...).
Francisco Palma Dias “marcou-me” um encontro de despedida com
Agostinho da Silva.
Acabado de chegar, depois de 20 anos no Tibete, o Francisco, na sua
figura e verbo, transparecia a paz e a luz só hauridas naquelas alturas onde
convivem o azul e o oiro puros.
Agostinho da Silva lá estava, com o seu perfil de medalha antiga, na
sua simpleza de profeta humilde, de pobre franciscano esmoler de infinitos,
ou de marinheiro aparelhado a todas as navegações e pronto a todas as partidas sempre.
Por todos os lados, os gatos, calmos, imprevisíveis, no suave “ballet”
dos gestos elásticos.
Na parede, fascinava um caixilho com duas dezenas de nós de marinheiro: que imaginação, que flexibilidade, que delicadeza de rendado operado
pelos grossos dedos dos homens do mar!
Foram quatro, cinco (?) horas de conversa vadia, ao melhor estilo de
Agostinho da Silva, em trina comunhão encerrada num inolvidável ritual de
despedida. É que tive o pressentimento, então inconsciente, de ter sido ali nomeado para uma nova missão, como se espada invisível me aflorasse os ombros. Só tive consciência mais clara desse momento, e desse desígnio, muitos
anos mais tarde em Macau.
* Luís Sá Cunha, residente em Macau há 20 anos, foi Director da Revista da Cultura do Instituto Cultural
de Macau (1986-2001), editou um número especial sobre as relações históricas Macau/Brasil, prefaciado por
Agostinho da Silva). É actualmente Secretário-Geral do Instituto Internacional de Macau, Presidente do Elos
Clube de Macau, Membro do Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Macaenses e da Direcção
da Confraria da Gastronomia Macaense, e Director das revistas Macau/Focus e Oriente/Ocidente do Instituto
Internacional de Macau.
16
Durante muitos anos Director da Revista da Cultura do Instituto Cultural de Macau (de 1986 a 2001), procurei que fosse entroncado um ramo da
sinologia e do orientalismo ao movimento da cultura de expressão lusófona
nos finais do século XX.
Em Macau, depois do desfalecimento de Portugal em Alcácer-Quibir, continuara, sob o dossel do Padroado, o movimento do grande encontro de culturas convocado pela vocação universalista da alma lusíada.
Depois de “descobrir” o Outro, impunha-se a fase seguinte de conhecer e compreender o “Outro”. No meio das cinzas de uma pátria esvaída, só o
verbo áureo do P.e António Vieira teve assomos enérgicos de vibrar o clarim
para continuar. Mas só em Macau, pelos jesuítas, encandecidos no sonho de
evangelização do Japão e da China, o movimento espiritual logrou operar o
maior fenómeno de mútuo conhecimento e compenetração culturais alguma
vez acontecido em algum tempo na História da Humanidade.
Também tudo isso foi entrando em vias de esgoto, pelas eras, mas a sua
memória e continuidade foram retomadas nos finais do século passado, nos
quinze anos em que Portugal preparou o retorno de Macau à mãe China.
Quando em 1995 aconteceu o tempo de dedicar um número integral
da Revista da Cultura às ligações históricas entre Macau e o Brasil, foi como se
um grande oceano do passado refluísse aos tempos presentes e logo surgiu a
lembrança de convocar a voz mais própria à apresentação da edição – Mestre
Agostinho da Silva.
Contactei-o para lhe pedir que me transmitisse por escrito um resumo
do que explicara, abrira, iluminara e propusera sobre a missão de Macau na
religação ao mundo da Língua Portuguesa e concretamente ao Brasil, naquela
conversa em sua casa em maio de 1986.
Para ele, o movimento agora teria que ser em sentido contrário, e Macau, cabo do mundo lusíada, teria como missão trazer o Oriente para Ocidente, passando por África de permeio em direcção ao planalto brasileiro – renovada cosmografia espiritual de um abraço do universo ao universo.
Só mais tarde percebi que um certo optimismo transparecente nas suas
palavras provinha talvez da materialização daquela edição. Longe de Portugal,
ignorava eu então que Agostinho da Silva se desiludira, em textos anteriores,
do contributo de Macau para a arquitectação da Pátria Lusófona, porque Macau se abolira em fábricas de jogo. Nada haveria que esperar mais de Macau...
As aparências davam-lhe razão, num momento em que a imagem projectada
pelas notícias inculcava aquela degenerescência da civitas de Macau, irremediável e exclusivamente cristalizada como cidade do jogo.
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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Era um tempo em que Agostinho balançava entre duas esperançosas
expectativas – se seria a China de Deng Xiao Ping (a despertar para a comunidade das nações e para o cumprimento de uma nova etapa do seu destino)
ou o Brasil-síntese-do-todo-universal ao encontro do futuro – qual dos dois
equivalentes espaços protagonizaria o movimento prossecutor da escatologia
do Reino dos Céus na Terra, regida a ecúmena dos homens pelo Evangelho
Eterno, e pousando a coroa imperial sobre a fronte da Criança.
Logo se viu que Agostinho mentava a prioridade do Brasil, nau capitânea
de todo o espaço lusófono na demanda daquele eschaton de perfeição na Terra.
Se há ditado popular que valha um inteiro sistema de filosofia será
aquele em que a voz popular (que é de Deus) confia em que escreve Deus direito por linhas tortas. Foi girando o planeta e foram girando as roletas dos casinos, as ideias dos homens e os novos cenários. Em Macau, sempre os relógios
rolaram mais depressa. Por orientação de Pequim, Macau passou a ser, desde
há dois anos, a plataforma de intercâmbios comerciais entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Logo se enfileiraram algumas iniciativas culturais
a acolitar tantas e tão gradas operações económicas, o que não estava previsto
nos planos lucrativos. Em dois anos viu-se a espantosa multiplicação de factos
e realizações que confirmaram Macau como centro propulsor e dinamizador
de um arrastado ânimo, retracto e titubeante, do movimento lusófono. Não
há mês, não há semana, que se não realize em Macau qualquer encontro ou
seminário de instituições ou classes profissionais dos países lusófonos.
Depois do Fórum Para a Cooperação Económica e Comercial (já realizado duas vezes), os 1os. Jogos da Lusofonia convocaram a Macau o mais
belo convívio de embaixadas humanas de todos os territórios que em Português se conversam.
No Instituto Internacional de Macau, assinámos mais de quarenta
protocolos, em seis anos, com grandes instituições de países lusófonos, sobretudo do Brasil, que permanentemente são confirmados em actos, realizações
e contactos mútuos. Organizaram-se seminários e publicaram-se livros, verbi
gratia, um volume em chinês do principal especialista em assuntos do Brasil
da Academia de Ciências Sociais de Pequim, com a história económica, política e social do Brasil, dos anos de 1920 ao fim do século XX.
Aliado à Fundação Jorge Álvares, à Fundação Calouste Gulbenkian e à
Comissão Organizadora dos 1os. Jogos da Lusofonia, o Instituto Internacional
acabou de realizar em Macau o “1º Encontro de Poetas Lusófonos e Chineses”,
onde foram convocadas algumas das mais altas vozes das ars poetica da lusofonia e da China.
Com Agostinho: Macau no Quinto Império
Luis Sá Cunha
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O Elos Clube de Macau propôs-se, durante este ano de assinalamento
do Centenário do nascimento do Mestre, associar-se ao grande programa de
actos comemorativos, tendo organizado a mostra de duas exposições evocativas de Agostinho da Silva e uma evocação do Mestre durante a Assembleia
Geral de AULP em Macau (juntamente com o IIM) e editado um pôster comemorativo (“Agostinho da Silva, Poeta à Solta”) e um desdobrável com um texto
de Agostinho alusivo à relação de Macau com o Brasil (que titulámos “Macau
no Quinto Império”).
Prosseguiremos nesta orientação durante o ano de 2007, e pelos próximos, em meio de ventos que nos rodeiam ou de absoluta calma ou de rajadas
ponteiras.
Agostinho da Silva, cremos bem, teria ficado contente, ao ver as coisas
a mexer assim, e, assim, tocadas de imprevisibilidade, sopradas pelo Espírito.
Em Agostinho, vemos agora, sobretudo, o Profeta da Pátria lusófona,
antecipação na Terra daquela Jerusalém que há-de descender dos Céus para aqui implantar a sua puríssima arquitectura diamantina. Pátria lusófona
que, por razões písticas e sóficas, vemos destinada a embrionar a sua síntese
no Brasil.
Aqui, de Macau, polarizados no seu pensamento e modelo humano,
trabalharemos para o progresso daquele projecto universal, que é cultural, e
de síntese da Europa e África e Oriente, onde Macau continuará a ser ponte
de influência, para o Ocidente, da disciplina confucionista depois superada
pela libertária e imprevisível vadiagem taoísta, quando começar a ser o tempo de ser Deus.
Em Macau – neste princípio de Milénio, na auscultação dos arcanos
mais fundos da Pátria da Luz e na contemplativa intuição das leis cíclicas a
que as Eras obedecem, crentes na transcendente emergência daquela ínclita
Pátria, pátria de mátrias conversáveis na unidade da mesma língua, modelo da
irmandade universal, operadora da religação do separado e de harmonização
dos contrários, abolidora das distâncias e das divergências, transmutadora do
tempo em espaço para realizar a eternidade no presente, onde Tudo é para todos, gratuita a Vida e o Eterno Evangelho será falado em Português.
Em Macau, também aparelhamos já a nau para o desembarque amanhã nas areias doiradas da Ilha dos Amores. Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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ENSAIOS
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A Língua Portuguesa como Utopia:
Agostinho da Silva e o Ideal
da Comunidade Lusófona
Adriano de Freixo*
Em julho de 1996 – há exatamente onze anos – era criada oficialmente
a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP–, em uma Cimeira
realizada em Lisboa que reuniu os Chefes de Estado e de Governo dos sete
países – Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e
São Tomé e Príncipe – que então adotavam o português como idioma oficial.
A articulação efetiva desta organização internacional representou a concretização do velho ideal da construção de uma “Comunidade Lusófona” presente,
pelo menos, desde o final do século XIX e revivido reiteradas vezes ao longo
do século XX.
No entanto, foi a partir da segunda metade do século passado – quando diversos intelectuais brasileiros e, principalmente, portugueses começaram
a pensar na constituição dessa comunidade, sob diferentes perspectivas – que
esta idéia começou efetivamente a ganhar força:
A CPLP é uma visão de caráter mais ou menos utópi­co, a partir da década
de 50, teorizada por intelec­tuais da craveira de Agostinho da Silva, Gilberto Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho, Adriano Mo­reira, Darcy Ribeiro,
entre outros. Era o sonho que então se designava por Comunidade LusoAfro-Brasileira.1
Porém, embora a concretização da criação da CPLP se deva muito à
atuação de um brasileiro – José Aparecido de Oliveira, Embaixador em Lisboa
durante o governo de Itamar Franco (1992-1994) –, foi o Estado português o
* Doutorando em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Coordenador do Curso
de Relações Internacionais do Centro Universitário Metodista Bennett. É Mestre em História Política pela UERJ.
Organizou, juntamente com Oswaldo Munteal Filho, os livros A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos Anos
do Autoritarismo (Rio de Janeiro: Contraponto, 2005) e O Brasil de João Goulart: Um Projeto de Nação (Rio de
Janeiro: Contraponto/Editora da PUC-Rio, 2006).
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grande incentivador de sua criação. É importante ressaltar que, na década de
1980, setores da elite política portuguesa – notadamente do Partido Socialista
– e da intelectualidade progressista encamparam o ideal da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa e que, nesse momento, se procurou construir um
consenso nacional em torno da sua construção, através da idéia da “lusofonia”,
uma releitura, em novos parâmetros, do discurso secular da originalidade da
cultura portuguesa e das marcas que ela deixou no mundo, a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI.
Deste modo, era necessário referendar esse discurso buscando em experiências passadas ou em escritos de intelectuais e pensadores bastante distintos entre si os elementos necessários para o processo de legitimação dessa
Comunidade, então em processo de gestação. Isso ocorre na perspectiva da
“invenção de tradições” explicitada por E. Hobsbawm e T. Ranger, no momento em que Portugal ensaia o seu “retorno à África” depois de quase uma
década de esquecimento. Esses autores, ao analisarem as “tradições inventadas”, afirmam que elas parecem classificar-se em três categorias superpostas:
a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições
de admissão de um grupo ou de comu­ni­da­­des reais ou artificiais; b)
aquelas que estabe­lecem ou legitimam instituições, status ou relações
de autoridade; e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização de
i­déias, sistemas de valores e padrões de comportamento.2
No entanto, como os mesmos autores deixam claro, mesmo as tradições inventadas devem possuir respaldo social, senão não conseguiriam sobreviver.3 Assim, a idéia da Comunidade Lusófona busca apoio em elementos
bastante presentes no imaginário social português, desde a percepção de que
aquela pequena nação teria desempenhado um papel singular na História do
Mundo Ocidental até o velho, e sempre presente, sonho imperial.
O resgate dessas questões foi essencial para a construção do discurso
que procura legitimar a constituição de uma Comunidade de Países de Língua
Portuguesa, visto que, como argumenta Enilde Fausltich, um dos pontos de
vista possíveis para se apreender o conceito de lusofonia é aquele que:
(...) localiza em todos os portos tocados pelos portugueses, nos quais a
língua foi disseminada, como espaço de lusofonia. Nestes, os sujeitos
são identitários de uma cultura ibérica que, em maior ou menor grau,
formou a cidadania do Estado-nação. 4
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
ISSN 1414-0381
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Assim, a obra de diversos dentre esses intelectuais começou a ser resgatada e relida, dentro da perspectiva de legitimação do discurso da lusofonia
e da CPLP que então estava sendo articulada. Nesse contexto, alguns deles são
lembrados – nos discursos oficiais e na produção intelectual do período – como
“pais-fundadores” da nascente Comunidade, os visionários que teriam antevisto
a integração do mundo lusófono e formulado as suas bases teóricas e – por que
não dizer – ideológicas.5 Dentre eles, destaca-se a figura de Agostinho da Silva
(1906-1994), um dos mais originais pensadores portugueses do século XX.
Freqüentemente citado em discursos e mesmo em documentos oficiais como um dos inspiradores da CPLP, Agostinho da Silva – “misto de educador, filósofo e pensador, considerado como uma espécie de guia espiritual
de parte da intelectualidade brasileira e portuguesa deste século”6 – formulou
a concepção de uma “Comunidade Luso-Afro-Brasileira” bastante original e
pessoal refletindo uma visão de caráter universalista, místico, visionário, espiritualista, mítico e messiânico que remonta aos escritos de Joaquim de Fiore
– na Idade Média – sobre o “Reino do Espírito” e os do P.e António Vieira sobre o “Quinto Império”. Para ele, Portugal, responsável pelo início do
processo de mundialização, carregaria uma missão histórico-messiânica: a de
ser o responsável pela paz mundial devido aos laços constituídos por ele, no
passado, com os diversos povos do mundo, pois “se, no passado, Portugal unificou o mar, sua tarefa futura será a unificação do mundo pelo espírito, pela
língua, constituindo-se a nação portuguesa como a pátria virtual de quantos a falam”,7 entendendo, assim, esse Portugal como, acima de tudo, a língua
portuguesa e seus valores e não mais o Portugal-Território preso aos limites
de suas fronteiras geográficas.8 Dessa maneira, essa “missão” concretizar-seia através de uma Comunidade de Língua Portuguesa em que Portugal se
sacrificaria, enquanto nação, para ser só mais um dos elementos componentes
dessa Comunidade que marcaria o início de uma nova era:
A Comunidade Luso-Brasileira tem de ser, quando existir, não outra
qualquer espécie de Império, uma força concorrendo com outras forças,
uma outra centralização que siga a monótona corrente das centralizações, mas realmente o começo de uma vida nova para a Humanidade,
o primeiro passo seguro para a reconquista de um Paraíso que só tem
estado em espírito de teólogos ou de filósofos ou de poetas, mas que
jamais entrou nas cogitações de políticos; a linha mística e religiosa
tem de ser aqui mais importante do que as argúcias dos realistas que
manejam homens como se eles não fossem à imagem e semelhança de
Deus: e nenhuma economia, nenhuma sociologia, nenhum ato humaA Língua Portuguesa como Utopia...
Adriano de Freixo
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no verdadeiramente criador tem de ser considerado senão como o sinal,
a manifestação e a indicação de que está na vontade divina, na própria
estrutura do evoluir no mundo, que ele siga pelos caminhos a que a
Comunidade o pode dirigir.9
Crítico dos sistemas políticos contemporâneos, Agostinho da Silva
definia o capitalismo como uma fatalidade histórica da qual os homens deveriam libertar-se e considerava o socialismo – apesar de melhor do que o
seu sistema antagônico – imperfeito. Para ele, um dia “tanto o capitalismo
como o socialismo desaparecerão da face do mundo, já que a revolução que
se aproxima, de base tecnológica, determinará a supressão quase completa do
trabalho obrigatório. Essa ocupação passará a ser desempenhada pelas máquinas, voltando o homem à sua verdadeira vocação”.10 O mundo novo com
o qual ele sonhava consistia na “expressão crescente de homens seguros de
que é possível, pela técnica, garantir vida e acesso aos bens da cultura a todos;
homens abertos ao amor e a ação”.11
Nesta nova era, a língua portuguesa desempenharia um papel fundamental por ser falada em todas as partes do globo e representar o símbolo da
expansão portuguesa que lançou as bases da construção do “novo mundo”, do
“Reino do Espírito”. Nesta nova ordem, o Brasil teria um papel fundamental,
pois traria em si os elementos do verdadeiro Portugal, aquele Portugal arcaico
que se perdeu com o fracasso histórico da nação. Para ele, em sua utopia, o
Brasil é a concretização do sonho do Quinto Império, é a Ilha dos Amores de
Camões, o Não-Lugar capaz de ser o centro de uma nova civilização por ser
o ponto de encontro de diversas culturas, onde a miscigenação favoreceu a
tolerância e a moderação. O significado do Brasil para Agostinho da Silva é
bastante perceptível quando ele descreve os seus sentimentos e impressões ao
chegar ao país, fugindo do obscurantismo salazarista:
Então ao chegar ao Brasil, logo várias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi a que me encontrei a mim próprio; de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntário: (...) eu me deixei
levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fora, efetivamente, me batia à porta para que eu abrisse. (...) me deixei
abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era (...). Afinal, o que
era? Eu como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no
século XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em
direção à África para fugirem do regime econômico, social e religioso de
Portugal ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer, o que o
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Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo
como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século
XV ou XVI. (...) Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha
estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro. (...) O
segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu precisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu
do espírito, e que hoje permanece nítido.12
Dessa forma, o verdadeiro Portugal, o Portugal real, concretizar-seia nesta comunidade em que a verdadeira pátria de todos os povos lusófonos
– brasileiros, portugueses, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos, timorenses e demais – seria a língua portuguesa, o idioma universal, por excelência.
Sem exercer uma militância política direta no Brasil, além de articular-se com o grupo de intelectuais portugueses aqui exilados, Agostinho da
Silva ocupou o cargo de Assessor de Política Cultural Externa da Presidência da
República, no início dos anos de 1960. Neste período, estabeleceu uma sólida
relação de amizade com políticos e intelectuais brasileiros como Darcy Ribeiro
– sobre quem exerceu grande influência – e José Aparecido de Oliveira, que
chega a afirmar que “a Política Externa Independente de Jânio Quadros, com
sua inclinação para a África e para a Ásia, teve em Agostinho da Silva um de
seus inspiradores”.13 Essa afirmação é feita, sem sombra de dúvidas, porque na
nova “ordem mundial”, pensada por Agostinho da Silva, países como o Brasil,
o México e a China deveriam desempenhar um papel fundamental, visto que,
em sua concepção, a crise do nosso tempo é a crise da civilização européia – e,
por extensão, da civilização ocidental – racional e materialista. Assim, o Brasil,
lugar por excelência da fusão de etnias e culturas, seria o pólo do “Reino do
Espírito” e deveria buscar o “diálogo” com o Oriente – em especial com a China
– para abrir caminho para uma nova “idade do ouro” para a humanidade.
Retornando a Portugal, continuou com uma intensa produção intelectual, além de desenvolver outras atividades, como, por exemplo, a apresentação de um programa de televisão intitulado “Conversas Vadias”, uma ilha de
inteligência em meio à mesmice televisiva. Além disso, na década de 1980, tornou-se Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Técnica de Lisboa e do Gabinete de Apoio
do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa do Ministério da Educação, além
de continuar a proferir palestras e conferências em diversas partes do mundo,
sempre difundindo a cultura portuguesa e os ideais pelos quais lutou ao longo
de sua vida. Em 1994, morreu em Lisboa aos 88 anos de idade deixando centenas de discípulos – seduzidos por suas idéias, onde a cultura e a civilização
A Língua Portuguesa como Utopia...
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portuguesas aparecem com um papel da maior importância na realização do
homem em sua totalidade – que se articulam em torno de instituições como a
Associação Agostinho da Silva e o Círculo dos Amigos de Agostinho.
Portanto, se realmente podemos falar em “pais-fundadores” da CPLP,
Agostinho da Silva é um dos mais importantes – ao lado de Gilberto Freyre –
dentre eles. Arauto do “Quinto Império”, que se concretizaria através da Língua
Portuguesa – um império sem imperadores, no sentido estrito do termo –, ele
imagina o reinado da fraternidade universal, onde a humanidade atingiria a sua
plenitude, mesclando a liberdade com o bem-estar econômico e social. Até que
ponto a CPLP – a “Comunidade Lusófona” efetivamente existente – pode contribuir para a concretização dessa utopia é algo passível de inúmeros questionamentos; porém, sem sombra de dúvida, é um belo sonho a ser sonhado. E como
diz uma conhecida canção portuguesa “(...) sempre que um homem sonha/o
mundo pula e avança/como bola colorida/ entre as mãos de uma criança”.14
Notas
1 BRAGA, José Alberto (Coord.). José Aparecido: o homem que cravou uma lança na lua. Lisboa: Trinova Editora, 1999, p. 37.
2 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997,
2a ed, p. 17.
3 Idem. p. 272.
4 FAULSTICH, Enilde. “CPLP: um lugar de falas múltiplas”. In: SARAIVA, José Flávio (Org.). CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Brasília: IBRI, 2001, p. 118.
5 Utilizamos aqui a concepção de “Ideologia” formulada por Antonio Gramsci. Nesse sentido, a ideologia deve
ser entendida como um discurso que justifica/explica, simbolicamente, as práticas dos diversos grupos sociais;
sendo assim, não podemos considerá-la como “falseamento do real”, mas como “(...) uma concepção de mundo,
que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida
individuais e coletivas (...)”. In: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética de História. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989, 8ª ed., p.16.
6 RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. “À Volta da Comunidade: formações luso-brasileiras em colóquio”. In:
SANTOS, Gilda (Org). Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces – revista Convergência Lusíada, no 17
(Número Especial). Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2000, pp. 246-7.
7 VARELA, Maria Helena. “O Visionário Agostinho da Silva: Sofia e Paradoxia”. In: Convergência Lusíada, no 16.
Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1999, pp. 88-89.
8 CESAR, Constança Marcondes. “Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva”. In: Convergência Lusíada,
no 14. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1997, p. 90.
9 Trecho da comunicação “Condições e missão da comunidade luso-brasileira”, proferida por Agostinho da Silva no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros promovido, em 1959, pela Universidade da Bahia
e pela UNESCO, citado pela: RIBEIRO, Maria de Fátima Maia,. op. cit., p. 247.
10 BRAGA, José Alberto. Op. cit., pp. 31-32.
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11 CESAR, Constança Marcondes. Op. cit., p. 91.
12 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organização e prefácio de Henryk Siewierski, pp. 86-88 e 101.
13 BRAGA, José Alberto. Op. cit. p. 33.
14 “Pedra Filosofal”. António Gedeão e Manuel Freire.
Resumo
A partir da década de 1980, a constituição de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa tornou-se uma das questões centrais da política externa do Estado português,
ao mesmo tempo em que amplos setores da sociedade daquele país eram mobilizados
em torno do discurso da lusofonia. Nesse processo, as idéias de alguns intelectuais que
desenvolveram diferentes visões de uma “Comunidade Lusófona” ao longo do século XX
foram resgatadas dentro da perspectiva de legitimação da atual CPLP que então estava
sendo criada. Dentre eles destaca-se a figura de Agostinho da Silva, um dos mais originais pensadores portugueses do último século, que é comumente lembrado como um dos
“pais-fundadores” dessa Comunidade e que desenvolveu em diversas de suas obras uma
concepção bastante original do que ela deveria ser e de qual papel poderia desempenhar
na ordem mundial contemporânea.
Palavras-chaves: Lusofonia; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.
Abstract
Since the 1980’s decade, the creation of a Community of Portuguese Language Countries
(CPLP) became one of the main concerns of Portugal’s foreign policy. Concurrently, vast
sectors of the Portuguese society became involved in the debate about Lusophony. In this
process, in order to legitimate the CPLP that was then being created, the ideas of some
intellectuals who developed various concepts of a “Portuguese-Speaking Community”
throughout the twentieth century were recovered. Among those intellectuals stands Agostinho da Silva, one of the most original Portuguese thinkers of the last century. Usually
remembered as one of the “founding fathers” of the Community, he developed in several
of his works a rather original concept of what the Community should be and what role it
could perform in the contemporary world order.
Keywords: Lusophony; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.
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Adriano de Freixo
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A diáspora da inteligência lusa
na hermenêutica histórica de
Agostinho da Silva: uma teoria
antielitista da história de Portugal?1
Amon Pinho*
(...) a minha ida para o Brasil, em 1940, realizou-se sob o imperativo de circunstâncias alheias à minha vontade. A expatriação é sempre
dolorosa. Mas nenhum país pode para um português substituir a sua
pátria, a não ser o Brasil. Depois, viver no Brasil é conhecer, sob certos
aspectos, um Portugal mais português que o da metrópole (...). Não é
pequena lição e proveito para um português haver compreendido este
fato e transformá-lo em programa de ação. O Brasil é hoje [segunda
metade dos anos 1950] uma nação essencialmente americana, com
tendências, interesses e ideais americanistas. (...) tendem a esquecer,
quando não a depreciar, as origens portuguesas do Brasil. A todo e
qualquer português cabe, pois, ali, uma ação catalisadora: marcar, pela
simples presença e uma conduta exemplar, a substância, a excelência e
o prestígio daquelas origens. (...) afirmar o que, apesar dos erros inevitáveis, houve de benéfico na ação colonizadora dos portugueses. Esse foi
constantemente o meu programa.
Jaime Zuzarte Cortesão
* Doutor em História Social pela FFLCH-USP. Membro dos Projetos “Agostinho da Silva: Estudo do Espólio”
e “A Questão de Deus. História e Crítica”, ambos vinculados ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa;
vem desenvolvendo, no âmbito do segundo projeto, um estudo sobre a teologia negativa do filósofo e crítico
literário judeu-alemão Walter Benjamin. Entre outros escritos, é autor de Hermenêutica e Materialismo Histórico
na Encruzilhada da História: Leituras especulares de Gadamer e Benjamin; Notas sobre europeísmo e iberismo no
pensamento de Agostinho da Silva; e de O Pensamento Político do Jovem Agostinho da Silva: da primeira Faculdade
de Letras do Porto e da Renascença Portuguesa ao ingresso no grupo Seara Nova; É co-organizador do In Memoriam de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006; e do Caderno de Lembranças,
autobiografia de Agostinho da Silva, igualmente publicado pelas Edições Zéfiro.
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“Acho que conhecer o Brasil é, talvez, a coisa fundamental da minha vida. Se nunca tivesse saído de Portugal, nunca teria percebido o que há de
essencial na cultura portuguesa e que me parece estar muito mais vivo,
muito mais claro no Brasil”.
Agostinho da Silva
Objetivo neste escrito definir a teoria da história portuguesa elaborada por Agostinho da Silva, em meados do século passado, enquanto uma
teoria antielitista da história. O que, a meu ver, necessariamente requer o
desenvolvimento e a explicitação dum par de pressupostos. Em primeiro
lugar, um pressuposto de caráter histórico-político-cultural. E, em segundo,
o que poderíamos denominar uma pressuposição biográfica.
O pressuposto de caráter histórico-político-cultural diz respeito à significativa emigração de intelectuais portugueses para o Brasil, entre os anos de
1940 e 1974, cuja expressiva extensão e intensidade acabou por constituir o que
um renomado crítico literário brasileiro, Antônio Cândido, com a propriedade
que lhe é peculiar, denominou de “uma não planejada ‘missão portuguesa’”.2
“Não planejada” porque diferente daquelas missões de professores
estrangeiros que, na década de 1930, foram contratadas, compostas e planejadas oficialmente, junto aos governos dos seus respectivos países, para então
colaborar no processo de implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo, fundada em 1934. Não houve, nesse
processo de implantação, a participação de uma missão portuguesa. Houve
uma missão francesa e uma missão italiana, podendo-se também falar de
uma missão alemã, mas por extensão, posto que constituída, de forma virtual, por professores judeu-alemães recrutados individualmente e à margem
do governo hitlerista que os proscrevia.
Os portugueses, todavia, não estiveram totalmente ausentes nos tempos inaugurais da Universidade de São Paulo. O filólogo Francisco da Luz Rebelo Gonçalves, primeiramente, e, depois, Fidelino de Figueiredo e Urbano
Canuto Soares lá deram a sua contribuição. Mas, como foram apenas três, a
sua presença não chegou a configurar nem mesmo uma missão de caráter tácito e virtual, contratada individualmente, como foi o caso da alemã.3
No entanto, como observa Antônio Cândido, “quando pensamos [a
partir da década de 1940] na atuação de tantos intelectuais portugueses no
Brasil (...), vem logo a idéia de que eles constituíram ao longo dos anos um
agrupamento virtual de grande importância, que pesou mais do que se pensa
em muitos setores: Jornalismo; Artes Plásticas; Política; Ensino Universitário
A diáspora da inteligência lusa...
Amon Pinho
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de Letras, História, Filosofia, Matemática. Se concebermos essa ampla atividade como emanada de um conjunto não sistemático nem cronologicamente
concentrado de pessoas, veremos que ela abrangeu boa parte do país e contribuiu para o adensamento de nossa cultura. Daí o rótulo que propus de ‘missão
portuguesa’ para designar essa atuação”.4
Como se sabe, na origem da emigração de quase todos esses inte­lectuais
lusos, estava a situação política determinada pelo Estado Novo de Antônio de
Oliveira Salazar, cuja Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado (PVDE) punha e dispunha dos destinos alheios. Polícia política fascista não apenas no
nome (depois modificado para Polícia Internacional e de Defesa do Estado
– PIDE), mas sobretudo no exercício dos seus poderes quase ilimitados e que,
por exemplo e para permanecermos no âmbito do que aqui nos interessa, punha e dispunha do corpo científico e docente das universidades portuguesas,
demitindo ou admitindo quem melhor lhe conviesse.
Testemunha eloqüente desse estado de coisas foi o historiador e professor Joaquim Barradas de Carvalho, então exilado no Brasil e, coincidentemente, ensinando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, só que cerca de trinta anos depois de Rebelo Gonçalves. Pois
bem, Barradas de Carvalho escreveu, a partir de 1964, uma série de artigos
para o jornal Portugal Democrático, editado por anti-salazaristas portugueses
radicados na cidade de São Paulo, artigos que tratavam precisamente da situação vexatória das universidades na sua terra natal.
No que abre a série, afirma-se que “uma das principais vítimas do obscurantismo salazarista tem sido a Universidade, e um dos principais meios
de ação desse obscurantismo têm sido as ‘limpezas’ sucessivas a que ela tem
sido submetida. Às demissões isoladas sucederam-se as demissões coletivas e a
essas sucedeu um apertado policiamento na admissão de professores”.5 E prossegue Barradas de Carvalho: “Em mais de trinta anos de regime salazarista a
Universidade portuguesa tem sofrido golpes só comparáveis aos sofridos pela
Universidade alemã nos tempos de Hitler, pela Universidade italiana nos tempos de Mussolini ou pela Universidade espanhola no período de instauração
do regime de Franco.” 6
Constrangidos dessa e doutras formas em seus direitos sociais e políticos
e restringidos, quando não impedidos, no exercício das funções dos seus ofícios
(os não-acadêmicos, inclusive), a muitos intelectuais portugueses não restou senão o caminho da expatriação. “E daí poder dizer-se, com uma ironia repassada
de melancolia, que Portugal ‘exporta’ quadros científicos”,7 pois “a verdade científica não é compatível com a quietude do cemitério que é o Portugal de Salazar”.8
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Originada, portanto, num regime que semeava e disseminava o empobrecimento de espírito, a diáspora da inteligência lusa desdobrou-se, no
outro lado do Atlântico, num importante e enriquecedor contributo ao universo da cultura brasileira. Se no Portugal da malfamada PIDE os intelectuais
que não coadunavam com o Poder encontravam-se à margem das instituições universitárias, no Brasil eles terminaram por coletivamente constituir
uma não planejada, tácita, virtual e livre missão portuguesa cuja atuação
deu-se no seio mesmo das instituições oficiais de ensino, nas quais muitas
vezes desempenharam o papel de fundadores.
Circularam então pelo Brasil daqueles idos lusos homens de letras da
envergadura de um Jaime Cortesão, de um Hernâni Cidade, de um Adolfo Casais Monteiro, de um Jorge de Sena, de um Eduardo Lourenço, de um Eudoro
de Sousa, para não falar num Manuel Rodrigues Lapa, num Vítor Ramos, num
Barradas de Carvalho ou em tantos outros cujas sementes germinaram não no
meio acadêmico, mas no jornalismo, nas artes, na literatura e na poesia.
Essas décadas que separam os anos de 1940 dos de 1970 testemunharam a manifestação, no Brasil, do que de melhor havia na cultura de expressão
portuguesa, e que pelas mecânicas contraditórias, complexas e surpreendentes
da história cá veio frutificar. Atente-se, por exemplo, que não era em Lisboa,
no Porto ou em Coimbra que a mais qualificada escola de matemáticos portugueses se exercia, era no Recife, na Universidade do Recife (atual Universidade
Federal de Pernambuco), onde lecionavam Ruy Luís Gomes, José Morgado,
Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes, todos professores universitários perseguidos pela ditadura de Salazar.9
Agostinho da Silva, que, a propósito, também ensinou na Universidade do Recife, vivenciou e protagonizou intensamente esse marco fundamental do diálogo cultural luso-brasileiro, marco que, tanto quanto sua
obra, até pouco tempo atrás não era suficientemente lembrado, estudado
ou discutido no Brasil, mas que parece agora estar revivescendo, ainda que
timidamente, mas revivescendo, à sombra de algumas universidades e iniciativas. Os livros Intelectuais Portugueses e a Cultura Brasileira, publicados em
2002, e A Missão Portuguesa, editado em 2003, parecem, ao menos, sinalizar
nesse sentido.
Mas, como dizia, Agostinho participou ativamente dos movimentos
e realizações plasmados na corrente dessa interlocução atlântica ancorada em
terra, influenciando e deixando-se influenciar. Mais precisamente, ele mergulhou fundo na sua experiência de Brasil e terminou por encontrar o que se lhe
apresentou como o fundamento e o firmamento de Portugal e de si mesmo.
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A citação é longa, mas vale a pena: “Então ao chegar ao Brasil, logo várias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi a que me encontrei a mim
próprio; de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntário:
(...) eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo
vir de fora, efetivamente, me batia à porta para que eu abrisse. (...) [Eu] me
deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era (...). Quer dizer,
a minha abertura no Brasil, no meio em que mergulhei (...), é a tal viagem
às nascentes: abandonei-me à corrente e parece que o rio dava uma volta ao
mundo sobre si próprio, voltava à nascente e depois eu não tinha mais trabalho nenhum senão o de deixar levar-me pelas águas, abandonar-me completamente ao que ia acontecendo pelo mundo. (...) uma atitude de (...) ir ao sabor
da corrente e depois a própria corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de
fato poderia ser interessante e que no fundo me formou. [¶] Afinal, o que era?
Eu como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século XV
(...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direção à África
para fugirem do regime econômico, social e religioso de Portugal, ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer: o que o Brasil fez comigo, logo que
lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola
no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.”10 “Portanto, a primeira coisa
que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui
outro.”11 “O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu
precisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu do
espírito, [e] que hoje permanece nítido.”12
Entre a chegada de Agostinho à América Ibérica, em 1944, e o momento em que se perfazem as vivências pessoais há pouco referidas, haviam
se passado cerca de dez anos. Estamos em 1952, e Agostinho dirige-se a um
dos estados da Região Nordeste do Brasil, a Paraíba, então governada por José
Américo de Almeida. Político e escritor, autor de um romance que renovou
a literatura regionalista nordestina, José Américo pretendia implantar o ensino de nível superior naquela unidade da Federação. E para lá se deslocou
Agostinho da Silva, de modo a se integrar ao grupo dos professores que iriam
estabelecer os primeiros pilares acadêmicos da Universidade.
O interessante, porém, a se notar é que a experiência de Agostinho,
tanto na capital quanto no sertão da Paraíba, onde também desenvolveu atividades, não consistiu apenas nos termos exteriores da fundação de uma universidade e da atuação como professor de ensino superior, consistiu sobretudo
nos termos interiores da refundição de si próprio, isto é, numa metanóia ou
revolução pessoal de caráter singular. “Então lá, afirma Agostinho, ao fim de
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dois anos, é que entendi o meu fenômeno e o de Portugal no seu conjunto.”13
Mas com o que, afinal, o autor de Considerações se deparou na Paraíba, a ponto de se dizer outro, mais aberto, livre e verdadeiro; a ponto de
assumir que ali ele apreendeu algo de essencial, encontrando-se a si e descobrindo efetivamente Portugal, algo que no fundo o formou e que era relativo
às suas nascentes, quer dizer, ao que lhe era originário?
Agostinho da Silva se deparou com sobrevivências de um Portugal
que ele pensava morto e apagado; um Portugal que não lhe era vivamente
familiar ou que lhe era, apenas, livrescamente familiar. Um Portugal cuja linha essencial de vida havia sido brutalmente interrompida pelas infiltrações
estrangeiras do capitalismo comercial, do absolutismo real e da Contra-Reforma, e que, portanto, foi se tornando residual desde fins do século XV a
começos do XVI, para não mais soerguer-se. E, nesse sentido, é esclarecedor
considerar, para um mais largo entendimento de aspectos decisivos da vida
e da obra de Agostinho da Silva, o Salazarismo como uma espécie de citação
do obscurantismo de longa duração que, desde o Quinhentos, toldara o belo
e austero perfil do rosto helênico, romano e cristão, também mouro e também judeu, da Península. E note que eu disse “da Península” e não “da Europa”, posto que, para Agostinho, tributário que era do pensamento da geração
(espanhola) de 1898 – de Miguel de Unamuno e de Ángel Ganivet, principalmente –, “Ibéria não é Europa”.14
Se “geologicamente a África só começa umas tantas léguas depois
do estreito de Gibraltar”,15 cultural e etnicamente há uma extensão significativa dela nas gentes e terras de Portugal e Espanha, herança dos séculos de ocupação árabe, e durante a qual, por certo período, a Península foi
“mestra incontestada de europeus”:16 “quando judeus, cristãos e muçulmanos conviviam do Mediterrâneo ao Atlântico; quando em Toledo se celebram num mesmo recinto os três grandes cultos de Cristo, Moisés e Mao
mé; quando se teve com o Califado um dos poucos períodos da História que
pode ombrear com o de Péricles ou o dos Tang; quando ensinamos à Europa os
algarismos, a álgebra, a filosofia grega e a geografia árabe.”17
A Ibéria, portanto, corporifica um fenômeno étnico-cultural intermédio entre África e Europa ou – para utilizarmos as palavras de um autor caro a
Agostinho, e também ele leitor marcado pelos escritos da geração de 98 – uma
“espécie de bicontinentalidade”, na qual a Europa reina “sem governar: governando antes a África”.18
Daí que, na visão de Agostinho da Silva, a Europa ela-mesma, tout
court, está para além da cadeia montanhosa dos Pireneus; uma Europa vinA diáspora da inteligência lusa...
Amon Pinho
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cada pelo Direito Romano redivivo e pelas idéias políticas de Maquiavel, por
uma economia guiada pelo lucro, uma reforma religiosa que aprova o princípio do juro e uma ciência que vai mais pela sujeição da natureza do que pela
sua contemplação. Numa palavra, a Europa que se alicerça no exercício da
dominação.
É essa a Europa cujas tropas invadem a Península, segundo o autor
de Reflexão, manifestando-se, por exemplo, no regime opressor e centralista
de Castela sobre as demais regiões da Ibéria. E que a invadem pelas formas de
pensar, agir e sentir das elites locais (da nobreza, do clero e da realeza), pois
se trata não de tropas militares, mas de tropas culturais. Em Portugal, com
Dom João II, o Príncipe Perfeito, vem junto Maquiavel;19 com Dom Manuel I,
o capitalismo comercial do império venturoso da pimenta; com Dom João III,
a Inquisição; e com Dom Pedro II, o triunfo da Monarquia absoluta.
E para trás, soterrado e esquecido, quedou-se aquele Portugal medieval que Agostinho, inspirando-se em Alexandre Herculano e Jaime Cortesão,
entre outros, pensava enquanto uma Monarquia popular e democrática, com
suas Cortes e concelhos, seu comunitarismo agro-pastoril e sua educação pela
experiência da liberdade criativa. Um Portugal marcado pela presença do espiritualismo franciscano, pela religiosidade do Espírito Santo, e no qual conviviam, como já referido, mouros, judeus e cristãos.20
É o encontro com as sobrevivências seculares de certos aspectos deste
Portugal medieval, na Paraíba, aquilo que desperta Agostinho, em sua metanóia ou revolução pessoal, para uma nova concepção de si e de sua terra natal.
E o órganon desse despertar, isto é, o meio pelo qual esse despertar se realiza,
é o fenômeno da semelhança ou das correspondências históricas. No caso, o
fenômeno da profunda semelhança entre duas situações separadas no tempo
por séculos e cujas afinidades não causalmente se elegeram.
Na esteira do notável historiador-filósofo judeu-alemão Walter Benjamin, a semelhança histórica é concebida, aqui, como a expressão da trama do
passado no tecido do presente, como a forma de aparição dos acontecimentos
do ontem citados nos acontecimentos do hoje, ou seja, como o modo de manifestação dos mais atuais aspectos do passado: daqueles aspectos do passado
que nos são lembrados pelo devir dos acontecimentos presentes, em razão das
correspondências ou afinidades que apresentam entre si.
Em seu vir a ser, os acontecimentos presentes, com maior ou menor
grau de explicitação, como que citam os acontecimentos passados que lhes
são semelhantes. Mas perceber essas citações, nem sempre evidentes, do semelhante é algo que depende da qualidade da atenção e do grau de conheciRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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mento do intérprete. Pois, verdade seja dita, o presente a todo o momento cita
o passado. Do passado, o presente se encontra repleno, e no seu desdobrar-se
precipitam-se séculos.
“A verdadeira imagem do passado [considera Benjamin] perpassa,
veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido (...). Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse
presente se sinta visado por ela.”21 “Cada presente é determinado pelas
imagens [do passado] que lhe são sincrônicas; cada Agora é o Agora de
uma conhecibilidade determinada.”22
Ao perceber, especialmente no tecido da cultura popular tradicional
do sertão do Nordeste brasileiro, a trama de determinados aspectos da Idade
Média portuguesa, Agostinho compreendeu o quanto aquele passado, em
positivo, lhe visava, concernia-lhe, tornava-se-lhe sincrônico, e o quanto esse
mesmo passado, em negativo, concernia à própria experiência histórica do
Portugal de sua época, então dominado por Salazar.
Se Agostinho da Silva, tal como diz, se sentiu como os portugueses de
fins do século XV a começos do XVI, que por incompatibilidade abandonaram o Portugal do capitalismo comercial, do absolutismo real e do catolicismo
ortodoxo de Trento, quer dizer, um país que se lhes havia tornado econômica,
política e religiosamente insuportável, se assim ele se sentiu, é porque no devir
dos acontecimentos da sua experiência de vida produziu-se algo de efetivamente correspondente ou semelhante.
É essa, ao menos, a interpretação que ele mesmo perspicazmente deu,
quer na já mencionada Vida Conversável, quer em interlocução decorrida anos
antes, na qual com toda a clareza declarou: vim para o Brasil “na esteira de milhares de portugueses que, a partir do século XVI, a ele vieram na busca de espaço
ideológico que o absolutismo real, o capitalismo comercial e a Contra-Reforma
lhes haviam estreitado na Pátria, já que não há verdadeiramente Portugal, nem
nação alguma se poderá reclamar de seu cerne, se não for simultaneamente de
democracia popular, de coletivismo econômico e de liberdade religiosa. Vim em
1944, depois de demitido do lugar de professor por me ter recusado a hipotecar
a minha liberdade futura, num protesto que só tive por companheiro Fernando
Pessoa, o que faz pensar em quanto a obediência dos povos alimenta a tirania
dos governos; (...) e de me ter sido proibida a campanha de educação do povo
que empreendera com publicações, exposições e palestras”.23
A diáspora da inteligência lusa...
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Agostinho da Silva expatria-se de Portugal motivado sobretudo pela situação política adversa representada pelo Salazarismo. E que para ele se
projetou não apenas enquanto proibição da extraordinária campanha de educação do povo, que empreendeu com um conjunto notável de atividades de
divulgação cultural, mas também como perseguição e ameaças, espionagem
e interceptação indiscriminada de correspondência, confiscação de bens pes­
soais, prisão e tortura.
A atmosfera do País tornou-se-lhe irrespirável, tanto quanto séculos
antes se havia tornado para o que ele chama os “verdadeiros”, os “tradicionalistas” ou “reais portugueses”,24 isto é, os portugueses que não compactuaram
com os rumos políticos, econômicos e espirituais do Portugal quinhentista,
tão adversos à carreira medieval portuguesa, e que emigraram para o Brasil,
levando, segundo sua concepção, o melhor espírito de Portugal.
O espírito de um Portugal essencialmente popular que, no Portugal
invadido pelas tropas culturais européias, se ia abastardando sob os interesses
econômicos e políticos dos seus dirigentes e das suas elites. Espírito presente,
por exemplo, no fenômeno paradigmático do culto popular do Divino Espírito Santo, perseguido e proibido pela Inquisição e, por extensão, banido para
as ilhas atlânticas e para o Brasil, onde veio a se tornar, no caso das extensas e
não facilmente fiscalizáveis terras brasileiras, o cerne de um catolicismo popular exuberante, colorido, festivo e profundamente mestiço, profundamente
entrecruzado pelos legados culturais africano e ameríndio.
Meu Divino Espírito Santo
Da Glória celestial
Me ajude a vencer
Esta batalha real
Esta batalha real
Nós havemos de vencê
A mesma croa [coroa] divina
Ela é de nos valê,25
São versos que, ainda hoje, com força, beleza e verdade ressoam no cantar das negro-mestiças caixeiras do Divino Espírito Santo da
Casa Fanti Ashanti, de São Luís, no Maranhão, para citarmos uma dentre
tantas outras celebrações populares à Terceira Pessoa da Trindade, vivamente
espraiadas por todo o Brasil, como para citarmos uma dentre tantas outras
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expressões da cultura popular tradicional brasileira que, se perspectivadas em
conjunto e para além da vulgar acepção corrente de folclore – não obstante folklore signifique, etimologicamente, “conhecimento, saber, educação, do
povo” –, nos permitem entrever que, “observadas a fundo, há camadas subterrâneas da cultura [tradicional popular] brasileira que convergem para visões
inspiradas de concórdia, solidariedade e justiça, as quais destoam dramaticamente do destino de desigualdade, violência e obscurantismo que marcam a
história do país.”26 Sintomático e conseqüente “destoar”, aliás, diga-se. Pois não
é o sofrimento o fundamento da busca da felicidade? E não é o desespero o
húmus da fé e da esperança? Ou, para lançarmos mão de um exemplo de base,
não é a extenuante faina diária do trabalhador braçal o que está na raiz do que
de mais belo há nos cantos de trabalho?
Historicamente submetido, explorado, marginalizado, sofrido – profundamente sofrido –, no culto ao Divino Espírito Santo, ao coroar uma criança
como imperador do mundo; ao libertar os presos das prisões; e ao servir um
banquete gratuito para todos que nele se queiram banquetear, perfazendo assim
os três precípuos momentos deste auto do Pentecostes, em que, ainda hoje, o
que se comemora não é o passado, mas uma idéia-imagem do futuro – declara
“o povo em primeiro lugar, e quantos já o viram ou de tal souberam
jamais o poderão esquecer, que a figura mais importante no mundo
é a de Criança, que do mundo se coroa Imperador (...); é a Criança
quem deve mandar em nós todos, primeiro para que nos dê alguma
coisa de sua imaginação, de sua inocência, de seu contínuo sonho, de
seu esquecer-se de tempo e de espaço, de sua levitante vida, e depois
para que dela se desenvolva, sem que nenhuma qualidade se perca e
muitas outras se acrescentem, um adulto bem diferente de nós, que
tão brutos somos, em parte por desistências ou covardias nossas, em
parte porque a vida ainda é uma violenta luta e algum deleite ainda
nós (...) tiramos de nosso triste papel nas referidas lutas.[¶] Posta a
Criança em primeiro lugar, num penhor de que toda a nossa atividade a ela vai, como devia, ter por centro, para que para sempre desapareçam as crianças famintas, as crianças nuas, as crianças escravas, as
crianças mártires (...), volta-se esse povo das ilhas, e de muito ponto
do Brasil, como outrora se voltava o de todo o território português,
para o que sofrem os adultos no mundo em que vivemos. A grande
festa do culto, logo depois de coroado o novo redentor monarca, era
e é o banquete geral, todo de comidas oferecidas, gratuitas (...); ninguém haveria com fome naquela idade nova [a do Espírito Santo]
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que começava, todos teriam, por existir, o direito de continuar vivos.
(...) ninguém deve haver no mundo passando fome, quer se trate da
fome que significa não comer mesmo, quer da fome de carências
em proteína, vitamina ou gordura, quer da fome de abrigo, quer da
fome de amor; que há para que tal se consiga sistemas econômicos
que não se baseiam na concorrência, na exploração dos outros e no
lucro individual, duramente, cruelmente conseguido.”27
Na simbólica do culto popular do Divino Espírito Santo, Agostinho
pois, com razão, discernia aspirações, valores e ideais de renovação, de imaginação criadora e de justiça social, de prosperidade, de fraternidade e de liberdade. Não eram os presos, por sua vez, libertos de suas cadeias físicas e
espirituais? Daí que o que sobretudo importa dizer é que é nesta apreciação
agostiniana de aspectos simbólicos da cultura popular tradicional luso-afrobrasileira – que ele preferencialmente perspectivava pelo prisma da Festa do
Divino – que está fundada a noção agostiniana de povo, povo com o qual
George Agostinho dizia ter aprendido “o sentido profundo das tradições portuguesas transplantadas para o Brasil e no Brasil florescendo.”28
Pensar a teoria agostiniana da história portuguesa enquanto uma teoria antielitista da história significa ter em conta os tais pressupostos de cunho
histórico-político-cultural e biográfico, tanto como o conjunto de questões de
que me ocupei até agora, e que podem ser resumidos no interessante e pedagógico paralelo que a categoria da semelhança histórica nos permite explorar.
Paralelo não apenas explicativo, quero dizer, teórico, mas efetivo. E tão efetivo
que Agostinho da Silva o experienciou de forma substantiva e determinante.
É este paralelo histórico, estabelecido não por relações causais e mecânicas, mas por relações dialéticas de semelhança, a pedra angular da teoria
agostiniana da história portuguesa, teoria na qual o presente compreende-se e
define-se pelo passado e o passado pelo presente, em que o Portugal do século
XX compreende-se e define-se pelo do século XVI e vice-versa. Um transitar
entre duas épocas, diria o historiador francês Marc Bloch.
A teoria da história elaborada por Agostinho da Silva não se resume a
uma perspectiva compreensiva (hermenêutica) do passado português; ela também constitui-se numa reflexão política sobre o seu tempo presente, numa crítica aguda das instituições antidemocráticas do Estado Novo português, que o
perseguiu a ele, que o oprimiu a ele e a tantos outros que se exilaram no Brasil,
para lá também levando, analogamente aos “tradicionalistas” ou “verdadeiros
portugueses” do Quinhentos tendências do melhor espírito de Portugal.
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Se defino como antielitista esta teoria da história, é porque suponho
que só assim conquistamos uma compreensão mais completa e acertada dela;
só assim conseguimos capturar, pelo entendimento, o ponto central a partir do
qual ela se articula. Que há nela mitopoese ou um “vezo lírico”,29 para utilizarmos a expressão de Agostinho, disso ninguém duvida, nem mesmo ele próprio,
que conhecia a história de Portugal como poucos e que se definia, à semelhança de Fernando Pessoa, como um “artista criador de mitos supremos.”30
Mas não apenas. Agostinho pensou-se igualmente como propugnador
de uma política livre, não partidária e não dogmática, sempre atento ao papel
dos grupos dirigentes, por um lado, e ao dos populares, por outro, nos desdobramentos cruciais da história política, social, econômica e cultural portuguesa. Tendo sido, por cerca de dez anos, entre 1928 e 1938, um dos mais ativos
colaboradores do grupo e da revista Seara Nova, não esquecera a tese seareira
de que a vida política duma nação é, em grande medida, decorrência da sua
vida intelectual e do seu movimento de idéias, como das profundas aspirações
dos grupos sociais hegemônicos, e de que, portanto, a origem da secular crise
nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade
lusa, as das classes dirigentes precípua e particularmente.
Se defino, portanto, como antielitista a sua construção teórica da história, é porque, nela, são as elites as responsáveis pela introdução daquelas
idéias européias que, na forma de capitalismo, do absolutismo e da ContraReforma, fraturaram a coluna vertebral de um Portugal popular tradicionalmente comunitarista, municipalista e heterodoxamente religioso. E se etimologicamente elite significa “aquilo que há de melhor”, historicamente, no
pensamento político de George Agostinho da Silva, é o que há de pior, seja na
razão absolutista, seja na razão fascista de Estado.31
A esse propósito, por sinal, e também para finalizar, seria de interesse recordar, por um lado, a sua menção concordante a uma observação feita pelo “filósofo do séc. XIX Émile Boutroux, que veio a Portugal e disse: ‘Este é um país curiosamente diferente, o oposto da França,
onde as elites são estupendas e o povo não presta. Aqui o que presta é o povo, as elites não valem nada’.”32 Por outro, a afirmação de que
“o que derruiu Portugal, e por culpa dos mesmos governantes, foi uma falta
de senso moral, foi o terem posto a razão de Estado como padrão de ações.”33
“Demasiado em sua vida pretérita obedeceu Portugal às chamadas razões de
Estado.”34 “Não que o Povo não protestasse sempre que podia, recusando-se a
ser cúmplice dos pecados dos chefes (...). Os chefes, porém, porque o não são
plenos, nunca em Portugal ouviram o Povo.”35 E o “espantoso”, o “miraculoso”
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deste Povo, e dos demais Povos que se expressam ou se expressaram em português “é que tenham sobrevivido a séculos da contínua tentativa de deformação
que têm sido os nossos sistemas políticos, as nossas instituições educacionais
e as nossas práticas religiosas, tudo de acordo com um capitalismo que repugna às suas tendências de generosa solidariedade; que tenham ultrapassado,
sobretudo, os exemplos que tantos de cima tanto lhe deram”.36 Os exemplos,
reiteraria, que tantos de cima tanto lhe dão:
“(...) até quando, adverso mundo, falharão as revoluções do Povo?”.37
Notas
1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq; inédito no Brasil, trata-se de uma versão revista e ampliada de “Breve interpretação da teoria
agostiniana da história portuguesa”, artigo publicado em Portugal, na obra coletiva Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro. Lisboa: Âncora, 2006, pp. 17-31. Organização de Renato Epifânio; introdução de Paulo
Alexandre Esteves Borges.
2 Cândido, Antônio. “Intelectuais portugueses e a cultura brasileira”. In: GOBBI, Márcia Valéria Zamboni; FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro; JUNQUEIRA, Renata Soares (orgs.). Intelectuais portugueses e a cultura brasileira:
depoimentos e estudos. São Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 30.
3 A estada de Rebelo Gonçalves, no Brasil, foi breve, estendendo-se de 1935 a 1937; já as do professor de língua
e literatura greco-latina Urbano Canuto Soares – de quem Agostinho da Silva foi aluno na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto – e do ensaísta, crítico literário e professor Fidelino de Figueiredo foram bem mais
duradouras, tendo a do primeiro decorrido de 1939 a 1954 e a do segundo de 1938 a 1951. Sobre a presença
desses três intelectuais portugueses nos primórdios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo, pode-se também consultar: Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, no. 22, Set./Dez. 1994. Trata-se de
número comemorativo dos sessenta anos da Universidade de São Paulo. Encontra-se igualmente disponível em
versão eletrônica, no sítio http://www.usp.br/iea/revista. Acesso em: 19 Fev. 2005.
4 Cândido, Antonio. “Prefácio”. In: LEMOS, Fernando; LEITE, Rui Moreira (orgs.). A missão portuguesa: rotas
entrecruzadas. São Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 15.
5 CARVALHO, Joaquim Barradas de. O obscurantismo salazarista. Lisboa: Seara Nova, 1974, p. 13.
6 Id., ibid., p. 13.
7 Id., ibid., p. 14.
8 Id., Ibid., p. 41.
9 Embora sejam políticos os motivos que estiveram na origem da emigração de parte substantiva dos intelec­
tuais portugueses que desembarcaram no Brasil, entre os anos de 1940 e 1974, vale lembrar que também pisaram
o solo brasileiro pensadores lusos não constrangidos politicamente pelo Salazarismo; ao menos, não diretamente.
Frise-se, não obstante, que mesmo estes não encontraram, de uma forma ou de outra, espaço para atuação na exigüidade do Portugal da época. Abordando a questão no seu aspecto social, e sem referências explícitas, como era
de se esperar, ao político, considera Antônio Quadros: “A nossa cultura não é, com efeito, tão pródiga de valores,
que possamos dispensar esses que, como Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Casais Monteiro ou Antônio Boto,
partiram para o Brasil em busca de novos horizontes. Alguns destes casos revelam flagrantemente a situação social
do escritor português (...). Depois da emigração dos trabalhadores rurais será a emigração dos intelectuais? Tão
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difícil é, com efeito, a vida do escritor em Portugal, que não se pode senão lamentar uma decisão tantas vezes sem
alternativa. (...) Bem significativo é o caso de Eudoro de Sousa, que, como Agostinho da Silva, encontrou o abrigo
na Universidade de Sta. Catarina (...). Era sem dúvida o primeiro helenista português. (...) Possuía uma profunda
cultura germânica e conhecia bem a filosofia portuguesa. Mas faltava-lhe o papel, o diploma, a licenciatura. Bateu
a todas as portas e todas se lhe fecharam. (...) Mais realista, o Brasil procura a qualidade, não os requisitos burocráticos concebidos pelos juristas. E um outro valor acaba de partir, desta vez para a Bahia: Eduardo Lourenço.
Estaremos a praticar o suicídio mental, sem ver que está em causa a própria sobrevivência? Justifica-se o grito de
alarme. A classe dos escritores é a menos protegida, a mais mal paga, a mais abandonada de todas as classes. Por
outro lado, enquanto as cátedras universitárias se tornam por demais permeáveis aos medíocres (...), os valores
autênticos sofrem ou emigram (...)”. QUADROS, Antônio. “Agostinho da Silva e a emigração dos intelectuais portugueses.” 57, Movimento de Cultura Portuguesa, Cascais, Portugal, no. 5, set. 1958, p. 21. Em respeito à exatidão,
observo que este artigo, publicado no (notável) jornal 57, não vem assinado, mas, pelos termos em que está escrito
e pela posição central que nele ocupava Antônio Quadros, é deste sem dúvida a sua autoria.
10 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organização e prefácio de Henryk Siewierski, pp. 86-87. As gravações dos diálogos, entre o autor e o organizador, que
deram origem a este livro-entrevista datam de 1985.
11 Id., ibid., p. 88.
12 Id., ibid., p. 101.
13 Id., ibid., p. 89.
14 SILVA, Agostinho da. “Bahia: coleção de folhetos [2]”. In: ____. Dispersos. 2a ed. Lisboa: ICALP: Ministério
da Educação, 1989. Organização e apresentação de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 494. Bahia: coleção de
folhetos [2]. Texto originalmente publicado em 1971.
15 SILVA, Agostinho da. “Moçambique, porto de escala entre o Oriente e o Ocidente” [entrevista].
A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, no. 411, 11 abr. 1975, p. 7.
16 SILVA, Agostinho da. “De que há povo”. In: ____. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira, v. II,
Lisboa: Âncora, 2001. Organização de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 59. Texto originalmente publicado em
1970.
17 SILVA, Agostinho da. “Educação de Portugal”. In: ____. Textos pedagógicos, v. II, Lisboa: Âncora, 2000. Organização de Helena Maria Briosa e Mota, p. 106. Livro indispensável, e que pode ser considerado síntese dos mais
relevantes e diversificados aspectos do pensamento de Agostinho da Silva, foi redigido em 1970, mas somente
publicado em 1989.
18 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. 12ª ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, pp. 70-71.
19 É freqüente encontrarmos em escritos de Agostinho da Silva a idéia de que o reinado de D. João II representou a
introdução, em Portugal, do maquiavelismo: “Com D. João II entrou Maquiavel ...”, afirma, por exemplo, na sua Reflexão à margem da literatura portuguesa. Deve-se observar, contudo, que, embora se trate de maquiavelismo, é como
maquiavelismo avant la lettre que o devemos compreender. Afinal, aquele rei ocupou o trono português de 1481 a
1495, ou seja, muitos anos antes de Nicolau Maquiavel expor, em O Príncipe, as suas conhecidas idéias amorais sobre
conquista e conservação do poder. De todo modo, a “ação do novo rei, a quem os inimigos chamaram O Tirano e os
amigos O Príncipe Perfeito, já tem sido relacionada com a teoria política que Maquiavel expõe n’O Príncipe (...). (...)
D. João II foi contemporâneo dos Médicis e soube ser um vigoroso representante do estilo de pragmatismo
político que então se afirmou na Europa”. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 17ª ed. Mem
Martins, Portugal: Publicações Europa-América, 1995, pp. 129-130.
20 Pelos termos esclarecedores da formulação, é de proveito a leitura da seguinte passagem de Agostinho da Silva, na qual ressoam ecos não apenas de Herculano e Cortesão, mas também do Antero de Quental das Causas da
decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos: “(...) ter mentalidade medieval não significa de modo
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algum pensar o que tantos julgam que se pensava, ou antes, se não pensava durante a Idade Média, aqueles para
os quais ainda vigora a concepção de que os dez séculos medievais foram épocas de treva e que foi o Renascimento que de novo lançou a Humanidade no seu caminho de progresso; ter mentalidade medieval significa para
o povo português estar dentro de uma economia coletivista, que vinha já dos tempos pré-romanos e, portanto,
contra a economia capitalista que, partindo da Alemanha e da Itália, invade a nação do século XVI; significa
igualmente ser fiel às organizações republicanas, democráticas, populares dos concelhos (...); significava ainda
que se desejava liberdade religiosa, e é bom lembrarmo-nos de que grande parte dos condenados a degredo para
o Brasil o foi por motivos de heresia religiosa, já depois do Concílio de Trento (...). As tradições liberais do país
vêm da Idade Média portuguesa, não dos séculos em que Portugal foi inteiramente subjugado pelo capitalismo
das viagens de longo curso, pelo absolutismo real baseado no direito cesarista e pela intolerância religiosa que
principia, com D. João II, pela perseguição dos judeus e firmemente se estabelece com os inquisidores a partir do
reinado de D. João III”. SILVA, Agostinho da. “Num estilo quase de adivinha...”. In: ____. Ensaios sobre cultura e
literatura portuguesa e brasileira, v. II, p. 206. Texto originalmente publicado em 1971. Em vista do que se tratará
adiante, cabe ainda acrescentar que, no artigo “Noutro ponto a fonte...”, de 1970, inserto neste mesmo volume,
D. João II e D. João III são caracterizados como “reis de razão de Estado, frios e calculistas”.
21 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224 (Obras escolhidas; v. I).
22 BENJAMIN, Walter. Paris, Capitale du XIXe Siècle: Le Livre des Passages. 3e ed. Paris: Les Éditions du Cerf,
2000, p. 479. Embora pareça-nos suficientemente claro, não deixa de ser oportuno observar que não pretendemos aqui efetuar quaisquer aproximações entre os pensamentos de Agostinho da Silva e Walter Benjamin.
O recurso aos conceitos benjaminianos de semelhança histórica e “Agora da conhecibilidade” nos interessa na
medida em que lançam luz sobre o ponto a partir do qual a teoria agostiniana da história de Portugal se arma,
articula ou constitui. Trata-se pois de aportes teóricos, e não de um meio pelo qual propuséssemos estabelecer
possíveis conexões entre os dois pensadores, como, por exemplo, inferiu Paulo Archer de Carvalho – a partir da
crítica que fez à primeira versão deste texto –, no seu Historiosofia e mitologia: A Ibéria na obra de Agostinho da
Silva, comunicação apresentada no Colóquio “Agostinho da Silva e a Ibéria”, promovido pelo Centro de Estudos
Ibéricos da Guarda, em 3 de Novembro de 2006, Guarda, Portugal.
23 SILVA, Agostinho da. “Entrevista a Tereza Sá Nogueira” (separata para cem amigos). In: ____. Dispersos, p. 23.
Originalmente publicada em 1975.
24 Cf. SILVA, Agostinho da. Reflexão à margem da literatura portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1990,
pp. 97-98. Escrito em 1956 e originalmente publicado em 1957.
25 CAIXEIRAS DA CASA FANTI-ASHANTI. “Apareça Santa Croa”. In: ____. Caixeiras da Casa Fanti-Ashanti
tocam e cantam para o Divino. São Paulo: Itaú Cultural: Associação Cultural Cachuera!, 2002. 1 CD. Faixa 6.
26 SEVCENKO, Nicolau. Pindorama revisitada: Cultura e sociedade em tempos de virada. São Paulo: Peirópolis,
2000, p. 17.
27 SILVA, Agostinho da. “O Espírito Santo das Ilhas Atlânticas”. In: ____. Dispersos, p. 569. Texto de 1972.
28 SILVA, Agostinho da. “Compostela: Carta sem prazo a seus amigos – Primeira de 71”. In: ____. Dispersos, p.
513. Texto de 1971.
29 SILVA, Agostinho da. “Carta chamada Santiago”. In: ____. Dispersos, p. 605. A carta citada é a de 2 de Julho
de 1974.
30 SILVA, Agostinho da. “FPH” [Fragmenta Pharmaceutica]. In: ____. Dispersos, p. 419. Texto originalmente
publicado em 1968. Numa das últimas cartas de sua correspondência pública, escrita cerca de um ano antes
da própria morte, Agostinho da Silva volta a dissertar sobre este aspecto mitopoético decisivo, mas, a meu ver,
não exclusivamente definitivo da sua concepção da História de Portugal. Considerá-lo, aliás, como exclusivamente definitivo desta parece-me reducionismo, apreensão incompleta e descomplexificante do seu penetrante e matizado pensamento, a um tempo, histórico e mítico, político e metafísico (cadinho, por exemplo,
da fundamental noção agostiniana do “Portugal-idéia”). E equívoco em que, sintomaticamente, incorrem
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intérpretes e críticos das mais distintas cepas, simpáticos ou não às suas reflexões – tais como as que constam da carta há pouco referida, que passo a citar: “A História de Portugal, inteligente, documentada, válida
e duradoura, diz que a Nação nasceu por; se fixou por; se defendeu com pinheirais e castelos sempre por;
navegou por; entristeceu e se alegrou por; finalmente acabou por. Aquela História de Portugal pela qual eu
vou, História sentimental e fantasiosa, meio inventada talvez em muito ponto, garante-me logo de começo
que a Nação nasceu para, se definiu para; casou para; navegou para; desanimou para e reagiu para e acabará
para. Eu me explico tanto quanto posso. Nasceu para ocupar a melhor das costas, dando naturalmente para o
mar, mas sobretudo para o Oceano, que permite ir a todo lado; para aprender a bolinar; para completar o Império Romano que soberanos e legiões tinham deixado só como esboço, com uns lambiscos de Europa e uns
desembarcadouros de África e umas vagas idéias de Ásia; para universalizar Direito tirado pelos romanos da
Filosofia grega, como engenharia baseada no Euclides; lógica de guerrear da de pensar; para, depois de ouvir
a Isabelinha de Aragão, projetar para o mundo inteiro o entender e adorar o Divino, de ser a criança o maior
dos milagres, de não se ter de ganhar a vida, o que a amesquinha, e de não haver prisões, nem as de grades,
nem sobretudo, porquanto piores, as que são de dúvidas. Têm razão os sábios, que tanto respeito, que Portugal
foi por; mas insisto em pensar, sem autoridade alguma, que Portugal sempre foi, sempre é e sempre será para.
Obrigando-nos a todos nós, a que sejamos para, servindo-nos para tal do que somos por. Vocês não acham?”
SILVA, Agostinho da. As últimas cartas do Agostinho... Alhos Vedros, Portugal: Cooperativa de Animação Cultural, 1995, p. 15. Uma expressão condensada possível do que se acaba de citar, seria o subseqüente aforismo
de extração vieirina: “O bom historiador escreve do passado, criticando o presente e projetando o futuro. Toda
a história que vale é do futuro. SILVA, Agostinho da. “Pensamento à solta”. In: ____. Textos e ensaios filosóficos,
v. II, Lisboa: Âncora, 1999, p. 146. Organização e introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 146. Pensamento à solta é obra publicada postumamente, e sua redação parece ter-se dado no despontar dos anos 1980.
Por fim, como aditamento matizante do conteúdo epistolar aduzido, incorporo ainda o seguinte excerto: “(...)
por aí irei dizendo o que me parece ter sido a história desta Nação – tão lógica em meu espírito, (...) que,
respeitando os documentos que já se conhecem, espero que se encontrarão um dia aqueles que vierem a fazer
prova do que penso: pois que me é geral concepção a de que a rede do real só se desvia da rede do pensar se
não foi este de coerência perfeita”. SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de
futuro”. In: ____. Dispersos, p. 706. Originalmente publicado em 1982.
31 Por duas vezes, neste trabalho, utilizei-me do termo “fascista” para definir o caráter político do regime ditatorial português encabeçado pelo ex-seminarista de Santa Comba Dão. E o fiz levando em conta as conclusões a
que o professor João Medina chegou em seus estudos, dentre as quais transcrevo: “(...) o Salazarismo foi um regime autoritário, antiliberal e anti-socialista, visceralmente conservador e tradicionalista, católico e ruralista, um
paternalismo ríspido e retrógrado, ainda que sutilmente apostado em camuflar as suas arestas repressivas mais
evidentes (...). Fascismo? Digamos que foi antes uma espécie de ‘pseudofascismo’ ou ‘semifascismo’, de ‘fascismo’
cauteloso, manhoso e envergonhado, mais tradicionalista do que agressivamente inspirado em modelos que só
relutantemente imitou (ou fingiu imitar), um pragmatismo eclético, uma espécie de integralismo republicano
ou de republicanismo conservador monarquizado, um ‘fascismo de cátedra’ (Unamuno) com componentes escolásticas e castrenses, habilidoso na sua política externa e nas relações com os aliados tradicionais ou naturais,
renitente em alinhar-se com belicismos ou proselitismos, tanto de Roma como de Berlim, egoísta e estreito, mas
astuto e oportunista. (...) formalmente cortês e cristão, mas, afinal, intoleravelmente opressivo, do pior gênero
das violências: aquela que é feita por torcionários disfarçados de bons samaritanos. Não foi assim que os definiu
Neruda, num poema sobre o Portugal salazarista: ‘carceleros de luto / retóricos, correctos, / arreando presos a las
islas’... ?”. MEDINA, João. Salazar, Hitler e Franco: estudos sobre Salazar e a Ditadura. Lisboa: Livros Horizonte,
2000, pp. 42-43.
32 SILVA, Agostinho da. “Considerações” [entrevista]. A Phala, Lisboa: Assírio & Alvim, no. 10, jul./set. 1988, p. 4.
33 SILVA, Agostinho da. “O Baldio do Povo – 2”. In: ____. Dispersos, p. 534. Texto originalmente publicado
em 1971.
34 SILVA, Agostinho da. “Proposição – Aditamento um”. In: ____. Dispersos, p. 629. Texto escrito em 1975.
35 SILVA, Agostinho da. “Carta chamada Santiago”. In: ____. Dispersos, p. 605.
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36 SILVA, Agostinho da. “Educação de Portugal”. In: ____. Textos pedagógicos, v. II, p. 114.
37 SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de futuro”. In: ____. Dispersos, p. 711. Embora tenha optado por não desenvolver neste texto a questão que indico a seguir, devo, reportando-me a ela, sumariamente considerar que a teoria agostiniana da história portuguesa deve ser
compreendida dentro das esferas maiores de uma teoria da história universal – tal como concebida
n’A Comédia Latina, ensaio publicado em 1952 (e não, como se supõe, em 1946/1947), enquanto prefácio a
peças de Plauto e de Terêncio, selecionadas e traduzidas por Agostinho da Silva em obra homônima – e de uma
filosofia ou teologia da história, sobretudo inspirada no pensamento de Joaquim de Fiore (1135-1202), o abade
calabrês que escalonou trinitariamente a totalidade do tempo histórico, atribuindo-lhe um sentido último e providencial, nas Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A teoria agostiniana da história portuguesa, portanto,
não está voltada somente para a compreensão do passado e para a crítica do presente: é rememoração histórica
e reflexão política determinada nos marcos de uma vigorosa e decidida imaginação utópica, profética e messiânica, a que também não escapou uma peculiar, substantiva e significativa assunção do sebastianismo e da noção
de Quinto Império, já antes pensados pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, assim como da idéia
camoniana da Ilha dos Amores. A título de informação, as referências bibliográficas completas da antologia das
peças dos comediógrafos mencionados são: PLAUTO, Tito Mácio; AFER, Públio Terêncio. A Comédia Latina.
Porto Alegre: Editora Globo, 1952. Prefácio, escolha, tradução e notas de Agostinho da Silva.
Resumo
É na condição de perseguido político do Estado Novo português que Agostinho da Silva
auto-exila-se no Brasil, neste país vindo a encontrar ou reencontrar tantos outros intelectuais lusos, também aqui expatriados – donde a idéia de uma “missão portuguesa”, consoante os termos de Antônio Cândido –, situação que se nos afigura ter sido decisiva para o
caráter que imprimiu à sua teoria da história de Portugal, neste texto definida enquanto
antielitista. É através da sua experiência de Brasil, de quase um quarto de século, que Agostinho da Silva redescobre-se redescobrindo efetivamente a sua terra natal.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; “missão portuguesa”; teoria da história; cultura popular tradicional; crítica das elites.
Abstract
It is as a refugee from political persecution by the Portuguese Estado Novo (New State)
that Agostinho da Silva exiles himself in Brazil, where he gets to meet or see again many
other Portuguese intellectuals, also expatriates – hence the idea of a “Portuguese mission”,
as Antonio Candido put it. This situation seems to have been decisive for the aspect Agostinho da Silva lent to his theory of Portuguese History, here presented as anti-elitist. It is
through his experience of Brazil, of almost a quarter of a century, that Agostinho da Silva
rediscovers himself rediscovering his homeland.
Keywords:
Agostinho da Silva; “Portuguese mission”; theory of history; folk culture; critique of the elite.
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Agostinho da Silva
e a “Escola de São Paulo”
António Braz Teixeira*
Por pensarem que as tentativas de compreensão da realidade cultural,
histórica e social do Brasil, levadas a cabo pelos promotores da Semana de Arte
Moderna de 1922 e seus seguidores, se tinham contribuído, de modo decisivo, para renovar profundamente a criação literária e artística, no entanto, haviam descurado inteiramente a actividade especulativa que não fosse estética,
e que o ensino filosófico ministrado nas universidades brasileiras não curava
de estimular a reflexão criadora e autónoma e ignorava ou desvalorizava, sobranceiramente, todo o passado da meditação nacional, como, em diversos
termos, anteriormente, o tinham feito Sílvio Romero1 e Leonel Franca,2 em
1949, alguns intelectuais paulistas, de marcada vocação reflexiva, de que se
destacavam Miguel Reale (1910), Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) e Heraldo Barbuy (1913-1979), acompanhados por alguns dos mais promissores
representantes da nova geração (Luís Washington Vita, Renato Cirell Czerna,
Gilberto de Mello Kujawski), decidiram tomar a iniciativa de criar uma nova
instituição cultural, destinada a promover a reflexão filosófica livre, a partir da
concreta situação espiritual brasileira, e a resgatar o esquecido passado especulativo nacional.3
Surgiu, assim, em Outubro desse ano, o Instituto Brasileiro de Filosofia, que, a partir do ano seguinte, passou a ter como órgão a Revista Brasileira
* Professor universitário, pensador e ensaísta. Exerceu funções docentes na Faculdade de Direito de Lisboa,
na Universidade de Évora e na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é, actualmente, professor associado. É
membro efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, membro correspondente da Academia Portuguesa da
História, da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro) e membro
efetivo da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. É autor, entre outros, de A Filosofia Jurídica Portuguesa Actual (1959), O Pensamento Filosófico-Jurídico Português (1983), Sentido e Valor do Direito:
Introdução à Filosofia Jurídica (1990), Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira (1991), Deus, o
Mal e a Saudade (1993), O Pensamento Filosófico de Gonçalves de Magalhães (1994), O Espelho da Razão (1997),
Ética, Filosofia e Religião (1997) e Formas e Percursos da Razão Atlântica (2001). Recentemente, publicou ainda A
Filosofia da Saudade e Diálogos e Perfis: Estudos sobre o Pensamento Português e Luso-Brasileiro, ambos em 2006.
É um dos fundadores do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.
46
de Filosofia, cuja publicação trimestral não sofreu, até hoje, qualquer hiato,
suspensão ou atraso, tendo ambos à sua frente, desde o início até hoje, a figura
ímpar de Miguel Reale.
Fiel aos seus propósitos fundadores, ao longo destes 55 anos, o Instituto Brasileiro de Filosofia e a sua revista têm conseguido congregar um significativo número de pensadores e de estudiosos das mais diversas correntes,
gerações e orientações especulativas, que aí têm podido expor e confrontar,
livremente, as suas ideias, ao mesmo tempo que desenvolveram e estimularam
uma inovadora actividade de estudo e reedição dos textos mais importantes
da meditação filosófica brasileira, cujos mais sazonados frutos foram a monumental História das Ideias Filosóficas no Brasil, e estudos complementares, realizada por António Paim,4 na senda dos trabalhos pioneiros de Miguel Real5 e
Luís Washington Vita,6 e as colecções Estante do Pensamento Brasileiro, editada
entre os anos de 1967 e 1977, e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, que lhe deu
continuidade de 1981 a 1987.
Em torno dos dois principais impulsionadores do Instituto (Miguel
Reale e Vicente Ferreira da Silva) e estimulada pela actividade que desenvolveu ou promoveu na primeira e dinâmica década e meia da sua existência,
veio a constituir-se, informalmente, uma verdadeira escola filosófica, a que
tenho chamado “Escola de São Paulo”,7 de que aqueles dois filósofos seriam os
mais influentes mestres e na qual, além dos outros três fundadores mais jovens
atrás referidos, se integrariam também figuras como Milton Vargas (1914),
Adolpho Crippa (1929-2000), os portugueses ou luso-brasileiros Agostinho
da Silva (1906-1994) e Eudoro de Sousa (1911-1987) e o checo Vilém Flusser
(1920-1980), cumprindo ainda não esquecer a contribuição que ao diálogo
especulativo da “Escola” deram o jusfilósofo italiano Luigi Bagolini (1913),
que, durante a década de 50, exerceu funções docentes na Faculdade de Direito paulista, o tomista belga Leonardo Van Acker (1896-1986), João de Scantimburgo (1915) e a grande poetisa Dora Ferreira da Silva (1918), mulher de
Vicente e uma das expressões maiores da literatura e da cultura brasileiras da
segunda metade da passada centúria.
Como noutra oportunidade notei já, apesar da marcada e inegável
individualidade de cada um dos pensadores que considero integrarem ou
constituírem a “Escola de São Paulo” e das diferentes linhas e tendências especulativas que definem o pensamento dos dois mestres-fundadores e dos seus
companheiros e discípulos, desde o culturalismo histórico-axiológico de Reale, da doutrina da mitologia de Vicente, Eudoro ou Crippa, do franciscanismo
paraclético de Agostinho e do neotomismo de Barbuy, ao idealismo de Czerna,
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à reflexão epistemológica de Milton Vargas, ao raciovitalismo de Kujawski ou
Luís Washington e à filosofia da linguagem de Flusser, são muito significativas
as afinidades e convergências teóricas, reflexivas e temáticas entre eles, que
revelam a pertença de todos a uma mesma “família espiritual”.
Do meu ponto de vista, seriam traços essenciais caracterizadores da
“Escola” o interesse especulativo pelo sagrado e pela experiência religiosa, a reflexão sobre a cultura, seu conceito, origem e sentido e sua relação com o mito
e com os valores, o problema do homem e da sua constitutiva historicidade,
a consideração filosófica da poesia, da arte e da técnica, a partir de diversas,
mas não antagónicas concepções ou visões do espírito compreendido como
liberdade, assim vindo a tecer-se um subtil e tácito nexo da “Escola” com o
pensamento espiritualista de Gonçalves de Magalhães ou do Farias Brito de O
Mundo Interior.
Cabe notar ainda que, mau grado as profundas diferenças entre as posições e atitudes especulativas deste valioso e significativo grupo de pensadores, no seu pessoal percurso filosófico, acabaram por vir, frequentemente,
a trilhar caminhos ou a demandar vias reflexivas insuspeitadamente próximas, afins ou convergentes. Foi o que aconteceu com certas confluências do
pensamento da maturidade de Barbuy, Czerna, Flusser ou Milton Vargas com
algumas posições filosóficas do último Vicente, para não falar já no que ao
magistério directo deste, como, em menor medida, ao de Eudoro, deve a obra
especulativa de Crippa e, de algum modo, também a de Kujawski, não podendo esquecer-se, ainda, o permanente diálogo que Czerna tem mantido com o
pensamento de Reale, de cujo culturalismo é tributária a obra especulativa de
Luís Washington, bem como os seus esboços de interpretação compreensiva e
valorativa do passado filosófico brasileiro.
A obra e a actividade especulativa de Agostinho da Silva, no período de mais intenso contacto e convívio com os outros elementos da “Escola”,
encontra-se mais próxima da linha de Vicente e Eudoro do que da de Real e
seus mais directos discípulos ou companheiros, constituindo, como, noutro
plano, também Delfim Santos, os dois mais potentes elos de ligação entre a
Escola Portuense e a sua congénere paulista, ligação para que não deixaram
também de contribuir, de forma relevante, do lado português, Álvaro Ribeiro,
Sant’Ana Dionísio, Orlando Vitorino e Afonso Botelho e, do lado brasileiro,
Luís Washington Vita.8
Esta relação intelectual e afectiva de Agostinho e Eudoro com Vicente e
Dora Ferreira da Silva está bem patente no conteúdo do pensamento e da obra
que realizaram e pensaram neste período e, de modo mais expressivo, no DiáAgostinho da Silva e a “Escola de São Paulo”
António Braz Teixeira
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logo do Mar e no Diálogo da Montanha, que o malogrado filósofo de Dialéctica
das Consciências escreveu pouco tempo antes de falecer e de que os quatro são
protagonistas, embora com diversos nomes, excepto, precisamente, Agostinho
da Silva, que aí figura com o seu nome próprio, George.9
Se as convergências e afinidades entre o pensamento de Eudoro e o da
derradeira e inclusa fase do prematuramente desaparecido especulativo paulista são por demais evidentes, profundamente interessados ambos na filosofia da mitologia, ainda que o pensador português, referindo sempre o seu
pensamento mítico-teodiceico ao cristianismo, nunca haja subscrito o neopaganismo vicentino, não deixam também de apresentar significativo relevo
as confluências dos interesses especulativos e da atitude reflexiva do pensador
portuense com os do filósofo brasileiro ou com o mais fundo sentido transcendente da inspirada obra poética de sua mulher.
Registe-se, desde logo, o interesse reflexivo de ambos pela obra maior
de Spengler, apesar de ser de contraposto sinal a atitude que perante ela tomaram, pois, enquanto o jovem autor de O Sentido Histórico das Civilizações
Clássicas (1929) profundamente dissentirá do filósofo alemão e da interpretação que fez da cultura grega e latina, nomeadamente quando aquele afirmava
carecer ela de sentido histórico, sem preocupação do passado e do futuro, tendo vivido exclusivamente concentrada no “presente puro”, já Vicente Ferreira
da Silva verá nele, acima de tudo, um arauto da superação crítica do racionalismo, ao valorizar o domínio poético do símbolo.10
Esta diversa posição relativamente ao pensador de A Decadência do
Ocidente não deve, porém, ocultar o muito que aqui une os dois membros
da Escola paulista, e, designadamente, o conceito de razão que perfilham e o
modo como entendem as matriciais relações entre a razão e o outro da razão e
as formas do pretenso irracional, que, como advertira já Leonardo Coimbra, o
são por excesso e não por defeito, ou o “saber do coração” de que, nos alvores
do Quatrocentos, falara o nosso sábio rei D. Duarte.
Se, na fase da sua actividade especulativa que precedeu a sua ida para
o Brasil – o decénio e meio que vai de 1928 a 1945 –, o pensador portuense
fez do mundo cultural grego a referência ideal da sua reflexão, em obras como
Sentido Histórico das Civilizações Clássicas, A Religião Grega (1930), Conversação com Diotima (1944), Pólicles (1944), Apólogo de Pródico de Ceos (1944) e
Diário de Alcestes (1945),11 como sempre o farão Eudoro de Sousa e o Vicente
do ciclo iniciado com Introdução à Filosofia da Mitologia (1955), será, no entanto, a partir dos ensaios já escritos no Brasil12 que se definirá o paracletismo
franciscano que constitui o fundo mais pessoal e original do seu pensamento,
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visivelmente inserido numa tradição que, por um lado, prolonga e actualiza
a visão escatológica e providencialista de Vieira e Pessoa e, por outro, amplia
e radicaliza a fraterna ética cósmica de Leonardo e Cortesão, que, de algum
modo, também Sérgio veio a partilhar.
Dada a decisiva e fundamental importância de que a teoria do mito, o sagrado e a análise da experiência religiosa apresentam na generalidade dos membros do que denominei “Escola de São Paulo”, necessário se afigura começar por
considerar aqui a primeira fase da demanda especulativa de Agostinho da Silva,
aquela que incidiu, preferente, se bem que não exclusivamente, sobre a cultura
grega e seu fundamento religioso, não esquecendo também o lugar que já então
atribuía ao cristianismo.
Ao admitir, a propósito da Grécia, que as mais altas expressões da sua
cultura foram “inspiradas e provocadas pela religião”,13 o pensador portuense
avança uma tese que, com a máxima amplitude, i.e., estendida a toda e qualquer cultura humana, virá a ser corroborada pelo seu companheiro de longos
anos de peregrinações brasileiras Eudoro de Sousa, e também por Vicente Ferreira da Silva, Heraldo Barbuy, Adolpho Crippa e Gilberto de Mello Kujawski,
ainda que nenhum deles compartilhe a interpretação que faz da religiosidade
grega ou o conceito de mito de que parte.
A esta ideia uma outra anda associada na interpretação que Agostinho
da Silva nos propõe: a de que o que, essencialmente, caracteriza o espírito grego é “o amor insaciável da Beleza, o desejo de qualquer coisa que seja sempre
mais alta e mais nobre”.14
Representando a harmonia completa da alegria, da natureza, da vida e
da beleza, a religião grega, desde o início, sempre esteve próxima da filosofia,
razão pela qual os seus deuses são o resultado de uma abstracção progressiva
da divinização de forças naturais, da beleza física, de atributos morais, das actividades humanas, enquanto os heróis proporcionavam ao grego “uma grande e nobre lição de virtude, de coragem, de espírito de sacrifício”.15
É nesta interpretação da religião grega que se inspira, por um lado, a
noção de mito acolhida pelo sábio pensador que hoje aqui celebramos e, por
outro, a teoria do sacrifício que, sumariamente, esboça.
De modo muito diverso do que, mais tarde, virão a fazer Eudoro, Crippa ou Kujawski, o jovem Agostinho da Silva tenderá a ver no mito “uma excrescência poética da religião em que ninguém verdadeiramente cria”, fábulas
inventadas a partir de acontecimentos e figuras reais, transfiguradas pelo tempo e pela imaginação dos poetas,16 concepção que, claramente, se insere na
linha do evemerismo, expressamente acolhida, entre nós, por Teófilo Braga
Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo”
António Braz Teixeira
50
nas Origens Poéticas do Cristianismo (1880) e em As Lendas Cristãs (1892), mas
que o pensador parece haver depois abandonado.
Por seu turno, no que respeita à teoria do sacrifício, o autor de
A Religião Grega revela-se aqui sequaz do pensamento desenvolvido pelo seu
mestre Teixeira Rego, na sua obra capital,17 sustentando ser possível que, a
princípio, aquele “simbolizasse a queda por um alimento animal, a expiação
da morte da primeira rês”, a substituição, por motivos desconhecidos, da primitiva alimentação frugívora pela alimentação com a carne de animais, até
aí considerados sagrados pelo homem, o que não poderia deixar de provocar
nele o horror pelo crime de haver morto um companheiro e um amigo, pelo
que o seu primeiro movimento foi o de fuga e, depois, para que os deuses lhe
perdoassem esta gravíssima falta, fazia-os participar nessa festa.18
Apesar de, no ensaio sobre A Comédia Latina, Agostinho da Silva acolher ainda a mesma concepção sobre o sacrifício que defendera quinze anos
antes, significativas modificações se operaram, entretanto, no seu modo de
pensar não só a religião e a cultura antigas como o próprio sentido humano e
transcendente do processo histórico.
Sustentava agora o pensador luso-brasileiro que um novo estudo dos
mitos primitivos, associado às novas investigações dos etnólogos e viajantes,
desde o final do Oitocentos, parecia provar que a Idade de Ouro não era uma
fantasia de poetas teogónicos, porquanto havia ainda povos que, não tendo
tido contacto algum com a nossa civilização técnica e industrial, “viviam dos
frutos que colhiam nas florestas (...), eram extremamente alegres, fidelíssimos
às instituições monogâmicas, dando perfeita igualdade de tratamento às mulheres, incapazes de castigar as crianças, e sem nenhuma espécie de propriedade, sem organização social e sem nenhum vestígio de religião organizada”.19
A passagem deste paraíso para aquilo que o mundo fora depois só
poderia explicar-se por uma quase transformação da Natureza, uma queda
que, fiel ainda à lição de Teixeira Rego, Agostinho da Silva situava na passagem da alimentação exclusiva com frutos da floresta para a alimentação
baseada na caça e na pesca e para uma forma primitiva de agricultura e de
pecuária, substituindo-se, assim, ao anterior e primitivo contacto perfeito
com a Natureza, quando a alimentação era exclusivamente frugívora, uma
guerra com a Natureza.
Consequências directas disso teriam sido, por um lado, a escravização da mulher, das crianças e dos animais e, por outro, o aparecimento das
primeiras sociedades, das primeiras religiões organizadas, do sentimento da
posse, a submissão e extinção gradual dos instintos e das espontaneidades
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criadores, substituídos agora pela regra, tal como o sacrifício substituiu a
alegria e a sociedade substituiu a natureza, sendo só então que surgiu a vida
religiosa e a noção de sagrado. Entendia o filósofo portuense que, verdadeiramente, a religião só apareceu, numa dimensão consciente, com a primeira
ideia de um Deus transcendente ou de um ser além do humano que, depurada depois, teria possibilitado o aparecimento de uma noção imanente
de Deus, complementar daquela, pois o auge do sentimento religioso, que
consiste na experiência mística, é a fusão entre o objecto do culto e o sujeito
do culto, “a transformação do amador na coisa amada, o aparecimento da
unidade perfeita onde a dualidade existia”.
Pensava ainda Agostinho da Silva que as manifestações religiosas primitivas apresentam sempre um carácter de totalidade, ou seja, que, para o
homem religioso primitivo, todo o mundo é sagrado, não havendo, por isso,
nenhuma acção da vida desprovida de marca sobrenatural e que não fosse
ocasião de cerimónias rituais.
O processo histórico da civilização humana, marcado por um crescente e cada vez mais poderoso desenvolvimento técnico, foi um processo de
dessacralização, de laicização ou de profanação, em que a noção de sagrado se
foi diluindo ou desaparecendo, surgindo agora o mundo não já como um conjunto de sinais divinos, “que o homem venera, teme ou respeita, e de que participa pelas formas sacramentais”, mas como exclusiva e absoluta propriedade
do homem, que dele pode, “usar, gozar e abusar”, como titular do “direito de
destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transformar a vida inteira” em algo cujo fim único é sustentar a sua vida material, afastando-se, assim, cada vez mais, da primitiva inocência da originária Idade de
Ouro e renunciando a reconquistar o Paraíso perdido.
Neste movimento histórico descendente, o cristianismo aparecia ao
autor de As Aproximações como um processo de ressacralização do mundo, ao
afirmar a unidade do homem e a unidade da criação no infinito amor divino
e ao ter como objectivo essencial a liberdade e não a segurança, o afecto e não
a disciplina, a contemplação da beleza simples das criaturas e não a unidade e
a eficiência do corpo social, ao anunciar um Reino de Deus que seria a Idade
de Ouro ampliada pela alegria da redenção.20
Na visão do pensador, numa primeira fase, representada pelo Velho
Testamento e pelo direito romano, o homem cristão, aliando os propósitos
divinos e os humanos e racionalizando a disciplina, procurou vencer os obstáculos que se lhe deparavam, sem abdicar dos seus direitos e sem esquecer
a lembrança da originária Idade de Ouro, enquanto na que lhe sucedeu, ao
Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo”
António Braz Teixeira
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comando de Deus se junta a sua dimensão de paternidade, o ideal do amor
que o leva a aceitar o sacrifício pelo irmão homem.
A estas duas primeiras idades, do Pai e do Filho, deveria suceder no futuro uma terceira idade, em que se abriria “livre acesso àquele poder de imaginação
criadora que sempre esteve mais ou menos limitado pelo esforço de disciplina
e de sacrifício” e se reuniria “a universalidade dos homens no consolador, livre e
vital universalismo do Espírito Santo”.21
Este modo de entender o processo histórico e transcendente do sagrado, esboçado por Agostinho da Silva no período de constituição da “Escola
de São Paulo” e desenvolvido, depois, nas múltiplas obras e ensaios que escreveu até ao fim da vida, afasta-se, com decisão, das outras mais significativas
concepções sobre o tema propostas pelos seus mais influentes companheiros,
designadamente da visão de Eudoro de Sousa, para quem “toda a cosmofonia
é teocriptia”, visto que é a morte de um deus que dá origem ou torna possível
um mundo, assim como da concepção final de Vicente Ferreira da Silva, segundo a qual o cristianismo teria operado a dessacralização da natureza em
proveito do homem, transformando-a, de realidade viva, animada e divina,
em que os deuses habitavam, num mero conjunto de manifestações físicas,
desprovidas de qualquer interioridade ou animação e objecto exclusivo das
manipulações ou transformações utilitárias, ou ainda da ideia de Renato Cirell
Czerna de que Deus, sendo o irracional originário, mas que inclui a razão, e
começo absoluto que se nega à medida que se põe, é um Deus em devir, um
Deus que está sendo construído e que, em certo sentido, não pode passar sem
o homem, pois este é o lugar ou a instância em que o divino se realiza a si próprio e toma consciência de si.22
Maio de 2004
Notas
1 A Filosofia no Brasil, 1878.
2 Noções de História da Filosofia, 2ªed., 1928.
3 Cfr. Miguel Reale, Memórias, vol. I, São Paulo, 1986, pp. 219-229.
4 Editada, pela primeira vez, em 1967, conheceu a sua 5ª edição, muito ampliada, em 1997, completada, hoje,
pelos 7 volumes de Estudos Complementares à História das Ideias Filosóficas no Brasil, Londrina, 1997-2003.
5 A Doutrina de Kant no Brasil, São Paulo, 1949, Filosofia em São Paulo, id., 1962, Figuras da Inteligência Brasileira, Rio de Janeiro, 1984, e Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, 1994.
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6 Escorço da Filosofia no Brasil, Coimbra, 1964.
7 Cfr. A. Braz Teixeira, “Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?”, na Rev. Brasil. Fil., nº 186, 1997, pp. 236-239, e em
O Espelho da Razão: Estudos sobre o pensamento filosófico brasileiro. Londrina: Ed. da UEL, 1997, pp. 223-226, e
“O Sagrado e a Experiência Religiosa na ‘Escola de São Paulo’. Contribuição para o seu Estudo”, em Cultura, vol.
XII (2ª série), UNL, Lisboa, 2000-2001, pp. 155-181.
8 Cfr. A. Braz Teixeira, “O Porto e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro”, nas Actas do Congresso Internacional
Pensadores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), vol. I, Lisboa, 2002, pp. 217-242.
9 Escritos em 1962, permaneceram inéditos em vida do autor, só sendo divulgados alguns anos após a sua
morte. Encontram-se publicados, em Portugal, em Dialéctica das Consciências e outros Ensaios, Lisboa, INCM,
2002, pp. 501-529.
10 “Spengler e o Racionalismo” (1941), em Obras Completas, vol. II, São Paulo, 1966, pp. 269-275. Igualmente
significativo é o diálogo que com Spengler mantém Gilberto de Mello Kujawski em O Ocidente e sua Sombra,
Brasília, 2002.
11 Recolhidos, hoje, nas Obras de Agostinho da Silva, Âncora Editora, Lisboa, o primeiro no volume de Estudos
sobre Cultura Clássica, 2002 e os restantes no I de Textos e Ensaios Filosóficos, 1999.
12 Cfr. “A Comédia Latina” (1946-47?), “Superação do Protestantismo” (1954), Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa (1957), Um Fernando Pessoa (1959), As Aproximações (1960), “Considerando o Quinto Império” (1960), Só Ajustamentos (1962), “Ecúmena” (1964), “Quinze Princípios Portugueses” (1965), “Aqui falta
Saber, Engenho e Arte” (1965), “Ensaio para uma Teoria do Brasil” (1966) e “Algumas Considerações sobre o
Culto Popular do Espírito Santo” (1967), recolhidos, hoje, no já citado volume de Estudos sobre Cultura Clássica, no vol. II, dos Textos e Ensaios Filosóficos, 1999, e no vol. I dos Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa
e Brasileira, 2000.
13 A Religião Grega, Coimbra, 1930, p. 6.
14 Idem, p. 5.
15 Idem, p. 58.
16 “Sobre Algumas Páginas de Spengler”, ed. cit., pp. 250-255.
17 Nova Teoria do Sacrifício, Porto, 1918.
18 A Religião Grega, pp. 73-74 e “A Comédia Latina”, na ed. cit., p. 302.
19 “A Comédia Latina”, ed. cit., p. 302.
20 Est. e loc. cits., pp. 303-307.
21 “Superação do Protestantismo”, nos Textos e Ensaios Filosóficos, vol. II, pp. 188-189.
22 Cfr. o nosso estudo, já citado, “O Sagrado e a Experiência Religiosa na Escola de São Paulo”, pp. 162-176.
Resumo
Começando por definir o que denomina como “Escola de São Paulo” – conjunto de pensadores que, em meados do século passado, em torno de Miguel Reale e Vicente Ferreira
da Silva, desenvolveu inovadora e convergente atividade especulativa – procura este artigo
tratar das significativas afinidades teóricas, reflexivas e temáticas entre os pensamentos de
alguns dos seus representantes, especialmente entre os de Agostinho da Silva, Eudoro de
Sousa, Vicente e Dora Ferreira da Silva. Afinidades que, não obstante as especificidades
Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo”
António Braz Teixeira
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da obra de cada um desses autores, demonstram a sua pertença a uma “família espiritual”
comum, aqui pensada segundo os termos do que efetivamente se constituiu em verdadeira
escola filosófica.
Palavras-chave:
Agostinho da Silva; “Escola de São Paulo”; Eudoro de Sousa;
Vicente e Dora Ferreira da Silva.
Abstract
This article starts by defining what is here called “Escola de São Paulo” (São Paulo School),
a group of thinkers around Miguel Reale and Vicente Ferreira da Silva who developed an
innovative and convergent speculative thinking in the middle of the last century. After
that, it deals with the significant theoretical, reflexive and thematic affinities among some
of the school’s representatives, especially Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Vicente
and Dora Ferreira da Silva. Those affinities, despite the individualities of their bodies of
work, show that the authors belong to a common “spiritual family” here conceived in the
terms of what constituted a true philosophical school.
Keywords:
Agostinho da Silva; Escola de São Paulo; São Paulo School; Eudoro de
Sousa; Vicente and Dora Ferreira da Silva.
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Nótula sobre o Quinto Império
em Agostinho da Silva
António Cândido Franco*
A ideia de Quinto Império chegou à cultura portuguesa no século
XVII, altura em que o padre António Vieira no quadro da Restauração e dos
desenvolvimentos finais dos Descobrimentos comenta numa carta ao bispo do
Japão o sonho de Nabucodonosor interpretado por Daniel. Foi esse comentário que originou a ideia que aqui nos interessa. A noção de Quinto Império
tal como Vieira a legou aos seus contemporâneos sofreu depois uma absorção
em termos de imaginário cultural português, não mais se perdendo; apesar
dos seus temporários apagamentos, ela regressou sempre, e em autores de primeira importância, não abandonando a sua raiz vieirina mas apresentando
novos revestimentos histórico-culturais. É provável que sob novas vestes, mais
adequadas a contextos históricos diferentes do de Vieira, a ideia de Quinto
Império tenha sempre continuado a dizer na cultura portuguesa o mesmo
que dizia no momento da sua criação. Duas das mais recentes actualizações da
ideia foram feitas por Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, isto depois de um
compreensível apagamento na idade das Luzes e do Positivismo. É escusado
falar da ideia de Quinto Império nestes três autores maiores – Vieira, Pessoa e
Agostinho – sem perceber com a devida atenção o que lhe está na base.
Comecemos pois pelo sonho de Nabucodonosor. Abramos o livro bíblico de Daniel, no Antigo Testamento. Depois da queda de Jerusalém em 587
a. C., Daniel no cativeiro é obrigado a servir o rei da Babilónia, Nabucodonosor. Tem este um sonho, que o impressiona muito, ordenando aos seus adivinhos que o interpretem. Para ter a certeza que a interpretação é verdadeira,
obriga os seus magos a adivinhar também o sonho. Desesperam estes da tarefa
* António Cândido Franco nasceu em Lisboa em 1956. Licenciatura em Filologia Românica (1981); mestrado
em Literaturas Brasileira e Africanas de Expressão Portuguesa (1988); Doutoramento em Literatura Portuguesa
(1997); Agregação em Cultura Portuguesa e culturas ibéricas (2006). Professor na Universidade de Évora. Autor
de dois romances históricos em torno de Inês de Castro: Memória de Inês de Castro (1990) e A Rainha Morta
e o Rei Saudade (2003); estudioso de Teixeira de Pascoaes, a quem dedicou a sua tese de doutoramento e um
romance de viagens, Viagem a Pascoaes (2006).
56
até que Daniel se apresenta diante da corte, dizendo que toma a seu cargo a
incumbência do rei. Depois de uma visão nocturna, onde lhe é revelado o sonho e indicada a sua interpretação, apresenta-se diante do rei para lhe expor
o que sabe. O sonho é como se segue. Viu o rei uma grande estátua, terrível e
brilhante. A cabeça da estátua era de oiro fino; o peito e os braços de prata; o
ventre e as coxas de bronze; as pernas de ferro e os pés parte de ferro e parte de
argila. De repente, vinda não se sabe donde, uma pedra voou, esmagando os
pés da estátua. Logo de seguida, foram reduzidos a pó a argila e o ferro dos pés
e das pernas, o bronze das coxas e do ventre, a prata do peito e dos braços, o
oiro da cabeça, pó que o vento logo dispersou sem deixar dele qualquer rasto.
No vazio que se segue, a pedra que atingira os pés da estátua transforma-se
numa grande montanha que ocupa a terra inteira.
Eis o sonho. Leia-se agora a sua interpretação por Daniel. A cabeça
de oiro da estátua é o próprio Reino de Nabucodonosor. Depois deste, outro
Reino virá, de prata, e depois dele um terceiro chegará ainda mais inferior,
feito de bronze. Por fim, virá um quarto Reino, feito de ferro forte e feio, que
reduzirá os outros três a pó. Este Reino, misturado que anda à argila, acabará também por sucumbir e desaparecer sem deixar rasto. Em lugar destes
quatro Reinos, aparecerá por vontade de Deus aquela pedra miúda que os
destruiu a todos, ocupando para sempre o seu espaço e transformando-se na
Terra inteira feita montanha.
A base da ideia portuguesa de Quinto Império está nesta passagem bíblica. Percebe-se por quê, já que nela nos aparecem descritos e interpretados
quatro Reinos terrenos, perecíveis e humanos, seguidos por um imprevisível e
surpreendente quinto, de natureza intemporal. É provável que o segmento narrativo que importa reter desta seqüência concorde em muito com outras passagens míticas do texto bíblico, em primeiro lugar o da criação inicial do mundo
e o da estadia do homem no Paraíso. Quer dizer, nestas e noutras passagens,
aquilo que interessa talvez reter é o intento explicativo da História da humanidade, primeiro como queda e degradação, depois como impulso salvífico. No
caso do sonho de Nabucodonosor temos a progressiva degradação da História
humana, passando do oiro ao ferro, até que se chega a um último colapso, que
no sonho corresponde ao embate da pedra nos pés da estátua gigante. É a partir dele que se dá a sua pulverização. Ora este momento de colapso, se é um caso extremo de degradação, é também o sinal de uma reabilitação providencial.
É da pedra que destrói que nasce o derradeiro Reino sem tempo nem metal. A
destruição é aqui uma forma de criação.
Vieira tratou o segmento bíblico no contexto da primeira mundialiRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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zação desencadeada pelos descobrimentos ibéricos. É natural que o passo lhe
tenha chamado a atenção no quadro de um mundo que pela primeira vez
apresentava uma dimensão planetária. Esta nova dimensão do mundo, desconhecida antes, levou Vieira a pensar que nenhum momento histórico anterior
podia corresponder ao momento da pulverização dos Reinos perecíveis e que
só o mundo saído dos descobrimentos ibéricos iniciados pelos portugueses
estava em condições de poder experimentar quer a pulverização dos Reinos
perecíveis, quer o aparecimento de um novo e definitivo estádio, que desse
saída ao impulso messiânico que se fazia sentir na história humana desde o
texto bíblico. Foi a isso que ele chamou o Quinto Império do mundo ou as
esperanças de Portugal.
Trata-se de uma projecção para o futuro, mas de projecção histórica,
com alicerces cronológicos e passagens tangíveis. Para Vieira este Quinto Império não podia nascer, por exemplo, antes das navegações portuguesas, já que
sem elas nenhum império se poderia estender a toda a Terra; só depois dessas
navegações aparecem reunidas as condições de extensão e duração para que o
quinto Reino surja com a completude e a eternidade que Daniel lhe apontava.
Neste sentido, o Quinto Império de Vieira não é português, pois ele estende-se
a toda a Terra e a todos os povos, tudo unindo no mesmo abraço. Percebe-se
porém em Vieira, e esse é mesmo ponto basilar do excurso vieirino sobre o
Quinto Império, a responsabilidade particular dos portugueses no caso, já que
o quinto Reino é uma conseqüência, involuntária primeiro, consciente depois,
das navegações portuguesas. Talvez por isso Vieira haja centrado esse quinto
Reino no Brasil e não em Portugal. Portugal era uma parte do velho mundo,
castigado pelas progressivas degradações do mundo antigo, enquanto o Brasil
era para ele o nome daquela parte do mundo que faltava descobrir. Só ele, o
Brasil, podia pois animar o intemporal sem corrupção que estava anunciado para a História da humanidade desde o tempo da primeira destruição do
Templo, em 587 a. C.
Em Fernando Pessoa o projecto de Vieira ganha contornos abstractos.
Aquilo que foi noção quase geográfica com aplicação imediata no caso de Vieira volve-se em Pessoa uma ideia no céu do pensamento ou um mito na pele
inconsútil da História. Nesse sentido, o Quinto Império torna-se mais uma
visão da alma que um corpo com escala histórica, dimensionado para projecto
colectivo, que era o que inicialmente fora para Vieira, mesmo descontando o
que de interior deslumbramento decerto houvera num Vieira acabado de desembarcar na infância em São Salvador da Bahia, no novo mundo. Com Agostinho da Silva e a sua releitura do mito do Quinto Império regressa a urgência
Nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva
António Cândido Franco
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de um projecto histórico, o gosto quase exclusivo pela reflexão civilizacional e
a reactualização do concreto geográfico tão acarinhado por Vieira.
Assim, Agostinho preocupa-se em determinar com alguma segurança
o estado presente do mundo, dizendo a dado passo, no texto “Fantasia Portuguesa para Orquestra de História e Futuro” (1982):
“Momento crucial é este em que vivemos – e o mais belo que jamais
houve em vida de homem; momento de definida escolha entre a vida e a morte, tendo como única perspectiva a de um mundo deserto,
em cujas costas se quebrará um lamentoso, fúnebre mar, ou a de
uma humanidade livre de opressões físicas, sem nenhuma fome do
preciso e sem nenhum esmagamento do supérfluo.”
Nesta passagem indica-se, sem campo de dúvida, uma avaliação do
processo de evolução civilizacional da humanidade, por aí logo mostrando o
interesse do seu autor na História e nos seus projectos. Para este Agostinho o
momento que se vive é o da escolha entre a morte e a vida, quer dizer, entre o
desaparecimento da humanidade, vítima de prolongada e obstinada luta fratricida, ou o seu pleno e ridente desabrochar. Não andamos muito longe de
acertar se associarmos este momento ao que no sonho de Nabucodonosor
corresponde ao aparecimento da pedra que esmaga primeiro os pés da estátua
gigante e depois pulveriza as suas várias partes. É o momento do fim e simultaneamente, se assim o desconhecido o desejar, o do princípio do novo, aquele
em que a destruição é tangencial à criação.
Se isto tem alguma razão de ser, paga o trabalho perceber em que
momento civilizacional este derradeiro momento da História humana se desenha para Agostinho da Silva. Há passo no mesmo texto citado de 1982 que
nos pode ajudar nesta detecção. É a passagem final, onde de forma sibilina
se diz o seguinte:
“(…) bem unidos estejam todos os que se entendem nas línguas que,
de início parecendo condenadas aos estreitos lugares de Ibéria, ao
universo abriram suas asas; o que de serviço foi, apesar das falhas,
o que de puro amor foi, apesar das tentações, o que de harmoniosa
dança foi, apesar de seus pesados pés; pés de ouro e chumbo.”
Passo curioso este onde, porventura de forma involuntária, ou talvez
não se pensarmos que nesse mesmo texto dedica passagem ao Quinto Império de Vieira, se intertextualiza um dos pontos cruciais do sonho descrito por
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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Daniel, os pés da estátua, também eles pesados e fortes, e se indicam os extremos dos metais, o ouro e o chumbo, como no sonho de Daniel se indicam a
propósito da estátua gigante o ouro e o ferro. Compreende-se então que os pés
do mundo, pés de chumbo e ouro, resumindo neles toda a anatomia anterior
do corpo, pesados pés que fizeram a humanidade avançar para aquilo que em
Daniel é o quarto Reino, foram os da Ibéria. Quer dizer, Portugal e a Espanha
são essas duas extremidades que superaram tudo o que antes deles fora feito
pelo corpo a que pertenciam, deixando para trás os Reinos correspondentes às
pernas, ao peito e à cabeça.
O quarto Reino histórico, o dos pés, que passa por ser o derradeiro no
sonho comentado por Daniel, é assim o dos Descobrimentos ibéricos, melhor,
esse Reino é aquele que esses Descobrimentos abriram, já que eles foram apenas uma porta de entrada, estreita e curta até, para uma idade bem mais larga e
longa, a da sucessiva drenagem dos níveis de mundialização, sob a sua influên­
cia da qual ainda estamos vivendo. É o momento delicado a que Agostinho se
refere como sendo aquele a que tanto se pode seguir a vida como a morte, a
plenitude como a desolação mais extrema. Nos versos incorruptíveis de Pessoa
é aquilo que na última estância do poema “Quinto Império” de Mensagem se
chama Europa (recordamos os versos de Pessoa: Grécia, Roma, Cristandade,/
Europa – os quatro se vão/ Para onde vai toda a idade.) e que nós hoje crismamos Estados Unidos, pois este nome nada mais é que uma metamorfose mais
ampla daquilo que num outrora próximo foi a Europa e num outrora mais
longínquo foi a Ibéria. Estes três momentos da quarta idade em que vivemos
– Ibéria, Europa, Estados Unidos – traduzem três formas de mundialização – a
das estradas marítimas, a das estradas de ferro e a das estradas digitais –, que
foram exaurindo círculos cada vez mais largos desse processo de aproximação
dos lugares e das pessoas do planeta Terra.
Nesta digressão falta perguntar: por onde anda o quinto Reino em
Agostinho? Sabemos que o quarto Reino se confunde com a modernidade,
tomando em si as suas várias metamorfoses, desde as primeiras que ganhou
com as navegações à vela até às últimas com as navegações digitais de Silicon
Valey. Sabemos que estamos a chegar ao ponto extremo desta idade moderna, pois é para aí que aponta aquela radical e definida escolha entre a vida
e a morte que é para Agostinho o que melhor caracteriza o nosso tempo. E
sabemos ainda que uma dessas escolhas, a da vida ou a da completude civilizacional do homem, sem fomes nem opressões, pode ser lida como uma
idade perene e plena com larga correspondência com aquela montanha que
toma conta da Terra toda no sonho descrito por Daniel e que é por ele interNótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva
António Cândido Franco
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pretado como o perdurável Reino intemporal que substituirá por vontade de
Deus os quatro anteriores.
Apesar da escolha delicada em que Agostinho da Silva deixa o homem
de hoje, tudo abrindo ao aleatório ou ao acidental, tanto contando a desolação como a plenitude, muito, se não todo, do pensamento de Agostinho
afirma o primado da vida sobre a morte, não supondo sequer que uma idade
seca e sem vida possa suceder ao momento histórico que surgiu com as navegações ibéricas. É para aí que aponta o texto “Portugal ou as Cinco Idades”,
também de 1982, cujo título nos mostra desde entrada um gosto explícito
pelo imaginário cultural do Quinto Império, apesar de o autor dessa pequena
ficção que é o “Portugal ou as Cinco Idades”, que tem como subtítulo “Conto
de Páscoa”, nos avisar que é a poesia que por ali corre e não a matemática.
Quer dizer, tudo corre no texto no plano da criação imaginativa, não no da
certeza verificada ou verificável.
De que se trata afinal? De um exercício ficcional, em que um português
do século XXIII nos restitui a sua visão retrospectiva da cultura que é a sua, a
portuguesa, dando-nos ao mesmo tempo algumas indicações precisas sobre o
que se passa no seu presente, que é o nosso futuro e futuro distante. A História portuguesa é dividida em cinco idades, começando a quinta nos finais do
século XXI com a união política da Península Ibérica e o desaparecimento no
território da nova união da noção de propriedade, quer colectiva, quer privada,
substituída que é pela não-propriedade. Depois desta união, num efeito dominó, segue-se, segundo o novo modelo ibérico, a união da América do Sul, a reelaboração, afastando de vez a herança vinda de Berlim, das fronteiras na África,
a alteração da fisionomia do sudeste da Ásia. Esta recomposição das fronteiras
políticas do planeta é acompanhada pela modificação em profundidade das
relações sociais entre os homens a partir da ideia de que nada é de ninguém.
Oiçamos o autor:
“ (…) a viragem decisiva para a entrada em nova fase do mundo se
deu com a constituição política de uma Península diversa e una; a
qual, embora pensada e debatida nos séculos XIX e XX, só teve forma
a partir dos fins de XXI: todas as regiões ou nacionalidades ou etnias,
como se queira, tiveram sua inteira autonomia sem que, no entanto, se
desirmanassem; se puseram de acordo quanto às bases da economia,
passando da noção de propriedade colectiva para a de não propriedade (… ) o que significou que ninguém foi nunca mais dono disto ou
daquilo, excepto naturalmente o que era de uso pessoal de cada um,
inclusive as casas com seus jardins e campos de recreio: a terra não foi
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mais nem sequer de Portugal; Portugal e a terra eram o mesmo, coincidiam, e era o solo tão livre como o ar – lá se foi também isto de mar
exclusivo e de espaço aéreo – e mais livre ainda do que o ar quem não
mais tinha a propriedade fosse do que fosse; a própria renda de uso
tem vindo a diminuir e espero que em breve, pelo sempre contínuo
aperfeiçoamento das técnicas, nem a tal tenhamos de satisfazer, em
termos de trabalho esporádico. (…) O resto por si veio: milhões ou
bilhões de homens saíram da sua pré-humanidade, fizeram na idade
própria o que lhes cabia de serviço civil – fui eu ordenança de hospital e cooperei nas Fidji durante três anos – e nunca mais ninguém lhes
exigiu coisa alguma, a não ser que se realizassem.”
Eis a visão que Agostinho tem da quinta idade do mundo. É uma visão
histórica e política, muito marcada por aspirações sociais conhecidas. Tratase de idade que diz respeito a todos os homens e a todos os povos, uma idade
de escala planetária, que não está centrada em Portugal ou no Brasil, mas na
qual estes dois países parecem ter uma responsabilidade especial em conjunto com a Espanha e os países hispano-americanos. No desenho preciso dos
contornos desta quinta idade do mundo tal como Agostinho a projecta para
os dois próximos séculos reconhece-se alguma coisa do imaginário do Quinto Império tal como Vieira o explora a partir da passagem bíblica de Daniel,
mais que não seja pela presença de uma idade final, intemporal, feliz, que em
Agostinho significa a realização plena do Homem, depois de Vieira ter sido a
evangelização dele.
Estamos no fundo diante da mesma ideia, só que em contexto diferente, o de Vieira, num mundo quase virgem de contactos, à espera de um caso
providencial, um faça-se luz que parecia estar prestes a acontecer no coração
do Amazonas, o de Agostinho, num mundo castigado até ao mais íntimo de
si por uma rede labiríntica de terramotos, mas esperando desse choque uma
pulverização redentora.
17 de Fevereiro de 2006
Resumo
Procura esta “Nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva” explorar o tema
do Quinto Império desde a sua chegada à cultura portuguesa com a obra do padre
António Vieira até Agostinho da Silva, passando pelo Fernando Pessoa da Mensagem
que recolocou em circulação a ideia no século XX. Interessa ainda perceber a fundaNótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva
António Cândido Franco
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mentação literal da ideia a partir da passagem do Livro de Daniel que lhe está na base e
cuja hermenêutica passa em geral despercebida. Recorrem-se a textos de Agostinho da
Silva, como “Portugal ou as Cinco Idades”, que apontam para um entendimento social e
civilizacional do Quinto Império.
Palavras-Chave: Quinto Império; História; Humanidade; Civilização; Futuro.
Abstract
This “Brief Note About the Quinto-Império (Fifth Empire) in Agostinho da Silva” seeks to
explore the theme of the Fifth Empire from its debut at the Portuguese culture via Father
António Vieira’s oeuvre to Agostinho da Silva, including the Fernando Pessoa in Message,
who restored the idea for the twentieth century. It is also interesting to notice the literal
foundation of that idea from/which we can gather from the passage of the Book of Daniel
which is in its base and whose hermeneutics usually goes unnoticed. We shall turn to texts
by Agostinho da Silva, such as “Portugal ou as Cinco Idades” (Portugal or The Five Ages),
which point to a social and civilizational understanding of the Fifth Empire.
Keywords: Quinto Império; Fifth Empire; History; Humanity; Civilization; Future.
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Agostinho da Silva e os Titãs
António Telmo*
Os anos em que vivemos estão marcados por duas manifestações do
ser humano aparentemente contraditórias: o titanismo e o infantilismo. Titânicas são as construções em altura das grandes cidades do mundo, os vôos
de metal cruzando os espaços, a comunicação das palavras e dos números
vencendo enormes distâncias, a multidão inumerável dos automóveis etc.,
etc.; mas tudo isto assume a forma de brinquedo pelo modo como os telemóveis, a televisão, os computadores, a internet se tornam os mais comuns e
gozosos entretenimentos dos homens e das mulheres e sobretudo das crianças. Eis depois o futebol, esse gigantesco movimento lúdico que empolga o
mundo e que é a própria manifestação do infantilismo. E há disto um sinal
evidente: os calções. Aqui há cinquenta anos, só os rapazes os usavam e a
primeira vez que punham calças compridas o sentimento que vivia o adolescente era o de ser recebido como iniciado na sociedade dos homens.
Esta combinação do titanismo com o infantilismo envia-nos para a
profecia de Daniel interpretando os pés de barro do ídolo do sonho de Nabucodonosor como o frágil suporte de toda a construção histórica da humanidade.
O barro é, segundo o Génesis, a original matéria de onde, pelo sopro
de Deus, se formou o primeiro homem, o homem na sua infância; o ferro é
o metal que simbolicamente caracteriza a última manifestação do ciclo, na
velhice do mundo.
Agostinho da Silva via tudo isto e muito mais. Via-o em íntima claridade, interpretava-o em profundidade. Mas o impressionante é que, perante o espectáculo de um mundo a desfazer-se, em nítida descida para o abismo, continuava a confiar nos homens e nas mulheres que incitava à valentia, ao denodo,
à esperança, a crer que só o bem poderia estar no fim e nisso era um aristotélico,
porque segundo o sábio grego “a melhor das quatro causas é a final”.
* António Telmo (n. 1927), Professor e Filósofo, tem-se dedicado a estudos de sociologia e simbolismo ao longo de toda a sua vida, sendo um dos continuadores do movimento da Filosofia Portuguesa fundado por Álvaro
Ribeiro. Viveu no Brasil, onde ensinou na Universidade de Brasília e onde ouviu quotidianamente Agostinho da
Silva. Além destas duas grandes figuras, também conviveu com o filósofo José Marinho.
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É por este traço, excepcional no nosso tempo, que ele, sendo o filósofo de Portugal e do Brasil, é ao mesmo tempo o filósofo do Mundo. Por
ele se distingue das duas posições correntemente tomadas perante a fase
que vivemos do evoluir histórico e que são: ou pensar que estamos no culminar do progresso, que atingimos com a tecnologia e com a electrónica o
cume do aperfeiçoamento humano; ou considerar que caminhamos para o
abismo e que, mais ano menos ano, mais década menos década, estaremos
totalmente perdidos.
Agostinho diz as duas ao mesmo tempo, mas, para que o paradoxo se
possa sustentar, introduz uma terceira: a de tudo depender da decisão do homem, que pode utilizar a tecnologia e a electrónica para ganhar o ócio, que é
o pedaço de liberdade que herdámos do Paraíso. O homem, repete ele muitas
vezes, não nasceu para trabalhar, mas para contemplar o Santo Nome de Deus
e, contemplando, trazer a divina energia que por esse modo obtém para tudo
quanto faça, sinta ou pense. A filosofia poética do autor de Considerações (lembremo-nos de que a palavra considerações tem no seu seio a palavra sidério) é,
por um dos seus mais relevantes aspectos, um Manifesto Contra o Trabalho.
Uma vez derrotado, deixará um vazio imediatamente preenchido pela actividade poética, se o ensino ordenar o espírito da criança para a realização do que
mais importa, para a aceitação activa do imprevisível.
Agostinho da Silva vê o perigo. Os computadores podem libertar os
humanos do trabalho, mas ao mesmo tempo tornar tudo previsível, como já
se começa a ver em meteorologia. Ora, sendo o imprevisível manifestação do
Espírito Santo, tornar tudo calculável não será como que um esboço do único
pecado imperdoável?
Ele tinha um nome por assim dizer secreto. Chamava-se também George, mas este nome só era usado entre os mais íntimos. Era o nome próprio,
o nome inalienável.
Georges (do grego Gêourgos) é quem trabalha a Terra, é o grande agricultor do mundo humano. Todavia, não nos deixemos enganar. Agostinho da
Silva só valorizava uma espécie de trabalho, aquele que é um paradoxo de si
mesmo, em que trabalhar tem por fim libertar do trabalho superando-o infinitamente pela criatividade. É o sentido do que diz em entrevista no Jornal de
Notícias (17 de Novembro. de 1987):
“Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem
ao Mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes
caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamenRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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tal nesse Mundo. Toda a gente por ter aquilo a que chamo de ‘vida
poética’, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes,
ciência, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se.”
Hoje, como está à vista e se sofre na pele, lançou-se sobre os humanos
uma rede do tempo que os acorrenta ao trabalho, que os escraviza, rede essa
que nem espaços entre os fios consente por onde se escape alguém para aquele
modo de vida poética. Só em sonho, dormindo, imaginam fazê-lo. Sabemos,
porém, que só somos criadores de algo verdadeiro quando estamos lúcidos e
bem despertos.
