cri$e climática

Transcrição

cri$e climática
Número 3
CONTRA CORRENTE
para quem desafia o pensamento único
CRI$E CLIMÁTICA
As mudanças no clima são apropriadas por corporações, instituições financeiras
e governos como uma oportunidade de legitimar o capitalismo “verde” e aprofundar
a exploração dos povos e a mercantilização da natureza. Uma nova roupagem para
um velho modelo.
• Impactos sociais severos
na África e no Brasil
• Os fundos verdes do BNDES
ainda estão em disputa?
• Rio+20: captura pelo mercado
e fortalecimento da resistência
Índice
Editorial
Compreender para resistir
4
Os Bancos já entraram no clima
E
6
Monotonia conveniente:
a ideologia aquecimentista
9
A construção social
da crise climática
conomia verde, mitigação, mercado de carbono, IPCC, PSA, REDD, MDL,
UNFCCC, GEE, emissões, Anexo 1... Se o vocabulário e os conceitos
utilizados pelo sistema financeiro sempre estiveram longe de ser facilmente
assimilados pela maioria da população brasileira, em se tratando do debate
sobre as mudanças climáticas, a falta de compreensão de seu real significado é,
também, explícita. A cobertura alarmista e superficial feita pela mídia sobre os
“fenômenos climáticos” faz com que as pessoas se acostumem a ouvir alguns
jargões, siglas e termos técnicos, mas não oferece subsídios para uma reflexão
consistente sobre o tema. Pior ainda é que, por interesses corporativos, muita
informação não é veiculada. Ou é, simplesmente, mascarada com expressões
leves, como “sustentável”, “verde”, “ecológico”, “florestal”.
No entanto, apesar do vasto desconhecimento sobre o paradigma das mudanças
climáticas, ele tem avançado de modo bastante rápido, tanto nos territórios,
como nos gabinetes governamentais e escritórios de corporações. Prova disso é
que há no Congresso, atualmente, dois projetos de lei (PL 5487/2009, que institui
a Política Nacional dos Serviços Ambientais; e PL 5586/09, que regulamenta a
Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação – REDD) que podem ser
aprovados sem a realização de um amplo debate com a sociedade e antes mesmo
das definições internacionais (nas conferências do Clima, na África do Sul, e da
Biodiversidade, na Índia, além da Rio + 20).
Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma
compreensão qualificada deste relevante debate, especificamente, no que se
refere ao financiamento ao clima. Novamente, contando com a colaboração de
valiosos interlocutores, reunimos artigos que, a partir da perspectiva assumida
pelo conjunto da Rede, em sua VIII Assembléia Geral, realizada em junho de
2010, percebem o uso das mudanças climáticas como justificativa para um
novo – e perigoso - avanço do capital, dessa vez, travestido de “verde”. Casos
e depoimentos sobre a apropriação de terras em Moçambique, no Paraná e no
Amazonas trazem concretude para estas análises críticas.
Interessante observar que essa financeirização da natureza é bancada
politicamente pelas mesmas velhas instituições, com destaque para o Banco
Mundial. Segundo maior banco de fomento do mundo e capitalizado continuamente
pelo Tesouro Nacional, o BNDES tem se projetado também como um gestor dos
financiamentos relacionados ao clima.
Com a proposta de abarcar a diversidade de atores e posicionamentos da Rede,
esta revista apresenta também textos que vão no outro sentido: o de acreditar
que mecanismos como o REDD, por exemplo, estão ainda em disputa e, portanto,
podem sim apoiar a proteção das florestas e de seus povos. O aquecimentismo e a
necessidade de politizar as discussões, assim como os investimentos na Amazônia,
no Pré-Sal e nas polêmicas hidrelétricas, também estão contemplados nesta
edição. Por último, reunimos uma extensa lista de materiais para quem quiser
mergulhar no debate do clima, a partir de uma perspectiva crítica.
Esperamos que você aprecie. Boa leitura!
12
Rio+(ou -) 20: chancela
para o capitalismo verde?
16
Banco Mundial Fora do Clima!...
e de nosso países
19
REDD: financiamento
para florestas ou
financeirização climática
21
Fundo Clima: útil, mas suficiente?
23
De olho nos investimentos
na Amazônia
25
Petróleo do Pré-Sal:
investindo no passado
27
Emissões: os impactos mais
renegados das hidrelétricas
31
África: expropriação de terras
e mudanças climáticas
34
38
39
Raposa no galinheiro
O REDD na vida real
Alimento para a mente
Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil
sobre Instituições Financeiras Multilaterais
Número 03, Outubro de 2011
Edição: Patrícia Bonilha
Revisão: Gabriel Strautman, Lúcia Ortiz e Patrícia Bonilha
Projeto Gráfico e Capa: Guilherme Resende
Foto da Contracapa: João Correia Filho
Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.
E não necessariamente, são questões consensuadas
na Rede Brasil.
SCS Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904
Brasília - DF, CEP 70307-900 • t + 55 61 3321-6108
www.rbrasil.org.br
Gabriel Strautman*
Os Bancos já entraram
na “farra” do clima
A silenciosa e rápida financeirização da natureza exige que a Rede Brasil
se aproprie do debate com a missão de explicitar as reais e falsas soluções
E
m 2010, foram alocados
aproximadamente 10 bilhões de
dólares, em todo o mundo, no
financiamento de projetos de adaptação
e mitigação das mudanças climáticas1.
Segundo dados do Banco Mundial2, este
valor deverá alcançar uma média anual
de 275 bilhões de dólares antes de 2030,
tendo em vista as previsões sobre a
necessidade de redução das emissões de
gases de efeito estufa. Para isso, novos
fundos deverão ser criados ao longo das
próximas décadas e, desde já, instituições
como o próprio Banco Mundial – entre
outros bancos de desenvolvimento
multilaterais, regionais e nacionais
– estão liderando a gestão destes
volumosos recursos.
No entanto, a legitimidade destas
instituições financeiras para administrar
esses fundos de mitigação e adaptação
às mudanças climáticas tem sido
duramente questionada. Organizações
e movimentos sociais de diferentes
países afirmam a existência de uma
grave contradição, na medida em que
são também estas mesmas instituições
as responsáveis pelo financiamento
do sistema capitalista e do modelo de
desenvolvimento neoliberal, baseado
nos combustíveis fósseis (principal
causador do aquecimento global).
Em publicação recente, a organização
Amigos da Terra Internacional chamou
a atenção para o fato de que 56% dos
financiamentos do Banco Mundial para
4
o setor de energia realizados entre
2008 e 2010 - ou seja, já durante
a crise climática -, ainda são para
fontes intensivas em carbono, como
as termelétricas e o petróleo3. A
organização, acompanhada de várias
outras, também argumenta que as
alternativas do Banco Mundial para
“O papel de
instituições como o
Banco Mundial tem
sido o de construir
e dar escala a este
verdadeiro mercado
de compra e venda
do direito a poluir,
que é o mercado
de carbono.”
combater o aquecimento global,
tais como o mercado de carbono,
usinas hidrelétricas, produção de
agrocombustíveis e o monocultivo de
árvores não passam de falsas soluções
para o clima.
Contradições lá e cá
O mesmo tipo de análise pode ser
feita em relação ao Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), que desde 2008 administra
o Fundo Amazônia4. Até agora foram
contratados catorze projetos e outros
cinco estão em fase de contratação, num
valor aproximado de 222 milhões de
reais,5 no marco deste que é considerado
o maior fundo de promoção à Redução
de Emissões por Desmatamento e
Degradação (REDD) existente no
mundo hoje.
Apenas para efeito de comparação, em
31 de março deste ano, o BNDES aprovou
um empréstimo ponte de 3,6 bilhões de
reais para o consórcio Norte Energia
para alavancar o início das obras do
polêmico projeto da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte, em plena Amazônia e que
deve resultar na destruição de cerca de
50 mil hectares de floresta. Sem entrar
no debate sobre os problemas, limites e
riscos de tais mecanismos, parece mesmo
haver uma contradição no fato de que
o mesmo BNDES, que afirma financiar
iniciativas de preservação da floresta com
milhões de reais, contribua com bilhões
para a sua destruição. O que pretendem,
portanto, as instituições financeiras ao
reivindicarem a gestão dos fundos para o
combate ao aquecimento global?
Essa talvez seja a pergunta central
neste debate sobre as possíveis soluções
para o problema da mudança climática
“O que pretendem,
portanto, as instituições
financeiras ao
reivindicarem a gestão
dos fundos para o combate
ao aquecimento global?”
Gabriel Strautman
Contra Corrente
e sobre o papel que os bancos devem
ter. Além da limitação destas iniciativas
para superar o problema estrutural
por trás da mudança climática, um
detalhe importante sobre a formação
dos fundos para adaptação e mitigação
das mudanças climáticas é que a grande
maioria destes é formada a partir de
doações dos países industrializados que
também mantém práticas contraditórias.
O Fundo Amazônia, por exemplo,
foi formado a partir de uma “doação”
do governo norueguês. Embora invista
nestes fundos no Brasil e também
na Indonésia, a Noruega é dona de
empresas petroleiras como a Statoil (que
está construindo uma parceria com a
Petrobrás) e a Norsk Hydro (que investe
na exploração de bauxita na Amazônia,
se aproveitando também da construção
de Belo Monte como possível fonte de
energia futura).
