Messianismo Político e sua Superação

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Messianismo Político e sua Superação
Messianismo Político e sua Superação:
Uma breve história do Superman.
Alexandre Linck Vargas
Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
RESUMO:
Este trabalho tem por pretensão ler um potencial espaço político e respectiva dimensão, sob as
noções políticas de Rancière e Sloterdijk, na personagem dos quadrinhos e cinema, Superman.
Procurando identificar, assim, a fulguração de um messianismo latente e os caminhos de sua
superação na política atual.
Palavras-chave: Política, Superman, Messianismo.
Ilustração 1: Primeira aparição do Superman.
Quando um homem de vestes excêntricas foi capaz de erguer um carro, a política
clássica vislumbrou a chegada de seu super-homem. Não era exatamente o ubersmensch
nietzscheano, aliás, estava principalmente – e ironicamente – situado em outro espaço de
2
ideias. Superman surgia na Action Comics número 1 em 1938, consolidando consigo um
formato que viria a repetir-se por décadas: o super-herói fantasiado publicado em revistas em
quadrinhos (comics), conquistando sua alforria dos suplementos dominicais dos jornais e
apostando numa nova indústria do imaginado. A primeira aparição deste até então
desconhecido Superman não poderia ser mais apropriada: com um colant azul, botas
vermelhas, portando uma capa também vermelha, trêmula ao vento, lhe conferindo elegância
e distinção, além de um símbolo marcante, um ‘S’ em seu peito robusto. O atlético homem de
queixo quadrado ergue um carro com os fortes punhos semi cerrados, a expressão austera,
forçando o veículo contra uma rocha, destruindo-o. As pessoas à volta correm perplexas.
Quem ler a trama da edição descobrirá tratar-se de bandidos, mas essa é uma impressão
posterior – o observador desavisado apenas verá na capa simples cidadãos apavorados com a
fulguração e ação deste impressionante Ser. Destaque para um sujeito caucasiano em primeiro
plano, de terno, correndo com as mãos na cabeça, olhos esbugalhados e boca retorcida, como
tentando assimilar aquilo que vê – ou viu, já que agora corre, virando as costas à ameaça do
improvável. Erguer um carro para um homem é de fato um feito impressionante, mas ainda
palpável, cognoscível – em outras palavras, um impossível compreensível, capaz de atribuir
uma dimensão. Tal dimensão, aqui também entendida como diâmetro, espaço ocupado,
associou alguns anos depois o super-heroísmo a um messianismo moral de forma
supostamente indubitável, principalmente a partir dos anos 1940 quando personagens como
Superman e Batman se desvencilharam de suas raízes “pulps” e imorais. Superman enquanto
imagem, antes configurada pelo horror, como na sua primeira aparição, irá aos poucos
fortalecer-se na boa-nova do messianismo. Talvez o filme de Superman, de Richard Donner,
em 1978, seja o ápice desta valoração ampliada e potencializada a um público de salas de
cinema, de longe muito mais vasto que o dos quadrinhos e receptivo a tal evangelho.
Uma pequena revisão dos eventos mais relevantes a esta ideia me parece inevitável:
no filme o planeta Krypton, uma utopia racionalista e higienizada, constituída de cristais
reluzentes, assiste seu último julgamento, conduzido por Jor-El, um importante políticocientista. É ele que decreta a pena que condena os três criminosos que teriam tentando usurpar
o poder, à Zona Fantasma, uma prisão dimensional onde os exilados permanecem presos
numa espécie de fina camada de vidro, flutuando eternamente para além dos confins do
espaço. Apesar de sua dedicação à Krypton e reputação, Jor-El é desacreditado por seus
colegas quando aponta para um iminente cataclisma natural planetário. Certo do evento, que
realmente começa a desflorar, Jor-El envia seu único filho, Kal-El, ao planeta Terra,
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dominado por seres aparentemente semelhantes, mas fisiologicamente distintos, inferiores – e
portanto, mesmo num local inóspito, seu filho lá teria grande chance de sobreviver. No
caminho à Terra, o bebê Kal-El em sua nave ícone no formato de estrela aprende por meio das
palavras ecoadas do pai, tudo sobre a cultura terrena. A nave-estrela ao adentrar a atmosfera,
se incendeia e ao cair na Terra, num campo de plantação no Kansas, EUA, exalta tamanha
explosão de luz que afeta o carro do casal Jonathan e Martha Kent, estagnando-os perto do
ponto de impacto, onde lá encontram um menino desprotegido, nu, erguendo-se de braços
abertos. Martha logo acolhe o garoto, mas Jonathan é relutante – a discussão prossegue com o
Sr. Kent fazendo reparos na parte de baixo do carro quando então o veículo perde seu apoio e
a fatalidade é abortada pela jovem criança que ergue o carro e salva o futuro pai da morte. Tal
demonstração parece então ser decisiva na mudança de opinião de Jonathan. O garoto é
batizado de Clark e cresce no seio cultural rural norte-americano – há uma bandeira dos EUA
hasteada e passarinhos cantarolantes presos em gaiolas. Na adolescência Clark precisa
esconder suas habilidades passando-se por um garoto frágil e incapaz enquanto meninos
supostamente mais fortes se exibem de suas façanhas no time de futebol americano,
conduzindo de forma intempestiva seus carros apinhados das meninas mais bonitas da cidade.