Mais uma vez não nos deixemos enganar confundindo ócio com preguiça e desemprego, o ócio que, segundo Agostinho, é o que ainda nos ficou do
Paraíso. Os acorrentados a um dia inteiro de trabalho, a uma vida inteira, a uma
eternidade, sempre com ele preocupados porque é donde lhes vem o dinheiro
com que possam alimentar-se e vestir-se a si e aos seus, é inevitável que temam o
desemprego que os entregaria de novo à miséria e eis o motivo por que o espírito
calculador que comanda hoje a humanidade faz com que haja sempre uma bem
estudada margem de desemprego para que todos se sintam ameaçados. Assiste-se
então a esta enormidade: são os próprios escravos a fazer a apologia daquilo que
os escraviza.
Sic transit mundus. Agostinho da Silva vê-o passar como um rio de
águas turbulentas que ignore o mar que o vai absorver. Olha-o tranquilo, embora indignado, pois sabe que sem tranquilidade não há verdadeira bondade.
Sabe também, na qualidade de Gêourgos, que o dragão se deixa dominar por
um leve toque de lança, toque tão suave como nos ouvidos da nossa alma obscura a palavra que ilumina.
***
Estas linhas que foram ficando para trás são o débil eco das sucessivas
leituras, do imenso convívio com os livros de Agostinho da Silva, e com ele
próprio, sobretudo durante os anos em que vivi em Brasília, no Centro por
ele fundado de Estudos Portugueses. Ali, como ao lado, no Centro de Estudos
Clássicos dirigido pelo insigne helenista Eudoro de Sousa, não se era escravo
do trabalho. Todos tinham o tempo do seu ócio, uns imaginando com Camões
ou com Virgílio, outros procurando compreender a história de Portugal e do
Brasil, pelo culto do Espírito Santo, outros como o Teodoro, modesto funcionário daquele Centro, criando a Casa Cultural de Sobradinho.
Agostinho da Silva e os Titãs
António Telmo
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Era aqui, nos fins de semana, que Agostinho da Silva ensinava aos pobres de espírito, que todos éramos ou pretendíamos ser, o sebastianismo de
Portugal e de Canudos ou a fantástica proeza de S. Jorge dominando o Dragão,
explicava o sentido da bandeira do Brasil, não pelo positivismo de Augusto
Comte, mas como uma manifestação de Kidr o Verde, animando do ouro da
madrugada a Ordem e o Progresso.
Num mundo em que o infantilismo anda de mãos dadas com o titanismo, a Ordem confunde-se com o Comando dos Titãs que escravizam
ao trabalho, iludindo com jogos e pantomimas as inumeráveis gentes que o
Progresso põe on-line. Como sempre fazia, Agostinho lançava o paradoxo, ia
encontrar liberdade onde se lia ordem e progresso, ligando movimento e contemplação, num rapto metafísico que nos abria as portas do conhecimento no
Clube do Teodoro, em Sobradinho, cidade satélite de Brasília.
Resumo
O mundo em que vivemos, o mundo como Agostinho da Silva o conheceu, está marcado
pelo titanismo (das construções em altura das grandes cidades do mundo, dos vôos de
metal cruzando os espaços, da comunicação das palavras e dos números vencendo enormes distâncias, da multidão inumerável dos automóveis etc.) e o infantilismo (patente no
modo como os telemóveis, a televisão, os computadores, a internet, o futebol se tornam
os mais comuns e gozosos entretenimentos da humanidade). Agostinho da Silva perante
o espectáculo de um mundo em descida para o abismo continuava excepcionalmente a
confiar nos homens e nas mulheres que incitava à valentia, esperança e crença que só o
bem poderia estar no fim. Distinguindo-se das posições correntemente tomadas perante a
fase actual do evoluir histórico, afirma que tudo depende da decisão do homem, que pode
utilizar a tecnologia e a electrónica para ganhar o ócio, que é o pedaço de liberdade que o
homem herdou do Paraíso. A sua filosofia poética é um Manifesto Contra o Trabalho.
Palavras-chave: Titanismo; Infantilismo; Vida Poética.
Abstract
The world we live in, the world as Agostinho da Silva knew it, is marked by titanism (as
in the massive constructions in the world’s big cities, the metallic flights crossing air, the
communication of words and numbers conquering huge distances, the innumerable crowd of cars, etc.) and infantilism (evident in the way mobile phones, TV, computers, the
internet and soccer have become the most common and enjoyable forms of entertainment
for humankind). Agostinho da Silva, looking at the spectacle of a world sinking into an
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abyss, continued to trust men and women, who he incited to bravery, hope and belief
in that only good could be in the end. Differing from the positions usually taken in the
current phase of historical evolution, he states that everything relies on humans’ decision,
who can use technology and electronics to secure idleness, which is the piece of liberty that
humankind inherited from Paradise. His poetic philosophy is a Manifest Against Work.
Keywords: Titanism; Infantilism; Poetic Life.
Agostinho da Silva e os Titãs
António Telmo
68
O Professor Agostinho da Silva
e o Núcleo de Documentação
e Informação de História Regional
da Universidade Federal
de Mato Grosso
Carlos Francisco Moura*
Entre a grande semeadura de focos e difusão cultural que o Professor
Agostinho da Silva criou ou apoiou ao longo do território brasileiro, não deve
ser esquecido o NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica
Regional da Universidade Federal de Mato Grosso. E por mais de uma razão,
como veremos.
Na realidade as pessoas mais autorizadas a falar sobre o assunto seriam
a Prof.a Maria de Lourdes de Lamônica Freire, discípula do Prof. Agostinho da
Silva no Centro de Estudos Portugueses da UnB, e responsável pelas gestões
que culminaram com a criação do Núcleo de Documentação e Informação
Histórica Regional, na UFMT, e a Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa,
paleógrafa e organizadora da respectiva microfilmoteca.
Completamente absorvido pela pesquisa, praticamente alheiado a
quase tudo o mais, só nos resta dar um depoimento quase exclusivamente
“bibliográfico”.
A Universidade Federal de Mato Grosso foi a primeira fundada no vasto Estado que então abrangia também o território do atual Estado de Mato
Grosso do Sul. Em dezembro de 1970.
A Prof.a Maria de Lourdes que, já concluído o curso em Brasília, se
transferira para Cuiabá, sugeriu ao Reitor Dr. Gabriel Novis Neves que convi* Carlos Francisco Moura, arquiteto e prof., trabalhou no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília com o Prof. Agostinho da Silva, e no NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação
Histórica Regional, da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro da Academia Portuguesa da História, da
Academia de Marinha (Lisboa), do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e da Sociedade Brasileira de
História da Ciência.
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dasse o Prof. Agostinho da Silva para participar da organização da nova Universidade.
O Prof. Agostinho não pôde aceitar o convite e sugeriu a contratação
da Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa. Irmã do grande helenista Prof.
Eudoro de Sousa, que o Prof. Agostinho tinha conseguido levar para a UnB, a
Prof.a Maria Cecília trabalhava no CBEP e se especializava em paleografia.
Por essa época, tendo em vista que o endurecimento da repressão política no Brasil colocava em risco o Prof. Agostinho e a existência do CBEP, a
Prof.a Maria Cecília fora enviada a Portugal com uma bolsa para pesquisar
nos Arquivos Portugueses. A aceitação do convite não foi imediata, mas afinal,
até porque, por coincidência, havia localizado documentos importantes sobre
Mato Grosso, ela acabou aceitando.
Estava também programada uma ida do Prof. Agostinho a Cuiabá, mas
agravando-se ainda mais as perspectivas político-militares, ele resolveu antecipar-se, viajando para Portugal.
Na UFMT a Prof.a Maria Cecília foi lotada no DEPES, Departamento
de Ensino e Pesquisa, que posteriormente se transformou no NDIHR – Núcleo
de Documentação e Informação Histórica Regional. Dizia-se na época que só
havia outro organismo com a mesma denominação e com o mesmo estatuto:
na Universidade Federal da Paraíba, não por acaso, uma das instituições a que
o Prof. Agostinho da Silva prestara notável contribuição.
O NDIHR contou, portanto, desde logo, com uma professora do CBEP
da UnB e dos trabalhos de investigação que vinha fazendo anteriormente. E
com a orientação e o apoio logístico do Prof. Agostinho, instalado definitivamente em Portugal.
A Prof.a Maria Cecília na “Nota Prévia” ao vol. 1 do Inventário de Documentos Históricos sobre o Centro-Oeste declara:
“Devemos ressaltar a inestimável colaboração do Professor George
Agostinho da Silva. Além de incentivar a implantação do Núcleo,
orientou e supervisionou as pesquisas realizadas na Europa. A sua
constante e competente assistência técnico-científica, a sua amizade,
interesse e apoio contribuíram para a realização deste trabalho.”
Um breve resumo do admirável trabalho realizado pela Prof.a Maria
Cecília. Em diversas viagens que fez à Europa, a primeira em 1972, ela pesquisou e fez microfilmar imensa quantidade de documentos referentes a Mato
Grosso e ao Centro-Oeste em geral.
O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação...
Carlos Francisco Moura
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Um levantamento de agosto de 1984 avaliou em 110.000 os fotogramas
incorporados ao acervo do Núcleo. E nos anos seguintes o trabalho de microfilmagem continuou.
Não se restringiu o seu trabalho à pesquisa em uma única instituição:
Arquivo Histórico Ultramarino, Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda, Arquivo da Marinha, Biblioteca Nacional, Tribunal de Contas, Arquivo do Exército,
Biblioteca Municipal de Évora, Biblioteca Provincial da Ilha da Madeira e Arquivo General de Índias, de Sevilha.
Mas a Prof.a Maria Cecília não se limitou à pesquisa e reprodução em
microfichas e microfilmes dos documentos para os disponibilizar para consulta em Mato Grosso.
Publicou quatro volumes do Inventário de Documentos Históricos sobre o Centro-Oeste com os Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino, coleção
“Documentos Ibéricos – Série Inventários”, nos quais são apresentados resumos de cada documento, e índices utilíssimos, o alfabético geral (incluindo
antroponímico, toponímico e de assuntos) e o de datas, além de várias reproduções fac-similares.
O volume I abrange 198 documentos datados de 1720 a 1734. O vol. II,
202 documentos, de 1735 a 1744. O vol. III, 307 documentos, de 1743 a 1765. E o
vol. IV, 299, de 1743 a 1760. Um quinto volume que a Prof.a Maria Cecília deixou
pronto, não sabemos se chegou a ser publicado.
Pode-se dizer que esse projeto pioneiro, idealizado, orientado e acompanhado pelo Prof. Agostinho, e realizado por uma das suas mais eficientes
colaboradoras, foi um dos precursores do Projeto Resgate realizado atualmente
com muito maiores recursos financeiros e de pessoal, com a colaboração de
muitas Universidades e organismos oficiais brasileiros e portugueses, e que
visa abranger todas as antigas capitanias.
Na apresentação do vol. 1, Inventário de Documentos Históricos sobre o
Centro-Oeste, diz o Reitor Gabriel Novis Neves: “O trabalho da Professora Maria Cecília Guerreiro de Sousa será um instrumento indispensável à necessária
lucidez que devem possuir os que participam da atual transformação histórica
desta região.”
A Professora Maria Cecília ensinou e treinou em pesquisa e paleografia
várias professoras e estagiários. Das que mais se destacaram foram as Professoras Ana Mesquita Martins de Paiva e Nyl-Iza Valadão Freitas Ferreira.
O NDIHR iniciou a publicação da Coleção Estudos Ibéricos – Série
Capitães-Generais, com a corresponência de D. Antônio Rolim de Moura, Primeiro Conde de Azambuja, primeiro governador de Mato Grosso, compilação
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transcrição e indexação das Professoras Ana Mesquita, Maria Cecília e NilIza. Os documentos, em grande maioria inéditos, foram microfilmados pela
Prof.a Maria Cecília na coleção de Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino
e na Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa. O primeiro volume
abrange cartas de 1751, 1752, 1753 e 1754, e foi publicado em 1982 como parte
das comemorações do bicentenário da morte de Rolim de Moura. O segundo
volume, com cartas de 1755 e 1756, e o terceiro com cartas de 1756, 1757 e 1758
foram publicados em 1983, os três pela Imprensa Universitária da UFMT. Não
sabemos informar se um 4º volume, já concluído, chegou a ser publicado.
Foi, portanto, fundamental para o NDIHR e a UFMT a indicação,
pelo Prof. Agostinho da Silva, da Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa.
Nós também tivemos parte nos trabalhos do NDIHR. Colaborador do
Prof. Agostinho no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB, fomos
por ele encarregado de várias pesquisas, entre elas as do Projeto Japão, sobre
o qual já em outra oportunidade apresentamos relatório.1
Com o encerramento das atividades do Centro Brasileiro de Estudos
Portugueses da UnB e a demissão, ficamos sem saber o que fazer com os estudos já iniciados e com a bibliografia e os microfilmes adquiridos por conta
própria durante bolsa em Portugal. Desse impasse tirou-nos a Prof.a Maria
Cecília que, de Cuiabá, escreveu comunicando que fora informada de nosso
novo endereço pelo Prof. Agostinho, e solicitando que enviássemos ao Prof.
Célio da Cunha, Diretor do DEPES, currículo e lista de temas cuja pesquisa
já tínhamos iniciado. A contratação foi imediata. Graças aos estudos iniciais
desenvolvidos no CBEP sob orientação do Prof. Agostinho, pudemos elaborar
rapidamente trabalhos pioneiros na historiografia regional.
Inicialmente apresentamos projeto de levantamento do patrimônio
histórico e artístico de Mato Grosso. O projeto, que teve pareceres favoráveis
em várias instâncias, não chegou a ter aprovação final pelo Ministério, que na
época privilegiou as artes cênicas.
Apesar disso, trabalhando escoteiramente, conseguimos publicar alguns trabalhos: A Igreja da Chapada dos Guimarães 1779-1979,2 primeiro estudo publicado do mais famoso templo histórico de Mato Grosso, tombado pelo
IPHAN; Notas sobre a Arquitetura em Mato Grosso (Rótulas e Gelosias),3 As
Artes Plásticas em Mato Grosso nos Séculos XVIII e XIX,4 O Forte de Coimbra,5
A Expedição Langsdorff em Mato Grosso – Desenhos e Pinturas Inéditos há mais
de 150 Anos.6 O estudo As Artes Plásticas em Mato Grosso, que constitui apenas
um folder para uma exposição de arte contemporânea em Cuiabá, organizada
pela Prof.a Aline Figueiredo, do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT,
O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação...
Carlos Francisco Moura
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tomou tal desenvolvimento que se tornou o primeiro livro sobre o tema, e teve
mais de uma edição.
Em congresso sobre o Barroco realizado em Ouro Preto, apresentamos
a comunicação Apontamentos para o Dicionário de Artistas Plásticos, Artífices
e Construtores em Mato Grosso nos Séculos XVIII e XIX, que foi publicada na
revista Barroco.7
Aplicamo-nos também ao estudo do teatro na região e publicamos
o primeiro livro sobre o tema: O Teatro em Mato Grosso no Século XVIII,8
em comemoração aos 250 anos da primeira representação documentada em
Cuiabá (1729-1979). A ele se seguiram estudos de peças representadas em
Cuiabá no século XVIII: O Saloio Cidadão.9 O Tutor Namorado e as Indústrias das Mulheres.10
Esses estudos possibilitaram a publicação de outras obras, já depois
de minha saída da UFMT. Teatro a Bordo de Naus Portuguesas nos Séculos XV,
XVI, XVII e XVIII foi publicado no Rio de Janeiro em 2000 pelo Instituto Luso-Brasileiro de História. A versão inicial dessa pesquisa foi publicada em 1981
no número especial Homenagem a Agostinho da Silva, da revista Tulane Studies
in Romance Languages and Literature, da Tulane University, de New Orleans.
Na UFMT foi organizado um grupo teatral com estudantes do Departamento de Letras que, sob a direção do Prof. Leônidas Querubim Avelino,
representou em Cuiabá a comédia O Saloio Cidadão e o entremez O Tutor
Namorado, quase duzentos anos depois de essas peças terem sido levadas à
cena na mesma cidade. O Saloio Cidadão foi também representado pelo grupo
no histórico teatro de Ouro Preto, durante a realização do simpósio sobre o
barroco (1893).
Outro estudo que realizamos no HDIHR foi o de uma das peças representadas em alto-mar, à altura do nosso Cabo de Santo Agostinho, durante a viagem de Lisboa para o Brasil do governador nomeado de Mato
Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Só anos depois de
nosso desligamento da UFMT conseguimos publicá-la, com o título As Preciosas Redicolas – Entremez Representado a Bordo da nau Santa Ana – Carmo
– S. Jorge em 1771.11
A outra peça representada na mesma viagem – O Velho Namorado – está pronta para publicação.
Com base na documentação microfilmada pela Prof.a Maria Cecília e
pesquisas por nós realizadas em Portugal, publicamos o primeiro livro sobre
D. Antônio Rolim de Moura, Conde de Azambuja, Primeiro Governador e Capitão-General de Mato Grosso, Governador da Bahia, Vice-Rei do Brasil.12
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A UFMT estava empenhada na criação da Faculdade de Medicina e
publicou nossa pesquisa Médicos e Cirurgiões em Mato Grosso no Século XVIII
e início do XIX,13 que teve mais de uma edição.
Vários estudos foram publicados fora da Universidade, e alguns depois de nosso desligamento, mas todos decorrentes daquela fase inicial de
implantação, cujo entusiasmo é inesquecível. Dentre eles destacamos: A
Contribuição Naval à Formação Territorial do Extremo Oeste (Mato Grosso,
Rondônia e Mato Grosso do Sul),14 As Fronteiras do Extremo Oeste e a Estratégia da Expansão Portuguesa,15 Boats Used by the Settlers of Mato Grosso in the
18th and 19th Centuries,16 Embarcações Usadas pelos Colonos no Extremo Oeste
nos Séculos XVIII e XIX (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia),17 O
Ensino em Mato Grosso no Século XVIII e Início do XIX,18 Arraial do Cuyabá
– Vila Real do Senhor Bom Jesus,19 Mato-Grossenses na Universidade de Coimbra nos Séculos XVIII e XIX.20
Enfim, mais uma série de outros trabalhos menores, mas tratando de
temas inéditos ou pouco abordados anteriormente, dispersos por revistas de
cultura de Portugal e do Brasil, e seria interessante reunir e publicar em conjunto. Nisso estamos pessoalmente empenhados.
Não podemos deixar de lembrar o apoio com que contamos, a Prof.a
Maria Cecília e nós, na realização das pesquisas, do primeiro Reitor da UFMT,
Dr. Rafael Novis Neves, do Vice-Reitor e depois Reitor, Prof. Benedito Pedro
Dorileo, do Vice-Reitor Atílio Ourives, do Prof. Célio da Cunha, Diretor do
DEPES, da Prof.a Terezinha de Jesus Arruda, Coordenadora do NDIHR.
Notas
1 Cf. MOURA, Carlos Francisco. “O Projecto Japão”. In: DAVI, Amon Pinho; EPIFÂNIO, Renato; PINHO, Romana Valente (orgs.) In Memorian de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006,
pp. 99-103.
2 UFMT, Cuiabá, 1979.
3 UFMT-SUDAM Belém, 1976.
4 UFMT, S. Paulo, 1976.
5 UFMT, Cuiabá, 1975.
6 NDIHR, 1984.
7 Belo Horizonte, 1983.
8 UFMT - SUDAM, Belém, 1976.
9 UFMT, Cuiabá, 1979.
10 UFMT, Cuiabá, 1982.
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11 Rio de Janeiro, 2001.
12 UFMT, 1982.
13 Cuiabá, 1978.
14 Rio de Janeiro, 1986, e Lisboa, Museu Naval, 1987.
15 Viana do Castelo, 1994.
16 Oxford, 1988.
17 Lisboa, 1966.
18 Rio de Janeiro, 1977.
19 Rio de Janeiro, 1979.
20 Coimbra, 1992.
Resumo
O Prof. Agostinho da Silva e a criação do NDIHR da UFMT. Contribuição da paleógrafa
Maria Cecília Guerreiro de Sousa e publicação dos primeiros inventários de documentos
setecentistas referentes a Mato Grosso. Bibliografia resultante publicada. História do Teatro e Artes Plásticas. Arquitetura, Medicina, Ensino.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; paleografia; documentação setecentista; inventários; teatro; história; artes plásticas; arquitetura; medicina; ensino; bibliografia.
Abstract
Prof. Agostinho da Silva and the creation of the Center for Regional History Documentation and Information (NDIHR, in the Portuguese acronym) of the Federal University
of Mato Grosso. The paleographer Maria Cecilia Guerreiro de Sousa’s contribution and
the publishing of the first inventories of 18th-century documents related to Mato Grosso.
Resulting bibliography published. History of Theater and Plastic Arts. Architecture, Medicine, Teaching.
Keywords: Agostinho da Silva; paleography; 18th-century documents; inventories;
theater; history; plastic arts; architecture; medicine; teaching; bibliography.
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A arte de viver
em Agostinho da Silva
Celeste Natário*
Decorreram já mais de dois anos sobre o nosso primeiro texto sobre
Agostinho, texto esse resultante de um encontro que, sendo gratificante, constituiu para nós um grande desafio pelo deficiente conhecimento da obra deste
singular pensador.
Todavia, quando na vida encontros desta natureza acontecem, torna-se
difícil, senão impossível, afastarmo-nos assim de alguém que tanto nos marcou logo ao princípio, razão pela qual hoje algumas considerações ousamos de
novo fazer, não por um conhecimento profundo e exaustivo da sua obra, mas
por uma crescente empatia com o seu pensamento.
Com efeito, desde esse primeiro encontro, nunca mais de Agostinho
nos conseguimos afastar. Ao invés, na sua companhia temos sentido, crescentemente, um raro acolhimento e afago, sobretudo pela sua tantas vezes desconcertante sabedoria, aquela verdadeira sabedoria, a sabedoria para a vida,
que é, segundo cremos, a que mais importa.
Cumpre-se, na nossa perspectiva, essa sabedoria para a vida, no querer
fazer o impossível – dado que, como lapidarmente escreveu o próprio Agostinho, “só há homem quando se faz o impossível; o possível todos os bichos o
fazem”.1 Ao contrário do que possa parecer, não é esse querer um acto gratuito,
um gesto fantasista, mas uma aposta: no melhor de nós, no melhor do ser, no
melhor da vida, porque só assim a vida é uma arte, porque só assim a vida
pode ser um poema…
É esse o único caminho para uma vida autêntica, caminho onde todos
os atalhos têm que ser explorados e onde, por isso, natural e espontaneamente
* Professora de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutoramento em Filosofia em
Portugal, aprovada por unanimidade, com a tese intitulada: O Pensamento Filosófico de Raul Proença, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. Mestrado em Filosofia do Conhecimento pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com a classificação final de Muito Bom, com a dissertação intitulada:
O Pensamento Dialéctico de Leonardo Coimbra, Reflexão sobre o seu valor antropológico, sob a orientação do Prof.
Eduardo Silvério Abranches de Soveral, em 1994.
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o paradoxo emerge, qual feixe de forças tensivas, senão mesmo antagónicas,
tão-só o resultado da aceitação do todo e do tudo que na vida vai sendo… Realiza-se, esse caminho, numa contínua batalha contra o que desvia o homem
da plenitude, por Agostinho entendida como o nosso único dever, o horizonte
para uma existência com real significado e valor.
É uma existência assim concebida que torna activo e dinâmico o pensamento deste homem que se interpelando nos interpela, que se revelando nos
revela e coloca perante um olhar plural sobre o mundo, a vida e o homem, olhar
esse que, pela sua inexcedível disponibilidade de escuta, ao mesmo tempo nos
diz que só o Amor pode conduzir a Humanidade pelos mais elevados rumos,
pois que, como escreveu Agostinho, só o Amor, esse “outro” Amor – “outro”
porque verdadeiramente pleno – é “capaz de sacrificar todas as possibilidades
de quem o sente, para que o inferior não fique na sua inferioridade”.2
Por assim ser, é esse Amor simultaneamente humano e divino, é esse
um Amor que acontece por uma espontânea adesão, disponibilidade de escuta,
comunhão, irmanação – no dizer de Paulo Borges, “um amor omnicompreensivo e unitivo que, sendo místico, no sentido de consistir na fusão com o fundo
último e inexprimível do real, não deixa de ser criador, pois consubstancial ao
Infinito agostiniano, simultaneamente humano e divino, no qual Deus e as
mentes co-inventam a cada instante a si e ao mundo”.3
Por assim ser, simultaneamente humano e divino, “omnicompreensivo
e unitivo”, é esse um Amor que tudo supera e transfigura pela “atenção contínua e profunda ao que mais vale em si”, resultante daquela doação que só pode
decorrer de uma inteira entrega de todo o nosso ser ao que verdadeiramente
é… Essa consonância entre o que se é e o que se pensa, entre o ser e o pensar,
é, aliás, na nossa perspectiva, o que mais singulariza o seu pensamento filosófico, apesar de Agostinho recusar esta classificação bem como outras similares
designações, chegando inclusivamente a escrever, em Conversação com Diotima, “eu não sou um filósofo (…), sou um poeta: mais imagino a vida que a
explico…”.4
Deseja Agostinho que a missão dos homens seja a de realizar o que está, a priori, para além do seu alcance, o tal “impossível”, o que
é também um modo de libertação de si próprio e de transcensão do egoís­
mo, na abertura amorosa a toda a alteridade. Certamente que não é
fácil esta tarefa. É, ao invés, a mais difícil, a mais “impossível”. Ainda e sempre, tudo está, contudo, nas nossas mãos. Assim o queiramos – como
escreveu ainda o próprio Agostinho: “Felicidade ou paz nós a construímos ou
destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico
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e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa
mesmo para todos, a podemos transformar em positiva”.5
Sozinho tanto no nascer como no morrer, tendo como “única companhia a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente”, o homem, tomando sobre si o espírito do amor – o mesmo é dizer, tão-só, o próprio Espírito –,
seguirá no mundo o caminho que o levará, o elevará, ao mais alto, ao além de
si mesmo, já que este Amor tudo funde, unifica e redime, por uma elevação do
humano ao divino… É este um caminho de santidade, de transcensão, o único
caminho através do qual o homem verdadeiramente se cumpre, ao descer ao
mais fundo de si, à sua mais funda verdade, ascendendo, nessa descida, ao que
mais absolutamente o transcende, a própria “plenitude de Deus”. Ainda nas
palavras de Agostinho, é essa a nossa única “obrigação”: “Para o homem existe
apenas uma obrigação: a de atingir a plenitude de Deus. E só por um meio o
alcançar: o de, ao longo da vida, se tornar no homem que é”.6
Não se trata pois aqui de um caminho de alienação, nem, muito menos, de negação de si. O homem não se aliena nem, muito menos, se nega ao
cumprir este caminho. Muito pelo contrário, cumpre-se, assim, pois, nele se
afirmando o mais possível… Para Agostinho, com efeito, o homem e Deus não
são rivais, não tendo, por isso, que se combater entre si. Daí que nem o homem
se afirme na negação de Deus nem Deus se afirme na negação do homem. Ao
invés, o homem tanto mais se afirmará quando mais se afirmar em Deus…
De resto, para Agostinho, Deus não é sequer um real “outro” para o homem.
Como escreveu na sua Doutrina Cristã, que tanta polémica levantou na altura
da sua publicação, “pode-se, sem blasfémia, falar não de Deus mas apenas do
Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel.”7
Terá sido Agostinho, ao escrever estas palavras, um herético ou, ao invés, um santo?… Nem uma coisa nem outra, a nosso ver. Se é verdade que a
vida de Agostinho manifesta uma tal autenticidade que chega a afigurar-se, no
sentido mais comum do termo, como a vida de um santo, e não apenas como
a vida de um homem, a verdade é que Agostinho foi apenas isso: um homem.
Nem sequer um homem perfeito, mas, apenas, um homem. Um homem que,
contudo, quis a perfeição – como fez questão de frisar, é esse, aliás, o estado
mais perfeito do homem: “Não há homens perfeitos; há quando muito (…)
homens que querem ser perfeitos.”8 E que, por isso, sem o querer, se tornou
para todos nós um exemplo. Um exemplo de procura da perfeição, do “impossível”. Um exemplo de como fazer da nossa vida um poema. Um exemplo de
como fazer da nossa vida um caminho que vale realmente a pena percorrer até
ao fim. Um exemplo, em suma, da arte de viver.
A arte de viver em Agostinho da Silva
Celeste Natário
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Notas
1 Cf. Sete Cartas a um Jovem Filósofo, in Textos e Ensaios Filosóficos, org. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora,
1999, vol. I, p. 268.
2 Cf. Conversação com Diotima, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. I, p. 167.
3 Cf. Agostinho da Silva: uma antologia, org. e apres. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora, 2006, p. 123.
4 Cf. Conversão com Diotima, ed. cit., p. 169.
5 Cf. Só Ajustamentos, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. II, p. 94.
6 Cf. Pensamento à solta, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. II, p. 162.
7 Cf. Doutrina Cristã, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. I, p. 81.
8 Cf. Conversação com Diotima, ed. cit., p. 168.
Resumo
Para nós, Agostinho da Silva é um exemplo: um exemplo de procura da perfeição, do “impossível”, um exemplo de como fazer da nossa vida um poema, um exemplo de como fazer
da nossa vida um caminho infinito, um exemplo da arte de viver.
Palavras-Chave: Agostinho da Silva; exemplo; arte de viver.
Abstract
For us, Agostinho da Silva is an example: an example of search for perfection, for the “impossible”, an example of how to make one’s life a poem, an example of how to make one’s
life an infinite pathway, an example of the art of living.
Keywords: Agostinho da Silva; example; the art of living.
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Agostinho da Silva e a construção
do mundo do espírito
Constança Marcondes César*
Para compreendermos o significado do Reino do Espírito, na obra de
Agostinho da Silva, é preciso tomarmos como ponto de partida suas considerações sobre o mundo atual, sobre a crise da sociedade contemporânea.
O tempo em que vivemos apresenta, na ótica de nosso autor, várias
analogias com o fim do Império Romano. Tais analogias são levadas ao extremo quando o pensador julga poder reconhecê-las na oposição entre o
hemisfério Norte e o hemisfério Sul. O hemisfério Norte e suas “sucursais”,
como ele chama a Austrália e a África do Sul, são as regiões mais desenvolvidas. Na periferia dessa área, e mesmo dentro dela, acham-se inúmeros
desempregados.
A área desenvolvida é identificada com um segundo Império Romano. As menos desenvolvidas, cheias de famintos e sem trabalho, são os novos
bárbaros, que já começam a invadir a área “civilizada”. Os pólos de entrada
desses novos bárbaros serão o que nosso autor chama de as duas Penínsulas
Ibéricas: a primeira, constituída por Portugal e Espanha; a outra, pelos países
da América Latina.1
O desafio consiste no fato de as áreas desenvolvidas enfrentarem uma
persistente crise, decorrente de um progresso tecnológico desordenado, produzindo efeitos indesejáveis, do ponto de vista humano.
Assim, de um lado, temos desumanização e desmoronamento de um
mundo; de outro, o alvorecer de uma nova época.
No mundo que se desmantela, encontramos o conflito entre liberdade
e sobrevivência. Agostinho se refere explicitamente ao conflito que opunha, na
década de 80, as duas grandes potências: EUA e Rússia. A primeira celebra a
liberdade de pensamento, mas estoca alimentos enquanto parte da população
* Constança Marcondes César é Professora titular da PUC de Campinas; membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e da Academia Brasileira de Filosofia, da Academia Internacional
de Filosofia, da Academia de Ciências de Toulouse.
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mundial morre de fome; aqui se vê crescer o uso de drogas e o suicídio de jovens;
e aumentar a violência e o número de prisioneiros. A outra potência celebra a
eliminação da fome; mas essa foi feita à custa da instauração de governos ditatoriais, totalitários e repressivos.2
A organização atual da sociedade parece fadada a desencadear uma
crise de enormes proporções. Ela se expõe no amplo desemprego dos que não
podem ser absorvidos pelo mercado de trabalho; no desespero dos jovens que,
“educados para trabalhar, chegam à idade de trabalhar e não trabalham. Não
podem comer sem trabalhar; e não podem sequer divertir-se sem trabalhar”.3
O impasse vem se acentuando e duas saídas igualmente difíceis se anunciam:
a ampliação da busca das drogas e do álcool ou a violência.
A crise ocorre por falha do Estado, que foi incapaz de orientar corretamente os resultados da capacidade inventiva do homem. Trata-se, para
Agostinho, de reduzir o tempo de trabalho de todos; de possibilitar o amplo
acesso a alguma tarefa; de canalizar o tempo livre de todos para o lazer e o
aprimoramento.
O Estado atual só melhorou as condições daqueles que já têm acesso ao
trabalho. Acentuou, assim, a divisão entre empregados e desempregados.
O caráter burocrático e desumano da sociedade atual vai perdurar
muito tempo. Mas já começam a surgir sinais de que a situação pode ser
superada. É
“só a fé no homem, nas possibilidades divinas do homem [que] nos
pode levar de novo à Idade de Ouro (...), [ao] tempo de fraternidade
e de amor, sem angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de
absorção em Deus, tempo de ação mental, a mais verdadeira e a mais
eficaz de todas as ações”.4
A possibilidade está aberta para sairmos dessa circunstância opressiva:
cabe-nos, diz o mestre, usar a imaginação.
É recorrendo à teoria da história de Joaquim de Flora, que pensa a sucessão do tempo à luz das três figuras da Trindade, que Agostinho vai oferecer
alternativas. O Reino do Espírito será construído ao buscarmos novos modos
de viver e ser, ousando o impossível.
O impossível é a realização do Reino de Deus na Terra, o Reino do
Espírito Santo, caracterizado pela liberdade, criatividade, plenitude. Do lado
do império econômico e político que se desmantela, não há liberdade política, não há liberdade econômica: há “coação exercida pelos que dispõem dos
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meios de produção, de transportes e de crédito (...)”, [há] “fácil corrupção do
voto” (...) [e] “a miséria nem pensar pode”.5
A sociedade atual está baseada na opressão de uns sobre outros, na
idéia do homem como instrumento de produção; baseia-se na concorrência e
no lucro, na propriedade.
Ora, “a questão é que não se pode ser capitalista e religioso”,6 diz Agostinho. Não se pode afirmar a fraternidade, sem o respeito ao outro; e ainda:
“Não há propriedade alguma que Deus possa abençoar; Deus só pode abençoar a não-propriedade”,7 o serviço a todos. Trata-se, para o nosso autor, de
instaurar a liberdade econômica, mediante a “propriedade coletiva da terra”,
como “ponto a que se dirigem, convergindo, o progresso da consciência ética e
o progresso da utilização técnica das ciências”,8 estabelecendo cooperativas.
Se essa iniciativa não for levada a efeito imediatamente, “conseqüências graves [advirão] para todo o mundo (...)”,9 na opinião de nosso autor.
Uma revolução está em marcha, provocada pela automação: “um futuro
tempo em que todo o produto manufaturado, pelo emprego das fábricas automáticas, não exigirá de ninguém trabalho involuntário (...)”.10
Essa revolução virá; caso a propriedade seja coletiva, virá mais depressa. No capitalismo, com a automação, só vai crescer o número de desempregados, e os trabalhadores em atividade acabarão por não ser capazes de pagar
o subsídio para os outros. Desse impasse, decorrerão guerras ou revoluções,
dando lugar a uma nova etapa: a de luta entre a não-propriedade e a propriedade coletiva, luta do hemisfério Sul contra o hemisfério Norte.11
Daí a exigência de se construir uma nova ordem, aquilo que Agostinho chama de Reino do Espírito. Essa nova ordem é uma nova concepção
do religioso, das virtudes, com ressonâncias no âmbito da economia, da política, da educação.
No plano religioso: a religião do Espírito Santo não é confessional, mas
resulta da convergência de três princípios: “O homem deve dominar as coisas
e não ser dominado por elas (...) deve obedecer ao que o transcende e não aos
seus caprichos; nenhum corpo deve fazer o que a alma reprova, nenhuma alma
deve fazer o que reprova o corpo.”12 As virtudes de “humildade (...), generosa
alegria (...), imaginação (...), inocência”,13 presentes nas crianças, consideradas
como modelo de vida, de entusiasmo, tiveram grande expressão nos momentos históricos de maior criatividade, como ocorreu entre os gregos, os árabes de
Córdoba, os italianos do Renascimento.
Recriar esse espírito de entusiasmo, de invenção, de sacralização da vida e do mundo é a proposta de Agostinho.
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito
Constança Marcondes Cesar
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A instauração do Reino se inicia, diz nosso autor, no espírito dos homens; consiste na celebração de uma nova ordem, a partir de três votos essenciais: “o de criar beleza (...), o de servir (...), o de rezar (...)”.14
Esse espírito é essencialmente religioso: a religião do Espírito propõe
a cada um a fidelidade a si e o amor aos outros, como princípios essenciais.15
Religioso é tudo o que enfoca como valor essencial a unidade; é o “desejo supremo de fusão no Uno”,16 é o desejo de fraternidade, acima da busca do saber
ou do conhecimento.17
No Reino do Espírito, o ideal de governo é “o não haver governo”;18 o
“de economia, o não haver economia” eliminando-se a oposição produtor/consumidor, patrão/operário;19 no plano de vida política, é a superação das antinomias entre criança/adulto, ignorante/sábio, homem/mulher.20
Definindo a política como “uma ponte de passagem entre um hoje e
um futuro”,21 trata de discernir as características da política que possa conduzir ao Reino do Espírito, de modo que este não seja apenas uma utopia,
um sonho, mas irrompa no agora. Para tanto, uma “política sem partidos”,22
é condição de nos irmanarmos, de acentuarmos não o que nos opõe, mas o
que nos une.
Trata-se, assim, de levar o homem a chegar a compreender “a mais alta
idéia, a de que o sonho vale mais do que a realidade, a de que o contemplar
sobrepuja o agir (...)”.23
As escolas, por sua vez, terão que acentuar a capacidade de criação, de
invenção, em todos os campos; serão “escolas sem professores, apenas com
o encontro quotidiano de pesquisadores e inventores e criadores em vários
graus de progresso (...)”.24
A escola atual segrega o aluno, faz dele um especialista, dócil às expectativas dos adultos e o torna ferozmente competitivo.
A escola do futuro dará a prioridade à criança, levando o adulto a reaprender a imaginação, o jogo, o sonho.25 Nosso autor busca criar “o lugar cívico de educação e de vida (...) em que o criar vá muito além do saber (...) em
que o jogar se encontre com o trabalho, em que a liberdade crie sua própria
disciplina e em que o contemplar domine o agir, e o adorar se sobreponha ao
poder (...)”.26
A construção do Reino do Espírito passa pela atuação importante de
Centros de Estudos, de Universidades. Atribuindo um papel essencial ao Brasil,
nessa abertura de um novo tempo, Agostinho assinala a importância do surgimento da Universidade de Brasília, que ajudou a fundar.
Estabelecendo analogias entre a época em que vivemos e a do surgiRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
ISSN 1414-0381
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mento das ordens monásticas, propõe como inspiração o lema de São Bento:
ora e trabalha. Ou seja, acha importante associar o estudo e o trabalho, de
modo que o povo se reúna à volta das Universidades, como outrora, dos agrupamentos circundantes aos mosteiros, surgiu o que hoje é a Europa. Talvez
desse modo, diz o pensador, possa surgir, num mundo “frágil e ameaçado”,
uma nova raça “de sábios, monges e soldados”27 que possa superar as guerras
e conflitos em que estamos mergulhados.
Agostinho, a partir de sua atuação nas Universidades brasileiras, criou
Centros de Estudo que realizaram, concretamente, o estabelecimento de laços
entre América, África, Europa e Ásia.
O grande projeto de fundação de Centros Universitários interligados
está exposto no texto Bahia.Coleção de Folhetos. Refere-se a um projeto feito
no Brasil, mas publicado em Lisboa em 1971.28
Aí, narra a criação, em 1959, do Centro de Estudos Afro-Orientais, na
Bahia; a criação, em 1962, do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de
Estudos Clássicos, na Universidade de Brasília. Refere-se à formação de grupo
de colaboradores, professores pesquisadores de diferentes áreas: História, Filologia, Arte, Filosofia, Música, Poesia.
Mirar o sonho, ousar o impossível; e com fé, alegria, paciência, persistência, realizar o possível, nas circunstâncias dadas. Foi o que Agostinho fez, ao
longo de sua vida inteira. Reuniu grupos de estudiosos que abraçaram o sonho
e trataram de pô-lo em andamento.
O entusiasmo, a profundidade de sua contribuição fizeram de nosso
autor um mestre, a semear uma espantosa obra cultural, e a ascensão humana e pessoal daqueles que tiveram a felicidade de encontrá-lo e com ele
colaborar.
A fé no sonho, na capacidade do homem de realizar o melhor de si
mesmo; o convite a traduzir em ação e em vida o conhecimento, o saber; a
poderosa inflexão de suas idéias e de seus projetos tiveram impacto decisivo
na transformação das regiões do Brasil onde esteve. Fundador de Centros de
Estudos e de Universidades, fez de sua atuação em diversos deles uma ponte
para o futuro: a construção do Reino do Espírito. Entendendo o mundo novo
também como um mundo profundamente interligado e dialogante e considerando que esse diálogo teria que se estabelecer acima dos conflitos e interesses,
acima dos jogos de poder e das lutas que contrapõem culturas, religiões, economias, filosofias –, Agostinho estabeleceu metas concretas para o papel a ser
desempenhado pelas universidades, nesse campo.
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito
Constança Marcondes Cesar
84
Assim, diz:
“(...) suponho ter ficado mais ou menos definido (...) que, a poder-se um dia voar mais largo, teriam que se estabelecer os Centros,
não [só] no Brasil, mas nas regiões em que se estivesse interessado,
criando junto de todas as Universidades brasileiras postos de recrutamento de bolsistas e, nas respectivas bibliotecas centrais, sessões
especializadas (...)”.29
O Brasil seria, na perspectiva de nosso autor, o novo ponto focal entre
Europa, Ásia e África, uma vez que já representa esse encontro, dos pontos de
vista cultural e racial.
O grupo de estudiosos que se reuniu em Brasília, na fundação da Universidade, em torno do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos
Clássicos, em colaboração com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, teve,
dentre outros, nomes como os de Ordep Serra, Emanuel Araújo, altamente expressivos no cenário nacional.
O projeto da Universidade de Brasília enfatizava os estudos clássicos,
a tradução direta do latim e do grego, a organização de coleções de edições
bilíngües, assim como a tradução de manuais básicos de diferentes áreas. A
Universidade deveria ter postos avançados em diferentes pontos do mundo.
A certeza de que o sonho é possível, a fé no homem e nas suas potencialidades criadoras, a esperança no futuro, que conduz a ações concretas para
a realização do melhor em nós e nos outros, talvez seja o grande legado de
Agostinho.
O sonho impulsiona; funciona como valor-horizonte, meta que produz uma orientação geral da vida para a realização de um novo mundo. O
grupo que trata de instaurar o novo, “é fundamentalmente do lugar em que
qualquer um de nós reside e da obra que estivermos realizando (...)”.30
O importante não é esperar, para agir, circunstâncias absolutamente
favoráveis; é, antes, ter um projeto e pautar a vida por ele; é pôr o sonho em
marcha, realizando o que for possível.
O legado de Agostinho é uma ética do possível, uma ética do sonho.
Como ele mesmo diz, “o sonho vale mais que a realidade”,31 a contemplação
conduz à ação. E se não é possível realizar de uma vez por todas e de imediato
o mundo sonhado, é, contudo, um convite e uma incitação começar realizá-lo
no instante presente, na circunstância dada, com os instrumentos, alternativas
e pessoas disponíveis.
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Em resumo, pode-se dizer que:
a) o ponto de partida da interpretação da situação contemporânea,
em Agostinho, é a constatação da crise presente. Tal crise é analisada como resultante de uma ruptura entre o fazer técnico e o
significado profundo do existir humano. As atuais estruturas econômico-políticas só acentuam essa ruptura, produzindo fome e
desemprego, contraposição entre países desenvolvidos e não-desenvolvidos, guerras e conflitos entre culturas, gerações, trabalhadores e desempregados;
b) recorrendo à interpretação da história de Joaquim de Flora, monge
medieval discípulo de Santo Agostinho, nosso pensador se refere à
Idade do Espírito, como objetivo a ser buscado, ideal a ser concretizado. Afirma a fé nas possibilidades criadoras do homem como fio
condutor para sairmos do impasse atual; afirma o amor como via
privilegiada dessa realização, e a esperança não como espera vazia,
mas como certeza de que a utopia é possível.
Fé, esperança e amor se unem na férrea disciplina intelectual, no
exercício quotidiano da busca de conhecimento e na repartição
desse conhecimento através de ações concretas, educativas, e do estreito diálogo com grupos de intelectuais atentos às possibilidades
abertas pelos recursos da ciência atual;
c) a crítica à sociedade contemporânea e a afirmação das virtudes
estão vinculadas, em Agostinho da Silva, a uma ética do possível.
Por ética do possível entendemos sua concepção de agir voltado para a
realização do melhor, a cada momento dado. É uma sabedoria prática, interessada em solucionar problemas concretos, visando alcançar a máxima expressão
do humano como resultado. Trata-se de suscitar, em si e nos outros, a coragem
transformadora do mundo, libertando o ser humano da servidão do trabalho
repetitivo, para a vida criadora, na qual “o sonho vale mais que a realidade”.32
Notas
1 A. da Silva. “Carta Vária: XLI”. In: Dispersos. Lisboa: ICALP, 1988, p. 830.
2 A. da Silva. “Carta Vária: LIV”. In: Op. cit., pp. 842-843.
3 A. da Silva. “A minha meta é o ponto sem dimensão” (entrevista ao Diário de Notícias). In: Op. cit., p. 142.
4 A. da Silva. “A Comédia Latina”. In: Op. cit., p. 190.
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito
Constança Marcondes Cesar
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5 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Op. cit., p. 193.
6 A. da Silva, ibidem.
7 A. da Silva, ibidem.
8 A. da Silva, ibidem.
9 A. da Silva, ibidem. p. 194.
10 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 231.
11 A. da Silva, ibidem. p. 232.
12 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Dispersos, p. XXXXXX
13 A. da Silva, ibidem.
14 A. da Silva, ibidem. p. 198.
15 A. da Silva. “Carta chamada Santiago”. In: Op. cit., p. 586.
16 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 227.
17 A. da Silva, ibidem. p. 228.
18 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Op. cit., p. 199.
19 A. da Silva, ibidem. p. 200.
20 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 232.
21 A. da Silva, ibidem. p. 233.
22 A. da Silva, ibidem.
23 A. da Silva, ibidem. p. 239.
24 A. da Silva. “Considerando o Quito Império”. In: Op. cit., p. 199.
25 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 235 e ss.
26 A. da Silva, ibidem. p. 237.
27 A. da Silva. “Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília”. In: Op. cit., p.
252.
28 A. da Silva. Op.cit., pp. 493-499
29 A. da Silva. “Bahia Coleção de Folhetos”. In: Op. cit., p. 494.
30 A. da Silva, ibidem. p. 497.
31 Cf. nota 23.
32 Cf. nota 23.
Resumo
Partindo da constatação da crise do mundo atual, Agostinho da Silva, inspirado em Joaquim de Flora, propõe como alternativa a construção de uma nova forma de convivência
entre os homens, que afirme os valores do conhecimento, da fé , do amor e da esperança.
Trata-se de instaurar uma ética do possível, através do diálogo entre grupos de intelectuais
e de centros de pesquisa, favorecendo o intercâmbio de idéias e a vida criadora.
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Palavras-chave: Espírito; Joaquim de Flora; Virtudes; Conhecimento; Crise.
Abstract
Starting from the perception of the world’s ongoing crisis and inspired by Joachim of
Fiore, Agostinho da Silva suggests as an alternative the building of a new form of living
in society, one which affirms the values of knowledge, faith, love and hope. It is about
instauration of an attainable ethic, through the dialogue between intellectual groups and
research centers, favoring the interchange of ideas and creative life.
Keywords: Spirit; Joachim of Fiore; Virtues; Knowledge; Crisis.
Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito
Constança Marcondes Cesar
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Agostinho da Silva: Um Filósofo
Pedagogo e uma Teocracia
Dalila Pereira da Costa*
Se ainda quisermos confirmar, por suas próprias palavras, sempre tão
claras e rigorosas, a posição que assumiu Agostinho da Silva como filósofo,
ouçamo-lo, e aqui em confissão própria: “E se por acaso é pedagogo, coisa que
acontece muito a filósofos, não porque queiram especialmente educar o gênero
humano, mas porque não pode existir nenhum verdadeiro pensador que não
ame em cada homem o reflexo de Deus e não deseje que todo o minério precioso se desprenda da ganga”.1
Aqui estará bem definida a função do vero mestre espiritual, tal como foi Agostinho da Silva, ainda na senda de seus próprios mestres da Renascença Portuguesa. Longe de qualquer imposição ou domínio
pessoal. Lembremos a parábola evangélica dos talentos, o servo no seu dever
fazendo multiplicar, render, os bens de seu Senhor, a si confiados em depósito;
mas pelo sentido que antes lhe dará o nosso filósofo, aqui se lhe poderá chamar
alquimia interior; outros lhe chamarão ainda maiêutica.
Ato de trazer à luz, desocultar as qualidades, dons, do discípulo, até então só latentes, ocultas no seu fundo mais fundo, como sua verdade. Ou esse minério precioso, que será em si o reflexo de Deus. “E ato pedagógico que”, como
confia Agostinho da Silva, “só vale quando é feito como uma ascese por amor de
que se liberte o Deus que em nós reside.”2
Cumprindo assim o único verdadeiro dever que, humanamente, há
neste mundo, o de ser santo. De realizar em si o homem transmutado, ou
regenerado. Então esta pedagogia surgindo como parte do messianismo: este
realizando um mundo transmutado ou regenerado. Tal a meta conduzindo
os portugueses sempre através de sua História. E que iria persistir, na visão
* Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra; ensaísta, poetisa e investigadora
nas áreas da filosofia, da religião e da cultura portuguesa. Entre outros títulos da sua obra publicada, figuram O
esoterismo de Fernando Pessoa (Porto: Lello & Irmão, 1971); A nau e o Graal (Porto: Lello & Irmão, 1984); Místicos portugueses do século XVI (Porto: Lello & Irmão, 1986); Entre desengano e esperança: ensaios portugueses
(Porto: Lello & Irmão, 1996); Mensagens do Anjo da Aurora (Lisboa: Hugin, 2000).
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própria teocêntrica, para além do Renascimento, que iniciou na Europa o antropocentrismo.
Tal ainda nos surge Agostinho da Silva; e também Álvaro Ribeiro, seu
condiscípulo na antiga e suburbana Quinta Amarela, tão acolhedora nos seus
grandes arvoredos, sede da Faculdade de Letras do Porto, criada por um escol
de mestres: eis dois veros pensadores religiosos, ambos partilhando da mesma
verdade, expressada pelo nosso pedagogo: “Filosofia separada de teologia é
invenção do diabo.”3
Então e também, nesta progressão de união, se dará a “última e definitiva revolução, a do sobrenatural. A de se transformar a terra e o céu nalguma
coisa que os supere; a de se casarem tempo e eternidade; a de não haver mais
distinção alguma entre o homem e Deus”.4
Eis os anúncios dessa revolução que esperava Agostinho da Silva: a
teocracia.
E a que correu secretamente sempre no espírito dos portugueses.
Portugal foi, desde sua fundação por D. Afonso Henriques, uma nação
consagrada desde o alto, sob o signo de um milagre.
Vivendo na esperança messiânica universal do estabelecimento do
Reino de Deus sobre a Terra: esperança que, através dos tempos, tomará
manifestações sucessivas, como sebastianismo, Quinto Império; e que, nos
últimos séculos, positivistas e materialistas, em outras seguintes recorrências
cada vez mais profanizadas, assumirá aspectos de teor degradado.
Mas, nos seus primeiros séculos, afigura-se que, como nação, renuncia
a qualquer forma de natureza estritamente terrena, havendo tradicionalmente
em Portugal uma feição com algo de teocrática. Sempre latente, ora subindo à
superfície, à luz, atuante, ora permanecendo oculta; mas sempre viva, presente; e sempre se declarando pela voz de seus profetas, na sua concepção providencialista: Deus sendo o Senhor da História.
Assim, não tendo havido escolha de um destino tranqüilo, fechado e
limitado sobre si próprio, como nação, mas vivendo para a humanidade.
O messianismo foi a vocação de Portugal, integrando-o desde a Reconquista, na História continental e logo na universal. Dimensão universal que foi
acentuada por Bandarra, P.e Antônio Vieira e, presente e potentemente, por
Agostinho da Silva; demonstrando-se, através do devir histórico, esse filum
tradicional de feição transcendente.
Mas tudo levará a crer que Portugal se esgotou neste último ato que
o levou para além de si próprio, como nação; dando-se todo a esse ato, como
meta única de existência. Como dever: sacrifício no seu vero sentido sagrado.
Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia
Dalila Pereira da Costa
90
Obra universal, em que colaboram seus reis, todo o povo, soldados,
navegantes, descobridores, cartógrafos, missionários, mártires e santos.
“Nenhum outro país do mundo tivera tal audácia, nenhum dera a tal
ponto o sinal de consciência de uma missão”.5
Enquanto conservou no seu pensamento e ação esta meta superior,
levando-a para além de si próprio como finalidade de vida, viveu verdadeiramente, ocupou e desempenhou alto papel no mundo, na sua vera essência,
perseverando no seu ser; quando perdeu essa meta, também simultaneamente,
um princípio de morte, começo de decomposição, entrando em si.
Então também, decaindo na submissão à Europa, a seus falsos modelos, tão alheios a si; como perda de sua identidade, confiança em si, na sua
verdade própria.
E essa futura descoberta surgindo para seus profetas, como algo que
faltava ainda cumprir; não no sentido natural, como a primeira, mas no sentido espiritual; nova Descoberta, perante a qual, no dizer de Pessoa, a primeira
não teria sido mais do que um ante-arremedo carnal.
Nova Descoberta na qual os filósofos poetas da Renascença Portuguesa,
como Agostinho da Silva, depositaram toda sua esperança: como obra de fraternidade racial e universal, partilha do Espírito Santo; futuro nascer de uma
humanidade e de um mundo.
E nessa futura missão, que espaço da terra e seu povo teria havido predestinadamente eleito desde os fundos mistérios dos inícios?
“Possivelmente a permanência de D. João VI no Brasil teria decidido
de vez a possibilidade de um mundo português feito de nações independentes
e livres, com seu centro de gravidade não mais em Portugal, mas no Brasil.”6
Agora ousemos ligar este possivelmente de Agostinho da Silva à afirmação de vaticínio de André Malraux, na década de 60 do século passado,
quando de sua visita oficial ao Brasil, como Ministro da Cultura da França, no
seu discurso (que ouvi então) em São Paulo, declarando que o Brasil poderia
ocupar o lugar de vanguarda na futura civilização mundial, se perseverasse na
sua essência específica, não se submetendo a qualquer influência cultural de
outra nação estrangeira. Notemos esta afirmação, vinda de alguém detentor
de tão alto nível espiritual e autoridade; e afirmação possuindo tal elogio do
Brasil: e esperança nele depositada.
Digamos ainda: agora o Brasil podendo por si transmitir sua específica
e preciosa mensagem, e ainda a de Portugal, como uma das suas heranças próprias; “porque o ter emigrado o salvou, ou salvou sua mensagem”.7
E na esperança de nosso filósofo duma futura vera teocracia, “o tal porRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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tuguês preador lança seus fundamentos do que será muito possivelmente a
base futura de renascimento católico”.8
Assumirá por si essa nova era de paz, multirracial? Na sabedoria unida de índios, pretos e brancos: pela maior força do mundo, o amor. E que
nossos profetas, e entre eles, ultimamente, Agostinho da Silva de forma superior, proclamaram messianicamente, como Reino do Espírito Santo.
Eis então realizada essa sua desejada teocracia.
Porto, 7 de Setembro de 2006
Notas
1 As Aproximações, pp. 117-118.
2 Op. cit., p. 85.
3 Op cit., p. 120.
4 Op. cit., p. 134.
5 Reflexão à margem da literatura portuguesa, p. 60.
6 Op. cit., p. 106.
7 Reflexão à margem da literatura portuguesa, p. 93.
8 As Aproximações, pp. 29-30.
Resumo
Agostinho da Silva viveu nos nossos dias ainda como representante da corrente tradicional do messianismo português e de seu alto projeto de estabelecer no mundo uma Idade
da paz universal, em fraternidade multirracial. Agora, como mundo em ressurreição, após
sua descida aos infernos, iniciando uma teocracia na esperança do filósofo e ainda contendo em si a mensagem do Brasil e de Portugal. Como mestre espiritual, Agostinho da
Silva assumiu sua vera missão: a de levar o discípulo à sua realização própria, o que será
cumprir o projeto que Deus tinha sobre ele desde a preexistência. O filósofo continuou a
cosmovisão teocêntrica da Idade Média, que Portugal também continuou, mesmo após
o Renascimento, que estabeleceu na Europa o antropocentrismo. Assim e também, sua
filosofia foi considerada como começo de conhecimento da teologia: esta como sua vera
realidade, completude final.
Palavras-chave:
Messianismo; Fraternidade Universal; Liberdade; Santifica-
ção; Teocracia.
Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia
Dalila Pereira da Costa
92
Résumé
Agostinho da Silva a vécu de nos jours, tel le representant du courant traditionnel du
messianisme portugais et de son haut projet d’établir au monde un âge de paix universelle en fraternité multiraciale. Aujourd’hui, comme monde en résurrection, après sa
descente aux infers, encore vivant une théocracie et dans l’espoir du philosophe, contenant en soi le message du Brésil et du Portugal. Comme maître spirituel, le philosophe a
vécu sa vraie fonction, celle d’émmener le disciple a sa realization: comme d’accomplir
le project que Dieu avait pour lui dès la préexistence. Agostinho da Silva continue la
cosmovision theocentrique du Moyen Âge, tel que Portugal avait fait, même après la
Renaissance et son anthropocentrisme établi en Europe. Ainsi, la philosophie était vue
comme début de connaissance, ou préparation vers la théologie: celle-ci comme sa vraie
realité, completude finale.
Mots-clé: Messianisme; Fraternité Universelle; Liberté; Sanctification; Théocratie.
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Poética da Nação em Agostinho
da Silva. Comunidades de discurso
globalizadas e hermenêutica
da literatura nacional.
Germán Labrador Méndez*
1. O seu nome é Nação
Idade de Ouro se chamou a uma vaga lembrança alterada e embelezada
por poetas – ou Paraíso Terreal, bem tocado de seu celeste, é o nome próprio ou heterónimo, e, como para todos os heterónimos, a pergunta fundamental, de tão difícil resposta, é heterónimo de quê? (AGOSTINHO
DA silva, 1986: 9)
Desejo começar estas páginas com uma breve circulação pelos conceitos
que vou tratar nas páginas seguintes, por aqueles que formam o seu título e por
aqueles que o seu título aproxima. Porque o que aqui vou abordar não será mais do
que algumas elípticas possíveis à volta desse corpus de metáforas, de mitos, de narrativas insólitas que forma a produção de Agostinho da Silva, linguagens que iluminam não pela convicção mas sim pela metáfora, que confiam as suas estratégias à
“reminiscência” e não à “inteligência”, não à “definição”, mas sim ao “pressentimento” (Um Fernando Pessoa, 1959: 19).
* Germán Labrador Méndez (Departamento de Literatura Espanhola e Hispano-americana, Universidade
de Salamanca). Bolsista FPU do MEC, última tese de doutoramento com co-tutela (Salamanca-Sorbonne).
Sua trajetória investigadora se desenvolve entre os estudos culturais e a filosofia da cultura, com abordagens
em campos e épocas diferentes, que vão desde a escritura do começo da modernidade até processos culturais
da atualidade recente. Seu campo de especialização é a Transição Espanhola e especificamente o estudo dos
movimentos contraculturais da mesma, sobre os quais tem publicado numerosos trabalhos em revistas de
investigacão. É licenciado em Filologia Hispânica e Filologia Românica pela Universidade de Salamanca, tendo completado sua formacão na Università degli Studi di Urbino (Italia), L’Université Paris IV-La Sorbonne
(França) e University of California em Berkeley (EUA). É co-diretor do Seminário “Discurso, Memória e Legitimacão” (Universidade de Salamanca).
94
O primeiro desses conceitos é o de escritura da nação. Ou seja, o de conceber a ideia da identidade nacional, a sua relação com o território e com as instituições políticas, jurídicas e socioculturais, desde uma perspectiva antiessencialista, antimetafísica, histórica, contingente e imanente. A nação é principalmente
um facto de discurso, desde este ponto de vista, um texto, uma escritura, ou
melhor, um amplo conjunto de textos e de escrituras que se solapam, se contradizem, se justapõem e se subordinam. Desta forma, seguindo Bhabha (1990), a
construção da nação só se pode imaginar, desde estas coordenadas, como uma
actividade literária de escritura de espaços de sentido, de contextos textuais de
certeza (e incerteza) (rodríguez-velasco, 2006), através dos quais uma determinada comunidade encontra um lugar de sentido, um espaço linguístico para
partilhar e se contar a si mesma e construir-se, não como identidades isoladas
mas sim como partes de uma narração mais ampla, a narração nacional. Nation
and narration: a nação é a sua escritura, o seu relato. A História com maiúsculas
(History) é a história com minúsculas (story).
Vista assim, a nação transforma-se numa metáfora, num nome, um
termo submetido a intercâmbio e negociação. Desprovido o conceito dos mecanismos de autoridade e poder com que se essencializa (broncano, 2007), a
nação aparece mais amável, mais querida, mais partilhável. O conceito desta
maneira pode propor-se como algo aberto, dinâmico, produtivo. E também,
se a nação é um acto literário, podemos pensar que na configuração dos seus
limites conceptuais podem intervir outros fenómenos próprios da escritura
e, particularmente no que nos interessa, pode intervir a intertextualidade, de
forma a que a escritura contemporânea da nação seja ao mesmo tempo a reescritura de outras formas literárias anteriores, onde as metáforas prévias germinem e se cristalizem em metáforas posteriores ao serviço não sempre de
projectos nem tão amáveis nem tão ingénuos.
No seu terreno público, como derivação do anterior, cabe esperar a
existência de mecanismos pelos quais essa escritura nacional se dote de estratégias políticas e discursivas através de que possa manter-se estável, unificada,
na medida em que se entenda uma relação entre a coesão do seu relato e a
coesão simbólica do Estado que este relato cristaliza. Assim, pois, é fácil intuir a possibilidade de uma preceptiva para vigiar o uso da referida linguagem
nacional, preceptiva que aqui indicaremos com o termo de uma “ortografia
nacional”, metáfora tomada de Pessoa, ou melhor, de uma exegese de Pessoa,
como veremos. Se a nação é discurso, se a nação se pode propor aos outros como um projecto de “léxicos partilhados” (rorty, 1996), então cabe interrogarse pela possibilidade de uma gramática da nação, ou seja, algum conjunto de
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normas, de princípios que sirvam para situar os seus elementos numa ordem
de discurso determinado. Qualquer discurso não é mais do que uma forma
determinada de organizar as coisas (Foucault, 1999), mas cabe estabelecer socialmente a necessidade ou o interesse de estruturar um manual de conduta,
umas práticas partilhadas de escritura que unifiquem, que legislem o modo
desses discursos.
Assim, uma gramática da nação teria, na sua forma mais externa e menos reflexiva, também a sua própria ortografia, o que introduz uma ideia do
uso correcto, do emprego adequado da língua nacional, utilizando agora este
conceito na sua dupla acepção, a do relato colectivo e a do idioma nacional,
reificado como máxima e material manifestação do primeiro. A ortografia é
construída como uma moralidade pública, como um código de decoro e de
decência, no momento de escrever a língua da nação e no momento de escrever
a própria nação. Mas toda a ortografia, como foi demonstrado por Martínez de
Sousa (1991), entranha frequentemente as suas violências simbólicas, as suas
naturalizações, os seus projectos de controle, através das instituições que velam
pelo cumprimento das suas normas e que sancionam e castigam a sua falta.
Desta maneira, o projecto de uma escritura nacional relaciona-se desde
muito cedo com o da institucionalização dessa escritura, com a cristalização
de formas determinadas, de significantes atrás dos quais se encontram relações de poder, estratégias de controle simbólico e interesses determináveis.
Na nossa exposição, vamos fazer funcionar a escritura da nação em sincronia com a ideia de poesia e a questão da ortografia com a ideia de filologia
como instituição. Poesia e filologia formam então um par de sentido que vai
guiar a nossa exploração. Poesia introduz a expressão de uma carga imaginária
nesse discurso nacional, estabelece que a configuração de uma ideia da pátria é
levada a cabo através da articulação de mitos, de poéticas, de símbolos, de elementos de carga psicológica que deslocam a ideia de identidade colectiva de um
lugar racional, intelectivo, para o imaginário social, para a sugestão, para a sedução, para a elaboração de metáforas felizes que tenham fortuna, rentabilidade,
acção social num determinado espaço. Isto por um lado, mas ao mesmo tempo
indicando que os poetas, como produtores simbólicos, como gestores privilegiados deste tipo de linguagens, formaram uma vez um corpo especializado na
produção de sentidos nacionais, que existiram momentos históricos onde os
poetas como colectivo estavam embarcados numa tarefa pública de tal tipo.
E a filologia, tomada no seu sentido mais amplo, como hermenêutica
de discursos, aparece como o passo natural seguinte. Para glosar o escuro, para
explicar o inexplicável, para tomar os símbolos e dizer que significam isto ou
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que significam algo mais, organiza-se uma instituição, um corpo de intelectuais especializados na exegese, aqueles que lubrificarão as metáforas dos poetas
no discurso da nação. A filologia, então, como disciplina capaz de integrar as
imagens poéticas, de dar-lhes um sentido concreto ao seu carácter de visão
irracional e, ao mesmo tempo, de limitar as suas possíveis interpretações, de
controlar o seu potencial significativo. A filologia elaborando um metadiscurso, uma interpretação, a correcta, a adequada, ou seja, gerando um discurso
novo e dizendo que é exactamente igual ao anterior. A filologia recobrindo
as fontes de uma linguagem própria e fazendo crer que a sua linguagem é na
realidade a que se encontra no interior das referidas fontes.
2. Tomar emprestados os nomes dos espíritos do passado
No entanto, qualquer propósito de gerar linguagens públicas ao serviço de projectos colectivos não pode conceber-se sem a procura de modelos
anteriores a partir dos quais trabalhar. A escritura da nação, a imaginação da
comunidade são projectos discursivos muito delicados que requerem, como
primeira estratégia básica, a sua ancoragem no seio de uma tradição, ou seja,
um lugar semântico prévio e conhecido cuja memória seja fácil de aludir e
cujos signos sejam fáceis de imitar, e, como segundo procedimento, dotarse de formas discursivas pragmaticamente úteis. As linguagens das gerações
precedentes, ou as outras linguagens dos contemporâneos, oferecem um inventário de recursos, um corpo de metáforas a tomar emprestadas ou a fazer
funcionar de maneira inovadora, revestidas também de uma vaga, ainda que
densa, aparência de superioridade moral. E nesse sentido, desde a consciência
de habitar numa continuidade histórica com esses discursos, no seio de uma
história literária, recorre-se aos grandes nomes das letras nacionais, na procura de engrenagens, cadeias, mecanismos que possam ser novamente usados.
Invocam-se espectros no panteão da literatura na medida em que as suas escrituras tivessem incorporado alguma possibilidade de esboçar a intuição de
um lugar familiar, uma construção a assimilar ao espaço de sentido que a nova
linguagem nacional quer propor.
Estes problemas não são exclusivos deste caso. Na realidade são próprios de qualquer exercício de revisão histórica e como tal já foram abordados
por Agostinho da Silva, na sua talvez maior tarefa de pensamento: o esforço de
imaginar no seu presente histórico uma “empresa” colectiva na qual a filosofia
e a literatura servissem para um melhoramento humano global, de tipo social,
económico e espiritual, e na qual todos os indivíduos na sua condição moral
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de “homens” se pudessem implicar. A utopia humanista do filósofo, da chegada de um “Tempo da Eternidade” (22) que expulsasse a violência e as formas
de opressão e domínio do âmbito social, era escrita como uma “identidade
revelada”, um espaço linguístico partilhável no qual os indivíduos podem e
devem reconhecer-se e permanecer.
Espaço cujos limites estão a todo o momento submetidos à negociação,
à permanente discussão com os léxicos dos outros, mas cuja primeira descrição se sente como urgente e necessária. Assim, para Agostinho, o importante
consiste em oferecer um primeiro projecto desse lugar, provisório e atraente,
capaz de mobilizar indivíduos numa longa marcha. E na altura da fundação
simbólica deste Reino utópico, o filósofo volta a vista para os textos do passado
e em especial para os dos poetas épicos. Com que Portugal pode contribuir
para a utopia? Um conjunto de metáforas parece ser a resposta de Agostinho.
A questão pode ser enfocada ao contrário: é possível edificar esse espaço sem
os materiais prévios, os elementos dados, sem o peso da tradição e de uma literatura, entendida como máxima expressão de uma política, ou de uma certa
maneira de entender a política (Eagleton, 2006)? Para Agostinho não, para
ele a utopia, entendida num sentido marxista, como ideal permanente não
atingível, mas em cuja aspiração se transforma o meio, só pode ser nomeada
através do poético: a distância entre o presente real e o futuro utópico só pode
ser salva desde o passado literário.
É essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o
último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando
a sua obra, dará ao mundo o seu íntimo Império feito de anseios, de
lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu Reino de
alma humana continuamente sendo e continuamente ansiosa de mais
ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma afirmação
puramente pessoal e de uma felicidade; o mar bate nas costas do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo
de nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então,
através de todo o nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre supremo, se descobrirá. (1959: 22-3)
Pode ser útil distinguir, pelo menos, três ciclos de produção na trajectória investigadora e criativa de Agostinho da Silva, cujos limites e momentos
a grandes traços oferecem uma correspondência com as fracturas históricas
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de Portugal no século XX. O primeiro deles, de juventude, seria anterior ao
Estado Novo, e nele estão incluídos os seus trabalhos sobre as filosofias antigas
e as civilizações clássicas, assim como os seus primeiros escritos de filosofia.
O terceiro ciclo é contemporâneo à democracia do 25 de Abril e aí Agostinho,
retornado do Brasil, põe o seu pensamento ao serviço da incipiente sociedade
e da sua vontade de lhe devolver a confiança. A filosofia literária propõe-se
então como consolação pública, como Educação de Portugal (1989), tónico
reificante para uma sociedade em transição necessitada, segundo o filósofo,
da crença mais do que do conhecimento. E isso tem o seu fundamento numa
das convicções críticas mais profundas do filósofo, “a ideia de que o mito é
mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é o substrato
do que é” (1959: 19), de que o mito poético é, desta forma, uma necessidade
antropológica, ainda maior nas fases nas quais as sociedades se redefinem e
transformam (18).
O seu segundo ciclo intelectual, produzido em e desde o Brasil, durante
o seu exílio, será aquele que contribui com elementos mais interessantes para
a nossa problemática, por ser ali onde Agostinho se aplica a questões de hermenêutica do discurso e de teoria poética. O livro central no nosso trabalho,
e aquele a que pertence a citação anterior, é a sua obra Um Fernando Pessoa,
uma antologia de poemas acompanhada de um ensaio de 90 páginas. Desde o
seu mesmo título, desnaturalizando a antologia como representativa ou administradora do potencial do autor, este texto partilha a dialéctica poesia-filologia que tínhamos indicado, ao apresentá-la como uma, como possível, como
viável. Uma “antologia de releitura” (93) é o título no qual agrupa os poemas
dos diversos heterónimos. Ler Pessoa através de um acto filológico, um acto de
poder como é uma antologia (Serra, 2002), é ler duas vezes, ou, melhor, é ler
duplamente. É ler um Pessoa, ou seja, ler outro, que, além disso, o veremos, de
repente deixa de ser a multiplicidade dos seus heterónimos para passar a ser só
um, formado pela sua heterogeneidade.
Dessa forma, a edição do poeta deixa de ser uma tarefa ecdótica para
converter-se numa obra plena, num livro de ensaio, tal e como se reconhece
através dessas estratégias textuais. A antologia é acompanhada de um estudo
com mais de oitenta páginas, no qual se abre o seu potencial significativo, dando
um novo sentido aos textos e fazendo-os dizer coisas novas. O interessante, na
nossa perspectiva, é que a operação faz-se a descoberto, ou seja, prescindindo de
toda a tentação de internalizar o metadiscurso, advertindo sempre do carácter
contingente do projecto em curso. Mas que entranha reler (reescrever) Pessoa
na nossa trajectória? Quem ou que é este um, ou quem ou que começa a ser?
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3. Atlas de utopia
Os projectos de escritura da nação no século XIX, no espaço europeu,
tendem a articular-se em torno de uma ideia de tipo metafísico e de natureza poética. A nação decimonónica descobre-se pela inspiração, assume-se
de uma forma intuitiva, revelada, e legitima-se através do léxico do destino
(Álvarez Junco, 2001). Uma pátria supra-individual, que se pensa como transcendência, que se manifesta mais além do humano, e perante a qual a individualidade do homem só pode reconhecer a sua inferioridade, só a pode servir.
Obrigação, missão, destino são os termos através dos que se nomeia, ou melhor, através dos que a nomeiam os seus poetas.
Isto é particularmente certo no contexto da primavera dos povos, na
qual os projectos de escritura da nação nutrem-se da fascinação de alguns produtores simbólicos por uma intuição da pátria como entidade deslocada, dolorosa, que requer um esforço colectivo (um sacrifício) para ser restabelecida,
um território pensado como “campo das chagas de Cristo” (silva, 1959:18).
Este é o momento no qual os poetas começam também a gerar autorepresentações de tipo mitológico, no nascimento de uma estética prometeica
na qual o poeta se apresenta em público como um ser moralmente superior
que, no cumprimento de uma missão transcendente que só a ele lhe é encomendada, lega, transmite aos seus semelhantes o conhecimento da natureza
da pátria e a responsabilidade a ele associada. Os poetas épicos do nacionalismo moderno deitam o peso da Nação sob os ombros, como novos Atlas, e
numa posição endurecida transmitem por escrito as dores que o peso, que o
destino de semelhante abóbada lhes causa.
A função pública do poeta épico das sociedades do renascimento está
encaminhada para uma legitimação simbólica de uma violência fundacional, um projecto de conquista e expansão territorial através do qual a nação
(império) funda-se justamente (28). Trata-se da implementação poética de
uns desenvolvimentos já acontecidos e da sua articulação política, metafísica,
como simples prolongamento de um desenho transcendente. O poeta épico
moderno apresenta uma dinâmica de outra índole, que entranha uma projecção em direcção ao futuro, numa lógica de destino futuro revelado. Isto
se fundamenta na crença de conseguir uma ligação directa com uma “alma”
nacional que, através da estética, pode traduzir a sua linguagem espiritual em
símbolos de potencialidade política, tal em Madame de Stäel, Schiller, Fernando Pessoa ou Rubén Darío, em formas, evidentemente, muito diferentes em
cada um dos casos.
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No espaço português esta escritura apresenta-se através de uma matriz de linguagem muito instalada na tradição portuguesa: o mito sebastianista. Ou seja, o discurso segundo o qual se espera a chegada de um rei oculto,
o Encoberto, cujo reinado será simultaneamente uma época de paz e justiça
entre os homens e de realização de um esplendor nacional, tal e como tinha
prognosticado o sapateiro Bandarra. Este mito de longo percurso, pertencente
a um fundo antropológico tradicional de carácter pan-europeu, foi submetido a um estudo sociológico profundo. António Quadros (1982), num livro
dedicado com razão a Agostinho da Silva, demonstra como existe uma precisa sociologia que determina os momentos de emergência deste discurso e
as coordenadas concretas nas quais vai tomar a sua nova forma. Da mesma
maneira, prova como essa mesma estrutura de imagens pode pelo seu carácter ambivalente suportar desenhos de diferentes tipos, como de repente pode
servir à articulação de um processo de unidade nacional como estar ao serviço
de tramas sucessórias de diferentes tipos, como pode sustentar um projecto de
expansão colonial ou como serve de amálgama identitária num contexto de
emancipação indígena.
Aquilo que Quadros também prova é a capacidade mobilizadora que
tem esse mito, como a sua cuidadosa gestão do futuro e as suas consequências imediatas sobre a realidade possuem implicações de tipo pragmático. Ou
seja, reconhece ao discurso sebastianista, na sua própria forma, um potencial performativo específico que o faz especialmente útil e dúctil na altura de
apresentar projectos identitários de tipo colectivo. E nisso tem muito a ver
a sua natureza hermética, que permite uma especial variabilidade semântica
sem ter que forçar demasiado a própria literalidade dos seus textos, abrindo
significativamente o seu espaço interpretativo, como também tem a ver a sua
fidelidade a uma tradição discursiva que, por ter tido uma certa continuação
histórica, aparece como constitutiva de um nacional não alterado. Assim, o sebastianismo teria acompanhado a constituição política e social do Portugal da
modernidade, tingindo os seus discursos desde o princípio da decadência do
Antigo Regime até o surgimento dos movimentos socialistas (Serrão, 1983),
configurando redes de palavras que pretendem todas elas definir de uma maneira verdadeira e plena conceitos do nacional que se excluem mutuamente.
Mas é claro, existe uma série de mediações necessárias entre a actividade criadora do poeta e a sua implicação na aparição de formas sociais
organizadas, existe um trânsito entre os versos de Bandarra nos cárceres da
Inquisição e os levantamentos messiânicos posteriores ou entre Pessoa escrevendo poemas para a arca (Silva, 1959: 91) e qualquer eventual participação
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sua na escritura da nação do Portugal moderno, como a que aqui sugiro. E esse
lugar mediador produz-se através de um campo literário (Bourdieu, 1991),
uma esfera pública (Habermas, 1991) ou uns aparelhos ideológicos do Estado
(Althusser, 1970). Chama a atenção que justamente esse momento no qual
Serrão regista a perda de visibilidade dos discursos sebastianistas seja também
o dia da ruptura entre os produtores poéticos e o seu público (Litvac, 1990), e
o mesmo momento no qual escreve Pessoa. Ou seja, um tempo de desconexão
entre a produção poética e a sua verificação pública, de isolamento dos criadores em relação ao social que, no entanto, deixa em reserva as suas linguagens à
espera de uma recepção (e um uso) posteriores.
Talvez desde essas coordenadas de isolamento se possa começar a ler
de outra forma o livro Mensagem de Pessoa e a noção do Quinto Império Cultural que profetiza nas suas páginas. Tal e como reconstruiu com inteligência
García Martín (1998), existe uma interessante relação entre o projecto literário de Pessoa e a sua rentabilidade política, no sentido de uma “língua companheira do império”. Nesse sentido, cabe suspeitar que pudessem derivar-se
consequências nada ingénuas atrás da ilusão compensatória de um império
cultural, regido por poetas, e na elaboração de uma legislação ortográfica que
a pudesse acompanhar, ali onde língua e identidade nacional se solapam e onde a literatura, a gramática e a lei, como as suas formas correctas e prestigiadas,
formam também uma unidade de sentido.
Dessa forma, o projecto cultural de Mensagem de Pessoa pôde ser dotado de uma nova semântica no seio do Estado Novo, onde a política filofascista
pôde obter uma perfeita cobertura simbólica na arquitectura poética do texto.
Trata-se do momento no qual se produz o encontro entre Atlas e Hércules, no
qual a parte militar toma conta do peso da nação recebido das mãos do poeta,
com o objectivo de salvá-la. Podemos demarcar uma reescritura, uma apropriação por parte do salazarismo de certas vertentes pessoanas, que teriam
sido muito oportunas, da mesma maneira que se podem aduzir conexões parecidas no seio dos usos de um primitivismo africano (Serra, 2006). Estratégia
de legitimação por outro lado típica dos regimes totalitários, ao preencher no
presente profecias poéticas que ainda não tinham o seu referente estabelecido.
A processos de recepção comparáveis foram submetidos Rubén Darío ou Garcilaso no contexto espanhol.
No entanto, no nosso argumento de que a potencialidade pública de
um texto só se verifica no seio da sua ortografia, tomada no nosso sentido do
termo, na ideia da sua adequação a critérios de norma no seio de um espaço social de criação de sentidos, numa “comunidade de discurso” (Wuthnow,
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1989), podemos apresentar outras variações do mesmo mito ao serviço de
projectos de fundação nacional muito diferentes. Como, por exemplo, no seio
da literatura galega do Rexurdimento, num espaço linguístico que fez sempre
da hipersimbolização uma efectiva estratégia discursiva. A literatura galaica
contemporânea aos processos descritos resulta especialmente atraente na hora
de visualizar um espaço de encontro com esse projecto: tal e como pensava
Agostinho da Silva seria necessário negociar com ela qualquer possível ideia
de uma Ibéria integradora (1959: 29).
Em primeiro lugar, esse mito reescreve-se na obra poética de Pondal,
em especial em Queixumes dos pinos (1886), e em “Os Pinos”, esse texto que
posteriormente a ortografia nacional elevaria à condição de hino galego, manifesto no qual se prevê o regresso de Breogán, herói mítico que adopta a
função simbólica do Encoberto. Escrito no ben acompasado monótono fungar
das altas copas, nos sinais que sobre a vegetação provoca o raio transparente do
prácido luar, nos desígnios dos benignos astros está uma mensagem de renascimento nacional que, através da palavra dos bardos das idades, a comunidade
pode reconhecer. O poeta profético pondaliano eleva-se como guia espiritual que pretende encaminhar a comunidade para um processo de tomada de
consciência, onde o mito de um passado remoto de tipo celta (inspirado em
Macpherson) e helénico apresenta-se como ancoragem temporária de uma
identidade que se começa a construir através da estética. Uma pátria transcendente, imortal, identificada com o território, que existe mais além da percepção que dela tenham os seus moradores, propõe-se como bem maior que
deve ser adoptado pela comunidade, sob a autoridade do seu bardo, legitimada
numa superioridade moral baseada na sua habilidade literária.
Algumas décadas depois, temos outro exemplo, de natureza bem diferente. Trata-se do texto de Ramón Cabanillas em Na noite estrelecida (1921),
uma fantasia poética na qual a realidade geográfica galega é desmaterializada
e interpretada desde o mito de Arturo-Encoberto. Assim, desprovidos da sua
referencialidade, as ilhas das rias, os montes de Lugo, ou os campos do interior
são interpretados desde o céu do roman da Bretanha como lugares nos quais
uma história de tipo literário forma uma alegoria mobilizadora de uma consciência diferente da pátria. Excalibur, o Grial, o barco que trará de regresso
o Rei das Idades, são emblemas de uma temporalidade mítica que se propõe
como reflexão dialéctica sobre o território nacional, que obtém desse modo
uma profundidade e uma poética nova. Por isso, no seio da actividade política
de Cabanillas, Na noite estrelecida vai funcionar como uma obra de ficção ao
serviço do enriquecimento do capital cultural de um incipiente galeguismo
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republicanista e cidadão que começava a articular-se nesses anos. O desenvolvimento de recursos proféticos e mitológicos cede ao serviço de um projecto
nacional participativo e antiessencialista.
Entre espaços de mitos e de logos, as escrituras e reescrituras poéticas
da nação balançam entre ortografias de tipo essencialista, onde a metáfora da
pátria na sua última dimensão funciona como algo pelo qual merece a pena
morrer, e aquelas outras de tipo historicista, onde a metáfora da nação é algo
pelo qual merece a pena viver. A carga hermética, escura da profecia, como foi
dito, favorece ainda mais as suas múltiplas acepções, debaixo (ou por cima)
das quais é sempre pertinente perguntar-se que tipo de espaço nacional estava
em jogo, que é que diz o símbolo ou que é que oculta.
4. A Nação como heterónimo
No fundo, a possibilidade de extrair um sentido público, uma pragmática do literário a estas poéticas penetra necessariamente no lugar da sua interpretação, num processo onde a exegese aferra-se tanto ao texto que acaba por formar com ele uma só entidade indissociável. O acto de dar sentido ao texto é na
realidade o acto de criar o próprio texto, num processo historicamente dinâmico
que produz uma serialidade de interpretações que, na prática, podem apagar ou
anular o texto prévio. E isso é exactamente aquilo que propõe Agostinho da Silva
em 1959, que a Mensagem de Pessoa não foi entendida, que é necessária a sua “releitura”, mas, como já foi indicado, sem arrogar-se o seu controle, a sua utilização,
o seu domínio. Trata-se de arrebatar Pessoa de um espaço hermenêutico politicamente não assumível para instalá-lo noutro, uma disputa pelas fontes textuais
do discurso de poder, num processo cuja consequência evidente é o questionamento indirecto da noção de nação que se fazia suster no texto original.
Ao construir um outro Pessoa, está-se a escrever uma nação diferente. E
Agostinho da Silva é muito consciente disso: assim, começa por estabelecer uma
genealogia dos poemários fundacionais, das fontes escritas nas quais se baseia o
discurso da nação em Portugal e por extensão nos países lusófonos. Nela, Mensagem aparece “como de importância superior à dos Lusíadas” (16), afirmação
fundamentada na descrição do conceito de história de Pessoa em diálogo com
Camões, João de Castro e António Lopes Vieira. Este, como já foi dito, é de natureza poética, construído através de categorias como “sonho”, “vontade”, eternidade, santidade, “desejo”, “energia” (17-9), e em redor à “imagem dialéctica”
(Benjamin, 1973) do Brasão: na enumeração de palácios em ruínas, túmulos e
lugares destruídos (Silva, 1959: 17), o poeta obtém e transmite uma visão que
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serve como iluminação do futuro. Da mesma maneira funciona a narrativa filológica de Agostinho da Silva, no seu divagar pelas metáforas antigas.
Podíamos afirmar que a exegese que se realiza ao longo do livro é de tipo mistagógico. Agostinho da Silva, como estudioso e conhecedor da filologia
bíblica (1945), serve-se dos usos narrativos deste método hermenêutico para
propor uma interpretação sagrada das obras de Pessoa, onde os símbolos e as
metáforas funcionam como índices referenciais de um texto segundo que fala
da revelação do Quinto Império, a forma contemporânea com que Agostinho
nomeia a nação global, o reinado do “Espírito Santo”, oposto à “Europa cartesiana” e capitalista (1959: 20).
Mas, como já advertimos, a forma do discurso de Agostinho da Silva
é construída através de uma linguagem poética. Não opera com categorias
conceptuais definidas nem com termos com referente material, ou seja, com
uma linguagem de estética cartesiana. A sua escritura é a de um texto aberto,
conceptista, que incorpora ritmos, que apela à produção de sentimentos, que
não pretende ser rígido nem esgotar todos os seus sentidos. O que é consequente com o projecto de comunidade que imagina. A linguagem que utiliza
é o reflexo verbal, ou melhor, a manifestação do seu conteúdo, da sua mensagem, numa estranha combinação de nominalismo e espiritualismo que define
as estratégias discursivas deste filósofo.
Por um lado, existe uma proposta de tipo espiritual e uma confiança
de tipo mítico, uma fé. Por outro lado, existe uma consciência de habitar um
material linguístico contingente, fortuito, provisório e histórico. Suspeitamos
que existe um uso estratégico da linguagem irracionalista, uma aposta de tipo
pragmático em nome da sua rentabilidade comunicativa. E isto tem a ver com
a leitura de Pessoa como poeta épico, que escreveu a grande epopéia dos heterónimos (34-35), da geração de novos indivíduos desde o interior do eu, projecto que leva justamente a conceber a nação como um heterónimo (1986: 9).
Descreverei muito brevemente esse projecto. O que Agostinho da Silva
propõe como nação tem que ler-se em termos subjectivos, nação no interior de
cada homem, num projecto no qual a soma das representações do eu, exercidas
segundo certos parâmetros concretos, produzirá a comunidade. A nação de Um
Fernando Pessoa, assim como a que continua em Do Agostinho em torno do Pessoa (1990), é uma nação que emerge de baixo para cima, não é uma nação que
produz indivíduos, mas sim indivíduos produzindo espaços colectivos susceptíveis da sua representação (inter)nacional. Portugal é um lugar, um sentimento
de ânimo, um espaço moral, um nome com o que representar-se, “um Portugal
que se não importará com a definição de regimes políticos, de regimes económiRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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cos ou de instituições religiosas”, “ficando totalmente excluídas aquelas formas
institucionais que vão, como o autoritarismo político, o liberalismo económico
(...), contra o que há de estrutural no próprio homem”. Uma metáfora desprovida do seu referente físico e territorial, preparada para conceber comunidades
globais, uma vez que “a História passou, se ultrapassou” (1959: 30-1).
O seu conceito dialéctico de revelação joga também nesse mesmo esquema. A revelação de tipo mental, espiritual, produz-se primeiro no interior
do sujeito, através da contemplação dos símbolos que falam dessa mensagem
e do seu cifrado correcto (“o mar bate nas costas do Império”, 23), e produz-se
como alumbramento, como entendimento de uma série de princípios horizontais (igualdade, fraternidade, generosidade, não agressão...). O homem renascido através da manifestação no seu interior da poética do Quinto Império,
o homem convencido, entusiasmado, que assume representar-se segundo essa
linguagem literária, obterá uma nova maneira de relacionar-se com os outros.
A política surge justamente nesse ponto intermédio, onde a construção do eu
implica os outros, e onde existiria a oportunidade de propor novas formas sociais mais justas e harmónicas, integradas por homens guiados por uma ideia
simultaneamente individual e colectiva de virtude.
Do que se trataria seria de convencer aos outros de juntar-se a esse projecto comum. Essa possibilidade de entusiasmo, pensa Agostinho, só se pode
realizar desde o sentimento de partilhar um mesmo código, uma forma de
correcção ortográfica, uma maneira de fascinação colectiva desde a estética.
Carol Blum (1989) explora esta dinâmica, provando como em determinados
momentos históricos dá-se a possibilidade de que, através da assunção colectiva de linguagens literárias, se produzam efectivas transformações políticas e
processos de fundação nacional. Na França revolucionária funcionam assim
Les Confesions de Rousseau, que vão veicular uma mudança social através da
sensibilidade, onde do que se trata não é estabelecer um lugar identitário de
tipo territorial, mas sim moral: “uma república da virtude”. E nessa mesma
chave devemos ler o projecto comunitário de Agostinho, desde a consciência
de que, em determinadas coordenadas históricas, linguagens e projectos desse
tipo servem para mobilizar positivamente indivíduos, constroem sujeitos, e
noutros, talvez nosso caso, não consigam fazê-lo ou não no mesmo grau.
5. Um Agostinho da Silva
Sobre as razões do rendimento pragmático deste discurso não tenho a
intenção de propor nenhuma hipótese, mas seria sim interessante ler a produPoética da Nação em Agostinho da Silva...
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ção de Agostinho em sincronia com outros projectos contemporâneos, assim,
como mero exemplo, com a obra (e as repercussões) que tinha nesse momento Octávio Paz ou com os postulados das revoluções juvenis (Lindín), comparações que nos serviriam para entender, numa malha de discursos muito
diferentes, Agostinho da Silva, malha que implica claramente as filosofias e as
revoluções internacionais dos anos de 1960, e que aqui não posso mais que insinuar. Isso exige, evidentemente, descentrá-lo, ainda que, nesta altura, pretender pensar o filósofo português no seio de uma filosofia ibérica ou, ainda pior,
nacional, no seu sentido mais limitado, é uma operação um tanto ingénua.
Esta afirmação leva-nos até ao último dos nossos pontos. Em nenhum
momento a metáfora de um Quinto Império é adjectivada com um apelido
particular, ou seja, não se trata de um Quinto Império Português, nem de um
Quinto Império Ibérico. Existem sim abundantes referências ao português,
ao ibero-americano, ao galaico, ao espanhol, mas como matrizes de história,
como lugares que têm uma tradição de linguagens, de textos, de hábitos, como
sítios, justamente, aos quais se recorrer na hora de se dotar de um novo discurso. No império cultural dos espíritos, o português e o ibérico podem oferecer
projectos, espaços de aliança, da mesma forma que o soviético serve para a
anulação de fronteiras classistas ou da mesma maneira que da revolução maoísta se pretende tomar o sentido da humildade (1959).
A nação, ou, a estas alturas melhor, a comunidade de que Agostinho fala é de tipo internacionalista, ou dito por ele através de Pessoa: a de “um nacionalista místico, um sebastianista racional” (97). Justamente, através da soma
destas revelações individuais aspira-se oferecer um espaço múltiplo, uma utopia em terra, liberta das tensões estruturais que caracterizam as nações modernas na sua fase de desenvolvimento último. Noutro texto de hermenêutica
poética, não menos interessante, como é o prólogo ao livro Regresso ao Paraíso, de Teixeira de Pascoaes (1986), o filósofo insiste nessas afirmações, fala da
necessidade de superar imperialismos, contradições norte-sul, pensa de uma
forma global e reifica o indivíduo como sujeito depositário da política e da
nação. Em último caso, nação é indivíduo, e o projecto estabelece claramente
que a comunidade profetizada é da espécie, um império de seres humanos
onde cada ser humano se considera um imperador de si próprio, libertados
colectivamente das servidões materiais através da robótica e da técnica (10).
Com isso, conseguia-se tirar Pessoa de certo espaço de leitura e abri-lo
a outras potencialidades, assinalando as aberturas e as fendas, o vazio onde
cabem outras interpretações que se impõem não pela sua verdade, fidelidade
em relação ao original, mas sim pela sua maior rentabilidade colectiva, por
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serem depositárias de maior possibilidade moral de bem comum. Evidentemente, insistimos, a expressão de um projecto assim não deve ser lida como
uma estratégia ingénua, mas deve sim ser entendida em chave poética: a nação
funcionando como metáfora.
Seria possível abrir uma frente de questionamento do discurso agostiniano no sentido da sua impossibilidade de negociar com causas estruturais, condições de possibilidade, perguntas pela organização material, pela maneira por
meio da qual esse discurso pode ser veiculado de uma forma concreta, mas novamente devemos deslocar esse argumento para as instâncias de mediação (campo,
esfera, aparelhos), porque a hermenêutica, como a vimos, é apresentada como
acto individual de poética. Nessa linha, deve-se, pode-se ler a actividade humana,
intelectual, associativa do filósofo, que tem sido destacada frequentemente como
o componente mais interessante da sua personalidade. Dever-se-ia então pensar
num estudo do efeito concreto, sobre outros sujeitos, do seu discurso, na transmissão oral do seu projecto, no seio da sua vida profissional, pública ou, inclusive,
privada, mas essa deriva não a vamos produzir nestas páginas.
Uma última questão devolve-nos à interrogação em que se apóia este
texto, que não resolveremos, ou de que deixaremos simplesmente delineadas as
margens do seu desenvolvimento actual, que é aquela que se fixa na possível rentabilidade da sua linguagem poética no seio de uma ideia global de comunidade.
Simplesmente, expomos que, nos processos actuais de construção de identidades colectivas, parece ter decaído o uso do poético, na sensação de que os textos
de tipo épico, e as suas interpretações, carecem hodiernamente de vigor, à hora
de implicar a cidadania em projectos colectivos de qualquer tipo, ou à hora de
ser construída como comunidade. E, nesse sentido, cabe destacar o perigo ou a
fragilidade que supõe pensar no filósofo português como um alegre inspirador
de uma união cultural ibero-americana ou multinacional, quando os conceitos
que usa, como já vimos, deslocam-se para outros lugares de acção e quando o
seu próprio conceito de nação é de tipo estratégico, na tentativa de conseguir
transformações biopolíticas. Reificar as suas noções identitárias numa perspectiva estritamente literária ou desligá-la de uma teoria da política do eu significa,
na nossa opinião, subtrair amplitude e alcance ao seu discurso.
Para Margarita Méndez
Trad.: Fatima Bello & José Lino
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Resumo
O presente texto pretende analisar a noção de comunidade que Agostinho da Silva elabora
ao longo da sua obra, a partir da construção de uma “poética nacional”. Perante um pensamento de tipo centrípeto, habitual em determinada crítica do filósofo, que tende a adjudicar-lhe um lugar no seio de uma filosofia nacional do Portugal contemporâneo, o que aqui
vamos propor é que o seu conceito de nação não pode ser entendido numa perspectiva
hegeliana, da existência de estados criadores de indivíduos e sustentados por uma história
com maiúsculas (Hegel, 1988: 42-3), da mesma maneira que os seus trabalhos sobre a literatura ou a cultura portuguesa não se podem ler numa perspectiva que não seja a internacionalista, ou que o seu conceito de uma Ibéria transnacional não funciona num sentido
peninsular. A nossa tese é a de uma progressiva perda de referencialidade geográfica nos
conceitos históricos e identitários na obra de Agostinho em relação à sua tradição textual,
que repercute numa maior abstracção significativa na sua linguagem e uma conseqüente
extensão semântica dos seus termos. Neste processo, o trabalho de exegese e o diálogo
intertextual com outros “poetas da nação” marcarão a deslocação da filosofia agostiniana.
Por último, por trás da ampliação da base semântica da sua noção de identidade colectiva
o que se abre é a possibilidade da sua universalização. Assim, a partir da sua exegese de
Pessoa e de sua tradição interpretativa, Agostinho traça um projecto de imaginação de
uma comunidade cidadã globalizada, multicultural e não eurocêntrica.
Palavras-chave: Identidades Nacionais; Comunidades Discursivas; Ibero-América; Políticas Literárias.
Abstract
This text aims to analyze the notion of community that Agostinho da Silva develops in his
body of work, regarding the construction of a “national poetics”. Unlike a centripetal type
of thought, customary in a certain criticism that tends to place him in the nucleus of contemporary Portuguese national philosophy, what is here proposed is that his concept of
nation cannot be understood in a Hegelian perspective, i.e in a perspective of the existence
of states that create individuals and are sustained by a History in capital letters (HEGEL,
1988: 42-3), much in the same way that his works on Portuguese literature or culture cannot be read in a non-international perspective, or that his idea of a transnational Iberia
does not work in a peninsular sense. Our thesis is about a progressive lost of geographical
reference in Agostinho da Silva’s historical and identitary concepts vis-a-vis the textual
tradition, which entails a bigger abstraction of meaning in his language and consequent
semantic extension of his terms. In this process, the work on exegesis and the intertextual
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dialogue with other “poets of the nation” will mark the shift in Augustinian philosophy.
Finally, out of the semantic amplification of his notion of collective identity, what opens
up is the possibility of its universalization. Therefore, from his exegesis of Pessoa and his
interpretative tradition, Agostinho da Silva charts a project of imagining a citizen community that is globalized, multicultural and not Eurocentric.
Keywords:
National Identities; Speech Communities; Ibero-America; Literary
Politics.
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Germán Labrador Méndez
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Agostinho e a
Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota*
A partir dos 17 anos, Agostinho da Silva colabora na imprensa com poesia, contos e ensaios. Durante os tempos de estudante na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, onde preside a Associação de Estudantes (com 19
anos) e dirige o seu jornal, O Porto Académico (1926), imprime um carácter
desassombrado e polemizante nos textos que assina, o que desde cedo constituirá marca de autor em toda a sua produção.
Pensador livre, Agostinho participa na vida cultural da Cidade Invicta, não se inibindo de assumir posições que, na época, foram apenas
toleradas por se tratar de irreverência própria de jovem universitário.1
A primeira fase da sua vida, digamos até 1930, fica marcada por claras
influências neoclassicistas. Um ano após o terminus da licenciatura2 com 20
valores doutora-se na mesma Faculdade de Letras, com nota igual, defendendo a tese Sentido Histórico das Civilizações Clássicas,3 onde refuta as opiniões
de Oswald Spengler expressas em Der Untergang des Abendlandes – A Decadência do Ocidente.4
Colaborador activo da Seara Nova desde 1932, reúne em Glossas5
a sua participação pautada pela discussão crítica sobre a sociedade, permeada por reflexões sobre o cristianismo.6 Surge ainda nesse ano Conversação com Diotima, um diálogo segundo o modelo platónico,7 em que
O Estrangeiro (Agostinho) e Diotima conversam sobre a verdade, o bem, a
felicidade, o sentido (ético) da vida, deixando perpassar, do discurso, as opiniões defendidas e as posturas de coerência assumidas pelo autor que, aqui, já se
desdobra em mais um heterónimo.8
* Helena Maria Briosa e Mota é professora e mestre em Educação. Dedica-se à investigação da obra pedagógica de
Agostinho da Silva, objecto da sua tese de doutoramento, em curso. É responsável pela selecção, anotação e estudos
introdutórios dos volumes Textos Pedagógicos I e II e Biografias I, II e III integrados nas Obras de Agostinho da Silva
(Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 1999-2003). Colabora no levantamento de espólio de Agostinho da
Silva, tendo a seu cargo o processo da PIDE/DGS. Tem estudos publicados em jornais e revistas. É co-autora de
Uma introdução ao estudo do pensamento pedagógico do Professor Agostinho da Silva, Lisboa: Hugin, 1996.
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Por se recusar a assinar um atestado de compromisso ideológico (a
«Lei Cabral»,9 na altura de assinatura obrigatória por todos os funcionários
públicos) ou, nas palavras do próprio, por se “recusar a abdicar de direitos
cívicos ante o governo ditatorial,”10 é demitido do ensino público em 1935.
Depois de ter sido bolseiro do Centro de Estudios Historicos em Madrid,
onde desenvolve trabalhos sobre a mística espanhola durante o ano de 1936,11
Agostinho regressa ao país. Irradiado que está da função pública, empreende
uma obra de divulgação cultural que se caracteriza pela verdadeira “democratização da cultura.”12 A par da docência em estabelecimentos de ensino particular, da direcção do «Núcleo Pedagógico Antero de Quental»,13 da fundação
e da coordenação de escolas experimentais, publica até 1944 cerca de 180 Cadernos intitulados «de Divulgação Cultural» e Biografias.
1. Os Cadernos e a divulgação cultural
Em Portugal vive-se, nessa época, a fase expansionista do Salazarismo.
É a altura em que, após o 28 de maio de 1926, o Estado Novo é imposto, com a
crescente restrição de liberdades pessoais e políticas, censura prévia instituída
e uma polícia política já actuante.
Desde o advento da 1ª República, e agora com o início da ditadura,
verificou-se a tentativa de sufocar muitas das referências doutrinárias ou ideários da intelectualidade mais progressista personificada em António Sérgio
ou Jaime Cortesão, apenas para mencionar dois dos nomes que Agostinho
identificou como tendo exercido influência capital no seu desenvolvimento
como pessoa.
A escola como instância difusora do saber é de difícil acesso à maioria
das famílias, o que tem claras repercussões nos índices de desenvolvimento do
país, que se encerra nas muralhas das suas fronteiras, cego e surdo às influências e ao progresso sóciocultural que se vivia no exterior. De instância libertadora que devia ser, a escola reduz-se ao molde, à forma de onde sairão, no fim
do ciclo educativo, cidadãos resignados e conformados.
Um «Parecer» da Câmara Corporativa publicado na altura14 aponta
claramente a necessidade de se investir na formação dos jovens. Os movimentos da Renascença Portuguesa15 e da Seara Nova16 já apostavam nessa área.
Impossibilitado de leccionar na Faculdade de Letras do Porto – onde,
naturalmente, ingressaria como professor, não fosse o seu encerramento –,
recém-licenciado e doutorado em prazo recorde, Agostinho da Silva ingressa
na docência do ensino secundário. Depois de irradiado do ensino público e
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Helena Maria Briosa e Mota
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ao ser também proibido de leccionar no ensino privado, mas necessitando de
trabalhar para viver e alimentar a família já constituída, recebe apoio do seu
condiscípulo Eduardo Salgueiro, que lhe abre as portas da “Editorial Inquérito”. A partir daí, escreve febrilmente para jornais e revistas, toma partido,
critica, desafia, envolve-se em polémicas na imprensa diária, suscita amores e
ódios tanto na Academia,17 como no seio do poder político e até no religioso.
Inflamado pelo projecto de reconstrução nacional proposto pela Seara Nova, ao qual aderira, destaca-se no âmbito da divulgação cultural18 que
empreende, ao publicar, na forma de edição de autor, uma obra enciclopédica
de divulgação cultural destinada ao grande público. Esta obra, que ficou conhecida pelo nome de «Cadernos», foi por Agostinho da Silva desenvolvida
em quatro “frentes” simultâneas: a edição dos Cadernos para “a mocidade” e
“a juventude” intitulados À Volta do Mundo (1938-1943?); os Cadernos de Informação Cultural Iniciação (entre 1940 e 1947); os Cadernos Antologia, Introdução aos Grandes Autores19 (1941-1947) e as Biografias20 (desenvolvidas entre
1938 e 1946).
Toda esta campanha de divulgação cultural foi acompanhada por ciclos de palestras e conferências proferidas por todo o país desde 1939, ano
em que Agostinho funda o Núcleo Pedagógico de Antero de Quental.21 Através
dessas conferências e de cursos, e basicamente da edição de bibliografia barata
e de fácil acesso, tenta Agostinho da Silva dar resposta às dificuldades de divulgação e expansão cultural existentes.
1.1. Educação para a Cidadania
Em «Literatura Infantil»,22 texto publicado aos vinte e um anos, Agostinho declara, peremptório, que lhe parece fundamental substituir “o maravilhoso dos contos infantis” pelos “maravilhosos factos da vida”. Para que possa
crescer como pessoa alicerçada em valores, é preciso que a criança aprenda,
por si, “«a voar com as próprias asas», a não esperar auxílio de outrem que não
de si, a não aguardar que a «sorte», ou o «destino» lhe venham coroar de êxito
os seus projectos” (p. 169). Se, nos nossos dias, a teoria do desenvolvimento
psicopedagógico da criança, de defesa da autonomia, é da maior actualidade,
não o era, seguramente, na primeira metade do século passado.
Mais importante que encher a cabeça das crianças e jovens com prodígios realizados por fadas, bruxas ou outros seres sobrenaturais omnipotentes,
propõe Agostinho, como educador, que as crianças sejam iniciadas na cultura literária. Será, então, não só fundamental, como adequado, que contactem
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com exemplos de pessoas «boas». Contudo, avisa: não pessoas “passivamente”
«boas»: porque, afirma-o, “ para ser útil a si e aos seus” é necessário ser forte,
intrépido na luta, cheio da segura confiança em si próprio”; e, para tal, “substituamos este maravilhoso [o do sobrenatural, das bruxas, fadas e papões] pelo
das paisagens de terras distantes, dos animais estranhos que mais tarde há-de
estudar nos seus compêndios de zoologia, das plantas de formas excêntricas.
Através das leituras poderão os jovens descer ao fundo dos mares”, fazer “a
escalada das montanhas”.
Tudo isto porque crê Agostinho num precoce projecto educativo que
sirva de fundamento para a formação de “gente com vontade, com energia,
com decisão, que não esteja sempre à espera que um Messias (transformação
adulta da fada) lhe venha trazer já estabelecido, proclamado e suficientemente
garantido o regime político por que anseia. E das crianças temos que fazêla”(idem). Temos de criar essa «gente» para o Terceiro Milénio.
Este projecto é coerente com o que continuará a defender aquando da
edição dos Cadernos intitulados «À Volta do Mundo»,23 dezassete anos depois
do artigo mencionado.
Todos os cadernos que Agostinho escreve para os jovens têm como
constante a presença do autor/narrador que, de forma sistemática, os vai interpelando e chamando a atenção para detalhes, que pedagógica e encadeadamente repete. Além do estilo coloquial, o vocabulário é simples e acessível,
adequado à faixa etária a que se destina. A simpatia pelo ser humano é uma
constante e, precocemente para a época, revela ser Agostinho da Silva um
ecologista, que conduz, paulatinamente, os leitores na defesa das espécies,
do meio ambiente, cultivando neles respeito pelo seu semelhante e por todo
o ecossistema que rodeia o planeta.
De forma revolucionária e precursora, lançou Agostinho da Silva uma
educação para a cidadania, tal como é hoje entendida em Portugal24 e por esse
mundo afora.
“Para que haja, para os menos cultos, possibilidade de iniciação, cómoda e barata, num certo número de assuntos científicos, históricos, literários, filosóficos etc.”, inicia Agostinho da Silva a publicação da colecção “Cadernos” Iniciação – Cadernos de Informação Cultural (1940-1947).25
No texto em que apresenta o projecto, torna Agostinho claro que, à
publicação não preside “nenhuma espécie de interesse comercial”26 e que,
“pagas as despesas, [se pretende] recolher receita suficiente para que se possa realizar uma obra de educação nacional que todos desejaríamos o mais
ampla possível”.27
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Pensados e escritos para um público cujo nível cultural fosse o de curso
secundário, reconhece anos mais tarde, “segundo parece..., para outros serviram também e talvez tenham estado na origem remota do muito que no
género se faz, e bem melhor, tanto no Brasil como em Portugal…”.28 Tendo
como objectivo tratar “de tudo o que a vida possa conter de mais interessante
em gente, planta, bicho ou coisa…”, almejava o autor, através da sua difusão,
permitir uma sólida base cultural a qualquer pessoa. E os Cadernos foram,
inegavelmente, responsáveis pela formação de muitos dos seus leitores.
1. 2. As Antologias
Considerando a dificuldade de acesso ao livro, por parte de grande
maioria da população, Agostinho da Silva vai traduzindo29 e paulatinamente
editando obras de autores que, segundo o seu critério, poderão contribuir para
a elevação cultural dos leitores. Fá-lo na forma de edição de autor; sempre a
preço acessível,30 passível de ser adquirido por qualquer bolsa. Igualmente, estando o esperanto em grande expansão na época, vê Agostinho em tradução um
considerável número dos seus cadernos e biografias (33 volumes, no total).
O princípio subjacente à escolha dos textos seleccionados nos Cadernos Antologia, Introdução aos grandes autores,31 refere Agostinho na contracapa, é o de apresentar a obra sem qualquer “exclusivismo literário, político ou
religioso”. Igualmente, “não houve a preocupação de escolher os textos por
um critério de beleza puramente literário ou de apresentar aqueles em que o
autor foi mais brilhante”. O intuito do organizador foi o de se fixar, por um
lado, nos que “melhor podem dar a ideia do espírito do escritor e das circunstâncias da sua época” e, por outro, “nos que poderão exercer maior acção de
esclarecimento”.
Todas são precedidas, sem excepção, de um estudo introdutório onde,
em regra, é apresentada a caracterização do autor, sua época e obra desenvolvida. Os registos opinativos tornam-se prática usual. A linguagem, como nos
outros cadernos de divulgação cultural é objectiva, simples, clara. Aos breves
estudos introdutórios acrescenta sempre referências bibliográficas, visando à
pesquisa autónoma do leitor.
2. O Caderno sobre Literatura Portuguesa
No produtivo ano de 1944 dá Agostinho da Silva à estampa a Parábola
da Mulher de Loth, Pólicles e Apólogo de Pródico de Céos que abordam, tal como
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em Diário de Alcestes e em Sete Cartas a um Jovem Filósofo,32 as temáticas que
lhe merecem lugar de eleição: a liberdade, o amor, a exigência ética de cada um
para com cada qual.
É igualmente em 1944 que, no âmbito da sua acção de divulgação cultural, depois de ter escrito sobre a Literatura Russa e de projectar fazê-lo (sem
êxito, devido à partida para a América Latina) sobre a Literatura Espanhola e a
Literatura Grega, Agostinho da Silva publica o caderno Literatura Portuguesa.33
Como o título da colecção o indica – Iniciação –, este caderno não pretende ser
mais do que uma introdução ao conhecimento da matéria proposta.
Mas já Agostinho anda com o pensamento noutros vôos. As publicações não granjeavam as repercussões e vendas sonhadas, os académicos mantêm-se impantes nas suas cátedras, atafulhados em erudição, esquecendo-se
do “aspecto moral e cívico dos seus estudos”,34 o ambiente político constrangeo, e ele anda mais que decidido a sair daquele Portugal que o abafa.
O caderno Literatura Portuguesa reflecte bem o seu estado de alma. À
excepção de meia dúzia de autores que distingue, arrola muitos outros que,
se escrevem bem, não têm ideias e se têm ideias saem sem brilho, ou apenas
pecam por incultos, com capacidades intelectuais limitadas, provincianas, fúteis. Preocupa-o repetidamente a pouca craveira dos escritores e, em 1944,
só vê dois que se elevam a “planos verdadeiramente internacionais”: Luís de
Camões e talvez Antero. “Talvez”.
Agostinho está de partida. Zangado com ele e com os outros, farto de
mediocridade, deixa nesse opúsculo a imagem de uma literatura portuguesa
sem arcaboiço, pouca garra e, sobretudo, sem futuro à vista.
Com apregoados intuitos pedagógicos,35 Agostinho, partindo da matriz galaico-portuguesa, apresenta a evolução do que se poderá considerar a
literatura portuguesa até aos seus dias.
Não se eximindo ao imperativo ético de dizer o que pensa, tece considerações por vezes muito críticas quanto ao que entende ter um maior ou
menor peso no âmbito da cultura nacional.
Em relação a cada obra analisada coloca sempre a tónica na adequação (ou não) “às necessidades e características da sociedade do tempo” (p.
4) e, das notas mais ou menos positivas que vai redigindo sobre cada autor,
podemos precepcionar o quadro geral de valores que lhe é caro. E se existe
um reduzido leque de autores positivamente referenciados, enorme é a lista
daqueles que são criticados.
Dos autores que aparecem particularmente enaltecidos seleccionámos alguns:
Agostinho e a Literatura Portuguesa
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– Fernão Lopes (1380?-1445?), que reconhece como “um dos melhores
escritores portugueses e com toda a possibilidade de sustentar comparação com os grandes cronistas estrangeiros”. Nele sublinha características que, futuramente, veremos serem tónicas às quais confere
particular relevo não só na apreciação da obra de outros escritores,
mas sobretudo porque as coloca como base fundante da sua própria
redacção e análise. Valorizado, o “ardente” patriotismo, que lhe não
permite em qualquer caso deturpar a verdade, a simpatia pelo povo,
o gosto pelo pitoresco, a capacidade de movimentar grandes massas, a
nitidez e a finura dos retratos psicológicos, “a imparcialidade de que só
os grandes artistas são capazes...” (p. 5).
– Luís de Camões (1524?-1580). Porque é capaz, pelo seu génio criador,
na lírica, de fazer a síntese entre a medieval defesa da Fé, própria dos
cavaleiros da cruzada, e a concepção do amor ideal platónico cantado
pelos trovadores e poetas do Renascimento italiano. Coloca ao lado
das grandes epopeias alguns trechos de Os Lusíadas como a Batalha
de Aljubarrota, Os Doze de Inglaterra, parte do Episódio do Adamastor.
Contudo, refere, é nos sonetos, nas oitavas, nas canções, na paráfrase
do salmo Super Flumina (Sôbolos rios) que se percepciona a grandeza
de Camões como pensador e poeta que, por ter vivido o lado trágico
da vida, foi capaz de se alcandorar às alturas a que poucos ascendem.
Na palavra de Agostinho, Camões é apresentado como expoente de
“um dos grandes poetas do mundo e talvez com Antero o único dos
escritores da língua portuguesa que se elevou a planos verdadeiramente universais” (pp. 10-11).
– Padre António Vieira (1608-1697), de quem enaltece o temperamento
e a tendência para a política, em detrimento da teologia. Com ênfase,
sublinha a “audácia extraordinária, quer no tratamento dos temas de fé,
quer sobretudo nas críticas ao governo do Brasil”, o “interesse humano
posto na defesa dos índios”, a “energia na luta” contra os exploradores
das riquezas humanas e materiais, “a clareza e a justeza” de “algumas das
suas ideias económicas e sociais”. E mostra-se rendido ao que designa
de “estilo riquíssimo, vigoroso, exacto, perfeitamente modelado”. Particularmente referenciada surge a capacidade de se manter acima dos defeitos do seu tempo, a força da sua inteligência, bem como a amplitude
no tratamento dos temas que elege como primaciais (p. 13).
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Sobre Vieira não se cansará Agostinho de escrever, enaltecendo a capacidade de realização do homem, a humanidade do sacerdote, a visão diplomática do bandeirante. E adopta, reformulando-a à sua medida, a ideia quinto
imperial vieirina, que consubstancia em Quinze Princípios Portugueses.36
– Almeida Garrett (1799-1854) é apresentado como “enamorado da
variedade da vida, aberto à finura poética” e ao “humorismo”, contudo
capaz também, qual Herculano, de “exaltada sensibilidade”. Senhor de
um “espírito dúctil”, é “maravilhosamente expressivo, requintado na
construção e na escolha dos vocábulos, embora com a aparência de
uma perfeita naturalidade” (p. 17).
Seis anos antes prefaciara Agostinho Doutrinas de Estética Literária de
Garrett.37 De Garrett aprecia o cidadão envolvido e interessado nos “negócios
públicos” (p. 218), que pertence “à raça dos que não desanimam”, dos que entram na luta “movidos por um puro idealismo” (p. 221) e reclama “um regime
que seja para todos os portugueses, e não só para um grupo, um governo de
tolerância, de justiça e de progresso” (p. 222).
Para quem conhece a biografia de Agostinho, torna-se claro neste estudo da obra garrettiana quanto o autor se revê no biografado: “Defensor da
soberania do povo, adversário de toda a espécie de tiranias, convicto de que a
educação para a liberdade se faz pelo uso da liberdade” (p. 221). Porque “acreditava que uma nação pode encontrar em si mesma e só em si os elementos de
uma ressurreição intelectual”. Não obstante enalteça os intuitos pedagógicos
da sua literatura, critica que Garrett não tenha optado por “levantar” culturalmente o povo, em vez de “baixar” a cultura ao povo (p. 228).
Vê em Viagens na minha terra a obra mais representativa de Garrett,
“pela emoção delicada, pela graça ligeira, pela sensibilidade perante a paisagem, pelo supremo gosto do artista com que entrelaça a descrição de viagem
e o romance, pelos relâmpagos de paixão política, pela naturalidade e polida
elegância de estilo” (p. 222).
Pode reconhecer que Garrett é “inimitável no que é delicado, gracioso,
feminino” (p. 228), mas Agostinho confessa que ele “não tem a força, a segurança, o largo passo dominador”; “as suas doutrinas e grande parte dos seus
escritos são medularmente inconsistentes e inferiores como concepção e como
realização”. O «neogarretismo» “anémico e pedante da geração de 90”, “despido da coragem cívica de Garrett”, é a consequência esperada.
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
120
Na análise cronológica que vai fazendo da obra dos expoentes da literatura no caderno em análise, Agostinho repudia, em concreto,
– a “imitação de modelos” aliada ao “carácter de artificialidade e
de escola”;
– o tratamento de “futilidades” pelos poetas da corte a partir do século XV;
– o peso da erudição que alguns poetas exercem sobre as asas da criação poética;
– a inaptidão para a “discussão de problemas essenciais” (p. 13);
– a falta de “paixão”, de “pensamento profundamente sentido”, característica, em regra, dos escritores do século XVIII, que se deixaram enredar pelo
“classicismo estreito e artificial” (p. 14);
– a falta de “incitamento” “crítico”, “o gosto de análise” social, a “apressada cedência ao entusiasmo, ou lírico, ou sarcástico”, a “subordinação a um
gosto público inferior” (p. 19), bem como
– a falta de “imaginação intelectual” e de “humildade ante a vida”, ou de
“faculdades de análise e de síntese para lhes dar a base ideológica segura” (p. 21);
– a falta de consistente erudição em alguns autores que, se por um lado
conseguem “fustigar” no seu estilo vigoroso e “sonoro” a sociedade portuguesa,
não a compreendem, contudo, na sua totalidade (p. 22).
À frente de todo este enunciado de faltas, Agostinho dá particular relevo à obra de Eça.
2.1. De impotente a génio
A Eça de Queiroz (1845-1900), segundo Agostinho escreve no caderno sobre a Literatura Portuguesa, falta capacidade para destrinçar o essencial
do secundário. Igualmente, faltam “inteligência” e uma “forte personalidade
artística”. Tendo-se deixado “tentar” pelo romance de costumes (Prosas Bárbaras, parte de A Ilustre Casa de Ramires, O Mandarim, a Cidade e as Serras,
Vidas dos Santos), bem como pelo romance de costumes e de crítica social (O
Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia, Os Maias), Eça é atacado
por Agostinho por ter retratado apenas “uma camada muito superficial da sociedade portuguesa”. Esqueceu “o essencial”. Se lhe reconhece habilidade para
“surpreender o ridículo”, considera-o “impotente” perante “o mais profundo e
trágico”. E, não obstante se tenha revelado particularmente “cuidadoso”, “fino”
e “delicado” no domínio do estilo, Eça mancha com “falso conceito de elegância” grande parte da sua obra.
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Se neste caderno Agostinho não condescende, chamando a atenção para falhas que, quanto a si, se apresentam como inaceitáveis – a superficialidade,
na categorização da «aparência», em detrimento à tão cara, para Agostinho,
«essência» das coisas e da vida –, será sobretudo em Reflexão à Margem da
Literatura Portuguesa38 que, em 1957, Agostinho escalpeliza e fustiga, sem dó,
os romances queirozianos.
Embora reconheça que a sua obra ultrapassa a de qualquer autor pela “feitiçaria do estilo, pela rapidez da visão caricatural, pela arte de narrar”,
Agostinho não perdoa que tenha sido tão inábil para “entender Portugal”. Eça
é assim visto como incapaz de perceber quanto Portugal sofria, enquanto narrava “os saraus literários, as burguesas preguiçosas, os seus campos de cavalos, os seus médicos desocupados num país de doentes, os seus ministros sem
cultura, os seus burocratas... os seus padres que são funcionários públicos, a
devoção estreita, hipócrita e incompreensiva de suas beatas”.
Pode aceitar que a literatura de Eça seja “admirável”, mas Agostinho não
tolera que ele tenha visto Portugal apenas durante as suas “férias de cônsul”; que
lhe tenha sido mais fácil “fazer graça que análise”, que se mostre incapaz de apreender a essência do povo, e que tenha sobreposto “a construção do seu estilo” à defesa
dos princípios nacionais. Igualmente, para Agostinho, Eça “não entendeu Portugal na sua história”: se na Cidade ou na Ilustre Casa se encontram trechos “daquela
História de Portugal que pode interessar a literatos”, apenas porque dá quadros ou
apresenta relatos pitorescos, tal “não explica coisa alguma”: “Não há uma palavra
do povo, não há uma palavra de concelhos, uma palavra de burgueses, não há uma
palavra de economia, não há uma palavra de verdadeira política.”
Esta posição de Eça, esta relativização (ou anulação) do que é para Agostinho fundamental, parece tanto mais gravosa quanto é certo que se trata de “um
homem de educação universitária”, que teve contacto com todas as hierarquias
do poder. Competia-lhe ter contribuído para aquilo que é, segundo Agostinho,
primacial: a elevação do seu irmão em humanidade. E porque, finalmente, tal
como o não entendeu no seu passado ou no seu presente, “Eça não entendeu
Portugal no seu futuro”. Por tudo isto, não merece Eça de Queiroz, segundo a
óptica agostiniana, constar entre «os melhores» da literatura nacional.
Seis anos depois de tão contundentes afirmações, Agostinho da Silva dava
o braço a torcer e a mão à palmatória, ao prefaciar um livro de Alberto Machado
da Rosa sobre Eça.39 Justifica-se pela “nova aproximação da obra e da personalidade de Eça” com o facto de as suas incursões anteriores na literatura terem sido
“talvez pedagógicas”, “mais de acção do que de contemplação”, “mais de pregar
que de compreender” (pp. 266-267).
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
122
E aceita escrever o prefácio porque, conforme declara, “acha Machado
da Rosa que Eça e eu, se nos tivéssemos conhecido, teríamos sido amigos” e
o prefácio até seria uma oportunidade “de reparação”. Para “esclarecer e reparar”, Agostinho, conduzido pela mão de Rosa, vê então no escritor poveiro
um “franciscano que tem, por exemplo sobre a questão social, ideias que são
verdadeiramente portuguesas e não importadas”. Eça “descobriu”, guiado por
Dickens... “e pela poesia inglesa, em génio que nos é fraterno, que deu sonhos
de Quinto Império de Vieira a partidários de Cromwell, que talvez um dia,
pela charneira de Goa, [se] ligue[m] comunidades actuais ou em perspectiva
numa confederação que poderia ser o ponto de arranque de uma autêntica
civilização de terceiro mundo” (p. 269).
Mais adiante, confessa ainda Agostinho, “Eça ganhou a esse tempo dimensão ibérica”, no papel complexo de explorar os “sonhos da cultura peninsular ou, restringindo, da portuguesa” (p. 271).
Deixando-se de filosofias e passando àqueles “fundamentais pensamentos que são apenas sonho”, Agostinho concede que “talvez Eça nos esteja
insinuando que o único jeito de nos libertarmos da tragédia em que a Península vive é o de (...) anularmos a própria vida pela superação de todas as antinomias (...) pela concepção de (...) um momento, já não de tempo, em que se
equivalham a história do passado e a História do futuro” (p. 272).
