Da condição contemporânea do artista seis considerações
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Da condição contemporânea do artista seis considerações
Da condição contemporânea do artista seis considerações [ franz manata 2000-02 ] “... o real é mais importante... tentar colocar-lhe... um sentido simbólico é enfraquecê-lo” Lygia Clark maio de 1968 I. Efetivamente, pós anos 70, nenhuma nova questão foi colocada para a arte que pudesse significar um alargamento de fronteiras e criação de novos campos, como as propostas de levar a estética à vida - colocada por Hélio Oiticica - ou a inclusão do espectador como sujeito de si mesmo - proposto por Lygia Clark. Esses autores, que possuíam forte índole humanista, ao proporem estes novos campos para a arte, além de estarem experimentando, deliberadamente, a potência formal restante da vanguarda moderna, estariam antes indagando sobre: qual lugar a arte tem em seu tempo? Que papel o autor e o seu trabalho podem desempenhar na sociedade? E, sobretudo, que relações pretendem estabelecer para com o outro (espectador)? O fato é que pensar tais questões hoje pode parecer anacrônico, idealista, ou ingênuo, mas, ao investigar a minha condição contemporânea como artista, percebi que necessariamente deveria considerar qual lugar a arte tem em meu tempo, qual é o meu papel nesta sociedade e que relações pretendo estabelecer com o outro. Neste sentido, procurei constituir um diálogo a partir da obra e dos textos de Marcel Duchamp, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, entre outros, não só porque, em determinado momento, constituíram se em preensão para o meu trabalho, mas por, fundamentalmente, fornecerem os elementos para compreender as mudanças que, ao longo da história, ocorrem com o autor, o objeto, o espectador e o sistema, determinando a condição contemporânea do artista. II. A arte como a entendemos e a praticamos hoje - anglo-saxã, ocidental e mercantilista - foi marcada fundamentalmente por inflexões na postura do artista (atitude) frente ao estatuto a ele atribuído (papel), e ao estatuto atribuído ao objeto (função) ao longo da história. Consolidou-se um modelo hegemônico de pensar (relacionado ao “fenômeno” da criação artística) e de reconhecer o que é arte (validar o proposto pelo artista), constituindo, assim, o saber artístico de cada época1. Apesar de considerarmos como arte no âmbito da história e da estética, a produção dos povos primitivos e pré-históricos, estes não tinham atitude semelhante frente às suas representações impressas nas pinturas e estátuas que geralmente serviam a fins práticos. Segundo Gombrich, os povos pré-históricos “não as consideravam meras obras de arte, mas objetos que tinham uma função definida(...), não há diferença entre edificar e fazer imagens, no que se refere à utilidade”.2 A arte como praticamos hoje sofre sua primeira inflexão a partir do século VII a.C. quando os gregos descobrem as formas naturais e passam a experimentar novos modos e idéias de representação da figura humana3, numa “época em que, ainda segundo Gombrich, o povo das cidades gregas começou a contestar as antigas tradições e lendas sobre os deuses e a investigar, sem preconceitos, a natureza das coisas. É o período em que a ciência, tal como hoje entendemos o termo, e a filosofia despertam pela primeira vez entre os homens(...)4”. O estatuto atribuído ao artista daquela época é o de um operário comum, o de artesão que trabalha com as próprias mãos nas forjas e pedreiras, realizando utilitários domésticos (vasos e ânforas) ou públicos (templos e monumentos). Somente nos séculos V e IV a.C., sob 1 Saber artístico de uma época define qual a sua posição no tempo, e como se constitui um determinado sistema valorativo. É a condição primeira da existência da obra, e é historicamente determinado por um conjunto de fatores que passam, pelo repertório iconográfico de um povo e pelo modelo econômico por ele assumido. 2 GOMBRICH (1993), p. 20 3 GOMBRICH (1993), p. 51 - “Foi um momento assombroso na história da arte quando, talvez um pouco antes de 500 a.C., os artistas se atreveram pela primeira vez na história a pintar um pé tal como é visto de frente”. Referindo-se a A despedida do Guerreiro. Vaso no “Estilo de Figuras Vermelhas”, assinado por Eutímides. Circa 500 a.C. Munique, Antiquarium Museum. 