A existência desses fundos permite
que esses países, grandes responsáveis
pelo aquecimento global, continuem
poluindo, já que por esta via constroem
uma imagem verde apesar de seguir
seus negócios usuais, com a expectativa
de que suas emissões poderão vir a ser
compensadas. O papel de instituições
como o Banco Mundial, historicamente
controlado pelos mesmos países
industrializados, tem sido o de
construir e dar escala – através da
canalização destes volumosos recursos
– a este verdadeiro mercado de compra
e venda do direito a poluir, que é o
mercado de carbono.
A construção do mercado de carbono
no Brasil está sendo feita de maneira
silenciosa e rápida, com a liderança
de instituições financeiras como o
Banco Mundial e o BNDES. Para a
Rede Brasil, portanto, o debate sobre
o financiamento para o clima tornase obrigatório, e passa pela produção
de análises e o compartilhar de
conhecimento. O propósito deve ser o
de que os verdadeiros responsáveis pelo
aquecimento global paguem a conta e
de que falsas e perigosas soluções não
nos sejam impostas, agravando ainda
mais a exploração das riquezas naturais
e dos povos do Sul.
CommonDreams.org
A contradição de instituições
e países industrializados no
financiamento ao clima: aplicam o
veneno e oferecem o remédio
Nota da editora: a utilização de imagens com
expressões em inglês nesta publicação sinaliza
que os debates, materiais e mobilizações sobre
este tema no Brasil ainda são recentes.
* Gabriel Strautman é economista e secretário executivo
da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais –
[email protected]
1– Banco Mundial. World Development Report 2010, disponível
em http://econ.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTDEC/
EXTRESEARCH/EXTWDRS/EXTWDR2010/0,,menuPK:5287748~pa
gePK:64167702~piPK:64167676~theSitePK:5287741,00.html
2– Idem
3– Friends of the Earth. World Bank: catalysing catastrophic
climate change: the world bank’s role in dirty energy investment
and carbon markets, disponível em http://www.foei.org/en/
resources/publications/pdfs/2011/world-bank-catalysingcatastrophic-climate-change
4– Desde 2009, o BNDES também administra o Fundo Nacional
sobre Mudanças Climáticas, mas que ainda se encontra na fase
de definição dos seus critérios operacionais.
5– http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/
fam/site_pt/Esquerdo/Projetos/ e http://www.bndes.gov.br/
SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/BNDES_Transparente/
Consulta_as_operacoes_do_BNDES/setorprivado.html
5
Oswaldo Sevá*
Monotonia conveniente:
a ideologia aquecimentista
Discordando de uma insistência quase hegemônica, há quem problematize o
debate sobre o aquecimento global a partir da política e do próprio rigor científico
E
Como engenheiro mecânico e velho
pesquisador na área de Energia, tem
plena consciência de que a atmosfera,
essa estupenda casquinha de gases,
poeiras, vapores e condensados que nos
envolve, é uma máquina termodinâmica
com dois motores: a radiação do sol que
nos bate a cada segundo e em todos
os recantos a cada dia e ano; e o calor
interno do núcleo fundente do planeta.
A longuíssimo prazo, parece que esses
dois motores tendem a esfriar por causa
Guilherme Resende
sclarecimento necessário: o autor
desse artigo não é climatólogo,
nem pesquisador de química ou
física atmosférica, nem geólogo. Não tem
condições profissionais nem legitimidade
para afirmar nem desmentir assertivas
sobre a história recente ou remota do
planeta Terra, nem sobre dimensões e
comportamento do seu imenso volume
de águas oceânicas, lacustres, fluviais
e da sua imensa massa de gelos, neves,
nuvens e chuvas.
Há muitos interesses , propositadamente, não explícitos no atual debate sobre o aquecimento global
6
do decaimento radiativo - é o que dizem
atualmente os estudiosos da física
nuclear e da astronomia, e faz sentido.
Muita gente sabe ou intui que não
fervemos nem explodimos ao fim de
um dia de verão tórrido porque no
outro hemisfério faz frio no mesmo
dia, e a massa atmosférica se vira
como pode soprando ventos e sendo
sacudida pelos alíseos da rotação
planetária. Também porque a casquinha
de poucos quilômetros de espessura
conta com um poderoso e onipresente
estabilizador e dissipador dessa energia,
a massa aquática bem mais espessa, em
permanente circulação, em incessante
troca de estados físicos: de líquido a
sólido e de novo a líquido, daí a vapor e,
de novo, a líquido.
De fato há consenso de que a atmosfera
da Terra é única e funciona para nós
como uma verdadeira estufa de criar
plantas; que ela segura por aqui, por
causa das sucessivas reflexões dos raios
nas camadas de gases, poeiras, nuvens
e gotículas, um pouco do estupendo
calor que retornaria, se perdendo, ao
espaço sideral. O planeta sim resfriaria
se não existisse a atmosfera como
ela é. Em inglês, é o “greenhouse”, na
língua francesa, o “effet de serre”, na
castelhana, o “efecto invernadero”. Em
todas as línguas, a compreensão de que a
casquinha irradiada e quase transparente
é tão fundamental para a vida como o
calor do útero. Eis o único consenso.
Contra Corrente
O restante da conversa é criação da
linguagem, da sociedade, suas ciências
e suas mídias. Quando se quer afirmar a
todo custo, que “está aquecendo” e que
isto resulta da nossa ação, chamada de
“antrópica”, trata-se de uma ideologia
refinada, uma crença monótona,
conveniente para muitos lados das lutas
políticas e de classes deste novo milênio.
Nem todos, aliás!, como veremos aqui
algumas pistas.
Aquecimento global:
uma impostura científica
Este é o impiedoso título de um extenso
artigo publicado em 2003 pelo cientista
francês Marcel Leroux, recentemente
falecido. Professor de Climatologia da
Universidade Jean Moulin - Lyon III e
diretor do Laboratório de Climatologia
do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), ele é o autor dos
livros Global Warming: Myth or Reality?
The Erring Ways of Climatology e La
dynamique du temps et du climat. Eis
alguns trechos selecionados do início do
seu artigo, traduzido pelo site português
Resistir.Info:
“O aquecimento global é uma hipótese
fornecida por modelos teóricos. Baseiase em relações simplistas que anunciam
um aumento da temperatura, proclamado
mas não demonstrado. São numerosas
as contradições entre as previsões
e os factos climáticos observados
directamente. A ignorância destas
distorções flagrantes constitui uma
impostura científica. Nos anos 70 (do
séc. XX) verificou-se um desvio climático
(que os modelos não ‘previram’).
Traduziu-se num aumento progressivo da
violência e da irregularidade do tempo
e foi provocado pela modificação do
modo de circulação geral da atmosfera.
O problema fundamental não é prever
o clima em 2100. Deve-se, antes,
determinar as causas daquele desvio
climático recente. Isso permitiria prever a
evolução do tempo no futuro próximo.”
Mais adiante, ele lembra que nos
Estados Unidos, a memória do tempo
O homem coloca apenas 6 bilhões de
inclemente dos anos de 1930 foi
toneladas, portanto as emissões humanas
reavivada pelo verão extremamente
representam 3%. Se, nessa conferência,
quente de 1988, e daí: “Seguiu-se-lhe
conseguirem reduzir a emissão pela
a dramatização (‘greenhouse panic’).
metade, o que são 3 bilhões de toneladas
Inicialmente assunto da climatologia, o
em meio a 200 bilhões? Não vai mudar
tema passou a ser tratado com emoção
absolutamente nada no clima.”
e irracionalidade. Depressa evoluiu para
o alarmismo. Perdeu o seu conteúdo
A ciência do clima:
científico. Questiona-se actualmente:
observações versus modelos
estaremos ainda a falar de climatologia?
O site californiano Global Research.Ca
Com uma ‘convicção’ geralmente
proporcional à ignorância dos rudimentos acompanha com farta publicação temas
tão variados como ambiente, petróleo e
da disciplina, os ‘climatólogos
energia, biotecnologia, medicina, pobreza
autoproclamados’ propagam hipóteses
e, especialmente, os crimes contra a
procedentes dos modelos. Hipóteses
humanidade, a militarização e o estado
infundadas ou mal estabelecidas e não
policial emergente após o atentado
corroboradas pelas observações.”
de 11 de setembro. Nele, o articulista
Leroux é bem precavido quanto ao
Richard Moore compila os resultados
fato propalado de que os relatórios do
da análise do gelo da Groenlândia que
Painel Intergovernamental das Mudanças
indicam as temperaturas no hemisfério
Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) são
Norte no período longo de 2.000 anos
preparados por “centenas de cientistas”:
AC até o ano de 1900, e organiza as
“O número anunciado pode iludir e
medições das temperaturas da superfície
esconder o monolitismo da mensagem.
terrestre em três latitudes distantes, dessa
Na realidade, uma pequena equipa
data até hoje.
dominante impõe os seus pontos de
Para o leitor sedento dos números e
vista a uma maioria sem competências
gráficos, ele registra os principais links
climatológicas. O ‘I’ de IPCC significa,
com efeito, ‘intergovernamental’. Significa dos relatórios do satélite NOOA, do
Instituto Goddard, do Centro Marshall,
que os pretensos cientistas são antes do
bem como os trabalhos recentes de Roy
mais representantes governamentais.”