Agostinho redimido, finalmente. E Eça pode prosseguir na vanguarda
inquestionável dos escritores portugueses mais internacionais, porque cada vez
mais o seu estilo é marca no presente e a sua obra estandarte para o futuro.
2.2. Os mortos esquecidos
Voltemos ao caderninho sobre Literatura Portuguesa. A partir da geração de 1890, perfila Agostinho os nomes dos que considera expoentes, na
literatura, de reacção às tendências internacionalistas e críticas da geração de
Antero, fazendo sobressair a obra de Raul Brandão (1876-1930) e Teixeira Gomes (1862-1942).
A terminar, Agostinho apenas refere que “modernamente” a literatura
“não parece com tendência a fixar-se em correntes nítidas”. Cada artista procura “acima de tudo exprimir-se”.
Da análise deste estudo conclui-se que o critério utilizado não abrangia escritores ainda vivos na altura. Contudo, estranha-se que Agostinho tenha evitado ilustres mortos da primeira metade do século como Sá-Carneiro
(1890-1916), Eugénio de Castro (1864-1944), Florbela Espanca (1894-1930),
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Venceslau de Morais (1854-1925), Camilo Pessanha (1867-1926), António Patrício (1878-1930) e até o polemista Raul Proença (1884-1941) da «Seara Nova», autor do Guia de Portugal, com quem Agostinho até colaborou.
Ao encerrar o opúsculo dizendo que “a tendência é para a não-fixação
de correntes nítidas”, Agostinho passa por cima do «modernismo», iniciado
no pós-guerra 14/18 por jovens que carretaram experiências do estrangeiro:
Fernando Pessoa, da África do Sul, Sá-Carneiro, Almada Negreiros e SantaRita Pintor, de Paris.
Ao esquecer sobretudo Fernando Pessoa (1888-1935), que já tinha sido
meio premiado pela Mensagem (1934) e já tinha o seu velho companheiro Luís
de Montalvor a publicar-lhe as Obras Completas, parece-nos que Agostinho
está a cometer um erro crasso. Será por desconhecimento da obra? Por ressabiamento e para não ceder aos académicos? Pela pressa de fazer as malas e
partir no seu auto-exílio? Apenas irá corrigir essa falta no Brasil, quinze anos
mais tarde, quando a Biblioteca Luso-Brasileira do Rio e Maria Aliete Galhoz
já preparavam a 1ª edição da Obra Poética.40 Mas de Fernando Pessoa falaremos mais adiante, para não perder agora o fio à meada.
3. As Biografias
As Biografias41 de Agostinho são relatos de vida de modelos éticos, retratos de homens iguais a nós (o santo e o herói, o poeta, o escritor ou o artista,
o cientista, o educador ou o político), que visam contribuir para a construção
pessoal dos leitores e mostram que, através do esforço e dos sacrifícios inerentes à auto-superação, é possível triunfar sobre qualquer impedimento ou
limitação. Por se tratar de “vidas” de “homens que se elevam acima da humanidade”, que “desprezam” tudo o que a gente vulgar tanto aprecia – a riqueza,
o conforto, o poder, a vida –, ao surpreendermos facetas autobiográficas do
autor, reparamos como, a final, ao optar-se pela contenda em nível espiritual,
social ou moral, é possível ultrapassar todas as limitações.
Sendo a base pedagógica nítida, o intuito axiológico42 é explícito: através das histórias de vida dos retratados, Agostinho, ao promover a cultura, divulga e induz experiências assentes em valores. Igualmente, o intuito político aparece de forma clara: ele tem como objectivo,
repete-o, “ [...] levantar os portugueses ao nível necessário para que a revolução cultural e política se firmasse e pudesse avançar”.
Se através do seu trabalho de divulgação cultural, desenvolvido no âmbito do Núcleo Pedagógico Antero de Quental, Agostinho da Silva se preoAgostinho e a Literatura Portuguesa
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cupou em promover o saber, a reflexão e, fundamentalmente, a cultura, com
o projecto das Biografias, verifica-se estar preocupado com o processo de tomada de consciência e de reflexão sobre os valores. Valores que impregnam a
totalidade das suas obras.
3.1. Mundo Novo
Se alguma marca existe na obra literária de Agostinho da Silva, pode,
sem dúvida, ser identificada com o desejo da construção de um Mundo Novo.
Mundo que resulta do labor do homem novo que já ascendeu ao patamar dos
que detêm “vontade que não verga, (...) amor que nada extingue”, que será capaz de conduzir qualquer “população miserável e triste a toda a beleza de uma
vida verdadeiramente humana”.43
O Mundo Novo baseia-se no progresso económico. É um mundo onde a doença foi debelada pelo progresso da ciência e “a cooperação garante a
assistência”; onde o progresso da cultura reside nas “escolas em que aprender
não é uma fonte de terrores”, “os mestres não são carrascos, mas companheiros” e as bibliotecas se abrem para que as pessoas a elas acedam, livremente,
para “adquirir a instrução que lhes falta”, para lhes “elevar a mentalidade e os
fazer sentir plenamente o júbilo da vida renovada”. A solidariedade reina, naturalmente, entre os habitantes, e “a cooperação leva-os à tolerância e, mais do
que à tolerância, ao amor do semelhante, à pronta cedência, às cautelas para
que nada possa vir a faltar-lhes”.44
Solidamente fundado em alicerces de tolerância, de cooperação e solidariedade, com paredes erguidas sobre “o apagamento das humilhações e da
miséria”, em que o amálgama utilizado na sua construção é o do Amor por
cada um e pelo Outro, cada país assim fundado é retratado pela pena de Agostinho como o “país messiânico”. E podemos acreditar que, finalmente, desta
forma, “... para sempre a paz estará assegurada sobre a Terra.”45
Eis descritas as bases daquele que, anos mais tarde, pessoanamente, Agostinho virá a denominar de Quinto Império. Afinal, a “utopia” ou “quimera utópica” agostiniana não é mais do que um sonho imaginado e com paixão alimentado
pelos seus biografados Zola, Pasteur, Lincoln ou Washington; um projecto levado
a cabo por Washington, Robert Owen, Franklin, Lamenais ou Leopardi; o sonho
desenhado de um mundo melhor magistralmente modelado por Miguel Ângelo
e Leonardo da Vinci e partilhado por Moisés e Francisco de Assis.
Sonho de um mundo melhor que Agostinho da Silva não se cansou
de propagandear... se bem que nem sempre tenha sido nem bem ouvido, nem
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bem entendido. Sonho de um mundo em que cada um possa, em liberdade,
simplesmente SER.46
4. Centros de cultura e universidades
Com as dificuldades inerentes a qualquer cidadão que se sentia seguido e observado pela polícia política, impedido de desenvolver, em liberdade, as tarefas da docência, Agostinho decide partir, voluntariamente, para
a América Latina.
No Brasil, onde aporta em Maio de 1944 – depois de uma breve estada
no Uruguai e Argentina –, transcorrerão 25 anos. E aí decorre um outro período (digamos que o terceiro, e mais produtivo) da sua vida.
Se na fase inicial, em Portugal, ganhou autonomia conceptual – expressa tanto no percurso académico como na já significativa produção literária –, na «era brasileira» a sua história é, segundo palavras de Pinharanda Gomes,47 a de um «bandeirante» da cultura lusíada. De facto, mais do que fundar
(ou ajudar a fundar) Universidades48 e Centros de Estudos e de Investigação,49
integrar comissões50 ou instituir centros de divulgação da língua e da cultura
portuguesas,51 Agostinho, diz que se “funda a si próprio”, acreditando que
“... só há uma missão e um destino para Portugal: o de fazer da variedade de culturas que hoje existem, e sem a eliminar, uma universal cultura
humana”.52
Acreditou e contagiou tantos com tal sonho que são cada vez mais os que
estão certos de que o “Quinto Império está em embrião nos meninos de todo
o mundo”. E que, “como base, [são necessários], sustento e liberdade”; “como
meio, o mundo”; “como fim, um sonho que se torne real; se aqui não der certo,
a outro ponto irei onde se fale português...”.53
5. Reforma nacional
Em Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa,54 obra apresentada no
Brasil pelo próprio, em 1956, e editada no ano seguinte, e partindo da apresentação da história da cultura portuguesa (parte integrante da Península Ibérica), Agostinho da Silva redige um tratado de História da Cultura e das Ideias
Ibéricas, onde traça as linhas redentoras para o crescente individualismo e
materialismo.
Ao caracterizar o povo português como detentor “daquela noção de
fraternidade sem a qual o cristianismo é mero vácuo”, retrata Portugal como
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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“o missionário da largueza do Reino de Deus”– fundamento provável, por um
lado, para o seu anticlericarismo e, por outro, para o seu gosto pela mestiçagem –, tentando o seu povo, no périplo pelo mundo, “espalhar pelo universo
um catolicismo tão católico que até o infiel nele coubesse” (p. 35). Desta forma
assume o intuito ecuménico das navegações e da disseminação cultural lusa.
A literatura portuguesa, tal como a vida portuguesa, “abrem-se”, neste enquadramento, “sob o signo do dever da acção e sob o signo da saudade” (p. 36). O
«dever da acção» aparece subordinado ao «signo da saudade». Já todos sabemos que
a História roda sobre si e que os ciclos se repetem. E se «acção», ao lado da «saudade»,
são apontadas como os motes orientadores vividos pelos portugueses, que outro
remédio não tiveram senão o de “embarcar nas barcas que mandou lavrar el-rei”
(p. 33), veremos como tornam a ser, séculos mais tarde, de novo, os mesmos dois
pressupostos a presidir os dois movimentos culturais de reestruturação nacional
que emergem no início do século XX, logo após a instauração da República.
Tanto a Renascença Portuguesa como a Seara Nova – de que Agostinho fez parte e
com os quais colabora – congregavam membros que “deram apoio de estrutura
aos que verdadeiramente se interessavam, num esforço colectivo, pela resolução
do caso português” (p. 78).
Com o impulso da Renascença, fundada e desenvolvida sob o signo da
Saudade, aliada à força da Seara que tomou como mote e bandeira o desígnio
da Acção, viu Portugal, ombro a ombro, trabalhar e batalhar a “melhor gente”,
gente “com capacidade literária”, que se não eximiu à pesquisa das necessidades do país, por forma a para ele traçarem um plano articulado de reforma.
Se a Renascença se debruçou sobre os aspectos poéticos, literários, histórico-intuitivos da Nação, vem a Seara a propor e desenvolver o necessário
plano de reforma nacional, que Agostinho decide empreender por sua conta
e risco, e não abandona, mesmo quando entra em ruptura e se distancia do
movimento e a situação sociopolítica se lhe revela particularmente adversa.
Para a Seara, havia que fazer, de imediato, uma reforma de Portugal,
reforma que se via assente em dois pilares: o da economia e o da educação.
Se quanto ao primeiro existiam poucas dúvidas de que o país seria capaz de
renascer,55 quanto ao segundo, o da educação, via-se como fundamental a
preparação de novas gerações de portugueses para o entendimento científico,
humano e filosófico dos problemas práticos, políticos e espirituais.56 Era, por
conseguinte, imperioso proceder à “reeducação” do povo português.
Neste plano alargado de regeneração e investimento no futuro, cabia o
envio de jovens universitários para o estrangeiro, por forma a que entrassem
em contacto com “os grandes centros culturais” e, no regresso, desmultiplicasRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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sem o apre(e)ndido em nível dos ensinos primário e secundário, pudessem
investir em escolas de “continuação” e contribuíssem para a disseminação da
educação, com missões pedagógicas, universidades populares e publicações. E
contribuiriam, desta forma, para “restituir ao país a mentalidade que há tanto
tempo se conservava desprezada”.57
Todas as vias apontadas pelo movimento, sem excepção, foram por
Agostinho percorridas. Faltaram, contudo, condições para que se consumassem os desígnios traçados, de instaurar, na terra (em Portugal e no mundo
lusófono), os princípios medievais da católica e universal fraternidade (p.
58) em nível da ciência, da economia e da religião, através do comunitarismo
agrário e da descentralização da autoridade.
No que parece estar na sequência das Glossas,58 inicialmente publicadas
na Seara Nova, disserta Agostinho, em Considerações,59 basicamente sobre questões éticas. Mais do que dialogar com o leitor, de novo se assume Agostinho como
o mestre socrático que tenta levar o leitor /interlocutor à descoberta das questões
candentes que o preocupam e nos preocupam, e poderão ser vistas como os pressupostos agostinianos para uma sociedade assente em princípios e valores.
Com qualidade literária que se equipara à riqueza do seu pensamento,
Agostinho da Silva reflecte, nas obras que redige, sobre as ligações entre as culturas portuguesa e brasileira. As temáticas abordadas são no âmbito da ética, da
educação e sobretudo sobre o sentido da história.
6. Ser criança no Quinto Império
“Sobre Fernando Pessoa
direi a coisa correcta
quem é mesmo criador
cria poema e poeta.”60
É só em 1959, em plena maturidade e já no Brasil, que Agostinho escreve Um Fernando Pessoa.61
De Fernando Pessoa (1888-1935), atrai-o a personalidade, o não ter
renunciado a ser os vários que era, sujeitando-se a uma vida de sacrifícios para
o provar. Fascina-o a coragem de gozar a liberdade de ser «outro» e de revelar
a dimensão do Quinto Império. Ao usar os diferentes heterónimos atingiu a
pluralidade, permanecendo ele próprio, Fernando Pessoa, imperscrutável.62
No retrato que traça de Pessoa63 sobressai alguém que, por ser “amado
dos deuses”, em vez de ter a missão aplainada, enfrenta escolhos. Porque os
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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deuses entendem que quem tem uma carreira “essencial aos destinos do mundo” não pode ter caminhos fáceis. Embora em plena liberdade os percorram.
Porque a liberdade é (tão) essencial para Pessoa (como para Agostinho),
escolhe (um e outro) nascer em Portugal, “porque tem a convicção de que Deus
não poderá abandonar o seu outro povo eleito” e de que o dia, «a Hora», há-de
surgir em que “Portugal virá, de novo, a construir o seu mundo de paz”. “(...)
Paz que se realiza antes de tudo nas almas”, por forma a que o “Reino de Deus
surja pela transformação interior do homem”(p. 91). O que mais fascina Agostinho, depois de se ter distanciado da escrita de Um Fernando Pessoa, é a consciência de que, afinal, há ainda tudo para descobrir acerca daquela dimensão
sobre a qual nada pode dizer:64 a dimensão de Pessoa, ele próprio.
Ao longo de cerca de duas dezenas de anos vai Pessoa escrevendo Mensagem, que Agostinho coloca a par de grandeza com as crónicas de Fernão
Lopes ou de D. João de Castro, com Os Lusíadas ou a História do Futuro.65 Se
“a espantosa e eloquente vitalidade” de Camões é inultrapassável, conseguiu
contudo, assim o defende Agostinho, pôr Pessoa mais claro do que Camões no
episódio da Ilha dos Amores “a concepção de um verdadeiro Império Português ou Quinto Império”, na sua “previsão do Futuro”.66
Em «Mensagem Um» Agostinho introduz Pessoa no quadro sociopolítico literário português. Em «Mensagem Dois», quando interpreta a Mensagem – e depois de ter reflectido e analisado o carácter, a obra e os sonhos expressos em vida por Pessoa e seus três heterónimos –, Agostinho apresenta, em
súmula, e “por amor do Futuro”,67 os elementos constituintes do seu idealizado “Portugal-Ideia”.68 Surge claramente o seu Quinto Império pessoanamente
inspirado, assente na crença de que a Humanidade se poderá regenerar, um
dia, quando for possível deixar Ser a criança que existe em cada um de nós.
Agostinho acredita que a Mensagem pessoana não está apenas designada para Portugal e para os portugueses: é, mais que isso, uma mensagem para
o mundo. Portugal, pela sua acção, nos bons e menos bons exemplos, poderá
ser o modelo, para os outros, daquilo que ele próprio não conseguiu:
• Povo de força criativa que, no acto puro de criar, ganha consciência
de que é possível ultrapassar as adversidades através da força da sua
vontade de se cumprir, quaisquer que sejam as condições e os impedimentos ao cumprimento de um projecto (do seu projecto).
• Povo sempre disponível, caracterizado pelo gosto de agir e que na
acção se diverte.
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O nosso mundo, que em agonia se parece arrastar, tem de ser salvo.
Pode ainda ser salvo. Depende unicamente de cada um de nós. Através da
reflexão e da mudança de mentalidades, será possível, pela acção construtiva,
dizer «É a hora!».
“É a hora de se deixarem da tolice dos impérios, que não servem para
nada”; “É a hora de estarem disponíveis para o mundo, que precisa de vocês.” De
que forma? A solução, aponta-a Agostinho, sistematicamente, indo agora inspirar-se na Mensagem de Pessoa, para melhor explicar:69
• «É a hora!» de repensar a educação, transformando filosofias, paradigmas de escolas e mentalidades. Mais do que nunca necessita a Humanidade de desenvolver qualidades infantis que conferem características distintivamente humanas: as escolas e a vida, reestruturadas,
desenvolverão “a imaginação em vez do saber”, “o jogo em vez do
trabalho”, “a totalidade em vez da separação”. Porque, queiramos ou
não, assim nos narram as múltiplas culturas. São estas, precisamente, as características dos “grandes criadores de ciência”, dos “grandes
artistas”, ou dos “grandes políticos”.70 Se o mundo é imprevisível, a
criança terá de ser preparada, através do conhecimento das coisas e
do desenvolvimento da sua criatividade e imaginação, para ser capaz
de dar resposta aos imprevistos.
• «É a hora» de repensar a economia do mundo em moldes comunitários, disciplinando o processo de produção e de distribuição. «É a
hora!» de repensar as formas de governo. A Humanidade necessita
de governos que sirvam à res publica e não apenas à res propria. As
pessoas e colectividades deverão voltar a ser ouvidas, nos seus sonhos
e anseios e, quando a sociedade estiver organizada, de novo, segundo
os bem-sucedidos preceitos medievais da fraternidade católica (ao
nível da ciência, da economia e da religião), do comunitarismo agrário71 e da descentralização de autoridade. A todos deve ser conferido
o direito de ser.72 Teremos, então, chegado ao momento em que seremos capazes de constituir o desejado desígnio de “ser católico, isto é,
fraternal e universal”.73
Ousemos, então, apostar no futuro, e apostar nas crianças. Não as deformando pela pedagogia, antes as deixando crescer e aprender em função
dos seus interesses e vocações. Crescendo num mundo organizado em torno
de uma nova consciência, a de que “todo o governo que não for de amar será
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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absurdo, toda a economia que não for de colher será absurda, toda a teologia
que não for de contemplar será absurda”.74 Dito por outras palavras, cabe-nos
a nós – a todos e a cada um – “oferecer ao mundo” um modelo de vida em que
se entrelacem, em perfeita harmonia, os fundamentais impulsos da humanidade: produzir beleza, amar os homens e louvar a Deus, ou seja, os impulsos
de “criar, de servir, de rezar”.75
E tendo Portugal lutado pelo seu “direito de ser irmão dos outros povos do mundo” que com ele comungam da mesma língua e dos mesmos valores, levando às últimas consequências a constituição de uma Comunidade
de Nações de Língua Portuguesa (p. 40) – proposta por Agostinho, que com o
seu entusiasmo e veemência contagiou pessoas que foram a alavanca da hoje
denominada CPLP –, poderemos, então, ter alguma possibilidade de conseguir, para as nossas sociedades, uma reforma radical. Seremos então capazes
de “varrer, de vez, da face do Universo, a miséria material da Humanidade”.76
7. Novelista e poeta “à solta”
Na senda do que defende enquanto ensaísta literário ou novelista,
Agostinho persegue, coerentemente, os mesmos princípios nas obras de cariz
filosófico, pedagógico ou especulativo. Reforça as mesmas crenças pela pena
do narrador, pelas falas das personagens ou pela explanação do pensamento e
das crenças de seus múltiplos e assumidos heterónimos.77
Nas novelas Herta, Teresinha e Joan,78 bem como em Macaco Prego,79
nas novelas Dona Rolinha e Ada Carlo,80 onde as marcas autobiográficas são
explícitas e em que o autor se desnuda nas suas apetências, gostos, tendências,
ideias, pressupostos, sonhos e desilusões, o elemento comum é, para além da
narração de histórias de mulheres (de mulheres-tipo ou de tipos de mulheres),
o claro intuito de apresentar em Portugal (de onde Mateus-Maria escreve a
«Nota Prévia» de apresentação das Novelas) a variante escrita brasileira do português aprendido enquanto menino. Tal é patente ao nível lexical e da sintaxe,
bem como da estilística, com recurso à rica imagética brasileira, sendo inegável
o recurso à coloquialidade onde se descobre, na fala de cada uma das personagens, o interlocutor das «Conversas Vadias»81 da televisão. De entre as múltiplas
hipóteses de escolha, para citação, selecciono apenas alguns exemplos:
“o que o mundo afinal precisa é de um homem que seja, a um só
tempo, a um só impulso e a uma só obra, artista, sábio e santo”;82
“no íntimo dos íntimos considero a Universidade como uma insti-
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131
tuição inteiramente ultrapassada”;83
“perfeito casamento: envelhecer juntos”.84
Se “Poesia” se define como “arte de compor ou escrever versos” ou “poder criativo”, é sobretudo, para Agostinho, como aparece definido no Dicionário Hoauiss,85 “o que desperta o sentimento do belo; aquilo que há de elevado
ou comovente nas pessoas ou nas coisas”.
Em Quadras Inéditas86 Agostinho da Silva apresenta quadras ao gosto
popular,87 de verso espontâneo, mas cheias de erudição e críticas à vida. Já em
Uns poemas de Agostinho88 se lê, em síntese, o pensamento de explícito pendor
filosófico. Essa obra trata das grandes questões de Deus, do Homem, das obrigações éticas para com o mundo:
“O mundo é só poema
em que Deus se transformou
Ele existe e não existe
Tal a pessoa que sou”
(Quadras Inéditas, p.81)
ou
“Ser poema não poeta
é que vejo como um alvo
se o não for para que vivo
mas se for me vivo e salvo”
(Uns Poemas..., p. 79)
ou ainda,
“Do que é certo desconfia
do duvidar te enamora
é tão bom não saber de Deus
quem de dentro a Deus adora”
(Quadras Inéditas, p. 35)
ou, antes de finalizar, o desafio:
“nem verdade nem mentira
uma coisa assim assim
e se queres saber mais
não mo perguntes a mim”
(Uns Poemas..., p. 88)
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
132
Será, contudo, na obra poética ainda inédita,89 que parece residir o seu
pensamento mais íntimo. Aí, pode-se entever o Agostinho-homem, apaixonado, que reflecte e discute acerca do Amor; descobre-se o poetar repassado
de considerações éticas, místicas e metafísicas, de cuidada elaboração, plena
de antinomias e exortações, o que lhe confere, nas palavras de Paulo Borges,
características de “poesia pensante e mística”.90 Do que pudemos analisar, partindo do espólio que recolhemos, fica-nos a certeza de que muito há ainda a
explorar em Agostinho-poeta.
Cultivar a deusa da Razão nunca foi muito do gosto de Agostinho, que
se assumiu contra o cartesianismo teórico preferindo a vida “à solta”, do quotidiano, onde as teorias se levam, coerentemente, à prática. Entende que a revolução dos seus dias – a revolução de todos os dias – é a de levar a “poesia para
todos”.91 Porque se a “poesia da criação” só apareceu no mundo depois daquela
época em que o homem primitivo dela não tinha qualquer necessidade, por ser
pouco mais que bicho, vivendo apenas para sobreviver, a partir do momento
em que inventou a alavanca e a roda, surgiu dentro dele o movimento interno,
de instinto, e intuição, mas também de poesia, que lhe conferiu estatuto de
criatura, não só “da” criação, mas igualmente “capaz de criação”. Foi então que
o Homem ganhou capacidade de ser “poeta à solta”.92
8. O mundo das essências
“Sou muito do comportamento africano, que integra o passado no
presente e, porque o mito reina, o alarga a todo o futuro possível.
E o facto de pensar africano me torna mais português, pois o ligo
igualmente a Platão”.93
Porque continuou sempre a acreditar que seria possível operar uma
reforma radical e contribuir para a reunificação dos povos de língua galaicoportuguesa, não desistiu Agostinho da Silva de concitar à sua volta todos os
que, como ele, acreditam que ainda é possível “oferecer ao mundo um modelo
de vida em que se entrelacem, em perfeita harmonia, os fundamentais impulsos da humanidade de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus:
de criar, de servir, de rezar”.94
Por isso nunca deixaria de – malgrado as óbvias oposições que sempre
à sua volta foi capaz de congregar – instigar e exortar todas as comunidades,
em particular as dos escritores, a quem chamou a atenção para dois factos que
se nos apresentam como basilares:
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“A literatura mais representativa do que Portugal foi (...) é a literatura dos navegadores, dos pilotos e dos exploradores que marcaram
a sua passagem por todos os mares e por todos os continentes do
globo e que depois, sem querer saber das normas de retórica europeia, vieram trazer [com] a sua narrativa, (...) a sua contribuição
para uma ciência que se não constituía sobre o sacrifício dos menos cultos, sobre uma segregação dos que mais sabiam, mas, pelo
contrário, se fazia tomando por base essencial o grupo que saía à
descoberta, sendo afinal o que escrevia como que apenas o relator, o
narrador das experiências do grupo. Ciência de irmãos para irmãos,
não ciência de senhores para escravos, nem ciência de superiores
para inferiores”.95
Sendo o problema português um problema do mundo, os escritores
que ainda têm a coragem de se debruçar sobre os problemas do povo, sobre as
suas necessidades, aspirações ou fragilidades, sabendo, em consciência, que tal
literatura pode correr o risco de vir a ser desvalorizada, “esses escritores”, diz
Agostinho,
“esses escritores estão apenas ecoando (...) o grande lamento universal dos pobres que ninguém liberta de sua pobreza, dos camponeses
para quem a terra foi madrasta, dos operários que são apenas «mãode-obra», das crianças que, quando escapam de morrer, vivem para penar, das mulheres que a prostituição espreita, dos velhos para
quem o hospital é o paraíso”.96
E desafia os escritores actuais a quem atribui particulares responsabilidades para que, quais Camões, se não eximam a sonhar e a propalar “não
o mundo das existências”, “mas o mundo das essências”, um mundo “sempre
de futuro e nunca de passado”;97 ou, qual Vieira, sejam capazes de propalar “o
Reino da irmandade, da compreensão, da cooperação” que, se estendido ao
universo, seria a certeza de que, algum dia, poderíamos aceder “ao Reino de
Deus”. Assim sendo, “Portugal estaria em qualquer parte do mundo em que
estivesse um português pensando à maneira portuguesa”.98
Lisboa, Novembro de 2006
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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Anexo I
Cadernos de Agostinho da Silva
À Volta do Mundo, Colecção de Textos para a Mocidade, Lisboa, Seara
Nova.
– 1938 - A vida dos Esquimaus; Piccard na estratosfera; Os castores; Vida
e morte de Sócrates.
– 1939-A última viagem de Scott; As aranhas.
À Volta do Mundo, Textos para a Juventude, Lisboa, s/d.
– (1943?) 1ª Série - Vida das enguias; Como se faz um túnel; História dos
comboios; Aventuras com tubarões; O sábio Confúcio; Viagem à Lua.
– (1943) 2ª Série - Os primeiros aviões.
Títulos anunciados, mas não publicados:
da 2ª Série - Como se faz um jornal; Maravilhas das vespas; Um vôo sobre
o gelo; Os ninhos das aves; A Odisseia.
3ª Série - Os peles-vermelhas; D. Quixote; Como se faz uma ponte; Os
pinguins; Experiências de química; Os faróis.
4ª Série: História dos vapores; Os mamutes gelados; Como se faz uma
estrada; Barracas de campo; Histórias de cães; Hiawatha.
Iniciação, Cadernos de Informação Cultural, Edição do Autor, Lisboa.
–1940.1ª Série – A primeira volta ao mundo;99 Breve história do linho;100
Edison;101 A vida e arte de Goya;102 Uma ascensão nos Himalaias;103 O pensamento de Epicuro.
2ª Série. O planeta Marte; A vida de Lesseps;104 Por três ovos de pin105
guim; A arte pré-histórica;106 O budismo;107 História dos Estados Unidos108.
3ª Série. O petróleo;109 A vida e a arte de Van Gogh;110 O Sahará; A vida
de Pierre Curie;111 As escolas de Winnetka;112 História da Holanda113. –1941. 4ª Série. A vida e a arte de Ticiano;114 O gás;115 As viagens de Co116
lombo; O estoicismo;117 Mozart; O mundo dos micróbios.
5ª Série. A vida de Masaryk;118 O ferro; História do Egipto antigo; A escultura grega.
–1942. 5ª Série. As viagens de Stanley;119 A Reforma120.
6ª Série. O transformismo; A vida de Florence Nightingale;121
O islamismo;122 As abelhas; A vida e a arte de Cellini; Literatura latina.
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7ª Série. A vida de Nansen; O plano Dalton; As cooperativas; O sol; Goethe;123 O cristianismo124.
8ª Série. Beethoven; Literatura Russa; Filosofia pré-socrática; Alexandre
Herculano;125 A hulha; A vida e a arte de Courbet.
9ª Série. Alimentação humana.
–1942. 9ª Série. Sócrates; A vida e a arte de Rembrandt; Apicultura; História do Japão.
–1943. 9ª Série. As viagens de Livingstone126.
10ªSérie A vida de Vivekananda; As estrelas; História do veleiro; O sistema nervoso;
–1944. 9ª Série. Literatura portuguesa;127 Os motores de explosão.
11ªSérie.William Morris.
–1946.11ª Série. Platão.
–1947.11ª Série. Arte egípcia; Bach.
Antologia, Introdução aos grandes autores. Lisboa, Edição do Autor:
Agostinho da Silva. 1941-1947:
– 1941.1ª Série. Voltaire, Diálogos filosóficos; Arriano, Manual de Epicteto; Tolstoi, A terra de que precisa um homem; Santa Teresa, Fundação de S.
José; Damião de Góis, Descobrimentos dos Portugueses; Cervantes, D. Quixote
e Sancho.
2ª Série. Ruskin, Vós, os que julgais a terra; Ganivet, A arte
espanhola;Tchekov, Um caso médico; Buffon, História natural; Fernão Lopes, A
revolução de Lisboa; Dostoievsky, O grande inquisidor.
3ª Série. Erasmo, Colóquios; Lamarck, Filosofia zoológica; Mérimée,
Mateo Falcone.
– 1942. Heródoto, Viagem ao Egipto; Flaubert, Cartago; Frei Luís de
Sousa, Austeridade do Arcebispo.
4ª Série. Harvey, A circulação do sangue; Lichnowsky, Portugal em 1842;
Guizot, A civilização feudal; Diogo do Couto, Negócios da Índia; Maupassant,
O adereço Mateo Alemán, O pai de Guzmán.
5ª Série. Condorcet, Progressos do espírito humano; Lermontov, Taman;
Marco Aurélio, Pensamentos; Faraday, Experiências de electricidade; Stendhal,
Waterloo; Azurara, Empresas do Infante.
6ª Série. Fénelon, Diálogos dos mortos.
– 1943. Bacon, Ensaios; Andreiev, Silêncio; Maomet, Suratas de Meca;
Walt Whitman, Fôlhas de erva; Petrónio, Banquete de Trimalcião.
– (s/d). 7ª Série. Victor Hugo, Gauvain e Cimourdain ; Edgar Poe, DesAgostinho e a Literatura Portuguesa
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136
cida ao Maelstroem; Montaigne, Do arrependimento; Franklin, Autobiografia;
Platão, Teoria do Amor; Dickens, Copperfield na escola.
– (s/d). 8ª Série. Joaquin Costa, Ideário espanhol; Swift, No país dos
cavalos; Claude Bernard, Observação e experiência; Larra, Quadros e costumes;
More, Utopia; Molière, Tartufo.
– 1946. 9ª Série. Rodó, Juventude.
– 1947. Lucrécio, Da natureza; Emerson, Confiança.
Anexo II
Biografias de Agostinho da Silva
In Textos Pedagógicos I. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges,
selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa, Âncora Editora, 2000; Lisboa, Círculo de Leitores, 2002:
– Miguel de Eyquem, Senhor de Montaigne, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933.
– de João Henrique Pestalozzi em: A vida de Pestalozzi. Lisboa, Cadernos Seara Nova, 1938.
– de Maria Montessori, in O Método Montessori, Lisboa, Inquérito,
1939.
– de Carleton Washburne in As Escolas de Winnetka. « ‘Iniciação’, Cadernos de Informação Cultural», Edição do Autor, Lisboa, 3ª Série, 1940.
– de Sanderson em: Sanderson e a escola de Oundle, Lisboa, Inquérito,
1941.
In Textos Pedagógicos II. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa, Âncora Editora, 2000; Lisboa, Círculo de Leitores, 2002:
– Baden-Powell, pedagogia e personalidade. «Bandeirantes», revista para Chefes, 6º número de 1961.
In Biografias I. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa,
Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:
– A Vida de Francisco de Assis. Lisboa, Seara Nova, 1938.
– Vida de Zola. Ed. do Autor, 1942.
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137
– Vida de Pasteur. Famalicão, ed. do Autor, s/d.
– Vida de Lincoln. Lisboa, Seara Nova, 1938.
– Vida de Moisés. Lisboa, Seara Nova, 1938.
In Biografias II. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa,
Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:
– A Vida de Washington. Lisboa, Inquérito, s/d.
– Vida de Robert Owen. Edição do Autor, 1941.
– Vida de Franklin. Edição do Autor, 1942.
– Vida de Miguel Ângelo. Edição do Autor, 1942.
In Biografias III. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:
– Vida de Lamenais. Famalicão, Edição do Autor, 1943.
– Vida de Leopardi. Edição do Autor, 1944.
– Vida de Leonardo da Vinci. Edição do Autor, s/d.
– Vida de William Penn. Edição do Autor, 1946.
In À Volta do Mundo, Colecção de Textos para a Mocidade, Lisboa, Seara
Nova, 1938-1939:
– Piccard na estratosfera, 1938.
– Vida e morte de Sócrates, 1938.
– A última viagem de Scott, 1939.
In À Volta do Mundo, Textos para a Juventude, Edição de Autor, Lisboa,
1943?
– O sábio Confúcio, 1943 (?)
In Iniciação, Cadernos de Informação Cultural, Edição do Autor, Lisboa,
1940-1947
– Biografias de Edison, Goya, Epicuro, Lesseps, Van Gogh, Pierre Curie,
Carleton Washburne, Ticiano, Mozart, Masaryk, Stanley, Florence Nightingale, Cellini, Nansen, Ellen Parkhurst, Goethe, Beethoven, Alexandre Herculano,
Courbet, Sócrates, Rembrandt, Livingstone, Vivekananda, William Morris,
Platão e Bach,
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
138
Na imprensa:
– Biografia de Miss Helen Parkhurst, in O Diabo, nº 250, 08-07-1939
sob o título “O Plano de Dalton”.
– Biografia de Grundtvig, intitulada “As Altas Escolas Populares da Dinamarca”, in: O Diabo, nº 268, 11-09-1939.
– Biografia de “Demóstenes”, in O Diabo, nº 270, 25-11-1939.
– Biografia de Hermann Lietz, intitulada “As Escolas de Lietz”, in O
Diabo, nº 272, 09-12-1939.
– Biografia de Ivan Illich, intitulada “Ivan Illich – Os Males” e “Ivan
Illich – Os Remédios”, in Vida Mundial, 19-05-1972 ; idem, 26-05-1972.
– Biografia de Michael Duane em “A Escola de Risinghill – 1. Quem
propõe” e “A Escola de Risinghill – 2. Quem Supõe”, idem, ibidem, 07-07-1972
e 14-07-1972.
– Biografia de Comenius, em “Os precursores – Komensky”, idem, 0408-1972.
– Biografia de Sérgio, em “Educadores portugueses – António Sérgio”,
idem, 18-08-1972.
– Apontamento biográfico sobre Casais Monteiro, idem, 22-09-1972.
Notas
1 Mencionemos apenas alguns títulos de artigos saídos à estampa na época de estudante da Faculdade de Letras
e antes do fim da sua licenciatura, de teor polemizante e provocatório, contudo de irrepreensível qualidade, que
chamaram a atenção pública: Acção Académica, 22 de Julho de 1926, p. 3; “A Política do Porto Académico”. Porto
Académico, 15 de Março de 1927, pp.1-2; “O Pensamento Académico”. A Voz, 24 de Maio de 1927, p.3; “O Pensamento da Nova Geração”. Idéa Nacional, 25 de Maio de 1927. p.1; “Carta aos Velhos Latinistas”. Seara Nova, 18 de
Outubro de 1928, pp. 246-247, a par de outros que espantam o mundo académico pela juventude do seu autor:
“O Futurismo I - O Mal” e “O Futurismo II - O Remédio”. Acção Académica, nº? (1925/26(?); as famosas “Nota
Filológica sobre o verbo “trabalhar” sobre a palavra “doido”, sobre a palavra “nojo”, respectivamente, A Águia, nos
49-54 e 55-57, Porto, 3ª série, 1927; “Satura”, Ibid., nos 60 (Porto, Out-Dez 1927), ou jul-out. para a “Satura II”;
“Sobre algumas páginas de Spengler”, Diónysos, nos 1-2, 4ª Série, Porto, 1928.
2 Tese sobre Catulo, que mereceu a nota máxima. Cf. Catulo, Poesias. Texto estabelecido e traduzido por Agostinho da Silva. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933. Este trabalho dará origem a acérrima polémica com
Alfredo Pimenta. Cf, sobre o assunto, a série de cartas com ele trocadas na Seara Nova, in: «Carta(s) ao Ex.mo
Senhor Doutor Alfredo Pimenta», in: AGOSTINHO DA SILVA, Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa, Âncora
Editora, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 271-294. Critério de edição e estudo introdutório de Paulo Alexandre
Esteves Borges. Cf., igualmente, a propósito, as suas memórias sobre esta questão em: Vida Conversável, Brasília,
Universidade de Brasília, 1994, e Assírio & Alvim, 2ª edição, 1998, pp.22-23.
3 SILVA, Agostinho da, Estudos sobre Cultura Clássica, op. cit. pp. 45-110.
4 Contrapondo as teses de Spengler, que defende a ausência de consciência temporal e histórica nos gregos e
romanos, em A Religião Grega (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 130), defende Agostinho que “dos
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gregos veio tudo o que hoje faz belo o catolicismo”, deles provindo “a saudade de reencontrar essa Grécia divina
onde se adoravam, sobre todos os deuses, a Beleza e a Vida”. Anos mais tarde, já no Brasil – onde traduz, por
volta de 1946/47, as peças de Plauto e Terêncio Anfitrião, Os Cativos, Os Adelfos, Aululária, O Gorgulho, O Eunuco.
(Clássicos de Ouro, Edições de Ouro, Brasil, s/d.) – demonstra, em «A Comédia Latina» (Estudos sobre Cultura
Clássica, op. cit. pp.301-318), prefácio às traduções, que está já consciente dos limites das culturas das civilizações
clássicas, interpretando a tradição mítica da Idade do Ouro e transpondo-a, ao longo da vida, para a sua teoria
do culto do Espírito Santo.
5 «Glossas I, II e III», Lisboa, Seara Nova, 1934, publicada em edição aumentada em «Glossas», Famalicão, edição
do Autor, 1945, constante de AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios Filosóficos I, op. cit.
6 Esta obra terá continuidade em Considerações, datada de 1944, publicada já aquando da sua estada no
Brasil.
7 Modelo igualmente seguido por Agostinho tanto nas aulas peripatéticas que deu, nos anos 40, e são relembradas por alunos como Mário Soares ou Lagoa Henriques, como nas Palestras Radiofónicas para jovens que
profere na Rádio Hertz em 1939, integradas nas actividades do «Núcleo Antero de Quental», ou na Biografia de
«Baden Powell, Pedagogia e personalidade» (Textos Pedagógicos II, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores,
2000. Coordenação geral de Paulo Alexandre Esteves Borges. Selecção, estudo introdutório e organização de
Helena Maria Briosa e Mota), entre tantos outros exemplos.
8 Quando digo “mais um heterónimo”, refiro-o em consciência, dado ser marcante, desde os seus jovens anos, o
pessoano “ser tudo e de todas as maneiras”, assumido em sujeitos vários que, fora de uma única entidade, transcendem o sujeito e se manifestam, lúdica e gostosamente, em várias personalidades. E será também desta forma,
conscientemente assumida, que Agostinho poderá ser «poeta à solta», nos múltiplos heterónimos que cria.
9 Dec. - Lei nº 1.901 de 1935.
10 Processo PVDE- PIDE/DGS SR 1161, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
11 Estudos sobre Frei Luís de Leão, São João da Cruz e Santa Teresa. “...mais que todos, Santa Teresa.”. Entrevista
do ICALP ao Prof. Agostinho da Silva. In: Dispersos, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Organização e introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges. 1ª edição, 1988, p. 84.
12 CORTESÃO, Luísa , in: Agostinho da Silva, um pensamento vivo, Documentário de João Rodrigo Mattos em
formato DVD, Alfândega Filmes, Porto, 2006 e, no mesmo formato, editado pela RTP, O Público, Alfândega Filmes
e Associação Agostinho da Silva. Edição Especial para o Jornal O Público, 2006.
13 Sobre os objectivos e o trabalho desenvolvido por Agostinho da Silva em Portugal, no âmbito da divulgação
cultural em geral e do «Núcleo Pedagógico Antero de Quental», em concreto, cf. BRIOSA E MOTA, Helena Maria, «Introdução» a Textos Pedagógicos I, Lisboa, Âncora Editora, 2000, pp. 13-36.
14 O último censo da população portuguesa realizado na década de 30 revela que, no seio dos 6.825.883 habitantes, existiam 4.627.988 analfabetos. Sobre esta realidade preocupante pronuncia-se a Câmara Corporativa,
declarando que “o problema apresenta-se com carácter de acuidade e exige não apenas a acção urgente dos
poderes públicos, mas o interesse de toda a Nação. Encontramo-nos em presença – segundo as estatísticas – de
750.000 crianças em idade escolar, de que só poucas mais de 200.000 sabem ler; de 480.000 crianças em condições de pré-escolaridade, a que não podemos oferecer a necessária assistência educativa e infantil; de considerável percentagem de iletrados adolescentes e adultos, que não só a deficiência da rede escolar, mas determinadas
circunstâncias de ordem económica e social – mormente no que respeita às populações rurais – têm excluído dos
benefícios da educação, e dos quais cerca de 800.000 ainda estão em idade de aprender”. Cf. «Parecer» da Câmara
Corporativa publicado no jornal Sol Nascente, nº 39, 15 de Outubro de 1939, p. 4.
15 Nascido com o propósito de “dar conteúdo renovador e profundo à revolução republicana “ (Jaime Cortesão), a partir das reuniões de 1911 o Movimento da Renascença Portuguesa passa a ter como desígnio “promover
a maior cultura do povo português por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da
escola, etc.” ou, no sentir de Pascoaes, um dos seus principais mentores, “revelar a alma lusitana, integrá-la nas suas
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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qualidades essenciais e originárias” (carta a Unamumo). Tendo como porta-voz as revistas A Águia e Vida Portuguesa, os seus mais brilhantes colaboradores (Pascoaes, Cortesão, Leonardo Coimbra, Raul Proença, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, entre muitos) proferem lições na Universidade Popular, dinamizando a ideia de criar, no
Porto, a Faculdade de Letras. A partir de 1912 começam as tensões e desacordos internos. Se Pessoa e Sá-Carneiro
se afastam, em sinal de desacordo com a linha saudosista, decididos a actualizar a poesia e a colocá-la em consonância com o que se fazia além-fronteiras, no plano ideológico o racionalismo considerado “realista” de António
Sérgio e Raul Proença entra em choque e conflito com o idealismo poético e tradicionalista de Pascoes. E em Outubro de 1912, no nº 10 de A Águia, a reacção de Pascoaes surge, lamentando que “alguns novos, dotados das mais
belas faculdades de inteligência e coração” discordem do Saudosismo, doutrina que, sublinha, “não é inimiga dos
progressos realizados lá fora”. Entre 1913 e o ano seguinte, na mesma revista (nos 22-31) a polémica entre Sérgio e
Pascoaes atinge o rubro com a defesa, por um (Pascoaes), da mitogenia, da exaltação da alma, da fé messiânica, do
neo-romantismo, e por outro (Sérgio), bem mais aguerrido na forma e na argumentação, a defesa e valorização
da mente prática, do económico, do progresso técnico, da europeização. A publicação de A Águia estende-se até
1932, sob o pontificado de Pascoaes e Leonardo Coimbra, tendo o ideário da Renascença continuidade na revista
Portucale (1928). A partir de 1980 o ideário é retomado com o ressurgimento da «Nova Renascença». Cf. SANTOS,
Alfredo Ribeiro, A Renascença Portuguesa. Um movimento cultural portuense. Porto, 1990.
16 A 15 de Outubro de 1921 a revista Seara Nova nasce como “revista de doutrina e crítica” pela mão de um
considerável grupo de republicanos inconformados com a instabilidade político-social da I República (Aquilino
Ribeiro, Augusto Casimiro, Câmara Reis, Faria de Vasconcelos, José de Azeredo Perdigão, Raul Brandão e Raul
Proença). Democratas e liberais, os fundadores preconizavam o papel das elites no debate de ideias, condenando
a falta de cidadania dos intelectuais, cegos aos problemas nacionais. Dissidentes da Renascença e colaboradores da
Águia (Augusto Casimiro, Jaime Cortesão) juntam-se ao grupo redactorial, contribuindo para as notáveis páginas
de polémica e de pedagogia política. A revista ultrapassa o limite temporal do 25 de Abril de 1974, altura em que é
dominada pelo PCP (Partido Comunista Português). Passa depois a publicar irregularmente, até que se extingue.
Cf. PIRES, Daniel, Dicionário da Imprensa Periódica Literária do séc. XX (1941-1974), vol. II, 2 t., Lisboa, 2000.
17 Como exemplo desta afirmação podemos citar as polémicas em que se envolveu com o Padre Raul Machado,
Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; ou com a Academia, na pessoa de Alfredo Pimenta,
ou a que travou acerca do folheto Cristianismo e do caderno «A Doutrina Cristã» (Jornais O Almonda, Sol Nascente, Acção), que culmina com um pedido expresso na imprensa, subscrito por alguns articulistas, de excomunhão.
18 Sobre o trabalho de divulgação cultural empreendido por Agostinho nesta época, cf. BRIOSA e MOTA, Helena Maria, “Critério de Organização da Série «Textos Pedagógicos», in: Agostinho da Silva, Textos Pedagógicos I,
Lisboa, Âncora Editora, 2000, pp. 7 a 12.
19 Cf. Anexo I.
20 Cf. Anexo II.
21 Sobre a fundação, a acção e os objectivos do Núcleo Pedagógico de Antero de Quental, cf. a “Introdução” a
Textos Pedagógicos I, de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, pp. 13 a 22. Organização de Helena Maria
Briosa e Mota.
22 «Literatura Infantil», Ideia nacional, 7 de Junho de 1927, in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e
Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 167-169. Organização e
estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.
23 Cf. Listagem no final do presente trabalho.
24 Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86 de 14 de Outubro, doravante designada de LBSE.
25 Considerando a extensão dos títulos e a tradução de muitos cadernos em esperanto, listá-los-emos no final
deste trabalho.
26 Esta foi uma das épocas em que Agostinho da Silva mais precariamente viveu: irradiado da função pública
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e a seguir do ensino particular, vivendo de explicações, poderia ter retirado dessas edições algum fundo de subsistência. Analisando, contudo, não apenas a sua correspondência, bem como o processo da PIDE, vemos que
grande parte do pouco dinheiro que lhe era pago pela venda dos Cadernos ia, em regra, parar aos bolsos dos
agentes que lhe espionavam a correspondência.
27 Cf. texto de apresentação dos Cadernos.
28 Vitória para a Quinta Classe, 1970/71 (?), Dispersos, op. cit., p. 464.
29 Tradutor – mas também, e sobretudo, recriador – da poesia dos clássicos gregos e latinos como Catulo, Platão, Aristófanes, Horácio, Virgílio, Lucrécio, Salústio (Obras Completas, 1974), Sófocles, Tácito (Obras Completas,
1974), ou Voltaire, Montaigne, Bacon, Rilke, Silesius e Cavafis, ou ainda Lao Tsé e Libai, entre tantos, Agostinho
dedica-se, igualmente, à crítica literária (Stendhal e Mérimée).
30 1$00 é o preço avulso, 5$50 a série de seis Cadernos, incluindo portes e despesas de cobrança.
31 Considerando a extensão dos títulos e a tradução de muitos Cadernos em esperanto, listá-los-emos no final
deste trabalho.
32 Todas estas obras estão compiladas em Textos e Ensaios Filosóficos I.
33 SILVA, Agostinho da, Literatura Portuguesa. «Iniciação, Cadernos de Informação Cultural», 10ª Série, 1944.
Lisboa, Edição do Autor.
34 “...antes de tudo se é cidadão e só depois erudito professor” (p.192). “... os intelectuais devem fazer política,
mas intelectualmente; eles devem constituir aquela força de crítica vigilante que todos os governos temem...
(p.193); Intervir na política é defender a dignidade pessoal no que ela tem de mais sagrado e inatingível...é
lavrar o protesto mais caloroso e mais veemente contra certos atropelos de liberdade de expressão, gritar bem
alto a vontade de ser homem e não coisa que se maneja segundo o capricho dos que têm força” (p. 195). SILVA,
Agostinho da, «Actividade política dos intelectuais portugueses», in Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa
e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, p. 192 Organização e estudo introdutório
de Paulo Alexandre Esteves Borges.
35 “A literatura moderna [tem] de esclarecer, de educar, de elevar esse mesmo povo a que [vai] buscar fundamentos; dev[e] ser, numa palavra, uma literatura pedagógica, sobretudo pelo romance e pelo drama; [...] uma
literatura para o povo, uma literatura forte, substancial, tonificante; situações, linguagem, tudo devia ser simples
para o povo entender e para que o povo gostasse; por intermédio dele seria possível levantar os portugueses ao
nível necessário para que a revolução cultural e política se firmasse e pudesse avançar.” in Prefácio de Agostinho
da Silva a GARRETT, Almeida, Doutrinas de Estética Literária, Lisboa, Gráfica Lisbonense, 1938, p. 20.
36 «Quinze Princípios Portugueses» Espiral, nos 8-9, Inverso de 1965, in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 217-229.
Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.
37 GARRETT, Almeida, Doutrinas de Estética Literária, Seara Nova, Lisboa, 1938. Prefácio de Agostinho da Silva.
in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000,
e Círculo de Leitores, 2002, pp. 217-229. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.
38 SILVA, Agostinho da, «Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa». Brasil, Ministério da Educação e Cultura, 1957. in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora
Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 75-77. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre
Esteves Borges.
39 SILVA, Agostinho da. Prefácio a «Eça, discípulo de Machado?», de Alberto Machado da Rosa, Brasil, Biblioteca do Fundo Universal de Cultura, 1963; Lisboa, Editorial Presença, 1964; 1979. in Ensaios sobre Cultura e
Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 265-273. Organização e
estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.
40 PESSOA, Fernando, Obras Completas, Rio de Janeiro, Abril 1957-1960.
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41 Para além das Biografias publicadas nos Cadernos «Iniciação», cf. SILVA, A., Biografias I, II, III, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003. Coordenação geral de Paulo Alexandre Esteves Borges. Selecção, estudo
introdutório e organização de Helena Maria Briosa e Mota. Haverá, para os interessados no seu estudo, que
consultar a listagem no final do presente trabalho.
42 Utilizamos o termo “Axiologia” e seus derivados como sinónimo de “teoria ou filosofia pura do valor e das
atitudes e posições valorativas”, assumindo para o efeito a concepção e a teorização de PATRÍCIO, M., expressa
em Lições de Axiologia Educacional, Lisboa, Universidade Aberta, 1993, p. 19.
43 Agostinho da Silva, Vida de Zola, Lisboa, Seara Nova, 1939, p.107.
44 idem, p.108.
45 idem, p.112.
46 « O que aconselho à nossa juventude (...) é que queiram ser aquilo que são, sem dizer que coisa é que são e
que até se o não souberem, que vão sendo, que vão fazendo (tendo?) as suas experiências, pois estas pelo menos
lhes poderão mostrar aquilo que não são. E façam o favor de se não deixar ter pelos outros, e façam o favor de se
não ter a si próprios! Três coisas com o verbo ter, que é o nosso grande inimigo!. Agostinho da Silva em entrevista inédita a Francisco da Palma Dias, realizada na Primavera de 1987. in Agostinho, AAVV. Academia Lusíada
de Ciências, Letras e Artes, São Paulo. Coordenação de Rodrigo Leal Rodrigues. Editora Green Forest do Brasil,
2000, p. 166.
47 GOMES, Pinharanda, Nótula referente a SILVA (Agostinho da). in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura.
Edição Século XXI. Editorial Verbo, Lisboa – São Paulo, 1999, pp. 1156-7.
48 Universidade Federal da Paraíba (1951/52); Universidade de Santa Catarina (1955); Universidade de Goiás e
Universidade de Brasília (1961); (Silva, 1988, 1.ed. pp. 23-24).
49 Sociedade de Ciências Naturais da Paraíba (1953); Departamento de Pesquisas Históricas do Itamarati (1954);
Sociedade de Cultura Francesa, Sociedade de Cultura Alemã, Instituto de Cultura Norte-Americana, Casa de Cultura, todos em Santa Catarina (1957); Centro de Pesquisa Oceanográfica de Santa Catarina (1958); Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia (1959); Núcleo de Pesquisas «Casa Reitor Edgard Santos» na região
do Recôncavo Baiano (1966); Centro Internacional de Estudos Superiores de Rivera e Livramento (1966); Estudos
Gerais Livres (1969), com o Professor Manuel Viegas Guerreiro, em Lisboa; Centro de Estudos da América Latina
do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Técnica de Lisboa; Gabinete de Apoio do Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa do Ministério da Educação (1983).
50 Comissão de Estudos Ibéricos (Mato Grosso); Comissão de Estudos Europeus (Paraná); Comissão
Nacional de Luta contra o Analfabetismo (Lisboa).
51 Centro de Estudos Filológicos da Universidade de Lisboa (1931), actualmente «Centro de Lingüística» da
Universidade Clássica de Lisboa; Centro de Estudos Filológicos (Univ. de Santa Catarina) 1955; Núcleo de Estudos
Portugueses (Univ. de Santa Catarina) 1955; Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia (1959);
Centro de Estudos Brasileiros do Lobito, Angola (1960); Centro de Estudos Brasileiros em Lourenço Marques, Moçambique (1960); Centro de Estudos Brasileiros em Tóquio, Japão (1960); Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Goiás (1961); Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Rio Grande do Sul
(1961); Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília (1962); Comissão de Estudos Ibéricos
da Universidade de Mato Grosso; Centro de Estudos Portugueses da Universidade do Paraná; Centro de Estudos
Brasileiros da Universidade de Sophia, Tóquio, Japão (1963); Centro de Estudos Brasileiros em Adis-Abeba (1966)
entre outras iniciativas (SILVA, Agostinho da, 1988, 1a.ed. pp. 23-24 e pesquisa biográfica empreendida pela
autora do presente estudo).
52 SILVA, Agostinho da, “Desconhecidos, quase”. Vida Mundial, 12 de Novembro de 1971, p. 27.
53 SILVA, Agostinho da, “Barca D’Alva, Educação do Quinto Império”, ibidem, p. 484.
54 Op. cit. Cf. Nota 38.
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55 A terra era produtiva, os caudais de água forneciam irrigação, energia e riqueza, a indústria floresceria desde
que a economia o propiciasse e justiça social existisse. Faltava ainda, quanto a Agostinho, que se implementasse
uma efectiva reforma agrária “para sanar os dois grandes males, o do minifúndio do Norte e o do latifúndio do
Sul.” SILVA, Agostinho da, Reflexão..., p 80.
56 Idem, p. 79.
57 Idem, ibidem, p.80.
58 «Glossas», Famalicão, edição do Autor, 1945 (reedição aumentada de Glossas I, II e III, Lisboa, Seara Nova,
1934), in AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios Filosóficos I, op. cit., pp. 31-66.
59 «Considerações», Famalicão, edição do Autor, 1944 constante de AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios
Filosóficos I, op. cit., pp.83-121.
60 SILVA, Agostinho da, Do Agostinho em Torno do Pessoa, 1990, Lisboa, Ulmeiro, p.7.
61 SILVA, Agostinho da, «Um Fernando Pessoa». Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1959, in Ensaios
sobre Cultura e Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 89-117.
Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.
62 Entrevista a Lurdes Féria, Diário de Lisboa, 19 de Abril de 1986. in Dispersos, op. cit., p. 113.
63 Este poderia facilmente ser entendido como mais um dos retratos de Agostinho, pela analogia que faz com o
exemplo do “amado” que, para se auto-elevar, tem de ultrapassar todas as dificuldades que a vida lhe apresenta.
64 Porque se todos podemos dizer muito de cada um dos seus heterónimos (em concreto, sobre Ricardo Reis,
Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos, que Agostinho estuda em capítulo próprio), de Pessoa, ele-próprio, “nada
posso dizer, nem sequer se se chamou Fernando António Nogueira Pessoa” (Dispersos, op. cit., p. 77). Daí que
ache o seu livro incompleto, ao reconhecer que nele faltam, pelo menos, dois capítulos: um, acerca de Pessoa.
Que, se o escrevesse, seria composto “só de páginas em branco”. E “outro, sobre o Fernando Pessoa metido num
heterónimo de si mesmo” (Dispersos, idem, ibidem). Igualmente, sendo a etimologia de Pessoa o persona latino,
que significa máscara, o poeta recebe um sobrenome que significa «máscara». Do que a máscara encerra, nada se
sabe. Do seu exterior, sabe-se que este Fernando se chama também António. António, porque nasceu no dia do
Santo, e Fernando, talvez porque o Santo, antes de ser Santo, era Fernando. No seu nome, à partida, existe logo
uma duplicidade. O verdadeiro será o Fernando? O António? Ou o Pessoa? “Então poderemos dizer que o santo
era Fernando na vida civil, a fonte de onde se tiraram as ideias era do Fernando, que podia ter sido arruaceiro
em Lisboa e era um heterónimo do santo franciscano. E era o santo Antoninho com quem a pessoa se diverte
bailando e contando histórias das moças com as bilhas quebradas...”. SILVA, Agostinho da, Vida Conversável, op.
cit., p. 172. Espanta que Agostinho não tenha nesta conversa referenciado o facto de Pessoa ter ficado em 2º lugar
no concurso literário “Prémio Antero de Quental - 1934”, colocado a seguir ao franciscano Vasco Reis (assinará
mais tarde Reis Ventura), que ganha o galardão com A Romaria, peça teatral em verso, inspirada nas romarias
de... Santo António. Cf. REIS, Vasco, A Romaria, Edição das «Missões Franciscanas», Braga, 1936, 2ª edição, com
carta-prefácio de Alfredo Pimenta.
65 VIEIRA, Padre António, Livro anteprimeiro da História do Futuro. Edição crítica de José van den Besselaar,
Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983.
66 SILVA, Agostinho da, «Um Fernando Pessoa». op. cit., p. 91
67 Op. cit., p.117.
68 Idem, ibidem, pp.86-87.
69 SILVA, Agostinho da, Vida Conversável. Organização e prefácio de Henryk Siewierski. Lisboa, Assírio e Alvim,
1998, p. 167 e sgs.
70 SILVA, Agostinho da, Reflexão, p.115.
71 “Comunitarismo agrário que poderia ter sido não só a base real da economia portuguesa, de uma economia
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Helena Maria Briosa e Mota
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de exploração da terra em que planejamento e liberdade de pensamento se pudessem harmoniosamente unir.”
in Reflexão..., pp. 69-70.
72 Ser o que na realidade cada um é, sem coacções, em liberdade de que o espírito necessita para se realizar
– liberdade de cultura, liberdade de pensar e de livremente se expressar, em liberdade económica.
73SILVA, Agostinho da, Reflexão..., op. cit., p.36.
74 Idem, p.116.
75 SILVA, Agostinho da, Reflexão..., op.cit., p.87,
76Idem, p. 84
77 Alguns dos heterónimos de Agostinho da Silva: José Kertchy Navarro, o portuense mentor do jovem das Sete
Cartas a um jovem Filósofo, que nos encanta pela “energia de imaginação”, pelo “faulhar de imagens” que pareciam
inesgotáveis ; o tenente-coronel António Augusto Botelho Mourão, colega de Agostinho no Liceu Rodrigues de
Freitas, colocado em Timor, tradutor de O Sonho de Cipião, de Cícero, e acérrimo crítico da obra agostiniana; o
aviador inglês George Bryan de Mallard aguardando no Baleal regresso ao Reino Unido de submarino; J.J. Conceição da Rocha, estudante em Paris, como Agostinho, brasileiro, latinista de paixão, tradutor de Tácito; Caio Porfírio
Martins Rodrigues, ou Caio M.R., nascido em Verdelosa, Bragança, tradutor da Balada de Amor e Morte do Alferes
Cristóvão Rilke, a quem Agostinho marca a data de 3 de Abril como de seu nascimento, dia em que, curiosamente,
o Mestre partirá físicamente do nosso convívio; Mateus-Maria Guadalupe, o poético tenente-aviador que gostava
de insectos, traduzia e pesquisava medicina. Tem três defeitos “graves”: trabalha muito, é demasiado persistente e
não admite que a existência possa ter várias metas, ou nenhuma; o Professor Arnold R. Middlebee, oficial australiano com raízes nos Açores, ligado à resistência timorense, que dá valor à acção portuguesa no mundo; Gerdes
Urutu, o ensimesmado amante de tequilha, brasileiro de Corumbá; Jose Maria Carriedo, professor de espanhol em
Kobe, no Japão onde, qual Venceslau de Morais, permanece durante quase toda a vida. Ou Jurandyr de tão curta
vida, com quem o jovem Agostinho brincava no Porto, quem sabe o responsável por aquele desejar, um dia, conhecer o português de vogais “alongadas” falado no Brasil; João Cascudo de Morais, o filósofo farmacêutico “com
os pés no chão” que em Figueira de Castelo Rodrigo, de onde é oriundo, “pensa o quotidiano” e “imagina o real” ao
percorrer a estrada para Barca d’Alva, local mítico de eleição para Agostinho. Igualmente, Kurt Mueller, o tradutor
do Lísis, de Platão; José Félix Damatta, tradutor de poesia japonesa e mestre na complexa arte dos haikai; Frei
G.H., que na Vida Mundial reflecte sobre assuntos africanos e de Goa envia os «Cadernos Teológicos» aos Amigos.
Sobre a questão da heteronímia e sobre os pseudónimos assumidos (entre tantos, o jovem poeta e novelista Victor
Alberto, (ou GABS, as iniciais do autor) que publica «versos» e sonetos no jornal O Comércio do Porto; Marcus,
que publica na Seara; a professora Palmira Santos que faz as recensões de livros na Vida Mundial («Pontes e Fontes
para o Futuro», 1969-1970); o engenheiro Paulo Soares que lá escreve, usualmente, os «Apontamentos»; Carlos S.
Bicalho (ou Ficalho), grande especialista das matemáticas;), cf. AGOSTINHO DA SILVA, Vida Conversável, op. cit.,
pp. 21-24; sobre a produção dos citados heterónimos, 77. «Folhas Soltas de São Bento e Outras» in: Textos Vários.
Dispersos, Lisboa, 2003, Âncora Editora e Círculo de Leitores. Critério de edição e estudo introdutório de Paulo
Alexandre Esteves Borges.
78 SILVA, Agostinho da. «Herta, Teresinha, Joan. Três novelas ou Memórias de Mateus-Maria Guadalupe». Lisboa, Portugália Editora, 1953. In Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002,
pp. 73-153; Círculo de Leitores, 2003.
79 SILVA, Agostinho da. «Macaco-Prego». «Lembrança Sul-Americana de Mateus-Maria Guadalupe». Cadernos
Sul, Santa Catarina, Brasil, 1956. In Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 183-235; Círculo
de Leitores, 2003.
80 SILVA, Agostinho. «Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe seguidas de Tumulto Seis e
Clara Sombra a das Faias» in Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 183-235; Círculo de
Leitores, 2003.
81 Conversas Vadias. Série de treze entrevistas na RTP1. 1990. Reedição do Jornal O Público, 100 anos. A propósito
de Agostinho da Silva. DVD.I a IV. RTP, Público, Alfândega Filmes, Associação Agostinho da Silva, Lisboa, 2006.
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82 SILVA, Agostinho da. Herta., op.cit., p.88.
83 SILVA, Agostinho da. Dona Rolinha, op. cit., p. 185.
84 Idem, p.193.
85 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Lisboa, Círculo de Leitores, 2003.
86 SILVA, Agostinho da, Quadras Inéditas. Lisboa, Ulmeiro, 1990.
87 Sobre o valor do saber popular, diz Agostinho, por exemplo: “Se alguém tivesse tido o cuidado de coligir os
provérbios [acrescentaríamos, sem nos considerarmos abusivos ao espírito com que a reflexão surge: “e a poesia
popular”] em que o povo tinha “jogado” todo o seu pensamento, tal saber teria ido engrossar Sumas ou estruturar Discursos do Método”. Cf. Reflexão, op.cit., p. 54.
88 SILVA, Agostinho da, Uns poemas de Agostinho. Lisboa, Ulmeiro, 1990, 2ª edição.
89 Contam-se por muitas centenas as páginas dactilografas e manuscritas de poesia e recriação poética de
Agostinho que se encontram ainda inéditas, em fase de transcrição, organização e estudo. «Projecto de recolha
e estudo do espólio de Agostinho da Silva». Centro de Estudos da Associação Agostinho da Silva. Lisboa, com o
apoio institucional da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
90 Borges, Paulo AE. «Do ‘Nada que é Tudo’. A poesia pensante e mística de Agostinho da Silva» in AAVV.
Agostinho da Silva, um pensamento a descobrir. Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e Cultura, 2004,
pp. 121-156.
91 SILVA, Agostinho da, Vida Conversável. Organização e prefácio de Henryk Siewierski. Lisboa, Assírio e Alvim,
1998, p. 181.
92 Idem, p.182.
93 SILVA, Agostinho da, «Pensamento à Solta», Textos e Ensaios Filosóficos II, Lisboa, Âncora Editora, 1999,
p.149, e Círculo de Leitores, 2002.
94 SILVA, Agostinho da, Reflexão, op. cit., p.87.
95 Idem, p.60.
96 Idem, ibidem, p.54.
97 Ibidem, p.54.
98 Idem, p.65.
99 Unua vojag^o c^irkau( la mondo. Tradução em esperanto de J. J. Rodrigues. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
100 Skiza historio pri la lino. Tradução em esperanto de Vergílio Mendes. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
101 Vivo de Edison. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1981.
102 Vivo kaj arto de Goya. Tradução em esperanto de Vergílio Mendes. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
103 Surgrimpo en Himalajo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
104 Vivo de Lesseps. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
105 Pro tri pingvenqj ovoj. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1948.
106 La prahistoria arto. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
107 La Budhismo. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
108 Historio de Usono. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
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109 La petrolo. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
110 Vivo kaj arto de Van Gogh. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
111 Vivo de Pierre Curie. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
112 La lernejoj de Winnetka. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
113 Historio de Nederlando. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1948.
114 Vivo kaj arto de Ticiano. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
115 La lumgaso. Tradução em esperanto de José e Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
116 La vojag^o de Kolumbo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1982.
117 La stoikismo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
118 Masaryk. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1985.
119 La vojag^oj de Stanley. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1947.
120 La Reformacio. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.
121 Florence Nightingale. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1985.
122 La islamismo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
123 Goetho. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1984.
124 La Kristianismo kaj Kristana Doktrino. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.
125 Vivo de Alexandre Herculano. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1981.
126 La vojag^oj de Livingstone. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1983.
127 La Portugala literaturo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto:
1948.
Resumo
Neste ano de 2006, em que se comemoram cem anos sobre o nascimento de Agostinho da
Silva, propomo-nos reflectir sobre a produção literária do autor que, no século XX, ficou
conhecido em Portugal pela sua obra de democratização da cultura realizada através da
redacção das Biografias e dos Cadernos de divulgação cultural e, no Brasil, pela fundação
de Universidades e Centros de Estudos.
Partindo da análise de algumas obras de Agostinho faremos uma rápida abordagem ao
evoluir da Literatura Portuguesa, dando particular atenção a alguns dos autores por ele
estudados, a saber: Fernão Lopes, Camões, Padre António Vieira, Almeida Garrett e soRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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bretudo Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Abordaremos ainda alguns dos seus ensaios
literários, textos de ficção e poesia.
Ao analisar o estilo e prosa de Agostinho veremos de que forma as suas propostas se enquadram na Literatura Portuguesa do século XX e se apresentam como contributo para a
compreensão do seu ideário.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Portugal; Brasil; Divulgação cultural; Literatura Portuguesa; Eça de Queiroz; Fernando Pessoa; Heterónimos; Mundo Novo; Educação
para a Cidadania; Esperanto.
Abstract
In this year of 2006, when we celebrate a hundred years of Agostinho da Silva’s birth, we
propose a reflection about the literary production of an author who became known in
the twentieth century in Portugal for working towards cultural democratization achieved
through the writing the Biographies and the Booklets of cultural diffusion, and in Brazil
for founding Universities and Study Centers.
From the analysis of some of Agostinho da Silva’s works we will address briefly the
evolution of Portuguese Literature, with special attention to some authors he studied,
namely Fernão Lopes, Camões, Father António Vieira, Almeida Garrett, and mainly Eça
de Queiroz and Fernando Pessoa. We shall also approach some of his literary essays,
fiction texts and poetry.
In the analysis of Agostinho da Silva’s style and prose, we shall see how his propositions fit twentieth-century Portuguese Literature and contribute to the understanding
of his ideas.
Keywords: Agostinho da Silva; Portugal; Brazil; cultural divulgation; Portuguese
Literature; Eça de Queiroz; Fernando Pessoa; Heteronym; New World; Educational citizenship; Esperanto.
Agostinho e a Literatura Portuguesa
Helena Maria Briosa e Mota
148
Brasil, país do futuro: segundo
Stefan Zweig e Agostinho da Silva1
Henryk Siewierski*
1.
Há muito que o Brasil se encontra na rota dos que saem do Velho Mundo em busca do país do futuro. Viagem rumo ao sol nascente rejuvenesce, faz
atrasar relógio, às vezes bastante, como foi no caso de Herman von Keyserling,
que na América do Sul encontrou “a terra do terceiro dia da Criação”. Procurava e encontrava-se não só a terra virgem, mas também a terra em que tudo
que é plantado dá, terra que guardava no seu bojo os enclaves afortunados do
futuro... do passado: os Eldorados, as Atlântidas, os paraísos reencontrados ou
reconquistados.
Não foram poucos os representantes das culturas diferentes, cuja passagem pelo Brasil resultava em experiências que rendiam obras significativas,
testemunhos singulares de conhecimento do Outro e de autoconhecimento,
questionamentos dos alicerces da própria civilização, projetos para o futuro,
utópicos ou não.
Do quadro dos grandes testemunhos dessa passagem pelo Brasil também fazem parte Stefan Zweig (1881-1942) e Agostinho da Silva (1906-1994),
os quais de uma forma singular, cada um a seu modo, testemunhavam o presente e vislumbravam o futuro desse país e nele a esperança de um futuro
melhor para o mundo. São testemunhos de pesos diferentes em termos de
tempo vivido no Brasil e de lugar que o Brasil ocupa na obra. O tempo de
permanência de Stefan Zweig no Brasil não passa de um ano e meio, enquanto
Agostinho da Silva vive no Brasil cerca de vinte e três anos. Na obra de Stefan
Zweig, o Brasil ocupa um lugar episódico, embora de destaque, como o epi* Henryk Siewierski é professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília
(UnB). Publicou, entre outros, Encontro das nações (Paris, 1984), Como ganhei o Brasil de presente (Cracóvia,
1998), História da literatura polonesa (Brasília, 2000), Um paraíso imperdível. Silva rerum amazônico (Cracóvia,
2006), organizou o livro Vida conversável de Agostinho da Silva (Brasília, Lisboa, 1994), com quem também
traduziu Mensagem de Fernando Pessoa para o polonês (Varsóvia, 2006). Traduziu várias obras da literatura
polonesa para o português.
149
sódio do final dramático da sua vida. Na obra de Agostinho da Silva, o Brasil
é um tema privilegiado, além de ser uma experiência de vida intensamente
inserida na história desse país.
2.
Brasil, país do futuro, de Stefan Zweig, publicado em 1941, um best-seller
na época, hoje guardado apenas nos arquivos da memória brasileira, principalmente como um testemunho de uma paixão pelo Brasil de um eminente escritor europeu, que, ao fugir da Europa em guerra, no Brasil encontrou a paz. Na
Europa, até hoje o livro é vendido como uma obra clássica da literatura européia sobre o Brasil. E no Brasil, o título do livro ainda é lembrado, porém nem
sempre com o significado dado pelo autor. A expressão “Brasil, país do futuro”
funciona hoje mais como uma expressão irônica, que, no fundo, expressa uma
desconfiança quanto ao futuro do país, cujo presente deixa tanto a desejar.
Stefan Zweig veio ao Brasil pela primeira vez em agosto de 1936, para
uma estada de dez dias a convite do governo brasileiro, depois que os seus
livros foram queimados pelos nazistas em Berlim e ele ter sido obrigado a se
mudar para Londres. Assim descreve a sua primeira impressão do país, o amor
à primeira vista:
“Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das
mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo
tempo, comovido, pois me deparou não só uma das mais magníficas
paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas também uma espécie inteiramente nova de civilização (...). E com surpreendente velocidade
desvaneceu-se a presunção européia que muito superfluamente
trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o
futuro do mundo”.2
Foi apenas uma estada de dez dias a convite do governo brasileiro, no caminho a Buenos Aires, para participar do congresso do Pen-Club Internacional.
Mas foi o suficiente para despertar o desejo de retorno. Numa carta do Rio a sua
esposa Frederike, diz: “O Brasil é incrível, eu poderia chorar como uma criança
por ter de ir embora.”3 E na outra: “Uma coisa é certa: esta não é a última vez que
estou aqui. Um país ideal para mim.”4
Em janeiro de 1940, Stefan Zweig volta ao Rio com a finalidade de
preparar o livro sobre o Brasil. Há quem afirme que, para conseguir o visto
Brasil, país do futuro...
Henryk Siewierski
150
permanente, ele tenha prometido escrever um “livro sobre o Brasil”.5 No final
de 1940 viaja com a sua mulher de volta para os Estados Unidos, por conta do
governo brasileiro. Este favor provoca desconfiança da parte dos adversários
do regime ditatorial e prejudica a recepção do seu livro.
Pela terceira vez Stefan Zweig chega com a sua esposa ao Rio de Janeiro
em agosto de 1941. Desta vez a recepção é bastante fria, uma vez que o seu
livro não foi bem recebido pela crítica brasileira. No dia 23 de fevereiro do
ano seguinte, o casal Zweig é encontrado morto na sua casa em Petrópolis. Na
carta de despedida, escrita nas últimas horas da sua vida, Stefan Zweig diz:
“Antes de por livre vontade e em plena consciência despedir-me desta vida, sinto-me impelido a cumprir um último dever: o de agradecer de todo coração a este maravilhoso país, o Brasil, que deu a
mim e a meu trabalho tão boa e acolhedora tranqüilidade. A cada
dia apreendi a amar mais intensamente este país, e em lugar algum
eu teria preferido recomeçar a minha vida desde as bases, depois que
o mundo de minha própria língua soçobrou para mim e minha pátria espiritual, a Europa, passou a autodestruir-se. O Brasil é incrível
– um país para mim.”6
Paradoxalmente, o que poderia ter sido um prólogo de uma nova etapa
da vida do escritor tornou-se o seu epílogo.
3.
Stefan Zweig conhece o Brasil depois de viver o trauma da Europa em
guerra, depois de ficar abalada a sua fé na Europa unida, pacífica e fraterna,
empenhada em progresso social e tecnológico e cultivo dos valores espirituais.
Um euro-entusiasta transforma-se num euro-cético e o leitor do Brasil, país do
futuro pode ter a impressão de que já não há justos no Velho Continente, todo
condenado, em guerra fratricida e suicida “de todos contra todos”.7
O que, segundo Zweig, coloca o Brasil “numa posição especial entre
todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral” é ter resolvido de uma forma admirável uma questão de maior importância no mundo
atual, ou seja, “como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças
de raças, classes, pigmentos, religiões e opiniões?”8 Chama a atenção a ênfase
que Zweig dá à miscigenação das raças como a origem de uma nação homogênea, como se o apagamento das diferenças fosse a condição de uma convivência pacífica.
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“Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como
cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa
equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo”.9
Stefan Zweig, um europeu desesperado, encontra no Brasil uma alternativa para um mundo em processo de autodestruição e constrói a sua visão
idealizada e utópica à custa do apagamento de verdades incômodas do seu
passado e do seu presente. A idealização dos processos e dos resultados da miscigenação brasileira deve ser, em certo grau, o resultado de um trauma vivido
na Europa assombrada pelo nazismo, mas também não deixa de resultar de
uma autêntica opção pela mescla e homogeneidade.
Se o Brasil para Stefan Zweig é “um dos países mais modelares e, por isso,
um dos mais dignos de estima”, é porque a sua classificação privilegia mais o “espírito pacífico e humanitário” e a felicidade do que “o valor industrial, financeiro e
militar de um povo” ou a “organização” e o “conforto”.10 O que não quer dizer que
a organização e disciplina sejam desprezadas por Zweig, que chega a fazer uma
grande apologia da obra dos jesuítas no Brasil, justamente por serem “realistas e
calculistas exatos e clarividentes”,11 em contraste com o modelo franciscano:
“Não são sonhadores vagos e confusos, e seu mestre Inácio de Loyola
não é nenhum Francisco de Assis, que acredita numa suave fraternidade entre os homens. São realistas, e, graças a seus exercícios, sabem
dia a dia refortalecer a sua energia, a fim de vencerem no mundo a
imensa resistência das fraquezas humanas.”12
Ao plano jesuítico, é que o Brasil deve, segundo Zweig, a convivência
pacífica de todas as raças ao longo dos séculos, a convivência que produziu um
novo tipo de homem. É difícil de não observar que esta convivência pacífica é
aqui condicionada pelos processos de uniformização:
“O que eles [jesuítas] fazem é um plano de campanha para o futuro, e o objetivo desse plano, que permanece fixo através dos séculos,
é a constituição desta nova terra no sentido duma única religião,
dum único idioma, duma única idéia.”13
A Europa, pátria espiritual de Stefan Zweig, tornou-se para ele inabitável. No Brasil ele encontra o clima humano e espiritual propícios, mas em
Brasil, país do futuro...
Henryk Siewierski
152
vez de habitá-lo, inserir-se na vida brasileira com todos os seus encantos, mas
também contradições, ele constrói uma visão ideal, utópica, de um país distante porque do futuro, abdicando de exilar-se no seu presente.
4.
O português exilado, o brasileiro por adoção, o europeu inconformado,
Agostinho da Silva não só se enquadra na história dos grandes testemunhos de
passagem pelo Brasil, mas cria também um novo paradigma dessa passagem.
Os anos que Agostinho da Silva passou no Brasil, entre 1944 e 1969, deixaram
marcas profundas na memória cultural e intelectual do país.
O Brasil não era para Agostinho da Silva um país de exílio nem terra
de criar raízes. Apesar de uma permanência de quase um quarto de século, era
uma terra de passagem, ao longo da qual ele cumpria o destino e a vocação
portugueses, demonstrando exemplarmente “a capacidade de andar ao biscate
vendo o que podem fazer num sítio e, quando se esgotou, vão para outro lado
fazer outra coisa”.14 São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, João Pessoa, Brasília,
Florianópolis – eis os principais lugares por onde Agostinho da Silva passa no
Brasil, deixando obras inconfundíveis. O que norteava este “andar ao biscate”
tem a ver com outra capacidade portuguesa: a de mediação. Mediação como
uma resposta ao apelo de transcender sempre os limites do conhecimento e da
experiência, de superar as fronteiras que separam os homens, de dar o testemunho de solidariedade.
A chegada ao Brasil vista anos depois parece a Agostinho da Silva uma
reviravolta na percepção da própria identidade e uma mudança radical de rumo, mas não tão radical que não pudesse permanecer também no âmbito do
destino português.
“Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no
Brasil foi a abertura de mim próprio (...). No Brasil tudo isso desapareceu completamente, entreguei-me à vida brasileira, muito mais
ampla, muito mais livre e aos olhos europeus, aos olhos portugueses(...). Quer dizer, o que o Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no
chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.”15
A terra prometida está sob os pés e não pode ser tratada como terra
do exílio. O futuro desejado não é objeto de visão ou profecia, mas está incorporado no presente, numa vida que procura ser plena e livre para conhecer o
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mundo e ajudá-lo a cumprir o seu destino. Destino esse que corresponde aos
mais profundos desejos do homem.
No Brasil, terra de encontro, mas também de confrontos, confrontos de
raças e culturas, Agostinho da Silva procurava ajudar – com uma amplitude de
atividades e ações extraordinárias, como criação de universidades e centros de
estudo, ajuda aos flagelados pela seca do Nordeste, e assessoria ao presidente da
República, entre outros – o país a cumprir o seu destino e sua vocação, investindo no trabalho de aproximação a partir da valorização, investigação e documentação da sua herança multicultural, tanto no quadro nacional como internacional, com atenção especial às culturas ligadas pelos laços da língua portuguesa.
5.
O “Ensaio para uma teoria do Brasil”, Agostinho da Silva inicia definindo
a cultura “das populações que, pelo descobrimento, entraram em contacto com
o indígena brasileiro” (269).16 O Portugal daquela época entre o fim da Idade
Média e os primórdios do Renascimento “afastava-se das linhas mestras do desenvolvimento cultural européu” (270), marcado pelo abandono do sagrado e
opção preferencial pelo desenvolvimento econômico. Portugal, um fenômeno
à parte, representava os valores e ambições espirituais e procurava projetá-los
sobre o universo circundante.
“O português procura o mundo pela necessidade de adorar o abstrato por intermédio do concreto, de cultuar Deus através da sua Natureza (...). Fé e Império lhe apareciam como impossíveis de separar
(...). Deste modo, e continuando num mundo renascentista, a linha
medieva, o português fazia de todo o mundo a catedral” (270-271).
O próprio da cultura que se recusa a optar apenas pelo abstrato ou
pelo concreto é a busca de um paraíso onde seja possível superar os limites
desta dicotomia. No Brasil os portugueses encontraram uma cultura indígena, migratória, que “aparece também como que procurando um paraíso em
que a sua vida se possa desenvolver fora de todas as limitações do tempo e do
espaço” (271).
Agostinho da Silva chega então a afirmar que do encontro dessas duas
culturas poderia surgir uma civilização luso-tupi, semelhante e até superior à
civilização moçárabe, em que se encontraram o elemento popular da Península
e o árabe “também inquieto, também viajante, também buscador de paraísos
em que de nenhum modo se abandonava o terrestre” (271). O retardamento
Brasil, país do futuro...
Henryk Siewierski
154
de um Brasil paraíso ele explica partindo do pressuposto de que o fim supremo da humanidade, ou seja, o futuro Reino do Céu na Terra, todos os povos
precisam alcançar ao mesmo tempo e nenhum grupo se possa adiantar. No
momento do seu descobrimento o Brasil tinha tudo para construir a tal terra
da promissão, mas ao mesmo tempo passou a fazer parte da economia mundial como um país colonial e “tinha de acompanhar o movimento comum e o
acompanhou, compartilhando afinal do que era o sacrifício de todos” (272).
Os ciclos econômicos do pau-brasil, do açúcar, e, principalmente, do ouro, são
os ciclos de sacrifício, de desperdício de tão promissor hibridismo da cultura,
que transformou o indígena em uma minoria, eliminada rapidamente: “a lei
de Pombal, banindo o uso de Tupi, é o ponto culminante do drama brasileiro,
que consiste essencialmente em ver-se arrastada pelas correntes de um mundo
europeu, que lhe é estranho, a nação que estava ensaiando um teor de vida inteiramente novo” (273). Também a importação dos escravos negros contribui
para a tal famosa tristeza brasileira.
Mesmo assim, com as mãos roídas pela lepra de uma economia que
repelia, mas a que se submetia “para futura remissão e glória da humanidade”,
o Brasil deixou na arte barroca a marca do seu gênio: a capacidade de sonho e
reprovação da civilização urbanística.
A civilização européia com o seu pragmatismo e disciplina, indispensáveis para o progresso e realização do paraíso futuro, foi, no entanto, imposta
aos países do sul da Europa, a Portugal e, por seu intermediário, ao Brasil, e,
como imposta, ela não podia funcionar bem. A imitação da cultura européia no
Brasil é pobre em relação à original, o que não quer dizer que essa pobreza seja
intrínseca, pois o que é intrínseco é a “possibilidade na invenção do futuro”, e o
mau funcionamento sob os critérios europeus é um atestado de vitalidade da
cultura brasileira. O Brasil, por ser adiantado em relação à civilização do futuro,
precisa esperar, sacrificando-se e contribuindo para que a Europa evolua criando condições técnicas para alcançar o paraíso que será de toda a Humanidade.
Com o século XX a civilização técnica e científica da Europa “atingiu
o ponto em que já não se pode avançar mais”, cumprindo o seu papel de assegurar o domínio pelo homem das condições físicas de uma vida em liberdade – automatismo de fabricação, conquista de fontes de energia praticamente
inesgotáveis – condições para praticar “o ócio sobre que se construíram as
grandes culturas humanas” (275). A fase terminal da civilização européia é
marcada não só pelos triunfos técnicos e científicos, mas também pela crise: o
absurdo da economia de produzir para lucrar, o homem medido pela eficiência prática, o desemprego.
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A esperança do mundo não estaria então na Europa, mas “nos locais
que até agora o europeu tratou (...) como colônias de exploração” (276). Pela
eliminação, Agostinho da Silva chega à conclusão de que “é da América do Sul
que a humanidade poderá esperar as indicações de novos horizontes” (277).
Os países que dentro do universo sul-americano têm as condições de assumir
“a missão de guia dos povos” são o Brasil e o México; o Brasil pelas suas “capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, de inteligência psicológica, de ironia, de
apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo”(278). Da herança
européia aproveitável, o essencial seria “a união harmônica de uma vida urbanista e de uma vida rural” (278).
Ao desenhar o Brasil imaginado do futuro, Agostinho da Silva quer assentá-lo em bases econômicas sólidas para que “a fantasia pudesse tomar pé na
realidade das coisas” (278). Considerando precária a posição do Brasil como
exportador dos produtos valorizados nos mercados internacionais (“o produto que o Brasil poderia colocar virá de outros pontos mais barato e, porventura, de melhor qualidade”, 279), ele propõe uma economia “primacialmente de
trocas internas” (279), que iria propiciar o desenvolvimento e exploração de
todo o extenso território nacional.
Diante da intensidade do desmatamento e erosão do solo, assim como
do fato dos solos tropicais não serem propícios para a sustentação da civilização baseada sobre uma agricultura de cereais, Agostinho da Silva propõe
a arboricultura como a base econômica do desenvolvimento do Brasil. Além
disso, a economia de desenvolvimento auto-sustentável exigiria a adoção da
estratégia de policultura em regime cooperativo e uma descentralização da
produção industrial.
Organizadas dessa forma, as bases da economia do Brasil servirão
à eclosão de uma cultura que até agora não teve condições de florescer
plenamente.
Mesmo que no “Ensaio para uma teoria do Brasil” não haja referências
ao culto popular do Espírito Santo, é importante salientar que a interpretação desta festa popular, “difundida por todo o Brasil” pelos portugueses, cujos
promotores eram os franciscanos, faz parte integral da visão do Brasil como o
país do futuro de Agostinho da Silva, como uma confirmação da missão messiânica destinada a esse país, do qual “poderia partir” a “salvação da humanidade” (286).17 “Ali, naquele miraculoso Brasil, teria apoio de sólida terra, não
apenas pastoreio de nuvens, o sonho do Quinto Império, Império do Espírito
Santo, profecia de Joaquim de Flora.”18
Brasil, país do futuro...
Henryk Siewierski
156
6.
Stefan Zweig e Agostinho da Silva convergem em considerar que o Brasil representa um modelo alternativo da cultura e do desenvolvimento ao da
Europa contemporânea, um modelo muito mais atraente por ser baseado nos
valores de humanismo e universalismo cristão, que deixaram de ser o alicerce
do Velho Continente. Existem, no entanto, significativas diferenças. Na visão do
Brasil de Stefan Zweig são valorizados, enfatizados e idealizados os processos
de homogeneização e unificação, enquanto Agostinho da Silva acentua mais
a diversidade e a liberdade brasileiras. Stefan Zweig atribui aos jesuítas e sua
disciplina de organização um papel fundamental na formação da identidade
brasileira, enquanto para Agostinho da Silva o modelo franciscano, ecumênico
e heterodoxo, define melhor a alma do povo brasileiro. Para Stefan Zweig o
Brasil é um país do futuro pelo que ele representa hoje, como um contraponto
às deviações da civilização européia. Agostinho da Silva vislumbra no presente
e no passado apenas um potencial daquilo que o Brasil pode ser amanhã.
Stefan Zweig pensava no Brasil, país do futuro, principalmente como
numa gigantesca arca de Noé, em que do segundo dilúvio se salvaria o melhor
da espécie humana e do mundo natural. Para Agostinho da Silva o Brasil é
bem mais do que isso: é uma terra para a qual os portugueses transportaram
o seu sonho da terra sem mal, que encontrou aqui o sonho semelhante de
outros povos. Agora cabe ao Brasil ir transformando o sonho em obra, que
já não se limitará apenas ao seu território, mas que irá se expandindo pelo
mundo afora. O que importa é a mundialização do futuro que o encontro das
culturas no Brasil fez germinar.
Notas
1 Comunicação apresentada no Congresso Internacional do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva,
na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no dia 17 de Novembro de 2006.
2 ZWEIG, Stefan. Brasil, país do futuro. Trad. de Odilon Gallotti. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1941, pp.
11-12.
3 ZWEIG, Frederike. Stefan Zweig. Unrast der Liebe. Berna & München: Scherz Werlag, 1981, p. 242.
4 Ibid., p. 244.
5 SCHWAMBORN, Ingrid. “Um europeu no Brasil.” In Brasil, país do passado? Ligia Chiappini, Antonio Dimas
e Berthold Zilly (org.). São Paulo: Boitempo Editorial, Edusp, 2000, p. 38.
6 Cit. por SCHWAMBORN, Ingrid, op. cit., pp. 35-36.
7 ZWEIG, Stefan. Op. cit., p. 12.
8 Ibid., pp. 14-15.
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157
9 Ibid., p. 16.
10 Ibid., pp. 19-20.
11 Ibid., p. 43
12 Ibid., p. 39.
13 Ibid., p. 43.
14 SOUSA, Antónia de. Diálogos com Agostinho da Silva. O Império acabou. E agora? Lisboa: Notícias Editorial,
2000, p. 42.
15 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Org. por Henryk Siewierski, Brasília: UnB, 1994, p. 42.
16Aqui servimo-nos da edição do referido texto, in SILVA, Agostinho da. Dispersos. Introdução de Fernando
Cristóvão. Apresentação e organização de Paulo Alexandre Esteves Borges. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1988. Os números entre parêntesis no texto referem-se à paginação desta edição.
17 Cf., BORGES, Paulo. “Portugal e Brasil na senda do Pentecostes”. In: SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000; PINHO, Romana Valente, “A vivência de Brasil
ou Do catolicismo humanista e ecuménico de Agostinho da Silva: os contatos com Jaime Cortesão e Gilberto
Freyre. In Agostinho da Silva e o pensamento Luso-Brasileiro. Lisboa: Âncora Editora, 2006.
18 SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de futuro”, in SILVA, Agostinho da.
Dispersos, op. cit., p. 702.
Resumo
Stefan Zweig e Agostinho da Silva, cada a seu modo, testemunhavam o presente e vislumbravam o futuro do Brasil e nele a esperança de um futuro melhor para o mundo. Na
obra de Stefan Zweig, o Brasil ocupa um lugar episódico, embora de destaque, como um
episódio do final dramático da sua vida. Na obra de Agostinho da Silva o Brasil é um tema
privilegiado, além de ser uma experiência de vida intensamente inserida na história desse
país. Stefan Zweig e Agostinho da Silva convergem em considerar que o Brasil representa
um modelo alternativo da cultura e do desenvolvimento ao da Europa contemporânea,
um modelo muito mais atraente por ser baseado nos valores de humanismo e universalismo cristão, que deixaram de ser o alicerce do Velho Continente. Existem, no entanto,
significativas diferenças. Por exemplo, na visão do Brasil de Stefan Zweig, são enfatizados
e idealizados os processos de homogeneização e unificação, enquanto Agostinho da Silva
acentua mais a diversidade e a liberdade brasileiras.
Palavras-chave: Stefan Zweig; Agostinho da Silva; História do Brasil; Identidade
Brasileira; Visões do Brasil.
Abstract
Stefan Zweig and Agostinho da Silva, each in his own way, witnessed the present and
looked towards the future of Brazil wherein they saw a possibility of a better future for
Brasil, país do futuro...
Henryk Siewierski
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the whole world. In Stefan Zweig’s oeuvre Brazil holds an episodic, albeit distinct, position
as the tragic conclusion of his life. In Agostinho da Silva’s work Brazil is a privileged subject as well as the experience of a biography closely intertwined with the history of that
country. Stefan Zweig’s and Agostinho da Silva’s views converged in regarding Brazil as an
alternative cultural and developmental model in relation to the contemporary Europe, a
model which they considered superior in that it was based on humanistic and universally
Christian values which had no longer served as the basis for the Old World. There are, however, significant differences. For example, in Stefan Zweig’s vision of Brazil the processes
of homogenization and unification are highlighted and idealized, whereas Agostinho da
Silva emphasizes Brazil’s diversity and liberty.
Keywords: Stefan Zweig; Agostinho da Silva; Brazilian History; Brazilian Identity;
Visions of Brazil.
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Teologia e mitopoiética da
história em Agostinho da Silva
Isaque Pereira de Carvalho*
Da fundamental concepção teológica agostiniana, é possível descortinar
toda uma reflexão que passa pelos campos da filosofia da história, da poética, da
ética, do pensamento acerca da civilização de língua portuguesa, entre tantos outros. Com efeito, é a centralidade da teologia que enformará todo o pensamento
de Agostinho da Silva. É concebendo Deus como a harmonização e superação de
toda a dualidade tensional (absoluto/relativo, eternidade/tempo, subjetividade/
objetividade, essência/aparência, inconsciente/consciente, sentimental/racional,
invisível/visível, divino/humano, mito/história, interno/externo) que Agostinho
desenvolve um sugestivo percurso de transcensão desses mesmos dualismos.
Neste sentido, temos a intenção de, a partir da teodicéia expressa por Agostinho,
proceder a uma reflexão sobre as suas concepções de Deus, de homem e das
suas íntimas e recíprocas comutações, buscando captar a percepção agostiniana
sobre o movimento histórico em sua dinâmica com a revelação/inspiração do
Espírito (Deus-homem, homem-Deus) atentando para uma sutil e tácita intuição de uma filosofia da história que, pretendendo promover a fusão dos opostos-complementares e superar inclusive a separação entre sujeito e objeto, abriria uma via de encontro entre mito e história, ou entre o sagrado e o profano,
culminando com a conjectura de uma apoteótica realização de Deus no homem
histórico e também o inverso, ou seja, do homem na divindade. Na consecução
desse intuito, chamaremos à discussão, à maneira dialógica, alguns aspectos do
pensamento do mitólogo Eudoro de Sousa acerca de mito e história.
No pensamento de Agostinho da Silva, embora o silêncio seja mais
digno ou apropriado para as questões referentes a Deus ou ao Absoluto, pois
que qualquer especulação ou teorização lógico-discursiva só se atribui àquilo
que é relativo e que pode ser predicável, não sendo por isso admissível à eterni* Isaque de Carvalho é licenciado pela Universidade de Brasília na área de História e mestre em Filosofia em
Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a tese Divino-Humana Semelhança: A Idéia de
Liberdade em Agostinho da Silva.
160
dade, à infinitude e à perfeição ilimitada de Deus, pode-se detectar, simultaneamente, a não existência de Deus1 (entendida a Sua plenitude como Princípio
ou Origem) e a Sua existência (entendida como a Sua manifestação), sem que
haja nisso qualquer contradição essencial, antes pressentindo nessa paradoxia
indícios da mais excelsa Liberdade.2 Para expressar a sua concepção de Deus,
Agostinho toma por parâmetro uma idéia da física cosmológica pela qual um
átomo inicial explode em mundo logo que toma conhecimento de si mesmo.
Assim como na deflagração do átomo primordial, (...) no momento em que o
mundo explode de Deus, ou Deus explode em mundo, deixe[a] Ele de existir como
Absoluto e, portanto, como Deus; é já a Trindade (...)3 e passa a existir no Espírito Santo, mistério que conjuga a identidade e a diferenciação de Deus Absoluto
em suas manifestações fenomênicas.4
Contudo, Agostinho afirma que a “explosão de Deus em mundo” não
se deu de uma vez para sempre, estando antes a se processar a cada momento,
o que teria por conseqüência tanto a coincidência entre Deus e Trindade, como entre a eternidade e o tempo, abrindo desta maneira uma larga via para a
especulação acerca da simultaneidade de expansão e contração do Universo, ou
seja, de manifestação divina na criação dos entes (passagem do Absoluto para o
relativo), bem como a sua oposta e complementar retração (passagem do relativo para o Absoluto) por uma metanóia em que o homem (posto que criado à
sua imagem e semelhança e por isso ocupando uma essencial responsabilidade
nesse processo), pela estrada insuspeita de Damasco, se aniquila, deixando surgir em si outro diferente ou até mesmo contrário, como afirma Agostinho:
“Creio que esse explodir do Nada em Tudo não se deu de uma vez
para sempre no mundo, mas se está dando a cada momento, sendo
pura ilusão nossa a ideia de sua continuidade: cada ocultação do
determinismo detectada pela ciência, cujo progresso não vejo como
ilimitado, como não vejo o da Humanidade – o passo final será o
salto do determinismo para a liberdade –, significa a passagem de
um mundo a outro (a paleontologia estratigráfica pode não ser o
fruto de uma evolução, mas o testemunho dos saltos de um mundo
a outro).”
E ainda:
“Cada mundo criado tem leis fixas, e destinos humanos; cada intervalo significa a liberdade de aparecer outro mundo com diferentes
relacionamentos legais”.5
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Com efeito, a essência de todo o pensamento de Agostinho provém da
intuição de Deus como esse O Nada que é Tudo, expresso em termos de explosão e retração.6 Enquanto plenitude absoluta, Deus só o é na medida em que
integra o Nada, essa sua instância consubstantiva, que o permite exceder toda
a determinação do mundo contingente.7 Não obstante esse paradoxal elemento ontológico da divindade, e talvez mesmo por isso, Agostinho entende que
Deus também é expressão de Liberdade absoluta, pois mesmo o Nada constitutivo não O constrange a continuar indeterminado, podendo Deus tanto permanecer na ausência de modos e propriedades como autodeterminar-se, ou
explodir em mundo, por vezes intermináveis.8 Sendo Deus Nada, Ele é Tudo,
todo ser, quer como quietude, quer como manifestação na diferença e na novidade. Daí que Deus devenha autopoeticamente mundo, revelando-se sempre
na contingência histórica.
Nesse sentido, o mundo, bem como o homem e a própria experiência
histórica do homem seriam a consubstancial transformação de Deus, a sua
íntima, una e simples infinitude, perfeição e totalidade transmudada ou revelada em unitotalidade complexa, múltipla e morfológica. De maneira que, ao
contrário de serem concebidos como uma entidade separada do divino por
teocriptia ou diminuição ontológica, como um grupo de autores portugueses o postula, afiguram-se antes como um mesmo-outro de Deus, inerente à
autocriação do incriado. Mundo e homem não são nem poderiam ser simples efeitos de uma causa, mas o próprio causar-se de uma causa incausada, o
que é patente na concepção agostiniana de expansão e contracção do Universo.
Assim, Agostinho também pensa o mundo com todos os seus atributos naturais, sociais, históricos, em termos de revelação ou manifestação-ocultamento,
sempre renovada, de Deus no mundo ou, dito de outra forma, mundo e Deus
como sendo o mesmo, uno e eternamente idênticos e diferentes.
Sendo Deus simultaneamente transcendente e imanente, essencial e
existencial, eterno e revelando-se na história – ou antes, é mesmo o fundamento ontológico da história –, Agostinho entende que é a própria história
um cenário de simbiose entre o sagrado e o profano, ou antes, local privilegiado da simultaneidade entre o divino e o humano, o eterno e o temporal, numa grande aventura que congrega os deuses do néctar e os marujos do vinho,9
revelando assim a sua natureza simbólica. Procedendo à análise da cultura e
da história portuguesas,10 Agostinho assim o confirma: concebe que a história
desenvolve-se em pelo menos duas dimensões simultâneas, ou seja, o seu lado
noturno (o oceano nos homens) e o seu lado diurno (os homens no oceano),
sempre na fronteira entre a eternidade e o tempo, o divino e o humano, a
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Liberdade e a necessidade, o invisível e o visível. Daí a Ilha dos Amores representar a pluralidade divina oculta de cada ser, sendo ela um mítico11 lugar da
união das duas faces humanas ou o topos (ou u-topos) onde se dá o reconhecimento da divindade do homem e da humanidade de Deus, experiência de
transcensão que capacita para a visão do Todo ou do Absoluto. Neste sentido,
essa divina epopsia revela-se na própria experiência temporal, entendendo assim a história não como simplesmente a experiência angustiada do homem
exilado no mundo.
Assim o entende Eudoro de Sousa a propósito de mito e história. Eudoro parte da idéia do homem como a própria negação do Absoluto divino
e primordial que, instituindo a partir de si (o centro) o regime de cisão objetivante e hominizante, determina não só o seu presente coisificado como
projeta esse seu mesmo presente tanto para o passado quanto para o futuro (o
seu horizonte circundante). É o que Eudoro chama de presença do presente.12
Decorrente dessa ou simultaneamente a essa onipotência do homem exclusivamente humano, desvinculado dos seus aspectos natural e divino, teria surgido a história como o saber próprio do homem desligado e por isso carente
de religião e mitologia, entendendo por mito um pensamento/vivência simbólico que consiste, fundamentalmente, num discurso a respeito dos deuses
ou das Origens não originadas. O mito teria sido originado da religião como
ato ritual, pura vivência do sagrado. Sendo religiosa a primeira atitude do homem perante o mundo (na obscura caverna primordial do excesso incontido
do entre-ser, onde tudo estava ligado), o mito aparece como um dizer poético,
uma resposta ao sentimento da presença do divino, portanto, oposto à discursividade histórica.
Com efeito, é na ideia de um presente plenificado que Agostinho concebe a consubstancialidade de eternidade e tempo,13 motivo essencial que estrutura toda a sua teologia e mitopoiética da história. Em “Teologia Humana”,14
Agostinho exprime a sua concepção acerca da conexão entre centro e periferia
ou, o que podemos entender conforme a crítica do mitólogo Eudoro de Sousa
à história, como uma das possíveis correlações entre projetor, projeção e projetado, tendo como termos dessas correlações ora Deus, homem e Natureza,
ora presente do homem e seus respectivos passado e futuro. Em Agostinho
também encontramos a crítica à história e mesmo a necessidade de livrarmonos da história15 como sinal de Liberdade, embora num sentido não totalmente
coincidente com o postulado de Eudoro em História e Mito.16 Dizemos “não
totalmente” não tanto pelos fins alcançados ou almejados por cada um desses
pensadores (que entendemos ser de grande similitude ou senão de identidade
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mesmo), quanto pelos caminhos adotados. Diferente de Eudoro, Agostinho
parte da idéia de que o homem é uma criatura de Deus, criado à sua imagem e
semelhança.17 Considerando-se por esse ângulo, pode-se assinalar pelo menos
duas importantes implicações contidas nessa afirmação, ou seja, nem o homem
é uma diminuição ou negação de Deus, já que é criado à sua imagem e semelhança, nem tampouco Deus pode ser uma projeção objetivante do homem
como centro irradiador de sentidos e de onticidade, o que Agostinho deixa claro ao afirmar que o significado daquela semelhança não é a antropologização
de Deus, mas antes a própria deificação do homem, isto é, o homem é um Deus
ainda não realizado e em acto, mas um Deus sempre em potência e que está num
perpétuo encaminhar-se para o formular de uma lei que só tivesse uma intenção
e um artigo; o de que é a sua única obrigação a de se não regular por mais norma
nenhuma que não seja a da mais absoluta liberdade.18 Nessa Liberdade Absoluta
consistiria a divina semelhança entre criador e criatura.
Consoante esta idéia de Liberdade Absoluta como o princípio de identidade entre Deus e o homem, Agostinho também se mostra atento à sua manifestação, ou antes, está convicto de que é a sua própria manifestação o que
mais importa para o cumprimento do texto que considera fundamental, qual
seja, de que foi o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança.19 Daí
advém a sua crítica à história e a sua aproximação ao pensamento de Eudoro.
Salvaguardada a diferença entre ambos, referente à concepção de Deus e do
homem, efetivamente a crítica agostiniana revela-se como um paralelo – com
tendências tangenciais – às idéias sobre o tempo em Eudoro. Assim como o
terror da história é expresso pelo mitólogo como o domínio e a projeção da
presença do presente, que cumpriria negar (negação da negação primordial)
para o advento da reintegração do Absoluto, Agostinho entende que a negação
da história para o advento da Liberdade passaria simultânea e precisamente
por uma transcensão do e regresso ao presente. Estamos, portanto, diante de
pelo menos duas modalidades de presente no pensamento de Agostinho. Num
primeiro momento, o da necessidade de transcensão, Agostinho refere-se a
um presente que, imerso em seus aparentes problemas e desejos, por um lado
inventa passados fantasiosos (no sentido de ilusórios), à maneira de refúgio
das suas atuais frustrações egóticas, estando o seu ego tão afastado do natural
como do sobrenatural; por outro, projeta futuros que repelem um presente
que é sinônimo de Vida e que já representa uma outra dimensão do presente
a que importa regressar.
De maneira que é um presente plenificado (o presente da Vida criativa
ou um tempo consubstancial ao eterno, em que Deuses e marujos navegam o
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grande oceano do espírito, excitados tanto pelo néctar quanto pelo vinho), diametralmente distinto da onipresença da presença do presente em Eudoro, o que
Agostinho invoca a propósito da história, para o cumprimento da Liberdade
a que tanto Deus como o homem, por virtude da sua semelhança substantiva, estão fadados. Para Agostinho, esse presente radicalmente imanente, sem
deixar de ser da ordem transcendente, constitui o próprio tempo das crianças,
em que a vida se passa na realidade do irreal20 (por que ao vivê-lo, elas o suspendem), e por isso caracteriza o próprio tempo investido de eternidade em
que se dá toda a criação. Assim, entendemos que a manifestação do princípio
de Liberdade em Agostinho está intimamente ligada à idéia de uma reorganização dos parâmetros ou dos termos da correlação entre projetor, projeção e
projetado, não sendo a contestação da história reclamada por Agostinho senão
a negação à repetição da derrocada do presente (ou desse presente derrocado)
tanto no passado quanto no futuro e, sobretudo, a afirmação da criação eterna, sempre renovada no presente, como manifestação ou mesmo revelação.
Daí estarmos falando de poiésis na história.
É possível que tal perspectiva nos conduza a uma compreensão segundo
a qual, tendo a vivência religiosa dos homens, ou a sua experiência divina, o
seu núcleo no eterno, a dimensão temporal ou histórica seria desprezada como
aquilo de que o homem necessita livrar-se para alcançar a sua elevação final.
Entretanto, para Agostinho, o eterno parece ser menos o imutável fora do tempo do que o próprio tempo plenificado. Importante ter em consideração que o
pensamento de Agostinho, embora de uma forma nada convencional, insere-se
na perspectiva criacionista do cristianismo, em cujo cerne temos que Deus além
de criar os entes celestes, os homens e a natureza, criou também o tempo e, com
ele, a história. Deste ponto de vista, o tempo é irreversível e dividido em passado
e futuro, onde esse último permanentemente se presentifica e essa “aparição” do
presente mergulha continuamente no passado, numa integração plenificadora
de passado, presente e futuro.21 Na dinâmica dessa correlação trans-ontológica
do(s) tempo(s), há uma constante e orientada mudança em algo que permanece, possibilitando a emergência de um presente sempre renovado, tangenciando
a eternidade que no tempo supostamente se teria perdido. É pelo presente – potencializado por abarcar passado e futuro e, por isso, pleno – que tempo/história e eternidade são num único ser ou numa única realidade.22
Assim, transcender o tempo, ou antes, alcançar um presente pleno (a
eternidade) num instante da história, parece ser, em Agostinho, a suprema possibilidade do homem, bem como a experiência da unidade, do verdadeiro Amor.
Não se trata de abdicar da história em nome de uma dimensão exclusivamente
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extramundana, mas de complementá-la com a plenitude de uma experiência divina. Na exclusividade do lado diurno da história, o homem encontra-se divorciado, exilado de si mesmo, posto que afastado de Deus. Com a abertura da história ao seu lado noturno, númeno e fenômeno iluminam-se reciprocamente.23
Segundo Agostinho, estando a própria história da economia e do poder
de mandar disponível ao aceno da religião ou daquilo que verdadeiramente é
religioso na religião, isto é, o Espírito, teríamos que eternidade e tempo não
estariam de todo em regime de incompatibilidade e exclusão. Antes o contrário. É pela religião manifestada que “sonho” e “realidade” se confundem e que
sagrado e profano em simultâneo favorecem a revelação histórica do eterno e,
por conseguinte, a emergência de uma trans-historicidade na própria história. Assim também o entende com relação à arte24 e à ciência investidas pelo e
para o Espírito. Agostinho não nega radicalmente o mundo e a civilização que
critica. Não seria pela anulação da objetividade e da racionalidade em nome
de uma transcendência radical que a plenitude se daria, mas na sua própria
realidade transformada. Assim também o entendemos a propósito do mito.
Como a religião, o mito também é uma narrativa, o que supõe uma sucessão
cronológica, portanto, no tempo. Simultaneamente, é narrativa/expressão do
eterno concebido como Origem que integra passado, presente e futuro e os
transcende em divina trans-temporalidade, o que para Agostinho representaria o Paraíso como eterno presente. Destarte, tanto o tempo quanto a própria
história, para Agostinho, têm e são Outros, ou ainda são qualquer coisa somente na medida em que se revelam em sua diversa alteridade. É nesse sentido
que Agostinho afirma que o Reino do Espírito é já agora, nesse eterno presente
em que, “outrando-se” a história (ou seja, sendo religiosa, assumindo/assimilando a presença do Espírito ou do mistério da Origem de que cantam os mitos), tempo e eternidade cumprem o seu destino inequívoco: plenificação do
Absoluto na história, como fica expresso em suas reflexões sobre o Império do
Espírito Santo, a Ilha dos Amores e o sebastianismo.
O Espírito, portanto, é o elo que integra o que foi separado, o traço
comum de sujeito e objeto, por onde se estabelece todo o diálogo. Identificado com Deus (Nada que é Tudo), o Espírito é a indefinível e inesgotável fonte
que confere à Vida e à própria história a dádiva de poder fluir sob quaisquer
formas, inclusivamente sob forma nenhuma, num eterno processo de autopoiésis ou fantasia criadora25 da deidade, de cuja essência o homem participa,
constituindo isso a base de todo o verdadeiro artista e de toda a arte, entendida
como a revelação, fragmentada por homens, tempos e países, do Artista supremo
que Deus é.26 Assim entendemos o “outramento” do homem e da história, a
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sua abertura para o regime mitopoiético ou noturno e a própria teologia da
história em Agostinho. Para o pensador, as religiões históricas e a própria experiência fenomênica iluminada por laivos divinos são evidências da comparticipação do Absoluto e do histórico... por virtude do Espírito.
Notas
1 Cf. Agostinho da Silva. “Sobre Ideia de Deus”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II. Lisboa, Âncora, 1999, p. 296. Se
eu digo que Deus existe, segundo os nossos pobres, ignorantes ou pelo menos limitados critérios, lá se vai a ideia de que
Deus não existe, também segundo os mesmos limitados, ignorantes e pobres critérios.
2 Cf. Agostinho da Silva. “Do Previsível e do Imprevisível.” Idem, p. 380. Comentando Fernando Pessoa, e os
seus heterônimos, como alguém que a seu modo era um asceta num exercício de vôo para Deus, de seu próprio vôo,
não do vôo dos outros (...), Agostinho afirma: Ao essencial sabia ele [o poeta] que nenhuma atribuição é legítima e
a isso ligava, invento eu, o não haver prova alguma racional da existência de Deus ou da sua inexistência. Deus não
se afirma nem se nega: Deus É, mesmo quando não é, numa plena manifestação de sua suprema liberdade.
3 Agostinho da Silva. “Sobre Ideia de Deus”. Idem, p. 297.
4 Idem, ibidem, p. 296. (...) ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e objecto, Pai e Filho, com
um intervalo imediato de tempo e de espaço, como me sucede a mim quando me vejo ao espelho, ou me penso espelhado; mas, como acontece a mim e à minha imagem, a semelhança os liga, a identidade os une; e isto, que só existe
quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objecto, chamarei eu de Espírito Santo. O mistério da conjugação
também é apreciado por Agostinho quando o pensador diz que existe um Deus que é o conjunto de tudo quanto
apercebemos no Universo. Tudo o que existe contém Deus, Deus contém tudo o que existe. Pode-se, sem blasfêmia,
considerar o aspecto imanente ou o aspecto transcendente de Deus; pode-se, sem blasfêmia, falar não de Deus mas
apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel. Cf. Agostinho da Silva. “Doutrina
Cristã”. In: Textos e Ensaios Filosóficos. Vol. 1. Lisboa, Âncora, 1999, p. 81.
5 Cf. Agostinho da Silva. “Até Ao Primeiro Quartel...”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II. p. 306. Ainda na mesma
página Agostinho afirma: Portanto, para que surja um mundo diferente do actual, basta que eu mude, que me
insira naquele momento em que o alguma coisa se recolhe ao nada, o que só pode ser preparado e propiciado por
um comportamento dentro do mundo que existe, mas o mais diferente possível dos comportamentos normais, o que
é o conceito fonte das várias asceses de tantas culturas e o conceito fonte daquilo que nos Evangelhos cristãos vem
designado por metanónia ou, calculo, o samadhi de Oriente.
6 Nota-se nesta concepção uma tendência ao paradoxo lógico-ontológico que Agostino herdou (e com o qual
Agostino dialogou com uma leitura bastante original) de outros pensadores portugueses, como Antero de Quental, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, José Marinho e Eudoro de Sousa,
o que o faz entender Deus como (...) ausência de determinação ôntico-ontológica, um não um, uma não entidade,
um não algo, um vazio enquanto desprovido de qualquer qualificação delimitadora, positiva ou negativa, e, por isso
mesmo, ´tudo´, uma plenitude que se pode entender quer como um todo, simples, indiferenciado e indeterminado,
quer como um tudo propriamente dito, que contém em acto todas as determinações e antinomias possíveis, porém
sem que nelas se determine. Cf. Paulo Borges. “‘Do Nada que é Tudo’. A Poesia Pensante e Mística de Agostinho da
Silva”. In: Vários. Agostinho da Silva. Um Pensamento a Descobrir. Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e
Cultura, 2004, p. 122.
7 Nesse sentido, o Nada é aquilo que consuma e confirma a totalidade à qual nada falta, nem mesmo o seu outro, contrário, mas não contraditório, isto é, complementar, como afirma Agostinho ao refutar a tese que se apóia
no argumento da existência do mal para negar a existência de Deus: Que Deus absoluto seria esse, que totalidade
seria essa, se não pudesse aí haver aquilo a que chamamos mal e aquilo a que chamamos bem (...). Cf. Agostinho da
Silva. “Sobre Ideia de Deus”, p. 298.
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8 Esse divino Nada afigura-se como um vazio ontológico que é (...) possibilidade e potência do seu autopreenchimento infinito, dando-se tantas determinações quantas irrestritamente queira. Cf. Paulo A. E. Borges. “‘Do Nada
que é Tudo’. A Poesia Pensante e Mística de Agostinho da Silva”, p. 122.
9 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos. Vol. II, pp. 176 e 177: O culto
nacional de Camões é uma ficção palaciana, um emprego de eruditos e um pretexto de escultores. Mas o Povo, que
nunca o leu, sente e pensa, o que não implica consciência, o que o Poeta porventura pensou e sentiu, talvez também
inconsciente, já que o vocabulário empregado tinha, em seu tempo, um restrito sentido. A Fé do Povo é menos, por
exemplo, a cristã do que a de, apesar das aparências, ser justificada a Vida e ser desejável o futuro; quanto a Império
vê com indiferença como os do mundo se desmancham, mas por aquele anseia em que se não distingam céu e terra;
sabe que Inês é importante porque nela foi o Amor batido pelo Estado e dessa falta se tem Portugal que remir, porventura morrendo; aplaude o Magriço porque todo o humilhado tem que ser defendido; está bem preso o Adamastor
porque ofendeu o divino, amou o que lhe era incongruente e odiou o porvir; aplaude a paciência dos nautas e o bom
humor do Veloso; anseia que no fim da viagem de comércio e de guerra haja o repouso de um momento sem tempo
e de um lugar sem espaço; e sabe, lembrado, sem memória (pois que todos os homens o mesmo sabem, embora por
interesse ou medo o ignorem), de um Platão ou de um Joaquim de Flora, que toda a fixa aventura a que se chama
História se passa simultaneamente na eternidade e no tempo: entre os deuses do néctar e os marujos do vinho.
10 Esse mistério de ser um e ser outro, de ser banal e exceder a banalidade, enfim, de ser humano e ser divino,
simultaneamente, desvelando portanto o Absoluto ou o Nada que é Tudo, pode ser compreendido mediante o
simbolismo da Viagem como arquétipo de transcensão das antinomias. Trata-se, segundo Agostinho e a despeito
de comumente haver uma insistência na predominância do regime racional sobre a dimensão onírica, de uma
tendência arquetípica da história e da cultura portuguesas, presente desde a androginia erótica das Cantigas de
Amigo, a Ilha dos Amores, as Festas do Espírito Santo, o anseio sebástico da realização do impossível, chegando
à celebração do Amor e visão do Absoluto no pensamento português contemporâneo. Representa uma experiência interior ontológica em que o ser demanda mais ser e que, do ponto de vista antropo-teológico, permite a
transcensão do homem sem que esse o deixe de ser, ou seja, uma Viagem que vai do mesmo de si para o outro
de si mesmo. Cf. Agostinho da Silva. “De Como Os Portugueses Retomaram A Ilha dos Amores”. In: Dispersos.
Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989.
11 Efetivamente, Agostinho desenvolveu, em plano teórico místico-mítico, uma original teoria da história em
que se podem detectar, pelo menos, dois substratos essenciais: do seu mestre Jaime Cortesão, Agostinho fixou
a importância do culto do Espírito Santo, da heresia dos “espirituais” e de um franciscanismo afeiçoado à doutrina das “três idades” de Joaquim de Fiori, na Idade Média, e no período dos descobrimentos em Portugal; da
Seara Nova e de António Sérgio, a consciência de só recorrer ao passado se este servir de material de construção
para um futuro não forjado unicamente por uma elite aristocrático-intelectual, mas também pela exigência
social, democrática e coletiva de todo um povo. É que Agostinho, orientado por uma perspectiva escatológicosocial, tinha por fundamentos sociológicos as instituições democráticas portuguesas da Idade Média, a adesão
popular ao culto do Espírito Santo e também a experiência brasileira da revolta de Canudos. Essa fundamentação foi potencializada com a redescoberta do substrato mítico do povo português, quando o próprio Agostinho
empreendeu uma peculiar reinterpretação da literatura e da arte portuguesas – Quinto Império, sebastianismo,
escatologia de Joaquim de Fiori, profecias de Bandarra, teses de D. João de Castro, António Vieira e Fernando
Pessoa – que foram abordados sob um ângulo escatológico e simultaneamente social e paraclético. Para o tema
de uma teoria da história em Agostinho da Silva, cf. António Quadros. “Mitologia e Filosofia do Movimento
Histórico na Cultura Portuguesa”. In: Introdução À Filosofia da História. Lisboa, Editorial Verbo, 1982.
12 Segundo Eudoro de Sousa, em cada época histórica, homem e mundo estáticos julgam saber quais são a sua
origem e o seu destino. Partem da observação de uma presença do “mim”, que julgam ter, em detrimento do “eu”
que é, sempre foi e jamais deixará de ser. Assim os historiadores pensam a epocalidade, onde para um presente
(o seu actual e que julga ser o único) configuram-se um passado e um futuro como pólos contrários da presença
deste seu presente. É neste sentido que, em História, cada atualidade tem a sua antigüidade. Investigando por
este método, o que o homem descobre não é o passado ou o futuro, senão o seu próprio presente excludente e
separado. Este presente nega o que está para além do horizonte do antigo (o limite do seu pensamento racional e
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o limiar do “mais ser”). Por esta ótica, o homem está condenado a ser sempre o mesmo, perdendo (ou reduzindo) a sua capacidade de se desdobrar em sua pluridimensionalidade. Ao denunciar a autocondenação humana,
Eudoro alerta para o perigo de completa bancarrota da condição humana, carente de religião e de Liberdade, se
a história concebida como presença do presente que se projeta no passado e no futuro, continuar a reivindicar
para si a verdade absoluta e exclusiva de uma só imagem do antigo. Cf. Eudoro de Sousa. História e Mito. Brasília,
Editora da Universidade de Brasília, 1981.
13 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 163: Imortais somos porque
o tempo é consubstancial do eterno.
14 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II.
15 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 232.
16 Cf. Eudoro de Sousa. História e Mito. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981.
17 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 174: E porquanto é à minha
imagem darei ao homem por destino a liberdade. O texto original traz aspas como se tratasse do próprio discurso
direto de Deus, referindo-se ao homem.
18 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”, p. 231.
19 Idem, ibidem, p. 231.
20 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”, p. 232.
21 Para a idéia de tempo plenificado, cf. Agostinho da Silva. “Introdução a Regresso ao Paraíso, de Teixeira de
Pascoaes”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 370: (...) talvez não venha a haver nenhuma distinção entre passado
e futuro e presente, talvez que mortos nos sonhemos vivos/ talvez que vivos nos saibamos mortos. Talvez que sobre nós
pese apenas uma fatalidade, aquela de que não sabemos ou não podemos soltar a nossa própria concepção de Deus:
a fatalidade de ser livre.
22 De maneira que a eternidade já não é concebida como regresso ou acesso a um estado incompatível com a nossa
historicidade essencial, mas como uma progressiva ampliação e enriquecimento ontológico dos presentes a viver, através da série infindável das suas renovações. Cf. Eduardo Abranches Soveral. “Agostinho da Silva: Um Homem de
Deus”. In: Calafate, Pedro (Dir.). História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V. O Século XX. Tomo I. Lisboa,
Editorial Caminho, 2000, p. 278
23 Daí Agostinho atribuir um sentido íntimo e universal a Os Lusíadas. Para tal, repensa o mito da Ilha Paradisíaca, criando uma ficção na qual um estucador ébrio de vislumbres recebe o próprio Camões (figurando a
secular e mística experiência portuguesa da vida), que retorna para exortar a todos a humildade que leva ao destino máximo, ou seja, ao homem pleno, ao vivo Deus, à união dos opostos/complementares, à ascensão aos céus
após ter abraçado toda a Terra. Nesse sentido, o Espírito português representado pelo vate não teria regressado
para tratar da viagem do Gama, ou da busca de uma Índia geográfica, senão para lembrar ao homem o desejo, e
mesmo a sua vocação, de atravessar o Oceano de tempo e espaço ou o Oceano da alma em demanda de um além
da objetividade, uma dimensão na qual tudo seria em simultâneo e para além da oposição aparências-aparições,
eternidade-temporal, sagrado-profano, onde Deus e homem constituíssem a mesma realidade. Cf. Agostinho
da Silva. “De Como os Portugueses Retomaram A Ilha dos Amores”. In: Dispersos. Lisboa, Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa, 1989.
24 Se, por um lado, a reflexão sobre a manifestação do princípio de Liberdade conduz Agostinho a uma crítica à
história, a ponto do pensador sugerir a abertura do seu regime exclusivamente diurno às profundezas abissais de
sua realidade noturna, para que só assim então pudesse emergir como a mais excelsa aventura do Espírito pleno
e plenificador, por outro, o mesmo problema o faz especular sobre a essência da criação e da arte, o que nos leva
a crer que história e arte constituem dois aspectos de um mesmo problema fundamental em Agostinho.
