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O TRABALHO E O IMIGRANTE EM SITUAÇÃO IRREGULAR:
À ESPERA DE UMA ABSOLVIÇÃO
Maximiliano Pereira de Carvalho
Juiz do Trabalho em Porto Velho, RO
Fernanda Antunes Marques Junqueira
Universidade Federal de Minas Gerais
Nas asas do sonho partem os migrantes,
Aos milhares e milhões põem-se em marcha;
Das terras do desemprego e da fome
Rumam em direção às terras do trabalho e do pão;
Rompem leis, fronteiras e obstáculos,
Fortes e frágeis na luta pela vida...
(Imigrantes – Nas asas do sonho. Pe. Alfredo J. Gonçalves )
1. INTRODUÇÃO
Limiar do século XXI. Entre luz e sombra descortina a pós-modernidade. O conceito abriga a
mistura de estilos, cores e crenças. A era marcada pela velocidade. O efêmero e o volátil parecem
sobrepor-se ao permanente e ao essencial. A imagem acima do conteúdo. O objeto sobrepõe-se à
pessoa humana. Avulta-se a importância de valores equívocos; excludentes; de flutuação livre nos
planos jurídicos, políticos e ideológicos: “o valor maior tem o direito e até mesmo o dever de
submeter o valor inferior, e o valor, como tal, tem toda razão de aniquilar o sem-valor como tal”.1
Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um mundo sem verdades seguras. Uma
época aparentemente pós-tudo: pós-marxista; pós-kelseniana; pós-freudiana.
1 SCHMITT, Carl. La Tirania de los Valores (Die Tyrannei der Werte). Tradução de Anima Schmitt de Otero. In: Revista
de Estúdios Políticos, Madrid, 115, Enero-Frebrero, 1961.
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A paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, constata-se a decadência do
tradicional conceito de soberania. As fronteiras rígidas cederam à formação de grandes blocos
políticos e econômicos.
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A globalização, como símbolo e como conceito, é a manchete que anuncia a chegada do novo
século. E juntamente com ela, os males da desigualdade social.
Intensifica-se o movimento de mercadorias e, mais recentemente, o fetiche da circulação de capitais.
De igual modo, intensifica-se a circulação de pessoas. Rompem com suas raízes na esperança de
desbravar um novo mundo: quem sabe com maiores oportunidades; quem sabe com novos sonhos.
O imigrante não é figura da pós-modernidade, mas que se incrementou com ela.
Na história da civilização humana, os espaços territoriais do globo foram ocupados pela transposição
dos homens. As colonizações são reflexos do movimento migratório. O imperialismo foi alimentado
pela procura incessante de terras prósperas; providas de frutos e pedras; riquezas e poder.
Mais tarde, transpondo-se milhares de anos de evolução social, a migração foi acentuada pelo
trabalho. As revoluções dos séculos XVII e XVIII impulsionaram a transição de pessoas.
Primeiramente, do meio rural para os centros urbanos, na perscrutação – utópica, talvez – de
melhores condições de vida. Também do meio rural para o meio rural. No século XX, em razão do
vertiginoso ciclo da borracha no Estado do Acre, milhares de nordestinos (em sua maioria,
cearenses) fugiam da famigerada seca, em busca da riqueza amazônica (água, comida e látex), na
utopia de encontrar a nova “Pasárgada”.
Ao invés de sonhos, entretanto, encontram a penumbra das fábricas. A exploração, ao invés da
liberdade. A morte, ao invés da vida.
E, desde então, o movimento de pessoas ganhou força. A pós-modernidade é marcada pela
circulação dos homens, sempre na busca de algo maior, melhor ou talvez não seja bem assim.
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É dentro dessa perspectiva que o presente artigo se desenvolve, sem pretensão alguma de esgotar os
vastos aspectos históricos, sociológicos, filosóficos, econômicos e jurídicos que o tema demanda.
Em verdade, busca oferecer um sopro de juridicização; uma brisa de humanização àquele que vaga
na “asa de um sonho”, lubrificado pelo trabalho e para o trabalho. Porque é dele que nasce o
imigrante e também, paradoxalmente, é por meio dele, quando desprotegido, que desfalece sua alma
e seu corpo.
2. O IMIGRANTE E O TRABALHO: PROPOSIÇÕES TEÓRICAS E
JURÍDICAS
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo...
(Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade)
A solidão que acompanha o imigrante na sua trajetória pode ser parafraseada por trecho do poema
de Carlos Drummond de Andrade. De fato, este trabalhador tem apenas duas mãos e o sentimento
do mundo. Duas mãos que se movimentam para o trabalho e o sentimento de que o novo mundo
guarda novas esperanças. Esperanças que se renovam a cada raiar do dia e que, tristemente, se
perdem a cada anoitecer.
É estrangeiro do território e de si mesmo. Ali não pertence.
Por isso, afirma-se que a concepção do imigrante e do estrangeiro tem como ponto de partida uma
simbologia negativa, de não pertencimento, radicada do critério objetivo da nacionalidade.2
2 Os termos “imigrante” e “estrangeiro” são tomados, neste artigo, na mesma acepção. Alguns autores, contudo,
estabelecem uma distinção bem marcada. É o caso, por exemplo, de Abdelmalek Sayad, que afirma um estrangeiro,
segundo a definição do termo, é estrangeiro, claro, até as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto puder
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Em outras palavras, ser estrangeiro em algum país é o mesmo que dizer não ser nacional dele.
Singulariza-o o traço distintivo da não identidade que, certamente, acompanhará o imigrante na sua
eterna e obstinada peregrinação.
Tal percepção negativa faz com que o imigrante, segundo a doutrina de Ezequiel Texidó e Gladys
Baer3, ocupe uma posição de vulnerabilidade na sociedade receptora, a qual adviria de um duplo
processo social. O primeiro, de ordem estrutural, deriva da existência de um estratagema de poder
que, de forma empírica, denota a centralização de poder em alguns, sobrepondo-se aos demais.
O segundo, de matiz cultural, está imbricado a elementos enraizados em paradigmas estereotipados,
de cunho sociológico, como preconceitos, racismo, xenofobia e discriminação institucional, que
tendem a acentuar e justificar as diferenças entre o poder reconhecido aos nacionais e aos nãonacionais.
Neste quarto de século, por sua vez, aguça-se essa condição de manifesta vulnerabilidade,
especialmente quando confrontada com o mais fundamental meio de inserção do homem no
mercado de trocas: o trabalho. Em tempos de angústia e crise do desenvolvimento social humano,
em que se projeta a miséria, o desemprego generalizado, além da desigualdade regional e
transnacional, relações paliadas pela legislação do trabalho têm sua valia social ainda mais acentuada
para a maioria esmagadora dos integrantes do tecido social, o que pode recrudescer a interação entre
trabalhadores nacionais e não-nacionais.4
permanecer no país. Um imigrante é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas apenas até as fronteiras. Depois que passou
a fronteira deixa de ser um estrangeiro comum para tornar-se um imigrante. Se “estrangeiro” é a definição jurídica de um
estatuto, “imigrante” é antes de tudo uma condição social. SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade.
Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 243.
3 TEXIDÓ, Ezequiel, BAER, Gladys. Inserción sociolaboral de los migrantes. In TEXIDÓ, Ezequiel et al. Migraciones
laborales em Sudamérica: el Mercosur ampliado. Genebra: Oficina Internacional do Trabalho da Organização
Internacional do Trabalho, 2003, p. 107
4 NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. A proteção jurídica do trabalhador como exercício da alteridade. In: Rev. Trib. Reg.
Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.48, n.78, p.113-121, jul./dez.2008, p. 117.
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O trabalho, aliás, é indissociável do estudo do fenômeno da imigração e da própria identificação do
imigrante. A definição proposta por Sayad fixa a medida dessa irmandade:
Afinal, o que é um imigrante? Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho
provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador
imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, nesse caso, quase um pleonasmo),
mesmo se nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado
a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está
destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador
definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A
estadia autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de
ser que lhe é reconhecida [...]. Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez
existir; é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação
ou que o empurra para o não-ser.5
Também o traço da provisoriedade da mão de obra imigrante, sempre fadada ao retorno à origem ou
à completa integração (o que, de ambos os modos, significará o fim da condição de imigrante),
contribui para a reificação da diferença.
Ainda que, como aponta Sayad6, tal provisoriedade seja meramente utópica – a funcionar tãosomente como via de justificação no imaginário social para a presença dos imigrantes (ao lado de
outras duas ilusões: presença exclusivamente pelo trabalho e neutralidade política) -, ela efetivamente
contribui para fixar os contornos do não pertencimento do imigrante.
Um outro aspecto importante na acentuação da diferença do estrangeiro diz respeito à situação
jurídica em que se deu a imigração. A condição de legalidade, além da força jurídica propriamente
dita, tem um significativo poder simbólico, a catalisar a aproximação entre nacionais e estrangeiros.
Da mesma forma, a ilegalidade acirra a diferença, justificando o tratamento arquetípico do
estrangeiro como forasteiro, bárbaro ou mesmo usurpador.
Percebe-se, por tudo, que o imigrante - regular ou clandestino – manterá junto a si, enquanto
perdurar sua situação (de imigrante), uma forte carga da diferença, que nutrirá sua situação de
5 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade, cit., p. 54-55.
6 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade, cit., p. 19-20.
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“outro”, mesmo que, do ponto de vista jurídico-formal (como no caso dos imigrantes regulares),
seja-lhe assegurada a igualdade de tratamento.
Sob esse prisma, a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, assegurou aos estrangeiros aqui residentes
igualdade de tratamento com os nacionais, garantindo-lhes a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade.
No plano infraconstitucional, a Lei 6.815/80 disciplina a entrada, a permanência e saída do
estrangeiro, sendo que o seu artigo 1º elenca as várias espécies de visto, sem os quais não se autoriza
o trânsito de pessoas.
Aos imigrantes regulares, assim considerados os documentados, a depender do visto concedido pela
autoridade competente, são assegurados o exercício de um ofício, segundo o regramento pertinente,
estendendo a eles o edifício justrabalhista de proteção à relação de trabalho formal.
A problematização, entretanto, não se adstringe a uma percepção monocular do fenômeno
migratório, enquanto levado a efeito em conformidade com a ordem jurídica nacional. O fenômeno
da imigração não se resume ao tráfego de pessoas documentadas, paliadas pelo acervo normativo do
país receptor. O problema se dá pelas margens, pela clandestinidade, dos que se aventuram na
encruzilhada de romper com as barreiras da soberania nacional, adentrando-se em terras brasileiras
“sem lenço e sem documento”.
A estes, em regra, a ordem jurídica não socorre. São clandestinos. Forasteiros da ordem nacional.
Usurpadores da “normalidade”. Sem rumo e atemorizados pela sua condição ilegal, transformam-se
em “presas” fáceis do sistema: são aprisionados pela ganância e poder de uns e aproveitados em
atividades sem qualquer respaldo protetor. Tornam-se escravos dos seus sonhos. Trabalhadores sem
proteção. Mão de obra – barata - que alimenta o poderio dos senhores empresários.
À margem da sociedade, vivem uma vida sem direitos.
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Contudo, o tratamento jurídico concreto a ser concedido ao estrangeiro deve catalisar o conceito
universal de Justiça, superando os obstáculos positivistas, para a cimentação de uma visão axiológica
do Ordenamento Jurídico, com vistas a atingir a aceitação, acolhida e responsabilidade pelo outro,
dando vazão àquilo que Emmanuel Lévinas chamou de “humanismo do outro homem”.
Tudo, portanto, com vistas a garantir a igualdade material a todo ser humano, nacional ou não.
No plano normativo internacional, essa conotação humanística do estrangeiro encontra-se em
polvorosa sedimentação.
3.
NORMATIVAS
INTERNACIONAIS
DE
PROTEÇÃO
AO
TRABALHADOR IMIGRANTE: AS CONVENÇÕES 97 E 143 DA OIT
“Liberdade”, pergunto aos horizontes.
Quando enfim hás de vir?
(Castro Alves)
Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como
realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por
todas.7 Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma
invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução.8
7 BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1988.
8 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. Sobre o
tema, consultar também LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: uma diálogo com o pensamento de Hannah
Arendt, São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 134. No mesmo sentido, afirma Joaquin Herrera Flores: os direitos humanos
compõem uma racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de
luta pela dignidade humana. Invocam, neste sentido, uma plataforma emancipatória voltada à proteção de dignidade da
pessoa humana. In: FLORES, Joquín Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p. 7.
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Nessa perspectiva, os direitos humanos são uma edificação consciente, vocacionada a assegurar a
dignidade humana e a evitar sofrimentos, em face da persistente brutalidade humana. São conquistas
da sociedade, precedidas de estandartes de luta, às vezes, com barricadas, antes de serem
reconhecidos como direitos.
Pode-se dizer que a concepção contemporânea dos direitos humanos foi introduzida pela Declaração
Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.
Fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, constitui um movimento
extremamente recente na história da civilização, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às
atrocidades e aos horrores cometidos durante o período nazista. Figurado o Estado como o grande
violador de direitos humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade
da pessoa humana, resultando no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a
morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos. O
legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direito,
à pertença à determinada raça – a raça pura ariana. Conforme aponta Ignacy Sachs, o século XX foi
marcado por duas guerras mundiais e pela absoluta barbárie do genocídio concebido como projeto
político e industrial.9
É justamente neste cenário que se ergue o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea, cujo marco histórico
identifica-se com a criação da Organização Internacional do Trabalho, pelo Tratado de Versalhes, em
1919.
