Drogas e antropologia Requiem para um sonho
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Drogas e antropologia Requiem para um sonho
Das linhas tênues do que é sonho e pode ser pesadelo Rosamaria Carneiro Universidade de Brasília - UnB - Requiem para o sonho como ponto de partida Hoje tenho por tarefa comentar ou, no limite, problematizar algumas questões, a partir da obra cinematográfica do diretor americano Darren Aronofsky, Requiem para um sonho (2000). Estou certa de que somente posso fazê-lo a partir de meu lugar de fala, a partir da antropologia e, mais especificamente, da antropologia urbana e da antropologia da saúde. Dessa maneira, partirei do local, de exemplos etnográficos e de situações vividas na atualidade, tendo, no entanto, por pano de fundo o uso das drogas e suas possíveis relações com os processos de bem-estar e de adoecimento. Sem deixar, no entanto, de tematizar, simultaneamente, políticas públicas e ações de Estado que visam tanto o denominado “combate às drogas” quanto a promoção da saúde em nosso país. Para começar, primeiro, é preciso recuperar a trama e as particularidades dos personagens do filme. Pode-se dizer que a história gira ao redor de uma tríade de personagens, seus sonhos e mazelas. De um lado, temos Sarah Goldfarb, uma senhora na casa dos 65/70 anos, viúva, viciada em TV e em comida. De outro, temos seu filho, Harry Goldfarb, um jovem que deseja vencer na vida de maneira rápida, que recorre aos bens da mãe para sustentar o seu vício em drogas ilícitas e que tem sérios problemas de relacionamento com sua mãe. Harry tem um amigo, Ty, também usuário de drogas, que se torna seu sócio numa tentativa de ascensão social. A outra personagem é Marion, uma jovem bonita, mas frustrada, por não ter sua grife de roupas, e que, por conta do uso de drogas, perdeu o pouco contato que tinha com seus pais, que, ao que parece não lhe davam atenção e amor, o que também parece contribuir para o seu envolvimento com os psicoativos. Três personagens principais: Sara, Harry e Marion, três destinos cruzados e entrecruzados, cujos sonhos e pesadelos acabam por coincidir, mas também distanciá-los. 1 Sara quer emagrecer para poder usar o saudoso vestido vermelho que usou na festa de segundo grau de seu filho Harry, ocasião em que seu marido ainda estava vivo, em que tinha obrigações e quando ainda tinha quem cuidar. Como a obra aborda a temática dos muitos vícios da sociedade contemporânea, Sara é a personagem viciada em televisão, em um programa reality show, e em comida. Logo nas primeiras cenas, o modo como acaricia a caixa de bombons denota sua fixação por comida, como se a comida também tivesse se tornado sua principal companheira. Para fugir da solidão, Sara come e ingere, nessa cena em especial, chocolate, substância reconhecidamente estimulante, mas também controladora da ansiedade por gerar uma sensação de bem-estar. Um dia, Sara recebe um telefonema da produção de seu programa predileto e entende ter sido convidada a participar do mesmo e, então, começa a sua saga para perder peso. Uma viagem que a leva ao limite do que é considerado “sanidade”. Enquanto isso, Harry e Ty estão muito ocupados, adulterando uma substância entorpecente comercializada em New York, local em que se passa a película. A ideia é adulterar para vender e ganhar dinheiro rápido, para “ser alguém” e não um “pobre sempre doidão”, mas também para ter o que consumir. O negócio começa bem, mas a medida que se instala uma crise no comércio local das drogas, os planos degringolam, assim como a ânsia por “aplicar-se” (termo usado pelos personagens para referir-se ao uso da heroína injetável). Ty é preso, a dupla gasta todo o dinheiro com a fiança, e se inicia uma corrida louca pela matéria prima da droga que vendiam, algo que os leva até a Flórida. Marion, uma garota problemática e carente afetivamente, envolve-se cada vez mais com Harry, na crença de que, em breve, abrirão uma grife de roupas de sua autoria. Passa o tempo todo desenhando manequins, entre uma ou outra aplicação. Essas aplicações, quando diminuem, fazem com ofereça seu corpo em troca da droga, momento em que os desenhos e os sonhos desaparecem. No ápice da crise, em conluio com o namorado, ainda que de modo sofrido, decide vender-se ao antigo psicanalista que a desejava, em nome da obtenção de dois mil dólares, quantia necessária para a compra de matéria-prima do negócio do trio usuário e comerciante de drogas. 