25 Cf. Agostinho da Silva. “As Aproximações”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 37.
26 Idem, ibidem, p. 37.
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Resumo
É intenção deste artigo proceder a uma reflexão sobre as concepções de Agostinho da Silva
acerca de Deus, homem e das suas íntimas e recíprocas comutações, buscando captar a
percepção do pensador luso-brasileiro a respeito do movimento histórico em sua dinâmica com a revelação/inspiração do Espírito, atentando para uma sutil e tácita intuição de
uma filosofia da história que, pretendendo promover a fusão dos opostos-complementares e superar a separação entre sujeito e objeto, abriria uma via de encontro entre mito e
história ou entre o sagrado e o profano, culminando com a conjectura de uma apoteótica
realização de Deus no homem histórico e também o inverso, ou seja, do homem na divindade.
Palavras-chave: Deus; Homem; Espírito; História; Mito; Presente Plenificado.
Abstract
This article aims to reflect on Agostinho da Silva’s conceptions of God, men and their
intimate and mutual commutations, trying to capture Agostinho da Silva’s perception
regarding historical movement in its dynamics with revelation/inspiration of the Spirit.
It also underscores a subtle tacit intuition of a philosophy of history which, intending to
promote the synthesis of opposite-complements and to overcome subject-object segregation, would further the encounter between myth and history or between the sacred
and the profane, culminating with an apotheotic realization of God in man and also the
opposite, i.e., man in divinity.
Keywords: God; Man; Spirit; History; Myth; Plenty Present.
Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva
Isaque Pereira de Carvalho
170
O pensamento filosófico
de Agostinho da Silva
João Ferreira*
O estudo do pensamento filosófico do notável luso-brasileiro George
Agostinho da Silva (1906-1994) pressupõe o estabelecimento prévio de um
corpus textual que dê ao elaborador do texto a matéria-prima necessária.
Para dispormos de mais facilidade na prática da leitura, demos preferência
aos textos apresentados pela edição da Âncora que, por ser uma coleta selecionada por profissionais da filosofia, ganha, de entrada, certa vantagem.
Essa edição consta basicamente de dois volumes de textos e ensaios, onde
estão reunidos os escritos mais significativos sobre o pensamento filosófico
de Agostinho.1
Agostinho da Silva utilizou uma enorme variedade de gêneros de transmissão e comunicação: cartas, aproximações, considerações, conversações,
convergências, divergências, paradoxos, pensamentos à solta (com puzzle implícito), ajustamentos, conversas vadias, fragmentos, folhetos, folhas, glossas,
ensaios, notas, parábolas, apólogos, projetos, artigos e um número sem-fim de
originais criações, incluindo pensamento em farmácia de província, aliás, bem
interessante. Assinados pelo ortônimo Agostinho da Silva e por variados heterônimos, os textos apresentam reflexões, axiomas, princípios, doutrinas, conceitos, mensagens. De uma forma geral, podemos dizer que não está no estilo
de Agostinho da Silva escrever tratados ou exposições sistemáticos, nem fazer
demonstrações silogísticas, como acontece com várias exposições dos filósofos
clássicos apresentados pela história da filosofia. Agostinho caracteriza-se cir* João Ferreira nasceu em Agunchos, Cerva, Portugal. Veio para o Brasil em 1968 para assumir a docência no
Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília, por intermediação de Agostinho da Silva, nessa altura
Coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB. Possui doutorado em Filosofia e Pós-doutorado em Literatura Portuguesa. É atualmente Professor Titular aposentado da Universidade de Brasília. Principais obras publicadas: Presença do augustinismo avicenizante na teoria dos intelectos de Pedro Hispano. Braga:
1959; Existência e fundamentação geral da Filosofia Portuguesa. Braga: 1965; Uaná. Narrativa Africana. São Paulo:
Global Editora, 1987; A Questão do Pré-Modernismo na Literatura Portuguesa. Brasília: 1996; A alma das Coisas
(Poemas). Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2004. Na área de tradução, foi coordenador de tradução, revisor e um
dos tradutores do Dicionário de Política de Norberto Bobbio, Brasília: Ed. da UnB, 1986.
171
cunstancialmente tanto pela exposição temática quanto pelas manifestações
espontâneas de pensamento. E é desta forma que se torna acessível elaborar
um mapa de conteúdos de natureza filosófica que representam sua visão de
mundo e ideologia.
Agostinho era um entendedor profundo da filosofia clássica da Grécia e da Roma antigas. Lia, comentava, expunha, traduzia. Desde Pitágoras,
Parmênides e Heráclito até Sócrates. Desde Platão e Aristóteles, íntimos de
sua leitura, até aos doutrinadores do estoicismo e do epicurismo. Da Filosofia
romana, conhecia em profundidade Cícero e Sêneca, traduziu o De rerum natura, de Lucrécio. Conhecia os filósofos humanistas. Nutria admiração especial por Baruch Spinoza, judeu português, natural, segundo alguns biógrafos,
de Castelo de Vide, emigrado para Amsterdão, na Holanda. Spinoza é autor
de Ética, onde defende um sistema de visão panteísta do mundo, que agrada
a Agostinho. É oportuno dizer, entretanto, que suas leituras são mais um contato, uma forma de diálogo. No fundo, Agostinho permanecerá sempre como
um livre-pensador. Livre, porque postula para seu espírito a prioridade da
inquietação, da reflexão e da meditação, independentemente dos sistemas e
teorias presentes na história da filosofia.
Como cigano do mundo, Agostinho interpreta o pensar histórico humano como parte de uma interrogação fundamental e universal, que é a interrogação sobre o mistério do universo. É por isso que a reflexão em seu itinerário filosófico não tem a condicionante do sistema desta ou daquela escola,
deste ou daquele autor. Não é por conseguinte nem cartesiana, nem kantiana,
nem husserliana, nem hegeliana. A tônica estrutural do seu pensamento é a
tônica do espírito. Uma tônica itinerante, ontológica, religiosa, mística, que
busca a essencial relação com Deus e com o sentido do mundo. Como seu
homônimo Agostinho de Hipona, um pensador cristão de pendor platônico e
intimista, Agostinho da Silva achará dentro de si e na peregrinação pelo mundo as coordenadas de uma itinerância filosófica própria.
Quando falamos de itinerância filosófica própria, referimo-nos a coordenadas próprias, fundantes: abertas, soltas, para que o espírito sempre ficasse
livre para pensar, sentir, sondar, farejar, refletir, captar, formular, duvidar, indagar, interrogar, intuir, dizer, expor, propor, ouvir, dialogar. Agostinho não
é um simples comentador e tem pouca inclinação a ser discípulo. Mas tem
muita vocação e jeito para ser mestre. No fundo, é um postulador. Um propositor. Cria doutrinas, teses e reflexões sobre o mundo. Por força presencial ou
pela palavra falada e escrita, atrai ouvintes e leitores, faz discípulos, passando
adiante sua doutrina. Tem luz e coloca-a no caminho dos caminhantes da filoO pensamento filosófico de Agostinho da Silva
João Ferreira
172
sofia. De uma maneira adequada utiliza a filosofia como reflexão e dá-lhe, em
casos necessários, o estatuto de teorização. No fundo, não esconde que o exercício dialético em si e a cultura balofa e erudita de arquivo o aborrece. Atraem-no por outro lado, o pensamento vivo e a sua função vital. De preferência,
caminha na direção de uma filosofia antropológica e itinerante que nas trilhas
dos modelos de origem se caracterizará pela busca de um sentido identitário
binário, onde haverá, de um lado, um rosto voltado para o indivíduo que tenta
encontrar seu lugar no mundo, e, de outro lado, um segundo rosto apontado
para a identidade dentro do grupo cultural a que pertence.
Nesse sentido, a filosofia de Agostinho move-se funcionalmente como
se fosse um instrumento ancilar. Função que é em sua essência uma função
de serviço. Dito por outras palavras, a filosofia tem a função de ser um instrumento de sustentação dialética de atos culturais. Essa noção é utilizada por
Agostinho para muitas tarefas.
Em termos de linguagem filosófica, sabemos que uma parte da exposição agostiniana é reflexiva, como se depreende de As Aproximações, de Só
Ajustamentos e Considerações. Sempre uma reflexão típica, por vezes puxando
para o anárquico, para o improvisado e até para o aleatório, mas onde o modus
dialético se mostra irredutível a modelos alheios ao seu pensar. Em Sete cartas
a um jovem filósofo, a base do diálogo de José Navarro com o amigo Luís – não
obstante a presença doutrinária pagã e primitiva, carregada de espontaneísmo
e naturalismo, à moda de Alberto Caeiro, que aflora aqui e ali –, é a de tentar
estruturar a mente do discípulo, mostrando ao jovem que é pelo aprendizado
da reflexão que se adquire uma experiência contra as ciladas da mente e se
constrói um forte “núcleo interior” do qual emanam todas as reflexões fundantes da vida. O excerto a seguir ilustra bem o lugar que Agostinho dava
à filosofia como reflexão: “Do que você precisa, acima de tudo, é de se não
lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você;
fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o
que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus.
Se o Criador o tivesse querido juntar muito a mim, não teríamos talvez dois
corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem
servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha
a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence”.2 A
par da filosofia como reflexão, encontramos nele, também, a filosofia sonhadora, utópica, subjetiva e idealista, que representa a parte mais central de seu
espírito itinerante. Faz parte da filosofia utópica e sonhadora de Agostinho a
conhecida doutrina do Quinto Império, que se manifesta nos arroubos mesRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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siânicos do sapateiro de Trancoso, em António Vieira e Fernando Pessoa e se
esculpe abertamente em Agostinho da Silva.
Por outro lado, é indisfarçável a presença da brilhante parte retórica na
teorização, nos discursos que levam à formulação de axiomas, aos princípios
doutrinais e às justificativas ontológicas e existenciais. A teoria tem por fim a
elaboração de princípios. E os princípios são de natureza fundante. Não temos
dúvida de que também para Agostinho da Silva a teorização representou o
lado básico de sua filosofia. Isto quer dizer que sem teorização não teria como
expor seus argumentos nem como convencer seus leitores. Através da exposição e da justificação teórica de argumentos, Agostinho conseguiu estabelecer
os pontos de partida, as bases e os caminhos da própria doutrina e da própria
ideologia.
Um aspecto muito importante que surge no conjunto dos textos filosóficos de Agostinho é o claro apelo do autor à prestação de serviços pela filosofia. Ou seja, Agostinho apela para o serviço ancilar que a filosofia deve prestar como sustentação dialética e argumentativa em circunstâncias especiais.
É algo especial, parecido com aquilo que acontecia na Filosofia Escolástica da
Idade Média. A filosofia era nesse tempo convidada a emprestar seus serviços
instrumentais a favor da teologia. Era chamada por isso ancilla Theologiae,
serva, de serviços alugados para a Teologia, a fim de que desse sua ajuda instrumental na elaboração dialética e apresentação racional da teologia.
No pensamento de Agostinho da Silva, a filosofia é aproveitada também como instrumentação de várias formas, como justificativa de ideal, como
fundação pedagógica, e como instrumento de defesa de identidade individual
e coletiva.
Em termos de cultura portuguesa, a filosofia aparece em Agostinho
como ato fundante da identidade cultural portuguesa.
Agostinho mostra esta função instrumental da filosofia, ao exprimir a
sua esperança de ver um Portugal renascido a partir de uma teoria portuguesa
fundante, ou de uma verdadeira filosofia portuguesa: “No fundo”, diz Agostinho, “continuo a acalentar o sonho de ver a verdadeira filosofia portuguesa
a comandar tudo isto e a partir daí ver Portugal a desempenhar um novo e
importante papel no mundo.”3
Pela citação vêem-se a defesa e o aproveitamento da filosofia como instrumento dialético de equacionamento de princípios e de valores nacionais,
ao qual se dá uma finalidade visível na cultura portuguesa.
Existe nas dimensões da filosofia como consciência do ser, como teoria
e como busca de valores uma margem ampla para sabermos que na mente de
O pensamento filosófico de Agostinho da Silva
João Ferreira
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Agostinho há também uma função pedagógica na filosofia, que é a de esclarecer, orientar, servir e doutrinar no que se refere à missão de Portugal. No
contexto, a filosofia aparece como instrumento de recriação, de recuperação e
de retorno aos arquétipos de origem.
São exemplos vivos desta defesa da filosofia como ato fundante da
identidade portuguesa, a defesa do movimento em favor da exemplaridade da
criança, lembrada como símbolo exemplar por ocasião de suas exposições sobre as festas do Espírito Santo, próprias da antiga cultura portuguesa. A criança seria o símbolo do caminho promissor de um reencontro com a autêntica
identidade portuguesa, hoje fortemente degradada. Ir na direção da redescoberta da identidade portuguesa é dizer um não à alteridade ou recusar-se a
ser simplesmente o outro. Esta filosofia cultural retoma na sua genuinidade
as teses centrais propostas pelo neogarretismo e por Teixeira de Pascoaes n’A
Águia e na Renascença Portuguesa.
Ao colocar a filosofia como um instrumento hermenêutico da história, da cultura e do destino de Portugal, na tentativa de mostrar os caminhos
da identidade portuguesa, Agostinho lança mão da fecunda idéia criacionista.
Esta idéia é um não rotundo ao conservadorismo e um convite à reconstrução
portuguesa no plano dos indivíduos e da nação. Na entrevista com Henryk
Siewierski lança as bases deste criacionismo. Ao defender que “o mundo é algo
que se esculpe”,4 Mestre Agostinho está trazendo para o debate um princípio
renovador que passará a constituir uma linha de pensamento muito característica. Dentro dessa linha de pensamento, o homem passará, de igual forma, a
ser entendido como algo que se esculpe, que se cria, que se faz. Sempre atento
e renovador, Agostinho evita o tom pessimista do existencialismo de Sartre
para quem “o homem é uma paixão inútil”. Para Agostinho, a vida é um ato
de construção. Bem à maneira do mestre Leonardo Coimbra, que dizia que “o
homem é um ser que se faz”, Agostinho defende o projeto de uma construção
evolutiva do homem.
Esta idéia, na verdade, havia sido posta a circular em Portugal, muito antes, no tempo da Renascença Portuguesa, no período de 1912 a 1915.
Seu mais destacado teórico havia sido Leonardo Coimbra, que a explanou, em
1912, em seu livro O Criacionismo. Mas foi partilhada por outros portugueses
do tempo, especialmente por Teixeira de Pascoaes, líder da Renascença Portuguesa, que deu a seus poemas Marânus e Regresso ao Paraíso um tom inteiramente criacionista. Agostinho retoma a idéia e estende-a à hermenêutica da
história portuguesa, tornando-a uma referência essencial em seu pensamento.
O reencontro com a teoria dinâmica do criacionismo vem colocá-lo entre os
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pensadores vitalistas que se opuseram à dominação positivista, racionalista e
intelectualista que havia caracterizado o fim do século XIX. Nessa altura, Nietzsche havia tentado desmontar a polaridade do binômio bem-mal, e avançado com a valorização do lado dionisíaco da filosofia da cultura, chamando a
atenção para o aspecto da sensibilidade e da emoção. Com isso teve o mérito
de mostrar que há, para além da razão, o mundo importante da sensibilidade
e da emoção. Sua obra Assim falou Zaratustra passou a significar a defesa da
expressão livre e leiga da filosofia. Todo o processo nietzschiano terá o rótulo
de operação desconstrutiva de profundo alcance no Ocidente. A filosofia dá
após Nietzsche uma virada antiintelectualista de 90 graus. Portugal está presente também nessa virada. Graças também a Henri Bergson, que Leonardo
descobre e divulga em Portugal. É a voz da filosofia vitalista ganhando terreno.
Uma filosofia cujo fundo estará presente em Prolegômenos para uma filosofia
não-aristotélica, de Álvaro de Campos. Estes conceitos vitalistas casam-se com
as tendências portuguesas que buscam a renovação. Nesse espírito se encaixam o neogarretismo, já em campo, o movimento literário do Porto e demais
movimentos literários nacionalistas acompanhados de perto pelo genial modernismo de Fernando Pessoa.
É importante dizer que este comportamento da filosofia portuguesa
bem representada por Leonardo Coimbra e pela Renascença Portuguesa passava a simbolizar as preocupações culturais do país. A doutrina criacionista de
que “o homem é um ser que se faz” é uma tese revolucionária que se antecipa
ao pensamento existencial europeu de Gabriel Marcel e Martin Heidegger e
que irá repercutir. Assimilando este facho doutrinal do criacionismo leonardino, Agostinho, vai dizer em seu livro Só Ajustamentos, publicado em 1962,
que “ao lado dos que acham o mundo inteiramente feito”, existem aqueles aos
quais parece que o dito mundo se encontra em plena evolução.”5 “O mundo
é algo que se esculpe”, acrescentará depois – como vimos –, em entrevista a
Henrik Siewierski.6 Este princípio irá reforçar o preceito de que ao filósofo cabe descobrir, guardar para si e para os outros “aquela íntima e última verdade
que nas coisas anda”. Em sua principal linha, o discurso imaginativo, reflexivo
e expositivo de Agostinho se manterá nesta rota criacionista, para defender e
mostrar que o homem é uma construção de si mesmo.
Ao princípio criacionista convém juntar um outro princípio de profunda significação no universo filosófico de Mestre Agostinho da Silva. Esse
princípio é o da concepção de vida como modo e como arte de viver e traduzse na fórmula da philosophia ut ars vivendi.
A opção criacionista chamada para reformular todo um conceito de
O pensamento filosófico de Agostinho da Silva
João Ferreira
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vida, passa a ser vista, desde agora, como um princípio fundante. Ou seja, o
teor criacionista, como visão de mundo, passará a formar toda a base da filosofia de Agostinho, e a filosofia será vista, especificamente, como uma ratio
vitae, como uma “razão de vida”. A propósito, não há melhor texto do que este,
extraído do livro Considerações:
“Não seria mau que se tornassem a mostrar as almas e que a filosofia deixasse de ser apenas uma disciplina ensinável para voltar a
constituir um engrandecimento e uma razão de vida; correria talvez
melhor o mundo se escolas de existência filosófica agissem como
um fermento, fossem a guarda da pura idéia, dessem um exemplo
de ascetismo, de tenacidade na calma recusa da boa posição, de alegria na pobreza, de sempre desperta atividade no ataque de todas
as atitudes e doutrinas que significassem diminuição do espírito, ao
mesmo tempo se recusando a exercer todo o domínio que não viesse da adesão. Velas incapazes de se deixarem arrastar por ventos de
acaso, seguiriam sempre, indicariam aos outros o rumo ascensional da vida, não deixando que jamais se quebrasse o tênue fio que
através de todos os labirintos a Humanidade tem seguido na sua
marcha para Deus. Seriam poucos, sofreriam ataques dos próprios
que simpatizassem com a atitude tomada, quase só encontrariam no
caminho incompreensão e maldade; mas deles seria a vitória final; já
hoje mesmo provocariam o respeito.”7
Fica bem claro que, para Agostinho, a filosofia se justifica não como
um exercício retórico ou como uma montagem dialética que teoriza abstratamente sobre o cosmos, mas passa a ser uma arte de fundação e de ajustamento
de rotas para o homem em sua existência peregrina. Ela tende a encontrar um
caminho de luz e de orientação existencial para o homem, a tornar-se consciência de um Dasein in der Welt.
A partir deste horizonte, a filosofia será considerada como uma ars
vivendi, como uma forma de vida. Aliás, uma concepção que tem suas raízes
na filosofia antiga. Vem desde Platão, passa pelos estóicos, por Filão de Alexandria, por Santo Agostinho e Boécio. É retomada por São Boaventura no século
XIII, e depois por Pascal no século XVIII, por Maurice Blondel no século XIX
e chega a Henri Bergson, no início do século XX. Como ars vivendi, a filosofia
se transforma na busca adequada de uma justificação de um estilo de vida, e de
uma sustentação para uma forma de viver. É, assim, um instrumento teóricopragmático que o filósofo utiliza para construir sua própria vida.
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Em Sete cartas a um jovem filósofo, Agostinho apresenta algumas coordenadas que mostram como ele entende a filosofia e o pensamento filosófico.
Ao contrário dos “grandes criadores de sistemas de filosofia”, que considera
“intolerantes e fechados”, Agostinho não coloca como prioridade importante
conhecer os sistemas ou as doutrinas alheias, nem sequer mesmo construir
uma filosofia com doutrinas próprias. Mais do que construir uma filosofia com
doutrinas próprias, é importante construir uma vida com uma filosofia própria,
como fizeram certos gregos e alguns hindus. Aproveitando esta maneira de
encarar a filosofia, coloca uma interrogação ao jovem filósofo Luís, seu interlocutor das Sete Cartas: “Para que lhe servirá a você, diz, construir um
sistema filosófico que não amadureceu dentro de si, e não fez corpo consigo,
que você não tem de dar ao mundo, por uma obrigação que o excede (...). A
glória pode esperar, podem esperar as recompensas, pode esperar o gosto de
viver (...). Tudo pode esperar. Aguardemos pacientemente que em nós brote
aquilo a que viemos.”8
Para Agostinho da Silva, aquilo a que viemos é certamente a tarefa de
tentar sondar a natureza de nosso destino. Para esse esclarecimento, não deixam de ser importantes os esforços dos pensadores e filósofos antigos e modernos, assim como as definições tradicionais sobre o que seja filosofia. Mas
mais importante parece ser a atitude de Mestre Agostinho, ao questionar as
fronteiras conceptuais do termo, desabilitando a radicalidade com que por vezes se reduz o campo da reflexão filosófica a conceitos de sistemas ou de rigor
dialético e abrindo-o para horizontes vitais e existenciais com que o homem
lida diretamente. Só pelo fato de ele ter buscado a filosofia como reflexão e
como atitude de vida, já se nos apresenta como um filósofo de raiz.
Mas o que especificamente o caracteriza é seu discurso autônomo, sua
postura dialética e questionadora sobre o sentido da vida e do mundo, sua defesa da liberdade de ser e de criar, uma utopia renovadora, sua fé inabalável no
homem e no futuro da civilização lusíada, representada pelos povos de língua
portuguesa.
Notas
1 SILVA, Agostinho da. Textos e Ensaios Filosóficos I e II. Lisboa: Âncora Editora, 1999. Organização de Paulo
Alexandre Esteves Borges.
2 SILVA, Agostinho da. Sete Cartas a um Jovem Filósofo. In: Textos e Ensaios Filosóficos I . Lisboa: Âncora Editora,
1999, p. 248.
3 SILVA, Agostinho da. A última conversa [entrevista a Luís Machado]. Lisboa: Editorial Notícias, 1995, p. 49.
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4 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organização e prefácio de Henryk Siewierski, p. 103.
5 SILVA, Agostinho da. Só Ajustamentos. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1962, p. 51.
6 SILVA, Agostinho da. Vida conversável, p. 103.
7 SILVA, Agostinho da. Considerações: Da Vida Filosófica. In: ____. Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 94.
8 SILVA, Agostinho da. Sete Cartas a um Jovem Filósofo, p. 255.
Resumo
Expõe-se neste texto o teor e a qualidade do pensamento filosófico de Agostinho da Silva.
Mostra-se que a tônica espiritual de Agostinho é itinerante, ontológica, religiosa e mística,
sempre carregada da relação contextual da cultura lusíada. Agostinho cria doutrinas, teses
e reflexões sobre o homem e o mundo. Mostra luz própria e coloca suas reflexões no caminho dos caminhantes da filosofia. De maneira adequada, usa a filosofia como reflexão.
O grande destaque da natureza desta reflexão é a opção que Agostinho faz pela filosofia
como pensamento vivo, dando à filosofia a função de ser uma teorização para a arte de bem
viver. A filosofia de Agostinho caracteriza-se também como um instrumento ancilar, ou
seja, a filosofia é prestadora de serviços. Entre esses serviços, vemo-la como ato teorizante e
fundante da descoberta e exercício da identidade portuguesa e também como instrumento
pedagógico para orientação e doutrinação da missão de Portugal no mundo. Ao lado disso,
há textos que a colocam a serviço da hermenêutica da história e da cultura e do destino
de Portugal. Na tentativa de mostrar os caminhos da identidade portuguesa, Agostinho
recorre à idéia criacionista, mostrando que é o próprio homem que tem de abrir horizontes
para a construção de seus caminhos. Essa idéia criacionista era uma idéia preferencial que
seu mestre Leonardo Coimbra defendia desde a publicação de seu livro O Criacionismo
em 1912 e que mais tarde levou para a Faculdade de Letras do Porto. No decurso de suas
explanações opta pela filosofia como ato vital. A filosofia será por isso, no fundo, conforme
expõe claramente em Sete cartas a um jovem filósofo, acima de tudo, uma teorização básica
sobre a arte de viver – o que termina por ser uma adesão à tese da philosophia ut ars vivendi,
na seqüência de grandes outros mestres numa linha que vem desde Platão, seguindo adiante através de Santo Agostinho, São Boaventura, Pascal e Henri Bergson.
Palavras-chave:
Pensamento filosófico; Filosofia como reflexão; Filosofia como
ars vivendi; Coordenadas fundantes da filosofia; Filosofia criacionista.
Résumé
La ligne thématique de cette étude c’est celle de présenter la pensée philosophique du
luso-brésilien George Agostinho da Silva (1906-1994). La recherche a eté basé premièreRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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ment sur les principes de la philosophie en générale, et puis sur la philosophie classique,
moderne et contemporaine, montrant surtout la pensée originale du propre auteur. On a
l’intention de montrer en quelle mesure la philosophie de Agostinho c’est une philosophie
de liberté, de théorie et d’action créatrice. D’une côté lui-même réivindique la philosophie
comme un acte de réflexion et de théorisation, et, de l’autre côté, comme un acte fondante
de la culture portugaise, une philosophie vitaliste et dernièrement comme une conception
de vie, comme une ars vivendi.
Mots-clé: Pensée philosophique; Philosophie comme réflexion; Philosophie comme
ars vivendi; Coordonnées fondantes de la philosophie; Philosophie créationiste.
O pensamento filosófico de Agostinho da Silva
João Ferreira
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Subsídios para um perfil filosófico
João Maria de Freitas Branco*
Anteposta a interrogativa quem é ou foi Agostinho da Silva sempre
tem havido a tendência de lhe corresponder recorrendo a um qualificativo, quando não único pelo menos capital: o de filósofo. E o que se aplicou
ao homem desde logo se estendeu à obra. Bastará o elementar exercício de
consulta das nossas enciclopédias ou dicionários temáticos para verificar o
persistente uso desse qualificativo. A mero título de exemplo retenha-se o
que nos é dito numa das mais recentes e insuspeitas publicações do género:
o último volume do Dicionário de História de Portugal. Aí encontramos no
artigo dedicado a George Agostinho Baptista da Silva (tal era o seu nome
completo) a informação de ter sido ele “filólogo, filósofo e professor universitário”.1 A reafirmação da qualidade de filósofo, uma vez mais, e em volume
ainda fresco e de indiscutível exigência científica, é bem claro sintoma de
uma consensualidade firmada. Essa caracterização unânime dos enciclopedistas, historiadores, jornalistas ou investigadores em geral tem sido largamente corroborada pela vox populi; nem outra coisa seria de esperar. Daí que
por todos os cantos se oiça falar do filósofo Agostinho da Silva (sem George
nem Baptista, como ele preferia) e de “filosofia agostiniana” – neste caso não
a do santo teólogo de Tagaste, senão que a do bem nosso da Silva.
* João Maria de Freitas Branco é professor universitário, investigador científico do Centro Interdisciplinar
de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), responsável pelo projecto Social
Comunication of Science. Presidente do Ginásio Ópera e membro da Direcção da Sociedade dos Amigos da
Razão, de que foi um dos fundadores. Foi membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia. Trabalhou
como investigador na Humboldt Universität de Berlim. Foi co-fundador e membro da Comissão Instaladora da
Universidade Atlântica, integrando posteriormente o seu Conselho Científico. Pertenceu ao Conselho Científico
do IPAM. Conferencista no âmbito português e internacional, produziu espectáculos e eventos artísticos. Nos
últimos anos tem sido o dinamizador cultural do Espaço dos Sentidos, em Oeiras, onde coordena os ciclos de
“Cinema Clássico” e “Ópera com Chá”. Tem dezenas de artigos publicados em revistas e jornais portugueses
e estrangeiros. É também autor de programas de rádio e colaborador permanente da RDP Antena 2. Alguns
dos títulos de que é autor: A problemática da materialidade na filosofia de Ravaisson, Editorial Inquérito, 1988;
Dialéctica, ciência e natureza, Editorial Caminho, 1990; Pensar a democracia, Editorial Inquérito, 1994; O músico-filósofo, Juventude Musical Portuguesa, Lisboa, 2005; Agostinho da Silva: um perfil filosófico – Do sergismo ao
pensamento à solta, Zéfiro, Lisboa, 2006.
181
Perante tão generalizada e consensual opinião, solidamente impressa
em livros conceituados, haverá algum motivo para dela duvidarmos? Creio
bem que sim. E ao tratar-se do autor de Considerações talvez não nos deva
surpreender ter a objecção a aparência de paradoxo: é que, quando ao próprio
se antepunha a interrogativa que aqui nos serviu de ponto de partida, a resposta de autocaracterização sempre divergiu do designativo consensual. Não
me recordo de alguma vez ter lido um escrito de Agostinho da Silva em que ele
se apresentasse ao leitor como filósofo; assim como no convívio directo que,
por sua generosidade, tive o privilégio de manter ao longo de anos jamais o vi
aceitar o rótulo de filósofo. Já o mesmo não posso afirmar da reacção oposta:
em várias circunstâncias o vi denegar tal estatuto com firmeza suficiente para
afastar a hipótese de mero pudoroso gesto de modéstia.
Não querendo evocar declarações proferidas no âmbito do convívio
privado, recorro à citação de um texto público cuja relevância me parece continuar a ser inversamente proporcional à atenção que lhe tem sido dispensada.
Refiro-me à entrevista concedida em 1985 à revista Filosofia, publicação periódica da Sociedade Portuguesa de Filosofia e que, do ponto de vista filosófico,
talvez seja a mais importante de todas as que Agostinho concedeu (e a cuja
concretização tive o gosto de não ter sido alheio, por efeito da minha então
qualidade de membro da Direcção da S.P.F.).
Lê-se aí o seguinte: «Continuo interessado no grego, não pela filosofia,
mas pela filologia. [...] sou um filologante, não um filosofante.» 2
Esta declaração é tanto mais significativa se considerarmos que emerge no contexto de um diálogo com filósofos e endereçado a profissionais da
filosofia, membros da respeitável Sociedade representativa daquilo a que se
poderá considerar o nosso meio filosófico.
E como na época estava ele a trabalhar numa obra de Nietzsche, tem ainda o à-vontade de acrescentar, perante os olhos incrédulos dos senhores filósofos
entrevistadores, o seguinte: «[Estou] muito mais interessado no extraordinário
alemão do Nietzsche do que no seu pensamento.»
Neste contexto, parece-me interessante reler-se o parágrafo final de um
dos mais lúcidos textos dedicados à forma como por cá se tem olhado a filosofia; trata-se de um dos escritos incluído em Considerações e tendo por título
“Da chamada filosofia”:
«[...] existe, para quem se não sente com preparação e força para a
filosofia, [...] um género humilde, de simples comentário, de nota à
margem, um género despreocupado e de parca exigência em matéria
de saber e de pensar: o considerativo, aqui presente.» 3
Subsídios para um perfil filosófico
João Maria de Freitas Branco
182
Do que escreveu e disse pode estão concluir-se que o autor das Sete
cartas a um jovem filósofo não se considerava filósofo. Vem assim, ele próprio,
beliscar a serena consensualidade reinante em torno da caracterização do seu
perfil intelectual ou profissional.
Esta constatação da existência de opiniões contrastantes entre o que
autor pensa de si e o juízo de outros sobre ele não constitui prova de erro na
utilização do qualificativo pelos enciclopedistas, historiadores e demais opinantes. A ideia de que a auto-observação sempre gera conclusões mais acertadas é, como há muito sabemos, destituída de qualquer fundamento. Disso nos
dá conta a história das realizações humanas nas vezes sem conta em que foi o
olhar de fora que melhor perscrutou os contornos, a dimensão, a relevância,
as implicações do trabalho do espírito e das obras.
O contraste de opiniões ou, se preferirmos, a paradoxal concepção da
figura e obra de Agostinho da Silva que pretendi pôr em relevo não é questão
menor. O seu capital interesse consiste em abrir caminho a um espaço de
problematização e dúvida que talvez não por acaso tem permanecido virgem.
Onde está – se é que existe – o filósofo Agostinho da Silva que o próprio dizia
não ser? Quem tem razão? E se admitirmos que a razão está do seu lado, onde
se gerou tão vasta ilusão dessa presença?
Quando é que se torna acertada ou recomendável o uso da designação
de filósofo?
Numa primeira aproximação, afigura-se legítimo aplicá-la a todo
aquele que realizou, em grau elevado, uma formação no domínio do clássico
espaço disciplinar do saber filosófico, do mesmo modo que se rotula de matemático quem aprofundadamente estudou a ciência de Pitágoras ou de biólogo
quem o fez no domínio da ciência da vida, ou literato ao que em substância se
dedicou ao estudo da literatura e a «cultiva distintamente», como dizia Cândido de Figueiredo.
Analisado por este ângulo, difícil se apresenta a fundamentação do
perfil de um Agostinho filósofo. A sua passagem pelas aulas de Leonardo
Coimbra e Matos Romão foi pouco menos do que desastrosa. Do completo
naufrágio apenas foi salvo pelo benévolo dez mínimo concedido, por especial
favor, pelos Senhores docentes. E quem, como eu, o ouviu falar desses tempos
de Faculdade sabe com que contundência, com que mordaz ironia e imenso
humor citava o seu total desinteresse pela filosofia que lhe queriam impingir.
Na entrevista dada à revista da Sociedade de Filosofia, para cuja importância
agora tento chamar a atenção, é bem exuberante o grau de desmotivação no
estudo das filosofias escolares:
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«[...] tive o Leonardo Coimbra como professor. Ensinava psicologia escolar, ou qualquer coisa de parecido, que me não
interessou absolutamente nada, nem aquilo, nem a filosofia,
ou outras matérias dessa natureza. Empenhava-me, sim, em
estudar literatura e as minhas filologias. [...] § Reencontrei-o
no 3º ano, ensinando história da filosofia medieval. [...] não
consegui perceber nada daquilo e, como eu, os colegas com
quem mais trabalhava no estudo das outras cadeiras. A certa
altura, creio que quando se chegou aos universais, decidimos
mesmo, irrevogavelmente, não entender e desinteressámo-nos
de todo do que ia acontecendo nas aulas.» 4
Mas não nos iludamos: fora do espaço das enfadonhas aulas não deixou ele de frequentar os escritos dos grandes pensadores gregos, mesmo que
sob a prioritária motivação filológica.
Com enfática ironia e com um humor sibilino temperado de pamplinesca contenção facial – que bem lhe conheci – dizia ter concluído na Faculdade de Letras do Porto a «formatura em liberdade». Foi de facto em outra
“universidade” que Agostinho da Silva realizou a sua mais sólida formação
filosófica, a saber: na “universidade” da travessa do Moinho de Vento, ou seja,
em casa de António Sérgio. Nisso não foi o único. Da boca de vários outros
ouvi repetidas vezes dizer ter sido essa a sua autêntica – por vezes única – universidade. Mas também aí encontrou importantíssimo complemento formativo em matéria de Liberdade. É facto que a convivência mais próxima com o
filósofo-ensaísta já se tinha iniciado antes, em solo parisiense, numa altura em
que este trabalhava para a Paramount e vivia na companhia de outros exilados
portugueses num complexo de apartamentos mobilados na capital francesa.
A aproximação dá-se, mais precisamente, quando o jovem Agostinho também decidiu ir viver para um desses apartamentos, passando à condição de
vizinho de Sérgio. Porém, mais do que a proximidade geográfica resultante da
situação de directa vizinhança o que desde logo reúne os dois é um conjunto
de interesses comuns. São eles, fundamentalmente, a política – note-se bem
– e a ciência.5 Mas o estabelecer de uma relação sólida, profunda e continuada
com António Sérgio só vem a ocorrer mais tarde, depois do regresso de ambos a Portugal, quando se dá a explosão do litígio administrativo no seio da
Seara Nova, colocando em frontal oposição o grupo do Câmara Reys e o do
Sérgio. Essa questiúncula administrativa acaba por provocar a saída de Sérgio
da revista, de cuja direcção fazia parte desde 1923. Agostinho acompanha-o.
É então que se passam a organizar reuniões semanais em casa do autor dos
Subsídios para um perfil filosófico
João Maria de Freitas Branco
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Ensaios. Encontros esses que vão funcionar como uma espécie muito peculiar
de seminário universitário regido por um singular anfitrião.
Os estupendos Sábados sergianos, em ambiente reconfortado pelo
chazinho que a Senhora D. Luísa nunca se esquecia de ofertar, eram de algum modo a materialização de uma tolerância intelectual, bem como de um
ecletismo que, a meu ver, profundamente marcaram o seu intelecto. Ali, nesse
espaço familiar, conviviam, orbitando em torno da poderosa mente de Sérgio,
pessoas muito diferentes e até aparentemente incompatíveis; naturezas humanas muito diversas, que aí encontravam lugar para escutar pensamentos profundos ou para poderem, de forma libérrima, opinar e confrontar seus pontos
de vista com a “inteligência portentosa” do filósofo-ensaísta. No mesmo local
e à mesma hora, num país empestado de mediocridade salazarenta, cruzavamse seres tão contrastantes como o sempre contestatário literato Castelo Branco
Chaves, o dostoievskiano, anarquista e ateu Pedro Nascimento, o então muito
jovem crítico literário Álvaro Salema, o filantropo Fernando Rau, o próprio
Agostinho com a sua privativa religiosidade e o seu “místico” mistério, e, naturalmente, essa massa central geradora do heterodoxo sistema gravitacional de
espiritualidades. Isto para já não referir, independentemente deste grupo mais
fechado, os católicos e ateus, os comunistas e socialistas, os poetas e cientistas,
os escritores de variado perfil, os visionários, e sei lá quem mais que por ali,
com maior ou menor regularidade, passava sob a humana forma de Piteira
Santos, de Natália Correia, de Santana Dionísio, de Viana da Mota, de Magalhães Vilhena, de Mourão Ferreira, de Joel Serrão etc. 6
Em minha opinião foi aí que amadureceu em Agostinho o ecletismo,
assim como a tolerância ideológica – traços marcantes, mas pouco referidos
da sua postura intelectual que ele associava ao portuguesismo. Mas deparamos aqui com um ponto central para a caracterização do perfil filosófico, bem
como para a determinação dos limites do seu filosofar. Ser filósofo não é só
possuir formação filosófica. É ser-se capaz de largar amarras e partir numa
audaz aventura de espírito através da qual se arquitecta original edifício de
pensamento. Estribado no saber pensar, bem como na atitude crítico-dubitativa, o filósofo autêntico é aquele que partindo quase sempre de uma única
intuição central, a que Bergson chamava intuition originelle – «quelque chose
de simple, d’infiniment simple, de si extraordinairement simple que le philosophe n’a jamais réussi à le dire», se bem que sobre ela disserte durante toda a
sua existência7 –, é aquele que partindo dessa intuição abre novas alamedas de
problematização e constrói de forma racional – metodologicamente clarificada, lógica, rigorosa, fundamentada – um corpus philosophicum, espécie de teia
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de inter-relacionações que concorre para a clarificação, para um goethiano
fazer entrar luz. A autêntica filosofia é sempre gesto dissipador de neblinas,
em que a essencial postura dubitativa é factor de dilucidação e não de semeadura de mistérios insondáveis. Ora, o que acontece na obra de Agostinho da
Silva é que o desenvolvimento do seu pensamento nunca chega a fazer emergir
um genuíno corpus filosófico, um ideário filosófico autónomo. Há um passo essencial, no sentido da ascensão a um novo patamar, que nunca chega a
efectivar-se. Há labor de sage, há ideação, mas não chega a haver Filósofo. Há
condições essenciais que ficam por satisfazer. E se todo o verdadeiro filósofo é
um sage, nem todo o sage se eleva ao nível do filósofo.
Ao defender aqui que o autor de As Aproximações nunca chega a adquirir a dimensão de autêntico filósofo não estou a denegar a existência de
dimensão filosófica nos seus escritos. Claro que ela existe. O problema é que
não basta a presença de ingredientes filosóficos, sejam eles temáticos, metodológicos ou ideativos, para haver Filósofo. Existe filosofia na poesia camoniana,
bem como na prosa e na poesia de Pessoa, nos romances de Virgílio Ferreira,
na escrita de Herculano, Oliveira Martins ou Teixeira Gomes; mas não existe o
Filósofo Camões, nem o Filósofo Pessoa, nem o Filósofo Alexandre Herculano
etc. Porque em nenhum deles chega a haver um corpo consistente e original
de pensamento filosófico autónomo, nem mesmo a obrigatória abordagem
das chamadas questões filosóficas essenciais – de natureza gnosiológica e ontológica. Mas estas ausências são facto que em nada diminui a grandeza de nenhum dos citados criadores literários. Desde logo porque a finalidade última
do seu esforço era claramente de outra natureza.
Considere-se o núcleo do pensamento agostiniano, consubstanciado
em noções como a de “paradoxo” e de “absoluto”. Escreve ele:
«Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.» 8
«Nada se entende se não se entende que o todo e o nada são o mesmo. O que é ter transcendido o entender.» 9
«[...] nada, para Deus, é isto ou aquilo, embora o possa ser para a
trindade; tudo, para Deus, só é, se isto nem aquilo; [...] o Absoluto
[...] dele se não pode falar.» 10
«De Deus nunca disse nada pela razão muito simples de nada poder
dizer. Se em relação a Deus usar um qualquer tipo de linguagem,
estou certamente a ofender o essencial.» 11
Subsídios para um perfil filosófico
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Estamos perante uma forte actividade de pensamento denunciadora da
pobreza das visões dicotómicas, da insuficiência de toda e qualquer doutrina,
das limitações de toda e qualquer dogmática, e do apelo à consideração do total Absoluto, alogus e metafilosófico – posto fora do alcance das filosofias. Mas
onde fica a fundamentação de estar o total contido no paradoxal? Onde está
a rigorosa caracterização do que se entende por paradoxo ou por paradoxia?
Será que as dicotomias (ou conceitos dicotómicos) do intelecto são todas do
mesmo tipo? Terão os pólos dicotómicos funções, valores ou pesos específicos
equivalentes/iguais? Será a relação de opostos uma relação simples, estática e
sempre do mesmo género ou terá ela múltiplas variantes autocomplexificadoras em que se revelam distintos modos de oposição, de inter-relação, de conexão? Ao falar-se de dicotomia ou de oposição, estamos a considerar um processo ou uma relação de estática justaposição? Estamos perante uma justaposição
mecânica de natureza a-histórica ou estamos, pelo contrário, a considerar a
historicidade dos opostos, a sua dimensão temporal? Onde mora o esforço de
sistemática teorização das asserções antes citadas? Onde está a fundamentação
do alogus do Absoluto; do indizível, do impensável? Como se justifica a colocação da Verdade num plano metaracional, trans-racional, e, portanto, fora
do alcance do esforço do filosofar? Note-se que esta tese ofende algo de essencial: um pressuposto do trabalho filosófico, uma disposição comum às grandes
correntes do pensamento filosófico e, neste caso, também às do pensamento
científico: o optimismo. Isto é, a convicção embrionária de que há algo a dizer
e de que se pode dizer algo sobre as coisas; ou dito de outro modo, a admissão da possibilidade de dilucidar e a negação da absoluta ininteligibilidade do
Universo. Quando Agostinho da Silva introduz a sua noção de silêncio, fere esta
essencial inclinação filosófica. Nem mesmo o radical silêncio kantiano em face
do “em si” (ao númeno) é expressão de derrotismo cognitivo. O ser limitado
não implica o ser limitativo. Ora, a apologia agostiniana do silêncio, fundada
na convicção de que «é no silêncio que se aloja a sabedoria», passa a intervir
como factor limitativo, entrando assim em conflito, talvez involuntariamente,
com o carácter generoso de todo o esforço fundador do grande filosofar.
É a ausência de respostas satisfatórias para as exigências racionais e
conceptuais consubstanciadas nas interrogativas acima enunciadas que tende
a anular a presença do Filósofo. E neste sentido Agostinho tinha razão na sua
constante recusa do designativo. É uma atitude de coerência e não um aceno
de modéstia; modéstia, e essa excessiva, é sim ter pretendido arrumar a sua
obra na prateleira do humilde género do considerativo – como acima se viu.
Quer então dizer que se lá na citada “universidade” da Travessa do
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Moinho de Vento Mestre Sérgio tivesse lançado nota e afixado pauta, se calhar
lá voltaria a aparecer o aborrecido dez mínimo... Agostinho sempre disse que
Sérgio não o considerava talhado para as filosofias. Via nele, antes, um espírito
prático, virado para a acção – sendo provável que a inépcia do Mestre para
as mais elementares tarefas do quotidiano o fizessem olhar com redobrada
admiração as qualidades do jovem Agostinho nesse plano do agir concreto. A
prová-lo parece estar esse gesto de, a dado momento, quando ambos estavam
em Espanha, lhe ter confiado a missão de trazer para Lisboa os planos de uma
revolução libertadora do seu Portugal. Uma das muitas revoluções concebidas
por Sérgio e invariavelmente abortadas – também por razões a que não seria
estranha a tal inépcia nem a ingenuidade de ter querido que o dito plano fosse
trazido em papel bem legível, através da então pidesca fronteira separadora das
duas pátrias peninsulares, na bagagem do pobre Agostinho e em tempo em
que sobre este caía já forte suspeição política.
No contexto da questão aqui levantada o juízo de Sérgio é muito elucidativo. Penso que Mestre Sérgio compreendeu claramente que as preocupações centrais do seu “discípulo” não eram de pura natureza filosófica, mas sim
de diferente índole. Procurando sintetizar este aspecto da sua relação com o
Mestre da “universidade” do Moinho de Vento, o visado disse com muita graça,
na entrevista que tenho vindo a citar, o seguinte: «Em suma: Sérgio achava que
eu, coisas práticas era capaz de as fazer, se a ocasião fosse a adequada; quanto
às coisas teóricas, ele pensava por mim, e tínhamos o caso arrumado.»12
Mas no meio do fresco sentido de humor destas palavras corre-se o
risco de deixar passar algo de essencial. Ninguém pode duvidar do alto apreço
que o filósofo-ensaísta nutria pela singular capacidade do autor de Considerações para se ocupar das “coisas teóricas”. O próprio bom acolhimento sempre
dado em círculo tão selectivo e tão densamente teorético como o do “grupo
dos Sábados” constitui, só por si, prova dessa sincera consideração.13 A questão, a meu ver, é que o anfitrião dos Sábados compreendeu que o pensamento
teórico de Agostinho estava orientado para a acção organizativa e transformadora e não para a vida contemplativa. Se tenho razão neste meu interpretar,
então sinto-me inclinado a acreditar que se António Sérgio estivesse entre nós
e fosse levado a pronunciar-se sobre a existência do filósofo português Agostinho da Silva seria ele meu aliado na denegação de tal designativo. Em torno
desta problemática não seria desinteressante fazer recair a interrogativa sobre
a própria obra de Sérgio e procurar averiguar qual teria sido a resposta de
Agostinho. Será que este reconhecia no autor dos Ensaios a figura do autêntico
filósofo? A interrogativa levar-nos-ia a exceder o escopo do presente estudo;
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mas ainda assim não quero deixar de salientar uma opinião polémica que,
mais para o fim da vida, Agostinho expressava sobre o seu Mestre da “universidade” da Travessa do Moinho de Vento, sem, no entanto, a fundamentar cabalmente. Em seu entender, o pensamento filosófico de Sérgio contorna aquilo a
que chamava “as questões de dúvida”, evitando assim o confronto directo com
o mais essencialmente filosófico. Embora sempre se tenha referido ao nosso
ensaísta como exemplo de pensador filosófico, esta opinião, mais tardiamente
expressa, abre a porta a alguma reflexão de inegável pertinência. Penso, porém,
que a forma de exposição ensaística adaptada, acrescida da grande variedade
de temas de natureza não puramente filosófica tem alimentado ilusões. É que
o discurso sergiano, situe-se ele no domínio da política, da análise social, da
pedagogia ou da história, é todo fundado na filosofia e na pessoal resposta do
ensaísta a algumas das questões filosóficas mais profundas. Ao não ter compreendido isso, Agostinho revela-se contagiado por uma ilusão comum, que
em outros momentos tenho procurado dissipar, e à qual por certo não é estranha a acentuada fragmentação dos escritos sergianos, bem como a diversidade
temática de aparência extrafilosófica.
Mas voltemos a colocar a questão no espaço do pensamento agostiniano.
É claro que por trás da questão da justiça da aplicação de um designativo perfila-se uma dificuldade tão clássica quanto capital: o problema de fronteira. Esse a que Wilhelm Dilthey chamou das Wesen der Philosophie (a essência
da filosofia). Se termos como filosófico, filosofia, filósofo tiveram significados
distintos conforme a época e o local, como se pode classificar uma obra ou
um pensamento dizendo que é ou não é filosófico? «Onde está o nexo interno
[das innere Band] – a essência unitária da filosofia [das einheitliche Wesen der
Philosophie] – que abarca formas tão díspares e acepções tão variadas do conceito da filosofia?» — interrogava-se Dilthey14 que, como é sabido, foi um dos
pensadores que ao problema dedicou especial atenção. É essa indeterminação
de fronteira que causa dificuldade. Mas no meio da complexa diversidade de
definições e de procedimentos acabamos por ser capazes de, por via indutiva,
determinar o que vai havendo de comum – o tal “nexo interno”. Não havendo
aqui espaço para tão complexo e amplo debate, importa, no entanto, reter
parte da conclusiva desse mesmo Dilthey:
«Na essência da filosofia mostrou-se uma mobilidade [Beweglichkeit] extraordinária [...]. Mas sempre víamos nela a mesma tendência para a universalidade [Tendenz zur Universalität], para a
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fundamentação, a mesma direcção do espírito para actuar sobre a
totalidade do mundo dado. E sempre luta nela o traço metafísico de
penetrar no núcleo deste todo com a exigência positiva da validade
universal do seu saber. Estes são os dois aspectos que correspondem
à sua essência e que a distinguem dos domínios vizinhos da cultura.
Diferentemente das ciências particulares ela mesma procura a solução [Auflösung] do enigma do mundo e da vida [Lebensrätsels].»15
Resta saber se a não-existência de um Agostinho Filósofo é sinal de incapacidade intelectual, de menoridade espiritual, de deficiência metodológica,
de imperfeição no exercício do pensamento e da reflexão, ou se se trata, pelo
contrário, de opção voluntária desde sempre assumida. Tudo me parece sugerir
a validade desta última hipótese. Agostinho simplesmente não quis ser filósofo
de corpo inteiro. Por quê? Antes de mais, porque na sua óptica a edificação de
um ideário filosófico – do tal corpus coerente – levá-lo-ia a ser do ortodoxo,
impedindo-o de sintonizar com a essência do ser luso na proclamação de um
singular preceito:
«Espero que Portugal venha a ser mais do que um país de filósofos. Que venha a ser uma pátria que tenha todas as filosofias
como heteronímicas. Desejaria que cada português excedesse
Camões na sua capacidade de ser platónico e aristotélico ao
mesmo tempo.»16
E em outro passo deste mesmo discurso dialogante afirma o seguinte que bem
revela a sua orientação e o seu peculiar ecletismo:
«[...] apoio-me muito nele [em Camões] para pôr a interrogação sobre se essa não será a vocação filosófica do português: conhecer bem
várias filosofias, várias maneiras de pensar e depois ir utilizando cada uma conforme as circunstâncias da vida. Com a versatilidade de
comerciante e de conversante que me parece ser uma das características do português.»17
Coisa que, como bem sabemos, ele próprio era...
Mas qual é afinal a opção voluntária a que antes aludíamos? Qual é, ao
cabo de contas, o interesse capital, o problema central, base de toda a acção
agostiniana – tanto no plano teórico como prático? Se lermos com atenção,
verificaremos que toda a entrevista de 1985 à revista Filosofia se estrutura no
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sentido de afirmar perante os entrevistadores filósofos o seguinte: eu não pertenço à vossa família; o meu terreno não é o da metafísica, mas sim outro. Qual
outro? O da cultura. Agostinho da Silva foi fundamentalmente um pensador da
cultura na rigorosa acepção por si próprio conferida a este conceito de complexa significação, isto é, o processo de melhorar a vida dos seres humanos.
«É esta a minha noção de cultura: tornar melhor a vida das pessoas. Começar pela alimentação, pelo vestuário, pela saúde, pelo
ensino.».18
A questão central a que Agostinho dedica todo o seu labor é então a de pensar
bem as formas de organizar as sociedades de modo a garantir na prática, no
plano da existência material e real, a efectiva melhoria da vida da pessoa humana. Esta orientação do interesse tem como suposto um estrutural optimismo
de perfil estóico que trespassa toda a sua obra e em que a cada passo se sente
esse viril, animante e contagiante Amor pelo universo – sempre advogado: «[...]
estar no mundo, não basta e parece essencial que haja amor pelo universo.»19
Ora, pensar as formas de organização dos homens é o objecto de uma
conhecida disciplina: a política – mas não na acepção superficial dos jogos
partidários de poder ou de influência, que pouco ou nada lhe interessavam.
Só que no vocabulário agostiniano política e cultura são termos irmanados.
Daí que, de uma forma que aos olhos de muito boa gente parecerá exageradamente exótica e que na óptica do reinante pragmatismo oportunista e da
vacuidade ético-intelectual da classe política hodierna se apresenta como algo
de simplesmente aberrante, o autor de Considerações tenha insistido em declarar que todo e qualquer governo, cá como em qualquer outro lugar do globo,
deve ser dirigido pelo Ministério da Cultura. «Uma das desgraças de Portugal
é que foi sempre governado pelo vedor da Fazenda, quando este deveria ser o
simples caixa de uma empresa a dirigir pelo Ministério da Cultura.»20
Julgo poder-se então concluir que a obra de Agostinho é, no essencial,
um continuado esforço de pensar a organização do mundo numa perspectiva
genuinamente cultural (na acepção antes referida). É o próprio quem enfaticamente declara:
«[...] se algum interesse existe em mim, é o do político, o da organização do mundo.»21
E não é impossível supor que se estivesse a referir a si próprio ao escrever numa das suas considerações, intitulada “Sanderson of Oundle”,22 as seguintes
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palavras alentadoras, tão ao estilo de um espírito estóico e optimista como
era o seu:
«Tudo vence uma vontade obstinada, todos os obstáculos abate o
homem que integrou na sua vida o fim a atingir e que está disposto a
todos os sacrifícios para cumprir a missão que a si próprio se impôs.
Atento ao mundo exterior, para que não falte nenhuma oportunidade de pôr em prática o pensamento que o anima, não deixa que ele
o distraia da tensão interna que lhe há-de dar a vitória; tem os dotes
do político e os dotes do artista, quer modelar o mundo segundo o
esquema que ideou.»23
Eis o núcleo do afã agostiniano que, por via do contágio, se pretende ver derramado pelas gentes: desenvolver os dotes políticos e artísticos de modo a moldar o mundo, «colaborando [todos] no que podem e no que sabem para que
a vida melhore», dando ajuda aos «que estão procurando libertar a condição
humana do que nela há de primitivo».24
Em vez de se persistir em estudar um inexistente, de buscar um tratamento agostiniano, denso e sistematizado, das questões filosóficas mais profundas, parece-me dever-se realizar um estudo alargado e aprofundado que
tenha por título algo como: “o pensamento político de...”, “a realização agostiniana da cultura”; ou tão-só: “a política agostiniana”.
Aqueles que se oponham à minha declaração de inexistência do Filósofo Agostinho da Silva é provável sentirem-se tentados a esgrimir o argumento
da forma. Ou seja, neste particular, da forma do discurso agostiniano que pela
sua legítima fuga ao estilo de exposição sistematizada acabaria por gerar a
ilusão de uma ausência, quando na realidade e ao cabo de contas o dito corpus
philosophicum está lá – sempre esteve –, mas expresso sob a forma aforística,
alegórica, recorrendo, quando apetecível, à imagem poética ou à fantasia e iludindo assim a rigidez da sistematização conceptual dos racionalismos duros.
Bastaria o caso do insuspeito pai do racionalismo para sabermos ser possível
e até legítima a escolha de formas expositivas diversificadas para comunicar
admiráveis e densos conteúdos constitutivos dos mais preclaros ou sublimes
monumentos de pensamento filosófico: não é esse grandíssimo Platão quem
nos momentos cruciais do seu filosofar interrompe o discurso de sistematização racional para contar um mito – servindo-se do não-racional como factor
de edificação do sistema racional? É indesmentível que desde seu caramanchão, em recuados tempos ditos pré-socráticos, não necessitou a filosofia de
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revestir a rígida forma de sistema para poder ser filosofia de excelência. Ilustríssima prova disso encontramos nos fragmentos de Heráclito, no Poema de
Parménides ou, em tempos menos remotos, na virilidade sanguínea da prosa
de Nietzsche. Mas o que importa percepcionar é que em todos eles, diferentemente do que ocorre na obra do nosso Agostinho, os aforismos, as alegorias, o
recurso à imagem poética, o jogo das emoções ou das paixões jamais amortece
a presença da rigorosa fundamentação racional, da cuidada e aprofundada
problematização das grandes questões, a geometria da ideação, a harmonia ou
ordem da concatenação das ideias, a consistência lógica do discurso, a precisão
conceptual (aparelhagem conceptual), o élan de concretização do juízo objectivo por intermédio do metódico olhar dubitativo, crítico, perscrutador, desmistificante, não preconceituoso, tudo isso em sintonia com um permanente
esforço de dilucidamento.
É como em certas construções de ousada arquitectura vanguardista
onde num primeiro olhar nos é deixada a impressão de total inexistência de
estrutura sustentadora, qual arquitectura monumental expurgada de engenharia. Só que de facto esta está lá, porventura ainda mais estruturalmente
betonada do que em outras construções de mais geométrica ou compacta aparência. Até mesmo o obscuro de Éfeso, Heráclito, só o é na aparência resultante
dos primeiros olhares descomprometidos. Pois todo aquele que se lançar ao
esforçado estudo dos fragmentos constatará a presença, em lugar da apregoada obscuridade, do mais cristalino pensamento, onde a cada novo passo a
penumbra cede lugar à forte claridade.
Há um equívoco gerado em torno dos escritos de Agostinho da Silva
que urge desfazer: refiro-me ao que emerge entre a forma do discurso – o estilo
do dizer – e o conteúdo ideado. O autor de Conversação com Diotima serve-se
constantemente de elementos presentes no seu meio ambiente histórico-cultural. Em vez de conceitos rígidos, lexicalmente bem definidos, prefere ele recorrer ao símbolo, à imagem poética, ao mito; coisas que vai colher nos jardins
da sua paisagem cultural: sejam elas os mitos bíblicos, elementos cabalísticos,
lendas populares ou fantasias poético-literárias. Quando alude a episódios da
história pátria, não o faz com espírito de historiador, mas sim com a vontade
de enriquecer o discurso, tornando-o mais sugestivo, mais contagiante. Daí
que seja descabido comentar tais escritos numa perspectiva rigidamente historiográfica, denunciando eventuais imprecisões. Proceder desse modo (atitude
que em demasia se tem visto ser assumida por alguns estudiosos) é estar a
criticar uma coisa, tomando-a por aquilo que ela de facto não é. O mesmo
acontece com a vertente literária: quando Agostinho refere conteúdos poéticos
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ou literários, em geral, não o faz vestindo a capa de historiador da literatura,
nem de crítico literário, fá-lo como pescador de imagens sugestivas, de histórias várias, mais ou menos fantásticas, que de alguma maneira tornem o dizer
mais atraente e, desse modo, mais capaz de servir os objectivos a que se propôs
que não são os de fazer história, crítica literária ou algo afim. A intenção é
pôr em marcha a força sugestiva de certos episódios que são pertença de uma
memória colectiva. Se tivesse sido chinês, indiano ou árabe, ter-se-ia socorrido
de outros elementos para tratar o mesmíssimo problema em que centrava o
essencial da sua atenção: o da organização do mundo. Este tipo de equívoco,
patenteado em alguma prosa supostamente dedicada ao estudo da obra agostiniana, gera-se na base de uma acentuada incompreensão da natureza essencialmente política (politológica) do discurso visado. Do desconhecimento da
natureza da sua acção como intelectual e cidadão.
Mas isso que aqui designei de actividade de pescador de imagens (religiosas, mitológicas, simbólicas, históricas, esotéricas etc.) não implica irracionalismo, esoterismo, misticismo. Algo semelhante fez o insuspeito Platão, a
quem ninguém se lembrará de acusar de falta de racionalidade. E, ao voltarmos
a evocar a figura do grande ateniense, será útil não deixar de notar que no seu
filosofar a preocupação política é tão intensa como no discurso do nosso Agostinho. Talvez tivesse sido a apercepção dessa característica que o levava a confessar ser a dimensão de dramaturgo o que mais o fazia enamorar-se de Platão.
O discurso agostiniano não nos projecta para um plano meta-mundano. Bem pelo contrário, a convocação de elementos religiosos, míticos, lendários é convite explícito a um agir mundano, a uma acção prática. E como de
homens se trata, sabemos da lição aristotélica ser esse agir, em última instância, algo que comporta em si uma necessária dimensão política.
Se alguma razão me assiste no ajuizar da inexistência do Filósofo de
corpo inteiro, em que medida se poderá falar de influência sergiana? Pôde
alguma vez existir entre o autor de Pensamento à solta e o autor das Cartas de
problemática uma relação discípulo/Mestre, no plano filosófico que aqui nos
ocupa? Poder-se-á afirmar ter sido Agostinho discípulo de Sérgio?
No sentido em que Aristóteles o foi de Platão, certamente que sim; ou,
mais a propósito, no exacto significado sergiano de discípulo, esse que tão bem
o ensaísta definiu em uma excelente página de virilidade filosófica antidogmática que os seus distraídos conterrâneos teimam em ignorar e que serve de
abertura à 1ª edição do Tomo II dos Ensaios; é ela directamente endereçada aos
jovens, e se vivêssemos em país com outro nível de cultura seria certamente, e
desde há muito, texto obrigatório nas nossas escolas.
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«[Não] te requeiro adesão a qualquer teoria, a qualquer partido,
a qualquer fé. Só busco excitar o teu pensamento: porque pensar,
como sabes, não é crer; crer, na maioria dos casos, é até a melhor
maneira de não pensar. Por isso mesmo considerarás o livro uma espécie de instrumento de libertação [...]; se és um espírito –, mete-te
à vaga corajosamente, e deita o meu tomo pela borda fora logo que
te sintas entre mar e céu.»25
Por seu turno, e na mesma linha de pensamento de Sérgio, mas de forma ainda
mais enfática e, quase diria, provocatória, Agostinho dizia: «São meus discípulos os que estão contra mim.» Afirmação que na sua radicalidade prática não
deixa de conter algum perfume aristotélico.
O papel do Mestre não é converter o discípulo a um ideário nem encerrá-lo numa hoste qualquer; a irmandade, a escola ou o partido em que se
serve é coisa secundária – isto na visão de António Sérgio que depois Agostinho irá radicalizar, como a seu tempo veremos. Importa sim ser-se apurado,
ser-se elevado (intelectual e moralmente). Uma posição, esta, que está longe de
ser incontroversa. Escondem-se aqui duas questões: a de saber até que ponto
Sérgio foi fiel a este seu afirmar; e outra, mais complexa, que consiste em indagar até que ponto é tão indiferente, como Sérgio afirma, a hoste em que se
serve. Será que todas as irmandades (para utilizar termo anteriano) têm igual
mérito? Não dispomos nós de meios capazes de avaliar, com alguma objectividade, da menor ou maior correcção de uma hipótese ou de uma tese? Por mais
culto e elevado que se seja, parece-me empobrecedor servir em hoste menos
excelente. E no fundo talvez a elevação não possa andar assim tão desirmanada
do partido (em sentido amplo) em que se escolheu estar. Ao que se me antolha, há hostes em que difícil se torna imaginar poder desenvolver-se alguma
elevação. Mas isto é tema para outro ensaio.
No escrupuloso respeito da orientação do Mestre, e coerente com o seu
próprio eu-essencial, Agostinho nunca foi nem poderia ter sido um prosélito
do sergismo, nem um mero continuador passivo do seu ensaísmo filosófico.
No entanto, a verdade é que o magistério sergiano se faz sentir em muitíssimos
passos da sua obra. São de nítido recorte sérgico passagens como estas recolhidas de forma aleatória no vol. II dos Textos e ensaios filosóficos:
«Como se fazem encantamentos rituais para desassombrar casas, a
História devia servir para isso mesmo, para, estudando-a, nos desassombrarmos do passado naquilo que ele já teve de superado».26
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«[...] um esforço não só para a clareza, a plenitude de visão, a intuição das ideias, mas, ainda mais, para as integrar no próprio teor da
vida. Quem supõe que os que pensam, que os que procuram dilucidar um universo que se lhes apresenta confuso são como se costuma
dizer frios, puramente objectivos, académicos no mau sentido, completamente se engana: quem pensa como se deve é tão ardente, tão
apaixonado, tão vivamente entregue a um impulso como um mouro
em razia».27
«Só existe governo exterior a nós porque temos preguiça de nos governarmos a nós mesmos.»28
«[...] tenho para mim que a confusão é um dos pecados mais graves».29
Outro essencial ponto de convergência radica na comum convicção – tão contrária ao tradicional sentir dos nossos intelectuais – de que não se pode construir
filosofia sem educação científica profunda e sem sólida informação sobre os resultados do trabalho de pesquisa científica.30
A conclusão de inexistência do Filósofo Agostinho da Silva de modo
algum acarreta a negação de um legado filosófico agostiniano, nem mesmo
a inexistência de substancial dimensão filosófica no conjunto da sua obra.
Falta, porém, caracterizar o verdadeiro perfil filosófico da sua intervenção
escrita e oral.
Como espero ter mostrado, esse perfil não deriva de um stock de pensamentos solidarizados num corpo filosófico, com cabal travejamento das
concepções – como Sérgio estimava dizer; nem resulta da subsistência de
um trabalho de aprofundada teorização em torno das grandes questões de
índole filosófica – ontológicas, gnosiológicas, lógicas, metafísicas, estéticas,
éticas ou axiológicas –, com a indeclinável tendência para a universalidade,
para o «actuar sobre a totalidade do mundo dado» e para a penetração no
núcleo do todo em que Dilthey reconhecia a essência da filosofia. Não há,
repito, autêntico ideário filosófico, um corpus philosophicum minimamente
estruturado.
Do meu ponto de vista, o verdadeiro legado filosófico de Agostinho da
Silva, valiosíssimo legado, consiste na apologia de uma atitude de espírito, de
um modo de pensamento: o pensamento à solta.
Mas em que consiste essa atitude de soltar o pensamento? Significa
legitimar todas as possibilidades, todas as hipóteses, todos os esforços de reflexão, independentemente da orientação, independentemente de quaisquer
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imagináveis pontos de chegada. Importante é o caminharmos incontáveis caminhos possíveis. Fundamentalíssimo é tão-somente a permanente abertura
ao possível. A todas as possibilidades: «O mundo tem tantas possibilidades
que até o impossível é possível».31
Na base da noção de pensamento à solta está uma indeclinável crença
no valor supremo da liberdade do pensamento que nenhuma ameaça de heresia deverá limitar.
«[...] nenhum impedimento deve ser posto ao livre curso do pensamento nem à sua expressão, para que se evite acima de tudo o perigo
da ditadura.»32
Agostinho sabe que travar o passo ao pensador, limitar, por pouco que
seja, a sua liberdade de movimentação, conduz inexoravelmente à doutrina,
isto é, ao óbito do pensar (no sentido forte do termo, do ser espiritualmente
criativo), à perda da sua «vocação provocadora» — criativa, inovadora. Aí germina a insuportável rotina.
Aqui se estriba a sua visceral antipatia pela Escola. «Sou contra a pedagogia», dizia. Por quê? Por ela reduzir as possibilidades do caminhar: se abre
caminhos, fá-lo à custa do encerramento de outros, proclamando impossibilidades, erigindo impedimentos ao livre curso do pensar. E sem pensamento
solto não há possibilidade de cada um ser aquilo que autenticamente é. Era
este mesmo desagrado em face da Escola real que o fazia estar mais perto de
Espinosa do que de um certo Platão – o que inaugura escola.
«O grande gesto de Espinosa consistiu, a meu ver, em, quando convidado a ensinar filosofia, recusar. Teria percebido que a filosofia,
quando se torna em educação, perde a vocação provocadora para se
converter em doutrina.».33
A inexistência de pensamento à solta é causa do que chamava “pecado contra o Espírito Santo”. É a anulação do imprevisível na alma de cada ser humano. Eis o ponto nodal da convergência com Pessoa. O Poeta era o modelo
do homem incapaz de cometer o pecado contra o Espírito Santo. Era o imprevisível, ou seja, o que jamais anula em si uma possibilidade de ser. É neste
contexto de problematização que melhor descortinamos a função da ideia
de Deus ou do divino (como por vezes preferia dizer) no seio do discurso de
alguém que deve ter sido, em absoluto, o não crente que mais vezes usou os
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termos “deus”, “divino”, “divindade”. A análise atenta e aprofundada conduznos a um pensamento cristalino mascarado, como em Heráclito, de uma
obscuridade aparente.
«É o Espírito o que une Pai e filho, dos quais vêm tudo o resto, como
criação da redenção; é o Espírito o traço comum de sujeito e objecto
por onde se estabelece todo o diálogo; é o Espírito a fonte indefinível
donde a vida pode fluir sob quaisquer formas.»34
A aproximação de Deus é fuga ao pecado do Espírito Santo. Porque
Deus é o Espírito Santo; mas expurgado de toda a religiosidade tradicional e institucionalizada, de todo o misticismo comum. Ele é tão- somente
o símbolo profano da possibilidade do fenómeno Pessoa. O indivíduo que
logra alcançar a diversidade/pluralidade de que Pessoa é modelo torna-se
naquele capaz de ser, com máxima autenticidade, tudo o que é (realização completa do eu-essencial); adquire então as condições para passar a
ser factor de transformação, agente de uma nova reorganização mundana dadora de cultura. É o verdadeiro instrumento da utopia política de
Agostinho.
A não-submissão do Absoluto – o tudo do todo – ao verbo em nada
obstaculiza o projecto político e o optimismo (de acção e já não de contemplação gnosiológica) que o inspira. A metamorfose do homem em poeta à
solta é condição necessária (mas talvez não suficiente) para a concretização de
um projecto político: «Procurem qual é a economia, qual é a política, qual é a
metafísica que lhes permitirá ser vários e ser, sobretudo, gente».35
Sendo justa a interpretação agora avançada, não se poderá deixar
de estranhar que certos amantes da conservação, políticos de profissão ou
não, tanto se tenham enamorado deste Agostinho fazendo-lhe demoradamente a corte.
«Não afastes, pois, o meio que te pode conduzir à liberdade plena
[...]; que nada haja por fim fora de ti senão como sonho que poderás sonhar quando quiseres, como um jogo que elevas ou derrubas
à vontade; aprisiona o teu Senhor e o conselheiro que em mim te
surge na fina tarde com a lei que tiveres inventado e sê tu livre; subjuga depois a própria lei, concebe-a como figura do sonho ou como
pedra do jogo; e então, ó Eva, te largarás a todos os espaços e, batidos
os deuses, serás Deus.».36
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Numa época como esta nossa, actual, em que tudo parece investir-se para
fazer com que as pessoas não pensem e em que triunfa na ribalta social o prestidigitador de ideias, o “intelectual” fingidor, exímio simulador de pensamentos
nunca pensados, de ideias nunca construídas, de raciocínios ocos, de teorias virtuais, de words without thoughts,37 neste curioso tempo coetâneo em que se enaltece o valor da aparência do que se é em detrimento da afirmação audaz daquilo
que se é de facto, do tal eu essencial; e em que, para maior despautério, se incute
no cidadão a ideia das deliciosas vantagens de se desistir do esforço, sem se entender, tragicamente, que «a grande diferença entre o inteligente e o estúpido [...]
é que o primeiro se esforça»;38 neste perigoso tempo de exuberante decadência
moral e intelectual (mau grado o progresso científico-tecnológico), afigura-seme difícil deixar de reconhecer a importância da mensagem agostiniana; a sua
actualidade e valor na acção contrariadora do triunfante vazio lipovetzquyano.
Urge sufocar a mediocridade à solta, antepondo-lhe pensamento à solta.
Na férrea determinação de evitar o pecado contra o Espírito Santo, bem
como na correlativa atitude de estóica defesa das condições que garantam não
haver impedimentos ao livre curso do pensamento, nem à sua expressão, Agostinho da Silva assumia uma atitude prática radical, de tipo nunca por mim
vivenciado junto de qualquer outro pensador meu conhecido. Testemunhei algumas vezes a confrangedora situação em que alguém, seu interlocutor do momento, largava monumental dislate. Em vez de se agitar ou de lançar enfurecida
réplica ao estilo de António Sérgio, Agostinho limitava-se a largar, sem perceptível alteração de tom de voz, um lacónico – mas por vezes delicioso – “pois é...”
E logo prosseguia o discurso. Outras vezes, perante sugestões de aberrante aparência dizia: «É uma hipótese..., talvez seja divertido explorá-la para sabermos
o que dará.» Para si, o importante era nunca encurtar o leque dos possíveis. E
assim convivia com grémios rivais sem que isso significasse confusão de valores
ou amorfismo ideológico, e, menos ainda, cobardia intelectual. A sua relação
ideológica com o chamado “grupo da filosofia portuguesa” deve, na minha óptica, ser analisada tendo em consideração esta forma de proceder, sob pena de
não se chegar a entender nada sobre essa coabitação que algumas vezes parece ser contranatura. Mas o essencial desta forma de estar clarificou o próprio,
oralmente, a encerrar a tal conversa com os Senhores da Sociedade Portuguesa
de Filosofia;39 e fê-lo desta bela forma cheia de encanto e poesia:
«Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me coibiriam
de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas
de vários pensamentos, várias atitudes, com a capacidade de as
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entender em si mesmas, sobretudo quando alguma me aparece
com sinal inteiramente contrário ao meu. Quem sabe se precisamente esse, que alguém diria ser enviado do diabo, não é um dos
disfarces do divino?»40
Evitava integrar barricadas, não por falta de convicções, senão que por
envolver isso a destruição de outras barricadas opostas, minguando o espaço
para a livre manifestação do possível.
Ora, importa assinalar que este procedimento intelectual contém riscos graves a que a obra e o homem não têm escapado incólumes.
O risco consiste em vermos ser subvertido em praça pública o significado da noção agostiniana de pensamento à solta. Coisa que de imediato deteriora o seu perfil de pensador, retirando-lhe, ao mesmo tempo, aquilo que
sempre considerei ser o seu maior legado de natureza filosófica. É que tal como
Liberdade não se pode confundir com libertinagem, também o soltar do pensamento não significa libertinagem intelectual, nem arbitrariedade ideológica.
Não é desorganização mental, não é confusão, não é abertura ao palavreado
balofo, à pseudofilosofia de líteras – eternos tementes à “frialdade” ciência que
para eles não chega a ser cultura, precisamente por teimarem em considerá-la
fria, seca, pobre, destituída de beleza e da riqueza das emoções humanizantes.
Soltar o pensamento não é, nem pode ser, sinónimo de confusão ou
anarquia mental de valores. As ideias, os pensamentos, as teorias filosóficas,
os ideários não valem por igual. Há bons e maus, medíocres e sublimes. A
apologia da Liberdade, o dar livre curso ao pensamento, é sim instrumento
de clarificação racional, esforço desmistificador, anti-preconceituoso, factor
de dilucidação através da polémica leal e do diálogo franco e libérrimo; é um
meio de cultivo do rigor analítico, do sério aprofundamento crítico das questões. Resumindo: o que a atitude filosófica agostiniana não é, de modo algum,
é aquilo a que Georg Lukács chamou die Zerstörung der Vernunft (a destruição da Razão) expressão com a qual titulou um dos seus mais notabilizados
livros. Constitui, portanto, uma violação do seu carácter essencial, e por isso
mesmo algo que se deve considerar inaceitável, a tão comum tentação fantasista – espécie de voga filosofante – de fazer de Agostinho da Silva um apóstolo do nevoeiro nacional, romeiro do irracionalismo saudosista de sabor mais
ou menos sebástico, defensor do irracionalismo retrógrado e militante do
apostolado dos mitos lusitanos. Por isso, também o fazer do nosso Agostinho
uma referência da filosofia pátria – ou, pior ainda, um partidista ou espécie
de prelado disso que uns tantos baptizaram de “filosofia portuguesa” – ofende
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gravemente o carácter da atitude que aqui evidenciei como sendo o traço essencial do seu perfil filosófico de autor e de homem. Embora arriscando gesto
de alguma deselegância, se bem que honestamente motivado por exclusiva intenção de dilucidamento, cito aqui um pouco conhecido e detectável texto de
Agostinho da Silva generosamente dedicado a obra de minha autoria, na qual
critico a ideia de existência de uma «profunda e sublime filosofia» portuguesa
(como anunciava Álvaro Ribeiro); texto esse em que volta a afirmar-se o seu
apreço por Espinosa (inclinação que compartilhava com António Sérgio),41
ao mesmo tempo que inequivocamente se revela a sua posição em face da
referida “filosofia portuguesa”. Note-se na preocupação de separar a qualidade
humana dos mentores da “filosofia portuguesa” do efectivo valor do produto
intelectual do seu esforço. Aí se lê o seguinte:
«[...] não importando nada [que] os golpes críticos do texto42 vão
atingir a chamada “filosofia portuguesa”, elaborada por tantos e tão
excelentes portugueses, mas de tão fraca tecitura filosófica43. Esquecidos nós todos de que filosofia portuguesa só houve verdadeiramente
a de Spinoza,44 quer na navegação para a verdade, com a observação
exacta de todas as latitudes e longitudes, quer no desembarque na
vida, em que às vezes, como bom português, foi o filósofo incoerente
com o que pensava.»45
Para que não restem quaisquer dúvidas quanto ao genuíno carácter
da atitude intelectual de Agostinho da Silva o que se deve fazer é sempre o
mesmo: ler com cuidada atenção o que ele de facto disse. E o que disse foram
coisas como esta contida numa das Considerações bem significativamente intitulada “Da chamada filosofia”:
«Há ideias mais lusas do que outras; [...] das mais ricas em lusismo a
de certas construções filosóficas que vão andando cada vez mais em
moda. Tomou-se a filosofia como um entretenimento literário, como uma divagação [...]. De modo que a união destas duas correntes,
a que mana de si próprias e supõe a filosofia um ramo de literatura de magazine e a que provém dos leitores e olha a filosofia como
uma actividade em que são permitidas todas as fantasias e combinações obscuras, tem levado alguns moços com vocação de pensador
a abandonar os únicos caminhos seguros, a desprezar toda a espécie
de preparação séria, a lançarem-se, com plena confiança na ignorância sua e alheia, numa retórica dia a dia mais oca e desonesta.»46
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Seria possível e porventura até pertinente averiguar da objectiva responsabilidade dos criadores de filosofias que não revestem a forma de sistema
na proliferação da actividade em que todas as fantasias e combinações obscuras são toleradas. Caso de extrema exuberância é o da relação de Nietzsche
com os nietzschianos. Parece-me a mim haver algo de semelhante no caso vertente, sendo que talvez não fosse desinteressante promover um estudo comparativo. Seja como for, mesmo sem resultados dessa eventual indagação, não
parece difícil adivinhar que uma filosofia de figurino não sistemático (ou seja,
que não se perfila como sistema teórico mais ou menos fechado) esteja mais
exposta à acção dos sedutores galãs da filosofia de magazine, sempre ávidos de
entretenimento galante e prontos para o divertido jogo das filosofices em torno
de apetecíveis formas – formas, neste caso, mais espirituais do que carnais.
Mas ainda com o mesmo propósito de não deixar dúvidas, leia-se ainda mais este naco de prosa agostiniana retirado do Diário de Alcestes (publicado em 1945):
«É frequente levantarem as almas sensíveis as suas acusações contra
a ciência e apresentarem como prova de vida em mais altos planos a
sua repugnância por uma actividade que denominam fria e por um
resultado que lhes despe o universo de toda a variedade, de toda a
riqueza, de toda a beleza; o claro mundo inteligível aterra-os como
um não-ser; a geometria ou a física (no que não tem de pitoresco)
só podem interessar os espíritos secos e fechados; em outros climas
devem viver os palpitantes, os generosos.
[...] o amor da ciência, a compreensão do que ela encerra de mais
sublime que todas as estátuas e todos os poemas só podem vir do seu
conhecimento; e esse exige um esforço, uma aplicação, uma persistência do trabalho, uma abundância de informações, um poder de
raciocínio que de nenhum modo se pedem na apreciação do ritmo
das linhas; para o vulgo a oficina do artista há-de ser por muito tempo superior ao laboratório ou aos cálculos do sábio.»47
No seio de uma Pátria ofendida e humilhada por gerações de persistentes cultores de neblinas, sebásticas ou outras (tanto faz); num torrão atormentado por agentes da confusão, por múltiplas expressões de acefalia barroca, por misticismos e mistificadores; numa terra exausta de ver o monótono
espectáculo da filosofia de magazine,48 Agostinho Baptista da Silva foi tenaz
missionário de uma atitude de esforço dilucidatório próprio da essência de
todo o autêntico trabalho filosófico. Teve ele, neste mal tratado solo lusitano,
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a persistência de nunca deixar de reafirmar ser a confusão «um dos pecados
mais graves». Cabe agora a cada um de nós possuir suficiente engenho para
soltar o pensamento evitando o grave pecado.
Notas
1 Dicionário de história de Portugal, coordenado por António Barreto e M.F.Mónica, Figueirinhas, Porto, 2000,
vol. IX, p.427.
2 “Entrevista com Agostinho da Silva” em Filosofia, nº2, Dezembro de 1985, p.162 (doravante Entrevista...).
3 Agostinho da Silva, Considerações, em Textos e ensaios filosóficos, vol.I, Âncora Editora, Lisboa, 1999, p.96.
(Doravante Textos...)
4 “Entrevista...”, ibidem, p.152
5 Recorde-se que nessa época Sérgio mantinha em Paris uma relação de estreita amizade com o grande físico
Paul Langevin e reflectia ainda mais profundamente sobre as implicações filosóficas das novas teorias físicas.
6 É de notar, também, a grande diferença de idades entre os frequentadores desse privilegiado espaço cultural;
o que significa ter sido, além de tudo o mais, um espaço de cruzamento de gerações de intelectuais.
7 Bergson, La pensée et le mouvant, em Oeuvres, PUF, Paris, 1970, p.1347.
8 Pensamento à solta, em Textos..., vol. II, p.145.
9 Ibidem.
10 “Sobre ideia de Deus”, em Textos..., vol. II, p.298.
11 Entrevista... p.179.
12 Ibidem, p.161.
13 Recorde-se que Sérgio nunca mostrou grande embaraço no indicar a porta de saída, civilizadamente, a quem
achava menos capaz de participar nos seus Sábados. Um procedimento que nem sempre foi isento de injustiça e
motivou que algumas boas cabeças não tivessem integrado o grupo valorizando as célebres reuniões semanais.
14 «Wo ist das innere Band, das so verschiedenartige Fassungen des Begriffs der Philosophie, so mannigfache
Gestalten derselben miteinander verknüpft – das einheitliche Wesen der Philosophie?»
Wilhelm Dilthey, Gesammelte Schriften, vol. V, p.340. Trad. port.: Essência da filosofia, Editorial Presença, Lisboa,
s.d., pp.8 e 9.
15 «Immer aber sahen wir in ihr dieselbe Tendenz zur Universalität, zur Begründung, dieselbe Richtung des
Geistes auf das Ganze der gegebenen Welt wirken. Und stets ringt in ihr der metaphysische Zug, in den Kern dieses Ganzen einzudringen, mit der positivistischen Forderung der Allgemeingültigkeit ihres Wissens. Das sind die
beiden Seiten , die ihrem Wesen eignen und sie auch vor den nächstverwandten Gebieten der Kultur suszeichnen.
Im Unterschied von den Einzelwissenschaften sucht sie die Auflösung des Welt – und Lebensr+atsels selbst.»
– Ibidem, p.365 (da ed. alemã); ed. portuguesa: pp.57 e 58.
16 Entrevista..., p.181.
17 Ibidem, p.162.
18 Entrevista..., p.166.
19 “Estilo e conteúdo”, em Dispersos, p.563.
20 Ibidem.
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21 Ibidem, p.162.
22 Evocando o importante trabalho de reorganização da escola de Oundle realizado por Frederick William Sanderson (1857-1922) a partir da última década do séc.XIX e que teve considerável influência nos conteúdos lectivos e nos métodos de ensino em nível das escolas do ensino secundário em Inglaterra. É provável que Agostinho
tivesse lido The Story of a Great Schoolmaster, da autoria de H.G.Wells, obra publicada em 1924 e inteiramente
dedicada à vida e à nobre acção pedagógica de Sanderson que tinha falecido dois anos antes.
23 Considerações, em Textos..., vol.I, p.105.
24 Ibidem, p.106.
25 António Sérgio, Ensaios II, em Obras completas, Sá da Costa, 1972, pp.19 e 20.
26 Textos..., vol. II, p.28.
27 Ibidem, p.68.
28 Ibidem, p.147.
29 Ibidem, p.18.
30 Veja-se a este propósito o que escreveu em Considerações, p. 95 da edição citada.
31 Entrevista..., p.166.
32 As aproximações, em Textos ..., vol. II, p. 70.
33 Entrevista..., p.182.
34 “Ecúmena”, em Dispersos, p. 229 (reedição do texto originalmente publicado em Espiral, Ano I, nº1, 1964).
35 Ir à Índia sem abandonar Portugal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1994, p.35.
36 “Discurso da serpente”, em Considerações, Textos..., pp. 87-88.
37 “My words fly up, my thoughts remain below: words without thoughts never to heaven go” – Hamlet, acto
III, cena III.
38 Pensamento à solta, em Textos..., vol. II, p.163.
39 Instituição que, note-se bem, nada tinha a ver com o citado grupo da filosofia portuguesa.
40 Entrevista..., p.183. O estar à conversa com alguém nunca significou necessária concordância com os conteúdos do discurso alheio, nem validação dos mesmos. Às vezes é tão-só um sinal de boa educação. Mas em meios
acanhados há tendência para se desenvolverem outras interpretações.
41 Se bem que uma das coisas por ele mais admiradas na postura de Espinosa não fosse reconhecida por Sérgio
como particular qualidade: refiro-me à atitude de se recusar a montar escola à maneira de um Platão. Agostinho,
ao invés de Sérgio, via nessa lúcida recusa de metamorfosear a filosofia em educação o “grande gesto de Espinosa”. De modo bem platónico Sérgio considerava que a grande filosofia tinha que ser simultaneamente uma
filosofia da educação no sentido do autor de A República.
42 Refere-se ao meu livro A problemática da materialidade na filosofia de Ravaisson, Editorial Inquérito, Lisboa,
1988.
43 No texto impresso no jornal está escrito “fraca tacitura”, uma gralha tipográfica talvez devida à quase indecifrável caligrafia do Autor. O termo tecitura (de tecer – não confundir com tessitura) não é geralmente acolhido
nos dicionários mais recentes da Língua Portuguesa.
44 Spinoza em lugar de Espinosa: porque Agostinho não utilizava ainda a ortografia hoje consignada na lexicografia de referência.
45 Agostinho da Silva, “Uma lição de civismo”, semanário Litoral, 4 de Janeiro de 1991 (XXXVII-
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nº 1638), p.2. Só muito recentemente tive conhecimento da existência deste artigo dedicado ao meu livro, mercê
da gentileza de um investigador brasileiro da obra agostiniana, o Dr.Amon Pinho, a quem aproveito para agradecer o ter-me ofertado fotocópia do texto.
Sobre a questão da “filosofia portuguesa”, veja-se também “De como os portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, em Considerações e outros textos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1988, p.81.
46 Considerações, em Textos..., p.95.
47 Diário de Alcestes, em Textos..., pp.209 e 210.
48 O compositor Luís de Freitas Branco nas páginas do seu ainda inédito Diário de ideias escreveu o seguinte
no dia 28 de Junho de 1933: «Um dos grandes males de Portugal é ter entre os seus escritores modernos uma
esmagadora maioria de impressionistas, de sensitivos, de místicos.» – citado a partir do original manuscrito.
Resumo
Livre pensador que se autodefinia como não sendo nem do ortodoxo nem do heterodoxo,
senão que do paradoxo, Agostinho da Silva (1906-1994), que integrou o grupo do filósofo
António Sérgio, cedo se viu asfixiado pela atmosfera salazarenta reinante no Portugal de
então. Fez do Brasil uma segunda pátria. Autor de vasta prosa de reflexão sobre a condição
humana e o protagonismo da nação lusa, Agostinho tem sido considerado um expoente
da chamada “filosofia portuguesa”. Em oposição crítica a essa opinião corrente, analisa-se
a forma como Agostinho concebe e se relaciona com a filosofia, tentando pôr em evidência o importante legado filosófico de um pensamento que nunca foi o de um filósofo, mas
sim o de um político. Concepção antimística da obra de Agostinho.
Palavras-chave:
Filosofia Portuguesa; Paradoxo/Padoxia; Absoluto; Pecado;
Confusão; Cultura/Política.
Résumé
Agostinho da Silva (1906-1994) fut un libre-penseur qui ne se présentait comme partisant
ni de l’orthodoxe ni de l’hétérodoxe, mais plutôt du paradoxe. Ayant intégré le groupe du
philosophe António Sérgio, il se trouva bientôt etouffé par le salazarisme reignant au Portugal. Le Brésil a été sa deuxième patrie. Auteur d’une large prose de réflexion sur la condition
humaine et sur le rôle de la nation lusitaine dans le monde, Agostinho fut toujours estimé
comme un important penseur de ce qu’on appelle la “philosophie portugaise”. En opposition
critique à cette vision habituelle, on analyse la façon dont il conçoit la philosophie en mettant
en évidence l’important héritage philosophique d’une pensée qui n’a jamais été celle d’un
philosophe, mais celle d’ un politicien. Concepcion anti-mistique de l’oeuvre de Agostinho.
Mots-clé: Philosophie portugaise; Paradoxe; Absolu; Péché; Confusion; Culture/Politique.
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Ser ou não ser filósofo
Joaquim Domingues*
É bom ser filósofo, mas é mau parecê-lo.
La Bruyère
O aforismo, citado por Álvaro Ribeiro, veio-me à mente quando se me
pôs o problema de saber se Agostinho da Silva é ou não filósofo, deve ou não
ter-se como tal. A uma primeira apreciação o seu caso contraria o juízo do célebre moralista francês, tão certo é que, depois do atributo de professor, creio
ser o de filósofo aquele que mais comumente se lhe aplica, sem que daí lhe
tenha advindo, ao que sei, qualquer prejuízo de maior. Em contrapartida, ele
mesmo nega ser filósofo e até manifesta por vezes algum desdém e distanciamento perante a filosofia, um saber demasiado desligado da vida para quem
toda a consagrou à acção, mesmo quando se trata de actividade pensante ou
de carácter espiritual, como científica ou religiosa.
A questão tem, portanto, uma dupla vertente: a de apurar quais os
motivos por que lhe foi atribuído um título por ele rejeitado e, para mais,
raramente reconhecido entre nós a quem quer que seja; e a de tentar compreender as razões que levam Agostinho da Silva a tomar tal atitude perante
a filosofia. O problema é tanto mais digno de atenção quanto é certo ter-se
tratado de uma posição assumida de modo coerente ao longo da vida, não
obstante as relações mantidas com filósofos como Leonardo Coimbra, António Sérgio e Vicente Ferreira da Silva, por exemplo. Acresce a estranha tese,
repetidamente afirmada, de que Bento Espinosa teria sido o único filósofo
português digno desse nome.
*
* Natural do Porto, em cuja Faculdade de Letras licenciou-se em Filosofia. Autor de Filosofia Portuguesa para
a Educação Nacional: Introdução à obra de Álvaro Ribeiro; O essencial sobre Sampaio (Bruno); e De Ourique ao
Quinto Império: Para uma filosofia da cultura portuguesa. Como da preparação do Plano de um Livro a Fazer: Os
Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão, de Sampaio (Bruno) e da Teoria Nova da Antiguidade, do mesmo;
dos três volumes dos Dispersos e Inéditos, de Álvaro Ribeiro, bem como das suas Cartas para Delfim Santos. Coordenou a edição dos volumes O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes e O Pensamento e a Obra de Afonso
Botelho. Publicou doze fascículos da revista Teoremas de Filosofia.
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Tenho para mim que o autor da Reflexão à margem da literatura portuguesa constitui um caso à parte no conjunto dos intelectuais portugueses e
brasileiros, pois se não integra em qualquer uma das tipologias que a propósito se podem definir, desde a do lente universitário à do poeta popular. Nem
sequer se pode dizer que tenha realizado a síntese desses tipos, antes representa
um caso singularíssimo, de que muito poucas personalidades se aproximam.
A par de um saber imenso, de que nunca faz gala, antes considera património
comum, ao alcance de todos os interessados, Agostinho da Silva apresentase como o arauto da tradição esquecida do seu povo, que procura actualizar
– pôr em acto ou em acção – com o fito na futuridade.
A sua valorização da Idade Média, com efeito, deve entender-se como
a do tempo do anúncio, simbólico e ritual, da Terceira Idade ou do Quinto
Império, por definição algo a demandar ainda. No ínterim, houve a experiência da modernidade, protagonizada pela Europa do Centro e do Norte, cujo
esgotamento salta aos olhos, precisamente quando parece dominar vitoriosa
por toda a parte. Sem negar os seus méritos, Agostinho propõe que aproveitemos dela os elementos prestáveis, designadamente os da técnica, susceptíveis
de útil reconversão em prol da sociedade fraterna e criativa, cujo cetro estará
nas mãos de uma criança.
Por estranho que pareça, esta mensagem foi bem acolhida pelos homens do povo, de sua natureza reticentes às fantasias, gente prática, acossada
tantas vezes pelas carências mais primárias, mas em cujo íntimo brilha ainda
aquele luar de sonho que move a humanidade. Compreende-se por isso que o
crismassem de ‘professor’, como quem sabe muito bem que professar, mais do
que anunciar o futuro, significa dizer em voz alta o que de mais secreto sabemos e em geral calamos. Ou de ‘filósofo’ que, sobre ser título a que não corresponde um emprego remunerado, remete para a noção de uma excentricidade
sábia, de um desprendimento activo, de uma liberdade comprometida.
Significativo é que, embora tenha passado por muitas instituições, o
‘filósofo’ se não identifique com nenhuma e, a bem ver, nenhuma o arvore em
sua figura representativa, a não ser naquelas evocações vagamente afectivas
em que é costume dourar a crueza das lutas pelo poder e pelo proveito com o
inconsequente elogio dos que passam à margem delas. Inclassificável, indomável, irredutível a um modelo, o seu percurso desenha-se em dissonância e por
vezes em ruptura com as práticas e as normas dominantes, motivo pelo qual,
aliás, nunca se demora muito tempo seja onde for, como quem faz da errância
um método e uma norma, segundo o prolóquio tradicional de que ‘errar é humano’. Assim, se entendermos por filósofo o homem superior que, à margem
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das teias da normatividade social, pelo seu pensamento e pela sua acção nos
abre a formas mais elevadas de humanidade, então havemos de admitir que
acertaram e acertam os que lhe dão título tão honroso, aproximando-o daqueles sábios que ilustraram a auroral filosofia grega.
*
Julgo não forçar a nota se disser que a espontânea aproximação a esse
modelo ressalta de alguns textos em que, como tantas vezes acontece, o autor
se entusiasma e como que se identifica ou revê no retratado. Pelo seu carácter
paradigmático vale a pena reler, por exemplo, o opúsculo dedicado a Sócrates,
em 1943, nos Cadernos de Informação Cultural ‘Iniciação’. Ao sintetizar o perfil traçado nos diálogos platónicos, observa ser o de
«um modelo de comportamento humano, pela clareza de inteligência, a serena tolerância, a correspondência de doutrina e acto,
o esforço contínuo, sincero, mais importante do que tudo, para a
descoberta da verdade, por um lado, por outro lado, para que a
verdade, uma vez aparecida, não sirva apenas para tema de conversa ou discursos, mas para modelar a vida, pela sua identificação
com a verdadeira vida» (p. 4).
Bem diferente do representado pelos ‘filósofos’ que pairam nas nuvens,
distraídos deste mundo pela ficção metafísica, que Aristófanes ridiculariza.
Com efeito, acrescenta, «a ideia de uma missão divina foi fundamental em
Sócrates e há neste homem eminentemente racionalista e crítico um fundo
místico tão forte como o dos que mais ardentemente buscaram Deus e com ele
pretenderam unir-se» (pp. 8-9). Empenhamento na acção, na busca da verdade
e do sagrado que exige uma heroicidade incompatível à prudente mediania:
«Sócrates sabia que nada de grande sai da vida absolutamente regrada e segura, que a verdadeira vida é a perigosa, a do contínuo risco,
a que jamais se sente amparada pelo que faz a segurança, mesmo
assim bastante precária, da existência dos outros homens; parece essência da vida o ser incerta, aventurosa, e é natural que o seja muito
mais a que muito mais se afirma» (p. 10).
Não terá sido este o modelo prezado entre os contemporâneos e consagrado na literatura académica, na fase da sua formação, onde dominava o
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conceito de filosofia como construção sistemática, de carácter racional, susceptível de compreender e explicar a totalidade do real. Concepção presente em
António Sérgio e vigente no ensino universitário, onde se destacavam homens
como Joaquim de Carvalho e Vieira de Almeida. E para a qual era de regra tomar a ciência como paradigma do saber, quer se privilegiasse a matemática ou
a física, o que ajuda a compreender a simpatia com que eram acolhidas entre
nós correntes como as da filosofia analítica, do materialismo dialéctico ou da
fenomenologia.
Para mais a investigação historiográfica, pautada por aquele conceito, parecia confirmar o escasso valor e significado da literatura filosófica nacional, que raro se teria elevado acima da glosa dos textos importados e dos
limites impostos pela ortodoxia religiosa. Por isso se compreende que, não
reconhecendo uma tradição filosófica própria, Agostinho da Silva partilhe o
cepticismo comum acerca da capacidade especulativa dos portugueses, a que
se eximira o judeu emigrado Bento de Espinosa, exemplo de racionalidade,
que tivera o ensejo de viver num meio apesar de tudo compatível à liberdade
de pensar. O que, aliado ao lugar central reservado para Deus no sistema e ao
ascetismo da vida do filósofo, explicará a simpatia que lhe tributa.
*
Tendo-se a si mesmo como um homem de acção e um homem religioso, antes de mais, tudo estaria talvez explicado no atinente à relação de Agostinho da Silva com a filosofia, não fora o facto de ele ter sido aluno da Faculdade
de Letras do Porto e, por isso, ter recebido as lições de Leonardo Coimbra. Ao
criar aquela escola superior de filosofia, em 1919, o autor de A Alegria, a Dor e
a Graça, cuja formação académica se fizera no domínio das matemáticas, apresentava-se como o autor de um sistema original cujo primeiro esboço dera a
lume em 1912 sob o título O Criacionismo. E se é unânime o testemunho de
alunos e discípulos quanto ao facto de nunca ter imposto, fosse a quem fosse,
as suas ideias, o certo é que a sua concepção do homem como ser dotado de
virtualidades criadoras e aumentativas da realidade – «o homem não é uma
inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer», dizia ele
– não poderia deixar de estar presente na actividade docente e convivente do
filósofo.
Seria muito esclarecedor apurar as razões da antipatia manifestada por Agostinho da Silva para com Leonardo Coimbra, sem embargo do respeito e apreço por quem fora capaz de criar um clima de liRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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berdade espiritual que distinguia a Faculdade de Letras do Porto das
suas congéneres. A exuberância da personalidade do filósofo portuense, cuja
coragem física, moral e intelectual o impôs à admiração de muitos, gerava
resistências e animadversões de que há testemunhos diversos, mormente na
relação com António Sérgio. E o modo como assumia o republicanismo, com
um pendor democratista a que não era alheia a passagem pelo anarquismo,
também não podia concitar a simpatia do jovem Agostinho, que se declarava
monárquico num ambiente fortemente adverso a tal opção.
Em contrapartida, o saber e a bonomia de José Teixeira Rego conquistaram-no, pelo que, em todo o caso, não passou incólume ao influxo da tradição
espiritual que, desabrochada na Renascença Portuguesa, animava os melhores
professores da Faculdade de Letras do Porto. A qual veio a reencontrar no
Brasil, na pessoa de Jaime Cortesão, um dos fundadores e dos principais animadores daquele movimento. O facto de ter sido na sequência deste encontro
que dá a lume, a partir de 1957, as obras capitais da sua bibliografia deve ser
entendido, a meu ver, como a subida à plena consciência do processo interior
que de há muito – desde que Agostinho era Agostinho – nele se desenvolvia.
*
Julgo, pois, que a sua relação com a filosofia deve ser vista à luz desta dupla perspectiva: por um lado, a da aceitação do conceito dominante no
meio intelectual, de um saber de cariz essencialmente abstracto e especulativo,
cujo valor reconhece, mas que o não motiva pessoalmente; por outro, a da
descoberta da tradição espiritual lusíada, que une a Idade Média portuguesa à actualidade brasileira e na qual vê inscrita a orientação que nos cumpre
tornar efectiva, a bem da humanidade e de toda a criação. Porque considera
esta tradição não como um saber de intelectuais, mas de homens práticos e até
místicos, cujo fito é o aperfeiçoamento pessoal pela acção em prol do comum,
a sua atitude é perfeitamente coerente; se bem que afectada por uma obstinação que o não deixa ver o evidente: a essencial afinidade da sua acção e do seu
pensamento com a chamada escola portuense ou da filosofia portuguesa, por
sinal também incompreendida e hostilizada pelos meios académicos.
O que caracteriza e distingue este movimento é o tomar como ponto
de partida e garantia primeira de todo o pensar a presença de um dado que a
própria língua materna já diz, transporta e revela. Não só é absurdo pretender
pensar a partir de nada ou de nenhures, como representa uma atitude de cegueira ou de inveja tentar ignorar ou desqualificar o património herdado, por
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pobre e limitado que pareça. O humanismo, o subjectivismo e o voluntarismo
abstractos têm permitido erguer construções metafísicas mais ou menos imponentes, mas que se revelam sempre realidades separadas e ameaçadoras da
vida, do mundo e do homem real.
A noção de tradição tem, ao invés, um acento dinâmico, futurante,
criacionista, pois, como ensina a etimologia, define-se por ser aquilo que se
transmite, o que se diz de boca a ouvido, como o segredo a desvendar, a promessa a demandar, o fito a prosseguir na sequência das gerações. Cabe a cada
um de nós, que a recebemos envolta nas formas culturais herdadas, interpretála e actualizá-la, pelo que nada tem de rigidez dogmática ou de feição retornista. Sem ela esvai-se a noção de identidade social e até pessoal, numa amnésia
que transfere as razões da autonomia do povo, do país e da pessoa para factores externos ou circunstanciais cuja precariedade a ninguém ilude.
A afinidade entre Agostinho da Silva e os seus companheiros da Faculdade de Letras do Porto é, neste plano, tão notória que só podemos estranhar
que não tenha sido mais regular, íntima e intensa a colaboração mútua, embora
as diferenças do percurso e da caracterologia possam ajudar a explicar o facto.
Como ajudam a compreender também a recusa em aceitar o epíteto de filósofo
por quem o é na verdade, mesmo sem ser licenciado em Filosofia nem ser reconhecido como tal pelas corporações universitárias. Tal qual, aliás, o não foram
Álvaro Ribeiro e José Marinho, até do ensino secundário oficial afastados.
Tenho para mim ter sido o mais vivo amor da sabedoria a animar
Agostinho da Silva ao longo de uma vida em que a muitos foi despertando para idêntico amor, tal como Sócrates, e cuja voz interior, embora marcada por
outros acentos, não é menos universal no âmbito a que aponta ou nas razões
que a movem. Por isso julgo que acertam quantos o reconhecem como filósofo, não do tipo escolar ou escolástico, mas mais próximo daquela sabedoria
cujo cadinho é o da vida e cujo auditório é o povo (não o vulgo ou a plebe), o
povo qualificado, vertebrado por uma cultura própria, cioso da sua liberdade e
da sua missão universalista. Ainda que não pareça filósofo aos que têm o poder
de impor títulos e graus, é-o com tal autenticidade que continua a desafiar os
que, de boa mente, ouvem as suas razões.
Resumo
Apesar da recusa de Agostinho da Silva em aceitar o qualificativo de filósofo, por o seu caminho se afastar da direcção dominante na intelectualidade contemporânea, entendo que
a vox populi acerta ao reconhecê-lo como tal. Devemos-lhe o inestimável serviço de nos
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ter despertado para as virtualidades actuais e futurantes da tradição espiritual que une os
povos de cultura lusíada. Ao dar-lhe expressão discursiva racional, consistência histórica
e formulação programática assumiu o modelo do sábio que aponta o rumo a uma sociedade em crise e apela a uma superior consciência da dignidade humana, ao mesmo tempo
que, numa desconcertante humildade, se apresenta como simples porta-voz dum saber
comum, embora esquecido.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Tradição; Filosofia
Résumé
Agostinho da Silva a refusé le titre de philosophe qu’on lui attribuait, parce qu’il ne pouvait
s’identifier avec une conception du savoir comme construction intellectuelle abstraite, dégagée de la vie. À mon avis, néanmoins, il s’est engagé dans le plus authentique amour de
la sagesse, qu’il croyait implicite dans quelques traditions populaires, où il voyait l’annonce
symbolique de quelque chose qu’il nous faut parvenir à réaliser. La quête du beau, du vrai
et du bien l’a conduit à la découverte, au Moyen Âge portugais aussi bien qu’au Brésil du
XX.ème siècle, de la préfiguration d’un nouveau âge de fraternité universelle qu’il s’est
éfforcé pour mettre en oeuvre dans son action et dans ses ecrits, comme un vrais sage.
Mots-clé: Agostinho da Silva; Tradition; Philosophie.
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A genealogia do pensamento
utopista de Agostinho da Silva
José Eduardo Reis*
O filósofo israelita Martin Buber publicou em 1946 em hebraico uma
obra de teor político filosófico, traduzida três anos mais tarde para inglês
com o título Paths in Utopia. Nela, Buber identifica a propensão para a utopia
com o anelo da realização da ideia geral de justiça, ideia que, segundo ele, se
manifesta segundo duas modalidades, a religiosa, projectada como imagem
escatológica e messiânica de um tempo perfeito, e a filosófica, projectada como imagem ideal do espaço perfeito. A primeira concepção envolve questões
do tipo cósmico, ontológico e metafísico, enquanto que a segunda confina-se
ao plano imanente do funcionamento estrutural das sociedades e da conduta
ética do homem. Segundo Buber, a escatologia ou visão perfeita do tempo
distingue-se da utopia ou visão perfeita do espaço, pelo facto de aquela decorrer da crença num acto transcendental, proveniente de uma vontade superior e exterior ao homem, independentemente de este poder vir ou não a
desempenhar um papel activo na preparação do Reino futuro. Com a utopia
é a vontade decidida e consciente do homem, liberta de qualquer vínculo à
transcendência, que soberanamente intervém na modulação do espaço social
perfeito. No entanto, esclarece Buber, desde o século das luzes, que a visão escatológica da instauração de um Reino harmonioso na terra por um acto providencial da vontade divina perdeu a sua força apelativa, dando lugar à ideia
* José Eduardo Reis é Professor Associado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde tem leccionado Literatura Comparada, Literatura Inglesa, Cultura Inglesa, História das Ideias. É investigador do Instituto de Literatura Comparada da Faculdade de Letras do Porto como membro do projecto “Utopias literárias e
pensamento utópico: a cultura portuguesa e a tradição intelectual do ocidente”. É mestre em Estudos Literários
Comparados pela Universidade Nova de Lisboa, com uma dissertação sobre a influência do pensamento de
Schopenhauer na obra literária de Jorge Luis Borges, e doutor em Literatura Comparada pela Universidade de
Trás-os-Montes e Alto Douro, com uma tese sobre o espírito da utopia nas culturas literárias portuguesa e inglesa. É autor de vários artigos na área da literatura comparada, em particular sobre a temática da utopia na obra
literária de autores portugueses e ingleses, autor de recensões críticas da revista académica americana Journal
of Utopian Studies, membro do corpo editorial da revista electrónica E-topia e editor de uma das raras utopias
literárias portuguesas, Irmânia de Ângelo Jorge.
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moderna de progresso. Convocámos Martin Buber para precisar que a ideia
de progresso, tal como foi formulada pelos livres-pensadores do século XVIII
e sistematizada pelos seus continuadores do século XIX, assenta em cinco
pontos fundamentais, a saber: (i) a proclamação de uma discernível continuidade, não isenta de turbulências, de hesitações e de movimentos retrocessivos, da evolução da história social e espiritual do homem, a qual é passível de
ser segmentada em fases ou estádios que, pela sua sequência, são reveladores
de um desígnio imanente de maturação e perfeição ôntica e material; (ii) que
essa continuidade é governada por leis históricas racionalmente induzidas a
partir da análise dos eventos gerados pelo homem e não deduzidas da crença
em um esquema providencial de ordenação divina; (iii) que por meio do conhecimento dessas leis se pode prever a qualidade do avanço inelutável de um
determinado estádio de desenvolvimento para o estádio que lhe sucede; (iv)
que esse avanço requer a intervenção da vontade e do esforço dos homens
para ser realizável; (v) finalmente, que este esquema de pensamento é uma
versão laicizada, como afirma Buber, duma visão escatológica da história assente na ideia do milénio.
E chegámos ao milénio. Não ao limiar do segundo lapso de mil anos d.
C., mas à nomeação de um conceito que, para a história das ideias, crenças e
concepções teleológicas desempenha uma função dominante e orientadora na
mentalidade do ocidente judaico-cristão; de um termo, cujo conteúdo designa, por efeito de sinonímia, a esperança, o princípio de que se nutre, como o
demonstrou Ernst Bloch, o espírito da utopia orientado para o futuro, os dias
a vir, a idade de ouro recuperada, a entrada nas graças da Sétima Idade, a Parúsia prometida aos crentes, o Reino terrestre do Messias, a sociedade da justiça,
o estado final do processo cósmico que definitivamente sublimará as insuficiências, as calamidades, as faltas acumuladas pelo homem ao longo da sua
mesma e necessária história, esperança consubstanciada nos quarto, quinto e
sexto versículos do vigésimo capítulo da revelação profética do Apocalipse de
João: “Voltaram à vida [os mártires cristãos] e reinaram com Cristo durante
mil anos [...]. A segunda morte não tem poder sobre eles; serão sacerdotes de
Deus e de Cristo e reinarão com Ele durante mil anos.” (Apoc. 20-4; 20-6).
Embora a formalização significante do conceito de milénio (e de todos os seus termos cognatos) tenha uma nítida filiação doutrinal cristã, visto
que deriva explicitamente do conteúdo de um texto canónico novitestamentário, há, todavia, que esclarecer que ele passou a designar, quer para a história
(tanto social como das ideias ou das mentalidades), quer para a antropologia,
qualquer modalidade de pensamento escatológico de tipo redentor e universal
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– comprovável noutras sociedades e culturas não-cristãs – e que se manifesta,
em geral, através de movimentos e comportamentos religiosos que visam alcançar uma salvação completa (física e espiritual) do ser. Para Norman Cohn,
autor de In the Pursuit of the Millenium (Na Senda do Milénio), esta noção de
salvação caracteriza-se por ser de tipo colectivo – na medida em que é extensível a um grupo de fiéis –, terreal – pela promessa de ser efectivada neste mundo –, iminente –, pois deverá ocorrer em breve e de súbito –, total – ,quanto
ao grau de perfectibilidade alcançado – e será concretizada por efeito de uma
intervenção exterior, sobrenatural.
Mas limitemo-nos ao sucedido na civilização ocidental. Dos adeptos
do Livre-Espírito, na Idade Média, às Testemunhas de Jeová, no século XX,
passando por variadíssimos movimentos religiosos sectários gerados em diferentes épocas, regista-se a espantosa sobrevivência de uma mesma fórmula
ideológica de inspiração apocalíptica sobre o devir do mundo, a contínua reprodução da crença no valor de verdade literal da profecia escatológica anunciada no último livro canónico da Bíblia. No seu diferenciado modo de interpretar o texto sagrado e de agir – seja pacífica seja violentamente – a partir
dessa interpretação, os milenaristas manifestam, grosso modo, a sua vontade
salvífica segundo duas posições, a saber, a de esperarem convictamente a vinda ou a de se prepararem activamente para a consumação do Reino prometido de justiça, paz e abundância, que deverá preceder um estádio ulterior,
esse sim, final da história do mundo terreno, correspondente, na visão de
João, à descida dos céus da Nova Jerusalém (Apoc. 21). Em rigor, há, portanto, que definir o milénio como um estádio histórico-temporal intermédio e
transitório, de relativa perfeição ontológica (relativa, por ser apenas extensível aos crentes eleitos – os santos – e por não ser ainda totalmente espiritualizado, apesar de ser governado directamente por Cristo). No entanto, o conceito de milénio, apesar da sua simples derivação etimológica e originária
determinação semântica, reveste-se de subtilezas e complexidades acrescidas
que derivam: (i) quer das divergentes interpretações dos textos profético-apocalípticos que estão na origem daquelas duas atitudes sectárias, (ii) quer dos
próprios contributos teóricos de pensadores e autores alinhados por uma visão teleológica-transcendente da história, (iii) quer ainda das propostas de
interpretação dos estudiosos e exegetas do fenómeno milenarista.
A irresistível atracção pelo tempo futuro é, portanto, uma modalidade
do pensar e do agir que, na tradição ocidental, adquiriu uma forte coloração escatológica por via da influência duma crença original – de entre as várias crenças
religiosas dos povos da antiguidade – do povo judaico: a de se ter autoconstituíRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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do e autoproclamado como o agente humano da realização de um plano necessariamente benigno e salvífico do Criador do Mundo, tido pelo único e verdadeiro Deus. Daí que, talvez, a concepção providencial, segmentada e apocalíptica
da história, assente na ideia de tempo linear, progressivo, apoteótico-finalista, e
que conheceu larga fortuna no Ocidente, tenha por original ilustração mítica a
crença semita numa aliança, que é narrada no capítulo 17 do Génesis, firmada
entre Deus e um descendente de Noé, Abrão, depois rebaptizado Abraão, o pai
dos povos, a quem foi prometida a posse futura de uma terra de segurança e
abundância. Esse pacto, além de pretender traduzir a consagração de uma graça divina a favor de uma nação particular, investindo-a na responsabilidade de
iluminar outras nações no conhecimento do verdadeiro Deus, deu princípio à
esperança de, num tempo futuro, um povo sem terra própria, mas que se crê
o verdadeiro e sublime representante da humanidade, vir a viver na melhor de
todas as terras, espécie de simulacro do Reino dos céus.
Esta propensão do povo hebraico em tomar o fim dos tempos ou o futuro como instância temporal libertadora foi sobretudo acalentada após a experiência traumática da invasão assíria, da perseguição e da deportação colectiva
para a Babilónia (597-86 a. C). É então que a figura do Messias – mashiah, o
ungido, o eleito –, adquire uma função eminentemente soteriológica – como
salvador que vem resgatar a sorte adversa e justiçar os inimigos do seu povo –,
não obstante o facto de os textos que se lhe referem divergirem quanto à natureza da sua identidade – se enviado, se filho de Deus, se o próprio Jeová – e variarem quanto à determinação do atributo humano que assumiria – se sacerdote,
se monarca, se monarca-sacerdote. Tanto nos textos veterotestamentários como
nos da literatura judaica apocalíptica, o Messias não aparece, pois, caracterizado
de forma unívoca e estável, a não ser no traço comum de salvador e dispensador
de graças que inaugurará uma época de justiça, paz e inefável felicidade.
São os profetas da época da invasão síria e depois do exílio,
Isaías, Jeremias e Ezequiel, que dão ênfase e promovem esta forte mitificação
da vinda do Messias-Salvador. Cerca de seis séculos depois de Isaías, por volta
do ano 165 a. C., outro profeta, Daniel, comporá aquele que é considerado o
mais antigo e completo apocalipse canónico do antigo testamento, revelando
– porque a revelação lhe foi dada também em sonhos – ao rei que oprimia
então o seu povo, Nabucodonosor, o sentido dos dois sonhos que este tivera e
que o deixara tão intrigado. Esses sonhos reais, envolvendo, respectivamente
(caps. 2 e 7), quatro animais e uma estátua polimórfica, simbolizariam, na
interpretação do profeta, a queda dos quatro grandes impérios terrestres que
se sucederam no Próximo Oriente (e que a exegese bíblica identifica com o
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Assírio; o Persa; o Helénico, de Alexandre Magno; o Romano), e que deviam
preceder a iminente fundação do quinto, o último, de inspiração divina.
O já referido estudo de Norman Cohn, circunscrito a movimentos milenaristas que despontaram no norte da Europa ao longo da Idade Média, é
por demais esclarecedor quanto às potencialidades revolucionárias da interpretação literal da profecia atribuída a São João. De 431 em diante, isto é, após
o Concílio de Éfeso, a crença no milénio inspirará, sobretudo, sentimentos
religiosos populares e será devidamente explorada e utilizada por autoproclamados profetas iluminados e guias messiânicos como eficaz expediente ideológico para animar práticas religiosas heterodoxas, ergo heréticas, e conduzir
revoltas sociais protagonizadas pelas famintas e crédulas legiões de pobres a
quem fora prometido, pelo Cristo-Redentor, o Reino dos Céus. Não é de estranhar, portanto, que a teologia escolástica medieval, com S. Tomás de Aquino
(1224/25-1274) à cabeça, tenha reiteradamente reprovado qualquer veleidade
de explicar o curso da história humana com base em interpretações proféticas,
incentivando, antes, a autovigilância ideológica contra qualquer insidiosa irrupção mental utópica-quiliástica.
Mas o espírito da utopia não é aprisionável e sopra quando e donde menos se espera. No fim do século XII, o monge cisterciense Joaquim – abade do mosteiro de Curazzo, na Calábria, onde nascera em 1135, e
fundador, em Fiore, de um mosteiro e de uma ordem monástica que perdurou
até 1570 – formulou, a partir do intenso estudo das Escrituras, e com o benefício de várias iluminações espirituais, uma leitura salvífica e profético-utópica
da história da humanidade. E fê-lo sob o estímulo e com o próprio beneplácito do Papa Lucius III, dentro do corpo institucional e doutrinal da Ecclesia
Romana, de que era devoto insuspeito, sem nunca ter sofrido, ao longo de toda
a sua vida, a reprovação e o estigma da prática de heresia.
À sua maneira, Joaquim de Fiore foi uma espécie de filósofo da história
empenhado em subministrar um sentido lógico e uma explicação coerente do
curso temporal do mundo. Para tal, fundou toda a sua teoria acerca do significado do devir histórico num princípio de razão elementar, capaz de discernir
o propósito da ordem passada, presente e futura das coisas humanas. Claro
que no século XII europeu esse princípio de razão não podia ser suficiente
nem imanente, mas necessariamente transcendente, induzido da teologia cristã e do conteúdo narrativo da Bíblia, do livro matriz que enformava toda a
verdade essencial acerca da história do mundo, dos desígnios de Deus e da sua
progressiva revelação. Para Joaquim de Fiore, condicionado que estava pelos
“ídolos” do seu tempo, a Bíblia canónica, a que foi sendo fixada pelos diferentes
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concílios, era o livro em que Deus fizera escrever a sua vontade e feito comunicar a sua una e triádica natureza de Pai, Filho e Espírito Santo, mas também
o livro em que cripticamente anunciara um plano de progressiva iluminação
ecuménica que requeria ser decifrado. Nele se continha a súmula da história
do passado espiritual do género humano e, simultaneamente, a chave da sua
história futura, a qual, em última análise, só podia ser coerentemente compreendida e interpretada à luz daquela vontade e daquela natureza divinas.
Dedicando toda a sua energia intelectual à leitura e à exegese em profundidade do Livro sagrado, Joaquim inferiu analogias e estabeleceu correspondências entre números, eventos e personagens do Antigo e do Novo Testamento (precisamente uma das obras que lhe foram autenticadas tem por
título Liber concordie : Novi ac Veteris Testamenti (A concordância do Antigo
e do Novo Testamento), construindo assim uma intricada rede de significados simbólicos que coerentemente e sucessivamente demonstravam, segundo
ele, a acção em diferentes fases da história do mundo dos distintos atributos
das pessoas da Santíssima Trindade. A um Deus uno e trino, que progressivamente se fazia revelar no plano imanente, deveria corresponder um curso da
evolução temporal, também ele uno, mas triadicamente segmentável em fases
discretas, caracterizadas pela sucessiva predominância dos atributos próprios
de cada uma das distintas pessoas divinas. Por outras palavras, o próprio devir
do tempo e da história humanas estariam intrinsecamente relacionados com
a trindade do Deus-cristão que progressivamente se fazia revelar na sua paradoxal unidade e heteronomia: se o Filho procedia do Pai e o Espírito Santo
procedia de ambos, então a história, entendida como processo em que a livre
acção humana estava subsumida e determinada pela vontade de Deus, mais
não seria do que um reflexo desse triplo avatar divino. A história estaria assim dividida em três fases ou três estados (status): o do Pai, o do Filho e o do
Espírito Santo. Cada um destes três estados dividir-se-ia em sete períodos (e
o número sete, que já havia sido utilizado por S. Agostinho para estabelecer a
sua própria cronologia do mundo, tem o seu fundamento bíblico por analogia
com os sete dias da Criação), os aetates, cada um deles designado pelo nome
de uma personagem célebre da história sagrada.
Entendendo a duração temporal humana como se fosse um desdobramento de diferentes atributos divinos, como um progresso espiritual, Joaquim
descreveu esse élan em termos biológicos de germinação e frutificação, de concepção e nascimento. Deste modo, o estado do Pai fora concebido ou germinara com Adão, começara a frutificar com Abraão e terminara com Zacarias,
pai de S. João Baptista. Foi um estado que se caracterizou pela prescrição da lei
A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva
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divina, pela ordenação de mandamentos que visaram disciplinar e infundir o
temor no homem. Foi, digamos assim, um estado caracterizado pelo primado
coercivo da lei. O estado do Filho germinara com Osias (o rei de Judá do século VII a.C.), começara a frutificar com Jesus e deveria terminar, segundo os
cálculos do abade calabrês, por volta de 1260. O seu atributo dominante seria
o da humildade de Deus, que encarnara para redimir a criação. Os homens
nesta idade mais civilizada/espiritualizada responderam não já com temerosa
obediência, mas com confiante solicitude à vontade de Deus; no entanto, a Sua
lei permanecera exterior e não coincidira totalmente com a vontade humana.
O estado do Espírito Santo, que germinara com S. Bento (c.480-547), deveria
começar a frutificar por volta de 1260 e terminaria to Consummatio Seculi, no
fim dos tempos. É um estado em que, fruto da iluminação geral da humanidade pela acção directa do Paráclito, reinariam a liberdade espiritual e o amor
compassivo, nele coincidindo a vontade humana com a vontade divina. É assim que Marjorie Reeves nos descreve esta sequência:
Num impulso lírico já na parte final do Liber Concordie, ele [Joaquim] lança mão a sequências imaginativas para exprimir este movimento supremo da história: o primeiro status estava subordinado
à lei, o segundo status sob a graça, o terceiro status, aguardado para
breve, sob uma ainda maior graça; ao primeiro coube a scientia,
ao segundo a sapientia, o terceiro será o da plenitudo intellectus; o
primeiro foi vivido na servidão dos escravos, o segundo na servidão
dos filhos, mas o terceiro será em liberdade; o primeiro foi o tempo
dos castigos, o segundo da acção, mas o terceiro será o tempo da
contemplação; o primeiro foi vivido com temor, o segundo na fé,
o terceiro será no amor; o primeiro foi o status dos escravos, o segundo dos filhos, mas o terceiro será o dos amigos; o primeiro foi
dos anciãos, o segundo foi dos jovens, o terceiro será das crianças; o
primeiro foi vivido sob a luz das estrelas, o segundo com a aurora,
o terceiro será em pleno dia; o primeiro no Inverno, o segundo nos
começos da Primavera, o terceiro no Verão; o primeiro é o das urtigas, o segundo das rosas, o terceiro dos lírios; no primeiro há erva,
no segundo centeio, no terceiro trigo; ao primeiro pertence a água,
ao segundo o vinho, ao terceiro o azeite.1
O pensamento de Joaquim foi naturalmente tributário de uma tradição exegética, topológica, alegórica e numerológica sobre o estádio final da
história do mundo. A sua doutrina sobre a representação do tempo como uma
progressiva revelação da Trindade teve, aliás, no primeiro e no segundo quarRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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tel do século XII, dois precursores, respectivamente, Rupert de Deutz e Anselmo de Havelberg. Mas a originalidade e a genialidade da reflexão joaquimita
residem precisamente em ter superado tanto a interpretação literal como a
alegórica dos textos profético-apocalípticos, nomeadamente o de São João, e
ter proposto a sua própria profecia a partir de uma intricada rede de correspondências de sentido entre dissemelhantes textos bíblicos. Uma profecia que
se apresentava como uma superação do antigo e do novo testamento e que vaticinava para breve a espiritualização da humanidade, o advento de um discreto estádio, mais perfeito que os anteriores, em que a igreja de Pedro daria lugar
a uma nova ordem religiosa de essência monacal, inaugurada por uma espécie
de figura messiânica, o Dux, e tutelada pelo misticismo da mensagem de João.