Definitivamente sua essência tem por escopo ético o endireitamento das veredas jurídicas para a
consecução desse propósito, fincada na noção primordial de que a paz universal e permanente
somente por ser alcançada pela concretização material da justiça social. Sua estrutura normativa
9 SACHS, Ignacy. O desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos, In: Estudos Avançados 12 (33), 1998, p.
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condiciona a conduta dos Estados que, incorporada ao ordenamento jurídico nacional, cimenta o
paradigma emancipatório dos direitos humanos.
Dentre as convenções internacionais impregnadas de conteúdo axiológico, que inspiram e iluminam
a nova ordem jurídica, destacam-se a Convenção 97 e a Convenção 143, sendo a primeira ratificada
pelo Brasil.
Sensibilizada pelo recrudescimento do movimento migratório, frente ao fenômeno da globalização, e
pela intensificação da exploração do trabalho humano, justificada pelo embrutecimento do capital em
busca de mão de obra barata, a Organização Internacional do Trabalho propôs-se a regulamentar a
questão que, além de social é também jurídica, ética e moral.
A Convenção 97, ao tratar da necessidade de proteção aos imigrantes, no seu artigo 6o, esquadrinha a
obrigatoriedade de aplicação aos estrangeiros que se encontrem legalmente em seu território, sem
discriminação de nacionalidade, raça, religião ou sexo, tratamento que não seja inferior ao destinado a
seus próprios nacionais. E, no seu artigo 11, conceitua trabalhador migrante como “toda pessoa que
emigra de um país para outro com o fim de ocupar um emprego que não será exercido por sua
própria conta, e compreende qualquer pessoa normalmente admitida como trabalhador migrante”.
O regramento internacional, portanto, orienta a conduta nacional no sentido de conferir tratamento
isonômico aos estrangeiros que se encontram em situação regular e, quando empregados, figuram-se
como destinatários da normativa que compõe o edifício justrabalhista.
A Constituição da República de 1988 alinhou suas arestas neste sentido, aclamando o princípio da
igualdade material no rol de direitos e garantias fundamentais definidores do paradigma de Estado
Democrático de Direito, cuja residência encontra inserta no artigo 5º do texto constitucional.
Entretanto, não raras vezes, a transposição de fronteiras é levada a efeito na sombra da lei, em
agressão aos mandamentos que insculpem a soberania do Estado. A essas situações – tão comuns na
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contemporaneidade – permanece o vácuo legislativo, levando à exploração do homem pelo homem
aos extremos da barbárie. Em pleno século XXI, esses forasteiros da lei são arrastados aos
escombros da marginalidade, amontoados nas fábricas, nas vitrines imersas das grandes cidades, em
pequenos espaços, sem reconhecimento, sem direitos, sem vida.
Preocupada com a situação inumana a que estão esses trabalhadores submetidos, a Organização
Internacional do Trabalho, com estaca firmada na noção primária de que o trabalho não é
mercadoria e que a pobreza, onde quer que exista, constitui verdadeira ameaça à prosperidade
coletiva, editou a Convenção 143, de ordem a conferir regulamentação condigna aos que vagam pelo
mundo, rompendo as barreiras normativas, em busca de trabalho, em situação regular ou não.
O compromisso, nesse quadro, é com a pessoa, independentemente da condição peculiar e
secundária de trafegar em solo nacional portando um documento de identificação, ou de sua
ausência.
Assim, tal norma internacional, foi além dos limites da regularidade da situação jurídica do
trabalhador imigrante, conferindo também àquele em situação irregular tratamento isonômico no que
se refere aos direitos decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à segurança
social e a outras vantagens.10
Noutro giro, de nada adiantaria a consagração do tratamento isonômico, sem que fosse garantido ao
trabalhador estrangeiro o direito subjetivo de perscrutar a tutela jurisdicional adequada. Nesse
cenário, o artigo 9º, item 2 da Convenção 143 da OIT esquadrinhou a necessidade de o Estado
viabilizar o acesso do trabalhador perante um organismo competente, quer pessoalmente, quer por
meio de seus representantes.
10 Artigo 9º da Convenção 143 da OIT: Sem prejuízo das medidas destinadas a controlar os movimentos migratórios
com fins de emprego garantindo que os trabalhadores migrantes entram no território nacional e aí são empregados em
conformidade com a legislação aplicável, o trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha sido respeitada
e nos quais a sua situação não possa ser regularizada, deverá beneficiar pessoalmente, assim como a sua família, de
tratamento igual no que diz respeito aos direitos decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à
segurança social e a outras vantagens.
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Importante destacar que a visão protetiva sedimentada pela OIT não importa em indumentário a
encapsular a agressão que lastreou o movimento migratório. Cabe a cada Estado signatário delinear
políticas públicas e jurídicas vedando a entrada de imigrantes indocumentados. Mas, uma vez
trespassadas as barreiras soberanas e, aproveitados, sorrateiramente, nos ramos da indústria e
agricultura, o mínimo que se pode fazer é estender a esses trabalhadores o estatuto mínimo de
dignidade, amparado pelo Direito do Trabalho nacional. As vestes da formalidade não podem servir
de anteparo para a legitimação da exploração. Rasga-se, portanto, o véu que acoberta a ilegalidade,
para, na essência, atribuir-se a justiça materializada na promoção dos direitos humanos.
Vale dizer, em nenhum caso poder-se-á invocar a irregularidade da condição jurídica do imigrante
como justificativa da não extensão dos raios de incidência do edifício justrabalhista.
O Brasil, não obstante não ser signatário da Convenção 143 da OIT, predestina-se a caminhar nesta
direção, porquanto pulula do texto constitucional, orientado também pelas normas internacionais, a
consagração dos direitos humanos, tendo, no direito ao trabalho, uma de suas mais conspícuas
manifestações.
4.
O
TRATAMENTO
JUSTRABALHISTA
DO
IMIGRANTE
EM
CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE NO BRASIL
As pessoas e os grupos sociais têm direito a ser iguais quando a
diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a
igualdade os descaracteriza.
(Boaventura de Sousa Santos)
A Constituição da República de 1988 consagra o princípio da igualdade e condena expressamente
todas as formas de preconceito e discriminação. A menção a esse tecido axiológico vem desde o
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preâmbulo da Carta, que enuncia o propósito de se constituir uma "sociedade fraterna, pluralista e
sem preconceitos". O artigo 3º renova a intenção e lhe confere inquestionável normatividade,
enunciando serem objetivos fundamentais da República a edificação de "uma sociedade livre, justa e
solidária" e de promoção do bem de todos, "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação". O caput do artigo 5º reafirma que "todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" e assegura ao estrangeiro, aqui residente, "a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Nas suas relações internacionais, firmou-se o compromisso com a promoção dos direitos humanos
(artigo 4º, inciso II).