Spencer, (da University of Alabama,
Encontrar um brasileiro, especialista,
Huntsville e do U.S. Science Team
que conteste a monotonia da pauta
Leader for the Advanced Microwave
“aquecimentista” foi bem mais difícil,
Scanning Radiometer) que trata os
mas... existe um meteorologista,
dados do satélite NASA-Acqua. Ele
que aqui representa a Organização
tirou conclusões opostas às da ideologia
Meteorológica Mundial, com sede em
aquecimentista, principalmente por causa
Genebra, o sr. Luis Carlos Molion. Ele
do comportamento das nuvens pesadas
assim respondeu a uma pergunta do
(cirrus) e das chuvas quando ocorre
site UOL Ciência e Saúde, em dezembro
aquecimento da superfície terrestre. Para
de 2009, enquanto se desenrolava a
não cometer erros, traduzo abaixo um
badalada e fracassada Conferência COP
trecho de Moore, comentando a pesquisa
15, na capital da Dinamarca:
de Spencer: “O que ele encontrou,
“Q: O senhor, então, contesta qualquer
dirigindo os sensores dos satélites para
influência do homem na mudança de
os alvos apropriados, é que a resposta de
temperatura da Terra? Molion: Os fluxos naturais dos oceanos,
retroalimentação (‘feedback response’)
pólos, vulcões e vegetação somam 200
é mais negativa do que positiva. Em
bilhões de toneladas de emissões por ano.
particular, ele verificou que a formação
A incerteza que temos desse número é
de nuvens ‘cirrus’ de tempestades é
de 40 bilhões para cima ou para baixo.
inibida quando as temperaturas da
7
superfície do globo são altas. As nuvens
‘cirrus’ são elas mesmas um poderoso gás
de efeito estufa, e essa diminuição na sua
formação pode compensar o aumento de
aquecimento causado pelo CO2”.
Os modelos climáticos
e a opinião pública
Cito agora trechos de Moore onde ele
desvenda o restante da argumentação
científica-e-política pois, nesse caso,
não temos mais como separar uma
da outra: “No caso dos modelos
climáticos que estão sendo usados
pelo IPCC, a suposição é de que o
CO2 é um controlador fundamental
do clima. Há uma base intuitiva para
essa suposição, dado que o CO2 é um
gás de efeito estufa, e tanto o CO2
como a temperatura tem-se elevado
substancialmente no último século.
Além disso, observou-se uma forte
correlação entre os níveis de CO2 e a
temperatura em registros de longo prazo
revelados por amostras de gelo. Mais
ainda, a queima de combustíveis fósseis
continua a poluir a atmosfera (e os
oceanos) com níveis cada vez mais altos
de CO2. Isso levou à hipótese de que a
temperatura pode se elevar abruptamente,
colocando em perigo a vida no planeta.
Tudo isso foi apresentado de forma
bastante dramática por Al Gore em seu
famoso documentário.” Lembrando que o famoso modelo do
egípcio Ptolomeu, no segundo século da
era cristã, colocando a Terra no centro do
sistema solar, era quase perfeito, Moore
destaca que: “Assim como com o modelo
ptolomaico, há vários problemas com
a suposição de que o CO2 condiciona o
clima, e com a predição de aquecimento
perigoso. Em primeiro lugar, os registros
de longo prazo mostram que primeiro a
temperatura sofreu mudanças históricas,
seguidas muito depois por alterações
nos níveis de CO2. Outra coisa é que
tem havido períodos de resfriamento
significativo em anos recentes, mesmo
enquanto os níveis de CO2 continuaram a
se elevar dramaticamente.”
8
“Além disso, os registros de longo
prazo mostram que a temperatura
foi no passado muito mais alta que
hoje – inclusive há apenas mil anos
(o Período de Aquecimento Medieval)
– e nenhum desastre bizarro, tal
como a extinção de ursos polares ou
ciclos de retroalimentação positiva
(runaway feedback loops), ocorreu
em consequência disso. Assim
como com o modelo ptolomaico, há
facções politicamente poderosas que
encamparam para seus próprios
propósitos a teoria do aquecimento
global danoso de origem antropogênica.
Por enquanto, basta dizer que
generosos fundos foram fornecidos
para os cientistas da CRU (Climatic
Research Unit), que ficaram mais que
dispostos a ‘refinar’ o modelo para
lidar com a ‘verdade inconveniente’
dos problemas do modelo - mesmo que
isso requeresse coisas como ‘esconder
o declínio’.
Finalizo protegendo a
própria imagem: criticando os
“aquecimentistas”, tem gente séria
e bem informada como os citados,
mas também vários fundamentalistas
neo-liberais, guerrilheiros do livre
mercado, a indústria carbonífera,
além dos senhores do petróleo e suas
guerras. Quem se interessar, vá ao site
Competitive Enterprise Institute, de
onde se pode navegar no http://www.
globalwarming.org/ e, daí, pular para
outro endereço que questiona o falado
filme Uma verdade inconveniente –
http://www.noteviljustwrong.com/
home (ou seja: ele não é o diabo,
apenas está errado). Um dos mais
ferinos desses “direitosos” publicou,
em 2007, Os 35 erros do filme de Al
Gore. Seu nome plebeu é Christopher
Walter, mas trata-se do Terceiro
Visconde Monckton of Brenchley,
assessor político direto da ex-primeira
ministra Margaret Thatcher. Espero não
ser confundido com essa gente, e que
eu tenha honrado o nome da revista: é
hora e vez de estar na Contra Corrente!
Um contra-exemplo:
No início de outubro deste ano,
organizamos na Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) um Fórum
intitulado “Injustiça Ambiental e Saúde:
os atingidos pela poluição do ar”, no qual
pesquisadores universitários e lideranças
de entidades não governamentais
levaram o seu testemunho e experiência
sobre o avanço dramático dos números
medidos de poluição do ar (poeiras,
fumaças, hidrocarbonetos, inclusive os
aromáticos bastante patogênicos, gases
de nitrogênio e de enxofre, precursores
de chuvas ácidas e de ozônio respirável) e
sobre a degradação das condições de vida
de populações em áreas carboníferas,
siderúrgicas e do agronegócio. Esses
temas e assuntos cruciais para a saúde e
sobrevivência do ambiente e da espécie
humana vêm sendo obscurecidos,
desprezados e omitidos pelos que, nas
empresas, governos, universidades e
ONGs, passaram a seguir a moda e o
credo aquecimentista. Muito antes de
aquecer, se é que aquece... a atmosfera
está certamente sendo envenenada.
* Oswaldo Sevá é engenheiro mecânico, doutor em
Geografia Humana e professor da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) – [email protected] e
www.fem.unicamp.br/~seva
referências bibliográficas
Leroux, Marcel: Réchauffement global: une imposture
scientifique foi publicado no nº 95, Março-Abril/2003 da revista
Fusion. http://www.revuefusion.com/images/Art_095_36.pdf .
Os trechos aqui reproduzidos na íntegra foram obtidos no site
português http://resistir.info/climatologia/impostura_cientifica.
html. Mais informação em português, acerca da teoria do Prof.
Leroux em http://mitos-climaticos.blogspot.com
Molion, Luis Carlos, entrevista em “Não existe aquecimento
global”, diz representante da OMM na América do Sul, Carlos
Madeiro, 11.12.2009, no site http://noticias.uol.com.br/ultnot/
cienciaesaude/
Moore, Richard Climate Sciences: Observations x Models,
08.01.2010, acessível em http://www.globalresearch.ca/index.
php?context=va&aid=16865, Em português em http://resistir.
info
Fabrina Furtado*
Contra Corrente
A construção social
da crise climática
O reducionismo científico no trato das mudanças climáticas encobre a crise política
e econômica; também leva à errônea percepção de defesa de interesses comuns
E
ntro nesse debate compartilhando
a percepção da Rede Brasil: a
necessidade premente de limitar a
busca incessante do capital pelo domínio
da natureza, entendendo a crise
climática como uma construção social
e não como um fenômeno científiconatural. Inicio esta discussão a partir da
luta por reparações da dívida ecológica
e pelo fim de instituições como o
Banco Mundial, que se apropriaram,
reduziram e transformaram a questão
climática em um meio de aprofundar a
acumulação capitalista.
Desde a era colonial, a escravidão, a
extração de minerais e hidrocarbonetos,
as monoculturas e o roubo da
biodiversidade e de conhecimentos
tradicionais consolidaram o poder e a
supremacia dos países do Norte (Europa,
Estados Unidos, Japão, Canadá e outros
que integram a lista das nações mais
ricas do mundo). Este uso e abuso da
natureza e dos povos do Sul originaram
uma dívida ecológica que continua
aumentando através de mecanismos de
opressão e de controle, como a dívida
financeira, o chamado mercado livre, a
subjugação cultural e o uso da força.
Tendo como argumento que os países
do Norte são os maiores responsáveis
pela crise climática e, portanto, devem
pagar pelos seus custos e consequências,
em 2009, o governo boliviano
apresentou uma proposta sobre dívida
climática na Convenção-Quadro das
“O IPCC reduziu a questão ambiental às mudanças climáticas, e esta às emissões de carbono”:
debate alarmista e política do medo
Nações Unidas sobre Mudança do Clima
(CQNUMC). Esta proposta foi assinada
pela Venezuela, Malásia, Paraguai, Sri
Lanka, Butão, Etiópia e Micronésia (JS,
2010).
Vale destacar aqui a contradição entre
o discurso internacional do governo
boliviano e suas ações domésticas.
Embora seja o principal defensor da
filosofia do Vivir Bien - que reconhece
a natureza como ser vivo, objeto de
direito, com a qual a sociedade tem uma
relação indivisível, interdependente,
complementar e espiritual -, este
governo também promove um modelo
de desenvolvimento baseado em uma
matriz exportadora de hidrocarbonetos,
hidroeletricidade, mineração,
agroindústria e da manufatura florestal
que viola o Vivir Bien. Um dos mais
recentes e explícitos exemplos dessa
contradição ocorreu em setembro deste
9
Greenpeace/Paulo Adario
ano, quando o governo boliviano
reprimiu de modo bastante violento uma
marcha pacífica contra a construção
de uma estrada que pretende
atravessar o Território Indígena Parque
Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), na
Floresta Amazônica.