4 GOMBRICH (1993), p. 165 o conceito de “mimesis”, é que são desenvolvidas técnicas para o aprimoramento da representação da realidade instituindo o naturalismo idealista.5 A segunda inflexão se dá a partir do Renascimento6, com a abolição da autoridade e o triunfo da razão, determinando uma concepção positiva de tempo - cumulativo, causal, irreversível e infinito. Foi um conjunto de mudanças radicais experimentadas do ponto de vista das ciências7 e da organização econômica, política e social, imprimindo um vertiginoso progresso ao Ocidente. O “Renascimento artístico” ocorrido entre os séculos XV e XVI, em toda sua complexidade, eleva o trabalho do artista à condição de trabalho intelectual aprofundando o naturalismo realista. A postura exigida é a de quem, ciente de seu gesto e de que este é fruto do conhecimento, transforma a matéria, com a ajuda das ciências, na busca da unidade e da beleza. Esta uma propriedade objetiva das coisas que consiste em ordem, harmonia (expressa matematicamente), proporção e adequação, estando sujeita a regras de perfeição que podem ser formuladas e ensinadas com precisão nas academias, atingindo seu apogeu no Classicismo. Essa estética normativa que sucumbe o artista ao estabelecer regras para o fazer artístico, paradoxalmente acaba por abrir espaço para indagações e novas propostas que preconizavam a independência da obra de arte, sem promover valores, sejam sociais, morais, religiosos ou políticos, possibilitando a dissolução do tema naturalista. Institui-se um estatuto próprio para a obra de arte, que não mais tem a função de representar aspectos da realidade exterior, mas, ao contrário, ocupar-se de si mesma enquanto desdobramento endógeno. A terceira inflexão, apesar de anunciada por impressionistas, se dá efetivamente com Marcel Duchamp e seu readymade, ao afirmar que tudo pode vir a ser arte desde 5 Para Aristóteles (sec. IV a.C.), a arte “imita” a natureza e é empregada como qualquer ofício manual, sua apreciação vem do prazer intelectual de reconhecer a coisa representada através da imagem. 6 GOMBRICH (1993), p. 167 - “A palavra Renascença significa nascer de novo ou ressurgir, e a idéia de tal renascimento ganhava terreno na Itália desde a época de Giotto. Os italianos tinham plena consciência de que, no passado distante, a Itália, tendo Roma por capital, fora o centro do mundo civilizado e de que seu poder e glória se dissiparam quando as tribos germânicas, os godos e os vândalos invadiram o país e desmantelaram o império. A idéia de um renascimento associava-se, na mente dos romanos, à idéia de uma ressurreição da “grandeza de Roma”. 7 O grande desenvolvimento das ciências empíricas, dentre elas, a fisiologia, a anatomia, a matemática, e a perspectiva científica possibilita um aprofundamento do naturalismo. que devidamente anunciado no sistema das artes8. Seu gesto reconhece a existência de determinado circuito valorativo que, com freqüência, condiciona a manifestação do objeto de arte. Duchamp, que construiu sua obra plástica calcada na especulação reflexiva acerca da natureza artística dos objetos de arte, potencializa (reafirma) a inflexão renascentista ao expandir o sentido de forma para além da construção do objeto (até então ligado à realidade retiniana) para a construção mental (ligado a construção do pensamento, portanto, verbal), negando a possibilidade de se fundar o julgamento estético exclusivamente no objeto de arte, subvertendo a noção de belo e feio, instituindo como quer Thierry De Duve, o “juízo estético moderno”. III. Entre as práticas que mais atuaram radicalmente no pensamento da arte estão os readymades de Marcel Duchamp. Particularmente, interessa me o trabalho de dois artistas que procuraram objetiva e/ou intuitivamente alargar o conceito de readymade objetual proposto por Duchamp. De um lado, George Brecht vai situá-los no que chamou “readymade action”, ou seja, nas ações cotidianas; e de outro, Cildo Meireles, com o projeto “Inserções em circuitos ideológicos”, faz o “caminho inverso” ao dos readymades, atuando diretamente no meio circulante, reposicionando o objeto artístico. Em 1960, surge na cena novaiorquina George Brecht9. Seu trabalho era composto por textos enigmáticos, em que inicialmente anotava instruções de suas performances e enviava a amigos para, em seguida, apresentar os resultados na galeria. Estes textos (scores) que, segundo Liz Kotz, podiam “ser vistos sob várias rubricas: ‘music score’, arte visual, textos poéticos, instruções de performances ou propostas para um tipo de ação ou procedimento... são vistos como ferramentas para algo, script para performances ou para projetos de peças musicais, que seriam, segundo seus autores, a real arte”.10 Essa ambigüidade conceitual derivada do uso de textos, enquanto objeto/escrita, como um resultado (s c o r e ) 8 inseparável da realização da performance, FERREIRA, org. (1997), p. 97 - Segundo Luciano Vinhosa Simão, o Sistema da Arte é composto por: escolas que formam e conceituam, historiadores que introduzem o artista no contexto histórico, marchands que atribuem valor de mercado, artistas que definem posturas, o público a quem se destina, o curador e os museus e instituições. 