2 As histórias aparecem conectadas, mas ao mesmo tempo desconectadas, quando cada personagem experimenta seus sonhos e angustias de maneira separada. O filme acontece separado em atos que seguem a cronologia das estações do ano. Começa no verão, quando surgem as ideias de ganhar dinheiro e da dieta para a televisão, período do calor e do auge dos personagens. Passa para Outono, quando o emagrecimento de Sara torna-se um vicio em anfetaminas e quando o negócio de Harry e Ty começa a dar errado. E, então, culmina no inverno, quando Sara perde o controle e alucina constantemente; quando Harry e Ty são presos em outra cidade, o primeiro tendo o seu braço amputado numa cena horripilante e o segundo acaba preso experimentando o pesadelo da abstinência da droga e, por fim, quando Marion participa de um show erótico com outra garota, para que pudesse obter, em contrapartida, o dinheiro para comprar heroína. Essa sequencia ilustra o ápice e queda gradativa dos sonhos e dos personagens, tanto no que diz respeito à sua noção de pessoa, quanto à sua expressão de corporalidade. Da estação quente, alegre e produtiva, caminham para a queda das folhas e dos sonhos, chegando ao frio congelante e limite do abandono de si mesmos. Se essa parece ser a narrativa do diretor, esteticamente falando, vem pautada por uma marca bastante própria de seu criador, um conjunto de cenas curtas que se repetem todo o tempo durante o movimento da obra. Em Requiem para um sonho, o espectador, quando menos percebe, se vê diante daquele conjunto de cenas que sugerem a sensação imediata do uso da heroína e de outras drogas. Essas cenas são o dólar, a cocaína sendo aspirada com o dinheiro, uma gama de células em movimento, como num microscópio de biologia e, assim, sucessivamente, até a pupila dilata e a sensação de bem-estar dos personagens. Essas cenas, rápidas e com uma música frenética, terminam com a nítida sensação de alivio por parte dos personagens, quando depois de usarem o psicoativo se veem relaxados e tranquilos. Esse recurso audiovisual, pois é acompanhado de uma trilha sonora, parece ser marca registrada de Aronofsky, um diretor relativamente jovem e reconhecido por películas que abordam os limites da existência humana. 3 Para aqueles que não sabem, o recente filme “Cisne Negro” (2010), com a famosa Natalie Portman, também é fruto de sua direção. Assim como “Pi” (1988), seu primeiro filme, Cisne Negro e Requiem para um sonho se passam em NY e exploram dilemas psicológicos ou situações limite a que são expostos os personagens, mas também os seres humanos de qualquer grande cidade contemporânea, seja São Paulo, Pequim ou Londres. Cisne Negro também trata da ânsia pela concretude de um sonho, o da bailarina Nina, que precisa estar magra, ser aplicada, precisa em seus movimentos, mas também sensual, para conquistar o papel de protagonista na peça de mesmo nome da película. Nesse percurso, Nina, assim como Harry, Sara e Marion, chega às raias do que é considerado loucura e à momentos em que, em tese, experimentamos uma ruptura com a nossa ideia de realidade. Nina, assim como Harry e Sara, vê pessoas e coisas que não existem e se vê dominada por suas alucinações, com a diferença de que não usa drogas que pudessem contribuir para tanto. O seu desequilíbrio brota do que tem de mais interno e de uma cobrança demasiadamente excessiva para ser a melhor e obter aprovação dos demais, como também acontece com Sara que deseja que “todos gostem” dela, a reconheçam e a achem engraçada, com Ty, “que quer ser alguém” e com Marion que ser “a mais bonita”. Dessa maneira, recuperar as características da direção de Darren Aronofsky, nos ajuda, no limite, a mapear seu foco de interesse e percepção de determinados problemas sociais. Parece ser consenso, por exemplo, que sua obra está destinada a explorar dramas existenciais e psicológicos decorrentes das muitas pressões sociais experimentadas por homens e mulheres na modernidade e contemporaneidade. Por isso, para muitos, os filmes de Aronofsky são “pesados” e “agressivos”. No caso de Requiem, em especial, o filme tanto foi ovacionado, como também bastante criticado por ter um tom bastante catequizador e fatalista quando ao uso das drogas. Nesse sentido, a obra foi considerada proibicionista e moralista, como se procurasse apontar a todo o tempo para as consequências irreversíveis do uso das drogas. Esse é um dos pontos aos quais pretendo aqui me dedicar a pensar. 