É importante refletir sobre o porquê
de propostas como a da dívida climática
serem tão facilmente negadas e
ignoradas, inclusive pelos atores mais
críticos. O discurso dominante gira
em torno de ações mitigatórias, como
tecnologia e mercado de carbono, e de
adaptação. E, muitas vezes, essa lógica é
reproduzida sem questionamentos mais
profundos. Já estamos aceitando que
o único caminho dentro do contexto
de eco-alarmismo é se adaptar? Quem
precisa se adaptar a quê? Precisamos é de
des-adaptação ao capitalismo, isso sim.
Afinal, como a crise climática ganhou
tanta centralidade e como se deu a
definição do problema? Como a ciência
foi construída, disseminada e apropriada?
O fato da questão receber mais atenção
hoje está mesmo relacionado com uma
análise científica-natural ou com o
contexto histórico, cultural e político? Negação de interesses conflitantes
Estudando o papel da ciência na
definição de problemas ambientais,
Wynne (1994) afirma que o debate tem se
baseado no domínio das ciências naturais
de forma instrumentalista, uniformizada
e reducionista. Mantém-se o foco na
crise ambiental quando à ela antecede
uma crise política, econômica, moral e
cultural. O Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC)
reduziu a questão ambiental às mudanças
climáticas, e esta às emissões de carbono.
Desvia-se a atenção para os chamados
“interesses comuns” da humanidade,
negando-se conflitos políticos entre
diferentes grupos sociais com interesses
distintos e, muitas vezes, conflitantes.
Boehmer-Christiansen (1999) também
critica o controle político do IPCC como
ilustração dos interesses governamentais
10
“Já estamos aceitando
que o único caminho
dentro do contexto
de eco-alarmismo
é se adaptar? Quem
precisa se adaptar a
quê? Precisamos é
de des-adaptação
ao capitalismo”.
e privados a partir da institucionalização
das ameaças climáticas. A autoridade
científica do IPCC serviu para orientar
os interesses dos países do Norte,
possibilitando a criação de políticas de
monetarização das mudanças físicas
determinadas pelas ciências naturais e
fornecendo justificativas e incentivos
para investimentos nos países do
Sul. Ela afirma que o IPPC foi criado
pelos Estados Unidos, com o apoio
da pesquisa ambiental daquele país
e da Europa, como contraponto aos
grupos de pesquisa independentes que
defendiam uma ação drástica frente
ao colapso dos preços do petróleo em
1986 e a resultante crise energética.
Isso aconteceu no momento em que
as tecnologias de energia ¨alternativa¨
e nuclear precisavam de ajuda oficial
para sobreviver. O caminho da pesquisa
estava traçado: eficiência energética
(não conservação), energia ¨alternativa¨ e
nuclear e, posteriormente, geoengenharia
e comércio de carbono. Muitos governos
perceberam que poderiam se beneficiar
desta agenda. Problemas ambientais
reais, como a capacidade das sociedades
de mudarem instituições, tecnologias,
comportamentos, e a justiça econômica,
foram negligenciados. A preocupação
deixou de ser com questões ambientais,
e passou a ser com a política energética,
a imposição de tecnologias e a geração
de renda para determinados governos.
Excluiu-se qualquer avaliação sobre
a ideologia por trás das projeções
científicas e implicações das estratégias.
Assim, a ciência deixa de informar a
política e passa a ser sua guia, jogando
com a incerteza científica. Como disse o
representante do Ministério de Ciência
e Tecnologia, Carlos Nobre, no evento
sobre mudanças climáticas organizado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), em agosto deste ano,
¨A CQNUMC é inovadora porque a
ciência tem um papel preponderante.
Em outros casos sempre se buscou
acordo político; a CQNUMC está
baseada nos relatórios do IPCC. Foi a
ciência que trouxe o debate¨. Trata-se
da apropriação política de uma ciência
dominante e a negação de outras. A
incerteza é usada para evitar políticas
de prevenção da destruição ambiental e
garantir políticas de interesse econômico
como a bioengenharia. Neste último
caso, a incerteza aparece como algo
a ser resolvido em breve pela verdade
absoluta da ciência. A ciência dos
especialistas escolhidos “a dedo” pelos
políticos, negando o saber local, também
uma ciência.
Contra Corrente
O conhecimento científico dominante
das questões ambientais naturaliza e
reforça interesses econômicos, políticos
e valores culturais e morais específicos.
O que está sendo apontado como ¨nossos
problemas comuns” e que sociedade está
sendo criada em nome da proteção da
natureza, do clima? Existem questões
políticas por trás das construções da crise
climática e é preciso cuidar para não
entrar no debate alarmista e na política
do medo. Definir a crise climática como
uma construção social não é diminuir
a sua importância ou realidade e sim
estudar o processo pelo qual o fenômeno
foi transformado de uma suposição para
um fato aceito. Quem realmente ganha
com isso?
Dívida climática
baseia-se na constatação de que
os países industrializados do Norte
cresceram, principalmente, devido à
produção e ao desenfreado consumo
de combustíveis fósseis, responsáveis
pela atual crise climática. Eles também
se apropriaram de um ¨bem comum
global¨ (a atmosfera e os oceanos) e da
capacidade de absorção de carbono da
biosfera. Esses países - que representam
menos de 20% da população do mundo
e emitiram cerca de 75% das emissões
históricas - são responsáveis por mais
de dez vezes as emissões históricas dos
países do Sul. Atualmente, suas emissões
per capita são mais de quatro vezes as
do Sul. A dívida climática pressupõe
determinar a partilha justa e equitativa
das obrigações e responsabilidades para
reduzir as emissões de carbono e pelo
financiamento do clima entre os países.
Ela fornece uma abordagem sistemática
para classificar, quantificar e aplicar a
responsabilidade histórica
e exigir reparação. (F.F.)
Dívida ecológica
é um conceito que contribui
para uma análise diferente
das relações internacionais,
o intercâmbio entre o Norte
e o Sul, para além dos
termos econômicos. Produz
ferramentas para acabar com
os danos ambientais, para
garantir reparações e punir
os responsáveis. Além disso,
fornece novos argumentos
e autoridade para exigir
o cancelamento da dívida
financeira, acumulada de
forma ilegítima.
Assim sendo, a perspectiva
da dívida ecológica tem como
objetivo mudar o contexto
de diálogo e das relações
entre os países, debater o
meio ambiente para além dos
argumentos da conservação e
sustentabilidade e considerar
o direito e a justiça. (F.F.)
A (dí) vida como ela é
Em 2009, uma avaliação da produção econômica dos países do G8 (Vinod, 2009),
construída com base no uso insustentável de carbono per capita, com base nos preços
de 1994, calculou que a dívida de carbono do G8 estava entre 13 e 15 trilhões de
dólares. Um valor que excede várias vezes a dívida financeira atribuída aos países do Sul.
Os países do Norte ofereceram em Copenhague, durante a 15a Conferência das Partes da
CQNUMC, 30 bilhões de dólares entre 2010 e 2012 e uma promessa de mobilizar mais
100 bilhões de dólares até 2020. Esses recursos, provavelmente, serão privados, oriundos
do mercado de carbono e estarão nas mãos das mesmas Instituições Financeiras
Internacionais (IFIs) que têm sido grandes responsáveis pela crise ecológica. (F.F.)
Gabriel Strautman
* Fabrina Furtado é militante da rede Jubileu Sul e doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro - [email protected]
A reparação das dívidas ecológica e climática
é uma demanda de organizações do Sul
referências bibliográficas
Boehmer-Christiansen, Sonja. Globalização e valor de vidas humanas: implicações políticas para os países em desenvolvimento
da polêmica do IPCC. Ambiente & Sociedade. Ano II, Nos 2 e 3, 2o semestre 1998 – 1o semestre 1999.
Wynne, Brian. Scientific knowledge and the global environment. In Redclift, Michael; Benton, Ted. Social Theory and the Global
Environment. Londres: Routledge, 1994. p.169 – 189.
Jubileu Sul. Dívidas, Não Mais: Rumo a uma Plataforma do Jubileu Sul sobre Mudanças Climáticas, Dívida Ecológica e Soberania
Financeira. São Paulo, 2010.
Raina, Vinod. Ecological Debt: the creation of rich and poor countries. Apresentação durante Fórum Público sobre Dívida Ecológica
e Mudança Climática. Bancoc, Setembro, 2009.
11
Lucia Ortiz*
Rio+(ou-)20: uma chancela
para o capitalismo verde?
Com foco em economia verde e governança global, conferência sinaliza captura
pelo mercado e pode ser consolidada como a Cúpula da Mercantilizacão da Natureza
A
Rio+20, conferência mundial
sobre ‘desenvolvimento
sustentável’, será realizada
no Rio de Janeiro de 4 a 6 de
junho de 2012, por sugestão do,
então, presidente Lula, em 2007, na
Assembléia Geral das Nações Unidas
(ONU).
Os objetivos iniciais eram nobres:
o de assegurar a renovação dos
compromissos políticos para o
desenvolvimento sustentável, avaliar
o progresso e as lacunas (e por que
não suas causas estruturais?) na
implementação dos resultados das
principais conferências desde a Eco92
e tratar novos e emergentes desafios.