Por outro lado, a visão crístico-apocalíptica da história, com os seus mil anos
de governo exercidos directamente por Cristo a uma comunidade aristocrática constituída pelos santos mártires ressuscitados, e que deveria preceder o
Juízo Final de Deus, dá lugar, na exegese profética de Joaquim, a um indefinido
– quanto à sua duração – estado escatológico de amor, dispensado pela acção
directa do Espírito Santo e democraticamente extensível a toda a humanidade, que passaria a viver, já na terra, as primícias da eterna bem-aventurança
celestial. À discordante e impura vida activa estaria, portanto, para suceder a
concordante e pura vida contemplativa praticada pelo novo homem espiritual, um ser de sabedoria e paz, sintonizado com a recta lei de Deus e liberto da
servidão das más inclinações. É peremptória a convicção de Joaquim acerca do
futuro estado do homem, quando afirma: “Nós não seremos o que fomos, mas
principiaremos a ser outros.”
É afinal uma convicção fideísta no compassado e benigno devir da história, na ascensão faseada da humanidade em direcção ao bem e à felicidade
teleológicas, que, à margem da doutrina oficial da Igreja Romana – de raiz
agostiniana e de essência tomista –, despertou e legitimou as expectativas de
mudança e as movimentações sociais dos deserdados ao longo da Idade Média. Mas é também uma convicção que viria ulteriormente a secularizar-se
em teorias de emancipação social e em filosofias do progresso, anunciadoras
de um tempo último e perfeito da duração da história, e que, entre muitas
outras concepções postuladas pelos livres-pensadores do século XVIII e XIX,
vão desde a representação do estado da religião positivista de August Comte à
comunidade fraternal de Robert Owen, à sociedade comunista esboçada por
Karl Marx, passando pelo projectado Estado Prussiano de Hegel – a consumação acabada da Ideia absoluta (Ideia, que é o princípio hegeliano de explicação
da objectivação do mundo).
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No Portugal de seiscentos, a tese profético-utópica da quinta monarquia, inspirada em fontes bíblicas, teve, como se sabe, na pessoa do padre jesuíta António Vieira (1608-1697) um dos seus mais estrénuos defensores. Mas
não foi o único. No século XVII, a conjuntura ideológica, política e social do
nosso país foi particularmente propícia a sondagens visionárias sobre o devir
da pátria e do mundo. As posições profético-milenaristas de teor luso-cêntrico
que se divulgaram e propagaram em Portugal, sobretudo nos decénios que
decorreram entre 1630 e 1670, isto é, durante o período que mediou entre o
crescendo da expectativa popular da restauração e a fase da reconsolidação da
soberania nacional, caracterizaram-se pela irrupção mais ou menos generalizada duma eufórica esperança messiânico-nacionalista e por aquela voltagem
ideológica revolucionária indutora de utopismo – já registada, por exemplo,
na Crónica de D. João I de Fernão Lopes.
Sendo o milenarismo do jesuíta português de tipo hermenêutico, essencialmente derivado da leitura da Bíblia, no que concerne às condições do
advento ou instauração do Reino de mil anos dos santos (portugueses), ele
aguardava por uma resolução final da história que nitidamente pressupunha
uma intervenção transcendente, providencial – na qual o Papa, o monarca e
o povo portugueses desempenhariam um papel instrumental decisivo – e que
daria início à idade de mil anos profetizada no Apocalipse.
Como fervoroso católico que era, Vieira procurou conformar o seu
milenarismo utópico aos dogmas da Igreja, conformidade difícil de ser dialectizada e sustentada num século fortemente marcado pela intolerância entre
diferentes credos religiosos e particularmente feroz na perseguição movida
aos judeus. Porém, no milenarismo utópico de Vieira todos os homens teriam
de ser salvos, o que na sua opinião passava pela conversão universal de gentios
e judeus ao cristianismo. Para esse fim, considerava o padre jesuíta que a futura igreja triunfante devia fazer concessões aos ritos praticados pelos hebreus.
Dado o facto de estes estarem profundamente afeitos às suas tradições rituais,
muitas delas, aliás, praticadas pelos primeiros cristãos, não havia motivo, a seu
ver, e desde que se conformassem à teologia cristã, para serem estigmatizadas e
consideradas heréticas. Do ponto de vista eminentemente religioso, Vieira parece, portanto, conceber o Quinto Império como sendo doutrinalmente uno,
unidade não imposta, voluntariamente reconhecida pela revelação universal
da suprema verdade na pessoa de Cristo, mas permeável à diversidade de culto.
Do ponto de vista existencial seria um estado caracterizado pela prelibação
das glórias futuras, governado pelas leis físicas da vida temporal, uma espécie de condição ontológica refundida, digamos assim, um prelúdio terrestre
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da eterna bem-aventurança, no qual os homens, conhecendo finalmente uma
paz perpétua de mil anos, viveriam saudáveis e dotados de uma longevidade
excepcional: entregues às suas actividades normais, praticá-las-iam de modo
fraterno e santificado. Num apontamento que Vieira deixou incompleto e que
foi recentemente editado, em apêndice, na Apologia das Coisas Profetizadas,
pode ler-se: “A 1ª felicidade temporal deste bem-aventurado Reino será aquela
sem a qual nenhuma outra se pode chamar verdadeira felicidade, e a qual em
si mesma abraça todas ou quase todas as que se podem gozar nesta vida, que é
a paz. Haverá Paz Universal em todo o mundo, cessarão as guerras e armas em
todas as nações e então se cumprirão inteiramente as profecias tão multiplicadas em todos os profetas tão variamente explicadas pelos expositores, e nunca
bastantemente entendidas” (Vieira 1994: 287). Essa paz promoveria uma tal
revolução de hábitos, seria acompanhada por uma tal mudança no espírito da
vida, que na terra se veria cumprida finalmente a profecia de Isaías que refere
a convivência do lobo com o cordeiro.
No contexto da cultura literária portuguesa do século XX, Fernando Pessoa (1888-1935) retomou com impressionante vigor e com consciente deliberação a utopia-profético-milenarista (ou, nas suas palavras, o mito)
do Quinto Império, requalificando o seu conteúdo, alijando-o das suas mais
imediatas implicações bíblico-teológicas e procurando fundamentá-lo não
como mera possibilidade formal, mas como possibilidade objectivamente real. À semelhança de Vieira, também Pessoa recorda para demonstrar, reprova
para desmistificar, lamenta para sublimar, exorta para estimular, prediz para
utopizar. Procuremos, pois, perceber o conteúdo da sua ideia de Quinto Império. Pessoa, na linha do pensamento de Padre António Vieira, – e é esse o
sentido da segunda parte da sua obra poética Mensagem –, recorda então para
demonstrar aquilo que poderíamos designar a função utópica do conhecimento do “mar português”, entendido este mar não tanto como uma expressão adjectiva da grandeza nacional, mas antes como uma dupla alegoria representativa (i) das possibilidades reais, das possibilidades possíveis – digamos
com ênfase pleonástico –, as que conduzem à efectiva descoberta do novo, mas
também (ii) das possibilidades simbólicas de transcendência do mundo dado,
do mundo histórico, o dos (quatro) impérios materiais. Ora, de entre os cinco
nacionais símbolos, enunciados por Pessoa, que configuram o sonho (utópico) português, o segundo tem por título “O Quinto Império”. Porém, mais
do que procurar definir ou determinar a sua possível natureza, este império
é-nos apresentado como uma imprescindível figuração do descontentamento
anímico, como uma necessidade lógica ou causa final da indagação humaA genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva
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na, como uma realidade possibilitada pela idealização activa, anticonformista,
obreira do desejo profundo ou da visão da alma.
São cinco as estrofes que dão corpo a este poema, as três primeiras
de reprovação ou censura por aqueles seres apáticos, conformados ao estado
morno da vida, imunes à dúvida investigadora, vegetando na sua acrítica subordinação à lógica das coisas instituídas e à aparência das ideias confortantes,
mas alienantes da ideologia, por aqueles seres que não sonham senão com
o seu pequenino bem-estar e que necessariamente reproduzem, no domínio
imperial da sua vida, as leis fatais dos impérios que se sucederam na história,
“Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda
a idade” (Pessoa s.d: 83). O Quinto Império surge então na Mensagem como
“Símbolo” de novas e insondáveis possibilidades tanto relativas ao ser como
ao conhecer: a sua ontologia é-nos representada como uma condição vital outra que arranca do descontentamento em viver-se apenas o contentamento da
duração animal da vida e que se constrói a partir de uma vontade que rompe
com as leis cíclicas da biologia e da história – “Triste de quem é feliz / Vive porque a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida
a sepultura” (82); quanto às condições que possibilitam o seu conhecimento
(a sua gnosiologia), elas são obviamente de tipo ideal-visionário, configuram a
actividade da “alma” do sonhador que, de tanto sonhar, transforma-se na coisa
sonhada, e de tanto esperar vê cumprida a cessação e a transcendência das leis
monótonas do tempo histórico – “Eras sobre eras se somem / No tempo que em
eras vem. / Ser descontente é ser homem. / Que as forças cegas se domem / Pela
visão que a alma tem” (82-83). Em síntese: a tese pessoana é de que o Quinto
Império não virá do céu, mas surgirá da terra, da visão sonhadora dos que percebem o mundo como o único palco para o conhecimento da eternidade sem
tempo – “E assim passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra
será teatro / Do dia claro, que no antro / Da erma noite começou.”(83)
No contexto da cultura portuguesa da segunda metade do século XX,
Agostinho da Silva é quem recebe e quem magnifica o testemunho da esperança milenarista, é quem prolonga o olhar de um Vieira e de um Pessoa num indefectível futuro de júbilo e de apaziguamento existencial trazidos ao mundo
pelo concurso, pelo exemplo ou pelo “sacrifício” da nação portuguesa. Melhor
dizendo, da nação ideal portuguesa. Daquela que, nas suas grandezas reais/
simbólicas, mas também nas suas faltas simbólicas/reais, Agostinho historiou/
mitificou até à exaustão em escritos vários, sempre com o assumido propósito
de apresentá-la como peça instrumental ou cifra de um processo cósmico que,
necessariamente e com o concurso da liberdade humana, há-de finalizar com
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a esperada redenção do mundo. Na pura tradição, de raiz hebraica, proféticomessiânica da cultura ocidental, a nação portuguesa, pelo que fez e deve fazer,
pelo que cumpriu e deve continuar a cumprir, vale, também, para Agostinho
da Silva, enquanto símbolo de uma esperança ou de um desejo íntimo de teor
escatológico: a história, mas também a ciência, a filosofia, a literatura, a cultura, todas as criações do espírito humano interessaram-no enquanto fórmulas
de demonstração ou auxiliares de conhecimento e de entendimento para a
consumação desse processo, em que as melhores das idiossincrasias nacionais
ou os mais positivos e significativos eventos da história de Portugal – dos quais
o navegar à bolina pelo mar ignoto e sem-fim sob o benefício e orientação
dos astros, o descobrir novas linhas do horizonte, o ligar e religar continentes
separados, o unir e casar gentes e culturas distantes e desconhecidas entre si
– configuram, pelo seu valor de revelação e de reconstituição planetária da
ideia-utópica-limite-da-unidade-essencial-do-ser, o acontecimento simbólico
supremo. É este Portugal de vocação messiânica e milenarista, o Portugal do
mito e o da utopia, ou talvez, em expressão mais ousada, o do mito utópico,
e não o Portugal da ideologia e da história política, é este Portugal inspirado
pela força do mistério e pelo jogo da descoberta, e não o Portugal agitado pela
ambição do domínio e pelo jogo do poder imperial, é este Portugal do ser e
não o Portugal do ter, este Portugal de esperança, de visão, de irmandade, de
sacrifício voluntário e silencioso, representado por figuras-modelo como o rei
poeta D. Dinis e a Rainha santa Dona Isabel – (acolhendo no Reino os franciscanos espirituais, discípulos de Joaquim de Fiore e propagadores do culto do
Espírito Santo) -, mas também representado pelo Infante Santo – (expiando e
redimindo, com o seu martírio, o maquiavelismo palaciano que trocou o amor
fraterno pela razão de Estado, i.e., que trocou a fidelidade à infinita liberdade do
império do espírito pela preservação das fronteiras contingentes e limitadoras
do império material) –, representado por Luís de Camões – (escrevendo sobre
a Ilha dos Amores, e tomando-a não tanto como prémio da viagem à Índia,
mas antes como amostra de uma condição nostálgico-oracular, a do paraíso a
reaver) –, representada por Fernão Mendes Pinto – (o peregrino da aventura
e da efabulação, de polimorfa identidade circunstancial, vivendo segundo a
‘metafísica do imprevisível’ em permanente estado de espanto e de superação
da adversidade), é este Portugal, o do Vieira e o do Pessoa, profetas do Quinto
Império (transcendendo a “apagada, austera e vil tristeza”, como diz o verso
camoniano, dos tempos de medíocre desvitalização e asfixiante repressão em
que viveram, e apontando, por diferentes vias hermenêuticas, outras possibilidades de ser), mas também o Portugal dos municípios, dos baldios, da boda
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comunitária, das festas do Pentecostes, das cortes consultivas, da governação
democrática e popular, da partilha pelos homens-bons da administração das
coisas públicas, das descobertas geográficas, da fruição positiva, aventurosa e
contemplativa da vida, é este Portugal ideal, disseminando-se pelos diferentes
continentes ao longo dos séculos, sobrevivendo mais como língua sem fronteiras do que pátria ou pátrias confinadas à geografia do seu território, é tudo isto
que, no essencial, constitui o núcleo da identidade nacional prefigurador da
ideia do Quinto império de Agostinho da Silva. A história de Portugal, melhor
dizendo, uma certa história de Portugal, mais assumidamente mítica do que
real, opera como uma espécie de mónada prospectiva ou esboço da utopia do
Quinto Império no pensamento de Agostinho, o qual confere, à semelhança
de Pessoa, maior valor de conhecimento à lógica do mito – tomado como
súmula de uma verdade perene e desejada – do que à metodologia da história
– entendida como especioso e, em última análise, subjectivo processo de reconstituição de uma irreconstituível objectividade dos factos pretéritos.
O seu texto Considerando o Quinto Império (1960) é uma espécie de guia ou manual de instruções para os adeptos desse projecto, escrito no espírito mais espiritualmente empenhado do seu autor e
onde se pode ler, como o eco de uma regra monástica, uma sistemática de
princípios gerais de organização social e de acção potencializadora da vocação
de perfectibilidade e de transcendência do ser humano. Aí escreve Agostinho.
É com ele que queremos terminar: “Se o primeiro passo dos Impérios está
sempre no espírito dos homens [...] muito mais estará para este Quinto Império de que falamos, o Império do Espírito Santo, a que iam os portugueses do
século XV e a que podem, quando quiserem, ir os portugueses de hoje, o que
significa os que hoje falam e sentem português.
Mas toda a revolução individual, e só por uma revolução individual ele
se poderá iniciar, tem como seu reflexo uma organização colectiva. Os homens
que por uma nova metanóia tiverem passado a ser crianças terão fatalmente de
se organizar, e o tipo de organização terá de ser o de ordem religiosa, não de
uma só religião, mas de qualquer religião, e considerando já como uma religião
o próprio estabelecer-se criança. Uma só ordem de todas as religiões, uma ordem fundada nas três liberdades tradicionais e essenciais de não possuir coisas,
de não possuir pessoas e de não se possuir a si próprio. Os três votos como
diríamos. [...]
Teremos como ideal de governo o não haver governo, como o não havia no Paraíso, e a toda a História veremos como a lenta e segura preparação,
não pela sabedoria do homem, mas pela paciência e a tenacidade de Deus,
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para que, passando por cima de todas as teocracias, e de todas as aristocracias
e de todas as democracias, cheguemos àquela também solução da antinomia
governante-governado.
Teremos como ideal de economia o não haver economia, como não a
havia no Paraíso, sendo apenas dever de cada um o florir como pode e direito
de cada um o encontrar o que precisa: destruamos também aqui a antinomia
de produtor e consumidor, de liberdade e segurança.
Teremos como ideal de gente aqueles em que também se tiver destruído a antinomia de criança e de adulto, de ignorante e de sábio, de homem e de
mulher; esperemos que no Quinto Império não haja nem escolas nem livros
nem casamentos: como no Céu.
Teremos como ideal de vida o não distinguir entre o que hoje chamamos vida e o que hoje chamamos morte; teremos como ideal de verdade o
não separar o que hoje chamamos verdadeiro do que hoje chamamos falso:
teremos como ideal das geometrias de todas as dimensões o vê-las fundidas,
aniquiladas, numa geometria de dimensão alguma.
E teremos, finalmente, como ideal de pensar, donde tudo arranca,
a fusão plena de sujeito e objecto num não-pensar. Para o pôr em termos
mais ou menos teológicos, queremos ver, do Pai e do Filho, o laço do Espírito que os une: ou de, na realidade, nos absorvermos na inconsciência dele.
O que novamente traria a terreiro, desta vez sem heresia, o velho Joaquim
de Flora, e seu Reino do Espírito Santo e seu Império da Flor-de-Lis” (silva, 1989: 197-200).
Bibliografia
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REEVES, Marjorie – Joachim of Fiore and the Prophetic Future. London: SPCK,
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de Adma Faduk Muhana. Lisboa: Livros Cotovia, 1993.
Notas
1 REEVES, Marjorie. Joachim of Fiore and the Prophetic Future. London: SPCK, 1976, pp. 14-15. (Tradução
nossa)
Resumo
Agostinho da Silva costumava dizer que a melhor maneira de se ser moderno e revolucionário no século XX era ser-se conservador do século XIII. O paradoxo – de que se nutriu,
aliás, com estimulante produtividade heurística o seu discurso poético-filosófico – deste
seu enunciado combinam categorias antinómicas (revolucionário e conservador) e tempos
históricos descontínuos e inconvertíveis (século XIII e século XX), não com a finalidade de
formular uma irónica aporia, mas tão-somente de apontar uma possibilidade axiológica
transtemporal. O século XIII a que Agostinho se refere é o século da introdução em Portugal, no reinado de D. Dinis, do culto do Espírito Santo e da difusão da teologia da história
joaquimita (de Joaquim de Fiore). Como se sabe, o sentido teleológico da visão do curso
da história joaquimita apontava para a eminente e necessária instauração de uma era de
plena e amorável realização do ser humano sob a directa inspiração da imprevisível graça
da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Na nossa comunicação, mais do que insistir na
congenialidade dos traços dominantes do pensamento de Agostinho da Silva com as ramificações da teologia joaquimita no espiritualismo franciscano, procuraremos reflectir sobre
a sua inserção num veio do pensamento europeu que podemos designar de milenaristautópico, o qual teve também como eminente cultor um certo Fernando Pessoa.
Palavras-chave: Utopia; Milenarismo; Literatura Portuguesa.
Abstract
Agostinho da Silva used to say that the best way to be modern and revolutionary in the
twentieth century was to be a thirteenth-century conservative. The paradox – with which
he nourished his poetic-philosophical discourse with stimulating heuristic productivity
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– of such a statement combines antinomous categories (revolutionary and conservative) and discontinuous and unconvertible historical time periods (thirteenth century and
twentieth century). Actually, this paradox is not meant to present an ironical aporia but
simply to point to a trans-temporal axiological possibility. The thirteenth century to which
Agostinho da Silva refers is when, during Denis I’s reign, the Holy Spirit cult was introduced in Portugal and Joachim of Fiore’s theology was diffused. As it is known, this popular
and heterodox cult is associated with Joachim of Fiore’s theological conception of history,
which predicted an imminent era of spiritual and physical fulfillment for mankind under
the free inspiration of the third person of the Holy Trinity. In this article, rather than emphasizing the common traits between Agostinho da Silva’s thinking and the ramifications
of Joachim of Fiore’s theology on Saint Francis of Assissi’s spiritualism, we shall carefully
consider its introduction in a European trend of thought that we might call millenarianutopian, which had an eminent follower named Fernando Pessoa.
Keywords: Utopia; Millenarianism; Portuguese Literature.
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Deus e liberdade
em Agostinho da Silva
José Santiago Naud*
Face ao fatal, e aceite minha inépcia filosófica, devo socorrer-me do
lirismo e vou fixar-me numa trova de Agostinho da Silva, mais de uma vez ouvida nos anos 60, quando juntos palmilhávamos o campus da UnB, a universidade recém-fundada em Brasília. E o faço ainda com a mesma perplexidade
tida à leitura de Francisco Sanches, na adolescência, quando o seu Quod nihil
scitur balançava minhas certitudes aristotélicas e a passagem do Renascimento
ao Barroco, na falência dos dogmas medievais, arrancavam-me as muletas sólidas da fé. Mas, com Agostinho, o pensamento ganha de novo o sopro primigênio e a dúvida, sob o influxo amoroso que “move o Sol e os outros astros”, dá
lugar àquela reordenação cósmica de um universo misteriosamente decaído. Vamos, então, à quadrinha:
“Mais que a teu Deus
sê fiel ao que tu sejas de Fé
talvez o Deus que te crias
oculte o Deus que Deus é”
Temos nela, fundamentalmente, o princípio essencial do invisível divino e a liberdade que, no ativo exercício pedagógico do pensador, é condição
inalienável da plenitude pessoal. Qualquer noção do Absoluto não pode ficar
circunscrita às nossas limitações, mas reside profundamente na individuali* Natural da região missioneira do Rio Grande do Sul, graduou-se em Clássicas na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da Universidade Federal, Porto Alegre. Professor no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e primeiro diretor do Instituto Estadual do Livro, teve em 1958 o primeiro encontro com Agostinho da Silva, de quem
publicou a primeira edição de Um Fernando Pessoa, nos Cadernos do Rio Grande. Professor pioneiro de Brasília
em 1960, integrou o corpo docente fundador da UnB, reencontrando em 1962 o mestre, com quem trabalhou
no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP). A partir de 1966, lecionou em Yale, UCLA e outras universidades norte-americanas ou européias. Então foi contratado pelo Itamaraty para dirigir o CEB/Centro de
Estudos Brasileiros, na América Latina (sucessivamente, Bolívia, Argentina, Panamá e México). Poeta e ensaísta,
tem dezenas de títulos publicados. Aposentado pela UnB, em 1992, reside em Brasília.
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dade que somos. E a criação dos mitos ou postulação dos dogmas nunca há
de furtar-nos por ocultação à verdade transcendente. Tal dialética, menos de
Hegel que de Platão, traz à baila Deus e a Liberdade, no implícito desvelamento da própria semântica. De um lado, o Ser, absoluto; do outro, o ofício
livre e criador do homem, muito embora contingente. Assim dinamiza Agostinho, buscador infatigável do saber aureolado em beleza, o fecundo exercício da dúvida que, na demanda dimensional de tempo e espaço, esconde a
verdade anterior a nós. Com isso, entre preexistente e existente, não furta ao
mistério a sua fatia nem cega o fio da razão. Alcança o ponto de equilíbrio
em que os contrários se completam; corpo e alma, mente e coração. Perfazse a totalidade em tamanho planetário, superior aos interesses globais ou a
qualquer totalitarismo.
Já estamos então em condições de compreender o ponto fulcral da
idéia de Deus para Agostinho da Silva. Em 1974, ele escreveu:
“Diz-me Frei G. H. que posso tranqüilamente continuar a pensar
que Deus, simultaneamente, existe e não existe. Veria, então, Deus
muito de acordo com uma idéia da física cosmológica de nossos
dias, e não me serve para nada um Deus que não resista à ciência
(...): ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e
objeto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e de espaço,
como me sucede a mim quando me vejo ao espelho (...); e isto, que
só existe quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objeto,
chamarei eu de Espírito Santo.”
Com a menção da Trindade, cristã no caso, que, para um ser
ecumênico como ele, não exclui a Trimurti hindu nem o número presente no
esoterismo ou religiões primitivas, fé e ciência se harmonizam. Conseqüentemente, o homem logra alcançar a unidade na diversidade e toca de universal o
nacional. Nesta altura põe-se a questão da liberdade, não apenas transparente
na sua teoria, quanto exercida plenamente ao longo de sua vida fecunda, com
devoção e destemor. Entendo que, literalmente, o enlace esclareça o oximoro
contido no verso pessoano: “O mito é o nada que é tudo”, tanto quanto sua
atenção prestada à etnografia, com realce para as Festas do Espírito Santo, culto
do Divino. O paradoxo magistral de Agostinho nos ilumina em textos onde ele
versa a mensagem universal e labiríntica do Pessoa e a tradição nacional e salvífica da História portuguesa, aberta à mutação. Isso fica evidente nas menções
feitas ao movimento da filosofia portuguesa, quando lembra o Caeiro do “há
metafísica bastante em não pensar em nada” ou do VIII Poema d’O Guardador
Deus e liberdade em Agostinho da Silva
José Santiago Naud
230
de Rebanhos, e distingue o Espinosa que por não poder nascer na sua pátria foi
falar noutras paragens o latim, espanhol ou neerlandês.
Quanto à tradição popular, desde Ourique aos 25 de Abril, na crista do
Quinto Império seu pensamento e agir são libertários. Segundo se me afigura,
norteou-lhe sempre o proceder a identidade e a coerência jamais truncadas.
O indivíduo reflexo do povo, e o povo sustentação do individual. Neste sentido, noto que um valor pentagramático constela a sua personalidade e cifra
substancialmente estas referências: 1 - Cister e a aceitação da mudança; 2 - os
cavaleiros-monges e sua ação templária na demanda do Graal; 3 - o Espírito
Santo e seu apelo ecumênico; 4 – a fraternidade e a pobreza franciscana; 5 - o
Quinto Império e o Encoberto, com a reconstrução do mundo degradado ou
concerto do anti-sistema em vigência. E será o professor Joaquim Domingues,
desde a Braga milenarmente sagrada, quem melhor poderia comprovar-me,
com seu livro publicado há quatro anos, o nexo feliz entre Agostinho da Silva,
Deus e a Liberdade:
“Convicto de que tudo começa e se decide na liberdade e na responsabilidade de cada pessoa singular, por mais de uma vez lembra as
virtudes conventuais e militares, ao pensar numa organização de homens livres, cujo melhor modelo terá sido o das ordens de cavalaria,
em que a disciplina consentida na ação se articula à comunhão vivida
na fé e à pobreza partilhada e sublimada na castidade. A solução está,
pois, no aperfeiçoamento individual, segundo um modelo que contempla a integralidade da pessoa, mas que atinge o máximo grau de
eficácia quando integrado em livres formas de associação fraterna.”
Para concluir, eu que tive a graça de freqüentá-lo na contemplação jubilosa do convívio, posso avaliar a luz que ele sempre irradiou, como gente
ou intelectual. E o evoco sem saudades porque, segundo as “sagezas” de João
Guimarães Rosa, Agostinho foi, era e é da estirpe daqueles que não morrem.
Só ficam encantados. Não padeci nunca a sua falta. E o evoco pedagogo; na
raiz, “o que conduz a criança”. Pois, transitou à vontade, de Sanderson a Summer Hill, passando por Sérgio (de Verney ou Seara Nova), Montessori e Piaget.
Porém, mais do que a escola formal, luzia-lhe o fogo do divino, com o Espírito
Santo. Foi, de feito e de fato, Senhor da Utopia. Nem se lhe aponha na fronte a
marca do anarquismo ou se busque na obra o vôo abissal de místicos, cilícios
de ascese. Bom navegante a exemplo dos ancestrais, sorteava os parcéis das
constituições ou dos atos institucionais e não ficou jamais em cima do muro.
Ao invés, trilhava o Caminho da Serpente. Melhor português, poeta à solta,
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sua “escolástica platônica”, com todo o respeito a Ignácio de Loyola. Teresa
de Ávila ou São João da Cruz, achou sempre o jeito de orar em sua orada. De
certo, mais que ao Crucificado, ao Menino Jesus.
Por tanto, valha pedir vênia para adentrar o seu mundo com o espírito
do futuro, a fim de que se edifique como ele quis “o reinado da criança e a sacralização dos animais e de tudo o resto”.
Resumo
Relativamente a Deus, o pensamento de Agostinho da Silva não se circunscreve ao dogma
nem ao niilismo racionalista, mas centra-se no sopro cósmico e no criativo imaginário
humano. Eis uma noção do absoluto consubstancial à divindade. Assim, a relação existente/não-existente ou visível/invisível não furta ao mistério a sua fatia nem cega o fio da
razão. Essa dialética, menos hegeliana que platônica, põe a questão de Deus e Liberdade
desvelando a semântica. A generosa complexidade de suas noções informa o exercício da
pedagogia fecunda que distingue o autor entre os melhores pensadores da filosofia portuguesa, repleta de inteligência criativa e comportamento ético. Será a conjunção perfeita
entre a cosmologia e as intuições da fé, que na força do Amor, segundo Dante, “move o
Sol e as outras estrelas”; confirma-o sua própria visão do futuro, “o reinado da criança e a
sacralização dos animais e de todo o resto”.
Palavras-chave: Dogma; Cosmos; Dialética; Criança; Pedagogia.
Abstract
In regard to God, Agostinho’s thought is not confined to dogmas or to nihilistic rationalism, but rather inhabits the cosmic blast and man’s creative imagination. It is a notion
of the absolute consubstantial to divinity. Therefore, the relation existing/non-existing or
visible/invisible does not avoid mystery nor does it blind the edge of reason. This dialectic,
more Platonic than Hegelian, poses the question of God and Liberty unveiling semantics.
The generous complexity of his concepts informs the exercise of fecund pedagogy that
distinguishes the author among the best thinkers of Portuguese philosophy, full of creative
intelligence and ethical behavior. It will be the perfect conjunction between cosmology
and the intuitions of faith, which, powered by Love, according to Dante, “moves the sun
and the other stars”. This is confirmed by his own vision of the future: “the children’s reign
and the sacralization of the beasts and all things”.
Keywords: Dogma; Cosmos; Dialectic; Childhood; Pedagogy.
Deus e liberdade em Agostinho da Silva
José Santiago Naud
232
Como “cada momento do mundo
é mais rico e complexo do que
o anterior”:1 Agostinho da Silva
e Henri Bergson2
Magda Costa Carvalho*
Se imaginássemos um debate acerca do sentido e da finalidade última
do mundo e escolhêssemos como participantes Agostinho da Silva e Henri Bergson, assistiríamos ao diálogo entre dois pensadores fascinantes e ao confronto
entre duas perspectivas totalmente distintas de conceber a realidade. Contudo,
julgamos que esta divergência de pontos de vista não condenaria, de imediato,
uma tentativa de aproximação entre as suas mundividências. Pelo contrário, parece-nos que o encontro entre os dois descobriria igualmente laços de afinidade
e de compatibilidade.
Na tentativa de concretizar esse diálogo, a nossa reflexão começará por
abordar o que distancia Agostinho da Silva e Henri Bergson, no que respeita
à leitura científica de cada um sobre o universo natural, para, posteriormente,
apontarmos algumas das possíveis ligações filosóficas entre os dois. Procuraremos, então, sublinhar possíveis influências que a filosofia bergsoniana exerceu
na obra de Agostinho da Silva, evidenciando o que nos parecem ser vestígios
da presença de Bergson no ideário do pensador português.
Tendo em conta o modo como os dois filósofos entendem o sentido
último da existência – orientada, sobretudo, para a assunção humana de um
* Magda Costa Carvalho licenciou-se em Filosofia (Ramo de Formação Educacional) na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em 2000. No ano seguinte, começou a leccionar na Universidade dos Açores, tendo
apresentado a esta Instituição, em 2003, provas académicas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, com
uma tese sobre “O conceito de natureza em Antero de Quental” e uma lição subordinada ao tema “As noções de
Verdade e de Justiça no pensamento positivista de Manuel de Arriaga”. Nos últimos anos, tem vindo a ocupar-se
das disciplinas de Filosofia Moderna e de Filosofia em Portugal e encontra-se presentemente a preparar o doutoramento acerca do conceito de “natureza” no evolucionismo de Henri Bergson. Para além de artigos em diversas
revistas, publicou em 2006 a obra A natureza em Antero de Quental: o projecto de uma «metafísica positiva», uma
edição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
233
projecto espiritual fundante e em permanente concretização – consideramos
que este Congresso é a ocasião adequada para reflectirmos sobre Agostinho da
Silva e Henri Bergson, uma vez que, como iremos evidenciar, as suas obras se
assumem, inequivocamente, enquanto pensamentos de um mundo a haver.
1. Dois modelos de leitura do real
A 13 de Fevereiro de 1906, nascia George Agostinho da Silva. Por essa
ocasião, Henri Bergson contava já com 46 anos de idade e com um sólido
e reconhecido estatuto que ultrapassava os limites geográficos e linguísticos
franceses e projectava o seu pensamento na cena filosófica internacional. O
pensamento de Bergson herdara uma ambiência especulativa que vibrava
diante das orientações propostas pelas novas ciências naturais e, nesse sentido,
comprometia-se profundamente com a recém-chegada biologia. Já Agostinho
da Silva encontrava um mundo totalmente diferente, rendido às propostas de
outras perspectivas científicas, em especial à revolucionária física quântica.
Bergson erigiu a sua filosofia segundo o modelo de inteligibilidade que
as ciências biológicas propunham, procurando salvaguardar o fluir contínuo
que, na sua perspectiva, caracterizava interiormente o real. Agostinho da Silva,
por seu lado, advogava uma leitura do universo através de um movimento
expansivo descontínuo e seguia de perto as doutrinas vinculadas pela física
quântica. Enquanto que Bergson sublinhava, sobretudo, o impulso gerador
que percorre toda a realidade e que dá origem ao seu carácter dinâmico e evolutivo – a que chama “élan vital” –, Agostinho da Silva considerava importante
reter que a física do século XX vinha anunciar o fim da validade científica da
ideia de “evolução” e que, consequentemente, já não fazia sentido falar-se numa continuidade evolutiva intrínseca a tudo o que existe. Atentemos em dois
pequenos excertos onde os autores apresentam e justificam essas opções e em
que as suas perspectivas se colocam em pólos diametralmente opostos.
Diz-nos Bergson:
“Reportemo-nos então à experiência: diremos – e mais do que um
biologista o reconhece – que a ciência está mais longe do que nunca
de uma explicação físico-química da vida. É o que constatávamos
inicialmente quando falávamos de um élan vital.”3
Ouçamos, por outro lado, Agostinho da Silva:
Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo...
Magda Costa Carvalho
234
“Desde que se admitiu a teoria quântica de grãos de energia separados pelo que é fisicamente nada, toda a ideia biológica de evolução
ficou destruída, quer como aparece em Lamarck, quer como a fixou
Darwin. O que se pode dizer é que cada momento do mundo é mais
rico e complexo do que o anterior. Nada de caracteres adquiridos,
nada de modificações seja porque luta for e porque selecção se fixe.
Há caracteres acrescentados – e nada mais.”4
A filosofia que Bergson expunha em obras como L’Évolution Créatrice
– publicada em 1907, cerca de um ano após o nascimento de Agostinho da Silva – defendia uma concepção ontológica dinâmica, alicerçada na noção de ser
como duração. Segundo o filósofo francês, a realidade constituía-se por uma
continuidade indivisível de mudança e movimento,5 ou seja, o ser é essencial
e interiormente “devir”. Dessa feita, Bergson considerava que a melhor forma
de dar conta da duração enquanto estofo da realidade,6 de apreender o crescimento e a evolução intrínsecos à existência, seria adoptar filosoficamente os
ensinamentos de ciências como a embriologia,7 seguindo de perto as orientações da biologia evolucionista.
Agostinho da Silva, por seu lado, deixou-se seduzir pelas novidades
científicas da física quântica. Em 1900, Max Planck, físico alemão, havia formulado a teoria dos quanta que serviria de base ao renascimento da física sobre
a ideia de que o universo é essencialmente constituído por energia existente
em determinadas quantidades (os designados “grãos de energia”, de que falava
Agostinho da Silva). Ainda que a teoria quântica tenha surpreendido a Europa no início do século XX, seriam precisas mais de duas décadas para que as
universidades portuguesas a assimilassem. Portanto, quando em 1924 Agostinho da Silva ingressa na Faculdade de Letras do Porto, a elite cultural do país
despertava para os avanços da ciência física. Ainda que tenha cursado Filologia
e se tenha posteriormente dedicado a um pensamento de matriz filosófica e
pedagógica, Agostinho da Silva não negligenciava os avanços do conhecimento
científico e haveria de cultivar uma simpatia especulativa pela física quântica
até ao final da sua vida. No seu entender, diante das novidades científicas trazidas pela nova centúria, a biologia poder-se-ia facilmente reduzir a explicações
de ordem física e química, nada justificando a especificidade da sua constituição enquanto disciplina autónoma e diferenciada.8
Henri Bergson, como homem do seu tempo, também não ficou indiferente aos progressos da física, nem tampouco aos novos modelos de pensamento que ela propunha.9 Porém, segundo o filósofo, a física interpretava a
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duração do universo de uma forma truncada, isolando no fluir contínuo do
real variáveis e unidades de medida abstractas e justapostas. À semelhança de
um cinematógrafo, a física representava a mobilidade através de uma série de
visões fotográficas que captavam perspectivas parciais, instantâneas e imóveis
do real.10 Bergson considerava, portanto, que a interpretação física não servia
aos fenómenos da vida, constituídos por um fluir único e contínuo.11
Encontramo-nos, assim, diante de um cenário dissidente em que Bergson se assume como adepto de uma continuidade evolutiva biológica e Agostinho da Silva afirma uma maior proximidade à leitura descontínua da física
quântica. Contudo, parece-nos possível investir numa plataforma comum de
entendimento entre os ideários filosóficos que cada um representa. As afinidades começam desde já se atendermos às suas motivações últimas. Os dois
encontravam-se diante da mesma questão: como é que caminha o mundo? Um
e outro se interrogavam em face da profusão ôntica que nos rodeia e de como
é que nós, seres que se destacam pela racionalidade e pela consciência, fazemos
parte dessa aventura cósmica. Mais do que isso, estavam ambos certos de que
reside no homem a resposta final a todos os enigmas, e procuravam deslindar
de que forma é que a humanidade concretiza, ou pode vir a concretizar, o desfecho da grandiosa marcha universal.
“Mas não será esta uma atitude que caracteriza um grande número de
filósofos?”, poder-se-ia objectar. “Certamente”, respondemos. Porém, há um aspecto que particulariza e aproxima os projectos dos nossos autores: o de que
tanto Henri Bergson como Agostinho da Silva pensam o mundo como um todo em permanente desenvolvimento ou expansão, seja ao nível físico-biológico, seja ao nível metafísico-espiritual. Os dois filósofos concebem o universo
como um processo em aberto: que se traduz num crescimento contínuo, para
Bergson,12 e onde cada momento é mais rico e complexo do que o anterior, segundo Agostinho da Silva.
Por isso, não temem a noção de “imprevisível”, acolhendo-a enquanto
núcleo por excelência da manifestação do ser: Agostinho afirma que o divino
que o homem alberga no seu seio se manifestará sempre de uma forma imprevista (permanecendo até imprevisível se, e quando, se manifesta) e concebe
precisamente o Espírito Santo – conceito maior do seu pensamento – como a
imprevisibilidade por excelência;13 Bergson, por seu turno, define toda a natureza como uma imensa eflorescência de imprevisível novidade,14 considerando
inauditas e inesperadas as formas biológicas que a vida cria no seu movimento
evolutivo15 e apresentando a consciência – motor de toda a evolução biológico-metafísica – como o domínio da indeterminação e da imprevisibilidade.16
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Uma vez aceite esta primeira sintonia entre os dois pensadores, prossigamos a aproximação entre as suas filosofias.
2. A presença de Bergson no ideário de Agostinho da Silva.
2.1. Bergson em Portugal: breves notas.
A análise das influências bergsonianas no ideário de Agostinho da Silva deve começar por atender, de um modo geral, à presença de Bergson no
pensamento filosófico português contemporâneo. Está ainda por fazer, na sua
total dimensão e amplitude, o estudo dessa presença. Contudo, o âmbito previsto pela nossa reflexão autoriza-nos apenas a sublinhar algumas breves notas
sobre esta questão.17
Desde muito cedo que filósofos e homens de ciência portugueses se
debruçaram sobre a obra do pensador francês, datando das primeiras décadas
do século XX a transposição de determinados passos da obra bergsoniana para
a língua portuguesa. Foi o que aconteceu em 1919, na sequência de um estudo
intitulado Dinâmica do pensamento, que constituiu uma dissertação de final
de curso da Faculdade de Medicina de Lisboa.18 Nessa obra, Bergson é amplamente citado a propósito de temáticas do domínio psicológico e, segundo
o autor António Aleixo de Sant’Anna Rodrigues – numa carta que enviou a
Bergson nesse mesmo ano, a acompanhar um exemplar dessa sua tese –, nunca
antes se haviam encontrado trechos da filosofia bergsonista traduzidos para o
nosso idioma.19
Mas, cerca de 10 anos antes, no final da primeira década do século
XX, já Leonardo Coimbra publicava algumas reflexões que denunciavam claramente um acompanhamento sério e comprometido do bergsonismo.20 Este
pensador haveria de se tornar responsável por uma divulgação em larga escala
da filosofia de Bergson em Portugal, em especial no que respeita ao combate
bergsoniano em prol da reabilitação da metafísica diante dos excessos do positivismo oitocentista. Em 1919, Leonardo Coimbra funda a Faculdade de Letras do Porto, instituição onde, durante vários anos, formou um leque diversificado de discípulos. Ainda que seja necessário salvaguardar a originalidade do
seu pensamento diante da filosofia de Bergson, é inegável que o magistério de
L. Coimbra transmitiu à elite filosófica portuguesa uma visão comprometida e
crítica acerca dos conteúdos da filosofia bergsoniana. Uma vez que Agostinho
Silva se contava entre essa elite formada pelo magistério leonardino, foram
certamente precoces os seus contactos com o universo filosófico de Bergson.
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A acção impulsionadora leonardina é testemunhada por dois documentos que nos parecem fundamentais, da autoria de dois dos mais conhecidos discípulos de Leonardo Coimbra e colegas geracionais de Agostinho da
Silva. Em primeiro lugar, referimo-nos a uma carta de Delfim Santos ao próprio Bergson, de 1935, onde o pensador português dá conta quer do entusiasmo que na altura grassava entre o núcleo dos discípulos de Coimbra em torno
do bergsonismo,21 quer do grande interesse com que alguns professores portugueses acompanhavam e divulgavam a obra de Bergson e como o consideravam o mais profundo pensador contemporâneo. O modo como Delfim Santos
se dirige ao filósofo francês, tratando-o por “Mestre”, é por si só elucidativo. O
encontro entre os dois pensadores concretizou-se uns dias depois e veio a revelar-se decisivo na aproximação de uma determinada facção do pensamento
português da época à filosofia de Bergson. O teor desta conversa foi divulgado
por Delfim Santos quer numa carta que endereçou de imediato a José Marinho – e que terá amplamente circulado entre outros pensadores portugueses
da mesma geração –, quer num artigo intitulado “Una visita a Henri Bergson”,
publicado em 1938 no periódico mexicano Luminar.22
Em segundo lugar, referimo-nos a um artigo de Álvaro Ribeiro intitulado “Bergson au Portugal”, publicado em 1956 nos Études bergsoniennes.
Escrito já após a morte de Leonardo Coimbra (1936), e também de Bergson
(1941), este curto artigo vincula como ideia-chave a tese de que fora do grupo
de discípulos de L. Coimbra a influência de Bergson não foi nem suficientemente evidente, nem autêntica.23
Ao fazer parte desta geração pós-leonardina, Agostinho da Silva teve,
portanto, ao seu alcance uma ambiência especulativa em profunda sintonia
com os conteúdos do pensamento de Bergson. Para além disso, não esqueçamos que, entre os anos de 1931 e 1933, Agostinho foi estudar para Paris, tendo
frequentado, para além da Sorbonne, o Collège de France, instituição onde
os cursos de Bergson tinham ficado célebres alguns anos antes. Em 1932, durante essa estadia de Agostinho da Silva em Paris, Bergson publicou a última
das suas grandes obras originais, Les deux sources de la morale et de la religion,
escrito que foi preparado ao longo de mais de duas décadas e que era já muito
aguardado. A sua recepção no seio da filosofia francesa causou grande polémica e fez despoletar inúmeros debates. Estando em Paris, Agostinho da Silva
não ficou certamente indiferente a estes eventos.
Algumas décadas mais tarde, em 1960, já no Brasil, Agostinho proferiu
uma conferência sobre Bergson, na Universidade Federal de Santa Catarina.24
Ainda que, infelizmente, se desconheçam os conteúdos dessa palestra, o facto
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de ela ter ocorrido dá-nos mais um argumento para conferirmos legitimidade
à procura por ecos bergsonianos na obra do filósofo português.
Desta feita, num momento ou noutro do seu percurso, A. da Silva defrontou-se com o pensamento de H. Bergson. Como filósofo que era, não deixou, com certeza, de retirar da filosofia bergsoniana alguns ensinamentos, até
porque, como ele próprio advertia, aprender ideias não tem valor senão quando
nos serve para formar ideias.25 Foquemos, então, alguns conceitos e linhas de
leitura onde se torna mais visível a aproximação entre Agostinho da Silva e o
bergsonismo.
2.2. Agostinho da Silva e o bergsonismo:
aproximações conceptuais.
Apesar de ser consensual que o magistério de Leonardo Coimbra não
foi tão decisivo no percurso de Agostinho da Silva como aconteceu com alguns dos seus condiscípulos, em certos aspectos do pensamento agostiniano
ressoam determinadas orientações filosóficas vinculadas pela Renascença Portuguesa. O reconhecimento de um princípio produtor espiritual, actividade
dinâmica e criadora, como origem e fundo da realidade, é visível na obra de
Agostinho da Silva. Para além da influência dessa disposição espiritualista e
criacionista, a leitura agostiniana do “homem” como a pedra-de-toque na
marcha perfectibilizadora do mundo bebe directamente do ensinamento leonardino – e, em primeira instância, bergsoniano –, segundo o qual o homem
não existe passivamente numa realidade já feita, mas é o sublime obreiro de um
mundo a fazer. Analisemos mais de perto a trama que perpassa os conceitos de
“espírito” ou “divino”, de “criação” e de “homem”, enquanto pontos de contacto entre Agostinho da Silva e de Henri Bergson.
a) “espírito” ou “divino”
A noção de “espírito”, como princípio e força que atravessa todo o universo e nele se faz presente, atrai os dois pensadores, assumindo um papel de
extrema relevância na forma como concebem a existência. Num e noutro caso,
o espírito é, algumas vezes, referido como “Deus” ou “divino” e quer Agostinho, quer Bergson exibem uma grande cautela no tratamento filosófico que
conferem à noção.
Em relação a Bergson, o conceito de “Deus” é provavelmente um dos
maiores enigmas da sua obra. Tratado de forma muito breve em L’Évolution
Créatrice, de 1907, é apenas nas Deux sources, de 1932, que é filosoficamente
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desenvolvido. De um relato para o outro, contrastam duas posições distintas,
senão mesmo contrapolares. Na primeira, encontramos uma concepção imanente de Deus como o centro evolutivo de onde jorram as coisas e os seres,
entendido não como uma coisa ou entidade, mas enquanto processo de vida
incessante, que o homem experimenta em si mesmo quando age livremente.26
Na obra de 1932, por outro lado, Bergson está já mais perto de um Deus concebido de feição transcendente, ao modo da religião e da mística, e ainda o
entende enquanto energia criadora.27
No que respeita à leitura agostiniana, apesar da centralidade da noção
de “Deus”, são inúmeras as reticências e as cautelas na sua referência, uma vez
que o pensador insiste na restrição delimitadora da divindade causada pelas
diversas tentativas de a definir e provar.28 Porém, Agostinho refere-se-lhe enquanto espírito criador por excelência29 cuja natureza se cumpre na intimidade
ontológica do homem. Entendida como energia ou espírito criador – à semelhança da interpretação bergsoniana –, a divindade é concebida por Agostinho
da Silva também entre a transcendência e a imanência,30 ou seja, entre um acto
criador omnipotente doador de ser ao mundo e uma auto-realização omnipresente cumprindo-se na liberdade humana. O percurso do universo é, afinal,
o percurso que Deus faz e se faz, a “aventura” – como lhe chama Agostinho –,
simples e interminável de ser plenamente o que se é.31
b) “criação”
Quanto ao conceito de “criação”, a sua leitura tradicional, herdada do
cristianismo, enquanto acto pontual de doação de ser de uma entidade divina
separada do mundo criado, sofre aqui profundas alterações. Bergson concebe
a criação como movimento perpétuo de surgimento do absolutamente novo
e alerta para a necessidade de nos desvincularmos do pré-conceito, segundo
o qual existe uma entidade que cria outras entidades.32 Enquanto duração, o
mundo é uma imensa actividade criadora, concretizando-se permanentemente. Agostinho da Silva, por seu turno, interpreta a vida como um eterno esforço
criador,33 responsável pela condução dos destinos de um universo dinâmico,34
e antevê a “criação” e o “criado” como contínuos.35 Também aqui, o movimento criador que subjaz a tudo aquilo que existe não se dá de uma vez por
todas, mas cumpre-se a cada momento. E, tal como acontece em Bergson, essa
concretização dá-se na acção humana.
Criado à semelhança de Deus, o ser humano reafirma a sua filiação
divina assumindo-se como instrumento da própria criação. Assim sendo,
ambos colocam na capacidade criativa de fazer surgir o novo e o inesperado
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a mais alta vocação e sentido da existência humana. Diz-nos Bergson que a
criação é a empresa onde Deus cria, à sua imagem, criaturas criadoras,36 e onde aguarda que elas queiram cumprir esse destino, única forma de perpetuar
o seu élan. Já Agostinho afirma que, mesmo que todos os homens sejam filhos
de Deus, é necessário correr o risco de provar e justificar a parecença divina.
Ora, essa prova só é possível se o homem, seguindo os passos do divino, se
assumir como criador.37
c) “homem”
Ainda que a todos os indivíduos seja feito o desafio de superarem os
limites da estrita humanidade, poucos são os que verdadeiramente transformam a sua vida em movimento criativo. Fazê-lo não implica levar a cabo
grandes façanhas artísticas ou inventar o mais estranho e singular engenho.
Para A. da Silva, consiste simplesmente em assumir a unicidade do projecto que constitui cada ser humano, a cada momento e em todas as ocasiões,
comprometer-se diante da ideia de que a cada homem cabe deixar feito o que
nenhum outro fez.38 Para Bergson, essa escolha significa reproduzir pela acção
e por um testemunho constantes a generosidade e o amor que subjazem à actividade divina,39 recusar os limites da individualidade e intensificar, junto de
cada homem, focos de generosidade.40
Os homens que acedem a essa missão permitem que a sua interioridade seja palco para a final revelação do universo, dando voz à centelha divina
que os habita e constitui. Bergson desenvolve este projecto através da noção de
“santo” ou “herói” e concebe a redenção integral da criação como a assunção
desse destino superior. Agostinho da Silva propõe uma revisão das mentalidades através da acção criadora do espírito, antevendo uma sociedade nova onde
a ocupação humana deixará de limitar e esgotar o indivíduo e o encaminhará
para a plenitude divina.
Assim sendo, ainda que assumam modelos distintos de leitura do universo, Agostinho e Bergson comungam de uma mesma inspiração espiritual.
Ambos investem numa concepção que encara a realidade quer como manifestação físico-biológica de uma energia espiritual potenciadora, quer como
incitamento metafísico-moral à acção autenticamente libertadora. Ambos investem numa concepção do mundo que caminha na direcção de um futuro
aberto, perpassado por uma actividade divina de doação plena e permanente,
e onde cada momento é mais rico e complexo do que o anterior.
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Notas
1 A. da Silva, “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, Âncora Editora, Lisboa, 1999, p. 148. O
presente estudo foi efectuado ao abrigo de uma bolsa de doutoramento atribuída pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia.
2 Comunicação apresentada no Congresso Internacional “Agostinho, pensador do mundo a haver”, ocorrido
nas cidades de Lisboa e do Porto em Novembro de 2006, e integrada nas respectivas actas, recentemente publicadas em Portugal.
3 H. Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion, em Œuvres, Presses Universitaires de France, Paris,
2001, p. 1.070.
4 A. da Silva, “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, p. 148.
5 Cf. La perception du changement, em Œuvres, p. 1.384.
6 Cf. L’Évolution Créatrice, em ibidem, p. 800.
7 Cf. ibidem, p. 802.
8 Cf. “FPH”, em Dispersos, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, s./d., p. 416.
9 Bergson conhecia bem a obra de Einstein: questionou-o directamente, em 1922, numa sessão da Société
Française de Philosophie e publicou, nesse mesmo ano, a obra Durée et Simultanéité, acerca da noção de “tempo”
na teoria da relatividade.
10 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 753.
11 Ibidem, p. 585.
12 Cf. Ibidem, p. 785.
13 Cf. “Do previsível e do imprevisível”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 379-381.
14 Cf. La conscience et la vie, em Œuvres, p. 833.
15 Cf. Les deux sources de la morale et de la religion, em ibidem, p. 1.072.
16 Cf. La conscience et la vie, em ibidem, p. 824.
17 Existem variados estudos e referências dispersas que procuram relacionar alguns nomes da filosofia portuguesa contemporânea com a obra bergsoniana, contudo, na sua grande maioria, versam apenas sobre o pensamento de Leonardo Coimbra. Para além disso, em 1986, Pinharanda Gomes publicou um breve estudo intitulado “Bergson e a filosofia portuguesa”, onde apresenta um panorama geral sobre a influência do filósofo francês
no pensamento filosófico nacional. Contudo, uma análise comparativa sistemática que desenvolva e justifique as
indicações fornecidas por Pinharanda Gomes não foi ainda concretizada.
18 A. A. de Sant’Anna Rodrigues, A dinâmica do pensamento, Tipografia do Anuario Commercial, 1919.
19 Carta inédita, pertencente ao Fonds Bergson de la Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet, em Paris, detentora do espólio do filósofo, com o registo BGN-2207 V-BGN-3. Bergson respondeu a Sant’Anna Rodrigues
afirmando que, apesar de ter lido apenas superficialmente a obra do investigador português, reconhecia a aproximação do seu trabalho às conclusões da obra Matière et Mémoire (cf. H. Bergson, Correspondances, Presses
Universitaires de France, Paris, 2002, p. 892).
20 Cf. M. Ferreira Patrício, “Prefácio” a L. Coimbra, A filosofia de Henri Bergson, Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, Lisboa, 1994, p. 15.
21 Esta carta e outra datada de um mês mais tarde estão ainda inéditas e pertencem também à Bibliothèque
Littéraire Jacques Doucet, com a referência BGN-22093/II-BGN-VI.
Atente-se, ainda, no facto de que, cerca de um mês mais tarde, foi Delfim Santos o responsável por fazer chegar
Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo...
Magda Costa Carvalho
242
às mãos de Bergson um exemplar do livro A filosofia de Henri Bergson, obra que Leonardo Coimbra havia publicado três anos antes.
22 Cf. D. Santos, Obras Completas, vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998, pp. 197-201; vol. IV, pp.
91-103.
23 Cf. “Bergson au Portugal”, em Les études bergsoniennes, vol. IV, Éditions Albin Michel, Paris, 1956, pp. 227229. Será interessante referenciarmos a publicação, em 1937, do Ensaio de interpretação bergsonista, volume I,
dissertação de licenciatura que Guilherme de Castilho apresentou em Coimbra e que, ao lado da obra leonardina
A filosofia de Henri Bergson, constituem os únicos volumes do pensamento português da época que analisam de
forma exclusiva e sistemática a filosofia bergsonista.
24 Informação obtida junto do Dr. Amon Pinho Davi e da Dr.ª Romana Valente Pinho, investigadores do espólio e do pensamento de Agostinho da Silva no Brasil.
25 “Glossas”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. I, p. 49.
26 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 706.
27 Cf. Les deux sources de la morale et de la religion, em ibidem, p. 1.191.
28 Cf. “Pensamento à solta” e “Ecúmena”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 166; 197.
29 Cf. “As aproximações”, ibidem, p. 36.
30 Cf. R. Valente Pinho, Religião e metafísica no pensar de Agostinho da Silva, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2006, p. 58.
31 Cf. “As aproximações”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, p. 35.
32 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 705.
33 Cf. “Considerações”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. I, p. 105.
34 Cf. “Sobre a ideia de Deus”, em ibidem, vol. II, pp. 297-298.
35 Cf. “Pensamento à solta”, em ibidem, p. 162.
36 Cf. Deux Sources de la morale et de la religion, em Œuvres, p. 1.192.
37 Cf. “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 158-153.
38 Cf. “Macau”, em ibidem, p. 384.
39 Cf. Deux Sources de la morale et de la religion, em Œuvres, p. 1.194.
40 Cf. La conscience et la vie, em ibidem, p. 834.
Resumo
O artigo pretende relacionar o pensamento de Agostinho da Silva com a filosofia de Henri
Bergson, tendo em conta que a obra do autor francês consistiu numa das mais lidas por
Leonardo Coimbra e pela geração dos seus discípulos. Agostinho da Silva não foi propriamente um discípulo do ideário leonardino e, consequentemente, é certo que as suas
reflexões não foram tão permeáveis às teses bergsonianas como aconteceu com outros
nomes da filosofia portuguesa contemporânea. Porém, tendo estudado em Paris no início
dos anos 30, Agostinho teve com certeza um contacto directo com a grande repercussão
filosófica da obra do pensador francês. Ainda que defenda um modelo essencialmente
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físico de leitura do real – ao contrário da orientação biológica de Bergson –, é possível encontrar algumas afinidades entre os dois, nomeadamente no desenvolvimento de alguns
dos principais conceitos que orientam as suas obras.
Palavras-chave:
Agostinho da Silva; Henri Bergson; Física; Biologia; Espírito;
Criação; Homem.
Abstract
This article intends to establish a relationship between Agostinho da Silva’s thought and
Henri Bergson’s philosophy, bearing in mind that the French author’s books were among
the most read by Leonardo Coimbra and his disciples’ generation. Agostinho da Silva was
not quite a disciple of Leonardo’s philosophy, and thus it is certain that his ideas have not
been as pervious to Bergson’s arguments as other authors from the Portuguese contemporary philosophy. However, having studied in Paris at the beginning of the 1930s, Agostinho certainly had the opportunity of direct contact with all repercussions of this French
philosopher’s work. Even though he defends an essentially physical model regarding the
interpretation of reality – opposite to Bergson’s biological orientation –, it is possible to
find some similarities between the two, namely concerning the development of some of
the main concepts which guide their works.
Keywords:
Agostinho da Silva; Henri Bergson; Physics; Biology; Spirit; Crea-
tion; Man.
Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo...
Magda Costa Carvalho
244
O Fingimento – Permanência
de um tema pessoano em
Agostinho da Silva
Manuel Cândido Pimentel*
«Mas, Diotima, eu não sou um filósofo. […] Não, Diotima, sou um
poeta: mais imagino a vida que a explico…» (Agostinho da Silva,
Conversação com Diotima)
O mundo da criação literária e filosófica não se explica pelos condicionalismos socioculturais ou com a psicologia particular do autor. Embora não
sejam estas dimensões desprezáveis, são redutoras as exegeses que exclusivamente as cultivam. O mundo do texto é um universo de sentido e é o sentido que primacialmente convoca a tarefa do interpretar. O verdadeiro criador
é-o na medida em que, interpretando-se, interpreta o real – o que por isso
geralmente se entende, o que nisso ele investe e o que ele com isso significa;
inventando-se, reinventa o mundo e cria mundos, pelo movimento criador
superando por transformação as orientações dominantes da época e os condicionamentos da sua própria caracterologia. E se estes e aquelas afloram ou se
ocultam no texto, só o texto emerge como o lugar de todas as articulações de
sentido, de permanência e alquimia de sentidos. Só ele convida à travessia para
o universo situado além das palavras, universo de que sempre afinal se faz a
descoberta de não ser mais do que o universo nunca gratuitamente dado, antes
aflorado, ainda e sempre, por mediação ou via das palavras.
* Manuel Cândido Pimentel é Professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e Director do Departamento de Filosofia e Director do CEFi – Centro de Estudos de Filosofia,
na mesma instituição. Membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, sócio-fundador e
membro da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com obra dispersa por revistas em Portugal e no
estrangeiro. Alguns títulos de sua obra: Antero de Quental: Uma Filosofia do Paradoxo (1993), Filosofia Criacionista da Morte: Meditação sobre o Problema da Morte no Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra (1994), Odisseias do Espírito: Estudos de Filosofia Luso-Brasileira (1996) e A Ontologia Integral de Leonardo Coimbra: Ensaio
sobre a Intuição do Ser e a Visão Enigmática (2003). Além da crítica e do ensaísmo, cultiva a poesia. De entre as
suas obras, que tem assinado com o nome literário Manuel Cândido, destaca-se A Nudez do Tempo (1995).
245
Perguntamo-nos pelo autor e pela problemática oculta do autor. A
problemática não a dá o texto nem nada a pode dar. O que no texto é susceptível de atingir-se é, quando muito, o resíduo ontológico que dessa problemática
nele restou, tal como a identidade do autor é toda a sua obra de subjectivação
no texto que criou e veio a nós: a sua visão de si, dos outros e do mundo, o que
pensou e o que sentiu, tudo em comum com o que construiu e inventou.
Estas palavras iniciais, se respeitam, ainda que superficialmente, ao que
penso da interpretação do texto literário e filosófico e do que entendo pela
complexidade do acto de criação,1 adequam-se, em particular, a este personagem fascinante da nossa cultura, misto de poeta e filósofo, de sábio, profeta,
místico e pedagogo: George Agostinho Baptista da Silva.
Mais do que prender-se a um ou a outro sistema filosófico, àquela corrente ou tendência literária, a este ou demais culto de género e de forma, cultivou a sapiência no grau maior, a sapiência que não se acha no plano do saber
disperso e fragmentário, antes no plano do Verbo pelo qual todas as coisas e
saberes se fazem um. Entre nós, soube traduzir, no pensar e no agir, a tão antiga
como nova verdade do fragmento de Heráclito: «A sapiência consiste apenas
nisto: ser familiar do pensamento que governa o todo por meio do todo.»2
Porque Agostinho da Silva apreendeu o núcleo da verdade heraclítica
e nele se colocou, frustre se torna a tentativa de encaixá-lo na circunscrição de
um nome – poeta, filósofo, místico, pedagogo…, identidades que, outrossim,
recusou, embora nelas e nas expressões delas se tenha afligido e encoberto e,
para nós, viva oculto, paradoxalmente sendo, a um tempo, todas elas. O que ele
não disse e não quis dizer foi que uma valia mais do que outra ou que numa
mais estaria do que noutra em particular. Não o poderia ter dito quem, olhando-se a si, de si escreveu: «Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um
deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.»3
Melhor do que a tentação do juízo e o querer a definição, aceite-se a
obra de Agostinho da Silva como o poema de uma vida. Aceitar isso é recolhermo-nos na visão do paradoxo, a que tudo inclui, tanto quanto exclui as
definições do todo pela composição da parte. O processo da seiva vital que gera
a rosa não serve para definir a rosa nem a rosa para definir a seiva. Se a parte
é na geração do todo, o todo cria a parte. Está aí a filosofia de Agostinho: uma
ânsia de ser todas as possibilidades, uma existência que não renunciou a querer
saber o que é a existência – ainda que muda fosse a resposta –, uma cruzada
pelo uno, a unidade e o infinito – ainda que confusa fosse a navegação, incerta
a demanda. São os rasgos constantes, perceptíveis nos seus textos; desprendemse do marulhar das suas palavras de embate ao nada e à possibilidade do nada,
O Fingimento...
Manuel Cândido Pimentel
246
de encontro à contradição e em convívio com a contradição: o ser e o não ser, o
agir e o não agir, a quietude e a inquietude, a esperança e a desesperança…
Nas contradições que sentiu e exprimiu, o poema da vida – a sua poesia
e a sua filosofia, numa palavra, a obra: a reflexiva, a ficcional e a poética – tem
o entusiasmo bastante do marinheiro que afronta as vagas na alegria hercúlea
de saber que o desconhecido é símbolo de mistério, que o pode afundar no
imo do oceano; talvez para o devolver às praias que, um dia, sonhou, que não
conhecia, mas estremecia, como para aquela camoniana Ilha dos Amores, a
que encanta o imaginário de Agostinho, se encaminham as contradições de
nós para reciprocamente se anularem no chão fértil de sua unidade.
O que requinta a sentida senda do marinheiro, a que subitamente podem
faltar sextante e leme – e o marinheiro é, para Agostinho, uma imagem existencial dele próprio, de nós portugueses e, universalmente, da condição humana –,
no risco de perder-se, é o confiar-se à verticalidade do futuro, cantando:
Nunca voltemos atrás
tudo passou se passou
livres amemos o tempo
que ainda não começou.4
Há nesta quadra a mesma incrível força de destinação que gerou Pessoa para a palavra do «homem do leme», que, não obstante o medo, «tremeu,
e disse,/ ‘El-Rei D. João Segundo!’»5 Precisamente nessa força está para Agostinho o ser de Portugal e dos portugueses. O que disso pensou? Multiplamente o expressa na obra. Consciente ou inconscientemente, da amplitude dos
oceanos que, no antanho, navegámos, contraiu Agostinho da Silva a imagem
peregrinante do Portugal que somos e nunca, apesar dos desmentidos do menos real, deixámos de ser e continuaremos a ser na alma dos Agostinhos que
filosofaram e poetaram neste chão do Santo Espírito, as terras de Camões, de
Vieira e de Pessoa, génios heterónimos de Portugal, como o marinheiro de
Mensagem, todos eles convocando-nos a tornar «coerentes os contrários», «em
toda a tessitura de pensar e viver», para nos fundarmos «em ser o irracional
tão de razão como o seu inverso».6
É sobretudo nas páginas da longa entrevista a Antónia de Sousa –
O Império acabou. E agora?7 – que se torna sensível a dilatação da ficcionalidade heteronímica, em desdobramento de motivos pela obra literária e reflexiva
do pensador, à imagem de um Portugal que sonha futuros na alma das suas
heteropessoas, expressão do próprio, que a engendrou para melhor correlato
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da palavra heterónimo, a propósito da complexa «personalidade pluriforme»
de Vieira.8 Penso que Agostinho deixou intencionalmente passar a ideia, na
entrevista, de uma deslocação do processo heteronímico do plano individual
do criador, em que o mesmo processo ordinariamente se coloca e o aplicou
Pessoa, para o plano colectivo de um eu-nós de plurais faces, adivinhando em
cada eu-um desse nós o viver substancial da força futurante que é destino de
Nação, saudade do Quinto Império e cumprimento da Hora.9
É provável que nas contradições de Portugal revisse Agostinho as contradições que em si, de si e para si concebeu, como possivelmente de génese colectiva inconsciente foram as contradições em Pessoa, e visse no forjar
ficcional, que no nível dos processos do fingimento literário encontramos, a
natural consequência, nele, do modo português de inventar-se, que no outrora
efectivamente se inventou Portugal, que no futuro a invenção continuaria a
ser. A invenção, senda existencial de nós próprios, tem uma exigência. Há que
ousar querer a Ilha dos Amores. Ousadia a que se resumem Os Lusíadas de Camões, a História do Futuro de Vieira e a Mensagem de Pessoa, os relatos vivos
do profetismo de Portugal. Extensivamente, poderíamos à obra desta tríade
aplicar o que Agostinho disse de Os Lusíadas, como o seu título verdadeiro:
«[…] a Viagem do Nada que nós somos, por Tudo sermos, ao Tudo que são
todos sendo Nada.»10
À parte a abrangência do colectivo pela teoria heteronímica ou da heteropessoa, que significa o processo de criar ou gerar outras pessoas, na relação
com o criador, mas já no fruto de ser um outro passemos ao plano ficcional
do fingimento heteronímico, observando que o que aqui me interessa não é o
tema psicológico do fingimento nem a atitude moral que suscite.
Atendo ao processo ficcional que o fingimento, em literatura, implica
e, no registo filosófico, especialmente metafísico e ontológico, à ficcionalidade do fingir coordenada aos actos de criação de mundo. A prosa ficcional e
filosófica, bem como a poesia de Agostinho da Silva mergulham no húmus
imaginante do fingimento; e desse húmus brota a coerência da visão do
real que ostenta nas orientações para uma busca impenitente e incansável da
unidade. Ganhe-se ou perca-se a unidade no encontro com o outro de mim
mesmo, sempre será a unidade o objecto da demanda. É até por isso que a obra
de Agostinho se apresenta como uma jornada que renasce a cada instante das
rotas que aventura. A geografia é a da descoberta. Não a do repouso, mas a
geografia incessante do imprevisível.
Pelo maravilhoso do imprevisível do que finge em outros, o poeta apresenta-se:
O Fingimento...
Manuel Cândido Pimentel
248
Nesta confusão navego
neste tumulto me entendo
não me importa o que sou eu
mas o que os outros vão sendo.11
As Quadras Inéditas de Agostinho são um formoso repositório do fingimento literário, assinalado logo na primeira quadra introdutória em que o
autor pretende o juízo dos leitores sobre a qualidade de seus versos, negandose, como autor, o apresentar-se poeta, que, se aquela qualidade for real, por
certo que o reconhecimento será para um outro o verdadeiro poeta que as
quadras a ele deram:
Se estas quadrinhas não prestam
com certeza as compus eu
mas se boas foi poeta
além de mim que mas deu.12
A subjectividade desdobrada em outro que os versos iniciais convocam
transfigura a tessitura poemática de Quadras Inéditas ao dá-la à operosidade autoral dos múltiplos, sobre cuja coerência se funda toda a verdade de ser e sentir,
«coerência inventada/ por um saber que imagina/ que sabe e não sabe nada».13
Um saber que imagina não é sujeito, mas transformação de aqui e agora, circunstância que, por vezes, é e, outras, não é; só o movimento incessante me traduz o
que vou sendo, pelo que é do que vou sendo que o sujeito emerge, sem mais razão
de nascer do que de morrer, sujeito cujo ser, se algo for, ou é nada, ou, para não
sê-lo, tem de fingir o que é, espreitando-se nos interstícios do que está fazendo:
O que faço só importa
se traduz o que vou sendo
se assim não for tudo é nada
só finjo que estou fazendo.14
Talvez chegues tu a ver
que só o nada é real
e que a partir de não ser
te construirás total.15
O sujeito carece de importância para esta poética da alterização contínua, que só nela entra verdadeiramente real para as cisões que nele se operam,
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para a criação e a recriação de sujeitos. Agostinho eleva-se à inefabilidade de
um pensar que cria sem ser sujeito, porque, na origem, o pensar do pensamento carece da identidade que o permitiria anunciar-se o sujeito que habitualmente convimos para o quem de quem pensa:
Primeiro há um pensamento
que pensa sem pensador
e logo pensa quem pensa
que pensa tudo ao redor.16
A temática da dessubjectivação do pensar criador não aflora somente
na poética de Agostinho. Estigmatiza, indelével, a prosa reflexiva, como, por
exemplo, na aforística de «Pensamento à Solta»: «Penso, como ser pensante,
que nada existe senão o pensamento, o qual me pensa como ser pensante.»17
O polimorfismo do pensamento funda o ser possível de todo o heterónimo e
dá densidade metafísica e essencial verdade aos eus nos quais o eu se finge. Há
ainda uma dramática altura na dessubjectivação, a que, no grau ontocosmológico, vem da dúvida, a qual só o agir no risco superaria:
[…] pendo a crer, […] não há no mundo mais nada além de pensamento que talvez a nós nos pense como seres pensantes, tudo ainda
por cima sem pensador supremo, admiremos, amigos, a tapeçaria,
sejamos nela gostoso ou maltratado fio, que outra coisa não podería­
mos ter sido sendo tudo como é no resto.18
Foi Pascoaes, se não estou em erro, que classificou o poeta como um
ressoador universal. Agostinho assume a realidade ontológica desta metáfora
cuja tradução clássica está na inspiração das musas; em versão simbolista, é o
eu sofrido, aquele que sofre a mágoa de todas as coisas, o canal por onde fluem
vozes e personagens, como na poesia intimista de Roberto de Mesquita. O caso
é evidente na quadra introdutória a Quadras Inéditas, que citamos: o autor
assume o papel de veículo de um dizer que não é o dele.
O mesmo se passa com a quadra, no mesmo livro, que reza que
Por aqui passou Camões
e o vário que nele havia
o que fora ainda o sendo
pronto a ser o que seria.19
O Fingimento...
Manuel Cândido Pimentel
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— pressurosamente anotada: «Quadra que nos comunicou a casa quinhentista do Largo do Menino de Deus em Lisboa, 1100.»20
Em Carta Vária, o poema, incluído também em Do Agostinho em torno
do Pessoa, e diferentemente titulado (naquela: «Um Poema de Ofélia a Conselho
de Alberto Caeiro»; nesta: «Poema de Caeiro a Fingir-se de Ofélia»21), está datado
de 5 de maio de 1987, informando-se o leitor de que foi «transmitido a Agostinho
da Silva».22 Isto nos faz pensar numa curiosa associação dos motivos clássicos da
inspiração com as comunicações metapsíquicas, outros tantos processos ficcionais do fingimento, dispostos a alcançar um outro visto ou dado em espírito em
Agostinho ou que tornam Agostinho um heterónimo de outros que fazem nele a
casa do ser. Para a ciência desta heteronomização se deve contar também a
«Exortação à Portuguesa Língua que o Doutor Luís António do Vale
de Aboim compôs na sua Casa de Amarante em tempo de Filipes e
agora novamente dada à estampa nas festas de junho por seu heterónimo Agostinho e por ele enviada aos Amigos».23
Como acontecia em Fernando Pessoa, e foi o caso Pessoa uma obsessão
permanente para Agostinho, a subjectividade é vária porque vem de nascimento múltipla: «[…] nascemos múltiplos e são as circunstâncias da vida que
nos impedem a multiplicidade», dizia a Antónia de Sousa.24 Agostinho não
renunciou a ser o que a não-identidade de origem encerra: o múltiplo de ser
para ser sendo em vários.
Viu nessa não-identidade o lume transubstanciador que presidiu ao
forjamento das personalidades em que se desvendou: o ficcionista, memorialista ou, talvez, autobiógrafo, que concebeu em Mateus-Maria Guadalupe, o
escritor de Herta. Teresinha. Joan e de «Macaco-Prego». Lembrança Sul-Americana,25 o pensador de Sete Cartas a um Jovem Filósofo, José Kertchy Navarro,
cuja biografia, inserta na parte final da obra, é uma peça de jogo ficcional, uma
autobiografia fictiva em parte composta com verdades da vida de Agostinho
da Silva,26 e, finalmente, o Estrangeiro da Conversação com Diotima, do qual,
para ilustração de heteronímia, colhemos, na última fala:
Todo o poeta é um actor e nem eu próprio sei realmente se o que
ouviste é de mim ou de uma das minhas personagens. Existo eu
próprio fora delas, nitidamente separado de cada uma das minhas
criações? Nelas existo, disso estou certo, nem poderiam viver, se cada uma não fosse eu mesmo; mas não te posso afirmar, Diotima,
que seja sincero ou falso no que digo.27
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Pessoa forjou as ficções de si no interlúdio dos seus heterónimos, ele
um heterónimo talvez de Caeiro ou só de Caeiro, seu mestre, como o classifica numa carta a Adolfo Casais Monteiro.28 Agostinho viveu o pasmo que as
primeiras leituras de Pessoa lhe causaram e não mais, desde aí, deixou de o
meditar, dos heterónimos realçando o Alberto Caeiro, «o de maior interesse»,29 reverberando na escrita reflexiva e na criação literária o drama fictivo
pessoano. E os outros nomes do Pessoa, além do Caeiro, o Ricardo Reis, o Álvaro de Campos, o Bernardo Soares, transferem-se do domínio da crítica e da
interpretação para o plano já ficcional, não os outros de Pessoa, mas os outros
de Agostinho, com os quais convive e que, não existindo embora, com ele vão
sendo, o que é um outro desígnio de existir. O mais singular desta transferência encontra-se em Carta Vária:
E, já agora, a identidade: sou o Bernardo Soares, o que deixou aí os
manuscritos, bastante desordenados, a que se deu nome de Livro do
Desassossego e que nunca arrumei porque afinal a ordem era interna
e se cumpria conforme lhe apetecia a ela ou a tal levavam as circunstâncias, e, por conseguinte, vai aparecendo conforme se afigura
melhor a seus diligentes editores. Quanto a Agostinho, de que faço
eu meu secretário, vamos dizer tele-secretário, […] mais gostaria eu
de lhe chamar George, que é o seu nome de baptismo e por ele o conheci eu […]; pois por George conheci eu o Agostinho quando mo
apresentou sua avó algarvia, a excelente Maria da Cruz, já viúva de
seu pescador, e isso pelo ano de 14, quando pela primeira vez visitou
ele Lisboa e nos encontramos todos num daqueles restaurantes sossegados, baratos e bem servidos […].30
Soares apresenta Agostinho, seu secretário ou tele-secretário, a quem
chama pelo nome George, o de baptismo. E George, na sequência do texto, é
descrito como amigo de tertúlia com os outros, entre eles o Fernando, o autor
de «É a Hora», vindo mesmo a colher sobre ele próprio, George ou Agostinho, o seguinte juízo de Soares – este dito já distinto do Fernando e dos dois
distinto se forma o George, cuja produção literária com as de aqueles não se
confunde, o que é modo de ao leitor dizer que o que lê não lê como sendo de
George, mas de Soares, podendo, no entanto, ser de George:
Se o George não der sinal no que é autor, o que é muito dele, tão
metido a modesto, o que também pode ser um método ou uma inteligente manha, vocês o distinguirão pela qualidade ou pelo tom.31
O Fingimento...
Manuel Cândido Pimentel
252
À Carta Vária assiste um modelo de cruzamentos de falas de personagens que Agostinho inventa ou que reinventam o Agostinho que escreve, como
se comprova:
Pois isto agora vai ser assim: irá escrevendo cada um de nós o que for
acudindo ou o que forem pensando e dizendo George ou a Maria ou
qualquer Amigo dos dois, mesmo os Amigos que lhes apeteça inventar, ou conversas que uns quaisquer tiverem com quaisquer outros
ou o que lembre a outra gente e nós formos registando […].32
Estas passagens transmitem-nos o quão bem fundo caiu em Agostinho
da Silva o fingimento heteronímico de Pessoa, que persistentemente perseguiu
e distinguiu por pensamento próprio, que originalmente não se encontra em
Pessoa. A teoria heteronímica de Agostinho recolhe as possibilidades filosóficas e mesmo teológicas da heteronímica pessoana. Creio que Agostinho, melhor do que ninguém, soube compreender o que os heterónimos autorais de
Pessoa ocultavam muito além dos mecanismos da despersonalização, sobre os
quais a expressão pessoana melhor insistiu para, por eles, destacar o finjo do
fingimento até ao impossível de fingir o jogo ficcional do fingimento, de que
é particular exemplo a tão citada «Autopsicografia», na parte do verso em que
«o poeta fingidor» «Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/
A dor que deveras sente».33
Agostinho da Silva orientou-se da poética da despersonalização de
Pessoa para uma metafísica da criação heteronímica e para uma teologia dos
heterónimos, que, de facto, não se reduzem a Pessoa, embora eu pense que
nelas se contêm bons motivos hermenêuticos para a compreensão da teoria
heteronímica pessoana nos processos não já psicológicos, mas ultimamente
metafísicos.
A reorientação da ficcionalidade literária do fingimento pessoano para uma
metafísica da criação tem o seu mote sintético na seguinte quadra:
Sobre Fernando Pessoa
direi a coisa correcta
quem é mesmo criador
cria poema e poeta.34
A poesia de Agostinho da Silva, tanto quanto a sua filosofia, é fortemente interiorista, subjectivamente metafísica. A contemplação das paisagens íntimas da subjectividade, apesar da contracorrente da dessubjectivaRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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ção do pensamento, não deixa de emergir um eu cuja unidade se pressente
nas contínuas e multímodas formas das dilacerações em que se exprime ou
que para si representa, como na fala há pouco citada do Estrangeiro, endereçando-se a Diotima.
O Estrangeiro contempla uma unidade procurada e possível na descentração do mesmo, não sendo os outros mais do que um eu como o eu mesmo,
mas, admitindo a imprevisibilidade da verdade no interior da contradição, sugere
serem eles o que há de essencialmente diferente do mesmo que neles se revê. Daí a
conclusão abrupta, logo após retorquir que não pode afirmar ser sobre isso sincero
ou falso: «Não tens que me considerar a mim mas ao estrangeiro que falou: com
ele conversaste, não comigo.»35
É o reenvio para o texto do diálogo, feito memória em Diotima, o único lugar das criações e recriações de sentido. O eu do estrangeiro desvanece-se:
«Não tens que me considerar a mim…» É a assunção vívida da máscara. A
recolocação do fingimento.
Não pode deixar de preocupar-nos nesta altura a pergunta pela verdade.
Se com ela não se preocupa o poeta, com ela se preocupa o filósofo. E o Agostinho, filósofo que foi, ou poeta à solta como se disse, afrontou com coragem o
problema, ainda que perseverando na lógica da contradição: «Contradizer-me
me dá segurança de que atingi a verdade possível.»36
Para quem vê no fingimento o oposto da verdade é porque não entendeu o que há de paradoxo na verdade e de como é paradoxal a vida e o existir.
O filósofo que fingisse múltiplos sistemas não estaria menos na verdade do
pensamento do que o outro de um só sistema. Só que aquele seria mais rico e
vário e, admitamos que por isso, mais próximo da verdade. A contradição, ou
o desdobramento em outro que contradita o mesmo, é face da verdade, porque, na contradição, o mesmo e o outro se revelam como mesmo e outro.
Se, como diz Agostinho em «Pensamento à Solta», tudo é «pensável pelo pensamento», então a contradição, o antagonismo, a antinomia e o paradoxo
são pensáveis, mas, para o serem, isto é, pensáveis, necessário se torna tudo
incluir «numa ideia de criação contínua».37 A criação contínua excede a metafísica da criação heteronímica, afunda-a e mergulha-nos no coração do ser,
leva-nos à porta sagrada que nos abre a Deus.
Uma tal direcção não é imprevista. Agostinho da Silva, pelo pensamento propenso para os assuntos difíceis do sagrado, tinha de necessariamente orientar criador e criação para o que insuperavelmente os sobrepuja.
Mas ainda aqui a lógica que se ordena a pensar Deus é raciocínio na contradição, por isso não denega a dúvida, afirma-a como um acto de fé em
O Fingimento...
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Deus. Só na absurdidade se pensa o que não pode ser superado pelo pensar.
Ora, pensar o princípio é um trabalho de lógica e de ilógica: «Sempre que
há princípio, diria São João, há lógico e, portanto, ilógico […].», escreve em
«Pensamento à Solta».38
Na recusa dos antropomorfismos e na consciência de que os nossos
conceitos são pobres e redutores, inaplicáveis a Deus, como o conceito de existência, Agostinho da Silva chama «Deus ao Pensamento», o nome que dá ao
inominável,39 um Deus que está nos contrários e no traço inefável de coincidência entre eles, tal como, para o coração, a coincidência da sístole e a diástole.40
Este Deus não é solitário. A concepção que dele tem Agostinho suscitame a imagem de um suspiro criador de Deus querendo ser muitos. Na pureza
infinita de si, Deus não é em solidão. O mundo exige-o, assim como o principiado exige o princípio, como o compreendente o compreendido e como o
amante o amado. O que os une? O terceiro termo. A criação e o amor:
[…] para que haja o que concebemos por mundo é preciso que haja
alguma coisa compreensível e para que essa coisa seja compreensível
é necessário que haja outra coisa, ou ela própria que a compreenda;
isso mesmo: o mais simples é que de princípio exista o que seja compreendente e compreendido, ao mesmo tempo; ora, entre o compreendente e o compreendido, sejam os dois o mesmo ou não, alguma
coisa há de comum, porque senão não havia compreensão alguma;
esse comum é o primeiro e o segundo e, simultaneamente, outro. Eu
cá acho que deve ser o mesmo quando duas pessoas se amam: há o
amador e o amado e o terceiro, o mais importante talvez, o fundamental, é o comum amado amor que a si próprio neles se ama. […]
Pois bem, aqui têm os senhores o que os cristãos chamam Trindade
ou Deus Trino e Uno.41
O avizinhamento dos processos da criação ficcional e poemática, enquanto por eles advém o verbo ao mundo, da processualidade do amor e da
processão do Uno-Trino, é um traço dos mais típicos de Agostinho da Silva.
Na comunhão explícita do criar ficcional e poético com o criar amoroso do
Criador, numa linha de tangências do acto criador ficcional com a raiz paraclética da sua filosofia, encontramos o pensamento secreto de Agostinho: o heteropessoalismo da divindade é uma teologia da heteronímia. Deus, não como
origem segundo o tempo, mas a origem segundo o ser e o nada, é fundamento
último de toda a heteronímia como criação no tempo.
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O segredo da heteronímia perde-se no sagrado das origens, projectanos além do tempo, para a triunidade divina, e, por descenso ao tempo, reenvia-nos para o que, em nós, sonha Deus e age como Deus: “Só criando a partir
do nada serás à imagem e semelhança de Deus”.42
Dizê-lo é também pensar Deus o heterónimo do homem, tanto quanto o homem, pela imagem e semelhança, se concebe o heterónimo de Deus:
“Criou Deus o homem e logo este, por lhe ser à imagem e semelhança, criou
a Deus.”43
E eis o analogismo do criar divino e do criar humano:
A certa altura, e sempre, Deus entrou em êxtase e, simultaneamente,
apareceram a sua transcendência e o mundo; quando o homem, à
sua imagem e semelhança, em êxtase entra, pela criação, simultanea­
mente surgem a imanência e o nada.44
Por tudo isso mantenho ter sido Agostinho da Silva quem tirou as consequências teológicas da teoria heteronímica de Pessoa. E se faltasse comprovação, eis que do próprio nos chega o seguinte passo:
Diríamos […] que não somos muito diferentes do que Pessoa foi,
descontando o nível, e que só pela pressão das circunstâncias ambientes ou por comodidade nossa nos não distendemos aos vários
que somos, exactamente como ele o fez. Contra o que somos ou
fomos ou formos, como fenómeno ou heterónimo – e uma teologia
mais ousada a tudo poderia dar como heterónimo de Deus, e dele só
de heterónimos sabemos e sobre eles escrevemos a nossa física ou a
nossa psicologia […].45
Viemos da experiência poética e ficcional do fingimento heteronímico
e de uma visão metafísica do que de mais essencial há no criar do pensamento
até uma teologia dos heterónimos ou, na melhor expressão de Agostinho, a
uma teologia das heteropessoas, uma original visão paraclética das possibilidades teândricas e teocosmológicas do ser e do ser do homem, ambos revelando-se na multivária expressão do pensar e do agir multiplicados em criação.
Agostinho olhou o mundo no simbolismo expressivo do Espírito. O
cosmos foi para ele o símbolo transmutado, uma imensa rede de significações, as pegadas que Deus deixou no deserto e pelas quais o animou de oásis,
ilhas de vida, lugares «onde as antinomias terminam e onde os paralelismos
se fundem».46
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O pensamento ortónimo de Agostinho é o pensamento dos seus heterónimos ou do que pensou como o diferente de si. Eles são as figurações do
que finge como o que não é para atingir-se como o que é, embora haja por aí
o risco de a barca de Caronte naufragar no rio e no silêncio do que não mais é
memória, quem sabe se o esquecimento para gozo de maior memória.
Forjamo-nos a nós e este forjar é já criar heteronímico algo que não
sabemos quem seja, mas que percebemos ser o irredutível de nós ao número
do bilhete de identidade. Como posso saber-me no que crio como a minha
identidade que não esteja nas pessoas em que me crio? Há um momento em
que a biografia dos outros é a minha autobiografia, mas a tal ponto que a ficcionalidade do fingir-me fingindo-me outro representa, pelos mesmos traços
da biografia fictiva, a autobiografia que colhi na história dos meus próprios
passos, por entre as circunstâncias, decisões, indecisões, do agir e do não agir,
do aceitar e recusar.
A biografia ficcional de personagens e a autobiografia do personagem
que me sei ou julgo saber estão bem expressas nesse personagem trágico,
misto de filósofo, pedagogo e poeta (o próprio Agostinho?), que foi José
Kertchy Navarro, como também presente no George, subsecretário de Soares, personagem ficcional de Agostinho e personagem ficcional de Bernardo
Soares, já ficção do outro que foi Pessoa e Fernando ou do outro que Agostinho pensa ser Pessoa.
A pergunta Quem foi Agostinho? é a pergunta que cada um de seu
nome próprio coloca a si próprio. Onde me reconheço? Em que nome? Em
todos os que são os meus, em parte deles, no primeiro ou no último? O
drama de Agostinho é o drama de George? Ou é Agostinho a personagem
ficcionada por George?
Não há cogito, só o drama em sê-lo.
Notas
1 Para maior desenvolvimento, veja-se o meu texto «Elementos para uma Fenomenologia Literária do Texto
Filosófico», in Philosophica, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, n.º 9 (1997), pp. 7-31.
2 Heráclito, frg. 41.
3 Agostinho da Silva, «Pensamento à Solta», in Textos e Ensaios Filosóficos, coordenação geral e organização de
Paulo Borges, vol. II, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p. 145.
4 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, Lisboa, Ulmeiro, 1997, p. 77.
5 Fernando Pessoa, «Mensagem», in Obras de Fernando Pessoa, introdução, organização, biobibliografia e notas de
António Quadros e Dalila Pereira da Costa, vol. I, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 1.156.
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6 Agostinho da Silva, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», in Carta Vária, Lisboa, Relógio-d’Água Editores Lda., 1990, p. 137.
7 Idem, O Império Acabou. E agora?, Lisboa, Editorial Notícias, 2000.
8 Idem, ibidem, p. 97.
9 «Ó Portugal, hoje és nevoeiro…// É a Hora!» (Fernando Pessoa, «Mensagem», op. cit., p. 1.168.)
10 Agostinho da Silva, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», op. cit., p. 137.
11 Idem, Quadras Inéditas, op. cit., p. 74.
12 Idem, ibidem, p. 7.
13 Ibidem, p. 85.
14 Ibidem, p. 86.
15 Ibidem, p. 132.
16 Ibidem, p. 102.
17 Idem, «Pensamento à solta», op. cit., p. 146.
18 Idem, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», op. cit., p. 137.
19 Idem, Quadras Inéditas, op. cit., p. 94.
20 Idem, ibidem.
21 Cf. idem, Do Agostinho em torno do Pessoa, Lisboa, Ulmeiro, 1990, p. 21.
22 Idem, Carta Vária, op. cit., p. 40.
23 Idem, ibidem, p. 139.
24 Idem, O Império Acabou. E agora?, op. cit., p. 191.
25 As obras estão reeditadas in Estudos e Obras Literárias, coordenação geral e organização de Paulo Borges,
Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 73-182. Vejam-se também as Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria
Guadalupe seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias, ibidem, pp. 183-287.
26 Cf. Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. I, pp. 231285. Em especial, o «Esquema Biográfico», assinado pelas iniciais P.M. (pp. 273-278), e a «Nota Final», subscrita
(heteronimicamente?) por José Muriel (pp. 278-285).
27 Idem, «Conversação com Diotima», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. I, p. 170.
28 Cf. Fernando Pessoa, a carta de 13 de Janeiro de 1935, in Obras de Fernando Pessoa, op. cit., vol. II, p. 341.
29 Agostinho da Silva, «Do Previsível e do Imprevisível», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. II, p. 379.
30 Idem, Carta Vária, op. cit., p. 64.
31 Idem, ibidem, p. 65.
32 Ibidem, pp. 67-68.
33 Fernando Pessoa, «Autopsicografia», in Obras de Fernando Pessoa, op. cit., vol. I, p. 314.
34 Agostinho da Silva, Do Agostinho em torno do Pessoa, op. cit., p. 7.
35 Idem, «Conversação com Diotima», op. cit., p. 170.
36 Idem, «Pensamento à solta», op. cit., p. 145.
37 Idem, ibidem, p. 148.
38 Ibidem, p. 155.
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39 Ibidem, p. 145
40 Cf. ibidem, p. 161.
41 Idem, Carta Vária, op. cit., pp. 71-72.
42 Idem, «Pensamento à Solta», op. cit., p. 153.
43 Idem, ibidem, p. 155.
44 Ibidem, p. 160.
45 Idem, «Do Previsível e do Imprevisível», op. cit., p. 381.
46 Idem, «Ecúmena», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. II, p. 206.
Resumo
O tema do fingimento constitui um legado de Fernando Pessoa em Agostinho da Silva,
o poeta que este mais admirou e amou. Pessoa está na origem do fascínio de Agostinho
pelos jogos ficcionais da despersonalização e da heteronímia, bem presentes na sua obra
poética, ficcional e teórica. O tema pessoano do fingimento está, em Agostinho, intimamente ligado ao processo criador do sentir poético e do pensar, capazes da heteronímia
ou do despertar do ser múltiplo ou vário no ser que sente, que conhece e que pensa. Nos
seus aspectos mais profundos, o tema do fingimento encaminha-nos para uma metafísica
da criação heteronímica e para uma teologia dos heterónimos.
Palavras-chave: Cogito; Fingimento; Heterónimos; Fernando Pessoa.
Abstract
The simulation theme constitutes Fernando Pessoa’s legacy in Agostinho da Silva’s work,
being Pessoa the poet who Agostinho most admired and loved. Pessoa is the source of
Agostinho da Silva’s fascination for the ficcional games of depersonalization and heteronyms, present in his poetic, ficcional and theoretical work. Pessoa’s simulation theme is
deeply connected to Agostinho da Silva’s creative process of poetic feeling and of thinking,
capable of heteronyms or of the awakening of a multiple or varied being in the being that
feels, that knows and that think. On its most profound aspects, the simulation theme leads
us to the metaphysics of heteronymic creation and to a heteronym theology.
Keywords: Cogitate; Simulation; Heteronym; Fernando Pessoa.
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Agostinho da Silva e
as interrogações do tempo que urge
Maria Leonor L. O. Xavier*
Uma iniciativa de Agostinho da Silva, que deu testemunho da sua preocupação social e pedagógica com o estado de cultura do povo português, foi
a publicação, nos anos 40 do séc. XX, dos Cadernos de Informação Cultural.
Entre estes, propomo‑nos, hoje, revisitar dois, O Cristianismo e O Islamismo,
ambos publicados em Lisboa, em 1942.
Motivam‑nos, nesta revisitação, as interrogações do tempo que urge,
sobre as relações entre o Ocidente e o Islão; entre um Ocidente, que já não se
identifica com a Cristandade, mas que guarda a memória do cristianismo, como herança religiosa dominante, e um Oriente próximo, cuja identidade cultural é indissociável do islamismo, quer se trate de um Islão moderado, quer se
trate de um Islão fundamentalista, em versões múltiplas e crescentes.
Os dois Cadernos de Agostinho da Silva, sobre o cristianismo e sobre o
islamismo são de carácter informativo, de acordo com o propósito da colecção
que ambos integram, mas nem por isso os dois Cadernos são ideologicamente
neutros. Não obstante o zelo de objectividade e de imparcialidade que os norteia, os dois Cadernos são textos de autor, e, como tais, revelam, se não posições
doutrinárias, pelo menos orientações de fundo do pensamento do autor sobre
as religiões em foco. Prova disso foi a incompreensiva recepção do Caderno
O Cristianismo, que tornou suficientemente desconfortável a vida de Agostinho da Silva no Portugal de então, para lançá‑lo em viagem para o Brasil.
* Maria Leonor L. O. Xavier é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde
realizou a Licenciatura em Filosofia (1981), o Mestrado (1986) e o Doutoramento (1994), na área de História da
Filosofia Medieval, e onde tem leccionado, entre outras, a disciplina de Filosofia Medieval, bem como seminários
do Mestrado de Filosofia em Portugal; é membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL) e da
Sociedade Internacional para o Estudo da Filosofia Medieval (SIEPM); tem escrito múltiplos estudos no âmbito
da confluência da filosofia e do cristianismo na história do pensamento ocidental, entre os quais, Razão e Ser.
Três Questões de Ontologia em Santo Anselmo (FCG – FCT, 1999), Questões de Filosofia na Idade Média (Colibri,
no prelo), «O Cristianismo e a Filosofia Ocidental: caminhos cruzados» (2001), e «Uma profilaxia antidogmática. A Teoria da Crença, de Joaquim Braga» (no prelo).
260
Em Portugal, nos anos 40 do século XX, um texto, como O Cristianismo,
de Agostinho da Silva, era passível de censura, como efectivamente o foi. Desses
anos para os dias de hoje, o texto tornou‑se inócuo para a dignidade da religião,
e até de certo modo inocente na interpretação que dá do cristianismo. Em pouco
mais de meio século, muita coisa mudou em Portugal e no mundo, que tornou
possível tão ampla alteração de atitude relativamente ao Caderno de Agostinho. A
essa alteração, não terão sido indiferentes, quer a mudança de regime político em
Portugal, em 1974, promotora de maior separação entre o Estado e a Igreja católica, quer a evolução do próprio catolicismo, que se tornou mais tolerante com as
suas heterodoxias internas, na sequência das reformas do Concílio Vaticano II. Na
esteira de tudo isso, a heterodoxia de Agostinho da Silva deixou de ser dramática.
Mas, ao deixar de ser controverso, o Caderno de Agostinho corre o risco de tornar‑se apenas um lembrete de ultrapassadas controvérsias, o que seria
pena, uma vez que o texto de O Cristianismo não deixou de ser uma expressão
de cultura e de liberdade de espírito, capaz de valer para além do seu autor.
Revisitemos, pois, o texto, como uma leitura ainda possível do cristianismo.
Cabe, antes de mais, notar que Agostinho da Silva introduz o tema do
cristianismo, não partindo do ponto de vista dos seus seguidores, dos autores
cristãos, mas partindo do ponto de vista dos outros, dos autores pagãos, como
escritores latinos do século I, nomeadamente, Plínio, o Moço, Tácito, Suetónio e Flávio Josefo, um historiador de confissão judaica. Na convocação de
antigos historiadores romanos, Agostinho acusa, por um lado, a sua formação
de classicista, e, por outro lado, o zelo de objectividade, dando conta do novo
movimento religioso, não a partir do seu interior, mas por via daqueles que,
do lado de fora, deram primeiro notícia dele. Com base nessas primeiras notícias, Agostinho formula uma questão prévia sobre o cristianismo: a questão
da existência histórica de Jesus Cristo.
Esta é uma questão prévia, mas, mais do que isso, é uma questão central para Agostinho da Silva. Com efeito, a sua interpretação do cristianismo
centra‑se no Jesus Cristo histórico, não no Jesus Cristo teológico.
Impõe‑se, por isso, uma posição fundamentada na questão da existência histórica de Jesus Cristo. Por um lado, os textos antigos, referidos por
Agostinho, ou por falta de autenticidade ou por noticiarem apenas a existência de cristãos, não dão prova suficiente da existência histórica de Jesus
Cristo. Um historiador positivo, sem qualquer tentação especulativa, não
encontraria base histórica suficiente para defender a existência histórica de
Jesus. Com o mesmo espírito positivo de historiador, Agostinho avalia a posição dos que negam a existência histórica de Cristo:
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«As interpretações fantasistas a que os mitólogos sujeitam os textos,
as aproximações audaciosas, as explicações absurdas para o que encontram de inexplicável dentro da sua maneira de ver são em número demasiado para que se lhes possa dar grande crédito; o não admitirem a existência histórica de Jesus leva‑os sempre, apesar de toda a
possível habilidade dialéctica, ao ponto fundamental de admitirem
um pensador inicial, já que seria excessivo romantismo o de acreditarem num movimento colectivo como autor do Evangelho».1
Deste modo, Agostinho manifesta rejeitar a origem do cristianismo num puro colectivo, sem uma cabeça principal. Aqueles que recusam identificar essa
cabeça com Jesus Cristo, reduzindo este a uma ficção criada pelo movimento,
têm muito que especular sobre quem seria o verdadeiro pioneiro do movimento. Eles não oferecem, por isso, garantia alguma da posição que defendem.
Agostinho da Silva decide-se a favor da existência histórica de Jesus,
não como um crente, mas como uma posição de bom senso, dentro do mesmo
espírito positivo de historiador:
«Há um cristianismo, uma doutrina e um movimento cujo surgir se
tem de explicar; o mais simples, o mais de acordo com os testemunhos, o que levanta menos problemas de interpretação, e está, ponto
importante mesmo em história, mais de acordo com o bom senso,
é aceitar a existência histórica de Jesus, embora com o afastamento
dos textos que, muito importantes para o crente, não o são tanto
para o historiador».2
A que textos a afastar se refere aqui Agostinho? Aos textos cristãos que antes considerara estarem na origem do Jesus Cristo teológico, entre os quais se encontram o Evangelho segundo S. João e, sobretudo, as Epístolas de S. Paulo. Agostinho chega mesmo a considerar que fora
S. Paulo o fundador da nova religião:
«O que interessava a S. Paulo, verdadeiro fundador da nova religião,
não era o Jesus que nascera na Galiléia, pregara entre os judeus e
viera acabar a Jerusalém; o que o prende é o Cristo que morre para
salvar o género humano e que ressurge para voltar à plena glória; é
o princípio da substituição do Jesus terrestre pelo Cristo teológico e
místico que só pode interessar à história de S. Paulo ou dos doutrinários que se seguiram».3
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Há, assim, um cristianismo, que Agostinho rejeita, e esse é o cristianismo paulino, responsável, em grande medida, pela ideia de um Cristo divino,
que se submeteu à morte para a salvação da humanidade. A divindade de Cristo é a tese crucial do cristianismo paulino e joanino, que Agostinho da Silva
não regista sem recusar. Daí que, no início da relação dos elementos biográficos sobre Jesus Cristo, Agostinho diga: «Era filho de Maria e de José».4
A objectividade da abordagem agostiniana não significa indiferença
ou neutralidade ideológica, dado que recusa expressamente toda a teologia
elaborada em torno da pessoa de Jesus Cristo. Agostinho começa, à maneira
de historiador, por recensear o cristianismo como um acontecimento, e não
resiste a impugná‑lo nas suas versões mais especulativas, o que mostra que o
autor de O Cristianismo era muito mais um espírito positivo e livre do que
um crente em artigos de fé. Não é, por isso, de estranhar que o opúsculo tenha
incomodado a disciplina de pensamento das instituições vigentes no Portugal
de então. No entanto, a negação da divindade de Jesus Cristo não era uma
heterodoxia nova, nem na história do cristianismo, atendendo ao arianismo
antigo, nem na história do pensamento português contemporâneo, atendendo
por exemplo ao antecedente de Pedro Amorim Viana. Resgatar a humanidade
de Jesus Cristo, tornando‑o mais terreno e próximo dos homens, é, aliás, uma
tendência que se faz notar de forma muito abrangente e intensa na cultura
ocidental do século XX. Não conseguimos deixar de entrever Agostinho da
Silva no seio dessa tendência. Talvez por isso, o seu Caderno, hoje, já não soa
muito a transgressão.
Resta saber qual é, segundo Agostinho, o cristianismo mais autêntico,
aquele que mais se aproxima do Jesus Cristo histórico. Podemos dizer que é
um projecto social de distribuição eqüitativa dos recursos materiais em vista
da realização de um paraíso terreal, a realização do que seja mais propriamente humano na humanidade:
«O que prendeu os discípulos e o povo da Galiléia, o que fez tomar
como um guia dos homens foi a sua personalidade, a um tempo
cheia de amor e de audácia, foi o calmo, sincero heroísmo que o
fez ir em defesa dos pobres, dos humildes, contra uma organização
social que os oprimia, foi o entusiasmo, a piedade que o levaram a
trazer aos homens a esperança de um magnífico futuro, foi a sua
crença de que há um fundo bom na humanidade e de que é possível
construir na terra um paraíso»;5
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«Nem uma única vez ele põe a dificuldade e toda a sua força espiritual parece empregar‑se no sentido de que se organize a terra de
modo que a vida material aos homens não pese sobre eles e as almas
possam dedicar‑se ao que é verdadeiramente humano».6
O cristianismo prezado por Agostinho da Silva é, assim, uma forma de humanismo, e o seu Jesus Cristo histórico é descrito como uma personalidade de acção e um herói filantropo. Desse modo, Agostinho contrapõe à sua recusa do
cristianismo paulino e joanino, a sua apologia de um cristianismo socialmente
empenhado, e à sua rejeição do Jesus Cristo teológico, a sua aproximação do
seu Jesus Cristo histórico, como caso exemplar do seu ideal de vida filantrópico. É claro que, em face destas escolhas de Agostinho, estamos já longe da
objectividade e da positividade de um historiador, para nos confrontarmos
com orientações profundas de um pensador, que, porventura, não dependem
apenas da fundamentação que os textos cristãos lhes permitem dar.
No entanto, a apologia de certo cristianismo não obsta a algum tempero crítico na descrição agostiniana da pessoa de Jesus Cristo. Dão disso testemunho as considerações de Agostinho da Silva sobre o pensamento e a religiosidade de Jesus.
Por um lado, não é pelo pensamento que Jesus interpela Agostinho:
«O facto mais importante em Cristo não é ele aparecer com um pensamento
bem nítido, bem coerente, fruto de uma meditação regular e demorada»;7
«De resto havia mais em Jesus uma emoção, um sentir directo perante os sofrimentos e as esperanças do povo, um contacto imediato
com a essência da sua vida, do que um forte poder de raciocínio,
uma clareza excepcional de inteligência».8
Agostinho encontra mesmo em Jesus um pensador contraditório:
«O pensamento de Cristo apresenta‑se‑nos contraditório, ou porque o foi na
realidade, ou porque há no Mestre e nos seus discípulos duas fontes de ser que
se contrariam».9 Uma das contradições que afectam o pensamento de Jesus é a
dupla afirmação da imanência e da transcendência de Deus:
«Em Jesus ele [Deus] aparece continuamente e tão presente em tudo,
nos céus, na terra, nas plantas e nos meninos, que quase poderíamos
falar num panteísmo, se, por outro lado, Jesus não mantivesse firme
a ideia de um mundo absolutamente distinto de Deus».10
Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge
Maria Leonor L. O. Xavier
264
Pelo modo como dá conta da contradição, Agostinho não consegue esconder a sua preferência pela tendência panteísta do pensamento teológico de
Jesus. No juízo sobre esse pensamento, é o próprio Agostinho, como pensador,
que indissociavelmente se acusa.
Por outro lado, não é também pela religiosidade que Jesus impressiona Agostinho:
«Se se considerar religioso o que falar em Deus ou mostrar veneração
por um lugar de ritos, certamente que Jesus tem de ser contado entre
os religiosos; se, porém, se tomar como atitude religiosa, a de uma
forte consciência moral em face de todos os problemas universais, a
de quem procura uma solução do problema essencial da existência,
isto é, do problema do bem e do mal, com todas as suas implicações,
procurando ir até aos limites da questão e não recuando perante o
que aparece como resultado, o que fez, por exemplo, um Buda, então
Cristo não pode apontar‑se como um grande mestre religioso».11
Agostinho da Silva distingue aqui duas acepções de religiosidade: uma conotada com a referência a Deus e a locais de culto; outra conotada com uma
profunda consciência moral. A primeira acepção de religiosidade, que é a mais
corrente, não a mais profunda, aplica‑se a Jesus Cristo, segundo Agostinho. Já
na segunda, a acepção moral de religiosidade, Jesus Cristo fica atrás de Buda,
no parecer do filósofo. Todavia, esta desvantagem de Jesus Cristo relativamente a Buda não torna Agostinho da Silva mais budista do que cristão.
A preferência de Agostinho por Jesus Cristo é iniludível. Por quê? Por
causa do valor da acção e da filantropia como um fim em si mesmo. Ao contrário
do Jesus Cristo, que Agostinho preza como homem de acção,
«Buda fala dos problemas que existiriam, mesmo para o homem que
tivesse toda a parte material da sua existência perfeitamente resolvida: ele próprio é um príncipe que tem tudo quanto quer e que tudo
abandona porque sente o trágico da vida, de uma vida que é trágica
exactamente porque é vida; a acção, por consequência, aparece como um mal para o Buda»12.
O desprezo budista da acção não atrai Agostinho. Além disso, a filantropia não
é um fim em si mesmo para o Buda, mas uma conseqüência da consciência
do sofrimento de toda a existência: «A piedade, o amor do próximo são em
Buda uma conseqüência da vanidade e da dor de viver: deve‑se ser bom para
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tudo o que existe, porque tudo sofre de existir»;13 «mas Buda, ao abandonar
a riqueza, não o faz por amor aos outros: sendo pobre, sofre menos, porque
vive com menos intensidade».14 Parece assim que o budismo enferma de uma
inibição face à vida, propondo uma fuga à intensidade da vida por incapacidade de suportar a dor que ela implica. A filantropia é um dever decorrente e
compensatório dessa incapacidade, não se justifica por si mesma. Esta filantropia motivada e condicionada pelo sofrimento afasta Agostinho do budismo
e aproxima‑o do cristianismo, tal como ele o pensa. Com efeito, a filantropia
de Jesus é descrita em termos bem diferentes:
«A piedade de Jesus, o amor que ele reclama são uma força revolucionária, neste sentido de que hão‑de apressar a vinda do mundo
divinizado: se o rico amasse o seu irmão, pensa Jesus, as riquezas
igualmente distribuídas dariam para todos e o mundo seria feliz».15
Deste modo, a filantropia de Jesus não é um dever de compensação, é pura
generosidade em prol da felicidade humana universal, que supõe eqüidade na
distribuição da riqueza. De novo, viemos ao encontro do cristianismo social
que Agostinho preconiza.
Esta ponderação do budismo e do cristianismo nas preferências de
Agostinho, só com base no Caderno O Cristianismo, revela que o filósofo português não consegue não ser um pensador ocidental. Na realidade, o antropocentrismo é uma tendência profunda e característica do pensamento ocidental,
que se faz notar salientemente na interpretação agostiniana do cristianismo.
Se o cristianismo teológico pode tornar‑se teocêntrico, o cristianismo social
de Agostinho, campeão da filantropia, é extremamente antropocêntrico e solidário com uma visão antropocêntrica do mundo. Esta é uma característica
que identifica Agostinho da Silva como um pensador ocidental.
Entretanto, aos ocidentais volta hoje a colocar‑se com muita acuidade
a questão da relação com o Islão. No ano do centenário de Agostinho da Silva,
2006, vários incidentes têm acusado a tensão existente entre o Ocidente e o Islão.
Na Dinamarca, um jornal promoveu um concurso de caricaturas sobre Maomé
e, quando o conhecimento dos desenhos a concurso chegou ao mundo árabe,
o resultado foi uma onda de veementes protestos por ofensa à fé muçulmana,
incluindo manifestações de rua diariamente repetidas em diversos países de larga maioria muçulmana. Resultado similar obteve um discurso do Papa Bento
XVI, proferido por ocasião da sua visita à Alemanha, que visava condenar toda
a violência perpetrada em nome da religião, mas que citava um texto do século
Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge
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XIV, do imperador bizantino Manuel Paleólogos II, segundo o qual Maomé nada
de bom tinha trazido ao mundo, apenas violência.16 Multiplicaram‑se, então, as
declarações apaziguadoras, negando qualquer intenção ofensiva e lamentando
as reacções, por vezes, desproporcionadamente agressivas nos países de maioria muçulmana. Contudo, nenhum dos líderes ocidentais aceitou pedir desculpas, quer pela publicação das caricaturas, quer pela citação do discurso do Papa,
em nome de um valor caro à civilização ocidental: a liberdade de expressão. Ao
mesmo tempo, na opinião pública ocidental, engrossava o caudal daqueles que
consideram no mínimo infelizes aquelas iniciativas, na medida em que eram susceptíveis de ferir a sensibilidade dos crentes de fé islâmica. Também os políticos
ocidentais primaram pela contenção, evitando desvios ao politicamente correcto.
Entretanto, cancelaram‑se iniciativas culturais, como a encenação original, em
Berlim, da ópera de Mozart, Idomeneu, que incluía a exibição da cabeça decepada
de Maomé, entre outras; ou como a representação teatral incluída nos festejos
populares de uma cidade do sul de Espanha, comemorando a conquista da cidade aos mouros. Estes cancelamentos revelam mais do que o zelo do politicamente
correcto; revelam o medo de ameaças e represálias. O Ocidente teme o Islão.
No mesmo ano de 1942, em que saiu O Cristianismo, Agostinho da
Silva publicou um outro Caderno de Informação Cultural, sob o título de
O Islamismo. Sabemos que foi o Caderno sobre o cristianismo, não o Caderno
sobre o islamismo, que causou a Agostinho o incómodo de viver no Portugal
de então. Se fosse publicado hoje, o Caderno sobre o cristianismo não teria já
repercussão para além do debate de ideias. Mas, se fosse publicado hoje, o Caderno sobre o islamismo, seria pacífica a sua recepção? E se Agostinho vivesse
hoje, teria escrito exactamente do mesmo modo o seu opúsculo O Islamismo?
Do que é conhecido da sua personalidade, Agostinho da Silva não era homem
de se deixar dominar pelo medo, nem de se apegar ao politicamente correcto.
E também não era sua intenção ofender os crentes de qualquer religião.
No mesmo tom objectivo e positivo de historiador, que advertíramos
a propósito de O Cristianismo, Agostinho da Silva começa o seu Caderno
O Islamismo, descrevendo panoramicamente a situação económica, religiosa e
política da Arábia do século VI. Tal como acontece para o caso de Jesus Cristo,
em O Cristianismo, também em O Islamismo, Agostinho dá relevo à vida de
Maomé. Mas também, tal como acontece a respeito de Jesus Cristo, Agostinho
não se coíbe de intercalar nas suas descrições da vida de Maomé, indicações da
sua posição como pensador. De um modo geral, as considerações agostinianas
sobre Maomé são de grande simpatia, embora sejam tecidas por alguém cujo
pensamento não renuncia a ser crítico a respeito da religião.
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Em matéria de religião, Agostinho até parece valorizar alguns aspectos
da postura de Maomé relativamente a Jesus Cristo. Por um lado, Maomé recusa fazer milagres:
«Frequentemente lhe pediam que fizesse milagres; replicava que não
os podia fazer e que acreditar‑se num milagre é marca de espírito inferior; o mundo inteiro era um milagre: olhassem, se queriam
extasiar‑se com milagres, para a terra e para o céu, para o mais humilde, para o mais apagado dos homens».17
É difícil não entrever aqui a comunhão de Agostinho da Silva com Maomé na
recusa dos milagres. Por outro lado, Maomé apresenta‑se como profeta:
«Não se apresentou como Deus, nem como filho de Deus, mas apenas como um profeta, como um homem, como um simples mortal que entendeu o pensamento divino e o vem propor aos outros
homens; as revelações são‑lhe feitas pelo espírito, umas vezes com
absoluta calma, outras em transes que, se de certo modo se assemelham a crises epilépticas, estão também muito perto dos transes de
outros místicos do Oriente e do Ocidente».18
Apresentando‑se como profeta, Maomé não corre o risco de transformar‑se
numa entidade teológica, como era o caso, segundo Agostinho, do Jesus Cristo
teológico do cristianismo paulino e joanino. É, assim, inegável a simpatia de
Agostinho por um Maomé assumidamente humano. No entanto, os seguidores
de Maomé talvez não apreciem aqui a comparação dos transes do profeta com
crises epilépticas, mesmo que a par de outros místicos orientais e ocidentais.
Agostinho sublinha também elogiosamente a frugalidade dos hábitos
de vida de Maomé, mesmo depois de estabelecido o seu poder em Medina e
em Meca:
«Maomé continuava sendo um homem de vida simples e de carácter
lhano: dormia numa simples esteira e tinha por travesseiro um odre
cheio de ervas; comia pouco, pão de centeio, leite e mel, mas ordinariamente passava os seus dias a água e tâmaras; não o fazia, porém,
para mortificar a carne e provava‑o bem pelo seu gosto dos perfumes
e das mulheres; estabelecera que nenhum muçulmano podia ter mais
de quatro mulheres, mas recebera, e na altura oportuna, autorização
dos céus para se casar com mais: os textos variam entre 15 e 50; é certo
Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge
Maria Leonor L. O. Xavier
268
que muitas delas, já velhas, as tinha o Profeta recolhido por caridade;
mas o que se passou com Ayesha e Maria prova que o Anjo Gabriel
estava por vezes de perfeito acordo com os desejos de Maomé. Não
tinha criados: ele próprio acendia o seu lume, limpava o seu quarto,
mungia as vacas, remendava o vestuário e consertava o calçado; falava
a todos com a mesma cortesia, a mesma franqueza de maneiras, senão
de palavras, não dava mostras do mínimo orgulho, da mínima ostentação, da mínima crença de que era um grande homem. De incontestável generosidade, protegia todos os escravos, libertando‑os sempre
que o podia fazer, e procurou que fizesse parte da mentalidade dos
seus adeptos o desejo de defesa das mulheres e das crianças».19
São por demais evidentes as qualidades que Agostinho da Silva reconhece em
Maomé: a humildade de executar trabalhos servis; a generosidade para com
os mais fracos e desprotegidos; não fazia acepção de pessoas, não era afectado
pela vanglória, e não defendia a mortificação da carne. Não era contra a carne,
nem a alimentação frugal nem o jejum: «Como sempre, Maomé não estabelece o jejum para castigo da carne mas elevação e afinação do espírito».20 É
difícil não entrever aqui, autorizada por Maomé, a espiritualidade que Agostinho preconiza, segundo a qual o espírito não luta contra a carne, embora
se deixe apurar através de alguns rigores sentidos na carne. A prova de que a
espiritualidade de Maomé não é inimiga da carne era, segundo Agostinho, o
gosto do profeta pelas mulheres. O gosto em si não é por certo de censurar.
Mas Agostinho, com alguma ironia, insinua que Maomé teria ajeitado à medida dos seus desejos a revelação do Anjo Gabriel, que o autorizava a casar com
quantas mulheres quisesse. Os crentes nas revelações de Maomé é que podem
não achar graça a tal insinuação, e até levá‑la a mal.
Cabe, por fim, sublinhar que não é só como homem religioso que
Agostinho descreve Maomé, mas também como político e chefe militar. Quanto à guerra e à paz, Agostinho destaca a doutrina estabelecida por Maomé:
«O bem supremo é a paz: mas quando se trata duma injustiça, de um ataque
não provocado, a defesa é legítima e deve fazer‑se por todos os meios que o
agredido tiver ao dispor».21 A doutrina exalta a paz, só justificando a violência
por legítima defesa. Mas uma coisa é a doutrina e outra são os usos e os abusos
que por ela se justificam. Ora Agostinho não se coíbe de denunciar os abusos
cometidos por Maomé e pelos seus seguidores em nome da legítima defesa:
«É baseado nesta doutrina da legitimidade de defesa pela força que os chefes
futuros do Islão conquistarão um império que se há‑de estender dos confins
da China às costas de Portugal»;22
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«Para ser o chefe incontestado de Medina era preciso vencer também o inimigo interno; os judeus eram uma força temível e Maomé
decidiu esmagá‑los; dentro ainda do critério da legítima defesa, executou pela espada e pelo fogo os 300 varões que existiam na comunidade, fez escravas as mulheres e as crianças, confiscou‑lhes os bens
que vieram reforçar o tesouro da nova religião»;23
após a conquista de Meca,
«Maomé concedeu uma amnistia geral, só não perdoando a 10
pessoas­, entre as quais, como convinha a um grande chefe, uma cantadeira de poesias satíricas; destruiu os ídolos, mas, com segura visão
das realidades, conservou a pedra negra de Kaaba e incorporou no
Islão os ritos antigos».24
Nessa última alusão à decisão de integrar elementos da cultura vencida, Agostinho reconhece o talento de Maomé como político. Mas regressemos aos abusos
da guerra. É claro que não se justificam por legítima defesa, nem a conquista de
um império, nem a execução de 300 judeus, nem a escravização de mulheres e
crianças, nem o roubo de bens materiais, nem a execução de uma cantadeira
de poesias satíricas. Não obstante a admiração expressa pela personalidade de
Maomé, Agostinho da Silva não se contém na denúncia dos abusos cometidos pelo profeta, enquanto homem de poder. Cabe, por isso, perguntar: se o
Caderno de Agostinho da Silva, O Islamismo, fosse publicado no Portugal de
hoje, integrando já uma significativa comunidade muçulmana, a recepção
seria pacífica?
Talvez Agostinho da Silva, no Portugal de hoje, não sentisse a mesma
necessidade de escrever e publicar os seus Cadernos de Informação Cultural.
Mas se o filósofo escrevesse hoje um texto sobre o islamismo – e não deixaria
de encontrar na actualidade motivações para tal –, escrevê‑lo‑ia da mesma
maneira como escreveu o Caderno O Islamismo? Conformar‑se‑ia ao politicamente correcto? Ou arriscaria a zanga dos muçulmanos em nome da liberdade
de expressão?
E se Maomé pudesse decidir hoje do destino dos caricaturistas dinamarqueses, que fizeram sátira da sua imagem: mandá‑los‑ia executar, como o fez com
a antiga cantadeira satírica de Meca? Nesse caso, cometeria mais um abuso intolerável da sua doutrina de justificação da violência em nome da legítima defesa.
Agostinho da Silva, segundo cremos, não se calaria.
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Notas
1 O Cristianismo (Iniciação. Cadernos de Informação Cultural, 7ª série), Lisboa, 1942, p. 7.
2 O Crist., pp. 7‑8.
3 O Crist., p. 5.
4 O Crist., p. 8.
5 O Crist., pp. 11‑12.
6 O Crist., p. 14.
7 O Crist., p. 11.
8 O Crist., p. 12.
9 O Crist., p. 13.
10 O Crist., pp. 14‑15.
11 O Crist., pp. 13‑14.
12 O Crist., p. 14.
13 Ibid.
14 Ibid.
15 Ibid.
16 A citação divulgada pela imprensa: «Ao olharmos para o que Maomé trouxe de novo, veremos apenas coisas
malévolas e inumanas, tais como as suas ordens de propagação da fé através da espada.»
17 O Islamismo (Iniciação. Cadernos de Informação Cultural, 6ª série), Lisboa, 1942, p. 7.
18 O Islam., p. 6.
19 O Islam., pp. 12‑13.
20 O Islam., p. 16.
21 O Islam., p. 10.
22 Ibid.
23 O Islam., p. 11.
24 O Islam., p. 12.
Resumo
Agostinho da Silva escreveu várias séries de Cadernos de Informação Cultural, com intenção pedagógica, em Portugal, antes de 1950. Este nosso estudo incide em dois desses
cadernos, ambos publicados em 1942: O Cristianismo e O Islamismo. Em ambos os cadernos, o autor começa como historiador, mas continua e termina como pensador, expondo
as suas ideias filosóficas sobre as duas religiões. No tempo em que foi publicado, o caderno
sobre o cristianismo trouxe ao seu autor dissabor bastante para o fazer deixar Portugal
e partir para o Brasil. Hoje, a heterodoxia de Agostinho acerca do cristianismo parece
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inofensiva. Todavia, perguntamo‑nos se o caderno sobre o islamismo não teria hoje uma
repercussão expressiva, que não teve na época em que foi publicado, atendendo às dificuldades da relação entre o Islão e o Ocidente, nos nossos dias. Este estudo revisita os dois
cadernos de Agostinho da Silva, com as inquietações do mundo actual.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Cristianismo; Islamismo; Religião; Ocidente.
Abstract
Agostinho da Silva wrote several series of Booklets of Cultural Information before 1950
in Portugal with a pedagogic goal. This paper focuses on two of those booklets published
in 1942: O Cristianismo (Christianity) and O Islamismo (Islamism). In both booklets the
author begins as a historian, but continues and finishes as a thinker, exposing his philosophical ideas on those two religions. At the time that it was published, the booklet on
Christianity brought the author enough troubles to make him leave Portugal and set off
for Brazil. Nowadays, Agostinho da Silva’s heterodoxy about Christianity seems harmless.
However, we wonder if the booklet on Islamism would not have today a significant repercussion, which it did not have at the time it was published, attending to today’s difficult
relationship between Islam and the West. This paper analyzes two of Agostinho da Silva’s
booklets, bearing in mind the issues of the contemporary world.
Keywords: Agostinho da Silva; Christianity; Islamism; Religion; Western World.
Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge
Maria Leonor L. O. Xavier
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Agostinho da Silva, personificação
do intelectual português
Miguel Real*
1. Introdução: o intelectual português
Não deixa de causar admiração a popularização da figura e do pensamento de Agostinho da Silva no universo cultural luso-brasileiro. Mais do
que Fidelino de Figueiredo, Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro, Eudoro de
Sousa, Eduardo Lourenço, Rodrigues Lapa, Miguel Urbano Rodrigues, Victor
de Almeida Ramos e Fernando Lemos, que viveram e ensinaram no Brasil, a
imagem culturalmente peregrinante e solidariamente empenhada de Agostinho da Silva personificou, para grandes sectores da comunidade pensante luso-brasileira, o arquétipo do intelectual português, incorporando nesta
imagem cultural a dupla face jânica do mestre e sábio tradicional, despojado
e austero, erudito e académico, mas também a do professor e companheiro, do amigo e parceiro empenhado, ambas as faces sintetizadas numa visão
profética e providencialista, mentora do caminho do espírito, crente tanto
nas virtudes do povo do sertão, ao modo de António Conselheiro, embora
de acção pacífica e individual, quanto no inesperado do caminho da cultura,
convertida em força social.
Com efeito, o paradoxo de um pensador tão deslocado do seu tempo
concreto, materialista, empirista e historicista ter ganhado uma espantosa popularização, captando simultaneamente figuras intelectuais e simples populares, releva-nos para a superação desta aparente contradição entre o homem e
o tempo conjuntural, indiciando-nos que tanto a sua obra como a sua figura
austera e desprendida, como sobretudo a sua vida, se prendem mais ao tempo
* Miguel Real é escritor, ensaísta e ficcionista. Publicou os ensaios: Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado
em Memorial do Convento, de José Saramago (1995); Introdução à Filosofia da Saudade no Século XX (1998); Ser
e Representação (1998); Padre António Vieira e o Ano de 1666 (1999); A Geração de 90 – Sociedade e Romance no
Portugal Contemporâneo (2001); Eduardo Lourenço – Os Anos de Formação: 1945-1958 (2003); O Essencial sobre
Eduardo Lourenço (2003). Obras de ficção: A Verdadeira Apologia de Sócrates (1998); A Visão de Túndalo por Eça
de Queirós (2000); Memórias de Branca Dias (2003). E peças de teatro (sempre em co-autoria com Filomena
Oliveira): Memorial do Convento; Os Patriotas; O Umbigo de Régio;e Liberdade, Liberdade!
273
longo da cultura portuguesa e menos aos condicionalismos circunstanciais
do presente. Neste sentido, a figura de Agostinho parece ter encarnado de um
modo paradigmático, por antonomásia, a relação intemporal (ou de tempo
longo) entre o intelectual português e o seu país. Nesta relação, o intelectual,
afastado das instituições que regem política e socialmente o todo de Portugal
e em explícita oposição a estas, por elas perseguido ou delas voluntariamente
ausente e distante, sofre na sua vida individual o drama existencial da pátria,
dividida entre um corpo coeso de políticos e funcionários, reitor do destino
conjuntural da nação, dominando os rituais do poder e dos costumes, e um
grupo culturalmente minoritário que exige para Portugal um modelo social
outro que, posteriormente, passado o tempo de uma, duas gerações, se revela
como salvador. Cumprindo a sua função, o intelectual, de actividade social
marcante na história de Portugal, não tem sido o erudito, o estudioso, o académico, ao modo de Descartes ou de Kant, construtores de novos sistemas
teóricos do mundo, que posteriormente influenciam todas as esferas da actividade humana, revolucionando a sociedade, mas aquele que no seu destino
individual, no seu sofrimento existencial e na sua obra, habitualmente criada
em condições pungentes ou dramáticas, se oferece como sentido de uma alternativa pátria, exprimindo uma alternativa social e cultural que posteriormente se revela mais acertada. Agostinho da Silva, a sua obra, a sua vida errante, as
suas palavras futurísticas, aproximaram-se deste modelo existencial que cobre
a quase totalidade dos intelectuais portugueses, cuja vida, em síntese, se pode
resumir em três momentos paradigmáticos:
1. Uma fase de aproximação, de empenhamento e de voluntária adequação ou de tentativa de transformação do destino geral de
Portugal;
2. Por motivos circunstanciais, que muito diferem de autor para autor, vinculando-o ao seu tempo, o intelectual português sofre, em
certo momento, um profundo desencantamento com o estado
conjuntural do país, cuja consciencialização o força ou a desistir de
transformar Portugal, interiorizando-se, ou exilando-se no estrangeiro, abandonando o seu antigo empenhamento, concentrandose na sua obra estética ou filosófica individual; ou a reiterar o seu
compromisso de transformar Portugal, criando uma obra alternativa à visão social e política dominante;
3. No final da vida ou após a morte, a obra do intelectual português
é recuperada pelas instituições dominantes do Estado, da UniverAgostinho da Silva, personificação do intelectual português
Miguel Real
274
sidade ou da Igreja, que a estatui como um dos mais salientes vectores da cultura portuguesa, passando então a ser tão santificada
pelas novas gerações escolares quanto antes fora abominada e desprezada pelas anteriores.
Este triplo momento, possuidor de uma configuração universalizante, mas também adequada à existência concreta de cada intelectual português, tem constituído, de certo modo, devido à contínua repetição das
condições sociais e políticas gerais conjunturais desde os finais do século
XVI, uma recorrente invariável da cultura portuguesa. Em síntese, têm estas
condições políticas e sociais gerais obedecido a um modelo cultural e civilizacional de manifesta fidelidade a princípios políticos e religiosos reinantes
na Europa do Sul desde o final dos Descobrimentos – e desde este período
a intelectualidade portuguesa tem provocado rupturas com esta visão geral
do mundo, buscando alternativas que tanto se têm identificado com o racionalismo presente na Europa Central e do Norte quanto, por vezes, são com
este divergente, como no caso de Agostinho da Silva, buscando alternativas
genuinamente portuguesas.
2. Sá de Miranda como arquétipo do intelectual português interiorizante
O alheamento, e mesmo a contraditoriedade, entre a visão teórica pessoal criada pelo intelectual português e a mentalidade portuguesa dominante encontra a sua génese e o seu princípio modelar em Sá de Miranda. Com
efeito, este terá freqüentado os Estudos Gerais, onde se doutorou, e onde terá
exercido funções docentes, integrando-se posteriormente no ambiente social
do Paço de Lisboa, praticando as formas poéticas dominantes na corte. Numa longa viagem pela Espanha e pela Itália, Sá de Miranda conviveu com níveis superiores de requinte civilizacional, nomeadamente no Norte de Itália.
No regresso, estanciando junto de D. João III em Coimbra, ter-se-á surpreendido pelo baixo nível de maneiras civilizacionais e pelo alto nível de interesse
financeiro e patrimonial dos fidalgos cortesãos portugueses, exteriorizando
uma real inadaptação ao ambiente reinante na corte, isto é, Sá de Miranda
entra em conflito com a mentalidade dominante nas instituições portuguesas e com o próprio ambiente político. Isola-se, busca o exílio interior – interior no duplo sentido tanto de isolamento no “interior” do país quanto
no de isolamento no “interior” de si próprio. Esta atitude de Sá de Miranda,
radicalmente diferente da de Agostinho da Silva, que busca realização no
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exterior do país, constituir-se-á, doravante, como uma das vertentes do paradigma existencial português: o afastamento voluntário dos centros oficiais
de decisão política e cultural, a desistência expressa de nestes intervir, o isolamento interno, buscando num local rotineiro e pacífico a regeneração espiritual por que vai construindo a sua obra, num ensimesmamento próprio
que se estatui como exílio no interior de si mesmo, gozando, tanto quanto
lhe permitem as possibilidades políticas conjunturais do país, uma aurea
mediocritas que toma para si como forma estrutural e existencial de vida.
Com efeito, um ano após o regresso da Itália culta e renascentista, vanguarda
europeia da arte, da técnica e da ciência, resultado do duplo legado grecoromano e da cúria medieval papal, incompatibiliza-se com a elite dirigente
de Portugal, os modos destes, a sua visão do mundo, o seu calculismo, o seu
privilégio concedido ao interesse material, e abandona a Corte, refugiandose na região de Cabeceiras de Basto, Entre-Douro-e-Minho, onde viveu cerca
de trinta anos (1528–1558), carteando-se com e respeitando a família real,
mas afastando-se decididamente dos cortesãos e da nova orientação política
do Reino de resfriamento do Humanismo europeu por via do bloqueamento
da reforma da Universidade de Coimbra, do manifesto desejo de transformação do Império em empório comercial e do afunilamento da consciência
religiosa por via da recente instauração da Santa Inquisição em Portugal.
Centro de uma pequena corte de aldeia, o exílio interior de Sá de Miranda
evidencia-se como uma atitude funda e recorrente do comportamento reactivo do intelectual português: um exílio interno e interior, que o protege dos
sinais políticos decadentistas, repressores e isolacionistas de Portugal face à
Europa culta do Centro e do Norte, vivendo na solidão e no silêncio político
uma espécie de autoculpabilização ou expiação do que Portugal poderia ser
ou ter sido (tendo todas as condições para isso), mas não é ou não foi devido
à brutalidade de rapinagem económica e especulativa das classes economicamente intermédias e da funda ignorância histórica e cultural das elites
políticas portuguesas.
Assim, esta vertente do paradigma mental, existencial e cultural do
intelectual português evidencia-nos: primeiro, um momento social de participante empenhamento cultural, político, filosófico, estético, científico; segundo, um momento de fundo conflito entre os ideais pessoais regeneradores
do país e as ideias cristalizadas nas instituições culturais e políticas, criadoras
e reitoras da mentalidade conjuntural e popular de Portugal; terceiro, como
reacção, um momento de abandono, de desistência de intentar reformar estética, religiosa, social, culturalmente o país, evidenciando um cruzar de braços
Agostinho da Silva, personificação do intelectual português
Miguel Real
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e um sentimento individual de impotência face ao carreiro maioritário, ao
desenho previsível das coisas, a um futuro colectivo que lhe parece inelutável
e onde, sobretudo, domina o gosto comum da população, não raro disseminado pelas elites e por estas defendido. Este terceiro momento paradigmático é não raro vivencialmente sofrido pelo intelectual português segundo um
cunho penitencial, no sentido de, sabendo-se de gosto e visão diferentes das
da maioria da população, uma autocondenação ou autoculpabilização por
não conseguir esclarecer e rectificar o gosto comum do país, amargurando-se
e penalizando-se interiormente, transformando o seu afastamento dos centros decisórios em um verdadeiro degredo ou exílio.
Sá de Miranda abandonou Lisboa e Coimbra, a corte e a nobreza senhorial, assumindo conscientemente que só assim, exterior aos centros corruptos e corruptores do pensamento, poderia construir a sua obra poética.
Como referimos, esta atitude individual de Sá de Miranda – o primeiro intelectual português a viver existencialmente os três momentos referidos – comporta uma dimensão universalizante no seio da cultura portuguesa, já que, em
outros tempos, outras conjunturas históricas e por via de outros condicionalismos sociais e individuais, a sua atitude evidencia-se paradigmática, repercutindo-se na existência de inúmeros outros intelectuais portugueses: Matias
Aires, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Teixeira
de Pascoaes, Sampaio Bruno, José Régio, Almada Negreiros, António Sérgio,
Sílvio Lima, de certo modo Joaquim de Carvalho, José Marinho, Miguel Torga…, e sobretudo Fernando Pessoa, que, na sua última dezena e meia de anos
de vida, transfigurou Lisboa, principalmente o quarteirão da “Baixa”, em terra
de exílio interno e interior. A vida de Fernando Pessoa, pós-escândalo de Orpheu (1915), figura-se como máximo exemplo desta vertente existencial do
intelectual português.
Deste modo, um dos mais importantes núcleos de autores verdadeiramente criador de inúmeras obras de maior relevância na cultura portuguesa viveu e sobreviveu contra e paralelamente às formas institucionais
e conjunturais dominantes da cultura portuguesa. De Matias Aires, refugiado nos últimos anos de vida na sua quinta da Agualva (Cacém), a Alexandre
Herculano, refugiado em Vale de Lobos, a Manuel Laranjeiro, vivendo uma
existência céptica e pessimista em Espinho, escrevendo uma obra amargurada
que rápido o conduziu ao suicídio, a Teixeira de Pascoaes após o abandono
da direcção de A Águia, acolhido em Gatão, e a José Régio e Miguel Torga,
recolhidos em Portalegre e Coimbra. Entre todos, distinguem-se Antero de
Quental e Fernando Pessoa, o primeiro revolucionando poética (“Questão do
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Bom Senso e do Bom Gosto”), cultural (as “Conferências do Casino”) e politicamente (ligação portuguesa à Internacional dos Trabalhadores e fundação
do Partido Socialista) Portugal, concluindo pela existência de um bloqueamento institucional que feria de morte todos os que ousavam afrontar as instituições portuguesas dominantes, isolando-se, peregrinando por várias terras,
terminando por suicidar-se um ano após a derradeira tentativa de reformulação de Portugal através da criação da Liga Patriótica do Norte; o segundo,
após o fracasso total dos dois números publicados de Orpheu, não se suicida
fisicamente, como o seu íntimo Mário de Sá-Carneiro, mas “suicida-se” socialmente, vagueando por quinze quartos alugados em vinte anos de existência
solitária, embebedando-se dia a dia de aguardente e poesia, morrendo pouco
depois de ter dado à estampa uma nova visão da história de Portugal através
dos versos de Mensagem (1934). Antero interiorizou a decadência de Portugal,
que sabiamente tinha analisado em 1871 em Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares, forçando a sua decadência pessoal, maravilhosamente registada
no volume dos Sonetos, e Pessoa, do mesmo modo a sentindo desde o seu regresso da África do Sul aos dezassete anos, incorporou-a num arrastamento
de intelectual solitário, abdicando de vida pública, vivendo como se para tudo
não existisse excepto para a sua obra. Constituem, Antero e Pessoa, os dois
maiores exemplos da primeira vertente existencial do intelectual português.
3. Agostinho da Silva como o arquétipo do intelectual português
exteriorizante
A vida de Agostinho da Silva obedece a uma outra vertente – a da opção pelo exílio externo após o conflito registado entre a visão pessoal do autor
e a visão colectiva gravada com o selo do poder institucional. Sendo o paradigma o mesmo, existe igualmente um primeiro compromisso activo com
Portugal, uma vontade de conversão das instituições e das pessoas no sentido
perspectivado pelo intelectual português, habitualmente expressa na primeira
fase da sua obra, como aproximação ou contestação (ou as duas) das instituições dominantes; rápido, a insatisfação cultural ou política (ou as duas) vai
crescendo galopantemente, emerge o choque, circunstancial ou premeditadamente acontecido, o intelectual sofre amargamente os efeitos deste choque, é
afastado ou afasta-se (ou as duas hipóteses), silencia-se ou é silenciado, as portas fecham-se-lhe, quer publicar, não lho consentem, quer ensinar, proíbemno, é marginalizado ou é preso e deportado, é exilado ou exila-se voluntariamente. De qualquer que seja a forma, quaisquer que sejam as circunstâncias
Agostinho da Silva, personificação do intelectual português
Miguel Real
278
individuais, o exílio torna-se o seu destino pessoal, sofrendo duplamente a
amargura de uma pátria a seus olhos torta e incorrigível (como os intelectuais
da primeira vertente) e a amargura da ausência desta, duplo húmus donde
frutificará a sua obra posterior, cruzando e unindo o lirismo melancólico motivado pela ausência da pátria ao revolucionarismo cultural das suas ideias de
endireitamento da história de Portugal. Ao exílio (externo) acresce, não raro,
um exílio interior, psicológico, elevando as múltiplas carências económicas
sofridas e a consciência da insatisfação pessoal à figura de um calvário resignado como resgate do estado decadentista de Portugal.
O exílio externo (na Europa ou peregrinando nos longes do Império)
tem sido, desde o século XVI, a marca mais pertinente do intelectual português. Uns, não deixando de se preocupar com Portugal, desinteressam-se
do destino político deste, buscando no estrangeiro ou na solidão do Império a realização da sua obra numa atmosfera social mais propiciatória: Garcia
d’Orta, Francisco Sanches, Camões, o padre jesuíta Inácio Monteiro e Manuel
Teixeira-Gomes, mas também Damião de Góis, Adolfo Casais Monteiro, Manuel Valadares, Fidelino de Figueiredo, Manuel Rodrigues Lapa, Fernando Gil,
bem como inúmeros pintores portugueses do século XX exilados em Paris e
Londres (Vieira da Silva, Paula Rego, Lourdes de Castro, Costa Pinheiro, René
Bertholo, Jorge Martins, Dacosta…).
Outros, representados pelos casos modelares de Cavaleiro de Oliveira,
Bocage, Eça de Queirós, Jorge de Sena, José-Augusto França e Eduardo Lourenço, intentam, segundo o seu múnus estético, descrever com realismo o “Reino
cadaveroso” e a “vil e apagada tristeza” dominante em Portugal. Constitui este
grupo o exemplo do mais impiedoso intelectual português, cuja obra analisa, ao
bisturi do realismo da sua época, o conjunto de malformações políticas e culturais que concorrera para enfermar Portugal de um secular atraso relativamente
aos países da Europa Central. Entre todos, a obra de Eça de Queirós constitui-se
como a mais relevante desta vertente do paradigma do intelectual português.
Finalmente, ainda no campo do exílio externo, emerge o intelectual que
exprime na sua obra, não o Portugal do presente, o Portugal por si vivido, mas
o Portugal desejado, reflexo de um passado glorioso, agora actualizado e projectado num Portugal futuro, pelo qual o intelectual luta, dedicando-lhe a sua existência. António Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento, D. Luís da Cunha,
Luís António Verney, Teodoro de Almeida, no campo do racionalismo e do modernismo europeus, e Padre António Vieira e Agostinho da Silva, no campo do
espiritualismo e do providencialismo genuinamente portugueses, constituemse como as mais importantes figuras deste tipo de intelectual. Ainda que de proRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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veniências filosóficas e culturais diferentes e, até, contraditórias, todos comungam de um desejo de redenção futura da pátria, de crítica e de subversão das
instituições dominantes, substituindo o Portugal real pela projecção histórica
de momentos exaltantes do Portugal passado, fundindo o conteúdo destas duas
dimensões do tempo na realização futura de um novo e glorioso Portugal. Se,
no campo do racionalismo, Luís António Verney se evidencia como a personificação deste tipo de intelectual português, padre António Vieira e Agostinho da
Silva, no campo da tradição providencialista, assumem ambos idêntica personificação, o primeiro por via do majestoso e imperial uso da Língua Portuguesa, o
segundo por via da criação, em plena época de dominância do materialismo e de
omnipotência do dinheiro, de uma alternativa espiritualista para Portugal, ambos sendo, simultaneamente, pensadores do Império, o primeiro de um Império
territorial, militar e religioso, o segundo de um Império cultural e espiritual.
Fundado nas obras de Camões, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entroncado na visão milenarista europeia e na visão nacional sebastianista,
a obra filosófica e cultural de Agostinho da Silva constituiu-se como uma das
mais fundas e permanentes alternativas especulativas ao domínio institucional
do racionalismo, do cientifismo e do positivismo europeus, que têm maioritariamente influenciado a cultura portuguesa desde os finais do séculos XVIII, e
corresponde, decerto, a uma especificidade cultural portuguesa desde a lenda da
aparição de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de S. Mamede e, sobretudo,
desde a criação de as Trovas de Bandarra e da derrota nacional em Alcácer-Quibir, em 1578. Subtraído deste circunstancialismo histórico e elevado a esquema
mental universalizante, o providencialismo português, de que Agostinho da Silva foi máximo representante na segunda metade do século XX, alimenta e personifica-se nas obras dos três maiores escritores de língua portuguesa (Camões,
António Vieira e Fernando Pessoa), gozando igualmente de amplo privilégio nas
obras de D. João de Castro neto, frei Bernardo de Brito, frei Sebastião de Paiva,
Teixeira de Pascoaes, Sampaio Bruno, Augusto Ferreira Gomes, António Quadros, António Telmo, Dalila Pereira da Costa, Manuel Joaquim Gandra, e, de
certo modo, Paulo Borges, mas também, numa vertente laica e vanguardista, do
último António José Saraiva. O providencialismo não é, em Portugal, exclusiva
e intrinsecamente religioso; pelo contrário, as diversas revoluções que, de cinquenta em cinquenta anos, o país tem sofrido desde 1820 comportam sempre
– e exultantemente –, uma vertente sagrada e escatológica, de fundo providencialista e milenarista, pela qual os seus dirigentes e participantes sonham ser a
“hora!” ou o momento mítico refundador ou recriador do mundo, como se de
novo se instaurasse o momento colectivamente pulsional das Descobertas ou se
Agostinho da Silva, personificação do intelectual português
Miguel Real
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definitivamente se instaurasse o Portugal que nunca houve. Nesta vertente da
cultura portuguesa, Agostinho da Silva estabelece a ponte, por um lado, entre o
providencialismo clássico de Camões e padre António Vieira, o primeiro fundado em parâmetros medievais e renascentistas e o segundo em parâmetros bíblicos e missionários, ambos postulando um quinto-imperialismo das armas e das
consciências, o providencialismo poético de Fernando Pessoa e Augusto Ferreira
Gomes da primeira metade do século XX, fundado já num quinto-imperialismo
da língua e da cultura, e, por outro lado, a nova geração do grupo da “Filosofia
Portuguesa”, reunida em torno das revistas 57 e Espiral, a que posteriormente se
ligará o estro individual de Dalila Pereira da Costa.
Fontanelas, Sintra, 15 de Outubro de 2006
Resumo
A vida e a obra de Agostinho da Silva sintetizam, na segunda metade do século XX, uma das
correntes mais profundas da cultura portuguesa. Nascidos na oposição ao poder político, os
intelectuais portugueses dividiram-se em dois grupos: 1- a auto-interiorização, o isolamento
dos intelectuais portugueses no interior do país, vivendo em solidão, desfrutando de uma
aurea mediocritas, este grupo específico criou um grande trabalho, que será recuperado pelas
futuras gerações; 2 – os intelectuais mais ativos, vivendo no exílio, sofrendo a decadência da
terra-mãe, projetaram para o futuro a salvação da pátria, por meio da retificação dos grandes momentos históricos do passado, tal qual Agostinho da Silva o faz.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Cultura Portuguesa; intelectuais.
Abstract
Agostinho da Silva’s life and work synthesize, in the second part of the twentieth century, one of the two deepest streams of Portuguese culture. Born in political opposition,
Portuguese intellectuals were divided in two groups: 1 – the self interiorization group,
of intellectuals living in isolation in the countryside, enjoying an aurea mediocritas, who
have created a great work to be recovered by future generations; 2 – the most active intellectuals, living in exile, suffering because of their motherland’s decadence, who designed
a future salvation for their nation through the revival of great historical moments, as did
Agostinho da Silva.
Keywords: Agostinho da Silva; Portuguese Culture; Intellectuals.
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A Escola como Memória do Futuro1
Olga Pombo*
Antes de alinhar algumas palavras sobre Agostinho da Silva, quero declarar, com total sinceridade e autêntica modéstia, não pretender mais do que
aludir a dois ou três aspectos que mais vivamente me impressionam na sua
obra, referir duas ou três questões que mais profundamente me interpelam,
recordar duas ou três páginas que mais irremediavelmente me fascinam. Páginas de um português brilhante e puro, carregado de sabedorias antigas e
adoçado pelo aroma de paisagens distantes, de um português que comove pelo reencontro que produz com aquilo que, porventura, mais profundamente
constitui a nova pátria – a língua portuguesa.
Disso apenas aqui se tratará! Destacar algumas das suas teses. Teses fortes, ousadas, sempre sugestivas, frequentemente inovadoras, por vezes escandalosas. Propostas todas com tal liberdade que o leitor se sente igualmente livre
para discutir, rejeitar ou aceitar, discordar totalmente. Na obra de Agostinho da
Silva, o acordo fica tacitamente estabelecido dadas as primeiras linhas. Se o autor se dá a si mesmo a liberdade de escrever o que pensa e, mais ainda, de pensar
o que escreve – o leitor –, esse fica obrigado a uma equivalente liberdade.
***
A questão educativa encontra-se atravessada (hoje porventura cada
vez mais) por inúmeras antinomias facilmente reconhecíveis no diálogo de
surdos das pedagogias. Educar pelo constrangimento ou pela liberdade? Pela
* Olga Pombo é licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Mestre em Filosofia Moderna pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e doutorada em
História e Filosofia da Educação pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É actualmente Professora
do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenadora do Centro
de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL). Entre outros títulos, publicou: Quatro Textos
Excêntricos: Filosofia da Educação (Hannah Arendt, Eric Weil, Bertrand Russell e Ortega Y Gasset, selecção, tradução e prefácio). Lisboa: Relógio d’Água, 2000, 105 p.; A Escola, a Recta e o Círculo. Lisboa: Relógio d’Água,
2002, 316 p.; Interdisciplinaridade: Ambições e Limites. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, 203 p.; Unidade da Ciência:
Programas, Figuras e Metáforas. Lisboa: Editora Duarte Reis, 2006, 324 p.; “Agostinho da Silva. Um Arquétipo
Vivo do Professor”. In: Renato Epifânio, Romana Valente Pinho e Amon Pinho Davi (orgs.). In Memoriam de
Agostinho da Silva: 100 Anos, 150 Nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006, pp. 354-359.
282
disciplina ou pelo apoio à criatividade? Ir ao encontro de prazer do educado,
dos seus interesses, dos seus desejos ou defender que só o esforço é verdadeiramente educativo? Educar a sensibilidade ou a inteligência? Investir no fazer
ou no conhecer? Partir do vivido, do imediatamente experienciado ou do já
construído, do já logicamente consistente? Apostar na informação aditiva ou
na estruturação cognitiva? Promover o reconhecimento (compreensivo) do
passado ou preparar (tecnicamente) para o futuro? Apontar para a vida activa
(formação profissional) ou preparar para o ócio, para o tempo livre,2 o desemprego, o não-trabalho de que falava Agostinho da Silva3 e que porventura
espreita o destino dos jovens de hoje?
Cada uma destas antinomias (e não pretendemos de modo algum esgotar a lista do que seria a sua enumeração completa) está suportada por diferentes concepções do que é o homem, traduz-se na consideração de diferentes
finalidades educativas e implica um conjunto de opções decisivas quanto ao
tipo de acção que se defende dever o educador exercer sobre o educado.
Assim, por exemplo, se se pensa que o homem é uma tábua­ rasa­ onde
nada está escrito (Aristóteles) e onde a educação se inscreve­ como segunda
natureza, um campo por cultivar (Erasmo) no qual podem nascer diversos
frutos consoante as sementes que a educação­ aí lançar, a cera mole (Comenius) onde a educação imprime as suas marcas, a argila húmida e sem forma
(Montaigne) que a educação permite moldar ou modelar, o riacho sem leito
e sem destino (Locke) que só a educação orienta e guia, então a educação é
um processo determinante da construção do humano. Sem ela o homem
não seria homem. Com ela o homem é aquilo em que se torna. A educação
tem então como finalidade promover na criança ou no jovem a aquisição
disciplinada de um conjunto de comportamentos e competências julgadas
convenientes (necessárias) pelo corpo social a que a criança ou o jovem se
devam adaptar.
Pelo contrário, se se pensa que o homem é um ser dotado de consistência interna, de potencialidades e qualidades (pré-)determinadas, um ser que
contém em si o princípio do seu próprio desenvolvimento, então a educação é
um processo que se deve desencadear em função de leis próprias ao educado,
leis já fixadas desde sempre ou que, progressivamente, se vão revelando no
tempo. A educação terá então a forma socrática da descoberta, da actualização
de possibilidades, da rememoração.
Que fazer face a estas antinomias? São várias as soluções possíveis.
A primeira solução – a mais fácil, a menos interessante – consiste na
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tomada de partido relativamente aos termos educativos em oposição no interior das antinomias, isto é, no esquecimento (ou desistência) do esforço
de pensar a antinomia nas suas implicações antropológicas e na apressada
constituição de opções doutrinárias do sinal contrário. Cada uma dessas posições doutrinárias toma a forma de uma pedagogia, uma orientação normativa da acção educativa com a sua lógica interna, os seus valores mais ou
menos explícitos, os seus pontos de partida quase sempre insuficientemente
explicitados. Ficam assim criadas as condições para o já aludido “diálogo de
surdos das pedagogias”, cada qual defendendo os seus próprios princípios e
criticando, a partir deles, a perspectiva contrária (infelizmente, é a isso que,
muitas vezes, se chama “crítica”). Far-se-á, por exemplo, a crítica da pedagogia não-directiva a partir de uma perspectiva directivista ou, vice-versa, a
crítica do directivismo pedagógico a partir de um posicionamento doutrinário não-directivista.
Agostinho da Silva recusa com veemência esta solução. Assim se compreende, creio eu, o seu tão repetido grito: “sou contra a pedagogia”,4 ou “excelente será declarar eu logo que não acredito demais no valor de tal preparação
pedagógica, e que bons pedantes se fabricam com tais matérias” (Ed. Port.,
p. 62). Como Agostinho da Silva diz, não temos senão que nos rir desse incessante martelar” de que é feita a pedagogia, das “receitazinhas didácticas de que
vivem os pedagogos profissionais” (Aproximações, p. 119). Não temos senão
que sorrir de todos aqueles que, em vez de procurarem moldar-se a si próprios, se dedicam à “escultura sobre os outros” (Aproximações, p. 84).
A segunda solução consiste também em tentar fugir à lógica da antinomia, em procurar escapar à sua aporeticidade procurando determinar, de
forma “científica”, os elementos constitutivos do que se seria um acto educativo (digamos) bem-sucedido. É a lógica descritiva e aparentemente neutra
das chamadas “ciências da educação”, vítimas (elas também) dos mecanismos
de decomposição analítica que elas próprias preconizam. Solução laboriosa,
é certo, mas míope e ingénua. Solução que, propondo-se ultrapassar a lógica
antinómica, na verdade o que faz é escamotear as dificuldades que nela estão
envolvidas.
Também não é esta a solução para que aponta Agostinho da Silva. Como ele diz, com indisfarçável enfado, logo na primeira página de Educação de
Portugal, “já existem muitos trabalhos que descrevem o estado actual da educação com todos os pormenores da estatística e, na medida do possível, com todas
as considerações pertinentes sobre as circunstâncias de economia, de objectivos
A Escola como Memória do Futuro
Olga Pombo
284
cívicos e programáticos e de possibilidade de execução que permitem, facilitam
ou proíbem que se eduque” (op. cit., p. 7). E, entendamo-nos, “Já existem”, quer
dizer, já bastam!
No entanto, quer-nos parecer, é possível ainda uma terceira solução. Ela
passa pela recusa, quer da adesão expedita a uma opção pedagógica mais ou
menos convicta e intransigente, quer da solução “cientista” de fuga à inquietação antinómica. A terceira solução é a mais filosófica. Ela implica o respeito
pela antinomia enquanto destino da própria razão que, como mostrou Kant,
se constrói justamente nesse esforço de pensar para lá dos seus limites. Ela implica a coragem de enfrentar essas antinomias naquela que é a sua formulação
mais geral e abstracta (mas também mais grave e profunda), aquela que organiza toda as outras, a saber: reconhecer que, subjacente a todas as antinomias
educativas, se joga uma opção fundamental pelo humano do homem.
Educar é cultivar no indivíduo o seu ser total ou confirmar a pertença do
homem à comunidade dos homens? Educar é apoiar, ajudar, estimular, apenas
proteger o livre desenvolvimento das potencialidades individuais ou promover,
orientar, provocar, impor mesmo a adaptação do educado aos valores e saberes da comunidade social em que está inserido? De um lado, sussurra ao nosso
ouvido a palavra de Rousseau, o programa radical de uma educação negativa: o
homem nasce bom, a sociedade é que o perverte e corrompe. Assim sendo, o que
é que o educado deve fazer? “Muito sem dúvida! Impedir que alguma coisa se
faça”5. Do outro lado, ouvimos (por exemplo) a voz de Watson:
“Dai-me doze crianças, sãs e bem constituídas, e deixai-me escolher
o meio em que as hei-de educar. Garanto-vos que levarei cada uma
a tornar-se o tipo de especialista que eu quiser – médico, advogado,
comerciante, chefe, criado, mesmo pedinte e ladrão, e isto independentemente dos seus talentos, tendências, habilidades, vocações e
raça dos seus antepassados.”6
A terceira solução supõe ainda a decisão comprometida por um dos
pólos desta antinomia central na qual (a nosso ver) a questão educativa se
encontra irremediavelmente clivada.
É esta justamente a solução adaptada por Agostinho da Silva:
“É útil que fique bem claro o que penso sobre educação em dois ou
três pontos essenciais: creio, primeiro, que o mundo em nada nos
melhora, que nascemos estrela de ímpar brilho, o que quer dizer, por
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um lado, que nada na vida vale o homem que somos, por outro lado,
que homem algum pode substituir a outro homem, (…) que todo o
homem é diferente de mim e único no universo; que não sou eu, por
conseguinte, quem tem de reflectir por ele, quem sabe o que é melhor
para ele, não sou eu quem tem de lhe traçar o caminho, com ele só
tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever: o de o ajudar a ser
ele próprio” (Ed. Port., p. 8).
Agostinho da Silva determina claramente os dois pólos da antinomia:
“Educar não é levar ninguém a ser isto ou aquilo, não é tentar influir de qualquer modo em sua orientação futura, mas dar meios de expressão à sua capacidade criativa” (Ed. Port., p. 39). Agostinho da Silva reconhece de forma explícita
a sua herança rousseauista: “A ideia do homem selvagem (…) tem que se pôr de
novo como um conceito positivo” (Ed. Port., p. 9). Ou então: “É a criança que
temos de considerar o bom selvagem, estragando-a, deformando-a, inutilizando-a o menos que nos seja possível, defendendo o seu tesouro de sonho, jogo e
criação, a sua espontaneidade e a sua malícia sem maldade, o seu entendimento
(...) e o seu amor do mundo” (ibid). Agostinho da Silva retira de imediato as
conseqüências educativas da sua opção antropológica: “Acreditando, pois, que
o homem nasce bom (…) a educação não poderá ser mais do que fornecer a cada um tudo o que solicite para que a sua pessoa se possa desenvolver e afirmar”
(Ed. Port., pp. 10-12). A educação não é “fazer que alguém se modele segundo
o que pareceu mais desejável a quem já tinha o poder de modelar” (Ed. Port.,
p. 17). E, numa formulação lapidar, muito próxima do conceito de educação
negativa em Rousseau escreve: “A educação não terá nenhuma outra tarefa senão a de deixar que a bondade inicial esplenda e seja” (Ed. Port., p. 12).7
Todos sabemos como Agostinho da Silva se empenhou coerente e persistentemente no desenvolvimento desta opção!
Mas esta opção rousseauista arrasta como consequência a condenação
da Escola, desses “risíveis estabelecimentos a que chamamos colégios”, como
dizia Rousseau no Émile.8
E, na verdade, encontramos em Agostinho da Silva, não apenas uma crítica à escola que há – “pelos tempos fora, temos querido que a escola, escola
chinesa ou escola alemã, escola chamada progressista ou escola retrógrada, seja
fundamentalmente uma fábrica de fortes” (Ed. Port., p. 10), “a missão principal
da Escola tem sido a de criar profissionais de valor médio e não os inovadores”
(Aproximações, p. 113) – mas também uma condenação da própria ideia da Escola. Toda a escola está fundada sobre os princípios da posse e da rivalidade. É
por isso que “cada aluno procura aprender por si e para si, (…) com o pensaA Escola como Memória do Futuro
Olga Pombo
286
mento de que é necessário aparecer na vida bem armado, pronto à conquista do
bom lugar e à defesa entre os possíveis assaltantes” (Sanderson, p. 42). É por isso
que, na escola, o aluno procura “ultrapassar os camaradas” e sente-se “sobretudo
satisfeito quando foi o primeiro da classe” (Sanderson, p. 43). É por isso que a
comunicação do saber é feita pelo aluno ao mestre como “uma prova puramente
pessoal” e as classificações são dadas pelos professores “para ordenar e hierarquizar os alunos e tornar bem nítidas as suas diferenças (ibid).
É por isso também que quando, ao abrir a porta, D. Rolinha perguntou:
– “Sem aula hoje?”
Agostinho da Silva respondeu:
– “Sem aula, Dona Rolinha. É a única coisa boa que as escolas têm.
– Na Europa também?
– Na Europa mais, Dona Rolinha. Porque ali a mania é que os alunos
têm de aprender o que se lhes ensina.
– E no Brasil não é isso mesmo?
– Não, Dona Rolinha. O Brasil já está com o futuro; infelizmente
ainda é obrigatório ir à escola, mas já não é obrigatório aprender.
– E os meninos, quando forem grandes [perguntou D. Rolinha]
E Agostinho da Silva responde:
– “Pelo menos não terão desaprendido de ser gente, que é o que
acontece com quem estuda!”
(Lembranças Sul-Americanas, p. 31)9
Condenação também da Universidade. “Apesar das suas origens fraternas, [a Universidade tem sido] uma instituição separada do grande público e
vivendo como que sobranceira a ele (…), grande parte das suas funções [têm
consistido em] soltar diplomados que fazem do seu diploma uma carta de alforria” (Aproximações, p. 61). Ela tem servido “apenas para criar um falso escol
e os que se comportaram de outro modo o conseguiram apesar da Universidade, não por ela” (Ed. Port., p. 43). Como Agostinho da Silva confessa nas suas
Lembranças Sul-Americanas, “no íntimo dos íntimos considero a Universidade
como uma instituição inteiramente ultrapassada” (op. cit., p. 17).
Como conciliar estas teses com o seu entusiasmo de bandeirante fundador de Universidades? De incansável e polimorfo professor das Humanidades
à Entomologia?
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E como conciliar estas teses com outras, igualmente fortes e lapidares,
em que Agostinho da Silva faz o elogio da Escola, se dedica pacientemente
a desenhar os contornos de uma “escola que reforme o Mundo” (Ed. Port.,
p. 70), “escola para estudar e para meditar” (ibid), “escola que deixe de ser
a prisão em que habitualmente corrigimos a delinqüência de se ser criança”
(Ed. Port., p. 63) e que, pelo contrário, “responda ao apelo que vem do íntimo
das crianças para que as deixem trabalhar com amor e criar com liberdade”
(Sanderson, p. 44), “eixo fundamental da preparação do homem, ou melhor, da
libertação do homem para as tarefas de entender o Mundo” (Ed. Port., p. 63),
“pequenas escolas, bem espalhadas por todo o país” (Ed. Port., p. 54). Escola
que “a ninguém recusará a entrada”, que atenderá “a quantos se apresentem”
(Ed. Port., p. 51), sem castigos nem prémios (cf. Sanderson, p. 46), sem obedecer ao “ideal supremo de fazer passar a todos pelos mesmos moldes”, mas,
pelo contrário, procurando “satisfazer os gostos de cada um dos alunos (…),
de modo a que na escola houvesse a variedade de tendências e de ocupações
que constitui uma das belezas do mundo” (Sanderson, p. 48).
Escola universitária também em que “não haverá doutrina que se imponha, mas simplesmente amor que se liberte, em que não haverá mestres
que ensinem, haverá simplesmente mestres que estudam” (Aproximações,
p. 62). Universidade de que se “sairá não com o espírito de mandar, mas com
o espírito de servir” (ibid).
Como explicar esta contradição?
Estaremos perante um desses paradoxos que Agostinho da Silva gostava de utilizar como definição da sua identidade: “Como vejo sempre no heterodoxo o ortodoxo do outro lado, creio que aquilo que nos pode unir é o paradoxo.”10 E mais adiante, “Considerando-me paradoxal, dirigiu-me o melhor
elogio que eu poderia esperar” (ibid).
Pensamos que não! Por duas razões fundamentais.
Primeira razão: porque o rousseauismo de Agostinho da Silva convive
de mãos dadas com o seu optimismo fundamental: “Apenas o que se sabe de
seguro é que todo o passado se resolve numa lenta, incerta caminhada para
um futuro de cada vez maior conhecimento do homem em si próprio e da
humanidade que o cerca; de mais seguro domínio das forças físicas (…); de
maior entendimento de nossas possibilidades de criação (…); de mais fundo
desejo de que deixemos para trás bem depressa os tempos em que a força pode
valer mais do que a inteligência e a sensibilidade” (Ed. Port., pp. 37-38).
A Escola como Memória do Futuro
Olga Pombo
288
Quer isto dizer que Agostinho da Silva é um Rousseau que acredita no
progresso! Ora, um tal progresso não teria sido possível sem a Escola!
Assim tem sido, apesar de tudo! “Mal sabendo que teria por seu infiel
descendente tanto catedrático”, a escola “conseguiu, apesar de tudo, cumprir
o seu dever, tanto quanto as circunstâncias gerais lho permitiram; apesar de
todas as pressões de Economias, Estados e Igrejas, sempre houve dentro delas
quem defendesse acima de tudo o direito à pesquisa”, quem levasse “por diante
o trabalho de construção científica” (Ed. Port., p. 48, sublinhados nossos).
Assim é de facto. Invenção recente, tão recente como a ciência dos homens, desde os gregos que a escola tem por missão fazer participar cada vaga
de recém-chegados ao mundo (da natureza) nas belezas do mundo da cultura
(científica, artística, filosófica), construída pelas gerações anteriores. O seu objectivo é permitir não apenas salvar (conservar) esse legado cultural – isso já a
narrativa mítica o permitia – mas também continuá-lo, prolongá-lo!
Como diz Agostinho da Silva, ao aluno devem ser dados a ver os “últimos
progressos da ciência” e a “entrever os mistérios que ainda há a esclarecer”, “o aluno tem de saber, sob pena de se lhe falsear toda a perspectiva da vida, que a ciência
é um trabalho de gerações” (Sanderson, p. 53).
Se não somos como as abelhas, eternamente repetindo os mesmos gestos e palavras, é porque a Escola constitui o homem como sucessor. Como
aquele que herda do passado, que vai atrás, à raiz, à fonte e que, por isso – justamente por isso – adquire condições para continuar, para construir o futuro.
Cito outra vez Agostinho da Silva: na escola – “templo da humanidade” – se
medita “sobre o esforço das gerações passadas, encontrando no que foi a grande força impulsora para que se conquiste o futuro” (Sanderson, p. 65).
Segunda razão: porque o optimismo rousseauista de Agostinho da Silva está contaminado por um Socratismo secreto, por um Platonismo militante
que faz da criança o paradigma do homem e que pensa o professor sob a forma de reminiscência.
O que importa então é “salvar a criança no homem”, “proteger o mais
possível o que da criança sobrou no adulto” (Ed. Port., p. 13), “multiplicar
aquelas escolas em que a criança aparece como criador” (Aproximações, p. 44)
Por quê? Porque, se na criança já está o homem (como diria Rousseau),
a escola é o lugar de uma criação que tem a forma da reminiscência (como
diria Platão). Porque, se tudo está dado à partida na criança, a escola não pode
ser senão o lugar onde aprender é recordar. Lugar onde a criança, à medida
que vai crescendo, se vai recordando do que ela é. Lugar onde a criança recorda aquilo que um dia será, aquilo que um dia saberá.11 Ou, como reconhece
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Agostinho da Silva, “foram injustos os educadores quando defenderam que as
crianças podem entender o mesmo que os adultos, porque na realidade podem entender mais” (Aproximações, p. 49).
Não admira, pois, que a criança tenha em Agostinho da Silva o estatuto
de profeta, aquele que, ao contrário do visionário, vê o futuro como memória e
não como antecipação ou utopia.12
Marcada cada ano pela sucessão de vagas de novos estudantes, renascendo cada ano pela chegada de novos alunos, despedindo-se também cada
ano de antigos alunos e velhos professores, a Escola é um lugar de esplendor,
de resistência, de luta contra o esquecimento, contra a irreversibilidade do
tempo, contra a irrevogabilidade da morte.
Memória do Futuro, ela inscreve – no caminho sempre para diante de
condição humana – o retorno, o regresso aos tesouros acumulados do passado
e – assim – dá continuidade ao elo da criação.
Não é, pois, de estranhar que o Professor Agostinho da Silva possa ter
definido o seu trabalho como professor do seguinte modo:
“Nas duas ou três vezes em que me tem acontecido ensinar, nunca
pude ter nenhuma espécie de gosto em transmitir aquilo que já sabia,
em dar aulas brilhantes, como se costuma dizer; creio que isso é verdadeiramente uma função dos assistentes, isto é, daqueles meninos promissores, que já sabem o bastante para ensinar, mas estão ainda muito
novos para darem mais importância ao gosto infinitamente superior
de estudar e aprender; por mim, sempre preferi levar uma turma a
iniciar-se comigo num assunto que eu não sabia: faz-se aqui uma espécie de camaradagem de guerra, de todas a melhor, porque se forjou
no perigo, no avanço pelo desconhecido, na aventura” (Lembranças
Sul-Americanas, pp. 17-18).
Não é de estranhar que Agostinho da Silva seja o Professor de quem
não nos queremos despedir!
Bibliografia
Agostinho da Silva, As Aproximações, Lisboa: Guimarães, 1960.
____. Educação de Portugal, Lisboa: Ulmeiro, 1989.
____. Lembranças Sul-Americanas, Lisboa: Cotovia, 1989.
A Escola como Memória do Futuro
Olga Pombo
290
Agostinho da Silva, Sanderson e a escola de Oundle, Lisboa: Ulmeiro, 1990.
____. “Entrevista com Agostinho da Silva” dirigida por J. Serrão, J. Lopes Alves, Nuno Nabais, A. Braz Teixeira e J. Pedro Serra, Filosofia,
n.º 2 (1985), pp. 49-183.
Jean-Jacques Rousseau (1762), Émile ou de l’éducation, Paris: Flammarion,
1966.
John B. Watson (1930), Behaviorism, New York: Norton, 1967.
Notas
1 Texto de uma conferência apresentada no Colóquio Homenagem a Agostinho da Silva, realizado nos dias
14 e 15 de Fevereiro de 2001, Sala do Arquivo, Paços do Concelho, Lisboa, a convite da Associação Agostinho da
Silva.
2 Como Agostinho da Silva escreve, “os avanços tecnológicos estão ao nosso dispor e para o único fim em
que serão úteis, para nos darem tempo livre”, Cf. Educação de Portugal, p. 50 (sublinhados nossos). Também em
As Aproximações, o tema do elogio do ócio, recorrente na obra de Agostinho da Silva, aparece ligado à consideração optimista dos efeitos futuros do progresso técnico (cf., op. cit., p. 93).
3 Recordo ainda vivamente as palavras que uma tarde, em casa de Agostinho da Silva, o ouvi declarar: o que
importa não é tanto lamentar o desemprego mas, compreender o progressivo desaparecimento do trabalho e prepararmo-nos para essa libertação!
4 “Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 162.
5 Como Rousseau escreve no Émile: «Pour former cet homme rare, qu’avons nous à faire? Beaucoup, sans
doute: c’est d’empecher que rien ne soit fait» (op. cit., p. 41).
6 John B. Watson, Behaviorism, p. 104.
7 Na “Entrevista com Agostinho da Silva” publicada pela revista Filosofia, Agostinho da Silva dizia: “O que
importa não é educar, mas, evitar que os homens se deseduquem” (op.cit., p. 162).
8 “Je n’envisage pas comme une instituition publique ces risibles établissements qu’on appelle colèges”, Émile,
p. 40 (sublinhados nossos).
9 Como, de forma também risonha, Agostinho da Silva escreve em As Aproximações, “Creio que uma grande
e cómica surpresa aguarda em outra vida os que nesta foram suficientes e sábios [quando descobrirem] que
terem enviado seus filhos à escola apenas os atrasou em verdadeira cultura” (op. cit., pp. 48-49).
10 “Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 182.
11 O platonismo militante de Agostinho da Silva é muito claro, por exemplo, na seguinte passagem: “Cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à sua volta. Porque cada um de
nós é um ente extraordinário, com lugar no céu das ideias e, se nos soubermos lavar da lama que se nos pegou
quando aparecemos na terra, seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que em nós é extraordinário,
e transformaremos o mundo” (“Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 162). Toda esta passagem é eloquente
acerca da equivalência estabelecida por Agostinho da Silva entre “desenvolvimento” e “reencontro de si”.
12 “O que se torna inteiramente necessário (...) é multiplicar aquelas escolas em que a criança aparece como
criador, na literatura, na música e nas artes plásticas (...); e de novo se poderá dizer que, quando cada um dos
adultos for como aqueles pequeninos, o mundo estará salvo; de novo terão sido as crianças os mensageiros de
Deus” (Aproximações, p. 44, sublinhados nossos).
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Resumo
Partindo do reconhecimento do carácter antinómico que atravessa a questão educativa,
procuraremos ver de que modo Agostinho da Silva faz confluir na ideia da Escola o seu
rousseauismo optimista e o seu platonismo militante. Aparentemente paradoxal, a figura
da Escola surge então em todo o seu esplendor. Não como dispositivo de modelação, lugar
de recuperação do adquirido ou de (mera) reinvenção do passado mas como Memória
do Futuro, comunidade de estudo onde o professor ensina aquilo que não sabe ainda e o
aluno recorda aquilo que um dia saberá. Templo laico onde se espera “que em nós brote
aquilo a que viemos” (Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, p. 53).
Palavras-chave: Filosofia da Educação; Antinomias; Escola; Profeta; Memória.
Abstract
From the recognition of the antinomous character which pervades the question of education, we will seek the way Agostinho da Silva links his optimistic Rousseauism to his
militant Platonism in his idea of School. Apparently paradoxical, the School then rises in
all its splendour. Rather than as a molding mechanism, as a place for recovering the preacquired or for (mere) reinvention of the past, the School is seen as Memory of the Future,
a study community where the teacher teaches what he does not know yet and the student
remembers what one day she/he will know. It is a laical temple where one expects to see
“that for which we came blossom” (Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo,
p. 53).
Keywords: Philosophy of Education; Antinomies; School; Prophet; Memory.
A Escola como Memória do Futuro
Olga Pombo
292
Do “nada que é tudo”.
A poesia pensante e mística
de Agostinho da Silva.
Paulo Borges*
“Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus”
(Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho)
Uma das faces menos estudadas do multiforme Agostinho da Silva é, a
nosso ver, a de poeta. Poeta que, na linha de uma das tendências mais singulares de algum do mais original pensamento português, como se verifica em
Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, nos surpreende
pela densidade pensante, metafísica e mística, conciliando o rigor da forma e
da ideia, o simples e o elaborado, a clareza apolínea da palavra e a dionisíaca
ambiguidade do sentido, tudo fluindo numa toada inspirada, cantante e dançarina que seduz e arrebata o entendimento para a iluminativa coincidência
e transcensão dos contrários e antinomias meramente conceptuais em que
habitualmente enredamos a nossa vida mental.
Referimo-nos particularmente a Quadras Inéditas, ao gosto popular, e
* Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro e investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Entre muitos outros títulos, são de sua autoria: a)
poesia: Trespasse (Lisboa, Edições do Reyno, 1985); Ronda da Folia Adamantina (Lisboa, Átrio, 1992); b) ensaio
filosófico: A Plenificação da História em Padre António Vieira. Estudo sobre a ideia de Quinto Império na “Defesa
perante o Tribunal do Santo Ofício” (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995); Agostinho da Silva. Uma
Antologia (Lisboa, Âncora Editora, 2006); Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva
(Lisboa, Âncora Editora, 2006); c) romance: Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva
(Lisboa, Ésquilo, 2006); d) tradução: Dalai-Lama, Estágios da Meditação, Lisboa, Âncora Editora, 2001, 200 p.
(Stages of Meditation, Ithaca, Snow Lion Publications, 2001); Tsangyang Gyatso, VI Dalai-Lama, Cantos de Amor,
Lisboa, Mundos Paralelos, 2005; Padmasambhava, Livro Tibetano dos Mortos, Lisboa, Ésquilo, 2006; Coordenou
a edição das Obras de Agostinho da Silva, na Editora Âncora e no Círculo de Leitores, e coordena o projecto de
levantamento, transcrição e estudo do espólio de Agostinho da Silva, no Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. É actualmente Presidente da União Budista
Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva, bem como Vice-Presidente da Casa da Cultura do Tibete. Dirige
o Centro de Estudos Agostinho da Silva e preside à Comissão das Comemorações do Centenário do Nascimento
de Agostinho da Silva.
293
a Uns Poemas de Agostinho, que nos oferecem uma magnífica síntese de alguns
dos pontos mais profundos e difíceis do pensamento de Agostinho da Silva,
sobretudo no que respeita aos seus e universais grandes temas e questões, como Deus, a criação/manifestação, o homem e o mundo, constituindo-se como
um complemento fundamental das suas obras filosóficas. Na linha de muitos
dos aforismos de Pensamento à Solta,1 nestas duas obras apreendemos, como
se indicará, e sem prejuízo da originalidade, um implícito diálogo com algumas intuições maiores da sabedoria oriental e, no que respeita ao Ocidente,
uma também implícita relação com as grandes linhas da teologia negativa e
da experiência mística.2 Por esse mesmo motivo, o pensamento de Agostinho
está na continuidade de alguns dos mais originais vislumbres do pensamento
português contemporâneo, o qual, naquela vertente que se nos afigura mais
singular e típica, de Antero e Bruno a Pascoaes, Leonardo Coimbra e Pessoa e
a José Marinho e Eudoro de Sousa, se constitui no mesmo intercâmbio com
a poesia, o saber oriental e a tradição neoplatónica, onde a metafísica se abre
para uma experiência interior e directa do absoluto, que podemos designar,
pela sua inefabilidade última, de mística. Verdadeira ponte, de duplo sentido,
entre Ocidente e Oriente, num porventura tardio, mas mais autêntico cumprimento da nossa vocação marítima,3 a vertente do pensamento português de
que Agostinho da Silva é notável expoente afigura-se, hoje, no crítico dealbar
do terceiro milénio, como um precioso contributo para o tão premente diálogo inter e trans-cultural, inter e trans-religioso, e para o desenvolvimento de
uma consciência planetária e cósmica, iluminada pelo sentido do Infinito e
da totalidade.4 Para o desenvolvimento ou desvelamento, se quisermos, dessa
trans-antinómica plenitude e harmonia última do mundo e da consciência
que o pensador, de acordo com as metáforas tradicionais do nosso pensamento profético-messiânico, designou de Quinto Império, Império do Espírito Santo ou Ilha dos Amores .5
Cremos que o âmago do pensamento de Agostinho da Silva reside
numa particular experiência/visão de Deus, de onde derivam as suas restantes
concepções fundamentais.6 E o que aí predomina, como nestas duas obras poéticas plenamente se confirma, é a intuição de Deus como “nada que é tudo”,7
o que desde logo destina o seu saber/sabor ao paradoxo não só da expressão
lógica, mas também, mais fundo, da experiência ontológica.8 Aqui Deus é ausência de determinações ôntico-ontológicas, um não um, uma não entidade,
um não algo,9 um vazio enquanto desprovido de qualquer qualificação delimitadora, positiva ou negativa,10 e, por isso mesmo, “tudo”, uma plenitude que
se pode entender quer como um todo, simples, homogéneo, indiferenciado e
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
Paulo Borges
294
indeterminado, quer como um tudo propriamente dito, que contém em acto
todas as determinações e antinomias possíveis, porém sem que nelas se determine. Questão fundamental que Agostinho, todavia, aborda de múltiplas
formas. Note-se o alcance do seguinte teorema: “Se a Deus lhe faltasse o nada /
seria menos que Deus”.11 O “nada” é instância constitutiva de Deus, enquanto
plenitude absoluta. Sem o “nada”, Deus não o seria, faltando-lhe num sentido
ser algo, mas noutro, mais profundo, o não ser algo, que é mais do que todo o
ser algo, para esse Tudo que é. Isso mesmo se explicita noutra quadra: “Se Ele
é tudo o que dizes / Ele o Nada pode ser / e se é Nada livre está / para ser o que
quiser.”12 Sendo Deus pensado como totalidade em acto do possível, ela deve,
segundo a lógica particular do autor, incluir aquele “Nada” que, sendo num
sentido a sua negação, é num outro sentido aquilo mesmo que a vem consumar e confirmar como totalidade, à qual nada falta, nem sequer o seu outro,
contrário, mas não contraditório. O mais importante, todavia, é o elemento e
implicação novos que aqui emergem. Deus, enquanto “Nada”, excede toda a
determinação, o que, no entanto, não o constrange a permanecer indeterminado, pois essa liberdade que é ausência de modos e propriedades é também
potência de autodeterminação. Diríamos: um vazio de ser que é possibilidade
e potência do seu autopreenchimento infinito, dando-se tantas determinações
quantas irrestritamente queira.13 O que, num sentido, se deve pensar como
eternamente realizado, pois Deus, sendo nada, ou também nada, sendo “puro
não ser”, já é, como vimos, tudo, “todo ser”, enquanto, num outro sentido, esse
ser nada, nada ser, ou “não ser”, lhe possibilita o tornar-se tudo, o desvendar-se
na plenitude do ser,14 o que só parece possível na perspectiva de um relativo
surgimento de diferença e novidade, ou seja, de manifestação, pela qual seja
em relação a Deus, como em relação a um princípio, o que é em Deus, ou seja,
o que Deus é, totalidade em acto do possível e seu excesso: tudo-nada.15
Num quadro onde são notórias afinidades com as metafísicas místicas
orientais e ocidentais que reconhecem a ab-solvição do ab-soluto de todas as
categorias – da primeira hipótese sobre o Uno, no Parménides platónico, a Plotino, Proclo e Damáscio, do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a Escoto Eriúgena,
Pedro Hispano, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa e Angelus Silesius, de LaoTsu a Shankara e à visão búdica da vacuidade, em Nagarjuna e Longchenpa
– , é o que se confirma numa quadra de notável profundidade e riqueza, onde
Agostinho condensa o mais subtil do seu pensamento e de toda uma gama de
intuições da tradição planetária e também portuguesa, mostrando as consequências fundamentais da sua ideia de Deus nos planos cosmológico e antropológico: “O mundo é só o poema / em que Deus se transformou / Ele existe
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e não existe / tal a pessoa que sou.”16 O Deus que é tudo em si, incluindo o
nada, e que, por esse nada ser, pode tornar-se tudo, devém (auto)poeticamente
mundo, o qual não é senão a consubstancial trans-formação de Deus, a sua
íntima, una e simples infinitude e totalidade a devir unitotalidade complexa
e múltipla. Apesar de se usar aqui o passado como tempo verbal, e se pensarmos noutros textos,17 faz mais sentido pensar o mundo como a eterna e
instante auto-poiésis, ou autocriação, de Deus. Na primeira metade desta quadra se consideraria assim temporalmente, e de algum modo ad extra, mais na
perspectiva do mundo, aquilo que antes se considera eternamente e ad intra,
mediando entre ambas a perspectiva da sempiterna possibilidade e poder do
eterno advir temporalmente, de Deus advir como o mesmo-outro de si chamado mundo. Possibilidade e poder que, sendo-o, não são necessidade, antes
uma liberdade para algo, que se pode não exercer. A eternidade da autocriação
de Deus como mundo, contradizendo a diferença substancial e ontológica entre ambos e subvertendo na mesma noção de autocriação as noções comuns
de “criador” e “criatura”, não contradiz aqui, em absoluto, a liberdade dessa
autocriação. Se Deus não pode, sob pena de não ser Deus, não ser tudo, e
logo o nada, já poderia, eventualmente, não (se) transformar isso num haver
mundo. Mas aqui o pensamento do nosso autor aponta em direcções diversas,
como quando enfatiza a inerência do “mundo” à autocriação do incriado, não
o vendo como efeito de uma causa, mas como o causar-se de uma causa incausada,18 ou quando explicitamente relativiza a natureza dicotómica da mente e
da linguagem humanas a ideia de Deus ser criador do mundo, seja parecendo
preferir a ideia de (re-)velação ou manifestação-ocultamento, sempre renovada, de Deus no mundo, seja afirmando “mundo e Deus” como o “mesmo”, um
“uno” em relação ao qual, enquanto determinações ou aspectos seus, eternamente seriam idênticos e diferentes.19
É exactamente sobre esta questão que incide a segunda metade da
última quadra: “Ele existe e não existe / tal a pessoa que sou.” Embora o facto
de o autor nunca começar com maiúscula senão o primeiro verso nos levar a
pensar que “Ele” se refere a Deus, note-se a ambiguidade pela qual se poderia também referir ao mundo. Entendendo o existir como ex-istir, do latino
ex-sistere, cujos componentes indicam um colocar, estabelecer, construir ou
apresentar-se (entre outras ideias) de dentro para fora, ou a partir de, originando os significados de sair de, nascer de e surgir, aparecer, apresentar-se,
mostrar-se, compreende-se que Deus ex-ista e não ex-ista: ex-iste na medida
em que devém mundo; não ex-iste enquanto, sendo em si e a partir de si mesmo que procede, nunca conhece, mesmo como mundo, nenhuma exterioriDo “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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dade ou dualidade que o tornem realmente outro ou que o façam ter uma
alteridade. O mesmo se diria do mundo: ex-iste se considerado como adveniente a partir de Deus, como o seu “poema”; não ex-iste se visto na unidade
e eternidade da autocriação divina, em que o “poema” é inseparável da autopoiésis do seu autor. O mesmo, mas agora explicitamente, diz-nos Agostinho
da “pessoa” que é e que somos, da pessoa humana, que assim talvez seja a
mais fiel evidência do existir e não existir divino: ex-iste na medida em que se
a considera advindo também como “mundo” e “poema”, como ente originado
ou manifestado; não ex-iste se a vislumbramos na intimidade e plenitude da
(auto)poética vida divina, no acto eterno da sua livre autocriação, ou, mais
ainda, como veremos, na sua transantinómica unidade entre nada e tudo ser
ou no seu equivalente “ser-não-ser.”20
Mas um outro entendimento pode ainda haver deste admirável texto.
Se o que dissemos vale seguindo a linha de interpretação do existir como
ex-istir, já um outro horizonte se divisa se o considerarmos no sentido de
ser. Nesta perspectiva, Deus existe/é plenamente como imanifestado e não
existe/é como mundo, em cuja re-velação, a sua própria re-velação, adquire
as determinações que, manifestando e afirmando o “tudo” que é, o ocultam
e negam enquanto “nada”, indicativo da sua verdadeira e plena (trans-)essência, excedente de toda e qualquer determinação. E também do mundo e
da pessoa, nesta perspectiva, se pode dizer que mais plenamente existem/são
no imanifestado divino do que na sua manifestação-ocultamento, na sua revelação e de-terminação, como elas mesmas, pessoa e mundo; ou seja, que
mais são, não sendo, em Deus, ou no “nada”, enquanto inefável infinito, do
que em si próprias.21
Seja como for, note-se neste tão curto como fecundo texto o excesso
do movimento, do processo e do devir criador, entendido como metamorfose, sobre as comuns noções de criador e criatura, sobretudo se pensadas à luz
do dualismo substancialista que frequentemente informa os criacionismos,
mormente no seu entendimento vulgar. Não sendo mundo e homem senão
a poético-poemática metamorfose de um Deus onde tudo e nada coincidem,
toda a questão se ilumina no terceiro verso, que indica a simultaneidade do
existir e não existir – quer no sentido do in-ex-istir (etimologicamente, o ser
em e o ser a partir de), quer no sentido do ser e não ser – como a anfibológica
condição primordial que, a partir de Deus, abrange o mundo e o homem.
Nada sendo absoluta e substancialmente em si, por si e para si, e tudo sendo
noutro, por outro e como outro – mesmo Deus, senão já enquanto “nada que
é tudo”, ao menos enquanto se faz mundo – , o tudo existir e não existir, ser
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e não ser, é afinal um nada existir nem não existir, nada ser nem não ser, que
– equidistante do substancialismo eternalista e do niilismo – furta Deus, homem e mundo, na sua íntima correlação, a toda a predicação e categorização
possível, ou seja, a toda a divinização, humanização e cosmicização.22
Na verdade, a aparição e a percepção, como “Deus” ou “mundo”, desse
impredicável, parece depender da perspectiva assumida pelo sujeito humano,
ou, de modo mais radical, de haver perspectiva, isto é, de haver sujeito. Privilegiando-se a simples e una infinitude ou a totalidade complexa e múltipla,
“ora é Deus ora é o mundo”, e, havendo ou não sujeito, ou seja, ex-istindo ou
não este, isto é, centrando-se ou não a visão numa perspectiva finita e ob-jectivante, há ou não Deus, pensado enquanto princípio da constituição e manutenção do sujeito nessa ex-istência, na verdade a “prisão própria” da qual,
não estando o “sujeito” sujeito a sê-lo, se pode libertar,23 anulando, com ela, a
imagem do mundo e do divino colhida através das grades de uma finitude
afinal insubstancial e autoconstruída, tal esse pessoano “claustro de ser eu”,
reconhecido afinal como meramente mental,24 se bem que, por isso mesmo,
em Pessoa, de mais difícil e problemática libertação.25 Mas, em Agostinho, é esta responsabilidade do sujeito pela sua autoconstituição na ex-istência, o que
supõe a possibilidade de o não fazer e de disso se libertar, que refere quando,
confessando a sua experiência do “agir por não agir”, colhida dos seus “mestres
chineses”, se diz ver-se assim “consolado” de se “ter obrigado a existir”. Nesta
significativa referência ao pensamento oriental – provavelmente ao taoísmo,26
mas possivelmente também ao budismo Chan,27 alguns dos contornos dos
horizontes agostinianos – , é pelo agir não agindo que o sujeito se resgata da
dualidade e cisão ex-istencial, ligando-se e prendendo-se ao Deus que é e não
é, ao Deus-absoluto, que não é em si um Deus criador, apenas surgindo como
tal na medida em que assim é criado pela sua suposta criatura.28 Escrevendo
“ao que a mim me criou porque eu o crio”, a visão agostiniana, transgredindo
a comum ideia da unilateral e extrínseca relação entre um Deus criador e as
criaturas, abre duas possibilidades de interpretação, não de todo exclusivas: ou
o Deus criador é uma mera representação do Deus absoluto, do Deus-“nada
que é tudo”, por um sujeito que deste se cinde e, ignorando ou esquecendo
essa cisão, o perspectiva de fora, julgando-o como causa dessa sua condição,
na verdade apenas por si construída; ou há, de algum modo, uma interacção
entre a cisão do sujeito e a determinação de um Deus que se torna seu criador
na mesma medida em que por ele é criado, desempenhando simultânea e reciprocamente o divino e o humano as funções de criador e criatura, no fundo
sem fundo do absoluto onde se identificam.
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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Aprofundaremos este entendimento da questão, notando agora que
Agostinho ensaia outras possibilidades de compreender a criação, como adiante se verificará e desde já se pode assinalar no complexo poema onde fala de
um Deus que o crie, não sendo o sujeito mais do que os pensamentos divinos,
os quais, por si reenviados ao divino pensador, o recriam “num eterno de momentos”, porém “que O não são / nem O foram nem serão.”29 Aqui, como noutras passagens,30 se salvaguarda mais a transcendência e anterioridade da criação divina, se bem que, numa afinidade com a tese anterior, se considere que
o Deus perspectivado pelo sujeito é apenas a recriação/representação ilusória
do Deus real, re-fractando a sua eternidade simples na descontinuidade (de
actos, de predicados?) própria do pensamento discursivo. Antecipando teses
que abordaremos adiante, o sujeito não existe fora de Deus, ou, melhor, não
ex-iste, não sendo mais que divino pensamento. Não obstante, numa formulação logicamente contraditória, parece admitir-se que esse divino pensamento,
no qual consiste o sujeito, encontra fora de si o sujeito já constituído, de tal
modo que, nele “batendo”, a si voltasse numa (auto-)reflexão ilusória, como
luz criadora de um espelho que lhe devolvesse uma imagem imprópria ou
desfocada de si mesma. A difícil questão, geradora da dificuldade de expressão,
é a de conciliar a única realidade autêntica do divino ser/pensar criador com
a emergência de uma alteridade que, não o sendo verdadeiramente, assume
a eficácia de o parecer ser, manifestando-se como se o fosse e velando o que
realmente é. Essa é a ilusória alteridade, em termos ontológicos, do próprio
sujeito, a qual, não reconhecida como tal, oculta isso mesmo que manifesta,
o divino, no próprio acto de o manifestar.31 A ilusória alteridade do próprio
Agostinho da Silva, cujo vivido reconhecimento se traduz no subtil duvidar da
existência própria: “Se é que sou.”32 Dúvida bem mais funda que as tão vulgares certezas de Santo Agostinho e Descartes, fundadas na suposta auto-evidência do cogito,33 verdadeiros expoentes, mesmo nas suas leituras mais subtis,
desse senso comum arraigado no pensamento, sobretudo ocidental, enquanto
crença e juízo ingénuos de que a existência de pensamento e actividade implica a de um pensador e agente, humano ou divino, ou de que ser seja ex-istir e
ser sujeito, pela qual se perde no suposto livre-arbítrio a liberdade primordial
que Agostinho intui e busca...
Note-se aqui alguma proximidade com o budismo, uma das suas fontes,
na vertente Chan/Zen ou mesmo tibetana,34 quer neste duvidar da existência
própria, quer no afirmar o pensamento de haver um pensador, um sujeito do
pensar objectivante, como algo de meramente adventício num primordial pensamento impessoal: “Primeiro há um pensamento/que pensa sem pensador/e
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logo pensa quem pensa/que pensa tudo ao redor.”35 Poderá manter-se, todavia,
alguma diferença em relação à visão búdica, se interpretarmos o “quem pensa”
como alguém de relativamente real, que todavia se ilude na medida em que
julga ser ele quem efectivamente pensa o mundo. Mais budista seria a simples afirmação: pensa quem pensa que pensa. É que Agostinho, identificando o
“Pensamento” primordial com “Deus”,36 e aqui mais fiel a Aristóteles do que a
Plotino,37 tende nesta linha a manter-se numa posição criacionista, embora limite e singular. Daí que diga, a respeito do budismo Zen: “Talvez budismo Zen
vá à frente de tudo; não, porém, tão longe que se pense pensado e não somente pensando.”38 Todo o pensar humano remeteria assim para um mais radical
pensar divino e criador. O que, diga-se, não nos parece colher como objecção
ao budismo, que procede exactamente da experiência não só de um não haver
pensador, mas ainda de um não pensar, mesmo no seio de todo o pensamento...
Há, todavia, uma tensão, no pensamento de Agostinho da Silva, entre esta tese
da redução de todo o pensar humano a um originário pensar divino e criador,
e uma outra em que é a própria mente humana, consubstancial ao divino ou,
melhor, conatural à sua insubstancialidade, que assume a responsabilidade pela
criação do mundo, refractando o incondicionado: “A nossa mente olha o Eterno e o faz Tempo”; “A nossa mente olha o Vazio e o faz Espaço.”39
Relacionado ainda com esta operatividade da mente, e nesta exploração dos múltiplos diálogos implícitos na obra agostiniana, note-se que, mormente na primeira das teses atrás assinaladas, a da criação do Deus criador
pela sua suposta criatura, Agostinho da Silva, depois de Teixeira de Pascoaes40
e de Fernando Pessoa,41 converge com uma das posições mais notáveis, pela
sua radicalidade e ousadia, na tradição ocidental, na exacta medida em que
subverte as leituras comuns do criacionismo, estabelecendo mais uma ponte
para o Oriente não-dualista que é simultaneamente uma fonte de diálogo
inter-religioso.42 Referimo-nos a Mestre Eckhart, que sustenta ser a relativa
autocriação daquilo que, de acordo com as categorias da época, designa como
“ser criado” ou “criatura”, que determina que o absoluto e eterno adquira a
característica de ser “Deus”. Com efeito, é apenas quando, pelo exercício da
sua “livre vontade”, o sujeito se actualiza, saindo da plenitude primordial e
constituindo-se como criatura, que passa a ter um Deus. Antes da ex-istência, ou da ex-istenciação, das criaturas, ou seja, antes da autoconstituição dos
entes como tais, como seres determinados, «Deus não era ‘Deus’»,43 isto é,
a plenitude primordial, indeterminada, embora contendo a potencialidade
de todas as determinações, ainda não era objecto nem sujeito para nenhuma
consciência, como uma entidade conceptualizada e diferenciada por predicaDo “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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dos, atributos e características, à imagem e semelhança dos predicados, atributos e características que essa mesma consciência, a humana, em si supõe,
supondo-os em “Deus” excelentes.44 Antes da auto-actualização do poder ser
dos entes, Deus não era “Deus”, mas simplesmente “era o que era”. É pelo surgimento dos entes que isso que se vem a chamar “Deus” deixa de o ser em si
mesmo, sendo-o “nas criaturas”.45 Se bem que Eckhart, pelos naturais limites
da linguagem, continue a chamar Deus, em si mesmo, à primordial plenitude
indeterminada, é bem claro que, numa notável inversão da equação comum
dos criacionismos, o que está aqui em causa é a criação de Deus pela autocriação das criaturas, enquanto divinização e teologização do indiferenciado
primordial,46 ou, em termos eckhartianos, a geração de Gott, o Deus que o é
para a consciência e o homem, na e a partir da Gottheit, a Divindade, abismo
ou fundo sem fundo primordial, enquanto sua objectivação pela actualização
das potências de ser e de consciência nela pré-contidas.47
A criação, no sentido de fenomenalização, de “Deus” pelas criaturas,
acompanha-se aliás, como o autor afirma no final do sermão, da mesma criação, ou fenomenalização, de “todas as coisas”, do mundo. Deparamo-nos assim
com o aparente paradoxo de um ente, um sujeito, uma “criatura” que assume
a responsabilidade de, no seu estado incriado, “não nascido” (ungeboren), nascer eternamente como “causa” de si mesma, de “Deus” e de “todas as coisas”,
acrescentando mesmo que, se o não tivesse querido, ela não seria e, assim, não
seriam nem as coisas nem “Deus”. É aqui que o pregador, falando na primeira pessoa, se apercebe do possível excesso ou irrelevância desta verdade para
o seu auditório, porventura pouco capaz de acompanhar a subtileza da sua
visão, e procura atenuá-lo, afirmando a sua dispensabilidade: “Que Deus seja
‘Deus’, eu sou uma causa; se eu não fosse, Deus não seria ‘Deus’. Não é necessário saber isso.”48
Mas Eckhart, apesar de tudo, insiste na necessidade deste saber libertador. Como se confirma noutros textos, o Deus pessoal e a criação surgem
como a configuração que a primordial unicidade assume na medida em que o
eu se di-verte do seu seio. Sendo a ex-cisão do eu que fenomenaliza e pluraliza
o indiferenciado nos aspectos ideo-reais de Deus e do mundo – “Não foi senão
quando me derramei que todas as criaturas anunciaram Deus”; “Quando eu
fluía de Deus, todas as coisas disseram: Deus é (...)” – , é o seu superior regresso a ele que os dissipa – “(...) Deus também devém e desaparece” – , reabsorvendo-os na plenitude jamais anulada e sempre actual.49 A processão geradora
do Deus com atributos a partir do fundo sem fundo da Divindade (Deitas,
Gottheit), ou do Nada absolutamente transcendente de todas as categorias, é
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na verdade a autocriadora processão do espírito que faz surgir ante a e como
correlato da sua própria diferenciação o espectáculo das determinações ontoteocosmológicas para o reabsorver na sua mesma reabsorção na plenitude
a-determinada, criando-se como criador de tudo para se decriar e a tudo no
seu regenerar-se como absoluto.50
Regressando a Agostinho da Silva, e a tudo o que dissemos a propósito
da notável quadra “O mundo é só o poema / em que Deus se transformou / Ele
existe e não existe / tal a pessoa que sou”,51 compreende-se que as aparências
de existir e não existir, ser e não ser, abrangentes de todas as determinações e
modalidades que assume a manifestação de um fundo sem fundo primordial
ultimamente inapreensível segundo tais categorias ontológicas, levem o autor
à “suspeita / de que a Verdade” lhe minta”.52 Contrariamente à visão ocidental que rejeita, com Platão, um Deus “feiticeiro”, metamórfico, pluriforme e
poeta,53 ou enganador, em Descartes,54 e afim a um possível entendimento da
Maya oriental, enquanto potência de cosmogónica e mágica autodissimulação
do absoluto,55 à anteriana e pessoana “ilusão” como potência estruturadora
da criação/manifestação56 e, talvez acima de tudo, à pascoaesiana visão, quer
da “Ilusão” como jogo criador – i-lusão – , quer da mentira criadora do absoluto/Nada, pela qual algo é,57 surge em Agostinho a hipótese de uma Verdade mentirosa. O que não é necessariamente contraditório ou negativo, se
pensarmos que o verbo latino mentiri, além de significar “mentir, não dizer a
verdade”, também designa o “imitar”, o “ter a aparência de”, podendo entender-se a mentira, em termos extra-morais, como um livre jogo das faculdades
miméticas e lúdicas do ser, como um fazer de conta que, uma ficção criadora,
bem afim à actividade infantil e poética,58 que implica uma consciência privilegiada e constante da verdade, do que é, mas também, sem cisão, da verdade/
realidade da própria ficção, da ironia, no sentido etimológico de “simulação”,
do fazer como se, do fingimento, “para além da ruptura metafísica entre o
imaginário e o real.”59 Por outro lado, pensando na relação etimológica entre o
mesmo mentiri e mens – designativo da “mente” e das suas actividades, como
o “pensamento”, o “projecto”, o “plano”, o “juízo” e a “razão” – , por sua vez
derivado de memini, redobro da raiz men- (pensar), que significa “ter presente
no espírito, recordar-se”, podemos extrair as ideias de que, num sentido, como
vimos, a mentira supõe a verdade e a sua posse, e de que, noutro, a mentira
pode não ser senão a condição de toda a determinação mental da verdade, a
condição de toda a determinação do que não tem medida nos domínios da
mensura discursiva, projectiva, planificante, judicativa e, enfim, racional (cf. o
sentido de “conta, cálculo, cômputo” do ratio, onis latino).60
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O que avulta, todavia, é a metáfora da poesia, por vezes associada à
do sonho, para designar a criação, em termos metafísicos e ontológicos. Deus
é reiteradamente visto como “eterno (...) poeta / cuja essência é nos sonhar”,
tendo imediatamente o nosso autor a subtileza de acrescentar: “Supondo que
há um poeta / e não apenas poema / de que tudo é expressão / e de que o nada
é o tema.”61 Não é apenas o sujeito humano que, como vimos, ganha o perder
a sua limitadora entidade própria, mas é primeiro que tudo o próprio sujeito
divino que o não é, que é livre de ser sujeito, e, sendo alheio, para usar a linguagem escolástica, a toda a substância, essência e quididade, se pode indicar
como omnipresente “poema” que “tudo” expressa “nada” expressando, ou expressando o “nada”, não sendo afinal todos os supostos entes senão a jamais
reificada fenomenalização de um absoluto sugerível mais na linguagem do
desconhecimento, da insignificância,62 do esvaziamento, da kénosis, do que na
da ontoteológica plenitude. Tão ilusória quanto a de um sujeito humano que
seja algo fora do continuum de uma actividade mental, oral e física inseparável
do mundo, a ideia de um Deus-poeta separado do seu poema, de um criador
separado da sua criação, dissolve-se num poema-mundo visto como infinita e
heteronímica variação do “nada”.
Ainda nesta linha, e confirmando a anterior sugestão de afinidade entre o mentir da “Verdade” e uma actividade lúdica, surge uma quadra bem
explícita: “Se só o uno é que existe / serão pura fantasia / as colecções de unidades / em que a vida se varia.”63 Utilizando agora existir no sentido de ser, a
metafísica agostiniana apresenta-se aqui como um monismo henológico, no
qual os conjuntos de unidades individuais – os géneros e espécies ? – em que a
vida se diversifica não são mais do que “fantasia”. De quem ? Da unicidade que
exclusivamente é em toda a diversidade aparente dos seres, ou da percepção
não iluminada da mesma que se prende nos aspectos superficiais do múltiplo
e não capta a sua essência una ? Embora elementos haja na obra agostiniana
que podem levar-nos a subscrever a segunda hipótese, inclinamo-nos aqui,
salientando que as duas não nos parecem excluir-se, para a maior plausibilidade da primeira, uma vez que é às variações da vida e não da consciência
que se atribui a “fantasia”. Reforçando os nexos com algum sentido de Maya,
e agora sobretudo de Lîla, o jogo divino,64 no pensamento oriental, e bem
assim com alguma teosofia ocidental,65 algum pensamento contemporâneo66
e o sentido da I-lusão e da mesma Fantasia em Teixeira de Pascoaes67, encontramos no nosso autor uma visão do mundo e da vida que abre para duas
possibilidades de entendimento, também não absolutamente contraditórias:
ou mundo e vida são mera irrealidade, em termos absolutos, pois apenas apaRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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rentam ser quando em rigor não existem, não sendo senão a fantasmagórica
aparência de um “uno” unicamente real; ou são a criativa, lúdica e, ao modo de
Pascoaes, carnavalesca auto-realização do uno, disfarçando-se realmente nos
aspectos de todas as coisas. Tudo dependendo do modo como se entende “fantasia”, ou no sentido de uma irracional aparência irreal daquilo que unicamente é, o uno, ou no de uma sua positiva projecção e travestimento criadores, dizemos as duas possibilidades de entendimento compatíveis na medida em que
a irracional irrealidade da sua aparência proceda menos do próprio “uno” do
que da visão que não apreende o múltiplo como o seu autodisfarce e mascaramento, não logrando discernir o seu omnipresente rosto na mesma medida
em que toma por absolutamente reais as formas individuais da sua “fantasia”
que constituem os seres, a vida e o mundo. É um pouco como em Antero de
Quental, em que o absoluto, dando-se em especular espectáculo a si próprio,
desenrola-se no universo fenomenal da multiplicidade, o qual, experienciado
como real pelos seres cuja consciência não acede à compreensão de todo o
processo, se dissolve finalmente como “fantasmagoria” na visão sábia e santa
que assim igualmente dilui o ser individuado na unicidade absoluta.68
É neste sentido que parece ir outra quadra notável: “Eu nada sou é tudo
quanto digo/um sonho apenas do senhor do mundo/me perco mesmo quando me consigo/e só me salvo se em não ser me afundo.”69 Escrita na primeira
pessoa, fala-nos da mesma articulação entre Deus, os seres e o mundo, mas
agora na perspectiva da experiência humana e individual, nos seus extremos
limites/limiares. O sujeito reconhece o seu nada ser, em termos substanciais
e últimos, se referido a esse Deus que é o próprio absoluto, trans-antinómica
unicidade onde confluem ser e nada. O seu estatuto não é outro senão o de ser
“um sonho”, ou seja, um momento da vida desse Deus que afinal unicamente
é e vive em todos os seres aparentemente autónomos.70 E este “sonho” pode ser entendido quer como actividade inconsciente, vital e a-racional de um
Deus que cria oniricamente, sem saber nem ter de saber o que faz, conforme
algumas visões orientais,71 uma leitura perfeitamente viável do Génesis bíblico,
em que Deus primeiro cria e só depois vê que o que criou é bom, ou ainda,
exceptuado o pessimismo, a visão de Domingos Tarroso,72 quer, em flagrante
afinidade com o segundo sentido da anterior “fantasia”, como a livre e lúdica
projecção e auto-realização da potência divina e das suas potencialidades criadoras, porventura com uma espontaneidade ante-racional, tal como em Teixeira de Pascoaes,73 como o fazer-se tudo do seu nada, ou o fazer-se mundo do
seu tudo inclusivo do nada. Todavia, a resposta do “sonho” que é o indivíduo
humano ao seu sonhador divino é, reconhecendo-se como “sonho”, abdicar de
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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toda a suposta e vulgarmente desejada realização de si, denunciada como perdição enquanto manutenção e incremento da finitude ou, mais, da irrealidade
ontológica, e, sobretudo, da pretensão de ser, para se a-fundar nessa verdade
do “não ser” próprio mas também divino que é a sua mesma salvação/saúde,
enquanto re-conhecimento da não dualidade com a trans-determinação do
absoluto e do infinito.74 Atente-se aqui ao implícito diálogo com as palavras
de Cristo, glosando a equação evangélica entre o perder-se e o salvar-se: “Pois
aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida
por causa de mim, esse a salvará” (Lucas, 9, 24; cf. também Lucas, 17, 33; Marcos, 8, 35; Mateus, 10, 39; 16, 25; João, 12, 25). Na extrema e paradoxal exigência
mística, toda a forma de ser para si, todo o amor à sua finitude, erroneamente
entendida como própria, é afinal um perder as supremas possibilidades de
realização, enquanto a oblação do que existe nas aras do que é, o sacrifício
da “sua vida” no altar da Vida, é a sua integração transfigurada e gloriosa no
abismo divino. O a-fundamento é afinal metáfora da positiva iniciação ao sem
fundo do infinito mé-ontológico, “não ser” enquanto transcendente de toda
a limitação não só do ser algo, do ente, mas ainda do próprio ser,75 sobretudo
se pensado como sede, referência, residência e assento estável dos entes,76 que
assim fundaria e sancionaria na sua de-terminação e finitude. Na pulsão mística do pensar poético de Agostinho, ao contrário, o princípio primeiro e fim
último, coincidentes, dos entes, é esse “nada” que é afinal o que unicamente é,
oculto em tudo o que aparece e nos parece real: “Oculto no que aparece/e nos
semelha real/vive o que é nada e só é / fonte nossa e fim total.”77
Contudo – e o haver sempre um “contudo”, quando poderíamos ser
tentados a crer haver formulado de uma vez por todas a visão do autor, é sinal
da sua riqueza inesgotável – , Agostinho explora outras possibilidades, convergentes, de conviver com esse sonho divino, ou com esse sonhar-se do nada/absoluto que, sendo também, como veremos, uma livre dança, mostra mais uma
curiosa afinidade com a visão pascoaesiana da “criação” como “um bailado
de máscaras... cósmico entrudo tenebroso !... [...] assente sobre o Nada e o
Sonho..."78 Veja-se a afirmação de que, uma vez que “tudo pode vir do nada”,
a “vida em que vivemos” é apenas uma possibilidade, por nós sonhada no
“que pensamos real”, entre inúmeras outras possíveis. Sendo o tempo “tempo
imaginado / em que se imagina espaço”, abre-se a possibilidade de “ir além”
dessa forma comum de construir o que se tem por real.79 Esta visão explicitase na referência a uma “mente” primordial “que se sonha” sonhando os entes,
ou os homens, mas que por sua vez é por estes sempre sonhada, resultando
daí a percepção da realidade nas coordenadas do tempo e do espaço humaRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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nos. Reencontramos aqui a interacção entre criação divina e criação humana,
parecendo esta ser responsável por uma particular reificação das possibilidades da primeira. Assim o confirma a continuidade do poema, que indica ser
possível libertarmo-nos de sonhar o sonho divino sob a forma do tempo e do
espaço, humano ou outro. O que seria aceder a “outro sonho”: “o de não haver
real / em que ao sonho limitemos”.80 Ou seja, diríamos, sacrificando as formas
limitadas de sonhar humanamente o sonho divino, limitadas na medida em
que sempre o realizam, deste ou daquele modo, reduzindo e cristalizando o
infinito das suas possibilidades, nada assim lhe acrescentar, coincidindo com
esse puro ser e vir a ser tudo do nada/absoluto, na insubstancialidade de uma
manifestação onde nunca realmente emerge uma qualquer realidade particular. O que é ainda uma forma de salvificamente se afundar em “não ser”, porém
agora não apenas o não ser do Abismo divino, mas o do seu inerente devir
criador, do seu “ser poema não poeta”,81 onde, como num “sonho puro”,82 nada
se reifica e enquista nas formas do ser. Como diz Agostinho, falando agora do
mundo como gratificante “dança etérea”: “Mais do que eu porém se deve / o de
eterno divertir / vendo como nada vai / num suposto jogo de ir.”83 Reencontramos o tema, tão caro ao Oriente, a Heráclito, ao barroco e a Pascoaes, do mundo como lúdico/i-lusória dis-simulação divina, em que na aparente novidade
fenomenal das coisas, dos seres e dos eventos nada advém senão um absoluto
que eternamente aparenta determinações sem que realmente as possua.
Que a manifestação do absoluto é uma instância lúdico/i-lusória, afim
à poesia, à ficção criadora, à fantasia e ao sonho, confirma-o exactamente esta
nova metáfora, também de procedência científica, a da “dança”, ou do “bailado”,84 conforme outra fecundíssima quadra que igualmente reforça o paradoxal
sentido místico dessa experiência do sujeito não o ser, de não ser sujeito, de
toda a acção que aparenta ou se presume ser sua não ser afinal nem sua nem
de ninguém, pois a “vida” é dançarina e livre emergência que flutua ou paira à
tona do “nada”, ou seja, de uma impessoalidade onde, faça o que fizer, o suposto
sujeito repousa no não ser-agir: “Tudo o que faço no mundo/sem eu o fazer é
feito/baila a vida em liberdade/sobre o nada em que me deito.”85 Magistral síntese, enriquecida pela singularidade, das mais fundas e elevadas experiências da
espiritualidade e da mística ocidental e oriental, o autor fala-nos aqui da libertação da condição de ser sujeito, da (auto)desapropriação última do indivíduo86
que, sem perder a vigilância e a actividade, e na mesma medida em que flui e
dança na própria dança da “vida”, espontânea, livre, sem obstáculos, repousa
no “nada” da divina trans-pessoalidade donde ela emerge. Repousa, deita-se
mesmo, mas não adormece, ou não adormece senão conscientemente,87 como
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veremos, ao contrário da anteriana aspiração no celebrado soneto “Na Mão
de Deus”: “Dorme o teu sono, coração liberto,/Dorme na mão de Deus eternamente !”88 O “nada” é assim o sumamente real em Deus, no mundo e no
homem,89 a verdade comum onde Deus, mundo e homem se identificam.
Na verdade, e isto aumenta em complexidade e riqueza a experiência e
o pensamento agostinianos, o “nada”, sendo o único que “é real”, não é jamais
apenas ponto de partida cosmogónico e ou ponto de chegada escatológico,
mas sempre uma coisa e outra, sendo nele, dele e para ele que se manifestam e
realizam todas as possibilidades da existência, que na verdade, como vimos, é
uma in-ex-istência: “Talvez chegues tu a ver/que só o nada é real/e que a partir
de não ser/te construirás total.”90 Só no contínuo recurso para e integração
nesse primordial e sempre presente abismo de infinitude, liberdade e possibilidades criadoras, só firmando-se no sem fundo do seu mesmo “não ser”,
é possível ao sujeito autoconstruir-se numa totalidade microcosmicamente
afim ao próprio mundo, ou seja, à manifestação plena do Deus-nada que é e
devém tudo. É, afinal, porque o sujeito, em simultâneo, é e não é, age e não age,
que, nunca cessando de não ser nada, se pode tornar tudo.91 Como no lapidar
dizer de Bernardo Soares: “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se
fosse alguma cousa, não poderia imaginar.”92 A condição de possibilidade da
continuidade e renovação da imaginação autopoiética é o seu agente nunca
se tornar efectivamente algo em tudo o que vai sendo, nunca cristalizar num
ser a torrente do seu devir autocriador, expressão em si do divino poetar(-se),
fingir(-se), fantasiar(-se), sonhar, dançar(-se).93
É isso mesmo que se confirma num poema onde todas as particularidades do existir, todo o ser algo, se denunciam como “ilusões”, de cujo desprendimento resulta nos sujeitos, simultaneamente, o esvaziamento ontológico e
o emergir no seu íntimo do esplendor divino: “De tudo se desprendendo/de
ilusões se libertavam/e por já não serem nada/dentro deles Deus brilhava.”94
E no mesmo sentido aponta uma outra quadra: “O mais simples alicerce/traz
logo a casa traçada/se eu quiser chegar a Deus/começarei por ser nada.”95 “Ser
nada” é aqui não só a infinita receptividade e possibilidade de preenchimento
própria de um vazio ontológico, que pode em si acolher tudo, mas já, se assim
podemos dizer, a semente que em si pré-contém a divina totalidade, ela mesma, como vimos, segundo várias possibilidades, idêntica ao, inclusiva do, ou
constituída pelo “nada”. O “ser nada” do sujeito, o seu zero, implica já assim
em si o tudo/nada divino, sendo interessante esta dupla ideia de um “alicerce”
onde se projecta e constitui desde logo toda a “casa” e do “ser nada” como esse
mesmo alicerce, do nada como fundamento constitutivo e sustentador da pleRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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nitude trans-ontológica, que afinal é e radica menos numa qualquer entidade
substancial do que numa sua ausência ou vacuidade.
Transitando para a questão da relação do conhecimento e da linguagem com essa mesma plenitude, encontramos outra quadra notável pela profundidade do conteúdo e pelos ecos de toda uma multiforme tradição: “Oxalá
por saber tanto/me apeteça ficar mudo/só então vendo sem ver/aquele nada
que é tudo.”96 Parece-nos claro, por tudo quanto fica dito, que Agostinho nos
fala daquilo que, na tradição ocidental, é a visão de Deus, ou a visão beatífica,
e, no Oriente, a visão iluminativa.97 É visão, mas “sem ver”, pois que nela se
transcende toda a separação sujeito-objecto, toda a suposta distinção entre
aquele que vê, o acto de ver e o que é visto. Assim tem de ser uma visão do
“nada que é tudo”, a qual não pode vê-lo, quer porque ele não é um objecto,
entre outros, nem é objectivável, quer porque um “nada que é tudo” não pode
senão integrar em si a sua própria visão, não lhe possibilitando qualquer espaço
para uma diferença e distância que o objectivem. Na verdade, um Deus/“nada
que é tudo” só pode ver-se sem se ver, na inefável experiência unitiva, sem
qualquer subjectivação-objectivação, enquanto pretender vê-lo, como objecto,
é na realidade não o ver, no sentido de ignorá-lo, trocando-o idolatricamente
por uma sua representação, teológica ou filosófica,98 unicamente forjada pelo
homem.99 É por isso que esta experiência, na sua plenitude, é num sentido um
saber máximo, absoluto – não em termos de conhecimento objectivo, mas de
uma sabedoria não-dual, fruitiva, que é também, consoante a sua etimologia,
um sabor100 – , que não pode ou não solicita, sob risco de se atraiçoar, ser verbalizado. Como expressar, senão diminuindo-a, uma experiência de não-dua­
lidade, infinito e totalidade através de conceitos-palavras forjados para dizer
a experiência do oposto, do finito e do parcial, a experiência daquilo que se
apreende e define sempre por diferença e contraposição relativamente a algo
de outro?101 Diminuindo-a em verdade mas também em fulgor afectivo, pois
o apetecer “ficar mudo”, além de expressar, pela renúncia à própria expressão,
um Deus que é fundamentalmente silêncio,102 traduzirá também o excesso do
arrebatamento extático ou enstático – o estar fora, não necessariamente de si,
mas da dualidade própria do “eu”, ou o estar dentro, na intimidade não dual­ de
todas as coisas, conforme a perspectiva – , naturalmente acompanhado de maravilhamento contemplativo, sobre toda a frieza própria do regime de consciência conceptual e discursivo.
É que este ver “sem ver/aquele nada que é tudo”103 é, na verdade, um
fruir a autoconsciência divina, próprio do viver em Deus, “com não saber e
ciência”.104 Apropriado a “um nada” de si ciente,105 o sujeito frui o deixar de o
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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ser, integrado no infinito da consciência trans-ôntico-ontológica, num infinito que, sabendo-se, sabe não ser isto ou aquilo, ou sabe mesmo não ser, jamais
se objectivando ou de-terminando deste ou daquele modo. O ver “sem ver”,
o viver “com não saber e ciência”, parecem assim, antes de mais, expressar a
natureza de Deus, ou da visão de Deus – entendida como a visão que Deus
tem de si, não apenas a visão que tem da criatura, pela qual esta é e o vê, como
na mística especulativa mais ortodoxa106 – , na qual se ingressa transcendendo
intuitivamente todo o entendimento e linguagem. Regressando ao “eterno”,
donde, sem separação, emergem107 – como na tradição oriental e neoplatónica, em que, à luz da causalidade exemplar, o efeito pré-existe e persiste na
causa da qual procede e à qual regressa108 – , os entes não se vêem (como entes) na exacta medida em que (se) vêem (como) Deus (se vê).109 É assim que
o próprio Agostinho, anunciando na primeira pessoa a iminência do fim da
sua condição finita, a iminência de ser “um nada” e “um tudo”, declara que sua
então “será toda a ciência/e o não saber o sono em que” se “embale/consciente
de” sua “inconsciência”.110 Sua será toda a consciência de ser nada/tudo do
nada/tudo divino, a qual é necessariamente um não se saber isto ou aquilo em
particular, um desconhecer-se enquanto sujeito que a si mesmo se reflecte e
objectiva deste ou daquele modo, ou pelo menos de um modo finito. É neste
sentido que “ciência” absoluta e “não saber” (nada de particular e objectivo) se
conciliam e articulam como o verso e o reverso de um mesmo estado. Daí que
a “ciência” seja também um saber/sabor desse “não saber”, sendo deste modo
que interpretamos o estar consciente da própria inconsciência, ou seja, o saber que saber(-se)/saborear(-se)/ser(-se) tudo é nada (se) saber/saborear/ser
de particular e finito. A suprema vigília é assim o estar consciente do próprio
“sono”, isto é, da in-consciência ou da não consciência finita.
É isso que, com um elemento novo, que patenteia toda a riqueza do
pensamento agostiniano, nos vem confirmar uma outra quadra: “Do que é
certo desconfia/do duvidar te enamora/é bom não saber de Deus/quem de
dentro a Deus adora.”111 Fala-se aqui, ainda, dessa experiência íntima de Deus,
“de dentro”, agora no seu aspecto de adoração, num discurso que, por ser mais
religioso, não menos aponta no sentido de uma não dualidade112. É o que nos
sugere esse “não saber de Deus” que naturalmente acompanha tal adorá-lo “de
dentro”. “Dentro” está aqui no sentido de uma intimidade ou união tal que, como no ver “sem ver” da quadra anterior, não permite nenhuma distância onde
se constitua uma visão exterior e extrínseca. Aquilo que, nos versos anteriores, se referia como a plenitude de um saber/sabor não-dual, em união, diz-se
aqui, noutra perspectiva da mesma experiência, como um “não saber”, ou seja,
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um “não saber” sob a forma do conhecimento conceptual inerente à relação
sujeito-objecto, equivalente ao não ver anterior. Estamos aqui, radicalizando
toda uma tradição oriental e ocidental, perante uma douta ignorância que,
mais do que reconhecimento do não saber que seja desconstrução das falsas
pretensões ao conhecimento e, eventualmente, propedêutica da inquirição, ao
modo socrático,113 é antes e já um saber/sabor próprio do conhecimento experiencial, intuitivo e, aqui, adorativo, daquilo que há acima de tudo para ser
conhecido – Deus – , na trans-dualidade unitiva ou que é a própria união,114
É por isso que este “não saber de Deus”, por excesso de intimidade ou coincidência com ele, não deixando espaço para qualquer distância, pela qual se
veja Deus como “Deus”, um absoluto ou transcendente objectivado e separado
de si115 – e que pode assumir até a aparência ou ser a inassumida verdade do
ateísmo, como quando a brincar seriamente se diz: “sou ateu graças a Deus”116
– , será o melhor correctivo daquele saber de Deus por defeito da mesma intimidade, ou seja, daquelas pretensões ao saber dogmático que, hipostasiando
a letra de algumas re-velações ou de alguns conceitos acerca de Deus, os pretendem substituir à experiência viva e directa da própria Divindade, na sua
intimidade abissal, como acontece em toda a teologia que de positiva se não
faça negativa e ambas não transcendam em união e fruição mística.117 Contrariamente a muitas expectativas, o homem mais íntimo a Deus, o homem mais
divino, pode ser assim o menos aderente a qualquer ortodoxia ou heterodoxia,
o mais desconfiado, duvidoso e crítico dos homens a respeito de todo o modo
supostamente definitivo de formular a verdade e o caminho para ela, embora
também deva naturalmente ser o mais desconfiado, duvidoso e crítico dos homens a respeito da própria desconfiança, dúvida e crítica, sobretudo quando
assumidas como um valor ou fim em si.
É também nesse sentido que aponta um lapidar poema-exortação em
três versos: “Crente é pouco sê-te Deus/e para o nada que é tudo/inventa caminhos teus.”118 Exortação não só a não se conformar com a condição de “crente”,
enquanto a daquele que adere exteriormente a uma doutrina religiosa, mas
fundamentalmente a não se conformar com a condição de mero homem, com
qualquer dualidade e separação relativamente a Deus, instando à sua superação
na deificação.119 Deificação que aqui, em contraste com o espírito de múltiplas passagens acima comentadas, não se processa tanto por uma unilateral
anulação do sujeito no infinito divino, mas por uma sua positiva assunção, de
signo heróico-apolíneo, onde o indivíduo humano se afirma no próprio acto­
de identificação à divindade, uma identificação activa onde, como a forma reflexiva do verbo indica, recaindo a acção sobre o sujeito da proposição, este
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curiosamente afirma a sua singularidade no próprio acto de transcender a sua
humanidade, ou a sua mera particularidade, no tornar-se divino. É o que se
reforça nos segundo e terceiro versos, onde se exorta a que para o infinito e
a totalidade, “para o nada que é tudo”, se encontrem vias próprias, diferentes
das por outros trilhadas. Considerando outra composição onde se destaca a
conciliação entre o ser-se apropriado por Deus – um Deus cósmico, um “Outro
todos os outros” – e o não se perder de si,120 estes poemas, aparentando contradizer outros textos onde vimos sublinhada a anulação do sujeito, todavia talvez
o não façam em absoluto, se verificarmos que mesmo essa anulação, o deixar
de ser, ou o ser nada, são sempre apresentados como o termo último de uma
iniciativa e de um processo individuais, que, se bem que impliquem, no seu
culminar, a reintegração do sujeito no que é, no absoluto, enquanto infinito e
totalidade, reconhecendo a sua jamais alienada identidade com ele, não menos
exigem a sua livre e assumida orientação nesse sentido, como se, tal como bem
o expressou Antero de Quental, a suprema e última realização do eu fosse a
sua própria anulação na realização do (não-)ser, sem qualquer contradição.121
Persistirá, não obstante, alguma diferença entre o não ser e o ser-se Deus, a qual,
contudo, pode reduzir-se se pensarmos a questão à luz da ontológica anfibolia,
ou da paradoxia, patentes no poema atrás comentado: “O mundo é só o poema/em que Deus se transformou/Ele existe e não existe/tal a pessoa que sou.”122
Tal como Deus e o mundo e, como vimos, consoante a perspectiva em que nos
colocamos, avulta a existência ou não da “pessoa”. Neste caso, o aspecto activo e
auto-afirmativo do seu ser Deus ou o passivo e mais negativo do seu não ser nada de particular. Na verdade sem qualquer contradição, se recordarmos que, na
lógica não aristotélica de Agostinho, não ser nada é ser tudo. Ou, como de outro
modo indica: “A união com Deus consiste em ser plenamente o que se é.”123
É que o homem íntimo do Infinito, tão íntimo que nele se funde, sem
que o deixe de fazer por vias próprias, será sempre aquilo que Agostinho toda
a vida foi: o homem “do paradoxo”,124 aqui risonha, alegre e sabiamente convivente com isso mesmo que Antero entreviu, mais dramaticamente, como o
“paradoxo universal das coisas”, o “divino paradoxo”.125
Paradoxo ou, como diz Agostinho e diremos nós, para concluir sem
terminar:
“nem verdade nem mentira
uma coisa assim assim
e se queres saber mais
não mo perguntes a mim”.126
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Notas
1 Obras de Agostinho da Silva. Textos e Ensaios Filosóficos II, organização e estudo introdutório de Paulo A. E. Borges, Lisboa, Âncora, 1999, pp.145-179.
2 Para algumas das mais recentes contribuições sistemáticas para a definição e a abordagem comparativa da
experiência mística, cf. Juan Martín Velasco, El fenómeno místico. Estudio comparado, Madrid, Editorial Trotta,
2003; AAVV, La Experiencia Mística. Estudio interdisciplinar, edição de Juan Martín Velasco, Madrid/Ayuntamiento de Ávila, Editorial Trotta / Centro Internacional de Estudios Místicos, 2004; AAVV, Expérience Philosophique et Expérience Mystique, edição de Philippe Capelle, Paris, Cerf, 2005; Michel de Certeau, Le lieu de
l’autre. Histoire religieuse et mystique, édition établie par Luce Giard, Paris, Seuil/Gallimard, 2005; Raimon
Pannikar, De la Mística. Experiência Plena de la Vida, Barcelona, Herder, 2005.
3 Conforme isso que Fernando Pessoa, n’A Nova Poesia Portuguesa, em 1912, formulou como o partir “em
busca de uma Índia nova, que não existe no espaço”, ou das “Índias Espirituais”, ante o qual tudo o mais não
é senão “obscuro e carnal antearremedo” - A Nova Poesia Portuguesa, in Obras, II, organização, introdução e
notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1986, pp. 1.194-1.195. Tal como noutros autores, a
pessoana denúncia dos Descobrimentos como “obscuro e carnal antearremedo” não procede senão da própria
e extremada exigência de Descobrir: “Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir
um Novo Mundo!” - Álvaro de Campos, Ultimatum (1917), in Ibid., p. 1.109. Cf. também a metaforização dos
descobrimentos marítimos no sentido de uma outra viagem, “da alma”, em demanda de uma outra Índia: “Esta
é a primeira nau que parte para as Índias Espirituais, buscando-lhes o Caminho Marítimo através dos nevoeiros
da alma, que os desvios, erros, e atrasos da actual civilização lhe ergueram !” - As Índias Espirituais, in Ibid., III,
p.684. Esta visão tem paralelos na de autores como Pascoaes e Leonardo Coimbra. Diz-nos o primeiro que “o
messianismo é o génio de aventura alando-se para as estrelas”, ou dirigindo “as asas para o céu, o Atlântico etéreo
além do qual existe uma outra Índia...” - O Génio Português na sua expressão filosófica, poética e religiosa, Porto,
Renascença Portuguesa, 1913, p.11. Define o segundo a saudade como “movimento pendular do coração lusíada
entre a pátria e todas as Índias que se atingem e aquela Índia de miragem, que não é nenhuma destas e sempre
se procura e deseja, quando estas se nos deparam” (“Sobre a Saudade”, A Águia, nos 11-12, 2ª série (Porto, 1923),
p.147), para, numa perspectiva já universal, contrastar “la evolución descendente de los mundos, deshaciéndose,
con la evolución ascendente del hombre conquistando las Índias de la Memoria” (“Sobre la Moderna Poesía
Portuguesa”, Dispersos. I - Poesia Portuguesa, compilação, fixação de texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa,
Verbo, 1984, p.52).
4 Cf. Constança Marcondes César, que bem aponta como o projecto de Agostinho, de que Portugal e Brasil
seriam privilegiados mediadores, visa um “diálogo que unifica Oriente e Ocidente, abrindo o caminho para
uma nova época” – “Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva”, O Grupo de São Paulo, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2000, pp.199-211, p.211. Embora menos sistemático, o pensamento de Agostinho da
Silva é neste sentido muito convergente com o de Raimon Pannikar – cf., por exemplo, Intuição Cosmoteândrica.
A Religião do Terceiro Milénio, tradução de Maria Filomena Couto Soares, Lisboa, Editorial Notícias, 2003.
5 Cf. Romana Isabel Brázio Valente, “Agostinho da Silva na tradição 5º imperial”, AAVV, Agostinho, São Paulo,
Green Forest do Brasil Editora, 2000, pp.304-343; Renato Epifânio, “Entre Portugal e o Quinto Império – A
Mensagem de Fernando Pessoa à luz da visão/viagem de Agostinho da Silva”, AAVV, Agostinho da Silva. Um pensamento a descobrir, Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e Cultura, 2004, pp. 95-103.
6 Cf. António Braz Teixeira, “O pensamento teodiceico de Agostinho da Silva”, Ética, Filosofia e Religião. Estudos sobre o pensamento português, galego e brasileiro, Évora, Pendor, 1997, pp.195-200; Eduardo Abranches de
Soveral, “Agostinho da Silva: um homem de Deus”, AA.VV:, História do Pensamento Filosófico Português, volume
V, O Século XX, Tomo 1, direcção de Pedro Calafate, Lisboa, Caminho, 2000, pp.273-295; Maria Teresa Rua do
Nascimento Castro, Agostinho da Silva – naturalidade e transcendência no acesso a Deus, Guimarães, Editora Cidade Berço, 2005; Romana Valente Pinho, Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2006.
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7 “Crente é pouco sê-te Deus/e para o nada que é tudo/inventa caminhos teus” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, s.l., Ulmeiro, 1990, 2ª edição, p.22; “Do que é o Espírito Santo/só diga quem fique mudo/que
palavra há que me leve/àquele nada que é tudo” – Quadras Inéditas, s. l., Ulmeiro, 1990, p.36; “Oxalá por saber
tanto / me apeteça ficar mudo/só então vendo sem ver/aquele nada que é tudo” – Ibid., p.88. Cf. também: “A
isto de nada e de tudo/seu Deus os homens chamaram” – Uns poemas de Agostinho, p.64; Ibid., p.123; Quadras
Inéditas, p. 88. A identidade Deus-nada é também sugerida na seguinte quadra: “Se Deus quisesse ocupar / lugar
a si mesmo igual/preenchia todo o nada / e o deixava tal e qual” – Ibid., p.113.
8 Cf. Carlos Henrique do Carmo Silva, “De como metade é igual ao seu dobro... ou da sabedoria paradoxal de
Agostinho da Silva”, in AA.VV., Agostinho, ed. cit., pp. 63-103; Paulo A. E. Borges, “Agostinho da Silva ou a Divina
Paradoxia”, in Pensamento Atlântico. Estudos e Ensaios de Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2002, pp. 377-383.
9 Cf. o sentido do ουδ-εν grego, do nihil latino, do né-ant francês, do no-thing inglês, do ni-ente italiano, do
n-ichts alemão e do nada português e castelhano, proveniente da expressão latina “nulla res nata”, nenhuma coisa
nascida, o que sugere quer a não onticidade, quer o incriado e/ou imanifestado.
10 “Pois que não é do divino/o ser isto ou ser aquilo” – Agostinho da Silva, Id., Uns poemas de Agostinho, p. 71.
11 Cf. Id., Quadras Inéditas, p. 97.
12 Ibid., p.115.
13 Neste sentido o “nada” é sempre excedente do “tudo” e mais conveniente para designar o inefável absoluto:
“(...) nada que pode sempre ser/e é bem mais poderoso do que um tudo/que já sendo não pode renascer”
– Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.132. Veja-se a afinidade desta proposição com a de Bernardo
Soares, com a diferença de a limitação do ser se referir aqui ao “alguma coisa” e não ao “tudo”: “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar” – Bernardo Soares, Livro do
Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.185.
14 “Esse puro não ser que é todo ser” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.52; “Pois sendo só o não
ser/em pleno ser se desvenda” – Ibid., p. 62.
15 Num abundante elenco de passagens que identificam Deus como “nada”, ou “nada que é tudo”, apenas uma
poderia parecer apontar num sentido diferente, distinguindo “Deus” e “nada”, como na leitura ortodoxa da criação ex nihilo: “O que se deu no princípio/antes de haver alvorada/foi aquele casamento/de Deus fecundando o
nada” – Uns poemas de Agostinho, p. 78. Todavia, se verificarmos bem, o “nada” não designa aqui a mera ausência
de uma matéria primordial, remetendo antes para a ideia de uma potencialidade de geração que é primordialmente actualizada por Deus. Perguntamo-nos assim se, em coerência com o restante pensamento de Agostinho
da Silva, não estaremos aqui perante a visão de um Deus que se autofecunda, actualizando em manifestação/
criação todas as potencialidades em si latentes como imanifestado, como “nada”. A visão agostiniana seria aqui
convergente com a de Escoto Eriúgena , que aponta o “nada por excelência” do Deus que, ex nihilo, ou seja, “de
si para si mesmo”, autoprocede “ex nihilo in aliquid, ex inessentialitate in essentialitatem”: “Dum ergo incomprehensibilis intelligitur per excellentiam nihilum non immerito vocitatur, at vero in suis theophaniis incipiens
apparere veluti ex nihilo in aliquid dicitur procedere, [...]”; “Divina igitur bonitas quae propterea nihilum dicitur
quoniam ultra omnia quae sunt et quae non sunt in nulla essentia invenitur ex negatione omnium essentiarum in affirmationem totius universitatis essentiae a se ipsa in se ipsam descendit veluti ex nihilo in aliquid,
ex inessentialite in essentialitatem, ex informitate in formas innumerabiles et species” - João Escoto Eriúgena,
Periphyseon (De Divisione Naturae), Liber Tertius, editado por I. P. Sheldon-Williams com a colaboração de
Ludwig Bieler (edição bilíngüe), Dublin, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1981, pp. 166 e 168. Como
diz Mafalda Blanc: “A passagem de ‘nihil’ a ‘esse’ não envolve uma causalidade ‘ad extra’, pois ocorre no interior
do próprio Deus [...]” - “A Divina Natureza segundo Escoto Eriúgena”, revista Portuguesa de Filosofia, 52 (Braga,
1996), pp.97-109. No outro lado do planeta, também o místico e filósofo tibetano Longchenpa escreve, acerca
da natureza da mente, inerente ao “espaço fundamental [dbying]”: “Por esta não ser absolutamente nada e surgir
todavia como absolutamente tudo […]” - Longchen Rabjam [1308-1363], The Precious Treasury of the Basic
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Space of Phenomena, edição bilíngue tibetano-inglês, traduzido sob a direcção de Sua Eminência Chagdud Tulku
Rinpoché por Richard Barron (Lama Chökyi Nyima), editado por membros da Comissão de Tradução Padma:
Susanne Fairclough, Jeff Miller, Mary Racine e Robert Racine, Junction City, Padma Publishing, 2001, p. 5.
16 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p. 81. Sobre o mundo e a vida como “poema eterno e de hora/de
felicidade e dor”, cf. Id., Uns poemas de Agostinho, p. 74.
17 Sobre a “criação” como “eterna” e “contínua”, cf., De como os portugueses retomaram a Ilha dos Amores, in
Dispersos, introdução de Fernando Cristóvão, apresentação e organização de Paulo A. E. Borges, Lisboa, Instituto
de Cultura e Língua Portuguesa, 1989, 2 ª edição, p. 738.
18 “O mundo é todo uma causa/com suas conseqüências/ /uma causa não causada/que a si própria vai causando/e de causa a causa rola/viva causa se engendrando” – Id, Uns poemas de Agostinho, p.113.
19 “Ter Deus criado este mundo/um dia é nossa linguagem/Deus nele se revelou/e ele dele é a imagem//Ele o
cria ele o recria/quanta vez é necessária/oculta a face aparente/sempre igual e sempre vária” – Ibid., p.131; “Tudo
é uno e divino/só nossa mente ao mundo/ainda/dele faz um e outro/ (...)/e até fez Deus criar o mundo/quando
aquele mundo e Deus/o mesmo são/eternamente o sendo e não o sendo” – , Quadras Inéditas, p.126.
20 “E o Deus que tanto procuro / em que atingido me afundo / é aquele ser-não-ser / do que acontece no mundo” – , Uns poemas de Agostinho, p.12. Cf. também: “Mas de verdade o que eu amo/é o do nada do mundo/que
até duvido que exista/tanto se acolhe ao profundo” – Ibid., p.129. Cf. ainda as definições de Deus como o “que
talvez não seja embora sendo”, o “que é não ser” e o “que é e que não é” - Ibid., pp.42 e 130-131.
21 Como já referimos, Agostinho adere plenamente, por várias vias, àquela pulsão mística do pensar que é entre
nós bem exemplificada por Antero de Quental: “Não-ser, que és o Ser único absoluto” – “Elogio da Morte”, VI,
in Sonetos, organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1994,
p.146. Cf. também a “união da alma com Deus” interpretada como “transição do ser para o não-ser, que equivale,
quanto cabe, na realidade, à plenitude e perfeição do ser” – , Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade
do Século XIX, in Filosofia, organização, introdução e notas de Joel Serrão, Lisboa, Editorial Comunicação/Universidade dos Açores, 1989, p.165.
22 Nesta linha de interpretação, bem como noutros aspectos, o pensamento de Agostinho, embora por outras
vias, converge com uma das teses fundamentais do seu interlocutor Eudoro de Sousa, que evoca na experiência
ritual arcaica a simbólica indiferenciação, ou já simultaneidade, do natural, do humano e do divino, aquilo que
a nascente filosofia logificará na abstracta distinção, separação e sucessividade. O mundo mítico seria o do “ser
uma coisa só”, em que o natural, o humano e o divino ainda não surgem como entidades distintas e só como
tal relacionáveis, pois nesse mundo, mundo de símbolos e não de coisas, mundo ainda sem dentro e fora, uno e
múltiplo articulam-se perfeitamente na translúcida fluidez de potências que, mais do que existirem ou mesmo
serem, entre-são. E mesmo que, como reconhece Eudoro, “o ‘não ser Homem’, o ‘não ser Deus’, e o ‘não ser Natureza’” já aponte, “de certo modo, para o ser que esses não-seres são”, esse ser é o de homens, deuses e naturezas,
respectivamente não tão “humanos” como o Homem, não tão “divinos” como Deus, não tão “naturais” como a
Natureza, enquanto anteriores e alheios à lógica abstracção dos conceitos gerais e universais de Homem, Deus e
Natureza, de humana e apenas humana radicação. Isto porque esse crepúsculo que é vespertino para o mundo do
drama ritual e ainda do mito, o mundo do “uma coisa só”, é auroral para o Homem que, desintegrado da unidade
e daquilo a que Eudoro chama, em Mitologia, “o triângulo da complementaridade e do simbólico”, se inventa
e desoculta como género autónomo e autárquico na mesma medida em que, em si ocultando os homens, aos
deuses oculta em Deus e às naturezas na Natureza, que assim efectivamente reduz a “projectos” seus. Este processo, que o pensador apreende em simultâneo como o da filosofia e o da história universal, que bem descrevem
o que realmente praticam, é o da “desdivinização e dessacralização do mundo” – entenda-se, do mundo em que
logicamente não ex-istem Deus, Homem e Natureza, porque ritual e mito-simbolicamente entre-são deuses-homens-naturezas – , que resulta na “humanização do Homem”, na “naturalização da Natureza” e na “divinização
de Deus” – Cf. Eudoro de Sousa, “Deus, Homem, Natureza. Para uma teoria do paganismo...”, Correio Braziliense,
Brasília, 2 de Fevereiro de 1969; “Prolegómenos a uma filosofia da religião pré-helénica”, in Anais do Congresso
Internacional de Filosofia (São Paulo, 1954), São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1956, pp.297-307, p. 303;
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“...Sempre o mesmo acerca do mesmo”, Editora Universidade de Brasília, 1978, pp.27 e 29; reeditado Horizonte e
Complementaridade. Sempre o Mesmo acerca do Mesmo, prefácio de Fernando Bastos, Lisboa, Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2002. Cf. Paulo A. E. Borges, “Eudoro de Sousa ou o helenista saudoso da ante e trans-helenidade”, introdução a Eudoro de Sousa, Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos, organização de
Joaquim Domingues, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, pp. 9-11.
23 “Ora é Deus ora é o mundo/segundo damos a volta/ou quando qualquer de nós/da prisão própria se solta//
ora há ora não há/segundo somos ou não/mão alguma se não somos/se somos eterna mão” – Agostinho da Silva,
Uns poemas de Agostinho, p.64. Cremos que a “mão” simboliza aqui um Deus pensado como criador e providente, um protector transcendente do sujeito cuja ex-istência o lança naturalmente na cisão e na angústia. Cf. a bem
conhecida imagem de Antero de Quental, no soneto “Na Mão de Deus” – Sonetos, p.159.
24 “Aqui neste profundo apartamento/Em que, não por lugar, mas mente estou,/No claustro de ser eu [...]”
– Fernando Pessoa, Obras, I, introduções, organiza­ção, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila
Pereira da Costa ( só no vol. I ), Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.231.
25 Cf., ainda em Pessoa, a aspiração a algo de cuja possibilidade angustiadamente se duvida, como por exemplo
nestes versos: “Não poderei, Senhor, alguma vez/Desalgemar de mim as minhas mãos?” – Ibid, p.216.
26 Cf. a conhecida ideia do “não-agir” (wuwei) do sábio como aquele que reduz progressivamente a intencionalidade e finalidade do agir, ou seja, o seu direccionamento parcelarizante e limitativo, enquanto actualizador
de uma possibilidade em detrimento de todas as outras, até chegar ao paradoxo de uma não-acção (particular)
coincidente com uma acção total, sem limites: “[...] he who devotes himself to the Tao (seeks) from day to day to
diminish (his doing).//2. He diminishes it and again diminishes it, till he arrives at doing nothing (on purpose).
Having arrived at this point of non-action, there is nothing which he does not do.” – Lao Tzu, Tao Te King, 48;
cf. também 43 – The Sacred Books of the East, edição de Max Müller, vol. XXXIX, The Texts of Taoism. The Tao Te
Ching of Lao Tzu. The Writings of Chuang Tzu, I, tradução de James Legge, New York, Dover Publications, 1962,
pp.90 e 87. Cf. Anne Cheng, Histoire de la Pensée Chinoise, Seuil, 1997, pp.188-211. Agostinho da Silva deixou
uma tradução/versão, ainda inédita, do Tao Te King ou, melhor, Daodejing.
27 Sendo comum ao budismo em geral, é bem acentuado no budismo chinês o sentido de que a mente desperta
ou estado de Buda, omnipresente e omnisciente, se desvela na extinção dos conceitos de sujeito, objecto e acção
ou relação entre eles, meras construções mentais sem adequação à realidade última das coisas – cf. El Sutra de
Hui Neng. Comentarios de Hui Neng al Sutra del Diamante, versão de Thomas Cleary, Madrid, EDAF, 1999, p. 202,
entre outras.
28 “Experimento agir por não agir/com meus mestres chineses fascinado/tanto mais que me vejo consolado/de
me ter obrigado a existir//(...) que por aí me ligo e firme prendo/ao mais alto poder e enfim me alio/ao que talvez
não seja embora sendo//ao que o mundo contempla não o vendo/ao que a mim criou porque eu o crio/ao que à
vida conduz não a vivendo”- Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.42.
29 “Que a mim me crie sem que eu seja/mais do que seus pensamentos/que em mim batendo o recriem/
num eterno de momentos//de momentos que O não são/nem O foram nem serão” – Ibid., p.34.
30 Como naquela em que, falando do “alguém” divino, diz: “Como à vida me deu sem eu querer” – Ibid.,
p.132.
31 “Sê espectador de ti próprio/ou dele por ti velado/e também por ti expresso” – , p.74.
32 “Me fiz gente se é que sou/em Barca d’Alva do Douro” – Ibid., p.65.
33 Cf. Santo Agostinho, De libero arbitrio, II, III, 7; De civitate Dei, XI, 26; De Trinitate, X, 10, 14; Descartes, Discours
de la Méthode, VI, 32; Principia philosophiae, VII, 17; Meditationes de prima philosophia, II, 3.
34 Num texto ainda inédito, Agostinho interpreta preferencialmente a Substância de Espinosa como “o Nada
que Tudo seja”, dando como razão: “já que sou meio tibetano, pelo menos meio” – Caderno Três sem Revisão,
[pesquisa e recolha de espólio por Amon Pinho, Helena Briosa e Romana Valente Pinho; transcrição de Rui Lopo
e Sandra Pereira; revisão final de Renato Epifânio, Ricardo Ventura e Rui Lopo].
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35 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.102. Cf. a afirmação de Buddhaghosa: “Só o sofrimento existe, mas
não se encontra nenhum sofredor; / Os actos são, mas não se encontra actor” – Visuddhimagga, Londres, Pali
Text Society, p.513. Cf. também: “Não há motor imóvel por detrás do movimento. (...) Não há pensador por
detrás do pensamento. O pensamento é ele próprio o pensador. Não podemos deixar aqui de notar como esta
ideia budista se opõe diametralmente ao ‘cogito ergo sum’ cartesiano: ‘Eu penso, logo existo’” – Walpola Rahula,
L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens, estudo seguido de uma escolha de textos, prefácio
de P. Demiéville, Paris, Éditions du Seuil, 1978, pp.46-47. A ideia de “eu”, tal como a sua correlata, de “não eu”, é
assim uma “noção falsa”, à qual nada corresponde de real, apenas uma das cinqüenta e duas formações mentais
possíveis e próprias do quarto agregado, ou skandha, dos cinco que originam a experiência meramente psicofisiológica e ultimamente ilusória de haver um “ser” – Ibid., cf., p.46. Cf. Paulo A. E. Borges, “Budismo e identidade
pessoal”, Identidade Pessoal: Caminhos e Perspectivas, organização de Francisco Teixeira, Quarteto, 2004.
36 “Chamando Deus ao Pensamento, nome que dou ao inominável (...)” – Agostinho da Silva, Pensamento à
Solta, Textos e Ensaios Filosóficos II, p.145.
37 Cf. infra, nota 42.
38 Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.161.
39 Ibid., p.154.
40 Cf. uma das teses que sustentamos em Paulo A. E. Borges, Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de
Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (no prelo).
41 Cf. Fernando Pessoa, “O Desconhecido”, in Textos Filosóficos, estabelecidos e prefaciados por António de Pina
Coelho, I, Lisboa, Ática, 1993, pp.44-45.
42 Hans Urs von Balthasar, um dos teólogos cristãos que mais acerbamente criticou o entusiasmo pelas vias
orientais, declara que “é exclusivamente referindo-se ao pensador cristão Eckhart que o diálogo (cristão) com as
vias de libertação asiáticas será possível” – Herrlichkeit, Eine theologische Aesthetik, III/1: “Im Raum der Metaphysik”, Einsiedeln, 1965, p.410.