4 Feitas essas breves considerações, muito mais da ordem da apresentação da obra, gostaria de trazer à tona algumas de minhas impressões pessoais ao rever a película recentemente. Para, depois e em seguida, tentar explorar pontos que contornam a saúde e o urbano de modo mais sistematizado. - Do choque cultural entre a obra e o expectador: des(encontro) de mundos Ir ao cinema ou assistir a um filme no aconchego do lar não deixa de ser uma situação de conversa, um encontro e um diálogo. É uma forma de comunicação, ainda que não possamos questionar ou encontrarmo-nos diretamente com o diretor, roteirista ou produtor da película. E o é porque, por parte do criador da obra, existe uma intenção ou um propósito e, da parte daquele que assiste, uma interpretação e reflexão a partir de sua grade de leitura. Encontros e desencontros de percepções acontecem e o cinema, assim, mobiliza enquanto linguagem. Talvez por isso cursos, aulas e seminários recorram ao cinema como modo de comunicação cada dia mais em nossa atualidade. Já contamos com o cinema “dogma” e hoje contamos com o dito cinema alternativo ou cult, assim como também com documentários, obras mais conhecidas por sua crítica a algo corrente ou recuperação histórica de eventos importantes. Há uma gama de obras, por isso não vale aqui citá-las, pois restringiria o seu universo de atuação. Se é uma comunicação, atinge, no entanto, a cada um de maneiras diferentes, conforme também a grade de leitura daquele que assiste. Pautando-me por essa perspectiva, digo que a obra de Darren Aronofosky tocou-me particularmente quanto à trajetória opressiva e desenfreada de Sara, personagem que recorre às drogas lícitas e muitas vezes chanceladas pelo conhecimento biomédico, na busca de seu eu passado, com o qual se identificava e no qual se reconhecia muito mais do que o da época da obra, uma mulher já idosa e perdida quanto aos seus propósitos em relação à vida. Talvez tenha me tocado mais por conta de meu universo de pesquisa e atuação profissional, mas talvez principalmente por um processo de leitura pessoal 5 do que Michel Foucault denominou de “biopolítica”, Em defesa da sociedade (2002), ao pensar sobre o controle dos corpos a partir do século 19. Voltarei a esse ponto mais adiante. Se meu estranhamento, como costumamos dizer na Antropologia, se deu com relação a Sara, também ocorrera quando, na manhã de domingo, ao passar por uma banca de jornais, de relance, mas influenciada pela fala de hoje, vi a chamada no Jornal de Brasília, “O paraíso das drogas. Ecstasy, LSD, maconha, cocaína e outras são vendidos livremente em baladas da cidade” (Edição de 25. 11.2012). Por conta disso, duas serão as frentes de analise teórica dessa minha fala de hoje, a saber, o uso de medicamentos na contemporaneidade para dietas e falta de libido sexual e o controle dos corpos e da saúde e, por outro lado, a busca por estados alterados de consciência na contemporaneidade, nesse início de século 21, era de tanto controle tecnológico. De fato, outras tantas poderiam ser as minhas entradas, como o tratamento dispensado aos usuários de crack em cidades como São Paulo, por exemplo, quando a questão torna-se questão de polícia, internação compulsória e refém do mercado da especulação imobiliária. Essas, no entanto, serão reflexões que ficarão para o futuro, muito embora, me interessem sobremaneira e mereçam grande atenção. - Pluralidade de usos e de drogas a partir de insights cinematográficos Segundo Gilberto Velho, o papel da boa antropologia é trabalhar a partir da noção de cultura que: “valoriza a rede de significados, a construção social da realidade, a identificação do arbitrário e a percepção das diferenças de visão de mundo e estilo de vida. Isso tem sido fundamental, para buscar não só as diferenças entre as sociedades, mas, cada vez mais, nos nossos termos, a