Tal conjunto normativo é explícito e inequívoco: o texto jurídico político de 1988 é refratário a todas
as formas de preconceito e discriminação, binômio no qual hão de estar abrangidos o menosprezo e
a diferenciação fundada na origem das pessoas, independentemente da condição jurídica do
imigrante.
O mandamento magno da igualdade, entendida como a virtude soberana11, impede o tratamento
desigual conferido aos seres humanos, em razão de sua origem, cuja raiz mergulha no princípio
universal do direito natural: a ideia de justiça distributiva, de ordem que não basta equiparar as
pessoas na lei ou perante a lei, sendo necessário equipará-las, também, perante a vida, ainda que
minimamente.
A Lei 6815/80, conhecida como o Estatuto do Estrangeiro, a despeito do contexto de preservação
da segurança nacional em que foi germinada, disciplina a situação do estrangeiro no país. Repele o
fenômeno migratório irregular, o que não obsta a que seja atribuído ao imigrante condição humana e
digna de existência.
11 A expressão é de DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue, 2000.
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Sua leitura, portanto, perpassa pelo filtro hermenêutico do qual se transformou a Constituição de
1988, dada a sua força normativa.
Esse raciocínio afigura-se plenamente compatível com o fenômeno neoconstitucionalista, cujas
premissas, segundo Lenio Luiz Streck, são a autoaplicação da Constituição, o reconhecimento do
caráter normativo dos princípios e a viragem linguística-ontológica, alvissareira de um novo enfoque
sobre a hermenêutica e sobre o processo compreensivo.12
Como ensina Paulo Bonavides, a Constituição é cada vez mais, num consenso que vai se
sedimentando, a morada da justiça, da liberdade, dos poderes legítimos, o paço dos direitos
fundamentais, portanto, a casa dos princípios, a sede da soberania.13
Assim, imbuído dessa nova ordem constitucional, é que o Brasil, diferentemente da tradição eurocentrista de recrudescimento de fronteiras, editou leis com o propósito de anistiar imigrantes
indocumentados.
Dentre essas legislações, a mais recente data de 2009 – Lei 11.961-, cujo escopo repousa na
concessão de residência provisória ao estrangeiro que, tendo ingressado clandestinamente no
território nacional, aqui permaneça em situação migratória irregular.
A legislação em questão perscruta atribuir um verdadeiro estatuto de cidadania ao imigrante que, uma
vez regularizado, é assegurado o acesso aos bens materiais básicos prometidos pela sociedade,
autorizando-se a emissão de documentos, inclusive, de carteira de trabalho.
12 STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e as possibilidades de superação do positivismo pelo (neo)constitucionalismo.
In: ROCHA, Leonel Severo; STRECK, Lenio Luiz (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, p. 159.
13 BONAVIDES, Paulo. Jurisdição constitucional e legitimidade.(algumas observações sobre o Brasil). Revista Estudos
Avançados, n.18 (51), 2004p. 127.
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Por outro lado, persiste a emblemática situação do trabalho prestado por imigrantes ilegais, que
desafia a soberania de um Estado na disciplina da imigração, descurando de valores caros à ordem
jurídica.
Entretanto, a filtragem constitucional permite concluir que a situação jurídica do imigrante não é
óbice para que a ele se estenda os direitos justrabalhistas. Se no plano dos fatos, a condição de
clandestinidade o inferioriza, no plano jurídico, a contemplação desses direitos o equaliza.
Vale dizer, parece que não se pode admitir a sucumbência da ordem material protetiva em reverência
a uma ordem meramente formal. O Direito do Trabalho lastreia essa perspectiva inclusiva, cujo
fundamento maior é o próprio direito à vida. A concepção da igualdade, desse modo, é materializada
pela extensão do mínimo existencial ao trabalhador imigrante indocumentado.
Naturalmente, esse mínimo existencial é alcançado pelo trabalho, minimamente, protegido.
Assim, a proteção justrabalhista do imigrante passaria pelo reconhecimento da condição humana do
imigrante, chamando para o Direito do Trabalho nacional a responsabilidade tutelar - ao menos
sobre o trabalho já prestado, em que se extraiu a mais valia em benefício do empregador -, dando à
justiça sua necessária concreção. A extensão máxima da proteção ao trabalho dos imigrantes (legais
ou ilegais) parece a mais consentânea aos ideais de uma justiça que se faça, sobretudo, para outrem.
Os fundamentos a justificar tal ilação advêm do próprio estuário axiológico impregnado na
Constituição de 1988, consagrando a pessoa humana como o epicentro de toda produção normativa,
sem qualquer distinção de gênero, idade, sexo, origem.
Neste sentido também aponta a Declaração Sociolaboral do Mercosul, a respeito da necessidade de
proteção do trabalhador imigrante. Em seu artigo 4º, pontifica a imperiosidade de extensão ao
estrangeiro, independentemente de sua origem e nacionalidade, das condições de trabalho
reconhecidas aos nacionais do país em cujo território estiver exercendo suas atividades. Os Estados
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Partes, nessa linha hermenêutica, comprometem-se a adotar medidas tendentes ao estabelecimento
de norma e procedimentos comuns relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas fronteiriças e a
levar a cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as condições de
trabalho e de vida destes trabalhadores. Enfatiza, ao longo do seu corpo jurídico, o princípio da nãodiscriminação, como base fundamental de reconhecimento e promoção do homem, assentando-se
seu conteúdo ético e axiológico, no cânone da dignidade da pessoa humana.
As Convenções 97 e 143 da OIT ratificam todo esse estuário de valorização do ser humano,
enquanto sujeito de direitos, não sendo a nacionalidade o elemento condicional do reconhecimento
como tal, mas o simples fato de ser e existir.
Pedra angular sobre o qual se assenta o moderno edifício político, o princípio da dignidade humana
transforma-se, assim, na coluna vertebral do sistema jurídico, atribuindo-lhe sustentação e, acima de
tudo, legitimidade.
Neste contexto, ao medrar em um chão de fábrica, o trabalhador imigrante indocumentado não
despe de sua dignidade, porque dele é indissociável. É valor intrínseco do qual não se dispõe.
Simplesmente, é digno porque é.
Kant, a propósito, desenhando os contornos que materializam o conceito de dignidade, afirma:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando
uma coisa tem preço, pode-se por em vez dela qualquer outra coisa
como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço,
e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade.14
Desse imperativo categórico universal, traduzido na afirmação kantiana – “aja apenas de forma a que
a sua máxima possa converter-se ao mesmo tempo em uma lei universal” - extrai-se o elixir dos
14 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Traduzida do alemão por Paulo Quintela. Portugual:
Edições 70, p. 77.