Clark está revoltado e extravasa suas grandes façanhas – utiliza-se de sua super-força
lançando uma bola de futebol para além da vista, da super-velocidade para correr mais rápido
que uma locomotiva, entre outras atividades pouco produtivas. Jonathan ao perceber a
vontade de afirmação do filho o repreende, por afirmar que o destino deste garoto das estrelas
está para além da auto-exibição. Após o diálogo o pai sofre um enfarte e morre. Na noite após
o enterro, os restos da nave-estrela parecem chamar por Clark que vai até sua direção e
encontra um cristal verde iluminado. Depois de muito refletir, na manhã seguinte, ele resolve
partir para o norte depois de uma conversa com a mãe, onde o tom circula sobre a necessidade
do jovem nunca esquecer toda a experiência humana terrena que o formou. A jornada do herói
continua: no ártico, no deserto de gelo do pólo norte, Clark passa mais uma provação.
Confuso, exausto moralmente, o jovem quer entender quem é e qual é o seu destino neste
planeta adotivo. Portando o luminoso cristal verde que o acompanha desde bebê, Clark, como
por intuição, o joga longe em determinada direção. O objeto então mergulha no gelo, na terra,
parecendo-a a fecundar e então uma sucessão de fenômenos ocorrem, erguendo por milagre
uma espécie de templo. Nesta então chamada Fortaleza da Solidão, Clark reencontra seu pai
biológico numa projeção interativa de perguntas e respostas, onde passa doze anos e, por fim,
compreende sua finalidade. A sequência termina com o jovem voando pela primeira vez com
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sua inconfundível vestimenta super-heróica e trilha sonora. A partir daí o filme segue a
fórmula repetida tantas vezes nos quadrinhos: Clark Kent se torna o atrapalhado e antiquado
jornalista do Planeta Diário alternando tal persona com sua identidade pública de Superman
na cidade de Metrópolis, local onde conhece as extremidades do amor e do ódio à espécie
humana – respectivamente na não muito politicamente correta Lois Lane e no vilão
trapaceiro, futuro arquiinimigo, Lex Luthor.
Apesar de praticamente todos estes elementos estarem presentes de formas parciais
ao longo das décadas nos quadrinhos de Superman, Donner sempre afirmou em diversas
entrevistas que a alusão a Cristo era um objetivo claro e já constitutivo da mitologia da
personagem, mesmo que não pensado originalmente. Jerry Siegel, judeu, co-criador do
Superman, já havia germinado uma série de dados judaico-cristãos embora não tivesse
desenvolvido-os plenamente. No filme eles se fazem apenas mais óbvios e decisivos.
Destaquemos os El que do hebreu significa Deus; a ideia do Pai que envia seu único filho para
salvar os homens, caído de uma estrela cadente, criado por uma família rural de poucas
posses; a mãe que não consumou o ato sexual para ter o salvador; a aparente imortalidade do
pai original que em uma de suas lições chega a tocar na palavra imortalidade e “suas bases em
fatos reais”1 ; um deserto, onde o messias na maturidade reencontra a fé em si mesmo e
compreende sua missão após uma série de provações, etc.
Ilustração 2: Superman, o Filme.
A ideia inicial de assombro em um homem erguer um carro em 1938 é convertida
num ato benevolente e salvador, altamente messiânico, em um bebê praticando o mesmo feito
em 1978 como seu primeiro ato super-heróico. Esta cena é emblemática para pensarmos não
só as mudanças pela qual a personagem Superman passa ao longo das décadas, como também
1
“…we shall examine the various concepts of immortality and their basis in actual fact.”
5
a imensa maioria dos super-heróis. Se os desenhos das capas das primeiras edições de
Superman, Batman e outros contemporâneos revelam seres agressivos, fortes, impávidos e,
por vezes, sombrios, nos anos 1940 eles se docilizam cada vez mais – muito em virtude de
uma busca cada vez maior de identificação com um público infanto-juvenil dependente do
aval do bom exemplo de moral e costumes do puritanismo norte-americano. Entender o
porquê dessa mudança em quarenta anos, fora do contexto meramente mercadológico, e sim
num sentido político, conseguindo ver suas ressonâncias, sua dimensão, é o cerne desta
resenha. Superman se faz Cristo, ou melhor, Jesus feito enquanto Messias encontra uma nova
atualização em Superman. Poder-se-ia dizer que Superman é um Cristo Messias mais
completo para as ansiedades políticas do século XX do que Jesus?
Aqui cabe um intervalo na forma de uma pergunta: o que é política? Jacques
Rancière para fazer esta mesma pergunta parte da concepção de “partilha do sensível” para
entender o ser político. Uma denominação se faz necessária:
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência de um comum e de recortes que nele definem lugares e
partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um
comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se
funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina
propriamente a maneira como um comum se presta a participação e como uns e
outros tomam parte nessa partilha. [...] A partilha do sensível faz ver quem pode
tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que
essa atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define competências
ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço
comum, dotado de uma palavra comum, etc. (RANCIÈRE, 2005:15-16)
Ocupação, ação de ocupar, um ponto de vista, ou melhor, um ponto de percepção
que traz consigo toda a dinâmica de uma estética que opera na política, esta no seu conceito
seminal para o ocidente, o da pólis ocupada por politikos, animais políticos para Aristóteles,
se entende
num sentido kantiano – eventualmente revisitado por Foucault – como o sistema das
formas a priori determinando o que se dá a sentir. É um recorte dos tempos e dos
espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo
o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política
ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem
competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos
possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2005, p. 16-17).