heterogeneidade interna das sociedades complexas e contemporâneas como a brasileira. Essa reflexão, de natureza antropológica, tem servido de base para a sustentação 6 contra a tentativa de impor modelos únicos e homogeneizadores de condutas e atitudes” (2003, p.89) Desse modo, partirei da premissa de que estudar drogas é como estudar a sociedade, na medida em que muitas são as drogas e diferentes são os seus usos no decorrer da história, entre e intra-culturas. Nesse sentido, refletir sobre o uso das drogas é refletir, sobretudo, sobre o imaginário social de uma determinada sociedade, discursos de saber e de poder e, principalmente, sobre as particularidades de cada caso, seja diferente em termos de classe social, do espaço urbano ocupado, de gênero, de geração ou qualquer outro marcador analítico. Dessa maneira, partindo do também anunciado por Velho, porém, em outra ocasião (2008), que o consumo de drogas vem atrelado à busca de estados alterados de consciência, seria, então, preciso, primeiro, entender que essa busca é algo da ordem quase do universal, na medida em que mediante rituais, música ou expressões de espiritualidades diversas, ao longo da história e muitas vezes, buscou-se e ainda busca-se uma alteração da consciência. Diante disso, na leitura do antropólogo, nas sociedades contemporâneas, muitas podem ser nossas entradas de debate da questão, na medida em que poderíamos questionar “que grupos utilizam, como utilizam, como veem o uso da droga, como negociam o uso da droga com outros grupos” (Velho, 2008). E, assim, como se dá esse grande drama do conflito permanente ligado à questão do uso e consumo de drogas. Gilberto Velho, no clássico “Nobres e Anjos. Um estudo de tóxicos e hierarquias” (1998), trabalhou com grupos de camadas médias que nos idos de 1970 usavam drogas com o intuito de autoaperfeiçoamento e de autodescoberta. Como salienta o autor, “você tinha a possibilidade de, não só pela maconha, mas, sobretudo, pelo ácido, através das famosas “viagens”, descobrir-se; alguma coisa ligada, ou paralela, ou suplementar, à psicanálise” (2008). O antropólogo trabalhou com grupos de artistas boêmios e com grupos de surfistas, ambos cariocas e usuários de drogas. Exatamente por serem usuários e também em razão de outras particularidades eram considerados desviantes da sociedade como um todo. Porém, como usuários, eram diferentes, já que, antes, é preciso analisar como e com que finalidade as drogas são usadas. Na época de sua pesquisa, a questão do uso de drogas vinham pautada pela ideia de contra7 cultura, do movimento hippie e da noção de que era preciso transgredir a disciplina moralizante do Estado. Dessa maneira, havia uma certa ideologia e ethos no próprio uso. Mas essa era a marca dos anos de 1970 e entre camadas médicas cariocas. Sabe-se que, hoje, na periferia, o uso de drogas envolve violência, guerra entre quadrilhas, tráfico e infâncias roubadas. Na periferia, a droga hoje vem casada com o mercado e com a arma, de modo bem diferente da situação analisada por Velho. E esse é um aspecto que só ressalta a assertiva de que muitos são os modos de se usar drogas, desde rituais religiosos até o uso do crack nas ruas de qualquer grande cidade brasileira. E esse é o trabalho da antropologia. Tomado enquanto uma espécie de referência nesse campo, o antropólogo foi perguntado sobre a situação atual dos jovens de classe média quanto ao uso corrente de drogas e com relação a isso respondeu recentemente: “Agora, essa coisa do tipo Rave, as novas químicas, outros psicoativos poderosos que existem por aí, festas de embalo, o que é interessante para mim é perguntar: a que tipo de ethos estão associados? Uma questão chave para nós antropólogos, e sociólogos também, evidentemente, é a discussão sobre individualismo: que projetos estão em jogo? Que tipo de projeto associa-se a esse estilo de vida, é um hedonismo, é um narcisismo, ou não, ou está perfeitamente associado a um individualismo produtivista, pessoas que trabalham, ganham dinheiro, estudam, fazem tese e também usam determinadas drogas em determinados horários?” (Velho, 20008) Para além disso, pede atenção também para a relação que pode haver entre o uso de drogas e o corpo, as sensações corpóreas, com o psiquismo e com a própria subjetividade na atualidade. Poderíamos pensar também que a questão pode envolver um jogo com o risco, um flerte com a incerteza e com o que é hoje controlado, pois vivemos num mundo de aparente liberdade, mas, a um só tempo, de muito controle. 