9 O artista que veio a pertencer ao movimento de vanguarda Fluxus. 10 KOTZ (2001), p. 35 - tradução livre freqüentemente, segundo Brecht e Ono, “tinham a intenção de perceber o local mais internamente no ato da leitura ou observação(...)”11. Brecht, em certa ocasião, afirma: “tudo que faço é trazer as coisas à evidência, mas elas já estão lá”.12 Este procedimento de “trazer à evidência”, através da linguagem, estende o potencial “performático” e lingüístico dos readymades como ato que não precisa do tipo físico objetual que caracterizou a produção duchampiana. Dessa forma o trabalho artístico se situa no ato de escolha, na eleição de algo a ser colocado em “evidência”. No final dos anos 60, mais precisamente entre 1968 e 1970, Cildo afirma que “não estávamos trabalhando com metáforas (representações) de situações, estávamos trabalhando com o real mesmo... Não interessava o objeto, ou seu culto(...)”, mas sim, “pensar produtivamente (criticamente, avançando e aprofundando), entre outras coisas, um dos mais fundamentais e fascinantes projetos: os readymades de Marcel Duchamp..., criando um sistema de circulação, de intercâmbio de informações que não depende de nenhum tipo de controle centralizado”13. Assim nasceram as “Inserções em Circuitos Ideológicos” um instigante trabalho, apresentado no verão de 1970, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, na exposição “Information”, que consiste na apropriação de garrafas de Coca-Cola para nelas imprimir a expressão “Yankees, go home!” e a seguinte instrução: “gravar nas garrafas opiniões críticas e devolvê-la à circulação”. Sua premissa, segundo o próprio Cildo, é a “existência de determinados mecanismos de circulação e veiculação de ideologia do produtor(...)”, passíveis de inserção, através de práticas que “trazem implícita a noção de meio circulante.”14 As “Inserções” não pretendem colocar um objeto industrial no lugar da arte, mas a “arte atuando como um objeto industrial(...) semelhante a uma tática de guerrilha que funciona como um modelo de atuação simbólica em sistemas sociais”,15 demandando do sujeito social capacidade para reconhecer tal enunciado e de multiplicá-lo. 11 idem p. 37 Contudo, indago sobre a eficácia destas ações direcionadas para um recorte no acontecimento que, com freqüência, se valem do uso da encenação, onde os presentes têm que se dispor a participar, atuando numa aceitação passiva das instruções previamente eleitas, claramente demarcadas e resultado previsto. 12 13 MEIRELES (1999), p. 111 idem p. 110 15 idem p. 48 14 Para Cildo, “sua eficácia independe do meio de arte(...) não se funda mais na quantidade de ocorrências, mas no seu próprio enunciado: que se cumpre ao enunciar-se, ao explicitar-se. Uma prática eminentemente social e perceptível como prática artística”.16 IV. Ao longo do século XX, o espectador foi requisitado a desempenhar inúmeros papéis no processo de constituição da obra e de seu significado dentro do que podemos chamar noção moderna de circuito de arte, transformando o espectador, consumidor ou contemplador em participador. A partir dos readymades de Duchamp, o espectador assume um papel específico quando, segundo Thierry De Duve, naquele momento, Duchamp atualiza as “quatro condições necessárias e suficientes para que não importe o que possa ser arte”.17 Demanda que o público diante de seu readymade não seja mero espectador ou testemunha de sua existência, mas, ao contrário, parte constituinte da obra18, por ser quem valida19 a operação desencadeada pelo artista, quando este designa: “Isto é arte” 20 , reconhecendo-a para a posteridade. Essa engenhosa operação permitiu a artistas que se interessaram pela humanidade de forma generosa propor experiências radicais para o espectador do século XX. Brecht desenvolveu suas práticas como ações cotidianas (ligadas ao comportamento), demandando uma participação através da percepção continuada do meio vivente. Cildo, em 1970, com “Inserções...”, requer do espectador a função de sujeito, aquele que instiga práticas objetivamente direcionadas ao corpo social. 