Tal concepção de Rancière torna-se eticamente relevante para pensarmos a política
fora de uma tradição do conhecimento, ontológica, que visa a tudo catalogar e definir em
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núcleos, em praxes cristalizadas e isoladas – quando não, se disfarça na defesa de correlações,
mas ainda estabelecidas por uma noção de “centro”. A partilha do sensível não pressupõe um
centro, a não ser o centro enquanto ausência, ou antes, ampla presença – onipresença. A
política se dá de todas as formas e maneiras onde um espaço se faz. Nesse sentido,
compreender política é antes de tudo avistar os acontecimentos, as edificações, construções
epistemológicas de espaço. Aqui é que, precisamente, nossos super-homens pontuam-se numa
vida política. Ficção, entendida como ocupação, “antes de tudo uma questão de distribuição
dos lugares” (RANCIÈRE, 2005, p. 17), desenrola-se principalmente na Arte, onde, por
excelência, se faz o espaço da potência, do poder-vir-a-ser infinito – talvez ainda mais que na
Filosofia, já que esta ao longo da tradição se engendrou em amarras que em muito não a
permitiram descompromissar-se. “A política e a arte, tanto quanto saberes, constroem
‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê
e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer” (RANCIÈRE, 2005, p. 59). Partindo,
portanto, que fictos, histórias em quadrinhos, super-heróis são seres políticos, ocupantes de
um espaço, pergunto: quais espaços os super-heróis em quadrinhos ocupam politicamente?
Quais podem ser suas dimensões? Superman continuará sendo nosso emblema, o sujeito de
outro espaço caído ainda bebê no nosso – e será por meio dele que tentarei obter uma
argumentação aceitável à minha presunçosa suposição inicial de ler Superman enquanto um
messias não só da tradição judaico-cristã, mas acima de tudo, da política clássica.
A leitura da prática política ao longo da História feita por Peter Sloterdijk é de
grande valia para este trabalho. A sua divisão em três períodos – a saber, a paleopolítica,
política clássica e hiper-política – é crucial para compreendermos não só o espaço do superherói enquadrado, como também suas propagações e consequências. Apesar de significar
muito mais para esta investigação a transição do segundo para o terceiro período político, uma
breve explanação sobre paleopolítica nos é útil para entendermos alguns vícios vindouros,
pois, é na paleopolítica, período pré-civilizatório, espaço onde em hordas, assumindo um
caráter distintivo da Natureza, vivendo em suas ilhas sociais, o homo sapiens pratica sua
primeira grande política: a repetição do homem pelo homem – que, apesar da aparência
simplória de sua operação, fulgura critérios-noção de pertença, seja definindo quem deve
nascer, viver ou morrer em uniões-fusões que podem ser feitas em nome de poder, terras,
armas ou aspecto físico. Essa vontade de pertença, esfera primitiva distintiva, início de uma
partilha do sensível autoconsciente, pré-projeto de comum tão caro à paleopolítica das
pequenas hordas é o fundamento daquilo que Sloterdijk chama de política clássica da era das
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grandes civilizações agrárias, local onde violentamente é transposta a milhares ou milhões de
pessoas viventes em grandes cidades ou impérios uma mesma pretensão de uma unidade, de
assimilar um Grande, de pertencer a um Todo, seja a que preço for – na maioria das vezes, em
sangue fresco. Neste segundo período político eis que temos a noção de humanidade.
“O conceito de humanidade oculta um paradoxo ativo que pode ser levado à fórmula:
pertencer-se aqueles com os quais não se pertence. [...] A história das ideias políticas pode ser
lida como uma série de tentativas para atenuar o paradoxo político da espécie”.
(SLOTERDIJK, 1999, p. 14). É na política clássica que todo investimento humano migrará de
uma política da repetição do homem pelo homem para uma problemática da utilização do
homem pelo homem. Como manter politicamente monológica multidões mergulhadas em
espaços plurais inerentes à intensificação do desenvolvimento em múltiplas vertentes espaçopolíticas das grandes cidades e impérios? Como tornar possível uma macro-horda? À
responsabilidade deste exercício megalopata de adestramento político do homem, Sloterdijk
atribui ao atletismo estatal. “Nas grandes civilizações, os agentes da política clássica são,
portanto, os atletas do Estado amadurecidos num training do Grande existencialmente
abrangente para a estada num mundo de perspectivas e preocupações grandes e abstratas”.
(SLOTERDIJK, 1999, p. 46). Este atleta não é só aquele que o senso comum hoje denomina
de “classe política”, mas também filósofos2, religiosos, cientistas, intelectuais em geral, que,
acima de tudo, se destacam enquanto excelentes construtores de fictos, ordenadores de
espaços. A Arte, ou os artistas, também não escapam deste projeto, principalmente quando a
pensamos a serviço de um totalitarismo – ou de um empenho comum e englobante como a
devastação pela guerra se pensarmos no futurismo de Marinetti. Porém, apesar de ser o
exemplo mais óbvio, não só a arte em regimes totalitaristas obtém a função de ordenar os
espaços do Estado – e aqui pensamos estado em seu duplo jogo, político constituído e de
estar, ocupar um espaço.
Nascer no Estado significa, portanto, entrar naquele círculo principal que poder-se-ia
definir como grande regaço e, para falar tecnicamente, como configuração política
do útero social. Nele repousa a resposta à pergunta sobre como deixar participar
centenas de milhares ou milhões de indivíduos numa coisa em comum. E fazer
política não é outra coisa senão salvaguardar essa figura-regaço. (SLOTERDIJK,
1999:40).