8 Inúmeros são os mecanismos de controle atuais, desde a solicitação do CPF em uma nota fiscal, até a necessidade de documentos, de ter de apresentar bolsas e carteiras ao entrar em um banco ou em uma biblioteca. Gilles Deleuze, um filósofo francês, já disse que vivíamos a sociedade disciplinar da qual nos falava Michel Focault, mas que hoje, sem nos darmos conta, vivemos a “sociedade de controle” (2002), na qual somos controlados e controlamos os outros, analisando comportamentos e promovendo condutas ou moralidades que norteiam a nossa existência. O corpo magro e bonito poderia ser uma dessas modalidades de controle, quando em qualquer programa de televisão temos noticia de como emagrecer, o que comer, como manter peso ou controlar colesterol. Há uma ideia de corpo saudável, o corpo magro e que come o alimento comercializado como saudável. E isso, por acaso, não seria uma forma de controle? Programas como Bem-estar ou Globo Repórter da Rede Globo cotidianamente nos ensinam como comer, como viver e como podemos nos sentir bem. Na “sociedade de controle” a aparência é de liberdade, diferente da disciplinar, dos séculos 18 e 19, quando prisões, fábricas e escolas moldavam comportamentos em busca de proveito econômico e manutenção da ordem. Se essa pode ser uma leitura, pergunto-lhes: o uso de drogas por jovens de classe média ou até mesmo baixa não poderia ser lido como uma pausa para tanto controle? Como um momento de descontrole desejado e perseguido? Para além disso, sabe-se que entre grupos pode haver modos e dosagens de drogas a serem usadas de modo a seguir com a vida sem maiores problemas. Essa posologia sugere que a droga poderia ser administrada pelo próprio usuário. É certo que a filme nos mostra situações limite, nas quais os personagens se perdem na adicção, mas essa seria a única relação possível com as drogas? Gilberto Velho provavelmente diria que não. O que me parece importante é partir da premissa de que as drogas sempre envolvem, de algum modo, uma ideia, antes de mais nada, moral. Em Requiem para um sonho o cenário é outro. Estamos diante de dois jovens de periferia e uma moça de classe social abastada. Esses universos encontram-se, há o desejo de fuga da realidade (dura para 9 os três, no sentido emocional), mas também de crescimento econômico por parte de Harry e Ty. É lógico que não nos mesmos moldes do que hoje os jovens vivem nas favelas brasileiras, pois, afinal, o local onde se passa a história é outro - a sociedade norte-americana-, mas, ainda assim, conhecemos um pouco dos conflitos armados, por mercado e território, também lá existentes. Chama-me a atenção, no entanto, os lampejos da mãe de Ty esperando que o filho seja alguém, da insegurança de Marion quanto ao fato de ser amada e do desejo de Harry de ser alguém na vida. Existem marcas e traumas, não se trata de jovens como os analisados por Velho, de camadas médias que buscavam autodescoberta, mas de jovens perdidos e desiludidos em suas trajetórias afetivas, que, desencontrados, procuraram nos estados alterado de consciência uma outra existência. E que nessa viagem perderam o caminho de volta. Desse modo, todo o meu esforço aqui é desnaturalizar o uso de drogas, pedindo atenção para a premissa de que é preciso, antes, perceber os modos plurais de uso de psicoativos, em seus contextos e particularidades, sem instituir a droga como algo único e absoluto. A grande questão é não nos concentrarmos nas drogas, mas na visão de mundo dos usuários e no que esse uso pode nos dizer da sociedade em que as drogas são usadas. O jogo com o risco é muito importante para os três personagens, o flerte com a vida e morte, chegar a uma situação limite e transgredir. E assim a questão parece ser: e por que razão? Disso tudo, uma coisa é certa: as linhas que separam o sonho da transgressão do pesadelo da adicção destrutiva é algo muito tênue e que, por isso, nem sempre pode ser controlado pelo usuário, como sugere-nos a obra de Darren Aronofosky. Dizer por que aqueles três jovens usavam drogas não é aqui minha tarefa, mas somente problematizar em que medida a sociedade pode contribuir para o uso, por quais razões e quais poderiam ser as consequências dessas práticas. E, antes mais nada, salientar que o considerado droga entre alguns, para outros, trata-se de uma substância sagrada que pode encaminhar um contato divino ou pode advir de uma dança ou qualquer outra técnica corporal. Deixar de reconhecer essa pluralidade nos encaminharia a uma postura etnocêntrica e nos afastaria das relações que podem existir entre drogas e culturas, sempre no plural. 