16 idem p. 112 FERREIRA, org. (1997) Arte & Ensaio, ano V no. 5 p. 111 - segundo Thierry De Duve, são necessários um objeto, um autor, público e uma instituição reunindo as três primeiras condições. 18 DUCHAMP (1998) p. 176 - Segundo Duchamp, “o ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.” 19 Com freqüência, o público tende apenas a repetir o julgamento do artista, o que Duchamp designou por habit forming drug (hábito vicioso). 20 FERREIRA, org. (1997) Arte & Ensaio, ano V no. 5 p. 113 - Para De Duve, “a afirmação ‘Isto é arte’ deveria ser entendida não como um juízo conceitual ou cognitivo, mas como um juízo estético no sentido puramente kantiano. Se ‘Isto é belo’ é uma opinião de gosto, ‘Isto é arte’ é, ao contrário, um juízo estético, sem necessariamente ser uma opinião de gosto.” 17 Entretanto, entre as práticas mais radicais e efetivas que se ocuparam do espectador como sujeito e transformador de sua realidade, residem as de Lygia Clark e Hélio Oiticica, ao exigirem do espectador tornar-se. Esses artistas que se ocuparam da arte - para além de sua condição mercantil e de sua vocação para o espetáculo - deslocaram sua noção para o ato artístico como forma de inserção num mundo pessoal e existente, como ação transformadora do homem. Hélio Oiticica, fiel à tradição modernista e a seu projeto de vanguarda, nunca abandonou sua “aventura da cor e do espaço”21 através do objeto, conduzindo um projeto de arte que, segundo Luciano Figueiredo, “(...)quase sempre conjugavam o binômio transformação da arte/transformação do mundo”.22 O artista propôs intervenções no campo da arte e do comportamento que se iniciam com a experiência visual pura para em seguida, demandar a participação do espectador na obra de arte, com suas “ordens” de manifestação ambiental e proposições comportamentais que, no seu conjunto, “resultaram em poderosas amalgamas culturais”.23 Para Oiticica, o espectador é alguém que experimenta esteticamente o mundo pelas mãos do artista propositor que, através de sua crença no objeto de arte, possibilita vivências pessoais através do espaço que simula. Em agosto de 1961, Oiticica, a propósito de seu projeto “Cães de Caça”, referindo-se ao caráter “penetrável” e “estético vivenciado” através da cor, afirma que: “num sentido mais alto, são obras simbólicas, derivados de diversos campos de expressão que se conjugam numa outra ordem, nova e sublime. É como se o projeto fosse uma reintegração do espaço e das vivências cotidianas nessa outra ordem espaço temporal e estética, mas o que é mais importante, como uma sublimação humana.”24 Em 1975, Lygia Clark, que já incorporava a psicanálise à prática artística, publica texto na revista Navilouca, onde discorre sobre seu processo de supressão do objeto. 21 FIGUEIREDO (2002), p. 15 idem p. 21 23 ibidem 24 idem p. 20 22 O texto, uma narrativa fortemente marcada pelo “tempo psicológico”, explicita seu sentido de objeto e sua relação com o “sujeito-objeto” como forma de diluir-se. Para a artista, após “Caminhando”, dissolve se o conceito de autoria ao ser incorporado “o ato como conceito de existência(...)”25 e forma de introjetar-se. Estabelece-se, assim, um “diálogo” existencial através da crença experimentada no “objeto intermediário”26 que, por sua vez, não mais é usado para “...expressar qualquer conceito, mas sim para o espectador atingir cada vez mais profundamente seu próprio eu”.27 Lygia demonstra, então, sua preocupação em relação ao papel que o artista desempenha no processo - o de deflagrador de um diálogo que permite ao autor, fundamentalmente, diluir-se através do espectador-participador. O público é o local onde a artista se realiza. Lygia afirmava: “eu sou o outro”. Há uma busca “de um profundo sentido de vida no grande sentido social(...)” É a procura de “um lugar no mundo”.·28 Mário Pedrosa afirmava que, na obra de Lygia Clark, o “homem” é “objeto de si mesmo”.29 V. Em meados dos anos 60, firma-se o último movimento de vanguarda moderno que seria a matriz para o que denominamos por arte contemporânea - a arte conceitual. Posiciona-se, segundo Roberta Smith, “como uma resposta aos minimalistas que ambicionavam ser completamente lógicos” e que logravam “(...)uma forma pura, abstrata, com freqüência classicamente bela, através de uma abordagem intelectual preconcebida que fez extenso uso de vários readymades: sistemas matemáticos (usados para determinar a composição), formas geométricas, materiais industriais livres de contato manual e produção em fábricas (o que afastou o artista da construção do objeto)”30, 25 CLARK (1999), p.265 idem p. 267 - “ser tocada por um amigo que tinha na sua cabeça uma máscara sensorial, provocou um grande choque em min como se tivesse profanado meu trabalho ainda vivido como sagrado(...) passei a pedir às pessoas que se tocassem sem medo e vivessem essa experiência erótica ainda proposta por objeto intermediário”. 