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direitos humanos: trate a humanidade, na pessoa de cada ser, sempre como um fim em si mesmo,
nunca como meio.15
Percebe-se, por tudo, que a extensão dos direitos trabalhistas ao estrangeiro em situação irregular
conforma-se com a simbologia catalisada na normativa jurídica, de ordem a imputar-lhe, ao menos
no plano empregatício, verdadeiro atributo de cidadania.
A despeito da proibição do trabalho prestado nessas condições, em vista de afrontar com o
arcabouço jurídico disciplinador do fenômeno migratório, o Direito do Trabalho, por meio da
atração da teoria das nulidades, assegura ao trabalhador a medida compensatória da energia que já foi
apropriada pelo empregador. Impede a sua procrastinação para o futuro; mas corrige, segundo
critérios de equidade e justiça, o passado.
Seja como for, por simbolismo, por metáfora, por etimologia, por hipérbole, por eufemismo, ou por
analogia, juridicamente não há outra saída: os direitos previstos na ordem justrabalhista contemplam
todo e qualquer tipo de trabalhador que esteja sob o seu raio de incidência, independentemente de
ser ele estrangeiro ou forasteiro; documentado ou indocumentado.
5.
O
POSICIONAMENTO
DA
CORTE
INTERAMERICANA
DE
DIREITOS HUMANOS SOBRE OS DIREITOS TRABALHISTAS DOS
IMIGRANTES INDOCUMENTADOS
Teimosos, voltam a erguer-se o sonho e o migrante;
Nas asas do vento, vencem ambos os caminhos;
O sonho se faz raiz, se faz broto e se faz tronco;
Se faz árvore, se faz flor, se faz fruto;
No chão de uma nova pátria planta raízes.
15 KANT, Immanuel. Fundamental Principles of the Metaphysicas of Morals. In: Basic Writing of Kant, Allen W. Wood
ed., New York: The Modern Library, 2001, p. 78.
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Que hão de forjar uma cidadania sem fronteiras,
Onde acima da raça, língua, cultura, está a vida.
(Imigrantes – Nas asas do sonho. Pe. Alfredo J. Gonçalves)
Em resposta aos questionamentos atribuídos pelos Estados Unidos Mexicanos, em vista do
fenômeno imigratório recorrente de mexicanos, trespassando as fronteiras norte-americanas de
forma irregular, a Corte Interamericana de Direitos Humanos formalizou documento conhecido
como “Opinión Consultiva OC 18/03, de 17 de septiembre de 2003: condición jurídica y derechos de los migrantes
indocumentados”, posicionando-se sobre a necessidade de se estender a proteção trabalhista aos
trabalhadores imigrantes indocumentados.
A base do entendimento consolidado radicou-se do princípio da igualdade que conta com previsão
expressa em diplomas internacionais que abraçam e promovem “a lapidação do diamante ético dos
direitos humanos”.
Dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu artigo 1º, firma o compromisso
entre os Estados de assegurar o
respeito dos direitos e liberdades nela reconhecidos e garantir seu livre
e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição, sem
discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou
social, posição econômica ou qualquer outra condição social.
Reforça esse pacto de solidariedade, segundo o qual ocupa a pessoa humana o centro da gravitação
jurídica, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao sufragar, no seu artigo 2º, item I que:
Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar e a
garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que
estejam sujeito a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
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Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo,
religião, opinião política ou outra natureza, origem nacional ou social,
situação econômica, nascimento ou qualquer outra condição.
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais também contempla o princípio
da igualdade, denotando, no seu artigo 2º, parágrafo 2º, a necessidade de conformação da ordem
jurídica nacional com os paradigmas assentados pela consagração dos direitos humanos:
Os Estados Membros no presente Pacto comprometem-se a garantir
que os direitos nele enunciados se exercerão sem discriminação
alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política
ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação
econômica, nascimento ou qualquer outra situação.
Cravando-se nesses diplomas de ordem axiológica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
assim opinou:
De conformidad con el principio de igualdad jurídica consagrado en el
artículo II de la Declaración Americana, en el artículo 24 de la
Convención Americana, en el artículo 7 de la Declaración Universal y
en el artículo 26 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y
Políticos, toda medida que propicie un trato perjudicialmente distinto
a personas o grupos de personas que se encuentren en el territorio de
un Estado americano y sujetas a su jurisdicción, es contraria al
reconocimiento de igualdad ante la ley, que prohíbe todo tratamiento
discriminatorio con apoyo en la ley. Los trabajadores en situación
irregular son objeto de um tratamiento hostil debido a su condición
migratoria y, em consecuencia, son considerados como un grupo
inferior en relación con el resto de los trabajadores legales o nacionales
del Estado que se trata. Un órgano de un Estado parte en los
instrumentos internacionales anteriormente mencionados que, AL
interpretar su legislación interna, afirme alguna diferencia de trato en
el goce y disfrute de un derecho laboral, basado solamente en la
condición migratoria de un trabajador, estaría haciendo una
interpretación contraria al principio de igualdad jurídica. Tal
interpretación puede servir de justificación para que los empleadores
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despidan a trabajadores indocumentados, al amparo de un criterio
preestablecido que supone la supresión de ciertos derechos laborales
em razón de la condición migratoria irregular. La circunstancia
anteriormente descrita es aún más grave si se toma en cuenta que la
misma situación irregular de los trabajadores indocumentados provoca
que éstos sientan temor de acudir a las instancias gubernamentales
encargadas de vigilar el cumplimiento de las normas laborales y,
consecuentemente, los empleadores que incurren en estas prácticas no
son sancionados. A diferencia de lo que sucede cuando se despide a
trabajadores nacionales o residentes legales, resulta económicamente
más ventajoso despedir AL trabajador indocumentado debido a que el
patrono no estará obligado a indemnizar en forma alguna por tales
despidos, dándose una “clara contradicción con el principio de
igualdad ante la ley”. El derecho a la igualdad ante la ley no sólo tiene
aplicación respecto del goce y ejercicio de los derechos laborales, sino
además se hace extensivo a todo derecho reconocido en la legislación
interna, de manera que abarca “un universo de derechos mucho más
amplio que los derechos y libertades fundamentales consagrados em el
derecho internacional”. Este alcance del derecho a la igualdad “tiene
importantes aplicaciones en La competencia de los órganos de
derechos humanos”.16
Ao final, concluiu que:
Los derechos laborales fundamentales que no podrían ser restringidos
son aquellos que los instrumentos internacionales de derechos
humanos consagran respecto de todos los trabajadores, incluidos los
migrantes, independientemente de su situación regular o irregular. En
este sentido, parece haber un consenso, derivado de dichos
instrumentos internacionales, de que existe “un conjunto de derechos
que, por su propia naturaleza, son de tal forma esenciales a la
salvaguarda del principio de igualdad ante la ley y del principio de no
discriminación que su restricción o suspensión, bajo cualquier título,
conllevaría la violación de estos dos principios cardinales del derecho
internacional de los derechos humanos”. Algunos ejemplos de estos
derechos fundamentales son: derecho a igual salario por igual trabajo;
derecho a una remuneración equitativa y satisfactoria, incluyendo los
beneficios de la seguridad social y otros derivados de empleo pasado;
derecho a fundar sindicatos y a sindicarse para la defensa de sus
16 Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em 25/03/2013.