10 Se isso acontece com relação aos jovens, com relação a Sara gostaria de explorar uma outra dimensão: a do controle dos corpos por uma gama de saberes/poderes operantes em nossa realidade. Por um lado, veicula-se que o corpo belo esteticamente é o corpo esbelto. Os padrões de beleza, como sabemos, também são culturais, mas os de já há algum tempo pautam o corpo magro como o corpo desejado e saudável. Em nome dessa magreza cresce a procura por medicamentos que não deixam de ser drogas, pois também são substâncias psicoativas, que alteram a consciência, como é o caso da anfetamina, entre outros. A diferença, no entanto, é que, primeiro, tais drogas são valorizadas na atualidade e porque, em segundo lugar, em que pese o conhecimento do risco de seu uso, há uma minimização dos males em razão do acompanhamento de um especialista – no caso, o do médico – que preverá as consequências de sua administração e controlará a posologia. No caso de Sara, isso não acontece exatamente dessa maneira. E assim como os três jovens, que eram mais autodidatas no manejo das drogas, a viúva, mesmo acompanhada do médico, termina viciada. Essas são as drogas licitas, das quais falamos pouco, em razão de circularem pela sociedade e alimentarem o mercado e o Estado. Junto das anfetaminas, temos os anabolizantes, os que reacendem a libido e, agora, os recentes medicamentos para crianças muito agitadas e que precisam de concentração. Essa gama de pílulas compõe o cenário do que pode-se denominar de medicalização da sociedade. Essa sociedade medicalizada carrega moralidades e discursos de saber/poder que produzem comportamentos e mantem a organização do status quo, como já bem nos ensinou o filósofo Michel Foucault. O processo de medicalização não deixa de ser também uma disciplinarização e faceta da “sociedade de controle”, ambas conjuntamente, quando, pensamos ao fundo, que objetivo ainda é corpos dóceis e produtivos, como apontado pelo autor com relação ao século 19. Esse é o poder invisível ou velado, o da “biopolítica”, que produz atitudes e se vale de um mecanismo de regimes de verdade a serem observados pela sociedade. Nas palavras de Foucault, a “biopolítica” é o controle do corpo de muitas cabeças, do corpo da população. Estar magro, ser produtivo, ter libido sexual e ter concentração seriam, então, exemplos do que poderia ser esse controle social. Controle esse, que parte, de saída, da ideia de que o ser humano é incapaz de cuidar de si mesmo. Daí a impossibilidade do cuidado de si, tão reconhecida entre os gregos, e ausente nos dias de hoje. 11 Tanto parece ser dessa maneira, refiro-me à medicalização da sociedade, que uma farmácia hoje mais se parece com um supermercado, onde as pessoas adquirem remédios milagrosos para muitos males, algumas vezes com receitas e outras sem receitas. Há quem interessa essa comercialização? Essa é a grande questão a ser respondida. Ou então, quem dissemina a necessidade de tais medicamentos? Posto dessa maneira, não estaríamos, nós, igualmente expostos à adicção e perda de controle total de nossas vidas, assim como ocorrera com os personagens Harry, Ty e Marion? Leonardo Mota, da Universidade Federal do Ceará, em “Drogas e Estigmas”, bem pontua que o Brasil, por exemplo, é o país recordista mundial no consumo de álcool e que essa substância é uma das maiores responsáveis pelas altas taxas de mortalidade. Contudo, mesmo assim, o álcool circula livremente, desde que pague os impostos necessários. Pergunto-me: E essas substâncias que alteram nossa consciência, também não são drogas? E são usadas em que situações, por que tipos de pessoas, oscilam em razão da classe