27 idem p. 236 28 idem p. 268 29 idem p. 219 30 SMITH (1994) P. 186 26 Institui-se uma “redução” formal de tal ordem, que surge “uma ênfase sem precedentes nas idéias: idéias em, sobre e em torno da arte e de tudo mais, uma vasta e desordenada gama de informações, de temas e de interesses não facilmente contidos num só objeto, mas transmitida mais apropriadamente por propostas escritas, fotografias, documentos, mapas, filmes e vídeos, pelo uso que os artistas faziam de seus próprios corpos e, sobretudo, da própria linguagem. O resultado foi uma espécie de arte que tinha, independentemente da forma que adotou (ou não adotou), sua existência mais completa e mais complexa na mente dos artistas e de seu público, o que exigia uma nova espécie de atenção e de participação mental por parte do espectador e, ao desprezar a consubstanciação no objeto singular, buscava alternativas para o espaço circunscrito da galeria de arte e para o sistema de mercado do mundo da arte”.31 A “arte como idéia”32, ao se reafirmar enquanto operação de estruturação mental e desarticular o sistema de validação proposto pelas vanguardas adeptas ao “historicismo genético”33 da primeira metade do século XX (fundado exclusivamente na primazia da forma), apresenta se como a grande saída para a “crise” da representação instituída e vivenciada pelos modernos. Ao incorporar o “outro”, a “si mesmo” e o “sistema” enquanto prática e discurso artístico34, a arte se abre para uma manifestação formal sem precedentes na história, por ser esta sua condição de existência. O ônus foi a perda da condição de cursor da história e, ao contrário do que se esperava, o confinamento à esfera da representação, já que sua única condição de existência e inscrição é dada pelo circuito valorativo, que é instância legitimadora por ser público e mantenedor simultaneamente. VI. Com freqüência, sou tentado a acreditar que estamos passando, como descreve Marshal Bermam em seu livro Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, por uma 31 ibidem. Termo atribuído a Joseph Kosut 33 COMPAGNHOM (1995), p. 34 SMITH (1994) P. 183 - Neste momento, a arte passa a se desdobrar “em arte como filosofia, como informação, como lingüística, como matemática, como autobiografia, como crítica social, como risco de vida, como piada e como forma de contar histórias”. Pag183 32 “turbulência”, um estado de “semicegueira”, a exemplo dos modernos da segunda metade do século XIX que viviam entre a memória material e espiritual da tradição, e um estado de profunda “excitação”, proveniente do processo de modernização (capitalista). Naquele momento, os artistas experimentavam uma atmosfera35 que possibilitou propor uma ruptura radical ao assumir o curso da história e instituir a “crise” da representação, que os “alimentou” na forma de idéias e/ou ideais icónicos por mais de cem anos, quando passa a mostrar sinais de desgaste, decretando o fim do modelo historicista centrado no “autor”. Tal fato - um hiato que se abre como distopia - desloca a condução do curso da história, até este momento nas mãos dos artistas, para os curadores, críticos, museus e instituições, que passam a determinar o sistema de validação da condição contemporânea da arte36, geralmente fundada em critérios, que nos últimos 30 anos se mostraram tautológicos e empobreceres, pois esses critérios são centrados invariavelmente no lastro histórico evidente (referência histórica) em uma “certa” originalidade formal (pesquisa plástico/matérica), e na condição de produto mercadológico (para atender a colecionadores, galerias, museus, instituições) e que, de preferência, demonstre alguma vocação para o espetáculo. Hoje, vivenciamos um momento híbrido por experimentarmos a consolidação do processo de modernização e os contornos desta sociedade constituída na “economia da informação”37, cujo princípio é devorar o tempo. Mas ainda praticamos uma arte 35 BERMAM (1987), p. 18 - “Essa atmosfera - de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma - é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna”. 