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intereses; derecho a las garantías judiciales y administrativas para la
determinación de sus derechos; prohibición del trabajo forzoso u
obligatorio, y
prohibición del trabajo infantil. Toda restricción al goce de los
derechos fundamentales
que se derivan de los principios de igualdad ante la ley y de no
discriminación atenta contra la obligación erga omnes de respetar los
atributos inherentes a la dignidad del ser humano, siendo el principal
la igualdad em derechos. Las formas concretas de discriminación
pueden ir desde la privación del acceso a la justicia para defender los
derechos conculcados, hasta la negación de derechos derivados de una
relación laboral. Cuando se realizan tales discriminaciones por medio
de decisiones administrativas o judiciales, se actúa con base en la tesis
de que el goce de derechos fundamentales puede estar condicionado a
la consecución de objetivos de
política migratoria. El individuo ha adquirido el rango de auténtico
sujeto activo y pasivo del derecho internacional. El individuo puede
ser sujeto activo de obligaciones en materia de derechos humanos, así
como responsable en lo individual de su incumplimiento. Este aspecto
ha sido desarrollado en el Derecho Penal Internacional y en El
Derecho Internacional Humanitario. En otras materias, como la
comprendida en esta solicitud de opinión consultiva, se podría
establecer que “tratándose de normas fundamentales, reveladas a
través de manifestaciones objetivas, y siempre que no exista duda en
cuanto a su vigencia, el individuo, como podría ser um empleador,
pueda estar obligado a respetarlas, sin importar las medidas de carácter
interno que el Estado haya tomado para asegurar, o incluso para
vulnerar, su cumplimiento”. La “traslación” de la cláusula Martens a la
protección de los derechos de los trabajadores migrantes implicaria
otorgar a dichas personas un umbral adicional de protección, de
acuerdo al cual en situaciones en las que el derecho positivo no
reconozca o reconozca en menor grado determinados derechos
fundamentales, tales derechos serán justiciables. La salvaguarda de
derechos humanos tan fundamentales como los que se desprenden del
principio de igualdad ante la ley y de no discriminación está protegida
por “los principios de la moral universal”, a que alude el artículo 17 de
la Carta de la OEA, aun en ausencia de disposiciones de derecho
positivo inmediatamente vinculantes para quien tiene a su cargo el
deber de garantizar el respeto de tales derechos.17
17 Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em 25/03/2013.
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Nesta perspectiva, alinharam-se as arestas divergentes para a construção de um anteparo de
prevalência dos direitos essenciais do ser humano, ressaltando que tais direitos não decorrem da
condição de ser ele nacional ou estrangeiro, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da
pessoa humana.
Se em condição regular ou irregular – não importa. A indocumentação do trabalhador imigrante não
obsta a que o Estado estenda a ele os direitos contemplados pela ordem justrabalhista. Do contrário,
estar-se-ia a compactuar com o aviltamento da dignidade do ser humano, propiciando a disseminação
da mácula da exploração e, com isso, recrudescendo o estado de miserabilidade do trabalhador
indocumentado.
Mais grave ainda, estar-se-ia autorizando a insensatez da volatilidade do mercado econômico, em que
se privilegia a contratação do imigrante, desprovido de direitos, em detrimento da contratação de um
nacional, tutelado pela ordem jurídica.
Assim, a universalização da proteção ao trabalho, em sua materialidade não parece poder sucumbir a
obstáculos de ordem formal, sobretudo em face do labor humano efetivamente realizado. Afiança
esse entendimento a própria garantia ao direito fundamental ao trabalho digno, prenunciada por
Gabriela Neves Delgado:
Entende-se que o trabalho não violará o homem enquanto fim em si
mesmo, desde que prestado em condições dignas. O valor da
dignidade deve ser o sustentáculo de qualquer trabalho humano. Por
esta razão é que se impõe a necessidade de que, pelo menos, os
direitos alçados à qualidade de indisponibilidade absoluta (e que sejam
relacionados à prestação de serviços) estejam assegurados a todo e
qualquer trabalhador.18
Tal posição ressona na própria vocação protetiva do Direito do Trabalho, que tem em sua gênese a
preocupação da retificação efetiva de um desequilíbrio no plano dos fatos. Aqui, em reconhecimento
18 DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 207.
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à identidade humana e ao valor trabalho, protege-se o suposto “outro”, estendendo a ele as garantias
justrabalhistas, conduzindo-o a uma virtual situação de igualdade com os nacionais.
5. TRABALHO DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS EM CONDIÇÃO
ANÁLOGA À DE ESCRAVO
Eu estava faminto, eu estava doente,
Eu era um migrante estrangeiro, eu estava preso,
E tu, o que fizeste?
(Mateus, 25:35-40)
Pode-se dizer que o sistema capitalista não se estrutura por meio de um procedimento lógico. É um
quebra cabeça sem junção das peças de modo uniforme. É o caos encapsulado sob o discurso
retórico de normalidade. Prova disso é a convivência do sistema com figuras paradoxais,
incompatíveis com a noção primária de mercado e consumo.
Sensibiliza desse entendimento Fábio Konder Comparato que assim elucida:
Desde seus primórdios até o requintado capitalismo financeiro global
que hoje conhecemos, a humanidade experimentou progresso notável.
Mas nesse nosso caminhar em direção ao futuro, calcado, sobretudo,
no avanço tecnológico e científico, rompemos com valores do passado
e negligenciamos as questões éticas.19
Por isso, difícil a absorção no imaginário humano de que, ao lado do aporte tecnológico, do
desenvolvimento da reengenharia, da robótica, das pesquisas científicas, do discurso humanista,
viver-se, ombro a ombro, com a mais antiga das formas de exploração do trabalho humano.
19 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 699
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Passados aproximadamente 125 anos da promulgação da Lei Áurea, ainda se assiste ao mais perverso
fenômeno de reificação do homem, tanto nos grandes centros urbanos, como no meio rural.