43 “Lorsque j’étais dans ma cause première, je n’avais pas de Dieu et j’étais cause de moi-même; alors je ne
voulais rien, je ne désirais rien, car j’étais un être libre, je me connaissais moi-même, jouissant de la vérité. Je me
voulais moi-même et ne voulais rien d’autre; ce que je voulais, je l’étais et ce que j’étais, je le voulais et là j’étais
dépris de Dieu et de toutes choses, mais lorsque, par ma libre volonté, je sortis et reçus mon être créé, j’eus un
Dieu, car avant que fussent les créatures, Dieu n’était pas ‘Dieu’, mais il était ce qu’il était. Mais lorsque furent les
créatures et qu’elles reçurent leur être créé, Dieu n’était pas ‘Dieu’ en lui-même, il était ‘Dieu’ dans les créatures”
– Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, Sermons, II, apresentação e
tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, Paris, Éditions du Seuil, 1978, p.146. Esta visão reitera-se e aprofunda-se
no final do sermão – cf. ibid., pp.148-149.
44 Neste sentido, a teologia catafática, ou positiva, pensando Deus antropocentricamente, dará sempre razão
a Feuerbach, que todavia poderá incorrer noutro preconceito, o de presumir que uma essência e consciência
infinita pode ainda ter uma determinação, neste caso humana, como antes divina. Os preconceitos teológico e
antropológico acompanham-se...
45 Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, in Sermons, II, p.146.
46 A questão do absoluto, Uno, Bem ou Deus, não o ser em si nem para si, ou não se pensar como tal, remonta
pelo menos, na tradição ocidental, à primeira hipótese de Platão, no Parménides, pela qual o Uno não seria “uno”
nem “ser”, transcendendo todo o conhecimento (141 e – 142 a), e mais explicitamente a Plotino, na sua crítica
à concepção aristotélica de Deus. Demarcando-se do Deus –“Inteligência suprema” que se pensa a si mesma
eternamente, do Deus – “Pensamento” que “é pensamento de pensamento” (cf. Aristóteles, Metafísica, Λ, 7, 1.072
b; 9, 1.074 b; 9, 1.075 a), Plotino sustenta que o Bem/Uno não se pensa, vendo-se apenas como algo que é nessa
primeira instância de cisão e multiplicidade que é a Inteligência, a sua primeira hipóstase processiva – Cf. Enéadas, V, 1, 7 e 9; VI, 7, 37-38. Cf. Paulo Borges, “O desejo e a experiência do Uno em Plotino”, Philosophica, nº 26
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Paulo Borges
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(Lisboa, Novembro de 2005), pp.175-214. Também no Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a “Causa” transcendente
e absoluta de todas as coisas excede todas as categorias da sua inteligibilidade, incluindo as de “uno”, “deidade”
ou “bem” – Teologia Mística, V, 1.048 a.
47 Rudolf Otto assinalou aqui a profunda convergência de Eckhart com Shankara, mestre do Vedanta não dualista. A Divindade impessoal, tal como o Brahman neutro, transcendem Deus ou Ishvara, o “Senhor pessoal”
que emerge do absoluto com a emergência da alma ou atman – cf. Mystique d’Orient et d’Occident. Distinction
et Unité, tradução e prefácio de Jean Gouillard, Paris, Payot, 1951, pp.26-28. Cf. a diferença, em Shankara, entre
“Deus manifestado” e “Absoluto imanifestado” (Saguna-Brahman e Nirguna Brahman) – Brahma-Sutras, con los
comentarios advaita de Sankara, 1, 1, 11; 3, 3, 31, edição de Consuelo Martín, Madrid, Editorial Trotta, 2000, pp.76
e 537. Cf. também B. Barzel, Mystique de l’Ineffable dans l’Hindouisme et le Christianisme. Çankara et Eckhart,
prefácio de Michel Hukin, Paris, Les Éditions du Cerf, 1982, pp. 101-108. Explorando sobretudo afinidades, mas
também diferenças, com o budismo zen, cf. Alois M. Haas, “Correspondances entre la pensée eckhartienne et les
religions orientales” (tradução do alemão de Emilie Zum Brunn), in AA.VV., Voici Maître Eckhart, textos e estudos
reunidos por Emilie Zum Brunn, Paris, Jérôme Millon, 1998, pp.373-383. Poderíamos fazer remontar a questão,
na tradição ocidental, à declaração de Heráclito: “O Um, o Sábio, não quer e quer ser apenas chamado pelo nome
de Zeus” – fragm. 32 (Diels-Kranz). E também, na tradição oriental, à distinção de Lao Tzu entre o Tao nomeado
e inomeado, existente e não-existente ou manifestado e imanifestado – cf. Tao Te King, 1, 2 e 40, 2, pp.47 e 84.
48 Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, in Sermons, II, p.149. Cf.
também p.148.
A continuidade, ainda mais radical, destas posições encontra-se condenada por Ruysbroeck no Livro das Beguinas: “Chacun de ces hommes maudits ose dire: Alors que je résidais en mon être d’origine, en mon essence éternelle,
il n’y avait pas de Dieu pour moi, mais ce que j’étais je le voulais et ce que je voulais être je l’étais: c’est par libre
volonté que je suis sorti et suis devenu ce que je suis. Si j’avais voulu, je ne serais rien devenu, et je ne serais pas une
créature. Car Dieu ne connaît, ne veut ni ne peut rien sans moi; avec Dieu je me suis créé moi-même et ai créé toutes
choses, et c’est ma main qui supporte le ciel et la terre et toutes les créatures; aussi toute gloire qu’on rend à Dieu,
c’est à moi qu’on la rend car dans mon être je suis Dieu par nature” – cf. Oeuvres, tradução dos Beneditinos de S. Paul
de Wisques, 1938, t. VI, p.53, in Stanislas Breton, Philosophie et Mystique. Existence et surexistence, Grenoble, Jérôme
Millon, 1996, pp.54-55.
Veja-se também o aforismo de Angelus Silesius: “Sans moi Dieu ne peut vivre, fût-ce une seconde, je le sais,//
Si je retourne au néant, de dénuement Il doit rendre l’esprit” – Le Pèlerin Chérubinique, tradução de Camille
Jordens, Paris, Éditions du Cerf/Éditions Albin Michel, 1994. Agostinho da Silva deixou uma tradução inédita
desta obra.
49 – Cf. Maître Eckhart, “De la sortie de l’esprit et de son retour chez lui”, Oeuvres de Maître Eckhart. SermonsTraités, traduzido do alemão por Paul Petit, Paris, Gallimard, 1987, p.118. Para a distinção entre a ociosidade da
Divindade e o Deus criador, cf. “Du Royaume de Dieu”, Ibid., p.301.
50 – É nos dois sentidos desta geração, ad extra e ad intra, que entendemos as palavras admiravelmente concisas
de Eckhart: “Un maître dit: l’âme s’enfante elle-même en elle-même et s’enfante à partir d’elle-même et s’enfante
de retour en soi. [...] L’âme enfante à partir d’elle-même Dieu à partir de Dieu en Dieu” – “Adolescens, tibi dico:
surge”, in Sermons, II, p.85. Sobre estas questões em Eckhart, cf. Paulo A. E. Borges, “Ser ateu graças a Deus ou
de como ser pobre é não haver menos que o Infinito. A-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati
pauperes spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophica, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77.
51 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.81.
52 Cf. Ibid., p.82.
53 Cf. Platão, República, 380 d – 383 a.
54 Cf. Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, introdução, tradução e notas pelo Prof. Gustavo de Fraga,
Coimbra, Almedina, 1976, IV, 2, 17, V, 15, VI, 11, pp. 166, 178-179, 194, 210.
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55 Cf. Heinrich Zimmer, Maya ou le Rêve Cosmique dans la mythologie hindoue, prefácio de Madeleine Biardeau, traduzido do alemão por Michele Hulin, Fayard, 1987; The King and the Corpse. Tales of the Soul’s Conquest
of Evil (em particular “Four Episodes from the Romance of the Goddess”), Princeton University Press, 1993,
10ª edição. A leitura de Maya no sentido de uma ilusão ou prestidigitação mágica, dominante em Zimmer,
foi contudo fundamente problematizada pelo rigor filológico de Jan Gonda, que propõe, como denominador comum de todos os empregos do termo nos textos vedânticos ou não, simplesmente o seguinte sentido:
“Incomprehensible wisdom and power enabling its possessor, or being able itself, to create, devise, contrive,
effect, or do something” “ – “Maya”, Change and Continuity in Indian Religion, Nova Deli, Munshiram Manoharlat Publishers Pvt. Ltd., 1985, pp.164-197, p.166. Cf. também, para uma análise e discussão mais extensa,
com abundantíssima informação bibliográfica, Id., “The ‘original’ sense and the etymology of skt. maya”, Four
Studies in the Language of the Veda, ‘s-Gravenhage, 1959, pp.119-194 ; “Maya”, in Tijdschrift voor Philosophie, 14
(1952, Lovaina), pp.3-62. Cf. também as perspectivas de H. Grassmann, Worterbuch zum Rig-Veda, 1872, 1.034
f. e J. Pokorny, Indogerm. Etymol. Worterbuch, Berna, 1954, p.693. Vejam-se ainda, entre muitos outros estudos:
Louis Renou, “Les origines de la notion de Mâyâ dans la spéculation indienne”, L’Inde Fondamentale, estudos
de indianismo reunidos e apresentados por Charles Malamoud, Paris, Hermann, 1978, pp.133-140; Olivier
Lacombe, Indianité. Études historiques et comparatives sur la pensée indienne, “L’illusion cosmique et les thèmes
apparentés dans la philosophie indienne”, Paris, Les Belles Lettres, 1979, pp.85-100; Shri Aurobindo, Brahman
et Maya dans les Upanishads, traduzido por Jean Herbert, Paris, Dervy-Livres, 1980.
De realçar que no budismo o reconhecimento da universalidade da ilusão implica o reconhecê-la, ela mesma,
como ilusória, na autolibertação universal do espírito:
“Kyé ho ! Amis ! Samsâra et nirvâna ne sont rien d’autre que cela !
Tous les phénomènes sont le déploiement de l’espace et de la nature de l’esprit.
Libre la base ! Libre la voie ! Libre depuis toujours le fruit !
Tout s’autolibère et dans un jeu illusoire
Émergent des perceptions sans desseins ni postulats particuliers.
Tout est ainsi, laissez tomber votre attachement tenace à un but.
Ultimement il n’y a ni illusion ni illusionniste [...]” – Longchenpa, La liberté naturelle de l’esprit, apresentado e
traduzido do tibetano por Philippe Cornu, Paris, Éditions du Seuil, 1994, p.277.
56 Cf. Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, I, pp.42-46. Cf. Paulo Borges, “Nada, Abismo, Não-Ser, Noite, Vácuo
e Ilusão – um Deus de si insciente e enganador ? (Contributo para a relação de Antero com o pensamento oriental)”, Anto, nº5 (Amarante, Primavera de 1999), pp.156-168.
57 São imensas as passagens de Pascoaes que poderíamos aqui citar. Salientem-se apenas: “A Ilusão é a Força
das forças, o Sol dos sóis de que falam os hinos védicos” – “O Paroxismo”, A Águia, 2ª série, nº30 (Junho de
1914), pp.166-168; in A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos), compilação, introdução, fixação do
texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio&Alvim, 1988, p.177; “Deus é o supremo Disfarçado... Entre
ele e a nossa alma turbilhona um mar infinito de aparências, de mentiras e de ilusões” – “Portugal e a Guerra
e a orientação das novas gerações”, A Águia, 2ª série, nº 36 (Porto, Dezembro de 1914), pp.161-168, p.164; “a
Criação é feita de mentiras”; “A verdade é mentirosa...por fatalidade da sua força criadora, isto é, para não se
repetir” – Santo Agostinho, Porto, Livraria Civilização, 1945, p.294.
Sobre a questão, cf. Paulo A E. Borges, “Um Deus Enganador, imperfeito criador do mundo possível. Anticartesianismo, antileibnizianismo e ilusionismo em Teixeira de Pascoaes”, in AA.VV., Descartes, Leibniz e a Modernidade (Actas do Colóquio), coordenação de Leonel Ribeiro dos Santos, Pedro M. S. Alves e Adelino Cardoso,
Lisboa, Edições Colibri/Centro e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
1997, pp.465-485; “Nada, I-lusão e metamorfose: da imperfeição do Deus criador à criação/revelação de um
novo/eterno Deus. Teogonia, teurgia e ateoteísmo em Teixeira de Pascoaes”, Nova Renascença, vol.XVII, nos 64-66
(Porto, Inverno/Verão de 1997), pp.439-469.
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58 Cf. Sigmund Freud, Escritores Criativos e Devaneio, in Gradiva, de Jensen. Escritores Criativos e Devaneio,
Pequena Colecção das Obras de Freud, 30, tradução de Maria Aparecida Moraes Rego, Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1976, pp.101-110. Recordemos a exortação de Leonardo Coimbra: “Deixai mentir as crianças, as desinteressadas mentiras da sua imaginação, oh pedagogos de tantíssimos óculos, pós e sabedorias !” – A Alegria, a Dor
e a Graça, in Obras, I, selecção, coordenação e revisão pelo Professor Sant’Anna Dionísio, Porto, Lello&Irmão
– Editores, 1983, p. 408.
59 Como propõe Richard Kearney, em Poétique du Possible. Phénoménologie Herméneutique de la Figuration,
Beauchesne, 1984 (trad. portuguesa de João Carlos Silva: Lisboa, Instituto Piaget, 1997).
60 É José Enes quem entre nós denuncia o carácter fundamentalmente funcional, funcionalizante e operatório da razão – cf. Linguagem e Ser, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, pp. 30-34.
61 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.107.
62 Cf. Stanislas Breton, Rien ou Quelque Chose. Roman de métaphysique, Flammarion, 1987, pp. 7-32, que nos
adverte que na “evanescência semântica” de palavras como “nada”, “ninguém” e “pode ser” é possível acedermos
à aprendizagem, em vida, da nossa própria morte (pp. 7 e 31-32).
63 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.120.
64 Cf. Bettina Bäumer, Schöpfung als Spiel: Der Begriff lila im Hinduismus, seine philosophische und theologische Bedeutung, Munique, Ludwig-Maximilians-Universitat, 1969 (dissertação de Doutoramento); AA.VV.,
The Gods at Play. Lila in South Asia, editado por William S. Sax, Oxford University Press, 1995.
65 É sobretudo em Jacob Böehme que essa “Sabedoria” que biblicamente folga na presença de Deus, se recreia
na terra e compraz “nos filhos do homem” (Provérbios, 8, 30-31), é vista como uma “imaginação” ou “fantasia”
lúdica que mágico-oniricamente gera em si “o modelo pré-existente da criação” – cf., por exemplo, De Testam.
Christi S. Baptism., I, 1, 6; Mysterium Magnum, X, 39; cf. Alexandre Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Paris,
J. Vrin, 1971, pp. 214-215, 263, 346-351 e 376. A ideia também reaparece em Schelling, articulando Sabedoria/
Magia, como na introdução às Conferências de Erlangen – Sämtliche Werke, edição de K. F. A. Schelling, Stuttgart/
Augsburg, Cotta, 1856-1861, IX, 222-223, 223b, 224a e 225a.
66 Entre as múltiplas filosofias contemporâneas do jogo, na esteira de Heráclito e Nietzsche, como as de Eugen
Fink e Kostas Axelos, destacamos a de Stanislas Breton, com esse jogo da superabundância que vê como a “pura
passagem” do inefável “princípio-nada”/”nada-imaginário” às suas diferentes meta-morfoses, passagem que, não
por ser “irracional”, mas por dar-se “aquém de toda a ‘explicação’” (inclusive a de irracionalidade), diz recusar
“toda a razão” - cf. Être, Monde, Imaginaire, Paris, Les Éditions du Seuil, 1976, pp. 170-172.
67 Cf. Paulo A. E. Borges, “Nada, I-lusão e metamorfose: da imperfeição do Deus criador à criação/revelação
de um novo/eterno Deus. Teogonia, teurgia e ateoteísmo em Teixeira de Pascoaes”, Nova Renascença, vol.XVII,
nos 64-66 (Porto, Inverno/Verão de 1997), pp.439-469. “Um Deus Enganador, imperfeito criador do mundo
possível. Anticartesianismo, antileibnizianismo e ilusionismo em Teixeira de Pascoaes”, Descartes, Leibniz e a
Modernidade (Actas do Colóquio), pp.465-485.
68 Cf. Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Filosofia, organização, introdução e notas de Joel Serrão, Lisboa, Universidade dos Açores/Editorial Comunicação, 1989, pp.125,
160 e 165-166.
69 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.45. Cf. a referência ao “nada ser que venero”, em Ibid., p. 75.
70 Recordando essa transfiguração do sujeito experienciada por São Paulo – “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo
que vive em mim” (Gálatas, 2, 20) – , é o que Agostinho parece ainda expressar noutra quadra: “Fugazes talvez no
tempo/nos seja eterna a essência/embora não existindo/nos existe a existência” – Quadras Inéditas, p. 50.
71 Cf. Heinrich Zimmer, Maya ou le Rêve Cosmique dans la mythologie hindoue, pp. 72-73.
72 Cf. Domingos Tarrozo, Philosophia da Existencia. Esboço synthetico d’uma philosophia nova, s. l., Bibliotheca
do Norte – Editora, 1881, pp. 59 e 63.
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73 Em Teixeira de Pascoaes a divina espontaneidade do acto criador prima sempre sobre a consciência de si
e dos seus efeitos, que só sobrevém depois, predominantemente, embora nem sempre, como uma consciência
infeliz, pela qual o Deus criador, reconhecendo a cisão que assim instaura em si e na criação, dela se arrepende e
se converte no seu oposto, o Deus redentor. Nesta distinção e oposição, embora mais dialéctica, e integrada numa
unidade superior, entre Jeová e Cristo, o Pai e o Filho, Pascoaes retoma de modo muito original um paradigma
fundamental do pensamento gnóstico.
74 Se o sujeito, enquanto se encaminha para essa experiência, ainda se esforça por ela, constituindo-o uma vontade de auto-anulação do seu ser finito e separado – “(...) é o querer não ser/o ser eu o ser que sou” (Agostinho
da Silva, Quadras Inéditas, p.41) – , a paz profunda só advém da entrega total e confiante ao que se é no sonho
divino, nessa vida que por ser sonhada não escapa ao trans-antinómico cuidado e vigília do divino sonhador:
“Como durmo sossegado/sabendo que por mim vela/uma coisa que sonhando/vivo me tem dentro dela” – Ibid.,
p.19.
75 “Quanto a ser o melhor é o não ser” – Ibid., p.107. Conforme já acima indicámos, são notáveis, e estão ainda
por estudar, entre outras, as afinidades da visão/experiência de Agostinho da Silva com a chamada mística renana. Sendo Mestre Eckhart o seu expoente mais conhecido, e explicitamente referido pelo autor português (“foi o
Espírito quem me deu Eckhart e quem me deu a geometria analítica” – “Ecúmena”, in Obras de Agostinho da Silva. Textos e Ensaios Filosóficos II, p.193), sabe-se hoje que a doutrina eckhartiana estava prefigurada no movimento místico renano-flamengo das beguinas, donde emergem nomes como Hadewijch d’Anvers, Hadewijch II e
Marguerite Porete, ou ainda em Beatriz de Nazareth. Vejam-se num poema anónimo emergente do mesmo clima
espiritual, na segunda metade do século XIII, admiráveis convergências com a poesia mística de Agostinho: “Isso
é – mas ninguém sabe o que é./(...) É de tal modo que/Não é nem isto, nem aquilo./(...) É um lugar calmo/Que
se derrama sem quididade./(...)/O alguma coisa que tu és/Deve tornar-se nada;/Toda a coisa, todo o nada/Deve
ser ultrapassado,/(...) Vai sem caminho/Sobre a estreita subida:/Assim tu atinges os rastos do deserto./Ó minha
alma,/Sai – entra em Deus,/Dissipa tudo o que é meu/No nada de Deus,/Abisma-te nas águas sem fundo !/(...) Se
eu me perco/Eu TE encontro,/Ó Bem supra-essencial !” – Dreifaltigkeitslied (Cântico da Trindade), ed. K. Bartsch,
1858, in Emilie Zum Brunn, “Introdução” a Marguerite Porete, Le Miroir des simples âmes anéanties, traduzido
do francês antigo por Claude Louis-Combet, apresentado e anotado por Emilie Zum Brunn, Grenoble, Jérôme
Millon, 2001, nota 8, pp. 21-22.
76 Se recordarmos que as formas do verbo ser derivam, no castelhano e no português, da fusão dos latinos esse,
essere (ser, existir, haver; estar) e sedere (estar sentado; ter assento; estacionar, morar, residir; ficar tranqüilo;
fixar-se; pousar; afundar-se etc...), com o sentido da experiência do ser do ente como o que é assente num fundo
ou numa sede que é a sua re-sidência estável – Cf. José Joaquim Nunes, Cantigas de Amigo dos Trovadores GalegoPortugueses, edição crítica de José Joaquim Nunes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, vol.III (comentário,
variantes e glossário), pp. 681-683; Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário das Palavras, Termos e
Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram [...], edição crítica de Mário
Fiúza, vol.II, Porto/Lisboa, Civilização, 1966, pp.553-554; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa, vol.III, Lisboa, Editorial Confluência/Livros Horizonte, 1967, p.2.095; J. Corominos e J. A. Pascual,
Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, IV, Madrid, Gredos, 1981, p. 213.
77 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p. 79.
78 Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Verbo Escuro/A Beira (Num Relâmpago), Obras Completas (edição do
autor), vol. VII, Lisboa, Aillaud&Bertrand, s.d., pp. 44-45.
79 Cf. Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p. 125.
80 Cf. Ibid., p.25.
81 “Ser poema não poeta/é que vejo como um alvo/se o não for para que vivo/mas se for me vivo e salvo” – Ibid.,
p.79. Cf. ainda, falando da reintegração em Deus: “nunca mais fomos poetas/que era coisa de sofrer/agora somos
poemas/como Ele é de sempre ser” – Ibid., p. 142.
82 “Porque tudo é sonho puro/ /só não é sonho ele ser/tanto que é e que não é” – Ibid., p. 131.
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83 Ibid., p.122.
84 “Matéria sendo bailado/que faz o Espírito Santo/com o espírito que é nosso/e que santo não é tanto//da
dança brota primeiro/o que se chama energia/naquele saber de agora/em que física se fia” – Ibid., p.64.
85 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.141.
86 Um dos tópicos maiores e mais subtis do pensamento sapiencial e ético de Agostinho é a extensão do não
possuir ao não se possuir: “A única revolução definitiva é a de despojar-se cada um das propriedades que o limitam e acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio” – Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.148; “[...] mas o defeito que tiveres não vem da natureza, pois
que do céu desceste; vem do trato do mundo, que te criou a ideia de teres corpo autónomo e de seres dono de tua
alma” – , p.149. Veja-se a proximidade com o pensamento de Erich Fromm e com algumas das suas referências
fundamentais, como o budismo, Mestre Eckhart e o próprio Marx, segundo o entendimento radical da noção
marxista de “expropriação” enquanto desconstrução da “estrutura de propriedade interna do indivíduo”, ou
da “estrutura proprietária das pessoas”, num autor como Dietmar Mieth (Die Einheit von Vita Activa und Vita
Contemplativa, Regensburg, Friedrich Pustet, 1969) – Erich Fromm, Ter ou Ser?, tradução de Isabel Fraga, Lisboa,
Presença, 2002, 2ª edição, p.68. Quanto ao budismo, veja-se como a experiência da “existência” (bhava) é imediatamente precedida da “apropriação” (upadana), na enumeração dos doze factores da produção interdependente
que estruturam o samsara, o ciclo da existência condicionada. Como diz Nagarjuna: “Havendo apropriação, o
curso da existência põe-se em movimento para o apropriador. Pois, se ele fosse livre de apropriação, tornar-se-ia
livre com efeito. A existência não teria lugar” – Stances du Milieu para Excellence (Madhyamaka-Karikas), 26, 7,
traduzido do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bougault, Gallimard, 2002, pp.343-344. Contrariamente ao entendimento comum desta afirmação, condicionado pela linguagem e pelos hábitos mentais,
não há “apropriador” fora da “apropriação”, que a preceda. Como diz Guy Bougault, “não há ser sem ter”, descrevendo-se aqui “o advento do eu-proprietário, o advento da estrutura eu/meu” (ibid., p.344), numa visão que
radicaliza e desmonta a dicotomia de Fromm entre “ser” e “ter”. O primeiro da cadeia dos doze factores da constituição dos seres é naturalmente a “ignorância” (avidya), enquanto não reconhecimento da verdadeira natureza
das coisas. Também numa perspectiva não budista, como a dos Yoga-Sutras, de Patanjali, as duas primeiras das
cinco fundamentais causas de “aflição” (klesha) são a “ignorância” (avidya) e “o sentimento de existência pessoal”
(asmita) (II, 3), “literalmente o facto de dizer “eu sou” e de se identificar com isso”. Daí que, “na perspectiva do
yoga clássico, o individualismo, com o seu cortejo de reivindicações”, seja “considerado como uma doença” – Cf.
Guy Bougault, L’Inde pense-t-elle ?, Paris, PUF, 1994, pp.58 e 60. Cf. B. K. S. Iyengar, Light on the Yoga Sutras of
Patanjali, prefácio de Yehudi Menuhin, London, Thorsons 1996, p.105.
87 Cf. Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p. 133.
88 Cf. Antero de Quental, Sonetos, p.159.
89 Cf. a quadra que agora transcrevemos na sua totalidade: “Por muito que te possuas/Não gabes os feitos
teus/se a Deus lhe faltasse o nada/seria menos que Deus” – Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.97.
90 Ibid., p.132.
91 Cf. também, falando daquilo a que aspira: “Um nada que a nada impede/e que inteiro a tudo almeja” – Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.24. Cf. ainda: “Que serei eu um nada dentro em nada/e um tudo
simultâneo a ser do tudo” – Ibid., p.132.
92 Cf. “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar” – Bernardo
Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio&Alvim, 1998, p.185. Cf. Paulo A. E. Borges, ‘“Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada.” Vacuidade e autocriação do sujeito em Fernando Pessoa”,
in AA.VV., Poiética do Mundo, Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Edições Colibri / Departamento de
Filosofia e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2001, pp.353-364; republicado in Pensamento Atlântico, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, pp.319-332.
93 Veja-se a global coerência do pensamento agostiniano, que assim articula “não ser nada”, inspiração poética
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e sonho divino: “Acordo e sai um poema/alguém mo sonhou de noite/só preciso não ser nada/para que a musa
se afoite” - Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.9.
94 Id., Uns Poemas de Agostinho, p.26.
95 Cf. Quadras Inéditas, p.80.
96 Ibid., p.88. Cf. também pp.36 e 99.
97 Sem prejuízo das diferenças, sobretudo de forma e expressão, uma ponte poderia estabelecer-se entre a experiência Zen do wu-nien (“não-pensamento” ou “não-consciência”), como a própria natureza da Iluminação
ou do Buda – tan-chien-wu, “ver dentro do nada – é essa a verdadeira visão e a visão eterna” (cf. D. T. Suzuki, A
Doutrina Zen da Não-Mente. O significado do Sutra de Hui-Neng (Wei-lang), organização de Christmas Humphreys, tradução de Elza Bebianno, São Paulo, Editora Pensamento, 1993, pp.26-27, entre outras) - , e a doutrina
eckhartiana da remoção do intelecto para o “Fundo da alma”, onde só “cego” se vê o “Nada” divino (cf. Mestre
Eckhart, Sermons, III, introdução, apresentação e notas de Jeanne Ancelet-Hustache, Paris, Éditions du Seuil,
1979, 71, pp.78-80; Alain de Libera, La mystique rhénane. D’Albert le Grand à Maître Eckhart, Paris, Éditions du
Seuil, 1994, pp.268-269). Cf. ainda Eudoro de Sousa: “(...) se a conseqüência fatal de um encontro com a divindade, é a morte ou a cegueira, porque não há-de ser a mesma morte ou cegueira, livremente consentida, a condição
necessária da vida eterna e da visão plena ?” - “Quem vê Deus morre... (o mito de Psique)”, separata de Atlântico,
5 (1947), pp.3-17, p.13.
No âmbito do cristianismo, a questão remonta ao Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que indica como condição de
penetrar na divina “Treva” trans-inteligível a “cessação total da palavra e do pensamento”: “no termo último da
ascensão estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao Inefável” – A Teologia Mística, III, 1.033 c. Conforme a interpretação da experiência de Moisés, a visão de Deus na “treva” consiste em “ver que ele é invisível”
e incompreensível. Assim se concilia o “Ninguém jamais viu a Deus” (João, 1, 18) com o progresso de Moisés na
gnose, pelo qual “conhece que a divindade é essencialmente o que transcende toda a gnose e escapa à apreensão
do espírito” – São Gregório de Nissa, Vie de Moïse, II, 163-164, edição e tradução de Jean Daniélou, Paris, Éditions du Cerf, 1955, pp.81-82.
Uma diferença, todavia, entre a mística grega e cristã e a iluminação búdica pode residir em que, se nas primeiras há uma intuição em que sujeito e objecto coincidem, ou uma douta ignorância enquanto experiência
trans-intelectual do Inefável, a última consiste numa “intuição em que o sujeito e o objecto estão ausentes”, desde
sempre, não sendo a sabedoria ou conhecimento transcendente, prajñaparamita, senão um reconhecimento da
sua vacuidade (do sujeito, do objecto, da sabedoria e da própria vacuidade) – cf. Guy Bougault, La notion de
“prajña” ou de sapience selon les perspectives du “Mahayana”. Part de la connaissance et de l’inconnaissance dans
l’anagogie bouddhique, Paris, Éditions E. de Boccard, 1968, p.228. A gnose búdica seria assim uma gnose agnóstica, na medida em que o conhecimento transcendente, esvaziando sujeito e objecto, se esvazia a si mesmo e ao
próprio esvaziamento.
98 “E venha filosofia/teologia que farte/o que se pense de Deus/é só de Deus uma parte” – Agostinho da Silva,
Quadras Inéditas, p.47.
99 Cf. a quadra: “Mais que a teu Deus sê fiel/ao que tu sejas de Fé/talvez o Deus que te crias/oculte o Deus que
Deus é” – Ibid., p.58. Cf. Nicolau de Cusa, que afirma que, sem ser purificada pela “teologia da negação”, a da
“afirmação” conduz a não adorar Deus “como Deus infinito, mas antes como criatura”, acrescentando que “este
culto é uma idolatria atribuindo à imagem o que não convém senão à verdade” – De la Docte Ignorance, I, 26,
introdução de Abel Rey, prefácio de Bernard Dubant, Paris, Guy Trédaniel, 1979, p. 98.
100 Cf. Friedrich Nietzsche, La naissance de la philosophie à l’époque de la tragédie grecque, traduzido do alemão
por Geneviève Bianquis, Gallimard, 1974, p. 38.
101 “Nenhum cerco de adjectivo/ao que é substancial/nada de fonte do bem/nada de poço do mal/ /não limites
infinito/não regules o divino/e que vivo não entendes/por teu pouco ou nenhum tino” – Agostinho da Silva, Uns
Poemas de Agostinho, p.74.
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
Paulo Borges
322
102 “Acho que Deus não escreve/e também que Deus não fala/e que nos sustenta vivos/a vida que nele cala”
–Id., Quadras Inéditas, p.8. Cf. o Deus “que é alogos, não logos”, em “Aqui falta saber, engenho e arte”, Textos e
Ensaios Filosóficos II, p. 212.
103 Id., Quadras Inéditas, p. 88.
104 “Em que só Deus consciente/a todos dá consciência/de que em Deus estão vivendo/com não saber e ciência” – Id., Uns Poemas de Agostinho, p. 88. Cf. também p. 133.
105 “talvez para ser de um nada / que contudo de si saiba” – Ibid., p. 49.
106 “Que outra coisa é, Senhor, o teu ver, quando me olhas com olhos de piedade, senão o ser visto por mim?
Vendo-me, tu, que és o Deus escondido, concedes que sejas visto por mim. Ninguém pode ver-te senão na medida em que concedes que sejas visto.
E o teu ser visto não é senão o teu ver aquele que te vê” - Nicolau de Cusa, A Visão de Deus, tradução e introdução
de João Maria André, prefácio de Miguel Baptista Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.146.
107 “Tudo porém vem de Deus/e de Deus não se desprende” – Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho,
p.130.
108 Numa mesma matriz neoplatónica temos, por um lado, em termos gregos, a simultaneidade da manência
de tudo no Uno, da sua processão e da sua conversão: moné, proodos, epistrophé – cf., por exemplo, Proclo, The
Elements of Theology, texto revisto com tradução, introdução e comentário por E. R. Dodds, Oxford, Clarendon
Press, 1992, 35, p.39. Por outro, em termos cristãos, o serem Deus em Deus todas as coisas, sustentado por um
teólogo insuspeito de heterodoxia ou panteísmo como São Tomás de Aquino: “Segue-se que as coisas, tais quais
são em Deus, são a própria essência divina” – Suma Teológica, q. 18, a. 4.
109 “Há que voltar ao eterno/donde viemos um dia/para de lá nem nos vendo/vermos nós o que vivia” – Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.48.
110 Cf. , ibid., pp.132-133.
111 Id., Quadras Inéditas, p.35.
112 Conhecido o joanismo e paracletismo agostiniano, é provável que este adorar também evoque a exortação
de Cristo a que Deus, sendo “espírito”, seja verdadeiramente adorado “em espírito e verdade” (cf. João, 4, 2024).
113 Cf. Platão, Apologia de Sócrates, 20 e – 23 b.
114 Vejam-se as afinidades com Nicolau de Cusa, em que a “douta ignorância”, mais do que compreensão da
impossibilidade de compreender Deus, e de apenas se ser compreendido por ele (cf. Nicolau de Cusa, De la Docte
Ignorance, I, 26, pp.98 e 100), é também, pela “ausência de visão”, pela “visão mental pela vacuidade”, acesso, na
“vacuidade” e no “silêncio”, ao “que é realmente Deus” e à sua visão – cf. Nicolau de Cusa, Apologie de la docte
ignorance, in Trois traités sur la docte ignorance et la coïncidence des opposés, introdução, tradução, notas e comentários por Francis Bertin, Paris, Les Éditions du Cerf, 1991, pp.35-36. Desnecessário será apontar as flagrantes e
interessantíssimas afinidades com a experiência búdica, ou seja, iluminativa, da vacuidade.
115 Cf. a possibilidade que o pensador assim descreve: “Para um observador de fora, um homem intrinsecamente religioso, em perpétuo êxtase religioso, poderia dar a impressão de não estar prestando nenhum culto a
nenhum Deus e, na vida prática, esse homem comportar-se-ia com a alegria, a espontaneidade, o desprendimento do selvagem, sem que também fosse necessário, fatal, o aparecimento de qualquer espécie de rito; esse homem
teria reconhecido Deus em si e nos outros e viveria, naturalmente, sem tu e sem eu, de igual para igual, num
universo inteiramente divino”– Agostinho da Silva, “A comédia latina”, in Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa,
Âncora Editora, 2002, p.305.
116 Cf. o nosso já referido “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver menos que o Infinito.
A-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperes spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophi-
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ca, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77. As teses da a-teidade divina, quer no sentido de que Deus não o é para si, quer no
de que se nega gerando o poder haver ser universal, num mundo onde tudo é a carnavalesca e saudosa dissimulação de uma verdade presente e ausente, patente e oculta, são fundamentais no pensamento português contemporâneo. É Teixeira de Pascoaes quem afima Deus como o “único ateu perfeito”, na fórmula mais explícita do que
designará como ateoteísmo: “O homem que nega o seu próprio ser, imita Deus, o único ateu perfeito; e tornou-se,
por isso, Criador. A Criação tem a assinatura de Lucrécio” – Santo Agostinho (comentários), Porto, Livraria Civilização, 1945, pp.275-276. José Marinho desenvolverá esta intuição, considerando que “talvez a mais profunda
descoberta do Poeta fosse a verdade funda de que Deus é o único autêntico ateu e de que o ateísmo sempre impossível mas maravilhoso é o centro da visão unívoca” – “Pascoaes, poeta da visão unívoca”, Diário de Notícias,
24 de Janeiro de 1963. Noutro passo, escrevendo que “o unívoco de Deus está no seio do ateísmo”, acrescenta:
“Assim, saber e imparcialmente reconhecer que Deus é o único autêntico ateu, adiantaria caminho desde a
teologia à política.
Saber que o autêntico ateísmo equivale à teologia mística dos últimos cumes libertar-nos-ia de vários aspectos da falsa fé ou da descrença presunçosa (...).
Aquele que sabe como Deus reservou para si o autêntico ateísmo, torna-se, e por isso mesmo, infinitamente
reservado mas muito atento perante os ateus e perante toda a forma de descrença” – Obras, I, Aforismos sobre o
que mais importa, edição de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, pp.341-342.
“O homem que se libertou de Deus e vive por si e para si, é uma crença boa para fim de uma perigosa aventura.
O homem será capaz disso quando for o próprio Deus, mas então não será o homem que é por si e para si” – ,
Ibid. p.155.
Cf. também, explicitando o fundamento metafísico da tese: “Tudo é a unidade, tudo é a unidade que se
busca e reencontra; tudo é a unidade que parece perturbada e é impassível, que parece irreal e fantástica e é,
só ela, possível. Pois enquanto visto desde nós e em nós tudo pode parecer diverso, tudo pode parecer olhar
incessantemente o fugitivo e alheio, tudo na unidade se vê tornando-se ela mesma, ou nada vê. Por isso a velha e
sempre nova sabedoria diz ser ou nada, e por isso também o ateu, que o não visse, veria melhor a Deus. Mas esse
ateu é apenas e será sempre no homem virtualidade inatingida. Só Deus é ateu. E assim o que nega, nega afinal
os passageiros deuses, e antecipa o único verdadeiro” – Ibid., p.355.
José Marinho assumirá no seu pensamento de maturidade a tese da divina ateidade, feito o ateísmo metahumano e “iniciático” do espírito na “assunção do Nada”, ou do Deus-Uno-Absoluto que, pela plena coincidência de ser e verdade, o não é e nada é para si, transcendendo a “cisão divina”, “pela qual é Deus”, a “criação”
e a implícita “relação entre criador e criatura”. Como se pode constatar, não deixa de aqui reverberar uma das
vertentes da visão de Mestre Eckhart: “Subitamente, um dia, apercebe-se de que se o ser é a verdade e se Deus é o
ser da verdade, então a verdade não é para si”; “Pois o que é, enquanto é o pleno ser de tudo, se põe a si mesmo
como uno, eterno e absoluto, o sem falha nem fissura, o todo sem parte, o que se diz sem verbo, e se pensa sem
pensar, sem misto algum, por mais subtil. E assim, sendo ele o único ser de todo o ser que não é, no qual tudo é
como o que não é, anulando-se nos iguais instante e tempo sem-fim, não pode mais que ser sem se saber. E no
que é verdade para o que no homem a vê e contempla, a viu e contemplou, não há então saber da verdade. A
verdade então não é para o mesmo ser da verdade. Ora, como vê então aquele que diz ver e contemplar e saber
plenamente o ser da verdade como se um e o mesmo fossem ser da verdade e irrecusável verdade do ser?” Id., ,
Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.23. E ainda:
“Que é a cisão divina ?
No mais extrínseco sentido cabe entendê-la como a cisão em Deus. Por ela, o divino é para nós numa multiplicidade, ou em divinos avatares, ou divinas pessoas. Noutro sentido, porém, e o mais fundo, a cisão divina é
aquela cisão primeira e absoluta que tem por contrapolar a sensível cisão extrema, e é a primeira e mais funda e
absoluta cisão pela qual é Deus e sem a qual Deus persiste como o ser opaco e indeterminado ou na opacidade
da crença ou da descrença sem digna ciência que o exprima.
Pela cisão divina, ou cisão absoluta, toda a origem se explicita e o princípio se alcança do autêntico pensamento. E do mesmo passo que criação e relação entre criador e criatura emergem não como a primeira e a última
Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística...
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verdade, mas como grau de iniciação na que é primeira e última verdade, assim também o profundo significado
da descrença se apreende e o profundo sentido e transcendente alcance de todo o autêntico ateísmo iniciático”
- Ibid., p.92. Cf. também pp. 93-97.
117 É o percurso proposto, nas suas origens, e a toda a teologia cristã, de superação da teo-logia na deificação,
pelo Pseudo-Dionísio,o Areopagita. No pensamento português, o crítico mais radical, decerto por vezes precipitado e injusto, das pretensões teológicas, à luz da sua própria experiência de pendor místico-visionário, é Teixeira
de Pascoaes:
“Vi Cristo na imensidade ou em si mesmo, na solidão absoluta, fora da História que é de César, e da Teologia
que não é de Deus. A raiz e a terminação desta palavra são perfeitamente incompatíveis.
A Suma Teológica de Tomás! Que montanha vã! A historicidade de Jesus! Que ridículo! A Teologia admite-se num deus de templo, tradicional ou descendente dos Fetiches. A História admite-se num Carlos
Magno. Mas também é ridícula tratando-se de Homero” – Duplo Passeio, A Beira (num relâmpago) / Duplo Passeio, Obras Completas, X, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Livraria Bertrand,
1975, p.164.
Cf. também: “Pobre de Deus se dependesse de qualquer raciocínio ! Independente de tudo, da própria existência, como há-de depender dum simples jogo de palavras ? Deus não precisa da tua teologia, ó S. Tomás ! Basta-lhe
um gesto de criança, um grito do nosso coração” – Ibid., p. 174.
Para além da atitude gnóstica no que respeita à irrelação de Deus com a história humana, note-se
como Pascoaes rivaliza, no que respeita à desconsideração da teologia, com a radicalidade iconoclasta de um Cioran: “La théologie est la négation de Dieu. L’idée saugrenue d’aller chercher des arguments pour prouver son existence ! Tous ces Traités ne valent pas une exclamation de Sainte Thérèse.
Depuis que la théologie existe aucune conscience n’y a gagné une certitude de plus, car la théologie n’est
que la version athée de la foi. Le dernier bredouillage mystique est plus proche de Dieu que la Somme théologique. Tout ce qui est institution et théorie cesse d’être vivant. L’Église et la théologie ont assuré à Dieu une
agonie durable. Seule la mystique l’a réanimé de temps en temps” – Des Larmes et des Saints, in Oeuvres, Gallimard, 1995, p.311.
Poder-se-ia certamente recordar a Pascoaes e a Cioran que o tão alvejado São Tomás de Aquino terá porventura
compreendido melhor que eles, e de forma bem mais coerente, o excesso de Deus relativamente a todo o discurso conceptual quando, após uma determinada experiência, terá resolvido deixar inacabada a Suma Teológica,
declarando que tudo isso não era senão “palha” !... Enquanto o santo se retira para a experiência do absoluto, os
escritores não desistem de falar e escrever sobre ela, ou sobre outra coisa, até à morte...
118 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.22.
119 Cf. a noção de theôsis que, fundamental no cristianismo grego e oriental (cf. Gregório Palamas, De la déification de l’être humain, L’Âge d’Homme, 1990), teve um acolhimento muito mais reservado na deificatio latina.
Agostinho parece ir além das suas versões mais ortodoxas, nas passagens em que indica que o homem pode
não ser apenas por graça o que Deus é por natureza, ou que o homem pode ser ou tornar-se não apenas o “que
Deus é”, mas, pura e simplesmente, “Deus”. Referimo-nos à doutrina de um dos teólogos e místicos ocidentais
que mais colheu da tradição cristã oriental: “(...) de modo inefável, impossível de imaginar, o homem de Deus
merece transformar-se não em Deus, certamente, porém sim no que Deus é. O homem é por graça o que Deus
é por natureza” – Guilherme de St. Thierry, Carta aos irmãos de Monte Dei, III, 263, in Carta a Los Hermanos de
Monte Dei y Otros Escritos, edição preparada e apresentada por Teodoro H. Martin-Lunas, Salamanca, Ediciones
Sigueme, 1995, p.115. Cf. também W. R. Inge, “The Doctrine of Deification”, Apêndice C, in Christian Mysticism,
Londres, 1899, pp.356-372.
120 “Se eu chegar a ser dum Outro/mas de mim não me perdendo/e esse Outro todos os outros/que comigo
estão vivendo//não só homens mas também/os animais e as plantas/e os minerais ou os ares/e as estrelas tais e
tantas//terei decerto cumprido/meu destino e com que sorte/para gozar de uma vida/já ressurrecta da morte”
– Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.106.
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121 “O eu limitado, refluindo, se assim se pode dizer, para o seu centro verdadeiro, dissolve-se nalguma coisa
de absoluto, já não individualizado mas ainda ligado ao indivíduo: transição do ser para o não-ser, que equivale,
quanto cabe na realidade, à plenitude e perfeição do ser” – Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na
Segunda Metade do Século XIX, in Filosofia, p.165.
122 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.81.
123 Cf. Caderno Três sem Revisão [inédito; pesquisa e recolha de espólio por Amon Pinho, Helena Briosa e
Romana Valente Pinho; transcrição de Rui Lopo e Sandra Pereira; revisão final de Renato Epifânio, Ricardo Ventura e Rui Lopo]. Cf. Rui Lopo, “A liberdade: o infindo desígnio de ser o que se é”, in AAVV, Agostinho da Silva e
o Pensamento Luso-Brasileiro, pp.319-329, pp.328-329.
124 “Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que
a contém no total” – Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.145; “a quadrada
Raiz do Negativo/que por ser paradoxo/me defende dos riscos de ortodoxo” – Id., Uns Poemas de Agostinho,
p.33.
125 Cf. Antero de Quental, carta a Oliveira Martins, de 30 de maio de 1887, in Cartas II, 1881-1891, organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, Universidade dos Açores / Editorial Comunicação, 1989, p.842.
126 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.88.
Resumo
Tentamos mostrar o sentido místico e filosófico da poesia de Agostinho da Silva, onde
avulta uma particular experiência/visão de Deus como “nada que é tudo”, num assumido
paradoxo lógico e ontológico. Sendo Deus ausência de quaisquer determinações, positivas
ou negativas, contém em acto todas as possibilidades de manifestação sem que nelas se
esgote. Deus designa aqui também o fundo sem fundo do próprio homem, que assim é
convocado a realizar-se simultaneamente na união mística e no amor criador. O modo
como o pensador português trata o tema é uma ponte entre Ocidente e Oriente.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Nada; Tudo; Poesia; Filosofia; Mística.
Abstract
We try to present the mystical and philosophical meaning of Agostinho da Silva’s poetry, mainly around his experience/vision of God as “nothing which is everything”, in an
admitted logic and ontological paradox. Being God the absence of all determinations, either positive or negative, He contains in acts all the possibilities of manifestation without
being exhausted in them. Here God also designates the bottomless ground for man, who is
then called to self-realization both in mystical union and in creative love. The Portuguese
thinker’s way of approaching the theme is a bridge between West and East.
Keywords: Agostinho da Silva; Nothing; Everything; Poetry; Philosophy; Mystic.
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Tito Lucrécio Caro
segundo Agostinho da Silva
Pinharanda Gomes*
O destino de Tito Lucrécio Caro na literatura portuguesa tem sido
irregular. O elenco de bibliografia clássica elaborado por Fidelino de Figueiredo1 inventariou a mais antiga tradução, a de um Anónimo (por Fidelino
identificado como sendo o latinista Manuel de Pina Cabral), intitulada Lugares Selectos de Tito Lucrécio Caro, traduzidos em Portuguez (Lx.ª, Of. de José
da Silva Nazaré, 1785). A tradução integral da principal obra de Lucrécio,
a partir do original latino, apareceu em verso, com o título A Natureza das
Coisas. Poema de Tito Lucrécio Caro, por José Duarte Machado Ferraz (Lx.
ª, Imprensa Nacional, 1850). Quase sobre esta edição surgiu outra, com tradução em verso, em dois volumes (Lx.ª, 1.º, Tip. de Jorge Ferreira de Matos,
1851; 2.º Id., Tip. de J.F. Lopes, 1853), da autoria de António José de Lima
Leitão. Deu-se o caso de José Duarte Machado Ferraz (magistrado, por vezes confundido com seu sobrinho, José Joaquim Machado Ferraz, Conde
de Santa Luzia) ter ficado agastado com o aparecimento da tradução de Lima Leitão, pelo que, oculto no pseudónimo Um Transtagano, tirou vindicta
num opúsculo de 33 críticas páginas: Observações Crítico-Analíticas sobre
duas Traduções do Poema de Lucrécio ‘Da Natureza das Cousas’ (Lx.ª, Tip. de
José Baptista Morando, 1852).
A derradeira tradução oitocentista julgamos ser a devida a Agostinho
de Mendonça Falcão, Livros de […] Poeta Romano sobre a Natureza. Vertidos
em verso solto. O poema foi inserido nos volumes 31.º e 34.º (1884-1887) da
revista coimbrã O Instituto, tendo sido feita uma edição autónoma (Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1890). Todas estas edições existem na Biblioteca
Nacional, de cujo catálogo só volta a constar uma outra tradução (antológica e
* Pensador e escritor português (n. 1939), amigo pessoal de Agostinho da Silva e seu conviva no grupo da
«Filosofia Portuguesa», desde 1970. Membro da Academia Portuguesa da História, da Academia Internacional
da Cultura Portuguesa, e do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia. É autor de vastíssima obra, dentre a qual História da Filosofia Portuguesa, 3 vols. (Lisboa, Guimarães Editores); Entre Filosofia e Teologia (Lisboa, Fundação
Lusíada); Dicionário de Filosofia Portuguesa (Lisboa, D. Quixote) e A Escola Portuense (Porto, Caixotim).
327
parcial). Da Natureza. Antologia (Vila Nova de Famalicão, Tip. Minerva, 1947,
opúsculo de 19 p.), da evidente autoria de Agostinho da Silva.
Nesta época, depois de ter iniciado uma intensa e periódica actividade
editorial, no escritório da Editorial Inquérito, do seu amigo Eduardo Salgueiro, que o alojou provisória e gratuitamente, enquanto não criava melhores
condições, Agostinho da Silva já arranjara casa, na Rua Dr. António Martins,
24-2.º, numa zona fronteiriça ao actual Instituto Português de Oncologia,
transversal à Rua Basílio Teles.
Agostinho trabalhava a tempo inteiro, ainda hoje causando a admiração de quem aborda as suas múltiplas edições. Até ao ano em que emigrou para
o Brasil, manteve ele, com espantosa regularidade, duas grandes colecções: Cadernos de Informação Cultural, opúsculos também impressos em Vila Nova de
Famalicão, e nos quais deu asas a um saber enciclopédico, divulgando os mais
variados problemas e temas, das abelhas aos caminhos de ferro, da zoologia, da
geografia, da botânica, da mecânica…; e a série quinzenal intitulada Antologia.
Introdução aos Grandes Autores. Tal Antologia terá atingido no mínimo dez séries publicadas, não nos sendo agora possível confirmar se chegou a publicar a
já anunciada 10.ª série. Cada série integra seis títulos, contemplando textos filosóficos, poéticos, romanescos, geográficos, históricos etc. Em cada opúsculo,
Agostinho apresenta uma antologia de textos do escritor escolhido, antologia
essa apresentada por um breve prólogo biobibliográfico, com tópicos de leitura.
Só para citar filósofos, nesta Antologia se leram trechos de Voltaire, Teresa de Ávila, Ganivet, Erasmo, Guinot, Condorcet, Marco Aurélio, Bacon, Platão, Tomás
More… A causa de todos estes trabalhos estar atribuído ao grande pensador, é
o facto de, na contracapa de cada caderno, se informar que se tratava de uma
edição do Organizador, Agostinho da Silva (com o endereço), sendo distribuída pela Agência Editorial Organizações (Largo Trindade Coelho, 9-2.º, Lisboa), propriedade da família Homem Christo.
A série 9.ª, destinada a textos de Rodó, Shakespeare, Tolentino,
Emerson e Machado de Assis, integrou por fim uma Antologia do poema Da Natureza, de Lucrécio (Tip. Minerva, V. N. Famalicão, 1947), opúsculo
de 19 pp., as três primeiras contendo o prólogo de apresentação e, as restantes,
parte do Livro Primeiro do poema de Lucrécio. Convém ter em mente que
Agostinho da Silva visava a um público vasto e heterogéneo, talvez mesmo
pouco culto, – estes Cadernos vinham a constituir como que uma Campanha
de Educação Popular – todavia, não deixava de fora as rubricas analíticas que
lhe pareciam úteis. Numa delas, afirma: «Não é pelas suas ideias que Lucrécio é
um grande poeta: um grande poeta apesar das suas ideias; grande poeta como
Tito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva
Pinharanda Gomes
328
autor, pelas qualidades de imaginação, de arquitectura e linguagem, e grande
poeta como homem, porque flamejam dentro dele os fogos da verdade, da
justiça e do amor» (loc. cit., pp. 4-5).
Obra maior e sem dúvida modelar veio mais tarde, já no Brasil, e que
julgamos pouco terá corrido em Portugal, onde era distribuída pela casa Livros
do Brasil (Calçada dos Caetanos, Lisboa). Há mais de quarenta anos que, num
alfarrabista, adquirimos um exemplar, como novo: Biblioteca dos Séculos/Tito
Lucrécio Caro/Da Natureza/Prefácio, Tradução e Notas de/Agostinho da Silva/
Estudos Introdutórios de/E. Joyau e G. Ribbeck/vinheta/Editora Globo/Rio de
Janeiro-Porto Alegre-São Paulo. No verso: Título do Original latino: De Natura
Rerum / 1962.
Trata-se de um volume de 220x155 mm, de XXIV+237 p., contendo:
o Prefácio de Agostinho da Silva (pp. IX-XXIV), uma Introdução a Epicuro,
com respectiva Antologia segundo E. Joyau (pp. 3-33), um ensaio nobre sobre Lucrécio por G. Ribbeck (pp. 35-48), uma Bibliografia (p. 51), o texto do
poema de Lucrécio (pp. 55-207), na versão de Agostinho da Silva que, no final,
apresenta as Notas ao texto (pp. 211-231), riquíssimas de subtileza exegética e
de grande erudição filológica e filosófica, e, por fim (pp. 235-238), um Glossário de Nomes Próprios.
Teve o cuidado de informar quais as edições de que se servia – a de
A. Ernont, e as de Lachmann e de H. A. J. Munro –, muito conhecidas dos especialistas em Estudos Clássicos, como o Padre Manuel Antunes, S. J., que, não
obstante, na entrada «Lucrécio Caro» (Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura
Verbo, vol. 12, cols. 633-636), omitiu qualquer referência à tradução erudita
e prestigiada de Agostinho da Silva, decerto porque dela não houve conhecimento. O mesmo acontece no artigo que Pedro Silva Pereira assinou na Enciclopédia Logos (vol. 3, col. 508). Foi objectivo do tradutor a fidelidade ao texto
latino, pelo que optou pela versão em prosa, ou, como diz, mantendo o jeito
mais filosófico do que poético do texto latino.
A primitiva tradução de 1947 era parcial, não mais extensa do que
cerca de metade do Livro I. Embora esta tradução integral e definitiva só
aparecesse em 1962, Agostinho da Silva data o Prefácio de junho de 1944, o
que nos permite conjecturar que, ainda antes de emigrar, ele previa editar a
obra na íntegra. Aliás, com ligeiras variantes, para aperfeiçoar o estilo, e para
melhor conceptualização (o termo corpo material é substituído, nesta edição
brasileira, por corpo visível), o texto da versão do Livro I é quase, palavra a
palavra, o da edição analógica. O prefácio à edição é de muito boa qualidade,
equilibrado, sensível do ponto de vista estético, ordenado a uma interpretaRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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ção ontocosmológica e a uma reposição da ética epicurista. Aliás, Agostinho
divulgara o pensamento epicurista no ensaio O Pensamento de Epicuro (1940,
2.ª ed., 1943) e, neste prólogo, faz um exercício de reflexão da ética epicurista
dentro dela mesma, para a explicar como uma filosofia construída para que,
por meio dela, se possa alcançar a felicidade. Agostinho rejeita o epicurismo
vulgar e mesmo dissoluto, produto de vistas superficiais e de real covardia
moral. E diz: «O epicurismo é uma ascese, que pretende deixar o espírito
o mais livre, o mais despojado, o mais puro possível para a apreensão dos
prazeres que são os únicos que vale a pena buscar: o prazer da leitura, da contemplação da ordem do mundo […] o sentimento da fraternidade que une os
homens livres» (p. XVII). Este ideal de pensamento vestindo a vida é o escopo
do poema de Lucrécio, um poema sobre a Natureza visível, que supõe a invisível, quer dizer, o mundo acessível ao conhecimento estesíaco, sem recusa do
que para além dele flua. O prazer da contemplação do mundo, uma perifísica
esculpida por um altíssimo poeta, procurador da diligência contra a preguiça,
e da vida meditada contra a vida dissoluta e recriada em belo português por
um notável escritor.
Nota
1 F. de Figueiredo, Estudos de Literatura. Quarta Série (1921-1922), Lx.ª, Portugália, 1924, pp. 233-245.
Resumo
Realizando, inicialmente, um breve, não obstante completo, histórico das traduções portuguesas da obra De Natura Rerum, de Tito Lucrécio Caro, este artigo é um comentário à
erudita e prestigiada translação que Agostinho da Silva fez da mesma obra e que chegou
aos leitores por meio de duas publicações. A primeira, estampada em 1947, em Portugal, na
Coleção Antologia: Introdução aos grandes autores; a segunda, vinda a lume em 1962, quando
o autor, depois do período argentino e uruguaio, já se encontrava radicado no Brasil.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Tito Lucrécio Caro; De Natura Rerum; Epicurismo; Cadernos de divulgação cultural.
Abstract
After a brief yet complete historic report of the Portuguese translations of De Natura
Rerum (On The Nature Of Things), by Titus Lucretius Carus, this article comments on
the erudite and prestigious translation of that work by Agostinho da Silva to which reaTito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva
Pinharanda Gomes
330
ders had access via two publications. The first one was printed in 1947 in Portugal in the
series Antologia: Introdução aos grandes autores (Anthology: Introduction to the great
authors); the second one was published in 1962, when the author, after being shortly in
Argentina and Uruguay, was already radicated in Brazil.
Keywords:
Agostinho da Silva; Titus Lucretius Carus; De Natura Rerum; Epicurism; Cadernos de divulgação cultural (Booklets of Cultural Diffusion).
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A Visão de Agostinho da Silva
da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio*
A visão agostiniana da Galiza emerge no âmbito da sua reflexão sobre
Portugal, sobre o seu sentido histórico. Desenvolveu Agostinho da Silva essa reflexão em diversas obras, desde logo, na sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, uma obra que Agostinho escreveu e publicou já no Brasil, em 1957, como
se só no Brasil, face ao espelho atlântico, tivesse Agostinho descoberto Portugal.
Nessa obra, logo no primeiro capítulo, Portugal e Galiza aparecem a par,
“como dois noivos que a vida separou”. Separação que Agostinho lamenta, por
Portugal sobretudo, dado que, como nos diz, se ela não tivesse ocorrido, “talvez
o ouro da Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena
época de afluxo de riquezas, de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal e pão”.1
Separado da Galiza, Portugal perdeu, à luz desta visão, as suas raízes mais profundas, o seu Norte. Daí os seus subsequentes desmandos – não só económicos,
como sobretudo éticos...
Eis, dir-se-ia, o “pecado original” da formação de Portugal e das futuras Descobertas – como escreveu o próprio Agostinho, num texto de 1960:
“Nunca se devia ter abandonado a Galiza; se havia que morrer, havia
que morrer junto com ela (...). [Depois, porque “quem abandonara
a noiva abandonou o irmão”] Nunca se devia ter conservado Ceuta,
nunca se devia ter feito mártir o Infante (...). Chamar-se ao Infante
o Santo é protestar contra o desvio que levou do império dos mares,
os mares sobre que flutua o Espírito, para o império das terras. Que
levou de ser a ter.”2
* Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e da Direcção da Associação Agostinho da Silva;
secretário-executivo da Comissão das Comemorações do seu Centenário; investigador na área da “Filosofia em
Portugal”, com diversos estudos publicados; Licenciatura e Mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa; doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação
Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José
Marinho (no prelo); autor do Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (no prelo), já em parte publicado
na Philosophica, revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
332
Nesta visão da História, não é, contudo, essa separação, essa cisão, um
horizonte inultrapassável. Eis o que o próprio Agostinho da Silva, de resto, nos
havia já antecipado no seguimento da passagem da sua Reflexão à Margem da
Literatura Portuguesa que há pouco transcrevemos, essa em que lamentava a
nossa separação, a nossa cisão, com a Galiza – como aí escreveu:
“Mas tempo vem atrás de tempo; se há ‘talvez’ para o passado da História, há ‘talvez’ igualmente para o futuro da História; pode ser que
um dia a reintegração da Península em si mesma, na sua liberdade
essencial, se faça através da reunião de Portugal e da Galiza. Dos dois
noivos que a vida separou.”3
Talvez que, contudo, sob uma perspectiva outra, essa cisão tenha sido
necessária. Eis o que, pelo menos, Agostinho da Silva sugere na sua obra Um
Fernando Pessoa, em particular quando aí desenvolve uma visão triádica de
Portugal, à luz da qual
“o primeiro Portugal foi – nas suas palavras – o Portugal da velha
unidade galaico-portuguesa, o Portugal lírico e guerreiro das cantigas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estiveram – como acrescenta ainda – as raízes mais profundas da nacionalidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso
amor da liberdade que caracteriza Portugal como grei política”.4
Para que Portugal pudesse barcar, talvez que, contudo, tivesse que se
cindir da sua arca... Eis, com efeito, o que, no seguimento desta passagem, Agostinho da Silva implícita senão mesmo expressamente defende ao afirmar que
esse “Portugal da velha unidade galaico-portuguesa” era “demasiado rígido para
as aventuras da miscigenação, da tessitura económica e do nomadismo que não
reconheceria limites”.5 A ser assim, essa cisão foi pois genesíaca – dado que dela
resultou toda a demanda das Descobertas! Poderia, como expressamente salvaguarda o próprio Agostinho, no segundo capítulo da sua Reflexão à Margem
da Literatura Portuguesa, não ter sido assim – nas suas palavras: “O Português
podia ter resistido ao apelo do longe, Portugal podia ter-se recusado à acção.”6
Contudo, como se questiona ainda o próprio Agostinho da Silva: “…se
Portugal não tivesse embarcado, quem teria embarcado?” Eis a resposta que
logo de seguida nos dá:
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333
“Se a alguém competia fazer-se ao mar (…), esse alguém era evidentemente o Português./ Tinha a resolução de ataque, a energia de
combate e a resistência sob o tempo adverso que faltavam à doce, lírica, feminina Galiza. Tinha, como nenhum outro povo da Espanha,
aquela noção de fraternidade sem a qual todo o cristianismo é mero
vácuo (…).O Português lembrava-se, e da única forma perfeita em
que o lembrar existe, que é vivendo-o, o Português lembrava-se da
irmandade antiga de mouros, de cristãos e judeus”.7
Paradoxalmente, como sempre, considera pois Agostinho da Silva que
essa “irmandade”, essa união, que Portugal procurou concitar entre todos os
povos do mundo foi originalmente potenciada pela própria desunião ou cisão
com os outros povos peninsulares, desde logo com a Galiza.8 Como, contudo, o
mesmo Agostinho expressamente nos assegura, foi esse o preço necessário para
que a união futura entre todos os povos do mundo, inclusivamente entre os
povos peninsulares, por inteiro se cumpra… Daí que, à luz desta visão, a nossa
demanda só se cumpra, enfim, no seu regresso ao princípio... Daí, de resto, a
expressa prefiguração do regresso de Portugal à Galiza: ainda à luz desta visão,
só realmente no fim da demanda se consumará enfim a principial união! Visão
demasiado idílica? Eis o que veremos em outros textos agostinianos.
***
Esta visão agostiniana da Galiza reaparece depois em diversos textos
publicados nos anos 70, desde logo, em 1972. Refiram-se, a título de exemplo, os textos “Aurora” – primeira publicado na Vida Mundial, a 21 de Abril;
depois republicado, sob o título “Aurora da Galiza”, em O Sesimbrense, a 21
de maio9 –, “As duas vozes da Galiza” – publicado no suplemento Artes e
Letras do Diário de Notícias, a 21 de Setembro10 – ou ainda a pequena mas
sugestiva “Ficha de Leitura: História da Galiza” – publicada na Vida Mundial, a 29 de Setembro.
Aparece ainda, mais fortemente, essa visão agostiniana da Galiza, numa série de 10 cartas, as “Cartas chamadas Santiago”11 – apesar de só a primeira ter sido supostamente escrita em Santiago de Compostela –, todas elas
começando com a seguinte quadra: “Santiago de Galiza,/ espello de Portugal,/
axudainos a vencer/esta batalla real.” Nelas, mesmo quando não fala expressamente na Galiza, é a partir dela, ou desse Portugal principial, desse “Portugal
da velha unidade galaico-portuguesa”, que Agostinho da Silva nos fala...
A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio
334
Aparece enfim, na sua plenitude, essa visão agostiniana da Galiza, numa série de 3 cartas publicadas em Encrucillada, uma revista galega, em 1978.12
Logo na primeira delas, diz-nos, Agostinho da Silva, o seguinte: “Continuo a
ver a Galiza como a ‘chave’ da abóboda peninsular, a feição capaz de levar Portugal a participar como uma das unidades autónomas da nova Ibéria, não só
esta aqui, dos Pirenéus para baixo, mas a que anda também por África, Ásia e
América do Sul.” Eis, em suma, a visão agostiniana da Galiza: raiz principial de
Portugal; “‘chave’ da abóboda de toda a Península Ibérica.” Em que medida, eis
o que veremos ao debruçarmo-nos sobre “a visão agostiniana da Ibéria”.
***
Ainda na sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, considera Agostinho da Silva que, historicamente, “a grande façanha de Portugal” foi a de “ter
resistido a Castela” – nas suas palavras: “O que Portugal fez de maior no mundo
não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ultramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o
princípio de independência dos territórios periféricos.”13 À luz desta tese, dir-se-á
pois que Agostinho da Silva foi tudo menos um iberista. Eis, pelo menos, o que
certamente dirão aqueles para quem o iberismo consiste na subjugação – mais ou
menos voluntária… – a Castela. No entanto, essa não é a única definição possível
de iberismo. Certamente, não é a de Agostinho da Silva. Daí que, num certo sentido, mas apenas nesse, possamos até dizer que Agostinho foi um iberista…
Por isso, aliás, defendeu Agostinho da Silva que a guerra pela independência, a guerra contra Castela, não foi uma guerra contra a Ibéria, mas, ao
invés, uma guerra pela verdadeira “cultura peninsular”, pelo “verdadeiro estilo
de vida da Península” – nas suas palavras:
“…ele [Nun’Álvares Pereira] não estava batendo-se por uma nação
portuguesa contra uma nação espanhola. Em primeiro lugar porque não havia uma nação espanhola (…); em segundo lugar porque
mesmo muito tempo depois de terminada a guerra, nunca os portugueses negaram que fossem espanhóis no sentido de pertencerem à
Península: espanhóis sim, mas espanhóis de Portugal, não espanhóis
de Castela; espanhóis, mas espanhóis que defendiam, contra um estilo de vida de opressão e de fanatismo e de pura cobiça, um estilo
de vida de liberdade, de compreensão e de cooperação que deveria
ter sido, por suas razões históricas e por suas tradições, o verdadeiro
estilo de vida da Península (…).”14
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335
E que Península era essa por que Portugal se bateu ao ter-se batido
contra Castela?… Ouçamos, uma vez mais, Agostinho da Silva:
“Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autónomas e com descentralização administrativa; uma Península a que
se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média
portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, haver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma
Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de
‘vida conversável’, como diria mais tarde um navegador, para cristãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingências económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa
renda de bilros, dado o ‘pique’ ao mundo. E o dito mundo, Europa
inclusive, se podia depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete
e lançando ponto.”15
Ainda nas palavras de Agostinho da Silva, foi essa guerra o preço necessário para a futura paz:
“Se, porém, está marcado nos destinos que se seja ao mesmo tempo
fraterno e universal, o que muitas vezes sucede é que se tenha de
começar por pôr de lado aquilo que é apenas uma falsa fraternidade
e repousa no desejo que têm os outros de exercer suas escravaturas,
tanto mais perigosas e difíceis de evitar quanto, na maior parte das
vezes, se acobertam com os pretextos de uma irmandade que é necessário não quebrar. E Portugal teve, quase logo de início, de tomar
a sua definida atitude em face de uma Castela que se não resignava
a deixar que cumprisse seu particular destino uma daquelas regiões
periféricas sem as quais a vida material lhe seria extraordinariamente
difícil. Portugal teve que resistir a Castela para manter o seu direito
de ser; teve, por obediência ao pai que o concitava com o seu chamamento, de ser aquela espada de que fala o Evangelho e começar por
actos de guerra a missão que era, afinal, essencialmente de paz; teve,
para poder unir mais tarde, de separar primeiro.”16
***
Para a devida compreensão da posição de Agostinho da Silva face ao
iberismo, há ainda que atentar numa série de outros textos seus, sobretudo,
na primeira de duas cartas dirigidas a António Quadros, por este coligidas na
A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio
336
sua obra A arte de continuar português, numa secção do apêndice dessa obra,
precisamente intitulado “troca de cartas com Agostinho da Silva, a propósito
da União Ibérica e do destino de Portugal no mundo de amanhã”.17
Nessa primeira carta, datada de 12 de janeiro de 1976, equaciona
Agostinho da Silva, sem qualquer temor, a integração activa de Portugal numa
“Península regionalizada” – dado que, como se questiona:
“Além de tudo, numa Península regionalizada, a faixa atlântica é por
tudo a mais importante e, se Portugal tem, como Quadros e eu cremos (e queremos…) uma mensagem universal (a que faltou, historicamente, a qualidade galega), e a Espanha a não tem (a diferença
de heróis exportáveis está entre o Gama e o Quixote, só para citar os
dois livros máximos), que medo pode ou tem de haver?”
Nessa medida, essa integração não nos deveria causar qualquer temor
– menos ainda aos outros povos peninsulares, dado que, como de seguida
acrescenta Agostinho:
“Creio ainda que neste momento os espanhóis ‘periféricos’ que
pensam, sentem que a entrada de Portugal numa reformulação
ibérica é a garantia de sua própria liberdade.” Eis, aliás, o que Agostinho havia já defendido na sua Reflexão à Margem da Literatura
Portuguesa, ao ter aí escrito que “é só em Portugal que as outras nações da Península podem ver uma esperança e um ponto de apoio
para uma futura liberdade.”18
Resta, como questão fantasmática, a questão da capital da Ibéria. Também aí, porém, é a posição de Agostinho da Silva, nesta carta, inteiramente
desdramatizante – nas suas palavras:
“Creio ainda que com os conceitos jurídicos e as técnicas modernas
não é fatal ter de se pensar numa ‘capital’ da Península: Portugal não
funcionou muito tempo, e o melhor, com uma ‘côrte errante’, o que
não implicava que não fossem sedentárias as administrações concelhias? E tinham sede em São Bento as Côrtes? Tem, em tudo – remata
assim Agostinho da Silva esta sua consideração –, de se pensar novo,
Quadros, como quando, da outra vez, uns loucos achavam que a
África tinha fim ao Sul.”
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Em última instância, contudo, para Agostinho da Silva, nesta carta,
o argumento decisivo para essa integração activa, e sem qualquer medo, de
Portugal numa “Península regionalizada” é o económico – de novo nas suas
palavras, com as quais remata a carta:
“Mas o ponto fundamental ainda é o de cima: provem que Portugal
pode sustentar, ao nível de vida de que ninguém desiste, os seus nove
milhões de habitantes (e o mais que nascer) e eu me calo logo com
a história da Ibéria, porque haverá então todo o tempo de esperar
que o Brasil cumpra a sua missão em África e se reforme o tal espaço
económico de língua portuguesa. Até agora, Amigo Quadros, não o
vi demonstrado em lugar algum.”
Tudo isso porque, como havia escrito Agostinho da Silva nesta mesma carta:
“Não creio que a situação económica de Portugal melhore, por
maior que seja a ‘política de austeridade’, a rede de imposto (não é
nenhuma inovação sobre 28 e seguintes), os empréstimos estrangeiros que só comprometem o país com um mundo rico e podre;
Portugal nunca se aguentou por si próprio, embora talvez tenha
atingido com Dom Dinis um certo equilíbrio na pobreza, o que
hoje ninguém quer (…).”
Daí, enfim, em suma, nesta carta, a razão para essa integração activa,
e sem qualquer medo, de Portugal numa “Península regionalizada”. Trava-se,
tão-só, de viabilizar economicamente a existência física dos portugueses para
que Portugal pudesse cumprir a sua missão metafísica… Que melhor argumento, ainda hoje, para defender a nossa integração na Europa?…
***
Agostinho da Silva não foi, de todo, o que em geral se designa como
um “europeísta” – ou seja, alguém que tenha defendido positivamente a
cultura europeia e, nessa medida, defendido que Portugal deve nela participar o mais possível. Desde logo, para Agostinho, não há uma cultura europeia. Há várias. Pelo menos, duas: a da Europa do Norte e a da Europa do
Sul. É, aliás, a partir dessa fronteira, mais precisamente, a partir da fronteira
dos Pirenéus, que Agostinho desenvolve a sua visão da Europa. Eis, nomeaA visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio
338
damente, o que acontece no primeiro capítulo da sua Reflexão à Margem da
Literatura Portuguesa. Aí, começando por “tomar como um todo a cultura
peninsular”, enuncia o designa como um “dilema”: “Hispanizar o mundo
(…), eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha; eis outro dos
termos do dilema.”19
Obviamente, a resolução do dilema depende, sobretudo, da visão de
cada um, nomeadamente da sua visão da Europa. Agostinho da Silva expõe,
logo de seguida, a sua – ouçamo-lo:
“Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade
e o verdadeiro futuro estejam para lá dos Pirinéus; não creio que
aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosamente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o Sul de
Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa
de gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que isso, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma
transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio utilitário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira,
levou às últimas consequências.”20
Face a esta visão da Europa – que o próprio Agostinho da Silva reconhece como “simplista, mas que tem a vantagem de ser firme” –, fácil é de
antever a forma como ele resolve o dilema previamente enunciado, desde logo
relativamente a Portugal. Trata-se, no caso de Portugal, de ser o menos europeu possível, de nos voltarmos o mais possível para o mar, para o Atlântico,
trata-se, em suma, de nos ligarmos o mais possível aos países transatlânticos,
em particular ao Brasil. Para Agostinho, aliás, historicamente, só essa ligação
poderia ter “definitivamente livrado Portugal das daninhas influências europeias que não o deixaram ter nem regime cultural nem acção nem política
verdadeiramente adequadas à sua mentalidade”,21 antes procuraram “fazer de
Portugal uma Dinamarca latina”.22
Nessa medida, denunciou aqueles que, na sua perspectiva, pugnaram
por esse modelo – nomeadamente, Antero de Quental, por ter defendido o
“quebrar resolutamente com o passado” para “entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta”,23 e, mais ainda, Eça de Queiroz, “escritor que viu Portugal nas suas férias de cônsul; que se divertia com a caricatura dos homens da
sua roda e inclusive dele mesmo; para o qual era muito mais fácil fazer graça
do que análise”,24 assim criando “um ambiente de desprezo pela pátria”.25 Eis,
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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de resto, a acusação que Agostinho imputou a toda a “Geração de 70”, à excepção de Francisco Manuel de Melo Breyner, conde de Ficalho, que, ao contrário
dos outros, “não teve pessimismos, não considerou a nação falida, não troçou
de ninguém”26.
***
Tal como Agostinho da Silva, permitimo-nos aqui defender que o futuro de Portugal passa, desde logo, pela reafirmação da nossa tradição cultural.
Isto, de resto, para benefício da própria Europa, que igualmente só terá futuro
se se afirmar nas suas diversas tradições culturais, inclusive, na tradição cultural portuguesa.
Não porque a tradição cultural portuguesa seja a via de salvação da
Europa e do próprio Mundo como, por vezes, em algumas passagens mais
arrebatadas, Agostinho parece defender – a título de exemplo:
“…quando a técnica tiver esgotado todas as suas possibilidades,
quando a economia protestante se verificar plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril, Portugal virá de
novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o
seu sacrifício (…)”.27
Na perspectiva de Agostinho da Silva, eis, aliás, a “missão” – ou, mais
exactamente, a “acção”, dado que, como ressalvou: “Não sei se [Portugal] teve
uma missão, porque isso já teria que meter Metafísica, para saber quem é que
entrega a missão e quem é que toma a missão. Mas que teve uma acção, teve
seguramente.”28 – pela qual se cumpririam, enfim, as “Descobertas”.
Ainda que a nossa perspectiva seja aqui mais comedida – dado que
não cremos, de todo, que seja Portugal que, por si só, irá salvar o Mundo ou,
sequer, a Europa – nem por isso deixamos de acompanhar Agostinho na sua
defesa da tradição cultural portuguesa. Por uma simples razão: só no seu
seio poderão, os portugueses, verdadeiramente ser… Não fosse a Cultura,
ainda e sempre, a incontornável mediação na via da realização integral de
todo o ser humano. Só na assunção plena daquela, ele, cada um de nós, verdadeiramente será…
A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio
340
Notas
1 In Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, org. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora, 2000
(doravante: ECLPB), vol. I, p. 31.
2 In “Considerando o Quinto Império”, in ECLPB, vol. I, p. 250.
3 Ibid., p. 31.
4 Ibid., pp. 95-96.
5 Ibid., p. 96.
6 Ibid., p. 34.
7 Ibid., p. 35.
8 Nessa medida, equaciona ainda Agostinho, essa cisão originária prefigura toda a “restante tragédia universal”: “…pode ser que aqui tivessem os destinos do mundo tomado Portugal e Galiza como um perfeito espelho
e um resumo de toda a restante tragédia universal” [cf. ibid., p. 32].
9 Ibid., vol. II, pp. 316-317.
10 Ibid., pp. 357-359.
11 “Carta chamada Santiago (1ª)”, Santiago de Compostela, 25/7/1973, in Correio de S. Félix, Bahia, 15 de Setembro de 1973; in Dispersos, ed. cit, p. 585/601 (2ª).; “Carta chamada Santiago (2ª)”, Lisboa, 1/5/1974, in Parábola
– página cultural do Diário do Minho, Braga, 8 de Junho de 1974, p. 3; in Dispersos, ed. cit, p. 586/602 (2ª); “Carta
chamada Santiago (3ª)”, Lisboa, 21/5/1974, in Parábola – página cultural do Diário do Minho, Braga, 8 de Junho
de 1974, p. 3; in Dispersos, ed. cit, pp. 586-587/602-603 (2ª); “Carta chamada Santiago (4ª)”, Lisboa, 17/6/1974, in
Dispersos, ed. cit, pp. 587-588/603-604 (2ª); “Carta chamada Santiago (5ª)”, Lisboa, 1/7/1974, in Jornal do Oeste,
Rio maior, 28 de Setembro de 1974, p. 8; in Dispersos, ed. cit, pp. 588-589/604-605 (2ª); “Carta chamada Santiago
(6ª)”, Lisboa, 2/7/1974, in Dispersos, ed. cit, pp. 589-590/ 605-606 (2ª); “Carta chamada Santiago (7ª)”, Lisboa,
17/8/1974, in Dispersos, ed. cit, p. 590/ 606 (2ª); “Carta chamada Santiago (8ª)”, Lisboa, 18/8/1974, in Dispersos,
ed. cit, p. 591/607 (2ª); “Carta chamada Santiago (9ª)”, Lisboa, 1/9/1974 (inédita); “Carta chamada Santiago
(10ª)”, Lisboa, 3/9/1974, in Dispersos, ed. cit, p. 592/ 608 (2ª).
12 “[Cartas a Encrucillada]” (Sesimbra, 31 de Dezembro de 1976; 7 de Março de 1977; 26 de Maio de 1977), in
Encrucillada, revista galega de pensamento cristián, Ferrol, n.° 6, Xaneiro-Febreiro de 1978, pp. 82-85 e 89.
13 ECLPB, vol. I, pp. 29-30.
14 Ibid., pp. 38-39.
15 Ibid., p. 30.
16 Ibid., pp. 36-37.
17 In António Quadros, A Arte de continuar português, Lisboa, Edições do Templo, 1978, pp. 189-203.
18 Cf. ECLPB, vol. I, p. 30.
19 Ibid., p. 27.
20 Ibid., p. 28.
21 Cf. ibid., p. 66.
22 Cf. “Desconhecidos, quase”, in Vida Mundial, Lisboa, 12/11/1971, p. 25.
23 Cf. Causas da decadência dos povos peninsulares, Lisboa, Ulmeiro, 1996 (7ª), p. 67.
24 Cf. ECLPB, vol. I, p. 75.
25 Cf. ibid., p. 144.
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26 Cf. “Desconhecidos, quase”, in Vida Mundial, Lisboa, 12/11/1971, p. 27.
27 ECLPB, vol. I, p. 91. Daí ainda, nesta esteira, estas suas incisivas palavras: “…a Europa foi o único lugar onde
Portugal nunca desembarcou e que precisa que agora Portugal desembarque nela. Portugal com o Brasil. Portugal com a África. Portugal com a Ibéria. Para que a Europa possa ter futuro e um futuro decente.” [Cf. Francisco
Palma Dias, “Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito”, in AA.VV., Agostinho [da Silva], São Paulo, Green
Forest do Brasil Editora, 2000, p. 165].
28 Cf. Conversas com Agostinho da Silva, entrevista de Victor Mendanha, Lisboa, Pergaminho, 1994, p. 27.
Resumo
Neste texto, o nosso propósito foi o de expressar a visão de Agostinho da Silva da Galiza
– vista como a “noiva de Portugal” –, da Ibéria – vista como o grande espaço da Europa
do Sul – e, finalmente, da Europa – mais propriamente, das duas Europas: a do Sul e a do
Norte.
Palavras-chave: Agostinho da Silva; Portugal; Galiza; Ibéria; Europa.
Abstract
In this text, our purpose was to express Agostinho da Silva’s vision of Galiza, seen as
“Portugal’s bride”, his vision of Iberia, regarded as the great space in South Europe, and
finally his vision of Europe, more exactly of the two Europes: the South and the North
ones.
Keywords: Agostinho da Silva; Portugal; Galiza; Iberia; Europe.
A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa
Renato Epifânio
342
O racionalismo-místico:
a herança de António Sérgio no
pensamento de Agostinho da Silva
Romana Valente Pinho*
“(...) deve-lhes dar o hábito e o amor do pensamento, desenvolver
o que neles há de verdadeiramente humano; deve acostumá-los a
chegarem sempre ao fim dos seus raciocínios, a não se cansarem e
desistirem a meio; deve levá-los a que tenham as ideias como guias
de vida; todo o homem que pensa e se obedece é caminheiro da estrada da verdade, venha donde vier, venha por onde vier. (...) Pensar
é viver: ao pensamento perfeito corresponde a perfeita vida.”
(Agostinho da Silva, Pólicles)
George Agostinho Baptista da Silva (1906-†1994) cruza-se com António Sérgio nos bastidores da Seara Nova, no entanto, é só em Paris (quando
Agostinho aí se encontra com uma Bolsa de Estudos – 1931/1933) que estreitam relações. Uns anos depois, em Madrid1(1935/1936), encetam uma relação
intelectual e amistosa que se revelará intensa para os dois autores.
De Agostinho poder-se-á dizer que é, ao mesmo tempo, um admirador
e um crítico pertinente de António Sérgio. Um admirador porque foi por meio
de Sérgio que se licenciou pela segunda vez2 (licenciatura em liberdade, em democracia, em clareza e racionalismo), crítico porque, embora notando as qualidades do ensaísta, não se abstém de apontar os aspectos que considera menores
na sua postura intelectual e vivencial.3
De Sérgio dir-se-á, de igual modo, que é um admirador4 e um crítico
de Agostinho da Silva. Admirador porque lhe reconhece o espírito sagaz, o
* Mestre e doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro do Projecto “Agostinho da Silva, Estudo do Espólio” (Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Centro de Filosofia da
Universidade de Lisboa e Associação Agostinho da Silva). Sobre Agostinho da Silva, publicou os livros Essencial
sobre Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, e Religião e Metafísica no Pensar de
Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. Co-organizou com Amon Pinho Davi e
Renato Epifânio o In Memoriam de Agostinho da Silva (2006) e fixou e transcreveu, juntamente com Amon Pinho
Davi, a obra inédita de Agostinho da Silva Caderno de Lembranças (2006).
343
sentido de iniciativa, o desejo de justiça e liberdade, o combate pela erradicação da desigualdade social e cultural; crítico porque lhe aponta as suas insuficiências intelectuais.
Ainda que Agostinho da Silva enfatize as qualidades de António Sérgio
como racionalista, matemático,5 pedagogo6 e até como homem de grande carácter, tinha plena consciência de que o seu mestre sofria de alguma inaptidão
para colocar em prática as suas ideias políticas, sociais, económicas e educativas,7 que não ousava levar adiante as suas posições filosóficas (preferia manterse na certeza8 ou, se preferirmos, na dúvida9 incessantemente metódica), que
não habitava no mundo real10 e que não entendia Portugal tal como ele era.
Sonhava com um Portugal helénico.11 Até na apologia da democracia, Sérgio
não conseguia, segundo Agostinho, passar de uma democracia platonizante.
Todavia, definia-o como um político que defendia o socialismo liberal, que
havia conceptualizado uma das maiores doutrinas que podem orientar a Economia e a Escola de uma sociedade – Cooperativismo. No fundo, Agostinho
da Silva sentia-se ao lado de Sérgio: “Iniciou-se aí uma relação extremamente
interessante, activada pela extraordinária e sempre vivíssima lucidez da inteligência do Sérgio e ainda por alguma coincidência das nossas preocupações,
como a situação política ou assuntos científicos (...)”.12
O nosso autor aprendera com Sérgio a dar valor ao pragmatismo, afinal,
fora ele que o aconselhara a optar pela vertente prática da vida em detrimento
da Filosofia.13 Agostinho da Silva, por mais que critique o autor de Ensaios relativamente à sua inaptidão para a praticidade e para o acento demasiadamente idealista que caracteriza a sua personalidade e a sua obra, reconhece que
Sérgio apontou um caminho, ainda que ténue e disfarçado, para lá do puro
racionalismo e do puro idealismo convencionais: por um lado através da conceitualização do sistema cooperativista14 que pode ser adoptado, sem prejuízo
material e pragmático, por qualquer sociedade; por outro através da defesa de
um racionalismo puro15 que supõe, no nosso ponto de vista, a existência de
um meta-racionalismo16 – trata-se, afinal, da noção de Uno-Unificante que o
autor expôs (por vezes, timidamente) nos seus textos e do conceito de racionalismo místico.17 Nesta perspectiva, António Sérgio desloca-se do idealismo
para o pragmatismo e do racionalismo para a metafísica.
Ora admirando-o, ora criticando-o, Agostinho da Silva não nega a influência que António Sérgio exerceu na sua formação intelectual e se, por vezes, somos tentados a afirmar que o autor luso-brasileiro se afastou demasiado
dos pressupostos que escutou do seu mestre, entre as décadas de 30 e 40, em
Paris, Madrid ou na Travessa do Moinho de Vento (Lisboa), por outro lado,
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estamos conscientes de que essa aprendizagem não abandonou Agostinho tão
facilmente como se possa pensar, muito pelo contrário, acompanhou-o até ao
final do seu percurso biográfico e intelectivo.
Um dos aspectos que Agostinho da Silva não compreende na proposta
de António Sérgio é o utopismo18 em que se encerra, afinal, toda a sua doutrina. Agostinho não entende como é possível adulterar o ser e o sentido de
Portugal. António Sérgio antevê um país pensante, técnico, dono do seu próprio destino. Na perspectiva agostiniana, também ela utopista, é certo, Portugal dever-se-á guiar pelo ser e não pelo dever-ser. A meta de Portugal, na sua
visão, constituir-se-á ontológica e metafísica. Contrariamente, no espírito de
Sérgio, ela situar-se-á exclusivamente no âmbito do purismo racional e moral,
embora esta linearidade sergiana seja contestável, na medida em que ele deixa
em latência a possibilidade de uma outra proposta: a concepção de uma Razão
Pura que se revela no Acto-Humano. Quando se eleva do mundo biológico e
cousista,19 o Homem descobre a sua Razão Pura, ou seja, o seu Eu-Espiritual
que unifica tudo quanto existe. Se usarmos a metáfora sergista da ascese humana ou da evolução cognitiva (a ascensão do eu-biológico para o eu-espiritual), poder-se-á dizer que, de um ponto de vista socioeconómico, o esforço de
Sérgio se prende com a transposição da mediocridade mental em que Portugal
está mergulhado para um estádio mais elevado.
Na obra de Agostinho da Silva faz-se a apologia de um Portugal medieval, pré-absolutista, pré-anti-reforma, mono-árquico,20 enamorado pelo Mar
e de costas voltado para a Europa além-pirenáica; no pensamento de Sérgio
idealiza-se um Portugal cartesiano e espinosista, aliado da França e da Inglaterra e indiferente ao Atlântico. As utopias dos dois são semelhantes, porém,
avistam-se de ângulos opostos. Afinal de contas, têm a mesma preocupação
face ao destino21 ou futuro de Portugal: o desenvolvimento social, político,
cultural, científico e pedagógico do país, logo, naturalmente espiritual. Sérgio
preconiza um Portugal pensante, Agostinho um Portugal paraclético, livre, portanto, de quaisquer amarras.
George Agostinho da Silva, como a maior parte dos discípulos de António Sérgio, não poupa o ensaísta português do seu polemismo, do seu inconformismo face ao modo de ser português (ansiava por um Portugal metodicamente europeu), do seu olhar arrogante a todos quantos de si divergiam. Ainda
assim, e parafraseando Eduardo Lourenço,22 temos consciência de que poucos
terão compreendido seriamente António Sérgio, logo, poucos terão tido a capacidade de o confrontar. Até o próprio Agostinho está ciente da sua pequenez
intelectual face à erudição de Sérgio.23 Contudo, por mais que o nosso autor se
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tenha desviado dos propósitos sergianos, por mais que tenha ultrapassado as
teorias sociais e pedagógicas propostas pelo mentor de Ensaios, por mais que
tenha seguido os conselhos do seu mestre (preocupar-se com a acção), o que
é certo é que há, em todo o percurso intelectual de Agostinho, uma dimensão
teórico-prática que nunca deixou de se manifestar sergianamente.
As maiores afinidades que Agostinho da Silva sente em relação ao mestre António Sérgio prendem-se com as vertentes políticas, sociais e pedagógicas que defendia. Porém, o sistema filosófico do ensaísta também interessava
ao jovem Agostinho. Recém-chegado de Madrid (ainda que lá também se encontrasse, de vez em quando, com Sérgio), onde tinha estudado os místicos
espanhóis, o contacto com o homem dos Ensaios insere-o num universo diferente, num plano diverso que contempla a Razão como fundamento da doutrina filosófica, mais próximo daquilo que inicialmente expunha na sua obra,
quando se dedicava ao estudo dos clássicos. A admiração que Agostinho da
Silva sente por Espinosa24 talvez venha das tardes de sábado, em casa de Sérgio
(este último um fervoroso espinosista). Se George Agostinho não é um racionalista no sentido mais puro, ele tenderá a rever-se num sistema filosófico que
reúne a Razão e a Mística, chegando, por vezes, a afirmar até um primado da
Razão: “Penso, como ser pensante, que nada existe senão o pensamento, o qual
me pensa como ser pensante.”25 Se esta acepção resulta da sua leitura de Espinosa, resultará, com certeza primeiro, dos ensinamentos de António Sérgio.
Quando em Educação e Filosofia,26 escrito em 1920, António Sérgio sugere o primado da Razão, está, de igual forma, a propor a indissociabilidade
da Filosofia e da Educação:
“Em meu juízo, a ideia de que dissocio educação e filosofia só pode
ocorrer aos indivíduos, ou pouco atentos, ou que consideram esta
última sob um aspecto demasiado abstracto, não na sua parte mais
humana, onde a actividade filosófica – da mais viva origem e do
mais largo interesse – implica com as necessidades sociais e é uma
teoria da educação.”27
Influenciado pela leitura dos textos platónicos, Sérgio concebe um sistema de
educação muito próximo do exposto pelo filósofo grego, no qual a Filosofia
deverá ser a norteadora de todo e qualquer processo pedagógico, ou seja, a
Filosofia estará ao serviço da construção da cidadania, da ética, da sociedade,
da educação, enfim, será a orientadora do Homem como ser universal. Nesta
perspectiva, defender-se-á a existência de uma Sociedade Universal, de uma
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346
República, de uma Sociedade Racional, da qual todos os homens farão parte
desde que se deixem guiar pelos desígnios da Razão. Afinal, existe um único
pensamento (que é comum a todos os homens) e uma mesma inteligência (da
qual todos também participam). Mas António Sérgio corrobora ainda mais o
pensamento socrático-platónico quando afirma que a instauração desta Sociedade depende do método filosófico utilizado pelos professores, no fundo,
a renovação social estará a cargo do processo pedagógico implementado por
moldes racionais. Compete aos docentes incentivarem os alunos à descoberta
da sua própria racionalidade. Neste sentido, a Filosofia é uma maiêutica. A
Sociedade formar-se-á através de alicerces filosóficos, logo pedagógicos. Visase, por meio da Filosofia e da Educação, formar uma sociedade consciente,
racional e livre. A verdadeira comunidade será uma inter-relação racional.
No seu pensamento, Agostinho da Silva não menospreza a tendência
racionalista de António Sérgio, quer ela se aplique à filosofia, quer à educação,
aliás, esta dimensão grega estava já em flagrância no seu pensar, antes do contacto com o homem dos Ensaios:
“Todo o sentido dos mistérios órficos está na libertação dessa centelha divina que faz parte da nossa alma, que nos leva à compreensão
da Beleza e que tão duramente contende com a natureza titânica que
vem das forças brutas dominadas por Zeus. Se essa libertação depende do sentimento, depende muito também da inteligência: foi Palas,
deusa da Abstracção, quem salvou o coração de Dioniso; os números
pitagóricos serão expressão perfeita da libertação órfica.”28
Ao fim e ao cabo, Agostinho é um pensador que não descura a Razão, ainda
que a ela não se prenda inteiramente. Se Sérgio se amarra ao mastro do navio
racional com medo de ser tentado por outras pendências, Agostinho não tem
receio do canto das sereias. Nesta perspectiva, o nosso autor tanto é um racionalista-místico (como se auto-intitula em Pensamento à solta), como é um
adepto do racionalismo livre.
Se Agostinho da Silva, motivado por António Sérgio, regressa à apologia de um racionalismo orientador da conduta humana, também se confronta
com os apelos da democracia que, mais tarde, vão ser reforçados pelo contacto com Jaime Cortesão. Assim, em Paris, Madrid ou nos sábados à tarde,
na Travessa do Moinho de Vento, Agostinho ouvia constantemente aludir a
“(...) manda que soltemos o nosso rumo por uma definição da Democracia,
a qual supomos poderá ser esta: o regime dos negócios públicos fiscalizados
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pela opinião pública, e que tende a criar, por isso mesmo, iguais condições
de dignidade para todas as pessoas.”29 Princípios que, afinal, iam ao encontro
daquilo que quase sempre defendeu quer na sua vida intelectual, quer nas atitudes de carácter mais práxico.
Por volta de 1933, no início da Ditadura Salazarista, António Sérgio
condena muitos dos males que afectam as sociedades não-democráticas (o caso
da censura,30 por exemplo), como já o havia feito também nos tempos da Ditadura Militar, e apela para a instauração do sistema democrático o mais breve
possível: “Portanto, [creio que] basta esse teu argumento para demonstrar a
necessidade da democracia – a de todas as teses da democracia.”31 Criticando,
ao mesmo tempo, a religião católica por não ter sido fiel, em grande parte por
culpa do sistema político, à democratização cristã (é curioso como, em 1942 e
1943, através da publicação de O Cristianismo e de Doutrina Cristã e da correspondência pública que surge como fruto dessas edições, Agostinho defende o
mesmo do que António Sérgio)32: “O verdadeiro religioso não pode ser senão
democrata. Os corolários políticos do cristianismo estão logicamente na ala da
esquerda; e se há católicos da direita, são-no por infidelidade ao Evangelho, por
um imenso acto de jesuitismo... (...).”33 Sérgio relaciona a democracia com a religião, chegando até a aludir a uma “mística democrática”: “(...) a Democracia,
porém, tem o carácter de uma religião. A «mística democrática», como disseste
já. E disseste bem. Se Deus é Espírito (como afirma o Cristo) é bem por Deus
que combatemos nós.”34 No entanto, para António Sérgio, a democracia assume-se essencialmente como fundamento político da sociedade nova (baseada
no cooperativismo), que é, ao jeito de Marx, uma sociedade sem classes:
“Que é a Democracia? – É, sob o ponto de vista político, o regime
em que são fiscalizados os governos pelos representantes da opinião
pública, e em que os representantes da opinião pública votam as bases da legislação (sob um conjunto de garantias rigorosamente determinadas) buscando, por aqueles meios, a progressiva igualização
de todos os membros da sociedade [, a aproximação da sociedade
sem classes]”.35
Por mais que Agostinho da Silva concorde com António Sérgio no que
respeita à renovação nacional por meio da Educação ou da Escola, por mais
que apoie o seu sistema cooperativista, por mais que se reveja no municípioescolar, o que é facto é que o que mais importa é a análise agostiniana do racionalismo sergista que não pode ser compreendido sem estas mediações. Se, para
Agostinho, o racionalismo de Sérgio não poderia ser aplicado, pelo menos nos
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tempos de então (e o ensaísta tinha consciência disso), à vida portuguesa, de
outro modo, o racionalismo é o condutor ideal da ciência, da educação e até da
própria metafísica. No espírito do autor de Ensaios, há lugar para um racionalismo metafísico (ou místico)36 que explica o englobamento do homem como
ser racional. O encantado e misterioso Uno-Unificante, sobre o qual tão pouco
se sabe (talvez porque Sérgio, por vezes, tivesse receio de entrar nos meandros
da metafísica),37 poderá ser associado à Razão primacial, fundante e final. Na
nossa perspectiva, esse Uno-Unificante é o fundo,38 é o todo do qual as partes
se formam e destacam, é a única coisa que, não se sabendo muito bem o que é,
limita ou está acima da criação do intelecto.39 Ou seja, é aquilo que de natureza
mais divina existe no ser humano, é o eu-primário, o eu-puro, o eu-absoluto40
que unifica e universaliza o que o eu-empírico/biológico apreende. Contudo,
esse eu-originário é acção, é, porventura, o instante em que, no limiar entre o
eu e o não-eu, acontece o auto e o hetero-reconhecimento. Nesse momento,
através do Pensamento (que, na linguagem de Sérgio, é o próprio Absoluto),
o homem universaliza-se, reconhece que é um ser em relação e também que é
unidade. Nesse reconhecimento, o homem alcança o seu verdadeiro ser: “Tal
uno-unificante é o verdadeiro ser.”41
A doutrina racionalista de Sérgio é, no nosso entender, uma aproximação ontológica42 e metafísica. Afinal, a que se refere Sérgio quando trata a
Razão e o Pensamento como Absoluto? Quando apresenta o Acto do supremo
pensar (transcensão do eu-empírico para o eu-puro/espiritual) como conhecimento do Ser e da Verdade?43 Quando afirma que esse Acto é manifestação
de Deus?44 Não estará o autor, ao fim e ao cabo, a insinuar argumentos de cariz
ontológico? Por mais que Sérgio tenha evitado a metafísica e a ontologia, o
que é facto é que não lhes conseguiu escapar totalmente, por mais eufemista
e tímido que se tenha manifestado ao longo da sua obra. A prova é que a sua
concepção racionalista é matizada por aspectos onto-metafísicos. A Razão Pura é uma Razão Divina:
“Quem se desprende de si e sobe à altura do Espírito, isto é, ao
pensar racional, não sensível, universal, objectivo, encarando-se a
si, aos demais, ao Mundo, numa visão superior que a todos eles os
irmana, (...): quando um homem consegue, vos ia eu explanado, remontar-se ao plano do verdadeiro Espírito, – quando logra fazê-lo,
afinal, que acontece? Une-se então ao divino; vê-se aí coincidindo
com os demais seres humanos que realizaram também a sua ascensão ao Espírito”45.
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O Homem é um princípio de unidade, uma centelha divina. Já que Deus não
passa de Forma Pura, de Puro Inteligível, da Ideia (princípios dos quais todos
os homens participam). E, embora António Sérgio não explane directamente
este assunto, por meio de algumas metáforas é-nos possível ver a abordagem
que o autor faz destas matérias. Assim, e através da simbologia do Menino
Jesus, por exemplo, é possível antever, no seu pensar, uma ideia de Deus que se
exprime como Força imanente do ser humano, tornando-o num ser racional,
bom, belo, caridoso. E, curiosamente, tal como pensa também Agostinho da
Silva, é através da contemplação do Menino(-Deus) que se toma consciência
de que o ser humano não é mais do que um sopro divino, uma presença do
sagrado na face da Terra:
“Deus – e não um deus, mas Deus - vê-se hoje na figura de um menino pobre, deitado e risonho sobre a palha humilde. (...) É um sopro
de vida sobre um berço humilde, onde o bem das almas se concentra
e jaz. (...) e digamos agora que este mundo triste só terá uns longes de
esplendor divino quando a última nuvem da superstição se dissipar
no cariz do alvorecer das almas, e admirarmos somente o que é Forma pura, amplíssima caridade, aspiração sem termo (...)”.46
Se a relevância dada à acção era um ponto de entendimento entre Agostinho da Silva e António Sérgio, talvez o Uno-Unificante o fosse ainda mais.47
Notas
1 SÉRGIO, António. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves. Madrid, 13/01/1936. In: revista da Biblioteca Nacional, carta 13. S. 2, vol. 4, nº 2, Lisboa: Biblioteca Nacional, Jul.-Dez. 1989, p .64: “O Agostinho deve
partir de aqui no dia 20” e idem. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves, Madrid [?], 31/01/1936. In:
revista da Biblioteca Nacional, carta 14. p. 65: “Chegou bem o Agostinho? Tem conversado com ele?”
2 SILVA, Agostinho da. Entrevista com Agostinho da Silva. Filosofia, nº 2, Dez. 1985 [In: ______. Dispersos. Organização de Paulo Borges, Lisboa: ICALP, 1989, p. 53]: “Por mim, posso dizer que a minha segunda Faculdade
foram aquelas reuniões em casa do Sérgio.”
3 SILVA, Agostinho da. Conversas Inacabadas. Com Joaquim Furtado. In: Grande Reportagem, 7 a 13 de Dez.
1984; 14 a 20 Dez. 1984; 21 a 27 de Dez. 1984; 28 de Dez. a 3 Jan. 1985; 4 a 11 Jan. 1985. [In: ______. Dispersos,
p. 37]: “O Sérgio nasceu em Damão. Pois encontrámo-nos centenas de vezes e olhe que nunca me falou da Índia!
Não é que quisesse ocultar... não se lembrava! Tinha sido ajudante do pai enquanto governador-geral de Angola.
Também nunca me falou de Angola! Esteve um tempo exilado ou alojado no Brasil. Pois só uma vez me falou do
Brasil, dizendo que o calor daquela terra é insuportável!... Ora, talvez não seja a melhor maneira de definir o Brasil... (...) Significa que o Sérgio não tinha nenhuma vocação portuguesa e que em lugar de pensar uma História
de Portugal adaptada ao português tal qual é, e não a um português ideal que ele achava que o português devia
ser, lamentava que o português não fosse cartesiano, (...)”; “Não deixa de ser curioso que os melhores historia-
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dores de Portugal – um Herculano, um Oliveira Martins, um Sérgio – tenham sido inimigos do mar e esquecidos
de grande parte do Mundo e que, num País cuja história é sobretudo externa, tenham dado a maior atenção ao
que por aqui se passava, às aventuras do resíduo, não às empresas do corpo.”
4 SÉRGIO, António. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves. Madrid, 1936. In: revista da Biblioteca
Nacional, carta 15, p. 66: “Aparte o nosso admirável Agostinho, tenho a impressão de que a Faculdade de Letras
do Porto tendeu a ser um tanque de criação de alforrecas.”
5 SILVA, Agostinho da. Agostinho, Ensine-nos. Entrevista a Lurdes Féria. In: Diário de Lisboa, 19 de Abril de
1986. [In: ______. Dispersos, p. 116]: “Um homem de inteligência clara, fortemente racionalista, apaixonado pela
matemática, para a qual tinha jeito. Não procurava exercer qualquer espécie de influência... era um homem de
grande carácter. Unia-nos o gosto de olhar as ideias e de as discutir.”
6 Idem, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 55: “Mesmo como pedagogo, a sua atitude tendia a ser de grande
arrogância intelectual.”
7 Ibidem, p. 54: “A incrível inabilidade de Sérgio para dar cunho prático às suas ideias políticas, sociais, pedagógicas, (...).”
8 Ibidem, p. 55: “Enfim, penso que o Sérgio não ousou afrontar os problemas filosóficos mais profundos, as
questões de dúvida. Preferia manter-se nas certezas.”
9 LOURENÇO, Eduardo. Sérgio como mito cultural. In: ______. O Labirinto da Saudade. 2ª ed. Lisboa: Gradiva, 2001, pp. 160-161: “Não só Sérgio se dava pelo homem da dúvida, como incitava os outros a cultivá-la. (...)
mas tão-só uma retórica da «dúvida» que deixa intacta a segura marcha do ensaísta. A dúvida de António Sérgio
é a musa que o acompanha no passeio através do jardim alheio. A sua «dúvida» – de tradição cartesiana mas já
recebida como «evidência», o que lhe retira o papel inquietante que tem no cartesianismo – cai fora do horizonte
em que o seu discurso tem origem e lugar.”
10 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 54: “Parece que os lugares concretos da sua vida
não existiam para ele. Que onde habitava era no espaço vácuo das suas ideias.”
11 SÉRGIO, António. O Caprichismo Romântico na Obra do Sr. Junqueiro. In: ______. Ensaios. Tomo I, 3ª ed.
Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá
da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980, p. 368: “E a mim me perguntava, ante
esse céu lusitano, porque se não casam os nossos dons de espírito com a graça radiosa do ambiente pátrio, como
com o ar cristalino dos mares da Jónia a subtileza sem par da mentalidade helénica (...).”
12 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 53.
13 Ibidem, p. 56: “Quer dizer: tenho a impressão de que o Sérgio percebeu que naquelas andanças da filosofia
eu não valia absolutamente nada, não passava de ruminações elementares, mas que era capaz de fazer coisas
práticas. (...) Sérgio achava que eu, coisas práticas era capaz de as fazer, se a ocasião fosse a adequada; quanto às
coisas teóricas, ele pensava por mim, e tínhamos o caso arrumado.”
14 Idem, Barca D’Alva – Educação do Quinto Império, Fascículo 2, Fundação António Conselheiro,
p. 491: “(...) não temos receita alguma para os regimes jurídicos, mas vamos tanto pelas cooperativas que esta
nossa secção se chamará simplesmente «António Sérgio»: cremos que está aí o ponto máximo e válido de sua
acção doutrinal; (...).”
15 SÉRGIO, António. Prefácio da Segunda Edição. In: Ensaios, Tomo I, p. 43: “(...) as ideias para mim não são
reflexos das coisas: são livres criações do intelecto humano, intelecto que concebo como radicalmente dinâmico,
[radicalmente espontâneo] tomando a iniciativa das perguntas, a iniciativa das respostas: para mim, a própria
percepção é uma criação do espírito; e a filosofia implícita nos meus escritos foi sempre uma filosofia da actividade pura (...).”
16 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, pp. 54-55: “Porque uma vez, falando-se de metafísica
e devendo eu ter dito quatro ou cinco asneiras no capítulo, recordo-me que ele me objectou: não é bem assim,
olhe que é possível, para além do racionalismo, entrar-se numa metafísica que se baseie no racionalismo.”
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17 LOURENÇO, Eduardo, op.cit., p. 163: “É que o racionalismo de Sérgio que, com mais razão ainda do que
supunha, ele intitulou de místico (...).”
18 Ibidem, p. 169: “De algum modo o seu Reino foi o do impossível que ele soube apresentar como o possível,
por essa passagem quase fatal que liga o ser ao dever ser. Sérgio foi um utopista.”
19 Esta expressão leonardina aplica-se ao tratamento que Sérgio faz do mundo biológico. Este refere-se, literalmente, àquele que Leonardo Coimbra intitula de mundo cousista. Contudo, aparte das analogias, não deixa de
ser curioso como António Sérgio desconsidera a teoria do professor da Faculdade de Letras do Porto.
20 SILVA, Agostinho da; SOUSA, Antónia de. O Império acabou. E agora? – diálogos com Agostinho da Silva. 2ª
ed. Lisboa: Editorial Notícias, 2000, p. 180: “É o regime em que um manda, mas há várias maneiras de mandar.
Então a monarquia portuguesa na Idade Média, ao que me parece, era mono árquica, mas quem mandava propriamente não estava mandando, estava coordenando a vontade dos outros.”
21 LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p. 168: “As raízes do pensamento sergista não são da ordem filosófica, mas
política e social. A filosofia coroa e justifica uma opção e uma visão mais radical, alicerçadas ambas numa certa
ideia do destino português e, em particular, da evolução espiritual lusíada”; vf. SILVA, Agostinho da, Entrevista
com Agostinho da Silva, p. 53.
22 LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p. 166: “Em suma, António Sérgio não teve verdadeiros contraditores ou,
pelo menos, pensadores de paralela envergadura capazes de estruturar o seu propósito nos moldes aliciantes e
convincentes de Ensaios.”
23 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 53: “Ele estava sempre a abrir novas avenidas,
fossem os seus projectos revolucionários, fossem os projectos pedagógicos, fosse algum trabalho que andasse a
fazer, (...)”; LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p.167: “Em si mesma, a filosofia de Sérgio nem é uma filosofia fácil,
nem da facilidade.”
24 Pouco tempo depois, em 1940, no Caderno de Iniciação História da Holanda, Agostinho da Silva demonstra
já ter tido contacto com a obra de Espinosa.
25 SILVA, Agostinho da. Pensamento à solta. In: ______. Textos e Ensaios Filosóficos II. Organização de Paulo
Borges, Lisboa: Âncora Editora, 1999 p. 146.
26 SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, Tomo I.
27 Ibidem, p.133.
28 SILVA, Agostinho da. A Religião Grega. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1930 [In: ______. Estudos sobre
Cultura Clássica. Organização de Paulo Borges, Lisboa: Âncora Editora, 2002, p. 186].
29 SÉRGIO, António. Da Opinião Pública e Da Competência em Democracia. In: Ensaios, Tomo I, p. 232.
30 Idem. Diálogos de Doutrina Democrática. In: Democracia – Diálogos de Doutrina Democrática, Alocução
aos Socialistas, Cartas do Terceiro Homem. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974,
p .5: “Concordo que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes, sujeita ao livre-arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor. (...) A censura também pode ser
apaixonada, por ser humana, e significará sempre, para quem escreve, opressão e despotismo.”
31 Ibidem, p. 5.
32 SILVA, Agostinho da. Carta ao Exm.º Sr. do “Aléo”, 18/05/1943 (Arquivos da Associação Agostinho da Silva):
“(...) para mim, os católicos não são adeptos de Cristo, são adeptos da Igreja; aquilo a que se chama cristianismo
não é nada o cristianismo dos Evangelhos”; idem. Carta ao Exm.º Sr. de “As Novidades”, 22/04/1943 (Arquivos da
Associação Agostinho da Silva): “(...) inegável deturpação que a Igreja Católica fez da doutrina de Cristo; (...)”;
idem. Carta ao Exm.º Sr. Professor Padre Raul Machado, 2/05/1943 (Arquivos da Associação Agostinho da Silva):
“(...) Igreja e Cristo contradizem-se, o catolicismo é um desvio completo de o cristianismo.”
O racionalismo-místico...
Romana Valente Pinho
352
33 SÉRGIO, António, Diálogos de Doutrina Democrática, p. 19.
34 Ibidem, p. 75.
35 Idem. Democracia. In Democracia – Diálogos de Doutrina Democrática, Alocução aos Socialistas, Cartas do
Terceiro Homem, p. 87.
36 SILVA, Agostinho da. Fontes e Pontes do Futuro. Tema: Educadores portugueses – António Sérgio. Vida
Mundial. Lisboa, 18/08/1972, p. 50: “(...) a que António Sérgio chamava de misticismo racionalista, (...).”
37 SÉRGIO, António. Um problema Anteriano, Diálogo na Praia. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 274: “Pergunto-me se
não prolongas para regiões metafísicas o que foi simples análise de reflexão em mim. Mas estás acaso no direito
de fazer como fazes. Não devo objectar.”
38 Ibidem, p. 272: “Só pela relacionação a percepção é possível, e um termo só existe pela relacionação com outro, – ou, antes, com o resto de um todo de que se destaca o termo, e que constitui o seu «fundo», – no sentido da
palavra com que o pintor a emprega. (...) Tudo quanto existe está em relação com um «fundo», – com o restante
de um todo de que forma parte; (...).”
39 Ibidem, pp. 272-273: “(...) alguma coisa, apesar de tudo, existe, que limita a liberdade das criações do intelecto: mas isso não faz parte da consciência nossa, como um dado absoluto que se nela insira.”
40 Ibidem, p. 275: “(...) Eu absoluto – ao princípio da unidade do nosso ser e do Mundo, da nossa pessoa e dos
outros.”
41 Ibidem, p. 274.
42 Tendemos a concordar com os críticos que apontam neste sentido. Citamos, a título de exemplo, a defesa que
António Pedro Mesquita faz acerca do ideário ontológico de Sérgio. Vf. MESQUITA, António Pedro. Aspectos
do ideário sergiano em ontologia. In: SÉRGIO, António. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos
filosóficos, pp. 9-55.
43SÉRGIO, António. Um problema Anteriano, Diálogo na Praia, p. 283: “(...) no interior de nós é que se aposenta
a verdade, o Acto-Deus que é o seu foco (...).”
44 Ibidem, p. 283: “(...) por isso mesmo que a verdade é uma criação de quem pensa, graças à espontaneidade
radical inventiva, ao dinamismo gerador que caracteriza o intelecto, e em que Deus está presente.”
45 Idem. Perante a inexistência de uma Civilização Cristã. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática
e outros textos filosóficos, p. 293.
46 Idem. Sobre Cristianismo e Cristãos, Verdadeiros e Falsos – 8. Diante de um presépio. In: ______. Ensaios.
Tomo VI, Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org.
Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 212.
47 Não deixa de ser curioso o facto de Sérgio dedicar precisamente a Agostinho da Silva um dos textos em que
mais desenvolve este tema (Um problema anteriano).
Resumo
Um dos principais pontos do pensamento metafísico de Agostinho da Silva é o racionalismo-místico. Na sua obra, tal categoria surge como herança do interesse pelos místicos
espanhóis (sobretudo por Santa Teresa de Ávila e por São João da Cruz) e pela filosofia
de António Sérgio. Contudo, é esta última que interpela Agostinho da Silva a postular um
princípio gnosiológico que se caracteriza, simultaneamente, por aspectos de racionalidade
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e de misticismo. Em último caso, é um ponto de extra-racionalidade e de extra-emotividade que dialoga com o conceito de Uno-Unificante de António Sérgio.
Palavras-chave:
Agostinho da Silva; António Sérgio; Gnosiologia/Epistemologia; Racionalismo-místico; Uno-Unificante.
Abstract
One of the main points of Agostinho da Silva’s metaphysics is mystic-rationalism. In his
work, this category is a legacy of the Spanish mystics (mainly Saint Teresa of Ávila and
Saint John of the Cross) and of António Sérgio’s philosophy. However, it is the latter that
prompts Agostinho da Silva to postulate a gnosiologic principle which is characterized,
at the same time, by rationality and mysticism. This topic is ultimately a type of extrarationality and extra-emotionality which dialogues with the concept of Uno-Unificante
by António Sérgio.
Keywords: Agostinho da Silva; António Sérgio; Gnosiology/Epistemology; MysticRationalism; Uno-Unificante.
O racionalismo-místico...
Romana Valente Pinho
354
Agostinho da Silva, em sua mesa de trabalho, no Centro de Estudos Afro-Orientais.
Salvador, Bahia, entre 1959 e 1961.
Foto, ao que tudo indica, tirada pelo artista plástico Lênio Braga, para que lhe servisse de modelo na realização
do retrato a óleo de Agostinho da Silva que ainda hoje se encontra na sede do Centro de Estudos Afro-Orientais
(CEAO) da Universidade da Bahia, do qual Agostinho da Silva foi Fundador e primeiro Diretor.
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DOCUMENTOS
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Antologia Comemorativa
nota prévia
Publicados entre os anos 1940 e 1980, em periódicos de Portugal e do
Brasil, os textos selecionados para compor esta pequena mas representativa
antologia comemorativa compartilham o fato de não terem sido republicados, a despeito da relevância que comportam na concrescência do poliédrico
pensamento de George Agostinho Baptista da Silva (1906-1994). Igualmente a
vários outros títulos de sua extensíssima obra, permaneceram sob as camadas
de tempo com que o passar das horas lhes foi lentamente recobrindo; recobrindo, por um lado, posto que, por outro, recobrando. Seu público leitor já
não é mais o mesmo, quer porque já não vive, quer porque já não lembra, quer
porque não fosse ainda nascido, física, intelectual ou sensivelmente, deles,
hoje, pois, não tendo ou recordação ou conhecimento. Eis a novidade do antigo. Gradualmente recobertos pelo olvido, foram estes textos proporcionalmente recobrando a face do ineditismo.
Trata-se de alguns dentre os escritos que vieram sendo garimpados,
nos últimos anos, no contexto de pesquisa realizada para o desenvolvimento
dos nossos estudos sobre a vida e a obra do autor, e que, atualmente, integram
o acervo da Associação Agostinho da Silva enquanto parte do Projeto Agostinho da Silva: Estudo do Espólio, abrigado por esta Associação e pelo Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa, como amparado pelo alto patrocínio da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Com uma equipe formada pelos doutores Renato Epifânio, Ricardo Ventura, Romana Valente Pinho e Rui Lopo,
além de nós, e coordenada pelo Professor Dr. Paulo Alexandre Esteves Borges,
semelhante Projeto tem como escopo primeiro a classificação e transcrição do
espólio de Agostinho da Silva, que se encontra em ambos os lados do Atlântico, em Lisboa e Salvador majoritariamente, embora também com muitos
elementos dispersos por outras cidades de Portugal e do Brasil.
Sendo assim, constitui-se esta antologia numa amostra de alguns
dentre tantos outros importantes textos deste pensador luso-brasileiro que vêm sendo inventariados e digitalizados no seio do referido Projeto,
cujo escopo segundo é a publicação e cada vez maior divulgação de uma obra
que tem sido objeto de crescente interesse em todo o mundo lusófono, mas
não só, tal como os recentes colóquios, acerca desta obra, realizados nas Uni-
357
versidades de Santiago de Compostela (em Outubro de 2006), Charles-deGaulle – Lille 3 (em Novembro) e Paris x Nanterre (em Fevereiro de 2007),
vieram a demonstrar. Amostra que figura aqui à guisa de módico contributo
às iniciativas que têm convergido no sentido de presentificar, com olhos postos
no futuro, o considerável legado intelectual e ético-político de Agostinho da
Silva, como os de outros intelectuais portugueses que, no século passado, tão
significativamente contribuíram para o adensamento da nossa miscigenada
cultura luso-afro-brasileira. Afinal, não conformaram eles, no dizer de Antonio Cândido, uma não planejada, tácita, virtual e livre “missão portuguesa”?
Originalmente publicados em espaços nacionais e em épocas diferentes,
conforme inicialmente dito, os textos de Agostinho da Silva que se seguem apresentavam, naturalmente, variações ortográficas, que uniformizamos, atualizando-as consoante as normas vigentes no Brasil. Quanto à forma de ordenação,
como se verá, resolveu-se adotar uma disposição cronológica, por ser a mais
apropriada ao caráter da presente edição. Por fim, não posso deixar de registrar
aqui, por um lado, uma palavra amiga de agradecimento a Roberto Pinho, pela notícia do artigo O problema das penínsulas mediterrâneas, e aos colegas da
mencionada equipe de investigação, que generosamente colaboraram conosco
na transcrição destes dez escritos do autor da Reflexão à margem da literatura portuguesa: Renato Epifânio, Ricardo Ventura, Romana Valente Pinho e Rui
Lopo. Por outro, uma palavra franca de congratulação e de reconhecimento ao
Real Gabinete Português de Leitura, nas pessoas do seu Presidente, Dr. Antonio
Gomes da Costa, e da Coordenadora-Geral do Pólo de Pesquisas sobre Relações
Luso-Brasileiras, Professora Dra. Gilda Santos, pela honrosa iniciativa de publicar, em comemoração ao centenário de nascimento do homem de idéias e de
ação que foi Agostinho da Silva, este número especial da Convergência Lusíada:
revista que, fazendo jus ao seu auspicioso nome, tanto tem contribuído para o
aprofundamento e incremento do imprescindível diálogo cultural luso-brasileiro, para o qual, ele, Agostinho, dedicou empenhadamente parte substantiva e
fundamental da própria vida.
Amon Pinho
(seleção e organização)
Antologia Comemorativa
nota prévia
358
Filosofia Nova
SILVA, Agostinho da. Filosofia Nova.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 Fev. 1947.
O primeiro grande trabalho filosófico realizado pelos gregos foi o de
demonstrar que é impossível uma explicação materialista do universo; apesar do gênio de todos os pensadores que hoje se englobam sob a designação
de pré-socráticos, não se pôde evitar a crise sofista do século V; uma concepção materialista pura, perfeitamente lógica, e os gregos eram demasiado inteligentes para a não saberem construir, suprime todos os motivos de
ação; e foi talvez a falência na ação, com todas as desordens conseqüentes
no campo da moral e da política, que, apesar das aparências, levou Sócrates e os seus discípulos a reagir contra o espírito geral da filosofia anterior;
de resto, mesmo no plano puramente filosófico, bastariam as aporias de Zenão para que se tivesse de enveredar pelo caminho da explicação idealista.
No entanto, os filósofos pré-socráticos conseguiram dar direito de cidade,
estabelecendo-a com firmeza, a uma atividade não pragmática, pelo menos
nos pontos de partida; por outro lado, puseram claramente que nenhuma
concepção filosófica se pode aceitar se não é bastante ampla para compreender todo o fenômeno, bastante exata para que não haja a mínima incoerência lógica, bastante simples para que apareça como a expressão de uma
realidade irredutível.
Toda a tarefa de Sócrates, de Platão, de Aristóteles mesmo, consistiu em
refazer o trabalho filosófico anterior, mas no campo do espírito; a divindade
misteriosa de Sócrates, o Supremo Bem de Platão, o Deus motor e imóvel de
Aristóteles são, no plano da idéia, o que eram a água de Tales ou o fogo de
Heráclito; apesar de todas as falhas, que vêm, porventura, menos do próprio
pensamento dos autores do que da perda de certos textos e da incompreensão
ou fantasia ou concepções próprias dos comentadores, o edifício da filosofia
grega a que poderíamos chamar clássica ficou solidamente assente na idéia de
que a inteligência humana é centelha da inteligência divina; o universo é inteligível e está dentro de nós a chave do perfeito entendimento; não é impossível
que cheguemos, pela razão, à ciência sem obscuridade, tal como Deus a teria,
e, pela ciência à virtude, e, pela virtude à paz interior, ao eudemonismo que
foi sempre, sob as aparências otimistas da sua cultura, a principal preocupação
359
dos gregos. Pelos meados do século IV, assegurara-se a vitória da inteligência:
pareciam abertos todos os caminhos do futuro, afastados para sempre todos
os terrores do espírito e da carne, as opressões teocráticas, a ciência destinada
a puras técnicas das civilizações do Próximo Oriente.
Mas, embora poesia e misticismo nunca tivessem estado ausentes de
Sócrates, de Platão e de Aristóteles, sobretudo dos dois primeiros, e a inteligência de que falavam não fosse apenas uma máquina de raciocinar, mas
uma perpétua criação, embora também se pudessem tirar das suas metafísicas
todas as regras de moral prática, todas as fórmulas de relação de homem a homem, é certo que o lado intelectual se acentuara com toda a preferência. Ora
pareceu, a partir da época de Alexandre, que faltava, nas grandes construções
anteriores, a fé que ampara nas crises do indivíduo e da história, o amor que
impede o tornar-se cada um torre orgulhosamente solitária de inteligência e
de saber, a simplicidade que permitiria, mesmo aos mais rudes, uma norma
de vida. Estoicismo e epicurismo foram, de certo modo, uma tentativa de inclusão, mas nem a razão construtiva nem a simpatia humana foram bastante
poderosas para atingir o seu objetivo.