2
Platão talvez seja o exemplo mais chamativo: com sua vontade política engendrada à base de mitos poderosos,
exerceu grande influência a toda uma formação de ideais políticos – postulados de ordem dos lugares ocupados.
Não à toa, Nietzsche já apontaria que a tarefa da filosofia do futuro seria a reversão do platonismo (DELEUZE,
“Platão e o Simulacro”. In: Lógica do sentido, 1994.).
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Apesar de Sloterdijk apontar que com a era industrial temos gradativamente uma
degradação e impossibilidade de projetos coletivos na transição para a hiper-política, ele
mesmo atenta para resistências por inércia, quase que “naturais” da política clássica em
desaparecimento, a exemplo do hitlerismo, stalinismo, etc. De certa forma, Walter Benjamin
assinalaria em seus estudos sobre a degeneração da experiência e o fim da narração homem a
homem, talvez, o acontecimento decisivo para esta cisão de espaços, esta política divisão de
águas – para nos mantermos nas analogias religiosas. Afinal, a partir do momento em que a
experiência, a tradição perde a capacidade de reproduzir-se dentro de uma constelação
ordenada de escalas e valores, ou em outras palavras, perde sua possibilidade cultural coesa
de transmissão narrada em troca de uma série sem fim de fragmentos, dados sem História para
lembrarmos Marx, nasce então a tão debatida modernidade, uma filha plural de valores
irreuníveis e escalas incomensuráveis – que mesmo até que quisesse ver-se embriagada numa
tendência ao Todo, no caso, da total falta de coesão, perceber-se-ia ainda mais destroçada com
a pós-modernidade, quando até mesmo a crença num mundo fragmentário onde todos os
valores se relativizam, urge sem sucesso numa proposta de conciliação do inconciliável entre
a queda da Bastilha e construção de Auschwitz-Birkenau. “Das construções sócio-uterinas
devastadas e imaginárias precipitam-se multidões em pânicos pós-políticos e abandonos
difusos, para os quais o nome genérico de pós-modernidade ainda é a expressão civilizada.”
(SLOTERDIJK, 1999, p. 68).
Ilustração 3: Superman, o Filme.
A hiper-política se caracteriza, portanto, na recusa de um Grande clássico, em nome de
um Outro grande, incapaz de reunir-se numa esfera de absolutos, conservar-se na ordem do
Pai, viver pela vida de Deus. “Fará da minha força a sua e verá a minha vida através de seus
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olhos assim como a sua será vista através dos meus. O filho transforma-se no pai e o pai
transforma-se no filho” diz Jor-El ao Superman no filme3.
Em Jean Paul, Heinrich Reine e por último em Nietzsche a nova consciência de era
assume uma forma programática sob a frase “Deus está morto”. [...] Numa cultura
monoteisticamente condicionada, declarar que deus está morto implica um abalo em
todas as referências e o anúncio de uma nova forma de mundo. Com “Deus” apagase o princípio de pertencer-se de todas as pessoas na unidade de um espaço criado
[...] [deixando-as] lado a lado com pluralidades órfãs numa monstruosa paisagem
mundial sem nome nem denominador comum, sem saber se na ausência de um
criador coletivo uma obra coletiva ainda poderá ser definida. Pós-modernidade é a
época do “depois de deus”, e dos pós-impérios clássicos com suas aberturas
mundiais locais. (SLOTERDIJK, 1999, p. 58-59).
Desta forma, o espaço hiper-político se funda numa partilha do sensível que não mais
se pressupõe num universo finito de ocupações delineado em fronteiras fixas, mas num
multiverso4 de dimensões ressonantes em acontecimentos móveis. “Os participantes do novo
jogo mundial da era industrial não se definem através de ‘pátria’ e solo, mas de acessos a
estações ferroviárias, terminais aéreos, possibilidades de conexões. O mundo para eles é uma
hiper-esfera conectada.” (SLOTERDIJK, 1999, p. 60).
Mas resta um horror residual. Não é por meios imediatos que esse homem em trânsito
da política clássica migrará à hiper-política. Lemos aqui alguns exemplos no campo político,
apresentado por Sloterdijk, que serviram de resistência a este terceiro período político que se
anunciava acintosamente no nublado horizonte. Porém, poder-se-ia pensar, de forma um tanto
inconseqüente, a cultura de massa também como uma dessas resistências? Nem sempre com
uma motivação consciente da sua capacidade de ordenação do Grande da cultura, mas, ainda
assim, formalizada tradicionalmente para esta disposição – e deslumbrada com as
possibilidades técnicas industriais de produção e reprodução antes impossíveis na era agrária?
Não seria a cultura de massa, costumeiramente vista sintomática à industrialização, aquilo que
Agamben identificaria como o funcionamento dos Estados democráticos que em crises se
convertem em temporários Estados de exceção? Uma condição segunda forjada regra-fora-daregra na serventia para a eterna auto-manutenção de uma condição primeira? Já que Deus está
morto, alguns sentirão a necessidade de ocupar este espaço – e sempre lembramos dos
ditadores, porém pouco dos ditos.
3
“You will make my strenght your own, see my life through your eyes as your life will be seen through mine.
The son becomes the father, and the father the son.”
4
Multiverso é também chamado, dentro do cosmos de histórias da DC Comics, os múltiplos universos onde
habitam heróis e vilões. Superman possui diversas variações em cada universo, vindo a ser um tirano em um,
negro em outro, etc.