36 Arthur Danto, em entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo (04/07/99), descreve os três critérios intrínsecos a condição de contemporaneidade da obra de arte: “o objeto tem que ter conteúdo ou ´aboutness` (ser a respeito de algo), tem que encarnar ou corporificar aquele conteúdo e ainda possuir uma critica satisfatória em relação ao próprio objeto. 37 Laymet Garcia dos Santos, em seu ensaio Consumindo o Futuro, publicado no caderno Mais! do Jornal Folha de São Paulo (14/06/00), descreve a economia da informação da seguinte maneira: “(...) a aceleração tecnológica e econômica desloca o interesse pelo atual e pelo presente decretando, com tal deslocamento, o fim da modernidade... A atenção concentra-se não no que é. Mas no vir-a-ser. O olhar se volta para o futuro; melhor dizendo: para a antecipação do futuro... o que importava e importa é sua apropriação antecipada... A nova economia, economia do universo da informação, parece considerar tudo que existe na natureza e na cultura - inclusive a cultura moderna – como matéria-prima sem valor intrínseco, possível de valorização apenas através da reprogramação e recombinação. É como se a evolução natural cujas categorias38 (ferramentas) usadas para realizar (no caso dos artistas) e catalogar (no caso dos museus, historiadores e críticos) se constituíram em outra época. Mais precisamente começaram a se constituir no século XVII e terminaram com o limiar do século XX. Essas categorias, que se constituem no léxico 39 e estão na base da operação formal dos artistas, independentemente da “poiesis” empreendida particularmente, não são capazes de enfrentar dois dos mais importantes elementos de nossa percepção. Os que nos situam de forma pessoal e existente no mundo: o tempo e o espaço. Ainda fundamos nossas práticas enquanto ilustração que esclarece, orna ou se presta a ilustrar-se, apoiados em desgastadas operações, tais como: as “questões da representação”, da pesquisa matérica, do recurso fácil da alegoria do uso da encenação, da demanda passiva ou dos artifícios autoritários, que só fazem inscrever o artista e o local de sua fala no restrito campo dos mercados de arte. Na contramão dos entusiastas da artetecnologia, que a consideram como única interface legítima de nossa vivência espaço/temporal no campo da arte, tendo a interessar-me por práticas artísticas que, em alguns casos, nem pretendem se inscrever no campo das artes plásticas/visuais, mas, ao contrário, no campo das práticas sociais40. Estas práticas artísticas assumem a forma de atos de posicionamento público, cuja ocorrência se constitui como cultura. tivesse chegado ao estado terminal e a história tivesse sido ‘zerada’ - trata-se, agora, de reconstruir o mundo através da capitalização do virtual”. 38 Segundo dicionário Aurélio: Categoria. S.f.1. Caráter, espécie, natureza. 5. Hierarquia social ou administrativa. 6. Gram. Cada uma das classes em que se distribuem os elementos léxicos de uma língua. 7. Hist. Filos. Segundo Aristóteles, predicado de uma preposição. 8. Segundo Kant, o conjunto dos conceitos fundamentais do entendimento. 39 BARTHES (1980), p. 38 - Segundo o autor, o léxico “é uma parte do plano simbólico (da linguagem) que corresponde a um conjunto de práticas e técnicas”. 40 Refiro-me aos atos de “sabotagem criativa” propostos por grupos organizados ou pessoas que atuam individualmente, surgidos nos Estados Unidos, em meados dos anos 90, como uma forma de transgressão e ativismo político. Seus alvos são as grandes corporações empresariais, os meios de comunicação, a publicidade e onde mais se possa exercer a interferência cultural. Algumas ações se notabilizaram e não cansam de serem citadas como exemplo: como é o caso dos canadenses ADBUSTERS (http://www.adbusters.org) que se dedicam a combater os excessos da publicidade com recriação de anúncios famosos; ou do grupo que se intitula “Organização para Libertação da Barbie”, que sabotou uma centena de bonecas Barbie e os bonecos G. I. Joe, que tiveram suas vozes trocadas. Estes grupos contam com um arsenal de serviços para suporte de suas ações como a linha telefônica 1-900STOPPER, onde se pode realizar chamadas telefônicas não rastreadas, ou até o serviço da editora “Loompanic Unlimited”, fundada no início dos anos 70 por Michael Hoy que se orgulha de pertencer à “facção lunática do movimento libertário”. (Fonte: Jornal Folha de São Paulo 09/02/97) Referências Bibliográficas BARTHES, R. O Óbvio e Obtuso. 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