Porém, não foi criado um processo
de avaliação e negociação à altura
desses objetivos.
Por outro lado, estabeleceu-se
como o foco da Rio+20, e com muito
mais empenho e força política, os
questionáveis temas da economia verde
‘no contexto do desenvolvimento
sustentável e da erradicação da
pobreza’, e o arranjo institucional
para o desenvolvimento sustentável,
ou a governança global para o meio
ambiente.
No mínimo, pode se reconhecer
a redução dos pilares do que foi
12
conceituado como desenvolvimento
sustentável – social, ambiental e
econômico – ao da economia global
capitalista, mascarando os mecanismos
de implementação e de controle global
da natureza, deste novo ciclo de
acumulação. Contexto que invisibiliza
ainda mais a diversidade cultural, a
qual deveria ser incorporada como pilar
central da sustentabilidade, por trazer
novas e ancestrais formas de pensar,
relacionar-se e ser parte da natureza,
criando e recriando outras economias
em sociedades sustentáveis.
Economia verde:
um frágil novo consenso
Este foco, no pretenso novo consenso
global da economia verde e a
preocupação com a governança num
sistema de Nações Unidas capturado
pelos interesses das corporações,
explicita a resistência imposta a
uma agenda de sustentabilidade e
democracia global nestes últimos vinte
anos, assim como os interesses que
devem definir a direção dos acordos
globais para o meio ambiente daqui
para frente.
A agenda da Rio+20 busca legitimar
o capitalismo verde. Isso, por um lado,
expõe a fragilidade do sistema frente
às múltiplas crises e a necessidade de
tamanho aparato e refinamento do
discurso para dialogar com a apreensão
da sociedade frente aos problemas
ecológicos e sociais, como o sintoma do
caos climático, para, então, conseguir
uma aceitação social e política - apesar
do poderio econômico e midiático a seu
serviço.
A estratégica falta de conteúdo
dada ao termo economia verde no
ambiente das negociações da ONU,
ainda que pretenda ser a base de
um novo “acordo verde”, já tem
provocado reações de diversos
países. Na 19a sessão da Comissão
de Desenvolvimento Sustentável
(CDS), o resultado das negociações
foram: a falta de acordo na agenda
de implementação no tema central
do ciclo da CDS, sobre Padrões de
Produção e Consumo; a dúvida sobre
a capacidade da ONU para lidar com o
ambicioso tema do arranjo institucional
para a Rio+20; e propostas de,
inclusive, rever o termo economia verde
para reduzir polêmicas evidentes.1
Fato de maior relevância foi
a declaração dos países latinoamericanos, resultante dos dois dias
e meio de processo regional oficial de
preparação que aconteceu no início de
Contra Corrente
Processo oficial:
longe da governança inclusiva
O processo em curso, iniciado
oficialmente pela resolução da ONU
de 24 de dezembro de 2009,3
estabelece etapas preparatórias de
negociações oficiais.
De forma autônoma e independente,
já envolve uma agenda de mobilizações
da sociedade civil, bem como um
processo (que não se encerra com a
conferência) de acompanhamento dos
reflexos da sua preparação e resultados
sobre as políticas nacionais e de
construção e fortalecimento de um
movimento global por justiça social
e ambiental.
A conferência acontecerá em
apenas três dias (4 a 6 de junho de
2012) e está baseada em três etapas
preparatórias internacionais, sendo
que as duas primeiras já aconteceram
e a próxima será nos dias que
antecedem imediatamente a Rio+20
(28 a 31 de maio).
O processo acordado consiste em
chamar os diversos setores da sociedade
civil a enviar contribuições por internet
sobre os temas foco da Rio+20 durante
todo o ano de 2011, para que um
documento chamado “rascunho zero”
seja divulgado somente em janeiro
de 2011.
Antes, se trabalhava para buscar
consensos globais nas negociações,
para que as convenções e tratados
fossem ratificados pelos países
signatários, passassem a valer e
se desdobrar em políticas públicas
domésticas. Hoje, a lógica se inverte: já
existe uma corrida pela implementação
Adbusters
setembro no Chile, que simplesmente
rechaçaram e ignoraram o termo
economia verde do seu pouco ambicioso
acordo final.2
A financeirização da natureza revela o novo ciclo de acumulação do capitalismo - pintado de verde
de arcabouços legais e políticos nos
países para a chamada transição para
uma economia verde sem que suas
bases ou metas, e mesmo seu conteúdo,
tenham sido definidos.
Tendo como referência os
resultados das últimas negociações
mundiais para o meio ambiente,
podemos prever que as estratégias
de inovação dos processos de
negociação aumentam os riscos de
limitar a participação dos países em
desenvolvimento, e da sociedade
organizada de desconsiderar as
desconformidades, como foi o caso
da posição da Bolívia frente ao
acordo de Cancun na COP16 do
Clima, bem como da imposição de
textos “caídos do céu” num ambiente
falho de negociações para alcançar
verdadeiros consensos.
Como resultado dos (ou da falta
dos) processos em curso, se a Eco92
ficou conhecida como a Cúpula da
Terra, a Rio+20 poderá significar
a consolidação da Cúpula da
Mercantilizacão da Natureza, com ou
sem consenso.
Um acordo de livre comércio
disfarçado de verde?
Seguindo na linha da captura
corporativa das convenções da ONU,
o processo em marcha por conta da
Rio+20 é o de recomendar estratégias
domésticas (leia-se políticas nacionais)
que os países em desenvolvimento
(e não aqueles historicamente
responsáveis pelas crises ecológica,
financeira, alimentar, energética...)
necessitam pôr em prática para
alcançar os desafios da transição para
a economia verde (tema sobre o qual
não há consenso nem entre os países
envolvidos na negociação) e mapear o
andamento das iniciativas.
Nos moldes dos polêmicos
empréstimos do Banco Mundial e
13
do Fundo Monetário Internacinal
(FMI) para os chamados Ajustes
Estruturais da economia dos países em
desenvolvimento, de privatização e
abertura dos serviços à fase neoliberal
do capitalismo nos anos de 1990,
ou das imposições dos Tratados de
Livre Comércio (TLCs) às políticas
nacionais para as indústrias extrativas,
a economia verde vem, tal e qual,
como uma Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA). No entanto, ela vem
muito mais sutil, disfarçada de verde e
considerada inofensiva nas negociações
mundiais para o meio ambiente.
O ajuste estrutural
do meio ambiente ao capital
O Brasil sancionou, em plena
loucura pós Copenhague, nos
últimos dias de 2009, sua Política
Nacional sobre Mudança do Clima
(PNMC). E mesmo após quase uma
década de demandas da sociedade
civil, houve o veto presidencial
ao artigo que tratava da redução
progressiva do uso de combustíveis
fosseis e a inclusão da instituição de
mercados certificados de carbono, o
suprassumo da economia verde.
Hoje, os planos setoriais, outro
instrumento da PNMC, estão para ser
aprovados com pujantes orçamentos
públicos. No entanto, eles não vão
além de “mais do mesmo”: um plano
chamado ABC do agronegócio, ou
Agricultura (industrial) de Baixo
Carbono; outro de Siderurgia Verde,
para exportação de aço produzido
com carvão vegetal de monoculturas
de árvores; um terceiro, que é o
próprio Plano Decenal de Expansão
de Energia (PDEE), calcado na
construção de barragens na Amazônia
e na expansão do agronegócio
da energia da cana e da energia
14
nuclear; e outros dois de combate
ao desmatamento na Amazônia e no
Cerrado.
Já em 2010, durante as negociações
de Cancun, o Brasil lançou o Fundo
Clima, para direcionar recursos
da exploração do petróleo do présal - de alto carbono - na forma
de empréstimos num total de 200
milhões de reais para o setor privado
assim promover a economia verde.4
Políticas públicas para garantir
direitos ao mercado
Avançam as políticas verdes com
resultados para a especulação fundiária
e que fazem da reforma agrária um
sonho de justiça cada vez mais distante.
Há quem diga que o “Novo Código
Florestal” ruralista a ser votado no
Senado deixa o Brasil em flagrante
contradição como país anfitrião da
Rio+20. Não será o contrário? O
governo poderá, a seguir, vetar algumas
emendas, ou não perdoar a dívida de
desmatadores. Mas tirar a proteção
do Estado, reduzindo ou eliminando
Áreas de Preservação Permanentes
(APPs) e Reserva Legal, é uma forma
de dar acesso aos mercados a essa
enorme e bilionária riqueza verde que,
até então, não circulava nas bolsas.
Nova modalidade em debate, depois
da votação no Congresso, é que os
desmatadores anistiados possam
também receber incentivos e créditos
de carbono por recuperar áreas que
degradaram - isso não sendo válido
para os pequenos agricultores, que
estariam isentos do dever de reconstituir
reserva legal.
Nessa linha, estão em tramitação os
Projetos de Lei (PLs) de REDD nacional
e estaduais e o de Serviços Ambientais,
que já têm cronograma definido para
“ou sim ou sim” estarem aprovados
antes da Rio+20 para mostrar como o
Brasil fez sua lição de casa. Antes que
nos organizemos e nos atentemos para
o seguimento destas políticas, uma
lei dessas dá como certa a perda de
soberania das comunidades sobre seus
territórios ao garantir juridicamente
o acesso irrestrito das corporações ou outros pagantes dos serviços que
estejam compensando a degradação
ambiental de suas atividades em outro
canto do mundo - para medições
e verificações sobre os serviços
adquiridos, sejam eles o carbono, a
água ou a biodiversidade.