Diferentemente de outras épocas, as formas contemporâneas de escravidão não vêm estampadas
com correntes e grilhões, mas quase sempre se integra, direta ou indiretamente, às formas mais novas
do modo de produção capitalista e, simultaneamente, aos modos mais antigos de apropriação do
homem pelo homem.
As servidões de hoje manifestam-se por meio de dívidas fictícias; retenção de documentos; relações
de trabalho originárias de fraude ou violência; prestação de trabalho em troca de pão, exteriorizado
em vales oferecidos pelo empregador, os quais são listados em um caderno, contabilizando as
infindáveis dívidas do empregado (modalidade truck system de remuneração, repudiada pelo Direito
do Trabalho); tudo com vistas a impedir a liberdade de escolha; a liberdade de ir e vir; de não
contratar; de contratar e de se desligar.
Situação essa que, aliás, não difere do tratamento jurídico – ou melhor, ajurídico – destinado ao
trabalho das domésticas, o qual, recentemente, recebeu o refrigério de juridicização com a aprovação
da PEC 66/2012. À margem da legislação social plena de proteção e reminiscência histórica do
trabalho servil que marcou o modo de produção brasileiro, o trabalho doméstico reforça o cenário
de uma sociedade excludente, migrando para a informalidade e recrudescendo a massa de excluídos,
figurados como “autênticos autônomos”.
Neste flagelado corte epistemológico de realidade, trabalhadores imigrantes indocumentados tornamse presas fáceis do sistema. Vítimas de sua própria iniquidade, sem anteparo jurídico ou raiz social,
são “empurrados” no setor produtivo - única saída existente para a garantia do alimento de cada dia
– mesmo que se subsuma a pão e água.
Integram o chamado “exército industrial de reserva”, contudo, mais vulnerável do que aquele
cognoscível por Marx, porque, sem documentos, perdem sua identidade. Sem identidade, apagam-se
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na comunidade social. Como se o portar um passaporte ou outro documento qualquer de
identificação fosse a chave da salvação de sua alma que, de “invisível”, passaria a ser visto, aceito e
reconhecido.
O conceito de trabalho realizado em condições análogas de escravo foi tratado pelo Código Penal
brasileiro, com redação atribuída pela Lei 10.803/2003. Nos termos do artigo 14920 do diploma em
questão, o aviltamento da dignidade do ser humano, pela redução do homem à condição análoga de
escravo, não se resume à usurpação de sua liberdade, pela sujeição ao trabalho forçado, mas também
pela sua sujeição a condições degradantes e jornadas de trabalho extenuantes.
Somada à tipificação penal, a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada
ao ordenamento nacional em 01 de maio de 1932 e integrante do denominado bloco de
constitucionalidade, define trabalho forçado ou obrigatório como “todo trabalho ou serviço exigido
de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”.
Em outras palavras, trabalho realizado em condições análogas de escravo traduz na irremissível
contumélia aos mais caros valores incorporados pelo ordenamento jurídico, descurando-se do
mínimo existencial do qual não se pode despojar, seja a que título for.
Na contemporaneidade, o Brasil, país que apresenta um vertiginoso crescimento econômico, aliado à
estabilidade por que tem passado, tem sido o destino de vários imigrantes latino-americanos que,
20 Art. 149 do CP: Reduzir alguém a condição análoga de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de
trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do
trabalhador com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2º. A pena é aumentada da metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
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premidos pela necessidade de subsistência, esperam aqui encontrar a plena significação de sua
existência. A migração é, portanto, econômica.
Concentram-se nas indústrias têxteis paulistas e ramos da construção civil nacional e recebem menos
que um dólar por hora trabalhada. Não possuem morada. O chão da fábrica é o seu lugar. Talvez
quartos, cantos ou barracos. Vivem às escuras, dividindo o pequeno espaço com ratos. A
alimentação é escassa, desprovida de nutrientes essenciais ao sadio desenvolvimento e
funcionamento do corpo humano. Comem e dormem como bichos. Não raras vezes se sentem
como bichos.
Exemplo real das condições inumanas a que são submetidos os trabalhadores imigrantes
indocumentados pode ser encontrado nos autos no processo criminal de n. 2009.61.81.013715-3, em
trâmite perante a 7ª Vara Criminal Federal. Os relatos abaixo são de trabalhadores bolivianos, vítimas
de trabalho em condições análogas à de escravo, em situação migratória irregular:
[...] A depoente costurava todo o tipo de roupa. A sua jornada de
trabalho começava 07h00min e terminava 01 hora da madrugada.
Durante esse período faziam quatro refeições rápidas: um chá pela
manhã (um copo de chá com pedaço de pão); no meio dia o almoço
(arroz com salsicha); às 16 horas outro chá; por volta das 20:30 o
jantar (sopa de farinha com pedacinho de carne).
[...] As refeições eram feitas no mesmo aposento onde dormiam os
trabalhadores. Às vezes tomava banho sem sabonete ou shampoo; os
valores desses produtos de higiene eram adicionados na dívida de cada
trabalhador. O depoente considera que valor de R$ 4.800,00 por
trabalhador era o preço que se pagava pela compra da mão de obra.
Recentemente, o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio de seus órgãos fiscalizadores,
encontrou imigrantes indocumentados trabalhando em condições análogas a de escravo em duas
oficinas de costura na cidade de São Paulo.
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Segundo relatos da operação orquestrada, foram ao todo 31 bolivianos e um peruano resgatados, os
quais eram sujeitos a jornadas de trabalho de 13 horas diárias. Os salários eram definhados pelos
inúmeros descontos realizados pela empregadora, notadamente com alimentação, habitação e viagem
para o Brasil.21
No meio rural, destaca-se a atuação conjunta do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do
Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal, nas fazendas Estrela de
Alagoas e Estrela de Maceió, na cidade de Piçarras (PA), resultando na libertação de 180
trabalhadores, reduzidos à condição análoga à de escravo, - dentre eles nove adolescentes maiores de
14 anos e um menor - em operação realizada em 2004.
Levada a questão ao crivo do Poder Judiciário Trabalhista, mediante ação civil pública proposta pelo
parquet, foi o grupo alagoano Lima Araújo Agropecuária condenado a pagar R$ 5 milhões a título de
dano moral coletivo.22
Coloca-se em franca evidência, nesse quadro, o papel desempenhado pelo Ministério do Trabalho e
Emprego, em sua atuação preventiva e repressiva, perscrutando o fiel cumprimento da legislação
trabalhista e, desse modo, promovendo o desenvolvimento da cidadania nas relações de trabalho.
Na luta sem tréguas pela erradicação do trabalho forçado e degradante, o art. 12, II, do Regimento
Interno do MTE/MG, enuncia que: “à seção de fiscalização do trabalho compete: [...] II – combater
o trabalho escravo, infantil, e quaisquer outras formas degradantes”.