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Voltemos ao Superman dos quadrinhos e do cinema: Kal-El, ou Clark se preferirem,
cresceu no campo, aprendeu valores universais e, se utilizado deles, partiu para o mundo e
além. Seu emblema, sua presença, nas palavras do próprio pai biológico, serve ao propósito
de “uma luz para mostrar o caminho”5, porém tais fundações suficientemente capazes de
erguer diretrizes não aparecem demonstradas por Jor-El – é de Jonathan e Martha que
Superman as lega. O evangelho de Superman, portanto, se ergue enquanto um estatuto de
política clássica do filho da era agrária, levado àqueles que nela não mais se reconhecem –
vivemos o fim dos tempos e a salvação tem de vir, diria o religioso acalentado.
De fato, o homo politicus e o homo metaphysicus se pertencem mutuamente;
prospectores do Estado e prospectores de Deus são gêmeos evolucionários. Ao lado
dos Grandes geográficos e demográficos, o Grande cosmológico e metafísico
também exige seus direitos. Mas tão logo o Grande começa a pensar, devem surgir
interpretações políticas do mundo e doutrinas do ser que dizem como deve ser a
ordem do Todo. (SLOTERDIJK, 1999, p. 33).
Seria então o Superman, ícone da cultura de massa, um grande messias, um superhomem, um homem-em-superação, o mais magistral atleta do Estado jamais concebido6,
capaz de resgatar a política clássica, ou melhor, de levar à hiper-política uma nova velha
receita de pertença ao Todo? “O atletismo de Estado da globalidade ainda não foi escrito, e se
realmente há preparativos para o mesmo, então somente na forma de treinamentos selvagens e
autodidatas.” (SLOTERDIJK, 1999, p. 65).
É na ficção política, virtualidade criadora, potência espacial, alavancadas pela
reprodutibilidade técnica na cultura de massa, que o jogo presente em Superman se propaga
para além dos seus ditames em papel ou em película, lançando-se numa espécie de
inconsciente político tão magistralmente elucidado no início do filme do super-herói, quando,
logo de início, em preto e branco, uma criança nos apresenta uma velha história em
quadrinhos onde conhecemos a cidade fictícia de Metrópolis e seu também fictício jornal
Planeta Diário, para depois da exibição dos créditos iniciais, nos aproximarmos de Krypton e,
avistando aquele planeta, gênese da saga do Superman, Jor-El profere a seguinte frase “isto
não é fantasia...”7.
O horror, político acima de tudo, nasce, portanto, de tal incompatibilidade: da
necessidade de pensar o Grande sob a tutela de um Todo numa época que um Outro grande
5
“They only lack the light to show the way.”
Será que é por isso a confusão na série do Superman nos anos 1950? “Olhem todos para o céu! É um pássaro?
É um avião? Não, é o Superman!”
7
“This is no fantasy...”
6
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fulgura-se, ainda que incompreensível. É essa transição que observamos nos super-heróis,
principalmente no Superman, desde sua aparição até o fim dos anos 1970, início dos 1980 – o
horror em 1938 se dá por uma constatação: precisamos de super-atletas políticos porque
temos um problema crônico pela frente “assim falou Nietzsche sobre aquilo que inspira nosso
tempo com esperança e horror; alguma coisa está morta e só pode desmoronar mais rápida ou
lentamente, mas de alguma forma avança a vida e a civilização e se cristalizam em novidades
não compreendidas.” (SLOTERDIJK, 1999, p. 60).
Com a hiper-política a incapacidade de pertença num Todo parece se extinguir dando
lugar a um individualismo levado até as últimas consequências: cada homem torna-se uma
aparição única, um ser desassociado de uma essência comum a todos os outros seres. Deleuze
havia posto que na luta contra um Mesmo povoado por cópias-ícones ideais, as “boas”
pretendentes no platonismo, dever-se-ia responder com os simulacros-fantasmas, potências do
falso, força criadora e distinta, seres porvir, Outros, incapazes de uma pertença, ou ainda
mais, de uma reduplicação, transmissão de si, a não ser enquanto exemplo da própria
impossibilidade de exemplos (DELEUZE, 1994, p. 270-271). Sloterdijk parece crer que a era
dos simulacros-fantasmas finalmente chegou e um novo problema político se estabelece:
como ainda repetir o homem pelo homem? Tal orientação chave da paleopolítica na hiperpolítica não parece fazer o menor sentido. Como repetir algo que por natureza não se permite
repetível, como manter uma experiência mínima que garanta ao menos a perpetuação da
espécie? Talvez fosse isso que Benjamin tanto nos alertava.
Nisso, o desenvolvimento do mundo moderno enriqueceu em sentido o teorema de
Nietzsche a respeito do “último homem” a partir do prólogo de Assim Falava
Zaratustra. [...] O último homem é o homem sem retorno. Ele está embutido num
mundo que não mais reconhece a primazia da reprodução. Indivíduos desse tipo são,
de acordo com seu auto-entendimento e mais ainda com sua posição num processo
das gerações, tanto Novos quanto também Últimos. Eles vivem com o sentimento do
não-retorno; o indivíduo individualizado até o limite quer uma vivência que se autorecompensa; ele leva sua vida como consumidor final de si mesmo e suas chances.