social, do gênero e da idade? Estejam certos de que os usos são muitos e diferentes, até mesmo em razão do clima de determinada localidade. Sara está em busca de auto-estima, carrega consigo que é incapaz de emagrecer ou de cuidar-se como necessário, pretende recuperar um tempo perdido e procura o caminho rápido de adequação a um modelo de felicidade. Como resultado, resvala para o campo da saúde mental e termina atada a uma cama, tomando os antigos eletrochoques. Triste fim, para uma mulher cujo sonho era tão somente voltar a usar o antigo vestido vermelho. Tudo em nome de um modelo de existência e da partilha de determinados regimes de verdade quanto à felicidade. Diante do exposto, é inegável que os usos das drogas devem ser tratados como questão de saúde pública, principalmente, em situações limite, como a dos usuários de crack que vivem na rua ou de usuários de camadas populares, perdidos entre as balas das guerrilhas do tráfico. Na periferia, droga aparece como sinônimo de violência, por isso merece atenção. De outro lado, porém, um outro aspecto é o veiculado pelo jornal local, que parece ir na esteira do uso de drogas entre as camadas médias de Brasília. Esses jovens consumidores mudaram, não são mais os críticos da contracultura dos anos de 1970. E então, 12 usam droga por que razões? Por conta de um individualismo, por querem sentir seus corpos em alfa, em transe, para fugir de um vazio ou puramente por uma ideia de hedonismo que vem de fora e os molda? De fato, muitas podem ser as respostas. Talvez inesgotáveis. Mas, e nesse caso, também é uma questão de saúde pública? Tendo a dizer que sim, na medida em que pode causar danos irreversíveis às pessoas, tanto as que consomem quanto as que convivem. No entanto, para pensar em saúde pública ou saúde coletiva, antes de mais nada, é preciso entender os usos, suas diferenças e impactos, pois, como vimos, muitas são as posologias e as razões do uso. De mesmo modo, é também questão de saúde pública o uso indiscriminado de medicamentos que somente engordam as contas de alguns e que, cada dia mais, aumentam no Brasil. Esse sim é um braço importante a ser observado pelo Estado e campanhas de saúde, a saber, a relação entre o mercado e as sociedades medicalizadas. Dessa forma, se entendo que saúde pública de qualidade, enquanto direito do cidadão e dever do Estado, deve vir balizada pela premissa da integralidade e, enquanto tal, pelas histórias e contextos de vida das pessoas a serem assistidas; não se pode, simplesmente, tornar o uso de crack uma questão de internação compulsória, como ora tem sido proposto, para, na verdade, limparmos as ruas e nos vermos livres daqueles que ali vivem em razão da pobreza extrema, como aconteceu na crackolândia paulista. Essa não é uma política de saúde pública, é de policia. Tornar o uso das drogas uma questão de internamento, se fosse generalizada e levada a sério, sem diferença de classe social, significaria, então, internar grande parte da população, pois todos de alguma maneira as consomem, seja com remédio para emagrecer ou qualquer outro. É claro que as drogas têm um gradiente e que não são as mesmas ou equivalentes, mas, nesse caso, as práticas parecem ter alvo: os usuários pobres. E assim, pergunto-me: E os usuários que frequentam as festas na Asa Sul, como apontado no Jornal, para onde vão? Por isso, iniciei essa minha fala dizendo que o dito “mundo das drogas” é o mundo social, é a sociedade, em todas as suas tramas, diferenças e valores. É preciso falar em mundos das drogas e questionar como são percebidas em cada contexto. Sendo assim, prefiro, antes e muito mais, pensar sobre a pluralidade de usos, problematiza-los e refletir sobre suas particularidades e finalidades. Tudo isso sem 13 deixar de reconhecer a possibilidade de que fins tétricos como os de Harry, Ty, Marion e Sara possam ocorrer todos os dias e a todas as horas, em situações limite de fragilidade e desorganização psíquica. No limite, Requiem para um sonho é uma importante crítica aos usos indiscriminados de medicamentos na atualidade e uma pontapé inicial para pensarmos nas situações de abandono psíquico às quais pessoas de nosso cotidiano têm anunciado.... 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