Plotino chegou mais longe e com ele os neoplatônicos: mas, todo o
ceticismo à sua volta, toda a estéril discussão das escolas em que só o nome era
grande, indicavam que a revolução tinha de ser mais profunda, e tão profunda que pareceria se porem de parte o gosto e a necessidade de compreender,
porque tudo pudesse surgir como um ímpeto de amor. É um tempo de crise,
de incerteza, de desvario, de escritos efêmeros, de visões fragmentárias, e só
aparece terra firme quando os padres da Igreja, passado já o período em que o
cristianismo fora puro amor, começam elaborando uma teologia; uma divindade que até aí somente se sentira precisa agora de ser demonstrada; é a busca
ansiosa das provas da existência de Deus, das possibilidades de harmonizar a
ciência e a fé; todas as batalhas de ortodoxos e de hereges, em concílios, em
sermões, em tratados, ou em intrigas de palácio ou em lutas campais, nada
mais são do que o esforço doloroso de um acertamento que se considerava
essencial: não podia ser abandonado o que o espírito humano ganhara com os
gregos; Deus não é só amor mas também inteligência.
Toda a alta Idade Média é, por aí, um dos momentos mais dramáticos da história humana; por fim venceu-se, embora a vitória, alcançada talvez num prazo mais curto do que seria necessário, tivesse sacrificado Platão a
Aristóteles e feito secar muitas das sementes de vida nova que o cristianismo
tinha trazido consigo; mas não importa: com a Suma, Deus é demonstrável;
só em palavras é agora a filosofia uma simples ancila da teologia: na realidade,
Filosofia Nova
Agostinho da Silva
360
vão estreitamente ligadas. A muralha de defesa era perfeita: juntavam-se para
proteger os homens as Catedrais de que fora a primeira um outeiro dos arredores de Jerusalém e as Universidades, que tinham como origem remota um
jardim dos subúrbios de Atenas.
Se, porém, havia a razão e a fé que se abrigam no íntimo do homem,
faltava o mundo que o circunda; e o mundo chegou com os descobrimentos
portugueses e espanhóis, um mundo como nunca o tinham sonhado os filósofos antigos e os teólogos medievais: eram só fatos o que traziam os navegadores, e os fatos abriam brechas irreparáveis no edifício escolástico. É a segunda grande crise do pensamento ocidental: novamente aparecem os céticos e
os investigadores de minúcias e os que simplesmente descrevem, ou então os
místicos em que a religiosidade é apenas uma forma de fugirem aos problemas que a vida levanta à sua volta: os medievalistas defendem as suas posições
com o ardor com que se tinham batido outrora os pagãos do tempo de Celso;
mas estes lutavam pela sobrevivência da razão, ao passo que os escolásticos
batalham pela sobrevivência da fé; a razão não está em perigo sério: um pouco
mais tarde fará bom pacto com a realidade por intermédio de Bacon e Descartes e assegurará inteiramente a sua posição com Leibniz e Kant: para a fé abrese uma época de apagamento; apenas na Espanha a mística floresce, ausente,
porém, da razão e do mundo físico, divorciada da crítica. Só um peninsular
também, mas educado em pleno centro de reflexão intelectual, pôde unir todos os elementos que pareciam discordes por sua própria natureza: a filosofia
de Spinoza vai para além do seu tempo e mesmo para nós, Spinoza é ainda um
filósofo do futuro; para todos os outros, a tarefa foi plenamente a da época:
organizaram a ciência e, pela ciência, organizaram a sociedade, como na Idade
Média a tinham organizado pela fé religiosa.
Simplesmente, assim como o misticismo que irrompe nos últimos tempos do mundo antigo tem as suas raízes na Grécia clássica, assim como o interesse pelo mundo natural principia antes de ter largado para o mar o primeiro
barco português, também a Europa dos séculos XVII e XVIII tem em si os germes do que depois se afirmará como força de combate: as concepções religiosas,
qualquer que seja a sua confissão, recusam-se a morrer e afirmam a existência
de um mundo mais vasto que o da ciência experimental; a arte reclama, por
exemplo com Brueghel, com Bosch, e até Rembrandt, domínios que a razão
parece repelir; e, com maior ímpeto de batalha, as modificações econômicas
trazidas pelos descobrimentos lançam ao assalto do poder uma nova classe e
abalam toda a estrutura do absolutismo real; vai principiar uma revolução que
ainda não terminou e que irá muito mais longe do que geralmente se supõe.
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É a terceira época de crise e é a nossa: a primeira marcou para os filósofos a obrigação de pensarem a fé; a segunda a de pensarem a ciência; a terceira
vai obrigá-los, segundo parece, a um esforço mais vasto. Os trabalhos filosóficos que hoje se publicam revelam quase todos o medo que toma os pensadores
de encararem de frente o que há a fazer: foge-se então, ou para questões sem
importância, ou para sistemas que são cômodos porque permitem fingir que
se pensa; uns são existencialistas, outros inclinam-se à fenomenologia; há os
empiristas e há os lógicos; há os neo-escolásticos e há os que se entusiasmam
pelo princípio de incerteza, introduzindo por aí na ciência um misticismo de,
pelo menos, terceira ordem; há os espiritualistas, que aboliram para a grande
massa o direito de comer, e os materialistas, que aboliram para todos o direito
de pensar. Tribos inteiras, que se digladiam com furor, ou se prostram céticas,
ou se refugiam numa fé que não têm.
E, no entanto, o espírito humano tem de vencer, como venceu com
Santo Agostinho e S. Tomás, como venceu com o Novum Organum ou o Discurso do Método; tem de incluir, numa síntese mais vasta que todas as sínteses
tentadas até hoje, a inteligência que venceu todas as provas, desde que a experimentou o velho Tales, mas uma inteligência imaginativa, criadora, bem longe da caricatura de Taine: o mundo religioso, que foi o de S. Francisco, o de S.
João da Cruz, o de George Fox, o de Wesley, mas despido inteiramente de todo
o limite confessional; o mundo de instintos ou de tendências fundamentais
que a psicologia moderna trouxe a lume; o amor do corpo, como nem mesmo
os gregos o tiveram, um amor tão grande que finalmente se respeite o corpo e
se chegue à pureza dos santos sem as suas mutilações; uma ciência renovada
por um conceito mais amplo de causalidade; uma sociedade economicamente
livre, e livre também para as aventuras do espírito; uma arte a que estejam
abertas todas as portas, e tão intimamente ligada à vida que só haja para o
artista uma regra, a de ser um homem pleno; finalmente, uma metafísica que,
sendo nos processos uma ciência, seja no espírito uma teologia, e, pelo que
respeita às relações humanas, uma forma de vida.
Creio, por mim, que o fará; mas que o vai fazer na própria vida: não
teremos desta vez páginas de livros, mas tipos humanos: o que vai dar uma
oportunidade única a povos para os quais foi a vida sempre o mais importante: China, Índia, Península [ibérica], América do Sul.
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O Problema das Penínsulas
Mediterrâneas
SILVA, Agostinho da. O Problema das Penínsulas
Mediterrâneas. Kriterion, revista da Faculdade de Filosofia da
Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.os 29 e 30,
julho a dezembro de 1954, pp. 235-248.
I
O livro de Carlo Levi, Cristo si è fermato a Eboli, ficará certamente como um dos mais notáveis da moderna literatura italiana, se não tomarmos
a expressão no seu sentido mais estrito. Efetivamente, analisada a obra sob o
ponto de vista puramente estético, não lhe daremos nem grande pureza nem
grande segurança. A forma, voluntariamente posta como um misto de ensaio,
de memórias, de invenção poética e de dissertação social, prejudica um pouco a
harmonia do conjunto; por outro lado, facilmente, mas não freqüentemente, se
expõe Carlo Levi aos perigos de um lirismo demasiado convencional e visto.
E, se quiséssemos alongar a lista dos defeitos, ainda falaríamos da excessiva contribuição do pintor, que também o é Levi, à sua obra de escritor; tal
como há pinturas que o não são na realidade, mas sim desenho colorido ou
escultura, assim há prosa que é verdadeiramente arte plástica: de vez em quando, na atenção aos traços fisionômicos das personagens ou às grandes massas
do fundo paisagístico, o pintor trai o escritor.
É certo que o defeito se converte em muitos pontos numa real qualidade: basta recordarmo-nos das caracterizações de Gagliano e de Matera e do
carnaval de aldeia como das melhores páginas do livro. Ou, em mais sutil qualidade, do ponto brilhante que a mosca voando deixa, sob a grande claridade
do “paese”, entre a infatigável e inesgotável turma de moscas. Aqui, porém, não
está o maior mal que pode vir a um pintor e escritor: o mais grave é que as
pinturas serão quase sempre, por seu turno, de caráter literário.
Seja como for, o livro de Carlo Levi, tomado no conjunto, representa,
além do que veremos mais adiante, um súbito caminho de saída para a literatura
chamada neo-realista que tomou, nos países de pauperismo, e perdendo em arte,
todas as preocupações de reforma social, ou de piedade (raras vezes) ou de esta-
363
tística, ou de panfleto (quando existe censura), que levam a confusões de gênero
ainda mais graves que as de pintura e literatura. O desespero da condição humana, que é porventura o ponto central de toda a arte, não deve ser compreendido
como o desespero ante as condições físicas ou jurídicas, que são remediáveis, e
advêm não de estruturas do ser, mas dos acidentes da história, o que, no entanto,
não quer dizer que se não inclua a história naquilo a que poderíamos chamar as
fatalidades do ser. Neste último caso, como a história é essencialmente tempo e
espaço, só o ato místico poderia, abolindo-os, dar solução a todo o problema, e
então, por inclusa, como que extinguiria a arte.
Retornando, porém: o neo-realismo chegou a um altura de seu caminho em que a solução não é de caráter literário, mas político; feitas as
reformas necessárias, qualquer que lhes seja circunstância e o nome, o motivo central do romance neo-realista terá desaparecido; e com ele uma arte
que tem sido quase sempre extremamente ruim. Ora, a primeira idéia que
Levi nos deixa quanto ao assunto é que a forma de exposição tem sido mal
escolhida: o que se justificaria como exposição de motivos, ou como estudo
de sociologia, ou como trabalho de memorialista, tem sido, pela restrição de
liberdades, nalguns pontos, noutros por moda, feito em jeito de história, de
romance, que é tradicionalmente ação, movida no essencial por molas internas ou análise de sentimentos.
Nem uma nem outra se encontram em geral no romance neo-realista.
Carlo Levi deliberadamente se mete por outro rumo: o seu livro é, na estrutura basilar, um relatório da estada de um desterrado político numa aldeia do
“mezzogiorno” italiano. As personagens, que seriam irreais num romance – e
é o que acontece quase sempre no livro neo-realista – são perfeitamente justas,
vivas e firmes nos lineamentos da memória. Não vêm até nós representar o
papel que o autor lhes distribui: elas se impõem como vida a quem as vive.
De certo modo, a literatura de Levi corresponde exatamente ao jeito
realista do grande filme italiano: quando em Roma cidade aberta ou nos Ladrões de bicicletas, ou no Arroz amargo joga, por aí assegurando a sua vitória
sobre o cinema americano, com a gente real e não com os profissionais do
estúdio. E até para épocas pretéritas: como quando, com o afastamento e certo
cinismo que convêm a um bom realista, nos traz, com esforço maior, a vida de
uma época e juntamente a idéia que essa época teve de sua vida: o que é o caso
de filmes como Le due orfanelle ou La portatrice di pane.
É seguro, porém, que não veremos nesta primeira invenção o maior
mérito de Levi; ele foi muito mais longe do que isso. Como dissemos, a impressão com que se fecha um romance neo-realista é a de que bastará uma
O Problema das Penínsulas Mediterrâneas
Agostinho da Silva
364
reforma social para que tudo se resolva: a coletivização de fábricas, a supressão da agricultura industrializada em mãos de latifundiários ou o tratamento
técnico das zonas áridas tornariam sem sentido os problemas postos pelos
autores. De um modo mais geral e naturalmente esquemático, poderíamos dizer o seguinte: um socialismo quanto possível liberal, ou um liberalismo sem
capitalismo, marcaria a inauguração de um paraíso na terra.
Em primeiro lugar, haveria que discutir a vasta questão de saber até
que ponto são compatíveis, nos planos da pura existência neo-realista, a planificação exigida pelo socialismo e a liberdade do indivíduo; em segundo lugar,
se o socialismo, além de resolver problemas econômicos, faz qualquer outra
coisa que não seja deixar a mente livre para tentar a resolução dos outros.
Quanto a este último assunto, conviria, cremos nós, fixar o espírito em
dois fenômenos para os quais se não pôs ainda uma explicação plena: um é o
da inquietação íntima em que vivem países que resolveram quase por completo as questões de organização econômica; nas terras escandinavas, por toda a
parte apontadas como modelos, bebe-se mais do que em qualquer outro lugar
do mundo, e mais se beberia se não houvesse as medidas restritivas do governo, o que é uma estranha forma de cultura e liberdade; joga-se desenfreadamente; não há interesse real por coisa alguma; põem-se os preços nos objetos
que se enviam de presente para que fique bem marcado o grau de estima; e
a taxa de suicídio atinge um nível a que se está longe de chegar mesmo nos
países em que existem as várias formas de escravidão e degradação humanas
muito justamente denunciadas pelos neo-realistas. O outro ponto que parece
importante é o seguinte: a literatura neo-realista atingiu o seu máximo de significação em regiões como a Itália, a Península Ibérica e a América do Sul.
Haveria que tratar aqui do problema tal como ele se põe para os Estados Unidos: efetivamente, não se nos afigura que se labore no mesmo caso.
A literatura neo-realista dos Estados Unidos deve marcar acima de tudo o desespero do homem aprisionado nas suas próprias técnicas, devido ao sistema
econômico que lhes subjaz e que é também afinal uma técnica de produção.
O verdadeiro conflito em que se debate a América do Norte é o do choque
entre uma energia criadora, das mais poderosas que têm surgido na terra, e as
redes que, pelas origens protestantes, a comunidade americana lançou sobre si
mesma; tão forte o vezo, que o próprio catolicismo nos Estados Unidos se está
tornando protestante: porque a idéia de êxito e poder o está levando a pôr de
lado a de caridade e fraternidade; ou, em resumo, a de justiça, como a entendia
o próprio Cristo.
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365
II
Creio ter sido a Montessori quem pela primeira vez chamou a atenção sobre o fato de as crianças viverem num mundo que foi em todas as suas
formas construído para adultos, o que lhes dá a elas uma contínua impressão
de esmagamento ou pelo menos de prisão. Os fechos das nossas portas estão
colocados à altura que serve para nós, e à nossa estatura estão acomodadas
as cadeiras em que nos sentamos. E o grande mérito da educadora italiana,
embora em muitos pontos tenha substituído um sistema artificial por outro
sistema artificial, está exatamente em ter reclamado e conseguido que fossem
colocadas as crianças num ambiente à sua medida verdadeira.
É evidente que foi este o caminho certo: mas poderia, no momento
em que a questão se teve de decidir, ter surgido outra idéia: a de que a raiz do
problema estava exatamente em aperfeiçoar o que já havia para os adultos;
talvez tornar mais simples e mais seguros os fechos das portas, sempre na mesma altura, talvez introduzir com mais amplitude nos ambientes domésticos
as invenções da técnica moderna, sempre, no entanto, para adultos. Mas hoje,
quando a linha de vitória se inclinou para as idéias da pedagogia moderna, é
fora de dúvida que uma tal proposta nos pareceria absurda e fora do próprio
campo da questão.
Ora o problema das populações rurais da Itália e, por extensão, das penínsulas mediterrâneas, se encontra, segundo as idéias de Levi, e é este o fulcro
do livro, numa posição semelhante àquela em que se encontrava o problema
da criança. Sem cair no exagero de supor para o camponês mentalidade diferente da do citadino, a exemplo do que, em certas escolas sociológicas, se fez
para o primitivo, parece a Levi que os cuidados da agricultura ou do pastoreio
levam o homem ao interesse pelo local, pelo que está dentro do seu horizonte,
pelo pouco, ou muito, que poderá percorrer na sua jornada de marcha.
A linha de céu e terra é para o camponês um limite, fronteira de seu
mundo e sua vida; para o homem que fez as cidades, à volta de portos de mar
ou de pousos nas estradas de comércio, o horizonte constitui, pelo contrário,
a perpétua atração do descoberto; é o que está para lá que lhe interessa. Para
quem vive fixado à terra, o vasto mundo se povoa de fantasmas e perigos;
quem está do outro lado da divisa é inimigo: pelo menos se olha com desconfiança; e, se acaso se revelou bom, como no livro acontece, todo o desejo é de
que jamais torne a pisar a linha fatal.
Ora o que sucede é que as alavancas da política, do progresso técnico e
das reformas se encontram precisamente para além do horizonte; de um modo
O Problema das Penínsulas Mediterrâneas
Agostinho da Silva
366
geral, tudo quanto vem das capitais é para o camponês, ruim, mesmo que esteja
incluso no que lhe trazem um real melhoramento das condições de vida: a luta
que nos países socialistas se dá continuamente entre o que poderíamos, simplificando, pôr como o operário de um lado e o camponês do outro, não tem
nenhum significado senão esse.
A primeira reação é de batalha; e todos sabemos como o conflito tem
deixado seu profundo sulco de amargura e de ressentimento; e como, por conseqüência, certos regimes adotaram formas de violência que de nenhum modo, pelo menos teoricamente, o socialismo implica. Entre o mundo local do
camponês e o largo mundo estatal o clima é de luta; a reforma gizada pelos
políticos e aplicada a partir de um poder central choca-se com os costumes, os
gostos e os jeitos da mentalidade das aldeias; e a verdadeira voz do camponês,
o seu anseio mais profundo perde-se por completo, continua esmagado pelos
séculos, surgindo como única solução a industrialização da agricultura, o que
é econômica, biológica e humanamente errado, e o extermínio.
Este é, porém, no que se refere ao problema rural de países como a Itália
ou Portugal ou Espanha, o vício fundamental de todos os partidos, de todas as
reformas apregoadas ou propostas; quaisquer que sejam a forma e a situação do
Estado, ele representará sempre para o camponês uma potência de ocupação,
potência que, quaisquer que sejam os benefícios que possa trazer, se apresentará
sempre como inimiga, tanto mais que as obras se acompanham do inevitável
cortejo de funcionários, de exatores fiscais, de autoridades e polícia.
Do cortejo do domínio e de uma espécie de imperialismo nacional,
mais antipático do que o outro porque se exerce, adentro das fronteiras, por
homens que falam a mesma língua e se pretendem da mesma pátria. Quando
o não são, de fato: porque para o Camponês a pátria não é a Itália, nem Portugal, nem a Espanha: a pátria é a sua aldeia e, às vezes com dificuldade, a aldeia
vizinha. A poderosa pátria das árvores que viu crescer, de seus amigos, de suas
festas, terras e cachorros; pátria das horas iguais que vigorosamente vão plasmando sua personalidade e lhe dão a força e a paciência de suportar a si próprio e aos outros; pátria das cores do solo e não a pátria das cores do mapa.
Há uma reflexão que escapou a Carlo Levi e que seria interessante
fazer-se: a de que os três povos ou grupos de povos de que tratamos foram
grandes exatamente nas épocas em que se conseguiu encontrar um equilíbrio
perfeito entre o particularismo rural e a autoridade central: é a Itália dos municípios e a Península dos forais; é mais o punhado de pequenas nações do que
a nação inumana que destrói a particularidade, a iniciativa e a compartimentação do mundo à nossa medida; é a força do soldado romano que vem servir
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seu tempo com o exército e regressa depois à terra que possui; é as assembléias
de Toledo e é as cortes portuguesas, de vigorosas e fiéis atitudes entre os fidalgos e o Rei.
Mas o cesarismo romano, de caráter oriental, e o cesarismo peninsular, que vem com o renascimento do direito romano e as lições de Maquiavel, desfazem a delicada e ao mesmo tempo seguríssima trama de vida que
se conseguira criar: e, para a Itália, desde os primeiros generais com exército
permanente, para a Península, desde a invasão de uma Roma imperial renascida, o que houve foi a ocupação: ocupação de tropas estrangeiras, ocupação de
chefes estrangeiros, ocupação de idéias estrangeiras.
No Cristo si è fermato a Eboli, e o título indica bem quanto populações cristãs estão sofrendo um domínio pagão, levanta-se o problema, mas
não se propõe remédio algum; mas há, e fortemente, a sugestão do que se
teria de fazer.
Em primeiro lugar, descentralizar. Enquanto países de tipo mediterrâneo, e aqui incluo os da América do Sul, estiverem em regime de centralização,
haverá na Terra, qualquer que seja o liberalismo das constituições, a capacidade de crítica da imprensa e a segurança do indivíduo, um lugar em que existe
a opressão do espírito real, que é a mais terrível de todas, porquanto significa a
morte, não só do que informa o nosso tipo atual de civilização, mas a destruição de tudo o que se poderia criar de não visto no mundo.
Talvez com um regime centralista se assegurasse a unidade de Roma,
mas não se teriam lançado as bases de helenização do mundo mediterrâneo;
talvez com um regime centralista se tivesse tornado a Península uma forte
potência, mas não teriam surgido nem catalães nem portugueses. Descentralização e autonomia devem estar na primeira linha de combate para homens do
tipo dos de Levi; no fundo, e como o está demonstrando a notável experiência
da Índia atual, o trabalho de verdadeira reforma tem de ser feito, não para os
camponeses, mas pelos camponeses, com os camponeses.
E exatamente como não é um Estado Italiano quem faz o primeiro
surto de Roma ou, séculos depois, o breve intervalo das Repúblicas, bem
significativas, apesar de se basearem no comércio; como não é o Estado Catalão, mas os marinheiros catalães, que tomam a iniciativa de descobrir; como, sobretudo, não é o Estado Português, mas a Ordem de Cristo, quem faz
os descobrimentos fundamentais; também não são organizações de caráter
estatal que poderão lançar as bases de uma vida nova.
Aqui, a associação particular, largamente subsidiada, terá um papel essencial; aqui, são voluntários, como os da Cruz Vermelha, como os dos Grupos
O Problema das Penínsulas Mediterrâneas
Agostinho da Silva
368
de Trabalho da Unesco, ou os do Ponto 4 e do movimento a favor das comunidades aldeãs na Índia, que vão desempenhar, se a história os ajudar, a mais
importante das tarefas.
Terá que haver, naturalmente, uma entidade central reduzida a um mínimo, embora exemplos como os da Ordem de S. Bento possam tornar legítimo o pensamento contrário; mas o trabalho realmente importante esse terá
que ser feito nos próprios núcleos de população rural e por quem lá resida,
como se fez para certas aldeias do Nilo. E por quem leve os habitantes, com os
recursos de fora, a realizar, eles próprios, o trabalho de pequena engenharia
rural, de sanitarismo e de educação que acima de tudo lhes dará o que mais
lhes falta: esperança e fé; vida.
III
Tendo levantado com agudeza o problema das relações entre o Estado
e a população rural da Itália, não fala Levi no seu livro de outro ponto mais
geral e porventura ainda mais importante que o primeiro. Não entrava o tratá-lo na economia do seu trabalho: e o que se vai seguir representa não uma
crítica a defeitos de Levi, mas como que um passo para além da base que ele
próprio alicerçou.
Efetivamente, desde que houve em qualquer das Penínsulas mediterrânicas, incluindo a mais longínqua Grécia, um regime adequado ao tipo psicológico das populações e às suas condições de vida, foi logo positiva a sua
contribuição ao patrimônio mais profundo da humanidade: a cidade-estado
da Grécia dá a geometria e a filosofia, lança, para além das inevitáveis criações
e modificações de outros espaços e outros tempos, cânones eternos para a arte
e marca, pelo poderio de Apolo e Dionísio, os dois termos de uma antinomia
que ainda se não resolveu por completo: oferece por um lado soluções, por
outro lado, o que é ainda mais fecundo, formula problemas.
Na Itália, a par da construção de um direito e de uma administração
que assentam primacialmente no esforço do camponês considerado como tal,
vem pelo trabalho de igrejas cristãs não unidas ainda numa organização centralizada a vitória da propaganda de uma religião inteiramente estranha aos
hábitos mentais dos corpos dirigentes.
Na Península Ibérica, todo o surto de liberdade, de força criadora, de
vigor primevo que levanta catedrais, escreve poemas, e, recuando mais, mantém conviventes as três religiões, as três mentalidades e talvez as três raças de
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judeus, árabes e cristãos, se baseia na organização social que, tendo por base o
município romano, a descentralização tribal dos germanos e a cabila moura,
só é dominada por Fernando e Isabel e sofre o seu golpe de misericórdia com
a derrota dos “comuneros”.
E em Portugal, que mais particularmente nos interessa, são os concelhos, os forais e as câmaras que estão na base de arranque de toda a originalidade do ocidente da Península, do seu lirismo, do seu franciscanismo, da sua
epopéia feita igualmente da Fé e do Império. A decadência e a morte virão
com a política centralizadora e unificadora que culmina em D. João III.
Se repararmos bem, todos estes movimentos, o dos filósofos gregos, o
dos juristas romanos, o do cristianismo, o do califado de Córdoba, o dos descobrimentos portugueses, têm, apesar das diferenças que se lhes podem facilmente marcar e de todos os elementos, acidentais ou não, que se lhes juntaram, uma
característica comum: a tendência para o universal e para o sincretismo.
Por uma parte, criam valores que o serão para todos os homens, mesmo os de mais diversas raças, mesmo os de mais estranhas cores; por outra
parte, com maior ou menor extensão, se forma um grupo que não é puramente nacional, que só é exatamente grupo de valor histórico na medida em
que o constituem elementos que poderiam parecer heterogêneos: a invenção
intelectual dos gregos junta, nos atenienses, um jônico asiático e um dórico
que ainda guarda, na clareza do entendimento e na violência das atitudes, a
origem indo-européia; latim, fala-o menos a gente do Lácio do que celtas da
Gália e o futuro romeno e os talvez bérberes da Península; com o cordobês se
reúnem celtas, visigodos, vândalos, restos de romanos, semitas da Palestina
e semitas da Arábia; e nos descobrimentos portugueses, como justamente o
pintou Nuno Gonçalves, entra o judeu como entra o mouro.
Quer isto dizer que, paradoxalmente, à medida que se reduz o grupo
racial das penínsulas mediterrâneas, à medida que o Estado deixa de ser um
longínquo e, por aí, mais aterrador fantasma, para se tornar uma instituição
municipal e local, as forças íntimas do homem se desenvolvem e se soltam e a
marca da sua própria liberdade representa uma conquista de liberdade para o
mundo, liberdade nos domínios das relações em escala mundial.
Tudo se passa como se, liberto de prisões históricas que lhe são insuportáveis, e refluindo à sua mais íntima natureza, logo, por um movimento
de reação e se tendo animado ao contato das mais estruturais forças do ser,
ganhasse um significado universal de plataforma em que se pode reunir e congregar o que há de mais diverso na infinita diversidade do homem.
Só que, e sempre condicionados pelos estádios econômicos do munO Problema das Penínsulas Mediterrâneas
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do, estes períodos de plena vivência têm sido bastante limitados; o poderoso
clarão dura um momento e morre; e na treva que se segue o que há de mais
terrível não é o abandono em que ficam os outros povos, mas o desespero a
que parece levá-los a presença quase exclusiva das forças materiais e brutais de
conquista; o pior de tudo é o que vai lançando a sua escuridão sobre o brilho
do mundo: é, na alma dos que são capazes de abraçar o universo e se vêem
esmagados pela mesquinharia das burocracias estatais, o tudo amargar, envilecer e desesperar esse exílio do céu.
Dominados por imperialismos de momento, definham-se os homens
feitos para os eternos impérios da fraternidade humana e do catolicismo não
somente institucional, mas vital; são eles verdadeiramente aqueles para quem,
como no soneto de Nerval, brilha um negro e frio sol de melancolia. E é de fato
essa a dor mais funda, a de não ser, a que escapou a Carlo Levi.
Os povos, no seu conjunto, se comportam, afastadas as inevitáveis diferenças, como se comportam indivíduos: há dentre nós os que foram marcados
para a existência regrada e meticulosa, para governar suas casas, assinar seus
pontos de repartição, criar seus filhos, manter a sociedade no horário regular
dos pensamentos e dos trens, como há, dentre as nações, as que se chamam
Suécia e Noruega e Nova Zelândia e Dinamarca.
Há outros, porém, cuja missão é a de inventar e manter aquelas vozes
menores de estrelas celestes e de poemas e de ascensões fantasiosas que tornam
a vida suportável para os outros, mesmo que o não sintam ou não saibam:
esses, os que terão a derradeira palavra, depois que o conforto da vida, amplamente conseguido para todos, significar muito menos do que atualmente
significa, esses cuja missão é tornar o mundo uno e coeso, da unidade e coesão
que vem de ser o homem inteligente, criador e santo, esses se chamam Itália e
Grécia, e Espanha e Portugal; dentro em pouco, Brasil; e para este último ponto
nos quisemos sobretudo voltar.
É realmente duvidoso que, dadas as circunstâncias gerais da civilização européia, as penínsulas mediterrâneas possam renascer, digamos, nos seus
próprios locais; aí, ao que parece, o mais que podemos desejar é a liberdade de
que fala Carlo Levi, a autonomia, a descentralização, o valor da aldeia como
base do mundo.
Para realizarem a sua vocação mais alta, outra condição se lhes torna
necessária: é preciso que haja, para uma Itália e para um Portugal, uma espécie de metempsicose à maneira indiana: que, purificadas dos pecados históricos que tiverem cometido, e muitos foram, essas nações voltem à vida num
corpo que signifique existência ainda superior e mais fecunda.
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A transmigração quereria aqui dizer emigração: o novo Lácio e o novo
Portucale de que poderão partir é o Brasil; só ele lhes fornecerá, pelo que já
representa, o ponto de apoio espiritual e material para que, fundindo-se entre
si e entrando no grande caldeamento que se processa entre nós, possam um
dia ser elemento, e não dos menos relevantes, daquilo que o Brasil tem a dar
ao mundo: o sistema de vida que reúna a verdadeira liberdade, a verdadeira
ciência e a verdadeira fé num real catolicismo aberto a todos os homens de
todas as linguagens, de todas as raças e de todos os credos.
O Problema das Penínsulas Mediterrâneas
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Duas Idades de Ouro
SILVA, Agostinho da. Duas Idades de Ouro.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 ago.1955.
Tratando da questão nos termos em que ela se poderia pôr se escrevêssemos de história natural, podemos afirmar que são errôneas à luz da ciência
moderna todas as suposições de que a humanidade tivesse dado, desde o início da
sua existência no mundo, provas de todos os defeitos que se lhe podem apontar.
São, por exemplo, destituídas de todo o fundamento as afirmações de que a guerra é instintiva no homem ou que o pode definir, entre outros elementos, o afã de
possuir. Os argumentos que se tiram para isso do estudo de populações chamadas
primitivas são inteiramente sem valor, dado que os tais primitivos cujo exemplo
se aponta são de fato povos, ou num estádio já adiantado de cultura que apenas se
chama primitiva em comparação com a nossa, ou já com um contato de civilizado bastante longo para lhe terem adquirido as características que se observam.
De cada vez que nos é dado entrar em relações com uma população
realmente primitiva, o que se torna naturalmente cada vez mais difícil, e a podemos olhar sem os nossos preconceitos de civilizados, o que provavelmente é
mais difícil ainda, verifica-se que estamos em presença de homens que, se têm
as nossas qualidades humanas, aquelas que se revelam de cada vez que não está
em jogo, contra uma concorrência, qualquer das circunstâncias que reputamos
vitais, mostram uma ausência absoluta de todos os defeitos que acompanharam
o desenvolvimento da civilização. O verdadeiro selvagem, e não o falso selvagem em que Montaigne ou Rousseau pensavam, é realmente bom: desconhece a
guerra, considera como iguais no grupo o homem e a mulher, não tem a noção
de propriedade, não maltrata a criança no sentido de lhe violentar a natureza
para que ela se amolde ao padrão ideado pelo educador como sendo o mais útil
à sociedade. E de resto não tem sociedade.
Torna-se efetivamente necessário que se não confundam grupo humano e sociedade. A sociedade é realmente um grupo estabelecido segundo
uma certa estrutura legal e dirigido a um fim que se pode definir com toda
a clareza: nesse sentido podemos falar de uma sociedade humana, ou no seu
conjunto ou particularizada, como podemos falar de uma sociedade de formigas. Mas o grupo humano verdadeiro só existe quando esses laços sociais se
desatam e desaparecem: quando nada mais existe ligando os homens do que o
373
gosto de estar juntos. Somos sociais quando trabalhamos na nossa repartição
ou servimos no nosso regimento, fazemos parte de um grupo humano quando tomamos café com os nossos amigos ou olhamos juntos uma paisagem. Há
sociedade de cada vez que a eficiência de um se multiplica pela eficiência de
todos; e há grupo humano de cada vez que a contemplação de um se multiplica pela contemplação de todos.
Acontece, porém, que se se estudar um desses agrupamentos de povos
primitivos pelo seu aspecto econômico, se tem de chegar à conclusão de que o
seu modo de vida exige por um lado a manutenção do número de indivíduos
num nível baixo e por outro lado que desfrute de uma extensão territorial bastante vasta: isto é, têm de ser poucos e de viver bem longe de outros grupos,
dependendo naturalmente as áreas da sua produtividade. Todos esses povos
vivem de fato de colher alimentos, não de os produzir; e só são verdadeiramente primitivos aqueles cuja alimentação consiste em frutos e raízes, o que,
diga-se de passagem, mostra o carnivorismo como um estádio de civilização,
não como uma necessidade vital.
Ora, é impossível, em vida natural, limitar um aumento de população,
embora os nossos costumes sexuais sejam também, ao contrário do que parece,
um estádio de civilização. Um aumento de população traz como conseqüência
imediata uma diminuição das áreas disponíveis e, por conseguinte, a carência. Perante a carência, duas atitudes são evidentemente possíveis: a de a ela
se resignar, morrendo, e é, por exemplo, o que acontece com animais de fácil
reprodução abandonados a si próprios num espaço confinado; ou de se bater
procurando meios de fabricação e de armazenamento. Foi esta última solução
a que adotou o homem primitivo. Daí o sedentarismo; a propriedade coletiva
ou particular, em que a primeira forma apenas atenua os males fatais que vêm
de possuir e apenas permite formas mais amplas de técnica; todas as características sociais de um legalismo estatal; dum poder absoluto, ou quase, do pai; e de
cultos religiosos, de que é tipo o romano, em que se afirma a disciplina social.
Quem principia uma batalha deve levá-la até o fim. Nós, na realidade, herdamos uma batalha, mas temos na mesma que a levar até o fim. Isto
é, até podermos considerar que o grupo humano se libertou daquilo a que
poderíamos chamar as suas limitações de área. Temos que levar as técnicas
às suas últimas conseqüências, porquanto só as técnicas poderão assegurar a
nossa sobrevivência criando os recursos que se não encontram na natureza.
Quaisquer que sejam os riscos que possamos enfrentar, e que são os mesmos
de uma guerra, temos de manter a disciplina social, e de aproveitar as ciências
e as máquinas ao máximo que elas possam produzir. E é esta exatamente uma
Duas Idades de Ouro
Agostinho da Silva
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das razões por que o poder sobre a ciência e sobre as máquinas tem de sair das
mãos de particulares que na maior parte dos casos delas se servem apenas para
fins mais do que particulares: particularíssimos.
Não creio que o futuro nos deva inquietar grande coisa: porque, ou a
humanidade se salva, ou se destrói completamente. Os poderes concentrados
hoje nas mãos do homem só dão para isso mesmo: ou ganhar ou perder. Não
para se ficar na miserável situação intermédia que tem havido depois de tanta
epidemia e de tanta guerra. Como só à metafísica compete dizer-nos o que sucederá se perdermos a partida, isto é, se desaparecermos da face da Terra, acho
que devemos pensar na outra hipótese, a de ganharmos.
Não me parece, e aqui estou em desacordo com as escolas anarquistas,
que seja possível abolir todo o vínculo social; acho, porém, que se atenuará a
tal ponto que, praticamente, será como se não existisse. Teremos à nossa disposição todos os meios de subsistência que nos serão necessários. Não precisaremos mais de manter a mulher na posição subalterna em que até hoje a temos
mantido, e que constitui, embora o não pareça, a pior história de escravatura
que tem decorrido no mundo. E não precisaremos sobretudo, o que me parece
um dos pontos mais importantes, de enviar crianças à escola: a qual escola, de
qualquer tipo que seja, tem sido, apesar de todos os seus benefícios sociais, a
principal responsável da antítese entre a espontaneidade e o gênio da criança
e a domesticação e a mediocridade dos adultos.
Teremos levado assim a cabo uma reconquista da vida natural. Poderemos
entregar-nos, livres de disciplinas sociais e de mutilações educativas, a uma vida
criadora, que até hoje, e com toda a limitação, tem existido apenas para raros. E
é possível até que esta própria vida criadora, nas artes ou nas ciências, a vejamos
um dia como característica da nossa fase de batalha e não como essência profunda da natureza humana. Reentraremos na vida natural. O que é certo, porém, é
que para isso talvez não tivessem sido necessários tanta luta, tanta opressão, tanto
desastre. Talvez a resignação à morte tivesse sido um caminho mais curto.
Só que nesse caminho mais curto não teríamos encontrado um elemento essencial para o futuro e sobre o qual, por muito repetido e diverso,
longamente meditamos: o do sofrimento. E o sofrimento, e aqui reside porventura uma das lições essenciais do Cristianismo, nos levou a valorizar o
amor. Amor que, por ser provavelmente o fundamental da criação, pode fazer
que a dispensemos e, passando para além da vida natural com que se contentavam os nossos antepassados, acedamos àquela vida sobrenatural de plena
unidade, àquela existência sobrenatural que é realmente digna da partícula
divina que em nós brilha.
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Reflexão sobre Dinheiro
SILVA, Agostinho da. Reflexão sobre Dinheiro.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 mar. 1956.
É sempre muito difícil e meio complicado falar do Renascimento, porque não existe, na verdade, um só com características uniformes, mas vários
renascimentos de várias espécies e por diferentes lugares e em diferentes épocas. Para o que neste momento nos interessa, poremos só a questão dos renascimentos tipicamente europeus, isto é, dos Pireneus para o norte, que foram
o renascimento italiano e o renascimento alemão. E, destes dois, apenas traremos a maior luz que foram, um, o renascimento de Roma, e o outro a afirmação de que a humanidade só poderia avançar se quebrasse aquela fraternidade
que, pelo menos teoricamente, fora seu apanágio durante a Idade Média.
Quanto ao renascimento de Roma, já sabemos de que maneira ele foi
um reaparecimento e um dominar do direito romano, cesarista centralista e
anticatólico, contra um direito medieval que penosamente se fora formando e
que era o direito da unidade municipal, o direito do concelho, o direito dos forais. O tal direito que torna Portugal da Idade Média como que, politicamente,
a pré-figuração de um sistema de governo tão perfeito como aquele que hoje
admiramos na Commonwealth, um grupo de repúblicas ligado pela figura ideal de um Rei, e que tão facilmente lançamos como exclusiva criação do gênio
político dos ingleses. Já sabemos também como ele veio trazer de volta, ou reforçando-o, um platonismo que, depois de ter dominado na Igreja com Santo
Agostinho, fora quase posto de lado pelo aristotelismo de S. Tomás; e sabemos
igualmente tudo quanto se pode dizer a favor, científica e filosoficamente, deste
novo não neoplatonismo; mas também não poderemos negar que, sob o ponto
de vista da fraternidade de que falamos e do ideal de convivência, que não são
inferiores ao de ciência e de filosofia, a doutrina de S. Tomás ia muito à frente
de qualquer espécie de platonismo; e é este um dos pontos que explicam a sua
recomendação pela Igreja.
O que se deseja pôr agora em relevo é o surto de retórica que veio
sobre a Europa com o renascimento romano. Infelizmente, o que renasceu da
antiguidade não foi a eloqüência inteligente e rápida e ágil de um Demóstenes,
que levantava problemas diante de uma Assembléia capaz de compreendê-los,
expunha os argumentos que militavam a favor de tal ou tal teses e em segui-
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da se retirava para que cada um, pelo menos teoricamente, pudesse refletir e
resolver segundo ditames de razão. O que acompanhou o renascimento foi a
retórica de tipo Cícero, em que parece pressuposto que os ouvintes, por um
lado, não compreendem à primeira e é necessário, por conseguinte, repetirlhes cem vezes ao longo de um discurso o que poderia ser dito apenas uma;
por outro lado, que é muito provável que, entregues a si próprios, como que
no pleno gozo de suas faculdades, não se decidam conforme os desejos do
orador; então Cícero, cuidadosamente, hipnotiza-os; com toda a grandeza de
Cícero, quem sai de um discurso do orador romano pode não estar dormindo:
mas está decerto como o braço que ficou esquecido sob o corpo, dormente; e,
dormente, delibera segundo Cícero.
Quanto ao Renascimento de tipo alemão, devemos-lhe a ciência de tipo fáustico, isto é, a ciência feita por um homem isolado dos outros homens,
que se refugia numa cela, para que a suposta incompreensão dos outros o não
perturbe; a ciência para poder, para dominar o mundo, não ciência para adorar a Deus; e, finalmente, a ciência que, deixando sem amor, porque do amor
não partiu, põe as almas diretamente em poder do Diabo, especialista, como
se sabe, em não amar. É esta, em geral, a ciência que temos hoje, qualquer
que seja a qualidade humana dos cientistas; possuímos saber, temos eficiência
técnica, mas na realidade entregamos a alma ao demônio; e todo o problema
da humanidade de hoje está em saber se ele nos vai ficar para sempre com a alma, ou se, por intervenção daqueles desprezados homens que passaram a vida
orando, nos vai ser possível renovar o milagre que salvou ao Gil português: se a
Virgem Maria, se Nossa Senhora, se o que há de cândido e puro na nossa alma,
será capaz de roubar ao Diabo a sua presa. Mas talvez o mais grave presente
que nos deram do lado germânico seja ainda o falarmos naturalmente do que
não é natural; do que é contra a natureza humana: por exemplo, de dinheiro,
de capitais e de juros.
A este ponto queríamos chegar. Diante de dinheiro, os homens se dividem em dois grupos: um, o mais numeroso, porque a maioria da gente, sendo
realmente protestante, só nominalmente é católica, vai para o lado dos que
consideram dinheiro que vai dar maiores juros e qual o mais aconselhável
emprego de capital ou qual o trabalho que, independentemente de outras circunstâncias, é o mais rendoso; são estes os que não reparam em que Cristo
achou que dinheiro não era mesmo de Deus, mas de César; os que talvez não
saibam que já o salmista condenou o juro e que, se o judeu emprestava dinheiro na Idade Média, é porque, como noutras ocasiões, andava demasiado
esquecido dos preceitos de sua religião; os que, sobretudo, esquecem que a
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economia moderna tem seu primeiro legislador num estreito, fanático e antipático ditador chamado Calvino.
Ao outro grupo, muito menos numeroso, apeteceu tratar do dinheiro
com a tal retórica ciceroniana, falando de dinheiro como de sangue do pobre.
Sem reparar em várias coisas: em que, até agora, até termos assegurado a produção necessária a todo o consumo da humanidade, e o fazermos por meio de
desenvolvimento da técnica, coisa que devemos ao renascimento de tipo alemão, não havia outra possibilidade senão a da existência do pobre, como, passando do econômico ao hierárquico da guerra, se têm de distinguir no exército
graus que desaparecem na vida civil; e, no campo da economia, só agora se
começam a perceber as possibilidades de desmobilizar; em que o dinheiro não
é mais do que a marca, o sinal, a ficha que me entrega a sociedade em troca de
um trabalho reputado útil, em troca de ter eu colaborado num progresso do
grupo humano, recebendo, sempre teoricamente, mais ou menos conforme
o trabalho é classificado como mais ou menos importante ou como exigindo
maior ou menor preparação, isto é, maior ou menor dispêndio do capital previamente acumulado; e finalmente em que nas batalhas, já que se entrou em
regime de guerra, o que conta é o objetivo, não o gasto sangue.
Como disse, porém, estamos em vésperas de desmobilizar; em vésperas de terminar de vez com a miséria do mundo; em vésperas de se acabar
com a distinção entre o pobre e o rico; em vésperas de suprimir o trabalho
obrigatório; em vésperas finalmente, de podermos cumprir pela primeira vez
aquele conselho de olhar os lírios do campo e as avezinhas do céu sem que
a conseqüência seja a de morrer de fome. Mas o dizermos que estamos em
vésperas de tudo isto, em vésperas de reencontrarmos um paraíso natural que
poderá ser, para todos, o ponto de partida para o paraíso que mais importa,
o do sobrenatural, não significa de modo algum que ele seja fatal e que, por
outro lado, o não possamos apressar ou retardar com nosso gesto.
Podemos retardá-lo, e muito, se continuarmos a ver economia com
retórica ciceroniana, o que tanto acontece do lado dos chamados conservadores como da parte dos chamados revolucionários; se teimarmos em continuar adotando sistemas de gerência econômica que não permitem, pela
renovação contínua de material, ir a par do que o gênio humano vai criando nos domínios da invenção científica e técnica; se, absurdamente, numa
época que já o tornou impensável, por um lado, e dispensável por outro,
persistirmos em ver a produção e não o consumo, o capricho e não a necessidade, o lucro e não a despesa geral, como os fulcros de uma organização
econômica do mundo.
Reflexão sobre Dinheiro
Agostinho da Silva
378
Mas podemos apressá-lo, e também muito, se, entre todas essas coisas, e pelo que tange à nossa pequena economia particular, virmos o dinheiro
como trabalho nosso que podemos pôr à disposição dos outros, poupando o
mais possível; não fazendo nenhuma despesa que não seja estritamente indispensável, o que, além de tudo, liquidaria a produção das superfluidades
em que hoje se desbaratam tanto capital e tanta mão-de-obra; colocando esse
dinheiro poupado e, portanto, esse trabalho cedido aos outros, em instituições
de administração direta de coletividades públicas; e, finalmente, submetendo
o nosso catolicismo à pequena prova prática de não retirarmos os juros contabilizados; porque juro sim: é mesmo sangue de pobre.
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Comunidade e Política
SILVA, Agostinho da. Comunidade e Política.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 08 Set. 1957.
Há povos fáceis, os quais para serem conduzidos não precisam senão
de políticos para quem exista o entendimento técnico suficiente dos benefícios
que podem prestar uma boa administração e aquele bom senso fundamental
que distingue economia de esbanjamento e paz de guerra. Sem querer de modo algum pôr a idéia de que haja homens aos quais apenas coube promover
como que o desenvolvimento físico da humanidade, é fora de dúvida que algumas das nações, por uma circunstância ou outra, vieram a especializar-se;
e um grupo inteiro, o da chamada Europa, depois estendida, pela emigração,
à América do Norte, e, pela revolução, aos povos russos, tomou sobre si o inventar da filosofia, da ciência e da técnica; atividades que têm raízes comuns
em não serem atividades de massa, em não conduzirem a coisa alguma para
além de si próprias e, ainda, em só terem sido possíveis na medida em que uma
civilização greco-romana se impôs a partir de Maratona e, depois da Alta Idade Média, voltou com Platão e Aristóteles, marcou vitória no Renascimento e
impôs o contraditório estado de coisas em que povos pretensamente cristãos
na realidade desprezam a Judéia e a Europa do ocidente papal.
Espírito de professor, banqueiro ou engenheiro serve perfeitamente para
levar esses povos pelo caminho que é o seu e em que lhes compete organizar
tudo o que a humanidade vai necessitar de material. Eles querem ser felizes, não
mais; o seu ideal, fazendo história, é, no fundo, o de não a terem; francês, abandonado a si mesmo, teria um gosto perfeito se lhe fosse possível estabelecer um
pé-de-meia na eternidade; daríamos à alma desencarnada do germano, como
recompensa do seu trabalho no mundo, contemplar a idéia pura da eficiência;
e ao americano, resumo de todos, daríamos como ideal ter todo o tempo ao seu
dispor para não ter tempo. E o que os salva, o que os prende ainda ao resto da
humanidade é que nem todos têm efetivamente sido felizes: tem havido pela história fora o lamento dos pobres, mas esse acabará em breve; e, namorados, santos e artistas têm sido, neste seu mundo de tempo e espaço e de homem virado a
homem, o sinal da Eternidade e de Deus. Sem pobres e sem aqueles que o Amor
prendeu já há muito os teríamos deixado de reconhecer como pertencendo à espécie humana: porque talvez a Circe homérica não seja mais do que um símbolo
380
dos perigos que iam correr os que principiavam sua história destruindo cidades
cujo crime único era o de ter mais respeito pela beleza do que pela lei.
Se, porém, nos voltamos para povos como o português e o espanhol,
e refiro-me aqui indistintamente a todos os povos de línguas portuguesa ou
espanhola, já a questão se nos apresenta de uma forma inteiramente diversa.
O administrador puro não nos interessa; a nossa idéia, no fundo, é a de que,
para a mesma tarefa, poderíamos ter alugado um holandês ou um checo, e daí
a nossa tantas vezes impensada confiança no técnico estrangeiro; não nos interessa o pensador de conceitos gerais e não teríamos como título máximo de
glória para um político ter proferido, ante os mortos da guerra, o louvor dos
que tombaram por Atenas; e muito menos nos interessa ainda o liberal meio
cético que cria Impérios a partir de clubes e deles deixa, quando acabam, o que
havia dantes, só com mais telefones e um pouco mais de pedantismo.
Queremos em primeiro lugar que os nossos políticos tenham fé no valor
que representam os povos que vão governar. Não nos serve o enamoramento do
estrangeiro, embora não nos repugne a sua utilização naquilo em que nós próprios
temos de resolver os nossos problemas de caráter material, mas o que não admitimos nunca é que nos meçam atraso pelo que é para os outros adiantamento; não
progredimos tanto como eles e no mesmo campo que eles; mas gostamos de que
nos lembrem, quando nós próprios às vezes o esquecemos, que não nos deixamos
corromper profundamente pelo que trouxe consigo o domínio da Europa sobre o
mundo, e que, do lado português, guardamos a idéia de possibilidades de vida lírica
na terra e, do lado espanhol, a convicção de que só precisamos de governos porque
houve o pecado original. Não avançamos no material tanto como as outras nações;
porém perdemos menos do que elas o que é mais essencial: lembrança e desejo de
um Paraíso que, pelos erros, se perdeu e, pelos acertos delas, nunca mais se veria.
Se esta é a fé basilar que exigimos do político, fé no valor intrínseco da comunidade, teremos como seu complementar o gosto de saber que o membro de
governo tem aquela espécie de ascese que vem não de se negar, o que é de qualquer
modo dar por si mesmo, mas de se não perceber como destacado do conjunto ou,
por outras palavras, como destacado de Deus. O ideal de nossa gente vai à formação
de um político que tenha os gostos comuns no que eles possuírem de melhor, e seja
ao mesmo tempo o ponto cardeal a que prefeririam rumar; tem de ser um santo e
tem de ser um santo popular: Santo António, neste sentido, foi político, exatamente
como Santa Teresa; ou, para tomar o outro lado da questão, como foram santos,
Afonso X ou Nuno Álvares ou Marti ou o Alferes de Minas. Mas detestamos os
santos por orgulho, hipocrisia ou desdém. Ou os que desprezam os bens do mundo
porque não os sabem tomar.
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Depois, a questão de, lendariamente ou não, bailar com o povo de Lisboa e assistir, às vezes um pouco miudamente, a exames e concursos, faz parte
do que exigimos do verdadeiro político. Do lado europeu, prova-se que se é
comunitário quando, ao entrar-se na política, se principia por fazer parte da
junta que governa o bairro, embora com a ambição de ser Presidente ou Par.
Isso, porém, é demasiado mesquinho para quem verdadeiramente fala ou português ou espanhol: o nosso ideal seria o de principiar governando o País inteiro, mas, depois, com muito gosto, numa espécie de aposentadoria, daríamos
nossas opiniões sobre o campanário da aldeia. O que marca entre nós o gosto
do comum é que nos repugna o governar rebanhos de gente; queremos que o
político esteja conosco, ao mesmo tempo que vai à nossa frente; queremos que
seja humilde e grande. E queremos afinal que nos ame com aquele verdadeiro Amor que consiste em amar o Amado tal como ele é e, simultaneamente,
como virá a ser quando, por nosso Amor, tudo o que é surgir. É também, na
realidade, como o amamos a ele: com seus acertos e seus erros, suas fraquezas e
suas valentias; como é; e, ao mesmo tempo, como poderia ser se nós próprios,
tantas vezes, lhe não impedíssemos o caminho.
Só com políticos deste tipo poderá o mundo ibérico vir a ser o que é
de seu destino, mas o tempo retarda. E poderíamos pensar aqui que é então de
nossa essência esperar que o chefe seja para que sejamos, o que poria o sebastianismo como essencial em nossa evolução histórica; certamente o é: só por
essa fé, e por essa fé messiânica, poderíamos explicar que nas épocas áureas
tivéssemos estado tão intrinsecamente unidos a muçulmanos e a judeus. Só que
sebastianismo é apenas corrupção de messianismo: é o pessimismo que vem da
corrupção do ótimo e nos faz depois aceitar como Messias todo o ambicioso e
todo o aventureiro. Essa linha mestra não se mostra nítida depois de AlcácerQuibir; onde ela esplende é no momento em que o povo de Lisboa, querendo
um Messias, o fabrica; e a partir de barro tão frágil como o de D. João.
Diremos talvez que estamos demasiado longe de um ideal desta espécie. E sempre estaremos enquanto o julgarmos, enquanto todas as nossas forças de espírito se não empregarem totalmente na contemplação deste
sonho de um realizador de todos os outros sonhos. Tão completamente o
temos de fazer que haja para ele depois a mais bela e a mais difícil de todas
as tarefas: a de se ver apenas como um servidor do comum. Não foi feita a
nossa gente para ser, em conjunto, discípula de um Mestre: a sua Missão é
a de mostrar como é possível haver mestres, e serão eles os melhores, que
sejam discípulos dos discípulos; servos dos servos.
Comunidade e Política
Agostinho da Silva
382
Filosofia Nacional
SILVA, Agostinho da. Filosofia Nacional.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 09 Mar. 1958.
De vez em quando se fica muito satisfeito quando se verifica estar-se
cultivando qualquer ramo ou corrente de filosofia que de algum modo corresponde a movimento surgido e desenvolvido no estrangeiro; quando nos
atinge a última espuma de vaga surgida bem ao largo, já nos parece que temos,
excelentemente, cumprido o nosso dever e o nosso gosto de filosofar; somos
vítimas de moda ou somos inconscientes de dependência intelectual daqueles
meios que supomos mais cultos do que o nosso: mas tudo se passa como se nada mais houvesse a fazer; como se eternamente nos competisse ir a reboque de
correntes estrangeiras. Aqui, como em muitos outros pontos, o mal tem sido o
de ir atrás do que aparece vindo de fora, o que, de certo modo, procede de uma
ignorância ou de uma desvalorização de tudo quanto a tradição nos legou.
É de facto curiosa a idéia com que se sai de um curso de filosofia, entre
nós ou em Portugal, quanto ao que tem sido a atividade filosófica em língua portuguesa. Falam-nos de gregos e de franceses, de ingleses e de alemães e, quando
muito, se citam os que em âmbito nacional seguiram ou divulgaram as correntes estrangeiras, na maior parte das vezes sem que se tome sequer o trabalho de
pôr em relevo o que pode ter havido de original ou em certos pormenores de
pensamento ou, mais importante, no ambiente geral em que a importação se
desenvolveu; as cadeiras de história da filosofia são-nos quase, exclusivamente,
de história da filosofia européia, pondo aqui a América do Norte como um desenvolvimento da Europa; a pensadores nossos nem se alude; e nem, por outro
lado, se levanta o problema da possibilidade filosófica de nossa gente.
Por aqui se deveria, creio eu, principiar. Um verdadeiro ensino de propedêutica filosófica deveria pôr a questão de saber se gente de origem portuguesa, ou de uma forma mais geral de origem peninsular, tem ou não tem
vocação filosófica; se essa vocação filosófica não existe, então todo o ensino
da filosofia em nossas terras estará condenado, até o ponto em que podemos
prever história, a ser a crônica do que se passa no estrangeiro, talvez de algum
interesse informativo, mas de nenhum valor cultural, porque neste ponto só
vale a pena aprender aquilo que vai ser matéria de que faremos depois trabalho original; mas, se a vocação existe, então o primeiro dever do mestre é o de
383
trazer a claro as linhas essenciais da nossa atitude filosófica, de modo a que seja
possível apreender traços de conjunto e guiar esforços de novas criações.
A primeira atitude é a de que efetivamente não existiu nunca em língua
portuguesa ou ambiente português linha alguma de pensamento filosófico; o
que explicamos logo facilmente, dizendo que somos, por natureza, líricos e
narrativos e que, por conseguinte, não temos ambiente para que se desenvolva
um trabalho do pensamento cujas características são exatamente a linha científica e a teoria do que outros narrariam. Esta idéia vem fundamentalmente de
vários conceitos errados: o primeiro é o de se julgar que a literatura é o ponto
fundamental da cultura de um povo; é certo que temos sido, em literatura,
fundamentalmente líricos e narrativos, mas não é verdade que o tenhamos
sido nem em política, onde se inventou o município e se teve a voluntariosa
continuidade dos descobrimentos e das bandeiras; nem em arte, onde o ponto
máximo, o dos Painéis de Nuno Gonçalves, é original, entre toda a arte do
mundo, porque não é lírico nem narrativo, mas constitui uma teoria teológica
da história nacional; nem nas técnicas, onde, por exemplo, a caravela se revelou o perfeito instrumento para a tarefa bem pensada e bem definida; nem
nos arranjos sociais, onde o comunitarismo agropastoril daria ainda lições a
teóricos do cooperativismo e do socialismo.
Infelizmente, a literatura tomou conta de nós, e a tal ponto que, ainda hoje, se confundem literatura e cultura, como herança daqueles séculos, o
XVII e o XVIII, em que os absolutismos reais não permitiam qualquer outro
gênero de manifestação intelectual nem forneciam ambiente para que fosse a
literatura o que fora com um Fernão Lopes ou o que foi ainda com um Luís
de Camões e só tornou a ser no século XIX, desde Herculano a Eça, em Portugal, ou a partir de Lima Barreto e Mário de Andrade, no Brasil. No desânimo
geral que tomou o País, ninguém pensou nas possibilidades próprias e, no
que respeita à filosofia, o ponto a que chegaram alguns dos melhores foi o
de lamentar que não tivéssemos, em Portugal e no Brasil, condições que nos
permitissem sermos cartesianistas ou kantistas: estes, os progressivos; os que
rumavam contra se contentariam com tomismo.
É curioso, por exemplo, que ninguém se tenha impressionado com
o entusiasmo peninsular, cristão, judaico e muçulmano, por Aristóteles, ou
averiguado até que ponto viria esse entusiasmo de verem no grego menos o
adversário de Platão do que o discípulo de Platão; curioso igualmente que ninguém tenha dado atenção, apesar de tanta coincidência de história e de temperamento, à filosofia dos empiristas ingleses e feito as necessárias ligações com
um Duarte Pacheco ou um D. João de Castro, mas o mais curioso de tudo é
Filosofia Nacional
Agostinho da Silva
384
que se tenha descido um tão grande silêncio sobre a filosofia de um D. Duarte,
de um Camões, de um Vieira, nos seus escritos de teoria da história e daquilo
a que tão comodamente se chama profecia, e se tenha menosprezado a capacidade de pensamento de um Bruno ou de um Leonardo Coimbra e se oculte,
sob o poeta, o que havia de pensamento filosófico em Fernando Pessoa.
A tentativa desesperada, e sem imaginação, de integrar à força Portugal na Europa e, no Brasil, a tentativa igualmente desesperada de abafar, sob a
pseudocultura de um litoral europeizado, as forças que irromperam em Canudos fizeram que tratássemos com o maior desprezo o pouco de original que
foi possível fazer-se e que, ao traçar os programas das Faculdades de Filosofia,
do nosso lado, e das Faculdades de Letras, do lado de Portugal, não se tivesse
dito nem palavra a respeito do desenvolvimento de uma filosofia nacional. Em
nenhuma cadeira se tem de falar daqueles que tentaram dar consciência de si
mesmo ao pensamento que nos é próprio; em nenhuma cadeira Ibéria existe,
nem de uma costa nem de outra do Atlântico; em nenhuma cadeira se dá especial atenção às filosofias estrangeiras cujo estudo nos poderia ser de maior
utilidade; em nenhuma cadeira se abrem horizontes e esperanças de futuro. A
todos os inconvenientes que a Universidade tem em si própria, como instituição ultrapassada que é, somam-se os inconvenientes de, neste ponto, ser ela
ainda antinacional; forma filósofos que nada têm a ver com o nosso ambiente,
com as nossas aspirações e que, consciente ou inconscientemente, se vão portar toda a vida como europeus que tivessem nascido em lugar errado. E, no
fundo, são as saudades de Paris e de Konigsberg o que impede Mato Grosso e
impede Moçambique.
Precisaríamos de fazer ver à gente moça, que, infelizmente, é sempre
vítima dos velhos, que a nossa atividade filosófica se tem em primeiro lugar de
alicerçar solidamente na experiência científica: ninguém devia poder tirar um
curso de filosofia sem que tivesse trabalhado numa atividade científica, entendendo-se tudo o que há de diferente entre isto e o ter aprendido num manual,
de cor, noções que são já, elas próprias, atrasadas e de segunda mão; era preciso que o nosso aprendiz de filósofo tivesse andado, ativamente, por salas de
cálculo, por laboratórios, por observatórios; em segundo lugar, não se soltaria
ninguém sem uma experiência igualmente ativa das nossas realidades sociais:
numa Faculdade de Filosofia nossa, as Atas de Santo André, verdadeiramente
entendidas, são mais importantes do que o Discurso do Método, e o mutirão
mais fundamental que a Sorbonne; não teríamos igualmente nenhum receio
de meter o nosso jovem pelos caminhos da teologia e da mística: primeiro,
porque não há sem elas filosofia autêntica, depois porque por esses caminhos
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andaram um S. João da Cruz ou um Sampaio Bruno; dos filósofos estrangeiros
insistiríamos nos ingleses e, sobretudo, no problema que parece fundamental
quanto a pensamento nosso: o das relações entre Aristóteles e Platão, que tão
desgraçadamente tem dividido a filosofia católica. E acima de tudo, o que é
exatamente o que menos se faz em ensino superior, deveríamos tirar da alma
do aluno a sua nostalgia do estrangeiro e o absurdo namorar do que já está
feito, quando temos pela frente a mais invejável das tarefas que jamais coube
a um ser humano: a de formarmos com gente nova uma nação nova; e de dar,
por ela, ao mundo um mundo novo.
Filosofia Nacional
Agostinho da Silva
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Perspectiva brasileira
de uma Política Africana
SILVA, Agostinho da. Perspectiva brasileira de uma Política
Africana. Cadernos Germano-Brasileiros,
Juiz de Fora, ano VII, n.o 3, mar. 1968, pp. 1-17.
Edição bilíngüe: português e alemão.
Capitalismo – Socialismo – África
Uma colônia é uma região que recebe de outra, denominada metrópole, as suas idéias, as suas manufaturas e as suas normas de comportamento
no mundo. Dado isto, torna-se muito difícil que possa ter havido uma descolonização da África, a não ser pela tal mutação de constituições que em nada
vem modificar o que respeita a formas de pensamento, economia ou política
interior e exterior.
É fora de dúvida que não tem a Europa o menor interesse em que os
países africanos deixem de ser os fornecedores de matérias-primas para as suas
indústrias e os consumidores dos produtos de suas manufaturas; o ideal, para
alguns políticos, seria que todas as nações européias se congregassem num
Mercado Comum e que esse Mercado Comum, com uma África em desenvolvimento de produção e de consumo, lhes garantisse um nível de vida que
aumentasse sempre sobre o atual, permitindo além de tudo, para os serviços
considerados grosseiros ou de menor interesse na renda, continuar utilizando
a mão-de-obra do Mediterrâneo que, embora não branca, é, digamos assim,
menos negra do que a africana.
Se isto é o que se refere à economia, pouco teríamos que alterar o quadro pelo que respeita à intelectualidade. Os queridos da Europa hoje são os
políticos ou pensadores africanos que, completamente desenraizados de suas
culturas, falam Oxford ou falam Sorbonne, olham com bastante desprezo o
considerado primitivismo das regiões africanas, lamentam o poliglotismo de
seus países, consideram o sistema tribal como incompatível com a noção européia, diríamos melhor, romana do Estado, e felizmente o é.
Passando à América do Norte, que definiríamos como o ponto máximo
de concentração da Europa loura e alva, não parece, apesar de suas tradições
387
de anticolonialismo e apesar de sua defesa da liberdade dos povos e da iniciativa do indivíduo, ver sem temores a descolonização da África. Sob o ponto de
vista de segurança de suas fronteiras militares, de seu investimento de capitais
e de seu mercado de consumo, e ainda tomando as áreas de produção africana
como homólogas das regiões tropicais da América do Sul, é fora de dúvida
que lhe convém que estejam presentes na África os países seus aliados, ou nela
mandem as elites ainda sob a influência de seus missionários, ou ela própria
venha e se estabeleça comandando uma industrialização, talvez sobretudo a
agrícola, que lhe permita concorrer, quando, onde e como convenha, com o
que puderem exportar seus vizinhos do sul.
Não poderemos também aceitar que os representantes máximos da
economia socialista tenham vistas desinteressadas quanto à África. Tanto a
Rússia como a China querem acima de tudo a vitória de suas ideologias, mas
ainda antes dela pensam, como é natural, na sua sobrevivência como nações.
Tentará a Rússia o mais possível dividir o mundo em esferas de influência, a
exemplo do que sucedeu noutra guerra de ideologias, a de católicos e protestantes; as intervenções da China serão só tentativas de esgotar adversários em
pontos difíceis, e nenhuma África oferece nada de comparável com a Coréia
ou o Vietnã; o que fizer neste sentido fora da Ásia o fará só para fixar forças de
polícia ou para tirar da Rússia a hegemonia dos partidos comunistas.
Não cremos que o consiga nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento e pela mesma razão pela qual, dentro de alguns decênios, e a
não haver da parte do complexo industrial e militar dos Estados Unidos um
ataque antecipado e brusco, a própria China perderá sua agressividade, a
não ser aquela dos gritos que se dão para assustar o adversário quando se esgrime. Atingido o ponto alto de fabricação de projéteis intercontinentais de
carga termonuclear, ou do que ainda vier depois, com a bomba de nêutrons
e os motores iônicos, é pouco provável que alguém tente uma guerra em larga escala. As boas roupas, as boas casas, as geladeiras e as televisões tornarão
os chineses tão pouco agressivos quanto o são hoje os russos. A África ficará
entregue a si própria...
Se não houver guerra, continuará a África sendo um continente isolado, já que a sua forma de ser é bem distante se não oposta do que poderíamos
marcar como o laicismo, o racionalismo científico que apontamos, sejam eles
os euro-americanos, os russos ou os chineses. A não haver um milagre, Cristo
parece vencido no Ocidente, o materialismo de Marx parece ter batido o seu
profetismo e destruído tudo o que era na Rússia esperançosamente dostoievskiano, Confúcio parece finalmente e solidamente triunfante sobre Lao Tse.
Perspectiva brasileira de uma Política Africana
Agostinho da Silva
388
Assim como é duvidoso se poderemos ter uma verdadeira Ecúmena
antes de uma radical reformulação teológica que funda o teísmo cristão com
o ateísmo budista, que permita admitir para um católico o profetismo de
Maomé, que veja como linguagens de um igual fundo religioso o transe dos
candomblés e as vagas cerimônias do Xintó, é também pouco de aceitar que a
unidade política e econômica do mundo chegue até nós, e com ela uma África
verdadeiramente irmã, sem que o automatismo da produção venha suprimir
o assalariado, tornar ridícula a idéia de lucro, lançar para eras de ignorância
as pautas protecionistas, e sobretudo tornar inteiramente livre o espírito do
homem, para, no lazer que lhe virá, nos dar as criações das quais as até agora
foram apenas um imperfeito, um tosco, um larvar esboço.
As fronteiras na África e seus novos Senhores
De ser para os poderosos este terreno de grandes jogos, guarda a África
muitas marcas, a mais visível das quais é a que ficou nas fronteiras de suas
nações. Ao passo que na Europa são elas fruto das guerras, ao passo que nas
Américas vieram dos ímpetos pioneiros e bandeirantes, das negociações de
Estados soberanos entre si, de condicionantes geográficas, das iniciativas de
independência ou dos substratos de civilizações poderosas que os conquistadores, apesar das destruições, não puderam eliminar; ao passo que na Ásia,
apesar da ação dos impérios ocidentais, há alguma lógica de povos ou religiões
– as fronteiras de África foram traçadas por potências européias, em conferências de cidades européias e consultando-se apenas os interesses europeus.
Tudo só tem significado e interesse se as considerarmos em relação à
Europa e a seus interesses coloniais de busca de matérias-primas e expansão
de mercados de consumo; para os africanos foram sempre um desastre e são
hoje o obstáculo principal para que se estabeleça um planejamento da África
realmente útil a seus habitantes e, por eles, ao geral do mundo.
Os dominadores que partiram deixaram nos mesmos domínios outros dominadores, em geral tão bons representantes seus que ainda exploram e oprimem seus compatriotas mais do que o faziam os brancos. Para
os antigos colonizadores, a descolonização consistiu em ter que repartir os
lucros com os novos governos; para os novos colonizadores, consistiu ela em
lhes não pôr limites nas ambições de mando ou de riqueza, em tratarem os
adversários políticos com uma dureza e uma intolerância de que, fora de períodos de guerra, não tinha o europeu dado muitos exemplos, e ainda, pela
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existência de assembléias internacionais, em poderem, pelo princípio de a
cada nação seu voto, emitir seu parecer nas mais difíceis, complexas questões
de interesse geral.
No interesse de manter o sistema de neocolonialismo, de parte dos antigos dominadores; de fazer durar os seus regimes de partido único ou de perfeita ditadura de parte dos novos governantes; no interesse ainda de se manter,
hipocritamente, a idéia de que existe, com real poder, um parlamento geral
de países, poucas notícias se dão do que, sob o aspecto político, acontece nas
regiões que atingiram a independência. Ignoram-se as tribos que as fronteiras
separaram; ignoram-se as oposições encarceradas, exiladas ou assassinadas;
ignoram-se as lutas de religiões e de tipos de vida; ignoram-se as farsas eleitorais. Dir-se-ia por vezes que as agências estão mais interessadas em noticiar
os conflitos de brancos e pretos nas regiões ainda em regime colonial, e em
insistir nos benefícios que a libertação lhes traria; benefícios no entanto mais
seguros para os investidores de capitais e para os autocratas subordináveis do
que para as grandes massas de população.
O papel importante das tribos
Foge-se ao fato inarredável de que o primeiro passo a dar em África
seria o das autonomias tribais, reuníveis ou não em federações, que sempre de
qualquer modo teriam seus limites não coincidentes com os das atuais “nações”. O que na realidade existe para o africano não é o indivíduo nem a nação,
mas a tribo e, embora o complexo de cultura tribal tenha sido de há muito
atacado e limitado pelo colonizador branco, a verdade é que ainda mantém na
África um status, que faz que as instituições de origem e caráter europeus sejam
um simples fenômeno de alienação superficial. Tudo o que se construir em
África que não tome como base a tribo terá a duração que tiveram os regimes
autoritários e ainda na medida em que estes se possam apoiar na economia e
nas construções políticas dos brancos. Bastaria uma guerra em escala mundial
que obrigasse a um abandono mesmo temporário da África para que desabasse
num momento tudo o que, embora sobre os passos de portugueses a partir do
século XVI, se construiu ou julgou construir sobretudo a partir do século XX.
Excluído de sua tribo por estruturas euro-européias [sic] que a não
aceitam, não podendo, por outro lado, aceitar como boas estas últimas es Leia-se: euro-americanas. [Nota do Organizador]
Perspectiva brasileira de uma Política Africana
Agostinho da Silva
390
truturas; convencido a cada momento de que os seus valores cul­turais são
inferiores e estão destinados a perecer, com exclusão talvez do que se refere
à arte, esta mesma, no entanto, tão apreciada por artistas de origem cultural
européia, incapazes do ato inicial e fundamental, que seria o de entender, entender sentindo, o significado religioso dessa arte, habituados como estão à
arte de quem lhes paga, não à arte do a quem veneram – começa o africano a
adotar como únicos valores aqueles que o têm sido na realidade para a maior
parte dos euro-americanos, a riqueza, a fama e o poder, e a considerar como
cultura o que na realidade é tao-somente engenharia.
É isto o que fazem as Universidades africanas que são, todas elas, Universidades européias implantadas em África, com uma honrosa exceção para
a do Cairo, interessante, no entanto, e apenas, para comunidades muçulmanas. O que as outras levam ao africano é a medicina, ou a hidráulica, ou a
agronomia, ou a farmácia, de cuja utilidade ninguém discutirá, mas que se
desenvolveram na Europa sobre um substrato cultural, uma filosofia de vida e
uma integração social que são em África completamente diversas. Quando se
procura o que há de verdadeiramente cultural no ensino universitário africano que seja de África mesmo, nada existe que se mostre; ensinam-se filosofias
européias, religiões européias, histórias européias, artes européias; é a velha
idéia de civilizar o selvagem, quando tudo mostra, na crise de nossa própria
cultura, que valeria a pena tentar a experiência inversa, a de asselvajar o civilizado, dando-lhe a noção da solidariedade de grupo, do tempo que não é
dinheiro, mas condição de vida, dum existir que é ser antes de ter.
A civilização africana
Uma verdadeira civilização africana só pode surgir do que a África é,
não do que se quer que ela seja, ao agrado dos brancos, das potências e das
denominações. Parar de catequese e servir seria um bom início de ação. Deixar
de querer converter a cristianismos, ou islamismos, hoje muito mais agressivos, para ajudar os africanos a converterem-se ao melhor, ao mais profundo
das suas próprias religiões; deixar de pregar as excelências do Estado cesarista,
que já fez parar e desviar-se o que na Europa se ia verdadeiramente construir
sobre as palavras de Cristo, para os ajudar a reorganizar a tribo, tanto como
nós precisaríamos de quem nos ajudasse a reorganizar o municipalismo; deixar de proclamar o primado da tecnologia, para lhes dar a oportunidade que
não tivemos nós de saber que essa tecnologia só é válida quando serve a uma
filosofia; auxiliá-los a construir ou reconstruir em bases atuais uma economia
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
ISSN 1414-0381
391
tribal, afastando-se por um lado do estatismo socialista, por outro lado do
capitalismo da concorrência e do lucro.
Quer que a ajudem a desembaraçar-se de suas gangas históricas, das
fatalidades de seu meio, dos erros que tem havido em seu viver; quer que também aprendam com ela. Missionários, os dispensa; amigos e discípulos, os
reclama.
A missão do Brasil
Por-se-ia, como hipótese, que o Brasil, apesar de todos os seus recursos, ainda se não deu a trabalho que o valesse, não por obstáculos internos ou
externos, mas simplesmente porque o não concebeu suficientemente claro. E,
se algum trabalho tem, é esse de ajudar a sair de suas indeterminações os povos
do mundo que não encontram, nas grandes nações, guia algum que valha a
pena seguir; primeiro, a África.
Tem os três pontos básicos de partida, a que se agrega, da parte de quem
o receberia, o elemento essencial, que é o da confiança na absoluta isenção imperialista do Brasil, no seu real desagrado por uma economia de exploração,
no seu interno gosto por uma integração racial, que tende, não à convivência
de raças, o que já seria muito, mas a uma sua fusão numa raça ecumênica.
O seu primeiro ponto de partida o tem o Brasil dentro de seu mesmo território. Para todos os que participaram da experiência do Instituto de
Estudos Afro-Orientais que a Universidade da Bahia realizou no reitorado
de Edgard Santos, nenhuma dúvida ficou quanto à receptividade africana às
propostas que partiam de Salvador, quer as de se abrirem cátedras de estudos
brasileiros em Dacar, ou Ibadan, ou Acra, quer a de se manterem em Salvador ensinos de línguas afri­canas, quer a de se estabelecerem Institutos Culturais Brasileiros em S. João Batista ou Porto Novo, quer a de se trazerem
estudantes afri­canos a estudar em nossas Universidades, o que sob o ponto
de vista técnico, fora um ou outro caso, lhes não seria vantagem, quer a de
abertura de novas representações diplomáticas, quer a do envio de exposições brasileiras, quer a de um trabalho comum de nossas e suas estações de
hidrobiologia para um estudo conjunto do Atlântico Sul, quer a do levantamento de documentos etíopes, quer a da montagem de escolas industriais tipo
Exatamente, Centro de Estudos Afro-Orientais. [N.O.]
Perspectiva brasileira de uma Política Africana
Agostinho da Silva
392
SENAI, quer a de colaboração para o estabelecimento da história da África
Oriental, quer as tantas outras que, por acidentes de política interna do Brasil,
por timidez de dirigentes, por aculturação européia e vários outros fatores,
não chegaram a aproximar-se de termos de realização.
Salvador, sob a latente inspiração de seu Recôncavo, é o penhor de uma
África Ocidental virada ao Brasil e dele disposta a receber sua guia e conselho;
por este aspecto, é ela a cidade mais importante de todo o País e a que poderia,
numa política cultural convenientemente dirigida e executada, ser o pontochave de todo o Atlântico Sul; o outro meio círculo de Recôncavo vai do Máli
às fronteiras de Angola.
O Brasil é Portugal
O outro fator vital é que o Brasil é Portugal, não irmão ou filho de Portugal, mas Portugal mesmo. Houve colônia, certamente, e o governo português
não pôde, como era natural, fugir às determinantes de política e de economia
da Europa, embora em grande parte das vezes tivesse tratado o Brasil, ou a parte
de sua população que ao Brasil viera, com mais consideração por suas tradições
e suas ten­dências do que tratava quem ficara em Portugal; houve colônia, mas
à medida que se estudam os documentos se averiguam as grandes correntes
culturais de Portugal, se aquilata melhor da qualidade do povo que emigrou,
verifica-se que se dirigiram ao Brasil de preferência os portugueses que continuavam na linha do município, de uma economia não-capitalista e da religião
que punha o Espírito Santo como fundamental na Trindade e o punha reinando na perfeita fraternidade do Quinto Império. De modo que, se tivéssemos
de determinar em qual dos territórios se conservou melhor a verdadeira linha
cultural de Portugal, certamente a nossa resposta teria de se inclinar ao Brasil.
Mas Portugal, hoje, não é apenas a metrópole e poderia dizer-se sem
grande receio de contradição que se a política africana de Portugal tem sido
de desserviço ao próprio país, nos seus interesses imediatos, ela tem sido um
dos maiores serviços que se poderia ter prestado ao Brasil, ao Brasil da futura, necessária e inescapável missão. Portugal, conservando, o mais possível, os
territórios ultramarinos, abre ao Brasil, com a Guiné, o ajudar a África a que,
imprópria mas como­damente, poderíamos chamar sudanesa; com Angola, a
África banto; com Moçambique, toda a Costa Oriental, a velha Contra-Cos Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. [N.O.]
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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ta; além de, por Macau, lhe oferecer, num perfeito regime de convivência, as
comunidades chinesas; por Timor, as comunidades malaias; e quem sabe se
a lembrança de Goa não poderia propiciar maior integração, por um Estado
comum, entre os Estados Unidos do Brasil e a União Indiana. Portugal, batendo-se, e quaisquer que sejam seus motivos conscientes, está-se batendo apenas
por mais tempo para que se constitua a Confederação de Povos de Língua
Portuguesa, já nitidamente definida em três sub-regiões: a do Atlântico Norte,
de Portugal a Cabo Verde, com autonomia das Ilhas Adjacentes; a do Atlântico
Sul, com os três pólos de Guiné, Angola, Brasil; a do Oriente, jogando a África,
por Moçambique, ao encontro da Índia, da China, da Indonésia, mais afastadamente, mas com não menor importância, das Filipinas e do Japão.
Um dos problemas mais importantes que se principia a pôr quanto a
Portugal é o da sua posição na Península Ibérica, a qual depende fundamentalmente da validade e persistência de seus laços ultramarinos. Uma involução
na Ibéria pode ser uma conseqüência fatal da modificação de estatuto dos territórios africanos, mas tal se não daria se a Confederação viesse a constituir-se:
é a única maneira de haver autodeterminação sem quebra do conjunto. Mais
ainda: constituída a Confederação, com toda a sua importância, política, cultural e econômica, seriam as várias regiões espanholas que teriam interesse em
integrar-se na nova comunidade pela sub-região Norte.
A integração peninsular, dominada e vitalizada não pela meseta, mas
pelo mar, seria, além de fator de influência para o grande Magreb, o agente catalítico da integração da América Latina, talvez com os dois pólos, do México
e do Brasil, integráveis em duas regiões distintas, e que daria à Confederação
quase toda a costa ocidental do Pacífico. A mancha de língua portuguesa e
espanhola, tendo como sua primeira tarefa comum o trabalho de África, a que
tanto devemos, seria um dos mais poderosos fatores de paz, daquela que começa pelo desarmamento dos espíritos e pelo desejo de servir, pagando as dívidas que a humanidade, para se desenvolver, foi criando pelo mundo afora.
Só o Brasil poderá tomar uma tal iniciativa, porque só nele acreditarão
e só à sua volta se poderão reunir povos. Creio que o primeiro passo seria o
de se reunirem, e sempre tenho apontado Cabo Verde como o ponto ideal de
encontro, intelectuais do Brasil e de Portugal, para lançarem os pontos básicos
de trabalho, reunião essa a que se seguiriam as de economistas e juristas que
apurassem as possibilidades e conveniências materiais e de direito, até que um
dia, esperemos que não venha longe, governos e diplomatas estejam bastante
convencidos para que a instituição possa surgir. Estamos no momento certo
para que se principie; esperam-nos a África e, para além da África, o mundo.
Perspectiva brasileira de uma Política Africana
Agostinho da Silva
394
Fontes e Pontes do Futuro
Tema: Educadores Portugueses –
António Sérgio
SILVA, Agostinho da. Fontes e pontes do futuro. Tema:
Educadores portugueses – António Sérgio. Vida Mundial, o
mundo numa semana, Lisboa, ano XXXIV, n.o 1.732,
18 ago. 1972, pp. 49-51.
Como muitas vezes se confunde educador com professor, será bom
principiar por esclarecer que Antônio Sérgio, em toda a sua vida e em todas
as suas atividades, foi fundamentalmente educador, só episodicamente exerceu
o ensino: andou, ao que eu saiba, pelo secundário num pequeno colégio, para
os lados da Estrela, onde deu aulas de Filosofia a alunos que se preparavam
para entrar na Universidade; quanto a ensino superior, incompatíveis por vários motivos ele e as universidades, apenas, num regresso de exílio, ocupou em
Santiago de Compostela, e por pouco tempo, uma cátedra de Literatura Portuguesa. Claro que sempre entrara em Universidade, mas por outro caminho, o
de autor no programa, segundo o giro de tanta Universidade por esse mundo
fora que detesta a inteligência, enquanto viva, e monotonamente zumbe sobre
ela depois de morta. No fundo, melhor foi para ele, porquanto se demonstrou
mais sua tese favorita, a de uma urgente reforma da mentalidade, e escapou dos
maus efeitos que o lugar sobre ele poderia ter tido. Mal que lhe veio por bem,
como são muitos, embora na maior das vezes de tal nos esqueçamos e sejam as
nossas reações não de paciência e espera mas de contra-ataque ou desânimo.
Não foi, pois, seu destino o de educar meninos, submetendo-se com
eles a todas as imposições dos programas. Coube-lhe a tarefa, mais alta e livre,
de educar o próprio homem, não no sentido, que é habitual, de lhe cominar
tal doutrina ou tal fórmula de vida, mas de reclamar a sólida saúde e o claro
inteligir que o leve a contemplar mundo, a escolher o que de melhor nele ou
em seu espírito achar e, em seguida, a tentar que vá a vida pelos caminhos que
se lhe afigurarem melhores.
Talvez seja bom, nesta altura do escrito, confessar eu que não vou muito pela idéia de que possa ser o educando inteiramente livre perante o educador: só perante o que não existe somos nós livres: para o resto, logo vem a
395
limitação daquilo que é, como é. Se o educador tem por ideal que seu aluno
seja livre, é esse então o modelo pelo qual o quer, o que não deixa de ser modelo e nem se sabe se metafisicamente certo, porquanto há discussão sobre se
o homem é livre ou sujeito a forças de que não pode escapar. O que acontece,
porém, é que há modelos que são, para cada um, mais ou menos simpáticos,
por os achar mais ou menos certos, mais ou menos de acordo com o que se
lhe firmou como ideal. Para que não haja nenhuma espécie de confusão e
não se veja, nesta minha dúvida quanto à liberdade de educandos e educadores, alguma espécie de limitação a Sérgio, direi que o meu modelo seria, esse
também, o do homem fisicamente saudável, embora saiba de Pascal e outros;
informado do mundo com amplidão e segurança, mas sem a erudição que
tantas vezes abafa a capacidade de imaginar e julgar e agir e de reserva sempre
para as idéias novas que possam surgir. Homem impaciente de quem despreza
o corpo por amor do espírito, e do contrário; furibundo e de dente e garra
quando lhe querem pôr freios ou quando o querem convencer de que o caminho de progresso do homem está no obedecer a quem se dá ares de possuir a
verdade; hostil aos que defendem o pouco talento de que Deus o dotou, se de
algum, com cuidadas aparelhagens que aos outros impedem demonstrar que
nem tudo que brilha é ouro e há muito pechisbeque à mira de contraste que o
garanta do melhor quilate.
Ora parecia a Sérgio que, assim como, geograficamente, Portugal, o do
Continente, que afinal quase só desse tratou, e aqui lhe teremos real limitação,
como a Verney ou Herculano ou Antero, se divide em dois territórios bem diferentes um do outro, o Portugal do Norte, atlântico, plantador e, será que o posso dizer, gótico, e um Portugal do Sul, mediterrânico, itinerante e, vamos pôr o
simétrico, mouro, há também na história dois países distintos, um até ao século
XV, outro depois do século XV; é esta, de resto, e é bom notá-lo, uma fratura
que Portugal partilha com a Espanha: é também nos inícios do século XVI que
Carlos V, vencendo em Villalba os “comuneros”, abafa a verdadeira Espanha, a
dos “fueros” e liberdades regionais, já muito enfraquecida, além de tudo, pela
centralização leonesa e, principalmente, pelo reinado de Isabel e Fernando. Em
Portugal, onde, apesar das aparências, a revolução popular do século XIV deixa
de o ser com a subida ao trono de D. João I e a ascensão da nobreza nova, com
impressionante ecoar pela história fora até ao fracasso do setembrismo e ao
desvio da República, poder-se-iam pôr como datas-limite a proclamação de
D. João II, admirado pela Católica,1 olhai aí, ou a partida da expedição para a
Índia, paralela, quanto a efeitos, a terem os reis espanhóis cedido a Cristóvão
Colombo, ou a matança dos judeus de Lisboa no tempo de D. Manuel.
Fontes e Pontes do Futuro. Tema...
Agostinho da Silva
396
Se quereis saber como era o primeiro Portugal ou, pelo menos, como
o via Sérgio, embora não falasse aí das liberdades municipais, nem da economia coletivista, nem dos sentimentos e criações religiosas, mas, basilarmente, de como funcionavam os espíritos e se tomavam resoluções, lede o ensaio
sobre a conquista de Ceuta. Aparecida a idéia ou emitida a hipótese, para
mais assimilarmos o caso ao que se passa em ciência, de que era desejável
tomar Ceuta, ou porque a pirataria incomodava as costas e os navios portugueses, ou porque a sua posse manteria em respeito o Reino de Granada, se é
que queríamos boas relações com o castelhano, ou seria ameaça para o castelhano mesmo, caso fosse remisso, ou porque ali ia o trigo que já principiava
em falha de Inglaterra, feita, pois, a suposição de base, cientificamente se
documentam os portugueses espionando o porto, onde os bons surgidouros,
onde mais fortes as defesas, onde mais vulneráveis elas, nos pontos baixos
de praia a que se lançará a hoste. Primeiro, hipótese, depois, mapa, como
em estado-maior, mapa cartografado, como o foram daí por diante todos os
de Portugal, por quem viu e ouviu, não de lendas e contos; depois haverá a
enumeração dos recursos e a ida ao Porto do Infante, para os bons navios em
que o burgo era rico, em seguida o disfarçado navegar, e, só no fim, na altura
certa, o ímpeto a que nada resiste.
Quebrado Portugal com o mercantilismo das navegações da pimenta,
como se quebrou a Espanha com o ouro de México e Peru, sem que, cá ou lá,
se escutasse o “Velho do Restelo”, que preferia a tudo a ordenação doméstica e,
quando muito, a integração do Magreb na Ibéria ou a unificação de Magreb e
Ibéria; quebrado com o enfraquecimento da organização municipal pelo poder absoluto do rei; quebrado com a introdução de instituições que de cristãs
só tinham o nome, como só de cristãos tinham o nome seus adversários protestantes; só num ponto, o da construção do Brasil, fato que Sérgio não viu,
mas o viu Cortesão, o País continuou a ser o que era, no resto nem sombras,
como logo o testemunharam um Camões, um Diogo do Couto, um Mendes
Pinto, talvez o mais duro de todos, os economistas que Sérgio antologiou e os
iluministas e estrangeirados do século XVIII e tema em que insistiram os imediatos predecessores e seus mestres que foram Alexandre Herculano e Antero
de Quental, talvez sem a merecida atenção ao que fez um Garrett.
Estrangeirados, digo eu, para seguir a nomenclatura vulgar; nacionalistas do primeiro Portugal, do Portugal de raiz, do Portugal autêntico, é que
eles foram, como Sérgio o foi, e fiquem os estrangeirados do outro lado, com
quem se tornou implacável defensor de uma economia de exploração do homem pelo homem, que Portugal repele; com quem julga que governar e ditar
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
ISSN 1414-0381
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são exatamente a mesma coisa e nada aprendeu na experiência das vereações
e das Cortes, nem meditou a grande lição que é aquele conselho das vésperas
de Ceuta, com o rei a discutir a grande empresa com seus pares e amigos, tão
jovens uns como o Infante, tão “russos” outros como já o era D. João; estrangeirados ainda com quem não acaba por entender que Portugal é ecumênico
mesmo, de pensamento, de alma e de fé, e precisa de saber, livre, de tudo o que
se passa no mundo e de em tudo intervir com sua opinião e de, pela opinião
de todos, à sua própria modelar.
A educação, portanto, que Sérgio reclama não é uma educação que nos
aproxime da Europa, à maneira do que propunha Ribeiro Sanches e quis executar Pombal, que, por déspota, não era português, mas só um estrangeirado
à Frederico; é uma educação que nos restitua a nós próprios. Do século XVI
para cá, segundo Sérgio, temos estado num cativeiro da Babilônia onde, já não
sentados, mas prostrados, choramos o Sião de que tão mal cuidamos, surdos
aos alarmes e apelos de um Sá de Miranda ou de um Jerônimo Osório, e quem
sabe se não é deste mesmo, quer ele o quisesse ou não, o sentido profundo do
salmo em redondilhas de Luís de Camões: de então para cá só tivemos um ou
outro relâmpago de beleza particular, entre eles Sérgio, digo eu, mas do que
precisamos mesmo é da beleza geral de um povo-comunidade, comunidade
econômica, comunidade política, comunidade educativa, comunidade metafísica, comunidade de vida e morte, com todos padecendo as mesmas dores, se
as tiver de haver, e jubilando nas mesmas alegrias que decerto virão.
Quando António Sérgio prega o sistema cooperativo, ao mesmo tempo que, em artigos meio esquecidos, fala nas técnicas novas que, trazendo a
abundância, poderão ultrapassar qualquer sistema econômico, o que ele quer,
e apoiando-se nas tendências coletivistas que sempre foram nacionais e que
sobreviveram até hoje, apesar de romanos, visigodos, árabes, cavaleiros francos e monges de Cister, é assegurar ao povo português.
Além de tudo, que é cultura para Sérgio? Não é saber; sabiam muito
os sábios alemães, mas raros foram os que até não encontraram no saber mais
motivos ainda para não intervir, e até para agravar o que se passava no seu país
pelos anos 30 e 40; sabiam pouco os camponeses, operários e pescadores que,
quando floresciam sábios em Roma, e Roma, apesar disso, decaía, seguiram
outro operário também de pouco saber humano e mudaram o mundo. Cultura não é o que se aprende em livros, nem ser culto é tornar-se em armazém
de noções, o que traz como conseqüência que sejam na realidade quase todas
as escolas que existem pelas nações escolas de incultura e não de cultura; tudo
a peso para o exame, nada do imponderável para o espírito. Cultura, põe-no
Fontes e Pontes do Futuro. Tema...
Agostinho da Silva
398
claramente Antônio Sérgio, é o infatigável exercício do espírito crítico, o dom
inato, e aqui entrava toda a sua metafísica de essência platônica, cartesiana
e kantiana, nunca tendo descoberto a nossa mesmo, a dos ditados, quadras,
cultos populares e dom inato de esclarecer idéias, de concatenar noções, de
mostrar o universo como máquina coerente, embora porventura misteriosa e
por aí solicitando nosso contínuo avanço. Cultura é o espírito laborando no
espírito, embora lhe seja material o conjunto de fatos, que eram já, de resto,
para Sérgio, produtos, eles próprios, de um pensamento pensando; cultura é o
essencial no essencial se exercendo, o que já está bem perto daquilo a que Antônio Sérgio chamava de misticismo racionalista, e cuja elaboração sistemática
ou completa vivência a vida o impedia de atingir.
Política lhe foi sempre também meio de atingir cultura, nunca admitindo que o cidadão não participasse da República e que fossem tomadas
sem seu consentimento as resoluções que todo o presente e todo o futuro lhe
comprometeriam. Mesmo quando por algum tempo as idéias de executivo
forte e de ordem geral, muito distinta de ordem pública, estiveram um pouco embaraçadas em seu espírito, mesmo aí, não concebia que uma resolução
dessa natureza pudesse ser votada senão pelo povo, com fins determinados
e por determinado tempo. Cultura e democracia lhe apareciam em união
indispensável para que pudesse o povo um dia, no seu total, atingir o nível
que por natureza e vocação tem de ser aristocrata, isto é, de se saber governar
cada homem racionalmente a si mesmo, sem mais interferência de pessoa ou
instituição alguma.
Para tudo isto, e voltemos aos professores e às escolas, se tem de reformar o sistema de ensino, fazendo que, desde a infantil à Universidade, desenvolvam aulas, laboratórios e ginásios, já que diretamente não desenvolve a vida, como devia se estivesse bem organizado, o corpo e o espírito, a capacidade
de raciocinar e agir, os meios próprios de imaginar e criar de toda a criança,
adolescente ou moço que se lhes confie, ao adulto se estendendo também na
indispensável educação popular. Varrido o humanismo, que, simultaneamente, em Sérgio acaba no homem e ao homem transcende da sua ligação com as
línguas e culturas clássicas, é preciso que ele esplenda, iluminando caminhos,
nas línguas modernas e fundamentalmente nas ciências, que não devem ser
ensinadas como feitas, mas como fazendo-se, pela observação dos fatos e a
estranheza perante eles, pela invenção da hipótese pelo imaginar da experimentação, pelo colher dos dados, pela sua integração no já conhecido e pelo
rasgar de novas avenidas. O essencial é que o ensino científico inculque nos
espíritos a dúvida metódica, o alerta crítico, a noção de que todo o resultado
Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007
ISSN 1414-0381
399
da ciência é puramente conjectural, sempre no limiar de uma confirmação ou
de um desmentido. Para o que é necessário ser confiante perante a inteligência
e humilde perante o mundo. Quanto à filosofia, antes se não ensinasse ela do
que se dê ao aluno a idéia de que chegaram os filósofos a qualquer espécie de
certeza ou tenhamos dos sistemas que têm sido elaborados a idéia que teríamos de Haydn ou Mozart, se mestres de música, em lugar de as fazerem tocar,
nos assobiassem sinfonias. Filosofia é uma pilha de hipóteses; só, a mais do
que isso, a certeza de que o espírito pensa: daí se irá ao resto.
Como conclusão de tudo se poderia repetir a frase que Sérgio gostava
de citar como resumo do que queria com todo o seu pensamento e toda a sua
ação: “Ser grego é conversar com os homens”, deixando para o bárbaro impor
idéias, inculcar sistemas, excluir leituras, proibir que se diga isto ou aquilo,
troçar do adverso, caricaturá-lo para o demolir, ou fechar-se num silêncio que
se quereria superior, mas é a prova mais plena de inferioridade perfeita. Ora o
que Sérgio poderia ter citado, ao mesmo fim, era a frase de um homem nosso,
sobrevivente ainda do século XV, na esteira ainda da real cultura portuguesa,
quando se funda no Brasil, em São Vicente, hoje no Estado de São Paulo, o
primeiro município; é o homem Pêro Lopes de Sousa e diz ele, em seu “diário”,
que se fizera o município para que fosse “a vida conversável”. Por esta “vida conversável” pensou, escreveu, falou, existiu Sérgio: por causa desta “vida
conversável” o sacrificou o Portugal do seu tempo; julgando que a matava e o
matava: os dois, porém, conosco estão, conosco estarão.2
Notas
1 Refere-se Agostinho da Silva a há pouco mencionada rainha Isabel, cognominada “a Católica”. [N.O.]
2 Na série de colaborações que escreveu para a Vida Mundial, sob o título geral “Fontes e pontes do futuro”, Agostinho da Silva costumava publicar um texto principal e mais três colunas, intituladas “Antologia”, “Apontamento” e “Ficha de Leitura”, com as quais completava o conjunto da seção de
“Educação” daquela revista. Com este artigo sobre Antônio Sérgio, não foi diferente. Optamos, no entanto, por
apresentar aqui “apenas” esta peça central sobre o autor dos Ensaios. [N.O.]
Fontes e Pontes do Futuro. Tema...
Agostinho da Silva
400
Alguma Nota sobre Casais*
SILVA, Agostinho da. Alguma nota sobre Casais. Cadernos de
Teoria e Crítica Literária, Araraquara, SP: Setor
de Teoria da Literatura da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Araraquara, n.º 4, jul. 1974, pp. 15-26.
De vez em quando sucedem milagres, se Deus os consente e neles se
empenham os homens. Num país de ensino rotineiro, com mais interesse pela
nota e pela autoridade do catedrático do que respeito pela ciência e liberdade
de discernimento pessoal, surgiu a Faculdade de Letras do Porto, que era toda
ao contrário, inimiga da burocracia e fosse do que fosse que pudesse lembrar
Coimbra e seus malefícios de séculos e incitadora de descoberta própria mais
do que de aprendizagem servil, bem longe de ser a escola técnica de profissionais de ensino em que se transformaram as outras.
Em dois grandes grupos se dividia, liderado um por Teixeira Rego, que
podia ter sido bom matemático e físico – ouvi-o propor a teoria da luz de Broglie antes de Broglie – e ensinava filologia, pois ainda se não tornara ciência ou
moda ser pedante em lingüística, e o fazia com mais gosto para quem o acompanhava na velha livraria Lello do que para quem, em obediência ao currículo,
se matriculara na cadeira; o outro por Leonardo Coimbra, que podia também
ter sido matemático e campeão remador, como Rego de tênis, e ensinava filosofia, ou antes, que isso era o certo, vivia filosofia, com muita agudeza e saber,
como mestre, e muita angústia e caminhos torcidos, como homem, dando
nota boa a quem se interessava e a quem se não interessava pela matéria – tive
distinção na turma destes, pois que era o indo-europeu de Teixeira Rego meu
pasto fa­vorito –, tudo no Café Majestic, como o filólogo na Lello.
Casais, que entrara na Faculdade pelos anos 25 ou 26, quando eu, mais
antigo no planeta, pelo menos no planeta escolar, me dava já ao luxo de ler
Terêncio e Homero e rodava longe dos filósofos como Eugênio Aresta, José
Marinho, Sant’Anna Dionísio ou Álvaro Ribeiro – Casais andava a um tempo
pela metafísica e pela literatura, aquela mais livre ainda que a de Leonardo
* Impresso, posteriormente, em formato de folheto, “à parte para cem Amigos”, nas palavras do próprio Agostinho. Para a presente edição, adotamos o texto desta última impressão, na qual o autor, praticamente, não
efetuou alterações. [N.O.]
401
– o qual, por filósofo, fora reprovado em seu concurso de professor para a
Faculdade de Letras de Lisboa – esta, a literatura, quase tão erudita como a
de Salgado Júnior, o grande comentador de Camões ou Verney ou Antero,
também reprovado, claro está, pela Faculdade de Letras de Lisboa noutro concurso para professor.
Nunca vi ninguém estudar tanto e tão seriamente como Casais naquela
Biblioteca Municipal do Porto, que conservava no acervo e na atitude a lembrança de um Herculano, de um Rocha Peixoto, de um Martins Sarmento ou
de um Sampaio (Bruno), este último educador do próprio Teixeira Rego, que
fisicamente acabara por se parecer com seu Mestre. Já era o Casais daquela
altura e daquela longa cabeça que o Brasil veio a conhecer, mas quase ficava
oculto pelas pilhas de livros que requisitava de cada vez e que lia com voracidade e velocidade, muito antes de terem aparecido os métodos americanos de
correr num segundo as páginas pares e adivinhar por elas as páginas ímpares;
que lia, entendia e digeria em alimentação própria, sempre com um belo jeito
de não ter grandes notas, como que a reservar-se para dar a sua medida na
grande e difícil vida que o esperava.
E que já principiara, porque a erudição não era para Casais, como para
tantos, uma forma de se esconder da vida; as noites pelas ruas do Porto, pacato
ainda e provinciano mais que nunca, eram por Casais e seu grupo – o de um
Viriato Gonçalves ou de um Horácio Cunha, de que poucos sabem e saberão,
pois tiveram o excelente destino de serem extraordinários e de ninguém dar
por eles – com exceção da polícia política, é evidente –, do mais ruidoso que
se podia imaginar, bastante de acordo com o tom que o País ia tomando por
aquelas alturas.
Nisto nos dividíamos, eu e Casais. O indo-europeu é mau conselheiro
político – embora fosse a República a deusa de Teixeira Rego –, talvez, por
outro lado andasse eu muito sob a influência de Goethe, coisa de que me curei
depois, e prezasse sobre tudo a Ordem, com muita impaciência perante as
fraquezas e os compromissos dos políticos e as injustiças que a cada momento
via praticadas, o que já não era muito goethiano; o nosso poeta e crítico temia
principalmente a ditadura que se aproximava e que, apesar de tudo, era apenas
militar, quando o que realmente ameaçava o País era o obscurantismo coimbrão e o mesquinho espírito do quintal das couves. Quando tudo se decidiu,
fiquei eu com a tropa, ele com a Constituição. Menos de um ano depois, entrei
na Seara Nova,1 e tive o gosto de ser demitido do serviço público ainda antes
de Casais Monteiro; onde iria o Goethe!
Alguma Nota sobre Casais
Agostinho da Silva
402
***
Com Espanha, França e outras aventuras, perdi de vista Casais, que
entrara na Presença, andava ensinando e fazia política. Não sei se o vi em
São Paulo, na altura do Centenário, quando devia ele estar por Congressos2
– mas vi Delfim Santos, outra cria do Porto – e trabalhava eu na Exposição
de História3: só o encontrei plenamente na Bahia e naquela Universidade
que a imaginação, a inteligência, a habilidade humana e o prestígio de Edgard Santos transformara numa espécie de corte do Renascimento. Casais
chegara para ensinar na Faculdade de Filosofia, na Cadeira de Hélio Simões,
e na Escola de Teatro de Martim Gonçalves, viera eu propor a Edgard Santos que se fundasse aquele Centro de Estudos Afro-Orientais que iniciou a
política africana do Brasil e que talvez tivesse feito o mesmo com o Oriente
– só trabalhou com o Japão e os Árabes – se o Presidente Jânio, que tão bem
entendeu o Centro, não tivesse, por outro lado, deixado de reconduzir o
Reitor no cargo de que jamais deveria ter sido apeado. Em 59, porém, só o
Reitor me acompanhou na ousadia e praticamente se trabalhou a ocultas da
Universidade, que talvez derrubasse o Centro se o tivesse sabido a funcionar;
o escritório era no subterrâneo da Reitoria e, para disfarçar a minha presença, inventaram-se na Escola de Teatro aulas de filosofia, não sendo esta a
última vez em que havia de ensinar o que não sei; coisa muito útil, porque se
aprende muito estudando com aluno.
Aí aprendi ainda a conhecer a generosidade humana de Casais, o seu
entusiasmo por poder ajudar os escritores locais, o seu gosto de relações, a real
identificação com que no Dois de Julho acompanhava, com as autoridades e o
povo, o cortejo cívico dos Caboclos, muito admirado – mas não tinha de quê
– de que um catedrático português, por esse tempo em Salvador, considerasse
a festa como ofensiva para os seus brios de patriota dileto do regime, não das
Musas. A todos, alunos ou não alunos, animava e ajudava Casais, empresa em
que naturalmente, como sempre sucede, gastava às vezes ótima cera com péssimos defuntos. Quando vinha a desilusão, que muito o feria, ou ficava dois
ou três dias de papo para o ar, estendido na cama, meditando nas injustiças do
mundo, e assim o encontrou Jorge de Sena, que tanto admirava Casais, quando em 59 desembarcou no Brasil para uma vida nova e grande, ou tinha um
ataque de humor negro, de que sempre acabavam por o tirar a extraordinária
Raquel Moacir e algum mais certo amigo como Pedro Moacir Maia, ou certo
e vário como aquele talentoso e protéico Jair Gramacho, poeta principal, helenista e perfeito no seu imprevisível.
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Depois o vi cansar-se de tanto folclore baiano, que ia o nosso homem
mais de que muito pelo velho Descartes e pelo “toute ma physique n’est que
géométrie”, e abandonar, herdando-a eu, a casa da Federação, enquanto abalava para o Sul, a buscar seu jornal, ou Faculdade ou editor. Intuição e razão nele
se disputavam o trono, a ordem e a desordem nele o atraíam por igual, mas
não vinham ao mesmo tempo, e depressa o cansavam durante o seu reinado.
Além de tudo havia a saudade da velha Mãe e da sua Casa Grande de Ruivães,
naquele exílio que era, simultaneamente, forçado e de gosto; não suportaria
Portugal e lhe era difícil viver sem Portugal. Entre os contrários balançava,
sem que tivesse chegado a alcançar que se unem as várias geometrias naquela
que não tem dimensão alguma; por isso foi poeta, naturalmente, mas não na
poesia de equânime altura que houve com Lao Tse ou Bashô; por isso entendeu como crítico tanta obra diferente, mas não pairou acima delas, como
Sainte-Beuve, por exemplo; estar firme num rochedo e ver explodir mar não
era dele; lhe eram casa a corrente, a onda e a ressaca.
***
Ainda me passou por Santa Catarina – e talvez fosse até antes de Salvador – e aí deu uma bela lição num Círculo de Filosofia que se tinha inventado
naquele Desterro, sob a asa protetora de Henrique Fontes, o duro velho, e de
Jorge Lacerda, aquele que os deuses, por o amarem, levaram jovem. Mas onde o vi pela última vez foi no aeroporto do Rio, de viagem para São Paulo e
Araraquara, onde se lhe metera na cabeça que me devia levar para a banca de
seu doutoramento ou concurso, não sei mais. Ia, no seu jeito, com entusiasmo
e com resignação; colegas e alunos lhe agradavam totalmente, tinha, naquele
interior, todos os meios de trabalho de que podia precisar, ficava perto de São
Paulo, onde lhe estavam amigos, livros, vida viva, podia passar suas férias no
Rio, ao apartamento junto ao mar; o problema, porém, é que era homem de
serra, e monge também de certo modo, e que Portugal lhe faltava.
Nunca o teve, e nem sequer aprendeu, com o desgosto que de vez
em quando lhe dava a política feita no exílio, de que, mesmo que o tivesse, as saudades de Ruivães seriam substituídas pelas de Araraquara ou
Itapuã, e que dificilmente deixaria de estar em oposição a qualquer governo que se estabelecesse no País, primeiro porque não há paraísos instantâneos, depois porque resta saber se seria o Paraíso o lugar de moradia a que
daria Casais a sua preferência; não: saudades do Paraíso lhe serviriam, com seu
amor e sua dúvida, seu avançar e seu fugir, sua plenitude e seu remorso. Não
Alguma Nota sobre Casais
Agostinho da Silva
404
era homem para ter a felicidade, que não é, de resto, dos mais altos valores, nem
para que a Paz o tomasse, que essa, sim, é valor; se jogar e jogar, eis seu destino,
mas, perante esse destino, o espectador inteligente e sensível, e terno, e mole um
pouco, que a aventura confrange.
Apesar dos filhos que finalmente se haviam escapado a Portugal, a
morte de Raquel o marcava de solidão, ou o marcaria talvez de maior solidão,
que só sempre ele fora; e não se sabe até que ponto, para algum velho, é a juventude à volta sinal de solidão mais que de companhia. De algum momento
para diante se tornou a sua vida, apesar de todo o entusiasmo pela literatura,
e só nos menos bons pode ser ele absorvente, um caminhar lento e fatal para
a morte; tão longe o via já, tão separado do que era realmente vida, que não
lamentei muito que nos não tivéssemos encontrado durante o período em
que lecionamos na América, ele em Wisconsin, onde, ao que parece, se sentiu
muito bem, apesar do frio, eu em Nova York, onde recebi, por meus alunos,
muita boa lição de humanidade excelente. Há quem morra antes de ter vivido
e quem viva depois de ter morrido; houve em Casais as duas coisas: não creio
que tivesse estado na América plenamente vivo; e estou seguro de que viverá
mais e mais à medida que Portugal se despoje de seus falsos ouropéis de poderoso Estado e renasça no espírito que o fez grande antes do absolutismo real,
do capitalismo italiano e alemão e da opressão religiosa, isto é, na liberdade
republicana, numa austera solidariedade econômica e na inteira fantasia de
pensar Deus, ou de O não pensar; mais precisamente, de O pensar e de, simultaneamente, O não pensar.
Notas
1 O golpe militar que põe fim à República parlamentar portuguesa data de 28 de Maio de 1926; o ingresso
do jovem Agostinho da Silva no grupo e na revista Seara Nova, de Outubro de 1928, mês em que estampa o seu
primeiro artigo, “Carta aos velhos latinistas”, na célebre “revista de doutrina e crítica”, segundo seu subtítulo. De
modo que não foi “menos de um ano depois” do tal golpe a altura em que se deu a sua adesão àquele notável círculo de intelectuais. O autor comete aí uma ligeira imprecisão cronológica, de resto, muito comum nos processos
de rememoração. [N.O.]
2 É como convidado do Congresso Internacional de Escritores, decorrido naquela São Paulo de 1954, que
Adolfo Casais Monteiro chega ao Brasil, iniciando a fase (definitiva) do exílio, donde pode dar-se como
certo o reencontro, em São Paulo, dele com este seu condiscípulo da Faculdade de Letras da Universidade
do Porto. [N.O.]
3 Precisamente, Exposição de História de São Paulo no Quadro da História do Brasil, cuja realização se deveu
a Jaime Cortesão e equipe, da qual, entre outros, fazia parte Agostinho da Silva, no contexto das comemorações
do IV Centenário da Cidade de São Paulo. [N.O]
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Ombrear com Herculano
SILVA, Agostinho da. Ombrear com Herculano.
JL - Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, ano II,
n.o 57, 26 abr. 1983, p. 12.
Creio que nenhum dos grandes vultos da história da cultura portuguesa poderia ombrear com Herculano tanto quanto Sérgio. Ligam-nos a exigência do documento, a prioridade do pensar lógico (se é que há outro), a vocação
pedagógica, a integridade do comportamento, a incansável intervenção cívica,
a dedicação a um projeto de Portugal, a insistência numa reflexão de conjunto,
e, na expressão, a virilidade de estilo, ainda mais vincada no de Vale de Lobos.
Excede-o Sérgio na concepção filosófica, que vai além do kantismo, e, ao que me
parece, pela breve referência que me fez a um seu “misticismo da razão”, mais o
veria no caminho que abre a geometria analítica quando entendida por Espinosa
– o que tudo se liga porventura a ser a linha matemática de Herculano (apesar ou
por causa da Aula de Comércio – mas há a frequência do Oratório) bem tênue
em comparação com a de Sérgio – e, sem matemática, bem curta será qualquer
filosofia. Fica Sérgio abaixo do mestre na competência, decisão e serenidade com
que o outro afrontou o quotidiano pragmático e o pragmático a largo prazo.
Diria agora que falharam os dois em ficarem demasiadamente ocupados
com o Portugal que, como que adivinhando os conselhos do Velho do Restelo,
interno se desenvolve e assegura até o fim do reinado de Dom Dinis; não entenderam a expansão como certa para aquela condição do português que só fora
do país inteiramente se revela, a de missionário e capataz e lutador, de que tanto
gostaria São Bernardo, se é que a não previu. Dizia, a propósito, Manuel Bandeira que “todo o brasileiro é um português à solta” (o que põe o problema de saber
que coisa ou coisas prendem o português em Portugal); acrescentaria eu, em
imagem que me ficou de meu gostoso trabalho entomológico no Oswaldo Cruz
do Rio, que o português em Portugal é larva apenas daquele que só no exterior
rufla suas asas a um sol de vitória; e mal tem ido a tantos que o tentaram no
interior mesmo; aí vem, para o atestar, o próprio Herculano e o próprio Sérgio,
ou, ainda um seu mestre, Antero; e tantos outros dos “suicidas” de Unamuno: ou
dos «suicidados», como melhor teria dito o salmantino.
Mas este defeito de, ao que creio, não ter Sérgio entendido a expansão não é o que importa para o Portugal do nosso tempo ou do seqüente
406
futuro: o avanço e afirmação da língua por todo o espaço a que ela outrora
não chegou, está agora, ao que penso, a cargo dos outros países de expressão
portuguesa, talvez com centro no Brasil; ao da Península vai caber, fundamentalmente, o desenvolvimento interno – nunca mais o império sobre a
miséria de um povo e a escravatura de tantos outros –, e desenvolvimento
interno sobre a base política do municipalismo; não que a base vital de uma
economia justa1 (enquanto a eletrônica e a informática nos não trazem a
verdadeiramente humana, já sonhada por portugueses do século XIV e do
século XV); sobre a base social da igualdade de oportunidades para todos, o
que pressupõe economia de cooperação – talvez mais certa se for pelas linhas
da que se esboçou em Vilarinho das Furnas ou Rio de Onor do que pelas que
pensou Sérgio, as de Rochedale e Charles Gide; sobre a base de liberdade do
pensamento político e metafísico, normal ou anormal que nos apareça.
Vai caber-lhe, mais, a participação, e talvez o papel mais importante, na
reorganização da Península, em linhas que eliminem para sempre Carlos V e
Filipe II, dando final triunfo aos “comuneros” e “irmandades” do século XVI.
E lhe caberá ainda, com o restante da Ibéria, como se fez atrás pela álgebra, o
aristotelismo e os descobrimentos, o renovar da carcomida Europa e, afinal, de
todo esse hemisfério norte que tantos vêem ainda como ideal a atingir, quando
é, apenas, um obstáculo a ultrapassar.
Talvez não interesse muito saber se António Sérgio está hoje vivo e atuante, como não interessa sabê-lo a propósito de Herculano ou de Antero: o que
tem primazia é o saber-se que a História os não desprezará, porquanto trabalha
ela com místicos alvos de futuro, mas racionais, matemáticos passos, atenção ao
enlace das circunstâncias, e altruísmo que é falso se não se apóia em fundamental pureza interna; ela os vai sagrar profetas e heróis, e quaisquer que tivessem
sido suas fraquezas humanas, embora tantos dos nossos contemporâneos, que
parecem fortes, poderosos e eternos (e alguma missão estarão cumprindo), se
mostrem menos interessados em realizar os que chamam Mestres do que em
imprimir-lhes os retratos em notas de banco. O Portugal que Sérgio sonhou dará certo, e ainda mais amplo será, embora por caminhos que se afiguram errados
ou diferentes dos que ele próprio tomaria; ao contrário de outros países em que
tudo dará errado pelos caminhos que se aplaudem como certos.
Notas
1 Devido a possível erro de editoração, quando da publicação deste artigo no JL, sugerimos ao leitor que, no
lugar de “não que a base vital de uma economia justa”, leia: “sobre a base vital de uma economia justa”. [N.O.]
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RESENHAS
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Romana Valente Pinho
O Essencial sobre Agostinho da Silva
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. 95 p.
&
Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. 476 p.
Visão analítica e plural sobre o
pensamento de Agostinho da Silva
1. Introdução
Romana Valente é autora dos dois estudos biográficos e teóricos mais
completos até hoje publicados sobre a totalidade do pensamento de Agostinho
da Silva: O Essencial sobre Agostinho da Silva, e Religião e Metafísica no Pensar
de Agostinho da Silva, ambos publicados em 2006. Com efeito, do seu conteú­
do ressalta menos o encontro entre as ideias próprias e a obra de Agostinho
da Silva e mais um escrúpulo de obediência ao conteúdo específico dos textos
deste filósofo. Muito mais bem informados dos que as três biografias pioneiras
de Artur Manso,1 ambos os livros de Romana Valente Pinho consolidam uma
visão plural e analítica da obra de Agostinho da Silva, divorciando-se assim,
através de uma perspectiva multidimensional do seu pensamento, das visões
pedagógica (Maria Helena Briosa e Mota e Margarida Larcher Santos Carvalho),2 culturalista (Renato Epifânio),3 espiritualista (Paulo Borges),4 racionalista (João Maria de Freitas Branco),5 católica (Maria Teresa Castro),6 esotérica
(Elizabete de Almeida Ellys)7 e Sapiencial (José Florido),8 em que se divide
actualmente a Fase Analítica da recepção da obra de Agostinho da Silva.9
Se em O Essencial… a autora espelha nos diversos capítulos a pluridimensionalidade da vida e obra de Agostinho da Silva, no segundo livro, a
sua tese de mestrado, explorando do mesmo modo a totalidade das vertentes culturais, pedagógicas, existenciais, filosóficas e religiosas de Agostinho da
Silva, subordina-as, porém, a uma linha única, considerada, no seguimento
do pensamento do mentor da tese, Paulo Borges, a bissectriz fundante do
410
pensamento de Agostinho da Silva – o sentido de espiritualidade, postulado e
demonstrado como sumo vector do seu pensamento: “O objectivo maior da
obra agostiniana é a espiritualidade, a saber, a religião e a metafísica.”10
2. O Essencial sobre Agostinho da Silva
Com efeito, sem perder nunca o fito da espiritualidade como sentido
último, a autora demarca claramente na “Introdução” a O Essencial…, e em
harmonia com o livro maior, a visão pluridimensional apresentada: “… o pensamento e a obra de Agostinho da Silva não se circunscrevem somente a uma
ou outra orientação. Sendo assim, salientaremos a pluridimensionalidade da
sua intervenção cultural, na medida em que abordarmos as vertentes sociopedagógica, ético-política e filosófico-religiosa como fundos estruturais de
toda a sua especulação e acção. Na verdade, se quisermos definir, em essência,
a participação agostiniana no século XX português e brasileiro, teremos que
assumir inapelavelmente a sua multiplicidade. Porventura, essa é a sua maior
essência.”11 Neste sentido, Romana Valente Pinho realça os estudos de filologia
clássica do estudante e doutorado Agostinho da Silva, bem como, num segundo momento, a vinculação deste autor, menos ao ideário político da revista
oposicionista ao Estado Novo, Seara Nova, e mais ao ideário pedagógico de
António Sérgio, evidenciando a faceta de “educador” de Agostinho da Silva
entre o final da década de 20 e o ano de 1944, data da sua partida para o Brasil.
Assim, Agostinho da Silva, na esteira de Sérgio, teria sido um dos apóstolos
da Escola Nova em Portugal. Porém, enquanto Sérgio submete a sua teoria
educativa ao primado da razão, fundamento filosófico da organização democrática da sociedade, Agostinho da Silva, de mente religiosa, transcende este
primado da razão analítica clara e distinta, fundamentando o seu apostolado
cívico, cultural e pedagógico num ideal religioso comunitário, tendo como
alicerce, primeiro, os conceitos helénicos de Verdade e Beleza, e, depois, o conceito-sentimento do Amor cristão, remissor da Dor, do Pecado e da Morte.
O Cristianismo (1942) e Doutrina Cristã (1943), opúsculos de Agostinho da
Silva, enfatizam a vertente espiritualista do pensamento de Agostinho da Silva,
inexistente em Sérgio senão como ideal laico ou civil. Como Romana Valente
Pinho sublinha, o que em Sérgio se trata de uma questão meramente social,
em Agostinho torna-se uma questão espiritual: “Aquilo que, antes, e primacialmente, era uma questão social, passa (…) a ser religiosa e espiritual.”12
Integrando o pensamento de Agostinho da Silva nos traços fundos da
cultura portuguesa, Romana Valente Pinho evidencia que a leitura deste, emRevista Convergência Lusíada, 23 – 2007
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bora se encontre no estrangeiro e critique a política portuguesa do Estado Novo, é oposta à “postura ‘estrangeirista’” (p. 49). Neste aspecto, realça a nova visão historiográfica de Agostinho da Silva, meditada no Brasil e vazada em dois
livros dos finais da década de 50: Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa e
Um Fernando Pessoa. Nestes, emerge o privilégio atribuído a um Portugal medieval e católico enquanto sociedade comunitária, gregária, descentralizada,
municipalista, simbolizada não já pelo “Reino de Deus” na Terra em torno de
Cristo, mas em torno do Espírito de Deus ou do Espírito Santo representado
pela coroação do menino nas festas do Espírito Santo da Rainha Santa Isabel.
Porém, esta vertente espiritual de Agostinho da Silva, coberta de teses “teológico-filosóficas” (p. 54) não deixa de possuir igualmente um vector político: “O
Reino do Espírito Santo é também a vitória da luta contra a fome, da melhoria
das condições de vida, do fim do capitalismo, da igualdade social, económica e
cultural para todos os homens. A bem da verdade, quando o Reino do Espírito
Santo se tornar uma realidade objectiva, os problemas da sociedade desigual e
desequilibrada terão a sua solução, tão simplesmente porque os bens pertencerão cooperativa e comunitariamente a todos. Não haverá lugar para injustiças sociais, todos terão o que comer e as prisões serão desnecessárias.”13
Como Romana Valente Pinho demonstra, vinculando multidimensional e analiticamente a teoria histórica, cultural, social e política às ideias
religiosas de Agostinho da Silva, a partir da década de 50 todo o pensamento
deste autor se subordina à sua concepção de sagrado como “Deus pentecostal”
(p. 57): “A experiência do Espírito é a vivência do ecumenismo. No pensamento de George Agostinho da Silva, a doutrina ecuménica é uma filosofia redentora, salvífica e unificadora: no Reino do Espírito Santo, todos os seres estão
mais próximos da sua essência. Afinal, todos se reconhecem ontologicamente
equivalentes, na medida em que, para além de assumirem a sua individuação,
reconhecem no outro a mesmidade que os compõe. Nesse processo dá-se um
acréscimo de ser e de servir. Cada ser dá ao outro aquilo que é e que tem.”14
A assunção de um pensamento teológico original, totalmente heterodoxo às instituições da Igreja Católica, embora firmado na tradição desta,
afasta Agostinho da Silva tanto da tradição estrangeirada portuguesa quanto
do seu antigo mestre António Sérgio, quanto, ainda, do rumo politicamente
nacionalista que nas décadas de 50 e 60 percorria a denominada “Filosofia
Portuguesa” de Álvaro Ribeiro e António Quadros. “Monista e ecuménica”
(p. 81), a doutrina sobre Deus de Agostinho da Silva recusa a existência de um
Deus absoluto, transcendente ao modo católico, ou imanente ao modo espinosista, afirmando a existência de uma divindade fazendo-se fazendo o mundo,
Visão analítica e plural sobre o pensamento de Agostinho da Silva
MIiguel Real
412
a história e o homem individual segundo a absoluteidade de ser tudo para se
realizar como nada, despindo assim as antigas características de omnipotência
e omnisciência e afirmando-se, essencialmente, enquanto Espírito Santo, como “imprevisível”. No final do seu livro mais pequeno, Romana Valente Pinho
chama de novo a atenção para a característica de “pluridimensionalidade” da
obra e da vida de Agostinho da Silva: “Em jeito de conclusão, diremos que
Agostinho da Silva, no essencial, é um ser da pluridimensionalidade. Não só
porque a sua obra ousa convocar a diversidade temática, mas também porque
no seio de cada tematização busca o verso, o reverso e o transverso. Ousadia e
busca que, de forma análoga, exercitou na sua própria vida.”15
3. Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva
Em Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, o mais completo livro até hoje publicado sobre a obra deste filósofo e prolongando a hermenêutica plural de O Essencial…, Romana Valente Pinho integra o conjunto
da pluralidade das vertentes do pensamento de Agostinho da Silva na dimensão mais abrangente e iluminante da espiritualidade: “A existir uma dimensão
hermenêutica preferencial no pensar de Agostinho, ela poder-se-á caracterizar
de contornos metafísico-religiosos, tão-só porque, quando todas as dimensões
são confront