[...] a perspectiva de descendentes não significa mais auto-repetição de formas de
vida em novas gerações; a reprodução, quando escapa, abre perspectivas de
imprevisibilidade na forma de filhos, que já existirão como neo-pessoas
dessemelhantes
em
neo-mundos
dessemelhantes.
(SLOTERDIJK,1999,
p. 88-89).
A individualização extremada traz consequências éticas a toda uma nova maneira de
fazer política, construir suas ficções. O cataclisma ecológico que cada vez mais é anunciado
como algo iminente – e dentre os motivos, destaca-se a incapacidade de reaproveitamento
futuro de toda uma superestrutura de produção – é apenas um sintoma desta política feita por
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e para homens que não conseguem vislumbrar mais do que sua própria exaltação numa vida
presente, sem no horizonte a visão de um futuro projeto comum na transmissão de
experiências. A hiper-política diante deste problema se lança como a primeira política
possível para os últimos homens – “na medida em que organiza a capacidade de convívio dos
últimos, deve fazer um desafio de exigências sem precedentes; ela está diante da missão de
fazer da massa dos últimos uma sociedade de indivíduos que aceitam continuar
desempenhando
um
papel
de intermediários
entre ascendentes
e descendentes”.
(SLOTERDIJK, 1999, p. 92).
A este desafio o Superman fracassou. Mesmo considerando que boa parte do mundo
esteve à espera dos bárbaros8, o Messias da política clássica não conseguiu atingir o objetivo
desejado. Do começo mais discreto em 1938, enquanto uma figura pública pouco confiável e
de poderes impressionantes, mais ainda limitados – pois aquele Superman não podia voar, só
dar grande saltos9 –, passando, posteriormente, ao Superman no auge de seu messianismo em
1978, de imensa popularidade e ampla aceitação, que não só flutuava sobre nossas cabeças à
incríveis velocidades como também era capaz de fazer a Terra girar no sentido contrário para
salvar vidas humanas – seria em direção ao tempo em que projetos comuns ainda eram
possíveis? –, o último filho de Krypton presenciou seu fim nos anos 1980. A cultura de massa
voltou-se contra seu estandarte: as continuações de Superman, o filme, não obtiveram o
sucesso mercadológico desejado10, suas histórias não vendiam mais como antes11 e a indústria
de quadrinhos norte-americanos de predominância cada vez maior de adultos no seu público
leitor, boa parte influenciada pelo movimento quadrinhista underground da década anterior,
empurrou Superman cada vez mais para um espaço a ele pouco conhecido e menos ainda
tolerado – o da irrepetibilidade, impossibilidade de auto-exemplo ficcional-político na hiper8
Inevitável lembrar do poema de Kaváfis. “Sem bárbaros o que será de nós?/Ah! eles eram uma solução.”
Originalmente Superman era apenas capaz de saltos do tamanho de arranha-céus, já que a força gravitacional
em Krypton era bem mais intensa.
10
As continuações de Superman não obtiveram o estrondo publicitário e financeiro do primeiro. Nesse sentido,
as tramas, voltadas sempre numa busca ao passado são pontuais tanto no contexto mercadológico dos filmes,
como na própria mitologia do personagem. Em Superman II, de 1980, o desafio reside nos vilões condenados à
Zona Fantasma do primeiro filme; em Superman III, de 1983, a trama se centra na volta às origens de Clark à sua
cidade no Kansas, Smallville; Superman IV, de 1987, resgata as fórmulas do primeiro filme, a duras críticas e
forte rejeição do grande público, decretando o fim da franquia naquela época; Superman, o retorno, de 2006, ao
tentar homenagear os primeiros filmes e dar continuidade na trama também não obtém o sucesso mercadológico
necessário, e entre as breves críticas a cerca dos motivos do fraco desempenho feita por portais de notícias e
espectadores em geral, destaca-se como fator decisivo o excesso de semelhanças ao primeiro filme de 1978, e
que com isso não se teria conseguido estabelecer sintonia com o público jovem atual.
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Não há dados muito precisos, mas estima-se que desde os anos 1940, com alguma insurgência nos anos 1960,
os quadrinhos norte-americanos de super-herói vêm perdendo público. Um dos motivos alegados é a não
reciclagem de leitores – o que torna tal dado bastante significativo a este trabalho se pensarmos as relações entre
o Velho e o Novo e suas reconfigurações dinâmicas na hiper-política.
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política. 1986 é um ano-chave para esta acusação: três obras, duas delas escritas por um
inglês, serão decisivas para deslocar espacialmente o Superman norte-americano, alterando
definitivamente sua dimensão.
Ilustração 4: Batman - O cavaleiro das trevas.
Comecemos por Batman – O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller: a minissérie,
publicada em quatro edições, que mostra um Bruce Wayne violento e perturbado, aos 55 anos
retornando à ativa como Batman, proclamando-se uma espécie de auto-código de lei,
resultando numa série de crises políticas que culminam num confronto mortal com o
Superman, ainda vivo e na ativa, com o objetivo de conter o novo e incontrolável homemmorcego a pedido do presidente Reagan, é o começo de uma virada significativa. Não só pela
responsabilidade que alguns atribuem a esta história, juntamente com algumas outras, como
nascentes daquilo que viria a se chamar quadrinhos modernos, mas pela realocação política do
Superman, sua associação explícita com a política oficial, tradicional, levada até as últimas
consequências – embora atrelar origem de “moderno” na mesma história em que o Superman
distancia-se categoricamente como detentor de um projeto comum à humanidade para
assumir-se detentor de um projeto à maioria, presumindo assim a existência de uma minoria
não-enquadrável, ou antes, incapaz de servir às estruturas detentoras da política clássica, é um
tanto emblemático. Dois momentos se fazem expressivos: um, a sucessão de quadros que se
fecham do azul estrelado às listras vermelhas e brancas da bandeira norte-americana até
vermos formar-se um ‘S’ com as mesmas tonalidades de vermelho e azul – e é nesta
sequência que temos, sem a presença de rostos, apenas os diálogos em balões, o pedido de
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contenção de Batman feito pelo presidente ao Superman que pela primeira vez aparecia na
trama; e, por conseguinte, o discurso de Batman em pensamento, no momento em que luta
contra o Superman, no local onde viu seus pais serem assassinados.