Entre os estados mais adiantados
está o Acre, que desenvolve um projeto
pioneiro de REDD, contabilizando um
volume estimado, para os anos de 2006
a 2009, de 100 milhões de toneladas
Contra Corrente
de dióxido de carbono (CO2), cuja
comercialização será feita em leilão na
BM & FBovespa no final do segundo
semestre de 2011 para precificar, pela
primeira vez no Brasil, os créditos de
carbono das florestas.5
E chegando à capital dos megaeventos,
para além da Rio+20, no Rio de Janeiro,
se anuncia a Copa do Mundo verde e
solar. Ela se concretiza com vultosos
financiamentos públicos para o setor
privado abastecer com energia renovável
novos estádios e mega infraestruturas
de entretenimento das elites, a serem
construídas em locais de disputa com as
comunidades urbanas carentes de acesso
aos serviços públicos básicos. Cada vez
mais a lógica da especulação imobiliária
nas cidades reproduz o discurso do verde
que entrou pela porta do clima. É o
caso da geração de créditos e mercados
de compensações no caso de projetos
que pela lei sejam privados de aplicar
máximos índices construtivos, ou dos eco
condomínios de luxo que apropriam-se
de áreas verdes anteriormente públicas e
passam a vender sustentabilidade.
Movimentos sociais
na contra corrente
Buscando deslegitimar desde já
o pretenso novo consenso global
da economia verde, os movimentos
sociais no Brasil e no mundo podem
ver o caminho a Rio+20 como um
processo político para fortalecer e dar
visibilidade às lutas de resistência no
campo, nas cidades e na floresta, assim
como às propostas e soluções populares
por justiça social e ambiental.
Através da Rede Brasil sobre
Instituições Financeiras Multilaterais,
o Amigos da Terra, juntamente com
a Via Campesina, a Marcha Mundial
das Mulheres, o Jubileu Sul e mais
dez outras redes nacionais, integra
o Comitê Facilitador da Sociedade
Civil para a Rio+20. Este Comitê
prepara uma série de atividades locais,
nacionais e internacionais, que passam
pelo fórum alternativo ao G20, na
França, em novembro; pela COP17
do Clima, em Durban, no final de
novembro; pelo Fórum Social Temático,
em Porto Alegre, em janeiro de 2012;
e pelas atividades paralelas a Rio+20,
que pretendem oferecer um choque de
paradigma durante a próxima semana
do meio ambiente no Rio de Janeiro.
Sem ter como foco os megaeventos
oficiais, estas etapas podem
representar momentos de convergência
e fortalecimento dos movimentos sociais
e das suas propostas contra hegemônicas,
necessárias ao enfrentamento de um
novo e complexo ciclo de acumulação
repleto de contradições e apropriações
dos discursos ambientais e das demandas
populares por justiça social.
O grande desafio e oportunidade que
esta Conferência traz é o da mobilização
daqueles setores da sociedade civil ávidos
por um real choque de paradigma, por
mostrar justamente que as soluções reais
não têm como se dar, nem pintadas (de
verde), dentro de um sistema que precisa
mudar, e já.
“A economia verde
vem, tal e qual,
como uma ALCA. No
entanto, ela vem
muito mais sutil,
disfarçada de verde
e considerada
inofensiva nas
negociações
mundiais para o
meio ambiente.”
Lucia Ortiz é coordenadora do Amigos da Terra Brasil,
membro da Coordenação Nacional da Rede Brasil sobre
Instituições Financeiras Multilaterais e coordenadora regional
do Programa Justiça Climática e Energia do Amigos da Terra
América Latina e Caribe (ATALC) – [email protected]
1- Ver SUMMARY OF THE NINETEENTH SESSION OF THE
COMMISSION ON SUSTAINABLE DEVELOPMENT, 2-14 MAY
2011, em: http://www.iisd.ca/vol05/enb05304e.html
2- http://www.eclac.cl/noticias/paginas/5/43755/
Conclusiones_reunion_prep_Rio+20-2011-esp.pdf
3- Resolução ONU A/RES/64/236
4- Ver em: http://www.ecodebate.com.br/2010/10/27/
decreto-regulamenta-fundo-nacional-sobre-mudanca-doclima-fnmc-ou-fundo-clima/
5- Em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/
economia/2011/05/30/noticiaeconomiajornal,2250488/
credito-de-carbono-podera-ser-comercializado.shtml
15
Jubileu Sul*
Banco Mundial
Fora do Clima!...
e de nossos países
Campanha internacional denuncia os novos interesses mercadológicos dessa velha
instituição que, através de falsas soluções, quer assegurar a hegemonia financeira
A
ssim como as demais Instituições
Financeiras Internacionais (IFIs),
desde a sua criação, o Banco
Mundial tem servido como instrumento
de defesa dos interesses do Norte
global, das transnacionais e das elites
financeiras e política. Ou seja, atua na
defesa dos responsáveis por impulsionar
e beneficiarem-se do modelo econômico
que empobrece as grandes maiorias,
explora a natureza, gera a mudança
climática e mina a soberania dos povos.
Há décadas, o Banco Mundial é alvo
de graves denúncias e mobilizações que
reivindicam a sua retirada e a de suas
instituições correlatas (os banco regionais
de desenvolvimento, o Fundo Monetário
Internacional e o Centro Internacional
para Arbitragem de Disputas sobre
Investimento – Ciadi, dentre outras) dos
países do Sul e a transformação profunda
do sistema financeiro.
Porém, esse banco encontrou,
na confluência da crise sistêmica
(econômica, alimentar, energética e
climática, dentre outras), uma nova
roupagem para suas velhas práticas.
Através de um discurso repaginado,
passou a incorporar e consolidar um
conjunto de ações para a “transição”
para um capitalismo “verde”. Para
16
isso, incorporou em suas normas as
“preocupações ecológicas” e uma suposta
prioridade para o “desenvolvimento
sustentável”. Com esse pseudo “novo
paradigma”, seguiu impondo suas
definições sobre os problemas e suas
soluções. Não se pode permitir que o
Banco Mundial deturpe a defesa dos
direitos dos povos e da Natureza para
continuar priorizando os mesmos
interesses de sempre.
A crise climática é uma realidade
atual que impacta mais as populações
do Sul global. Ela é consequência do
próprio modelo de desenvolvimento dos
países industrializados do Norte e de um
modo de produção e consumo baseado
na crença de que a natureza não possui
limites. Com a cumplicidade dos governos
e das elites do Sul, as comunidades
trabalhadoras, povos originários,
camponeses, pescadores e mulheres são
obrigados a pagar pelos custos de uma
crise que não causaram.
Novo paradigma? É tudo mentira!
No mesmo sentido, as respostas que vêm
sendo formuladas desde os centros de
poder - as corporações transnacionais e
as instituições financeiras internacionais
- são falsas soluções, pois ignoram as
causas dos problemas e aumentam a
dívida climática dos países do Norte. Para
estas instituições, as mudanças climáticas
revelam-se como uma saída para a crise
econômica e uma oportunidade para a
criação de novos paradigmas e conceitos,
como o de “economia verde”.
Assim, se reduz a crise civilizatória a
uma crise ecológica e a crise ecológica a
uma crise climática, e esta a uma falha
do mercado. A destruição ecológica se
converte em um novo impulso para o
crescimento e a acumulação econômica
das elites. Os problemas ambientais e
sociais são caracterizados como uma
questão meramente tecnológica ou
da falta de clareza na atribuição dos
direitos de propriedade. Frente aos quais
se reivindicam soluções de mercado,
como os novos produtos financeiros
“verdes”, a criação e a venda de serviços
ambientais e a mercantilização da
natureza, de modo geral.
A estratégia do Norte, reconhecendo o
já inevitável problema do aquecimento
climático, busca preservar a impunidade
e evitar qualquer mudança no estilo
de vida e no consumo, além de tentar
transferir a responsabilidade ao Sul,
através da promoção e apoio a falsas
soluções como o mercado de carbono,
Contra Corrente
Fundos e mais fundos
Por outro lado, a criação do mercado
de carbono abriu a porta para que as
IFIs e, em especial o Banco Mundial,
expandissem sua área de atuação
e fortalecessem sua capacidade de
intervenção e condicionamento sobre
os países mutuários (emprestadores).
Também permitiu gerar um programa
novo de financiamento para projetos
integrados ao mercado de carbono
através de iniciativas como o
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
(MDL), Controle e Comércio (Cap and
Trade, na versão original, em inglês)
e os projetos do programa de Redução
de Emissões por Desmatamento e
Degradação (REDD). Este programa
permite aos países do Norte, e suas
transnacionais, compensar ficticiamente
parte de suas emissões de gases de efeito
estufa financiando projetos no Sul. Esse
modelo aumenta a dívida financeira
ilegítima, assim como também as
dívidas ecológicas e sociais. O mercado
de carbono favorece a especulação e o
lucro a partir das mudanças climáticas,
fomentando novos “derivados” que nada
tem a ver com o impacto climático, mas
sim com a possível criação de novas
bolhas especulativas similares ao que
ocorreu em 2007 e 2008, quando o
mercado imobiliário explodiu.
Atualmente, o Banco Mundial
administra 12 fundos de Unidade de
Financiamento de Carbono, com um
valor aproximado de 2,5 bilhões de
dólares, que até agora envolveram
países como China, Índia, Brasil, México
e Colômbia.