Em 1995, especificamente com relação ao trabalho em condições análogas à de escravo, foi criado o
GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado, subordinado à Câmara de
Políticas Sociais do Conselho de Governo e coordenado pelo próprio MTE. Trata-se de grupo
21 Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/03/operarios-estrangeiros-sao-resgatados-de-trabalhoescravo-em-sp.html. Acesso em 26/03/2013.
22 Disponível em http://www.tst.jus.br/en/materias-especiais/-/asset_publisher/89Dk/content/id/1746705. Acesso
em 09/04/2013.
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móvel de fiscalização concebido para apurar denúncias e suspeitas de ocorrência de trabalho forçado
e degradante.
Com o mesmo desígnio – combate e erradicação ao trabalho em condições análogas à de escravo –
foi instituído o GEFM - Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
Também de notável envergadura é a missão proposta e executada pelo Ministério Público do
Trabalho, em sua função de órgão agente, na defesa da ordem jurídica e dos direitos transindividuais
dos trabalhadores.
Já no ano 2000, foi criada a CONAETE – Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho
Escravo – cujo escopo ético repousou na cimentação da interface entre o parquet e o órgão do Poder
Executivo, intensificando a fiscalização. Ambos os órgãos atuam de mãos dadas no combate ao
trabalho realizado em condições análogas a de escravo.
Percebe-se, por tudo, que a batalha travada contra o trabalho escravo contemporâneo centraliza-se
na promoção do ser humano, em todas as suas dimensões, seja ele forasteiro ou nacional. Ergue-se,
portanto, como instrumentário catalisador dos valores fundamentais da sociedade, enxergando-se na
posição do “outro”. Vê-se, a partir dessa concepção, o traço da alteridade, basilar na proposição
aristotélica de justiça. Sobre o tema, ensina também Salgado:
A justiça é uma virtude que só se torna possível na dimensão do outro,
enquanto igual ao sujeito que a pratica, vale dizer, na medida em que
seja considerado como ser racional, ou “sujeito”. Essa alteridade da
justiça é o que a faz uma virtude perfeita.23
23 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1995, p. 38
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Porque, “cada indivíduo, ou grupo social, se valoriza pelo desenvolvimento contínuo de suas
potencialidades, na medida em que se abre a todos os outros, neles reconhecendo o complemento
necessário de si próprio”.24
6. CONCLUSÃO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
(Carlos Drummond de Andrade. Os ombros suportam o mundo)
Em terras estranhas busca o imigrante fixar morada. Vai em busca de um sonho; de uma redenção e,
quem sabe, de uma absolvição. Absolvição de uma vida sôfrega, trôpega, sem suspiros e com
murmúrios. Vai em busca de si mesmo. Enfrenta mares, ventos, terras e leis. Quando chega, traz
consigo o olhar da esperança; da tão sonhada mudança. Mudança que nunca vem. Sonhos que se
estilhaçam ao longo da caminhada. Rugas desenham o seu rosto suado, desanimado. Nos ralos da
fábrica são tomados. Produzem, sem ser reconhecidos. São clandestinos do direito. Nele não
encontram alento. Medo da perseguição; medo da fome; medo da vida.
Aos imigrantes documentados, o direito apresenta-se como manifestação imperiosa e vertiginosa do
princípio da igualdade material. Aos imigrantes indocumentados, a realidade se distancia da
legalidade. A aparência assim se mostra, embora na essência, estejam acobertados pelo manto
jurídico que estrutura e insculpe o Direito do Trabalho.
24 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 699.
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A Constituição da República de 1988, embebida pela conotação ética do ser humano, apresenta-se
como o marco teórico de irradiação dos direitos humanos e fundamentais. Edifica o ser humano
como o centro de todo o sistema jurídico, sem considerar a idade, o sexo, gênero ou nacionalidade.
O ser humano tem valor pelo fato de ser, tão somente.
Nessa virada hermenêutica, a Constituição passa a ser o filtro através do qual se deve ler o
ordenamento jurídico. O Direito do Trabalho, portanto, passa a ser interpretado por meio da lente
constitucional, mormente porque é o trabalho, exercido em condições dignas, reflexo magno da
manifestação dos direitos humanos.
Não bastasse, a ordem jurídica internacional, mediante a produção normativa editada pela
Organização Internacional do Trabalho, aliada ao pacto social declinado na Declaração Sociolaboral
do Mercosul, a cujo teor o Brasil espontaneamente aderiu, alinham suas arestas na promoção da
justiça social, por meio do trabalho, enfatizando a repelência da redução do homem à condição de
mercadoria.
Essa visão, inclusive, foi recepcionada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao concluir
pela necessidade de extensão, aos trabalhadores indocumentados, dos mesmos direitos trabalhistas
contemplados pela ordem jurídica aos seus nacionais.
Ao trabalho prestado, cuja energia já foi apropriada pelo capital, seja ele levado a efeito por nacional,
estrangeiro, regular ou não, deve o Direito do Trabalho socorrer. A sua perspectiva inclusiva não
pode sucumbir-se a uma questão de mera formalidade.
A conclusão reversa, entretanto, ancora-se na subversão dos mais caros valores consagrados pela
humanidade.
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Themis, expressão maior da justiça, deve estender aos trabalhadores imigrantes em situação irregular
o braço da normatividade e não cerrar os olhos à realidade e dar-lhes as costas. Porque é a alteridade
um verdadeiro estatuto ético e fraterno que acompanha e fundamenta o símbolo da distributividade
da justiça. Nas palavras de Emmanuel Lévinas:
Descrevo a ética, é o humano, enquanto humano. Penso que a ética
não é uma invenção da raça branca, da humanidade que leu os autores
gregos nas escolas e que seguiu certa evolução. O único valor absoluto
é a possibilidade humana de dar, em relação a si, prioridade ao outro.25
A sapiência da justiça repousa exatamente na sua imparcialidade: não se inclina para um ou para
outro, considerando aspectos de gênero, raça, cor ou origem. Está para todos e ao alcance de todos.
Vê no outro o espelho de sua figuração, atribuindo-lhe o bálsamo do direito, do justo, do equitativo.
Se o estrangeiro indocumentado suporta, nos ombros, o sentimento do mundo, cabe à Justiça do
Trabalho lidar com o sofrimento deste mundo, tomando para si o encargo de atribuir-lhe a dignidade
de que foi privado, mediante a extensão do mínimo ético que compõe o Direito do Trabalho.
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Maximiliano Pereira de Carvalho
Juiz do Trabalho na 4ª Vara do Trabalho de Porto Velho
– RO (TRT14)
Fernanda Antunes Marques Junqueira
Mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela
Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada
[Recebido em 18-04-2013]
[Aprovado em 15-05-2013]
Artigo submetido a double blind peer review
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