Você sempre soube o que dizer... ‘Sim’. Você sempre disse sim a qualquer um com
distintivo... Ou uma bandeira. [...] Exatamente como seus pais ensinaram. Meus pais
me ensinaram uma lição diferente. Caídos nesta rua... Sangrando muito... Morrendo
sem razão nenhuma... Eles me mostraram que o mundo só faz sentido quando você o
obriga a fazer. (MILLER, 2007, p. 194-196).
Em termos de vendagem não deixa de ser igualmente uma estatística consoante
observar que a partir daquela edição Batman teria uma sucessão de histórias especiais
exaltadas pelo grande público e grande parte da crítica, enquanto o Superman cairia ano a ano,
estando hoje em números de edições mensais abaixo de personagens como Batman ou
Lanterna Verde.
Ao mesmo tempo em que Frank Miller e seu Batman solapavam a política de um
Superman, o inglês Alan Moore, hoje um crítico ferrenho dos quadrinhos de super-heróis
norte-americanos, lançava no mesmo ano, dois arcos de histórias aparentemente sem conexão,
porém apontadas à uma mesma asserção: o ícone da política clássica, detentor do bem
comum, o super-herói, enfim, está morto – e as coincidências com o Deus morto por
Nietzsche são vitais.
Ilustração 5: O que aconteceu com o homem de aço? parte 2.
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Em 1986 a DC comics, editora do Superman, Batman, Mulher Maravilha e outros,
executou a Crise nas infinitas Terras, série-evento que serviria para organizar a cronologia de
aventuras e dramas dos super-heróis e com isso recontar toda as suas origens para uma nova
geração de leitores. Para epilogar quase cinco décadas de experiências hoje chamadas,
significativamente, de pré-crise, Alan Moore foi chamado para compor uma espécie de morte
do Superman em duas partes, primeiro na revista Superman e por fim na precursora Action
Comics. O que aconteceu com o Homem de Aço? de Alan Moore, desenhada por Curt Swan,
mostra uma Lois Lane aos quarenta anos, casada com um operário, mãe de um pequeno
garoto, numa sociedade futurista concedendo uma entrevista a um dos muitos jornalistas que
de tempos em tempos a procura para ouvir novamente sua história dos últimos dias de vida do
Superman. A trama então prossegue mostrando o passado, onde vemos Superman numa
queda em perplexidade e melancolia por uma sucessão de fatos: seus vilões, cada vez mais
agressivos e sanguinários, a ponto de não mais entendê-los; a sua identidade secreta de Clark
Kent sendo exposta, resultando na morte de um amigo; e por fim, o exílio com os amigos e
familiares na Fortaleza da Solidão, numa busca por segurança, sem sucesso, já que metade
acaba sendo morta pelos vilões que invadem o espaço numa última ofensiva. Diante de
ameaças a toda vida na Terra, Superman se vê obrigado a matar o poderoso arquiteto do plano
de sua morte – e para isso não há perdão. Superman não admite o ato que acaba de cometer e
se dirige a câmara de kryptonita dourada, capaz de extinguir seus poderes permanentemente.
De volta ao futuro, o repórter não crê na morte do Superman, já que nunca fora encontrado o
corpo, Lois insiste: Superman está morto. O repórter parte e o marido de Lois, Jordan, que
havia chegado em casa minimizando o interesse do jornalista, dizendo “Ele não era nada de
especial. Nós, trabalhadores, filho... nós é que somos os verdadeiros heróis” (MOORE;
SWAN, 2006, p. 191) se revela ao leitor como ex-super-homem, agora, só homem. “Você
gosta mesmo disso, não? Ir trabalhar todos os dias, levar o lixo pra calçada, trocar as fraldas
de Jonathan... Toda essa coisa normal” (MOORE; SWAN, 2006, p. 214) questiona Lois.
Jordan é enfático a respeito de Superman, “O cara foi superestimado. Era todo cheio de si.