Entre os fundos mais importantes
estão: - Fundo de Biocarbono: centrado
em projetos florestais e do uso da terra;
- Fundo de Carbono de Desenvolvimento Comunitário: centrado em projetos em países menos desenvolvidos;
O Banco Mundial, também maneja
distintos fundos de investimentos,
por exemplo:
- Fundo de Tecnologia Limpa:
projetos de mitigação ou redução de
emissões;
- Fundo Cooperativo para o Carbono
das Florestas (FCPF): para mitigação REDD;
- Programa de Investimento em
Florestas: para mitigação - REDD;
- Programa Piloto de Resistência
Climática: para adaptação;
- Programa de Ampliação da Energia
Renovável para os Países de Baixo
Ingresso: para mitigação - geral;
- Fundo Estratégico sobre o Clima:
adaptação, mitigação – REDD,
mitigação – geral;
- Fundo para o Meio Ambiente
Mundial (GEF, sigla em inglês): tem
dois fundos fiduciários financiando
projetos de adaptação e mitigação.
Nas negociações sobre clima, os
governos do Norte têm buscado
reforçar este papel do Banco Mundial
através, por exemplo, da gestão
do Fundo Verde Climático, cuja
criação foi acordada na COP-16,
em Cancun. Mesmo reconhecendo
que o financiamento prometido é
problemático pela sua lógica, destino
e atores envolvidos, além de outras
questões, o prometido não é aplicado.
Investigações recentes assinalam
que dos 30 bilhões de dólares para
financiamento “rápido” que foram
prometidos em dezembro de 2009 no
chamado “Acordo de Copenhague”, até
agora, foram aplicados efetivamente
apenas 7,9 bilhões de dólares, dos quais
42% (3,3 bilhões de dólares) serão
canalizados através do Banco Mundial
e 47% (3,7 bilhões de dólares) serão
aplicados através de empréstimos.
Creative Commons
as hidrelétricas, a energia nuclear,
os agrocombustíveis e a venda de
tecnologia. Desse modo, o papel que as
elites buscam consolidar junto ao Banco
Mundial é chave e similar ao utilizado
nos anos de 1970, quando se propagou
o modelo de desenvolvimento com base
no endividamento externo, e nos anos de
1980 e 1990, quando utilizou-se dessa
dívida para impor o ajuste estrutural, as
privatizações e a abertura neoliberal.
Campanha denuncia as falsas soluções propostas pelo Banco Mundial: a hora de agir é agora
17
karmo
Mais do mesmo
Enquanto isso, o Banco Mundial
continua financiando um modelo de
desenvolvimento que contribui para
o aquecimento climático, incluindo
massivo investimento em combustíveis
fósseis e no agronegócio:
• Entre 1992 e 2004, aprovou
mais de 11 bilhões de dólares de
empréstimos para mais de 120 projetos
de combustíveis fósseis, representando
20% das emissões globais atualmente.
• Somente em 2007 e 2008, o Banco
Mundial financiou outros 7,3 bilhões
de dólares em projetos de combustíveis
fósseis – sem incluir empréstimos
para as políticas e agências de
financiamento intermediário do setor
de combustível fósseis. O banco
também financiou 5,3 bilhões de
dólares para energias renováveis
e eficiência energética. Como é de
se esperar, a construção da “nova”
Estratégia Energética do Banco Mundial
para 2011 apresenta algumas mudanças.
Entre outros aspectos, planeja investir
no setor privado enfocando na
produção de energia e não no consumo.
Para o Banco Mundial, a energia
limpa continua sendo a hidrelétrica,
os agrocombustíveis, a energia nuclear
(mesmo afirmando que não vai
financiar) e o mercado de carbono.
Ao desenvolver estas políticas, o
Banco Mundial continua ignorando,
entre outras questões:
18
* a sugestão da Comissão Mundial
de Barragens, que acaba de completar
10 anos de esquecimento, sobre
os impactos econômicos, sociais e
ecológicos negativos das represas.
As hidrelétricas não são fontes de
energia limpa: contribuem para o
desmatamento e a expulsão das
populações de seus territórios e são, ao
mesmo tempo, grandes emissoras de
gases de efeito estufa na atmosfera;
* as advertências da FAO
(Organização da ONU para a
Agricultura e Alimentação)
sobre os impactos negativos dos
agrocombustíveis sobre a segurança e a
soberania alimentar e o desmatamento;
* a pressão, a mobilização e as
críticas de milhares de organizações
e pessoas que, nas últimas décadas,
reivindicam o fechamento desta
instituição ilegítima e injusta.
O Acordo dos Povos - realizado
durante a Conferência Mundial dos
Povos sobre as Mudanças Climáticas
e os Direitos da Mãe Terra, em abril
de 2010, em Cochabamba (Bolívia),
como uma resposta ao fracasso de
Copenhague (COP16) - afirma que o
financiamento mínimo necessário
para enfrentar as mudanças climáticas
deve ser de 6% do Produto Interno
Bruto (PIB).
Os fundos devem ser públicos,
novos, adicionais e não reembolsáveis,
eliminando o mercado de carbono,
e sem nenhum envolvimento do
Banco Mundial ou dos bancos de
desenvolvimento regionais. O Acordo
demarca ainda que, para construir
o equilíbrio e a equidade climática,
é indispensável reparar a dívida
ecológica e climática que o Norte
tem com o Sul e com todo o planeta.
Os fundos não devem ser entendidos
em função das mudanças climáticas,
mas sim em função da busca de um
caminho para uma sociedade não
dependente de petróleo, pois são os
combustíveis fósseis os principais
causadores do problema.
Conhecemos as consequências
históricas das dívidas ilegítimas que o
Sul global tem sofrido há séculos. Nesse
sentido, conclamamos que, em todas
as partes do mundo, sejam organizadas
ações que evidenciem o papel danoso
do Banco Mundial e que se fortaleça
a resistência da Campanha Banco
Mundial Fora do Clima. É preciso fazer
frente às falsas soluções que este banco
promove em relação à crise climática,
incluindo, sobretudo, o financiamento
ao mercado de carbono em suas
diversas formas, e as consequências
para a aliança dos direitos dos povos e
a natureza.
* O Jubileu Sul, rede composta de organizações
e movimentos da sociedade civil da América Latina
e Caribe, África e Ásia, integra a Campanha Banco
Mundial Fora do Clima – www.jubileubrasil.org.br
Adriana Ramos*
Contra Corrente
REDD: financiamento
para florestas ou
financeirização climática?
Greenpeace/Rodrigo Baleia
Em relação à compensação de emissões de carbono, o destino e funcionamento do REDD ainda não
estão suficientemente claros no Brasil; a prioridade deve ser para quem protege as florestas
“O REDD pode ser visto como um mecanismo que apóia financeiramente a proteção das florestas : mecanismo em disputa”
R
EDD é a sigla para Redução de
Emissões por Desmatamento e
Degradação. É um mecanismo
que reconhece a importância das
florestas na proteção do clima e
propõe uma compensação aos países
que estão dispostos e em condições de
reduzir as emissões por desmatamento
e degradação florestal. Neste sentido,
o REDD pode ser visto como um
mecanismo que apóia financeiramente
a proteção de florestas.
Embora ainda não haja definições
específicas sobre o que será abarcado
pelo mecanismo, no âmbito da
Convenção de Clima ou mesmo
na legislação nacional. Levandose em conta que a proteção das
florestas pode se dar por diferentes
estratégias, entre elas, a promoção
de seu uso sustentável, como tem
sido historicamente feito por povos
indígenas e comunidades tradicionais,
o REDD pode também apoiar o
desenvolvimento de alternativas
econômicas para esses grupos sociais.
O Fundo Amazônia foi criado
19
pelo governo brasileiro a partir das
reduções das emissões oriundas do
desmatamento da Amazônia ocorridas
entre os anos de 2005 e 2009. Não há
titulação ou certificação de carbono a
partir da doação ao Fundo Amazônia.
O que o BNDES emite é um diploma
reconhecendo a contribuição dos
doadores ao Fundo Amazônia.
O diploma traz a quantidade de
toneladas de carbono correspondentes
ao valor da contribuição financeira
para o Fundo, mas não gera direitos
ou créditos de nenhuma natureza. O
BNDES afirma que está discutindo o
desenvolvimento de uma metodologia
de inventário de carbono visando
permitir a compensação limitada
de emissões com projetos de REDD
+, embora não haja informação
pública sobre essa possibilidade, e
nem amparo formal nas políticas
brasileiras de REDD para tal, ao
menos por agora.
O Fundo Amazônia se diferencia de
outros fundos voltados às florestas
tropicais no âmbito das mudanças
climáticas, como o Programa de
Investimentos Florestais (FIP),
do Banco Mundial. No caso do
FIP, os investimentos não estão
condicionados ao ato da comprovação
da redução das emissões. Além
do Fundo Amazônia, o BNDES
administra outros fundos direcionados
à regularização ambiental ou
restauração florestal. Este é o caso
do Programa ABC, de crédito para
financiar ações que contribuam
para a redução de emissões de
gases causadores do efeito estufa
geradas pela atividade agropecuária.
O Fundo Mata Atlântica, como o
Fundo Amazônia, é de recursos não
reembolsáveis. O BNDES anunciou
que utilizaria recursos do Fundo
Mata Atlântica, para a neutralização
de emissões de sua sede, no Rio
de Janeiro. Entretanto, não há
informações sobre se e como isso
vem sendo feito.
20
Priorizar os pequenos
A crescente especulação sobre as
possibilidades de utilização do mecanismo
REDD como compensação de emissões
de carbono demonstram a fundamental
relevância de se definir claramente em
âmbito nacional a que se destinará o
mecanismo REDD e como funcionará.