Achava que o mundo não podia passar sem ele” (MOORE; SWAN, 2006, p. 191). A última
página da história conclui-se com Jordan e Lois em suas rotinas matrimoniais enquanto
vemos o filho, Jonathan, ao pegar carvão, conseguir transformá-lo em diamante. Sem parecer
ter visto tal fenômeno, Superman encerra a história dando uma piscadela para o leitor,
questionando “...o que você acha?”. Alusões cristãs à parte como a menção de um corpo
nunca encontrado e sua “ressurreição”, o mais relevante aqui é o Superman percebendo-se
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incompatível com o mundo moderno: assim como a violência moderna não faz mais o menor
sentido – em outras palavras, diria Benjamin, não lega mais nenhuma experiência –, um
super-herói, que em resposta supostamente teria que empregar os mesmos esforços, também
não terá mais seu espaço político resguardado enquanto semblante dos bons valores e
costumes. Não há mais um Todo possível revestido de bom-mocismo a ser erigido a respeito
do mundo por um super-herói, portanto, a individualidade preservada na ilha familiar é o
único espaço de auto-salvação e auto-manutenção. Sendo que esta última, usada contra
qualquer infiltração da incapacidade de repetição do homem pelo homem na hiper-política,
acaba por trair o Superman quando o, antes, homem de aço parece que o que mais quer é legar
a vida do homem comum, e os acontecimentos nos mostram justamente a impossibilidade de
reduplicação de um comum em tão incomum filho. O título da história, em forma de pergunta
dirigida ao passado, num apelo temporal, “o que aconteceu?”, poderia muito bem enlaçar-se
com um clamor espacial de “por onde anda?”; e assim, tanto na versão brasileira, que se
refere ao Superman como “homem de aço”, como na norte-americana “man of tomorrow”, a
morte de uma iconografia do espaço comum, da herança da “boa” tradição, do perduro do
homem clássico, ou, em outras palavras, a queda de um homem de aço e a impossibilidade de
um homem do amanhã, representariam mais que sintomas decisivos da crise instituída na
hiper-política.
Ilustração 6: O que aconteceu com o homem de aço? parte 2 – página final.
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Diálogo semelhante em torno da impotência do super-herói messiânico da política
clássica ocorre em outra obra escrita por Moore e desenhada por Dave Gibbons, Watchmen, a
qual não me aterei muito por tratar-se de uma obra complexa e merecedora de uma análise a
parte, sendo para nós aqui pertinente apenas levarmos em conta que, ao se construir um
universo crível onde super-heróis existem e dividem seu espaço conosco, – heróis estes
(re)inventados exclusivamente para esta série em doze partes –, vemos, além de todas as
imbricações psico e sociológicas inevitáveis, o ponto central, o marco zero, o espaço puro em
que um super-herói precisa postar-se para atingir seu objetivo. Ozymandias, um Narciso
moderno que vive da auto-repetição de sua imagem em programas televisivos, brinquedos,
jogos eletrônicos e derivados; ele, que confessa possuir forte admiração somente por um
homem, Alexandre, o Grande, pela sua capacidade de unificação do mundo em nome de uma
só proposta humanística – e que no quadrinho possui a mesma fisionomia de Ozymandias –, é
quem vai engendrar a chacina de metade da população de Nova York sob a fachada de uma
invasão alienígena para conter a guerra nuclear iminente entre os EUA e URSS – o que
veremos mais adiante, obter seu êxito na união de todas as nações contra a ameaça do espaço
externo. Tal situação, hiperbólica da fábula que cerca a bomba de Hiroshima, também citada
em Batman – O Cavaleiro das Trevas, parece ser instrumental à compreensão do superheroísmo político clássico: é preciso matar milhares para salvar milhões, e com isso cessar a
segunda grande guerra – assim como é preciso matar milhões para salvar bilhões, e com isso
estancar a guerra nuclear. Qual é o próximo extermínio de homens em massa que um superherói terá de aplicar contra ameaças ainda maiores à massa de homens? Watchmen mostra
com bastante contundência a ocupação, posição inescapável do super-herói clássico como
aquele que precisa tornar-se o maior super-vilão em defesa daquilo em que acredita.
Ilustração 7: Ozymandias em Watchmen.
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Superman, nesse sentindo, foi revolucionário quando resolveu se aposentar. Quem
sabe ele tenha percebido a impossibilidade da conjunção do super-heroísmo na hiper-política,
ou simplesmente o “homem de aço” estivesse cansado e desgastado – dá no mesmo. Se na
catástrofe lingüística que impossibilitou Babel, diz Sloterdijk, se estabeleceu “a ausência de
uma obra comum a todas as pessoas como decreto divino” (SLOTERDIJK, 1999, p. 13),
talvez na narrativa de Superman, teologicamente melhor enquadrada aos nossos tempos, o
cataclisma natural de Krypton nascido a partir do momento em que um homem discordou do
Todo, e com isso, não viu mais possibilidade de auto-repetição da espécie no espaço do seu
mundo, esteja uma boa oportunidade de um (re)início a uma pergunta mal formulada a
respeito de vida e política, messianismo e potência.
Ilustração 8: Superman, o Filme.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção: homo sacer, II, I. São Paulo: Boitempo, 2004.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-222.
DELEUZE, Gilles. Platão e o Simulacro. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva,
1994.
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RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.
SLOTERDIJK, Peter. No mesmo barco: ensaio sobre a hiperpolítica. São Paulo: Estação
Liberdade, 1999.
Quadrinhos
MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Panini, 2009.
MOORE, Alan; SWAN, Curt. O que aconteceu com o homem de aço? In: MOORE, Alan.
Grandes clássicos DC 09. São Paulo: Panini, 2006. p. 164-214.
MILLER, Frank. Batman – O cavaleiro das trevas. São Paulo: Panini, 2007.
SIEGEL, Jerry; SHUSTER, Joe. Superman: crônicas. Vol. 1. São Paulo: Panini, 2007.
WOLFMAN, Marc; PÉREZ, George. Crise nas infinitas Terras. São Paulo: Panini, 2003. 2
v.
Filme
DONNER, Richard. Superman: o filme – edição especial. [DVD]. Warner home video, 2006.

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