Esse é o grande desafio da sociedade
civil brasileira em relação ao tema REDD,
assegurar que seja um instrumento de
repartição de benefícios que priorize
os atores sociais historicamente
“O grande desafio é
assegurar que o REDD
seja um instrumento
de repartição de
benefícios que
prioriza os atores
sociais historicamente
comprometidos e
responsáveis pela
manutenção das
florestas”.
comprometidos e responsáveis pela
manutenção das florestas.
É essa perspectiva que tem balizado
a atuação da representação do Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos
Sociais para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (FBOMS) no Comitê
Orientador do Fundo Amazônia (COFA).
A redução dos desmatamentos na
Amazônia foi um processo resultante
de ações de governo e da sociedade e,
principalmente, das comunidades que
vivem do uso sustentável da floresta
na região. Por isso, esses grupos sociais
devem ser priorizados na aplicação dos
recursos do Fundo Amazônia.
Para viabilizar o acesso das
organizações representativas das
comunidades locais ao Fundo, a
representação da sociedade civil no
COFA tem defendido o estabelecimento
de editais específicos para pequenos
projetos, e o apoio a outros fundos que
tenham mais experiência e agilidade
para apoiar projetos menores, a
exemplo do Fundo Dema, administrado
pela Fase, que recentemente firmou
contrato com o Fundo Amazônia.
As demais pautas prioritárias da
representação do FBOMS no COFA
são: ampliar a transparência do Fundo
Amazônia e a coerência entre os
objetivos do Fundo e os investimentos
do BNDES na região.
Para ampliar a transparência do
Fundo Amazônia temos cobrado
do BNDES ações de comunicação
mais eficientes, tanto no que diz
respeito às informações necessárias
ao acesso ao Fundo, quanto às
relacionadas ao desenvolvimento dos
projetos. Ao mesmo tempo, temos
buscado promover um maior controle
social sobre os recursos do Fundo
Amazônia, divulgando informações
sobre os projetos desenvolvidos em
deolhonofundoamazonia.ning.com.
No que diz respeito à coerência
entre os objetivos do Fundo Amazônia
e os demais investimentos do BNDES
na região, trata-se do desafio mais
complexo e com menor permeabilidade
dentro do próprio Banco, e a estratégia
do FBOMS para enfrentá-lo é buscar
articulação com outros grupos
da sociedade, principalmente a
Plataforma BNDES e a Rede Brasil.
* Adriana Ramos é secretaria executiva adjunta do Instituto
Socioambiental (ISA) [email protected]
Rubens Harry Born*
Greenpeace/Rodrigo Baleia
Contra Corrente
Fundo Clima pretende assegurar recursos para a mitigação e a adaptação
à mudança do clima: instrumento limitado?
C
omo parte das incipientes respostas
políticas do Brasil à comunidade
internacional no tocante ao
enfrentamento doméstico para o
cumprimento do acordo multilateral da
Organização das Nações Unidas (ONU)
sobre mudança de clima, o governo
brasileiro fez aprovar a lei n° 12.187,
de 29 de dezembro de 2009, que define
a Política Nacional sobre Mudança
Climática (PNMC), e a lei n° 12.114, de
09 de dezembro de 2009, que estabelece
e dispõe sobre o Fundo Nacional sobre
Mudança Climática (FNMC), um dos
instrumentos da política nacional.
Em 2008, o governo brasileiro
apresentou o PNMC para a sociedade e
anunciou que até 2020, com medidas
voluntárias, as emissões brasileiras seriam
reduzidas em 36 a 38% em relação ao
nível que poderiam chegar caso nada
fosse feito. Sua implementação carece do
detalhamento de alguns planos setoriais. O
plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono)
foi elaborado em consultas com algumas
organizações. Outros planos e atividades
setoriais de combate ao desmatamento, na
Amazônia e no Cerrado, e de mitigação
Fundo Clima:
útil, mas
suficiente?
Considerado, por alguns, um importante
instrumento da política do clima, este
Fundo navega em um mar de dúvidas
sobre sua real capacidade de contribuir
para um Brasil de “baixo carbono”
de emissões na produção e uso de energia
devem detalhar o PNMC.
Essas ações são consideradas, por
alguns, um razoável avanço, uma vez que,
até recentemente, o governo defendia que
o Brasil, por não ter compromissos globais
de redução obrigatória de emissões, não
precisaria de uma política nacional. Esta
percepção baseava-se na constatação
de que os projetos de compensações
de emissões por meio do Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo (MDL), do
Protocolo de Quioto, bastariam para que o
País contribuísse com os esforços globais.
No entanto, o cenário nacional é,
como em outros países, complexo e, por
vezes, contraditório. Por um lado, temos
tais instrumentos. Por outro, predomina
ainda a visão de que qualquer tipo de
crescimento econômico é louvável.
Seguimos adiante com programas
de desenvolvimento insustentável e
que agravarão o aquecimento global,
como: ampliar a exploração e uso de
combustíveis fósseis; estimular o aumento
da frota de veículos particulares; e
denegar critérios de emissões para o
licenciamento ambiental de atividades
modificadoras ou que usam recursos na
natureza, dentre muitas outras.
O Brasil tem que lidar também com
as disparidades regionais. Isso significa
equacionar, de forma equitativa, as
condições dos estados e municípios
em lidar com as causas e os impactos
das mudanças de clima, além de evitar
“vazamentos” das emissões (por efeito
de medidas para reduzir as emissões em
uma área, as atividades econômicas que
as produzem se deslocam para outras
regiões). Teríamos que evitar também a
ocorrência de fenômenos registrados no
âmbito internacional: alguns, resistindo
a mudar sua estrutura produtiva, buscam
medidas compensatórias em outras
regiões. Ou seja, manter uma indústria
aqui e plantar uma árvore acolá, ou
continuar a explorar petróleo e ampliar o
uso de termoelétricas a carvão em troca de
algumas usinas eólicas.
O Fundo Clima (FNMC) – como ele é
mais conhecido - é um fundo de natureza
contábil, regulamentado pelo Decreto n°
7.343/2010, vinculado ao Ministério do
Meio Ambiente (MMA). Ele tem como
finalidade assegurar recursos para apoio
21
a projetos ou estudos e financiamento de
empreendimentos que visem à mitigação
da mudança do clima e à adaptação à
mudança do clima e aos seus efeitos.
Os recursos do Fundo Clima são
constituídos por até 60% da cota
parte (10%) do MMA dos recursos da
participação especial aplicada sobre a
receita bruta da produção de energia,
deduzidos os royalties, previstos no
inciso II do § 2º. do art. 50 da lei n°
9478, de 1997 (lei de política energética).
Também podem constituir recursos do
Fundo: as dotações consignadas na lei
orçamentária anual da União e em seus
créditos adicionais; recursos decorrentes
de acordos, ajustes, contratos e convênios
celebrados com órgãos e entidades da
administração pública federal, estadual,
distrital ou municipal; doações realizadas
por entidades nacionais e internacionais,
públicas ou privadas; empréstimos de
instituições financeiras nacionais e
internacionais; reversão dos saldos anuais
não aplicados; e recursos oriundos de
juros e amortizações de financiamentos.
Poucas definições
Em relação ao recorrente questionamento
sobre a possibilidade do Fundo apoiar
medidas que levem o Brasil a ser um país
de “baixo carbono”, é preciso avaliar
se a Política Nacional de Mudança de
Clima, em sua forma atual, é suficiente e
adequada. Também é preciso ter clareza
de seu impacto no Plano Plurianual
de Ações (PPA), bem como avaliar
outros instrumentos regulatórios, de
planejamento e investimentos do Estado
brasileiro, inclusive os do Plano de
Aceleração do Crescimento (PAC). No
entanto, um caso exemplar foi o fato de
que, na promulgação da lei no 12.187,
houve veto presidencial ao dispositivo que
definia como uma das diretrizes da política
o “estímulo ao desenvolvimento e ao
uso de tecnologias limpas e ao paulatino
abandono do uso de fontes energéticas que
utilizem combustíveis fósseis”.
Os recursos públicos do FNMC devem
ser aplicados em apoio financeiro
22
reembolsável mediante concessão de
empréstimo, por intermédio do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), o agente operador; e
em apoio financeiro não reembolsável a
projetos relativos à mitigação da mudança
do clima ou à adaptação à mudança do
clima e aos seus efeitos, aprovados pelo
seu Comitê Gestor.
Cabe a este Comitê Gestor vinculado
ao MMA, com representantes do
poder Executivo federal e de setores
da sociedade, definir, anualmente, a
proporção de recursos a serem aplicados
em cada uma das modalidades,
empréstimos e doações, sendo que estas
podem ser aplicadas diretamente pelo
MMA ou transferidas mediante convênios,
termos de parceria, acordos, ajustes ou
outros instrumentos previstos em lei.
A primeira reunião do Comitê
Gestor, no início de 2011, tratou de
questões operacionais e institucionais
e a construção do regimento interno.
Na segunda reunião, em março, foi
apresentada e aprovada a proposta de
aplicação de recursos para este ano,
sendo R$ 200 milhões na categoria de
aplicação reembolsável (financiamento)
e pouco mais de R$ 29 milhões na
concessão (doação) de recursos. Sugeriuse que os recursos reembolsáveis sejam
aplicados em:
• Financiamento das ações estabelecidas
nos planos setoriais da Política Nacional
sobre Mudança Climática;
• Financiamento de ações de mitigação e
adaptação nos estados e municípios;
• Financiamento de inovação tecnológica
para o desenvolvimento e consolidação
de uma economia de baixo carbono;
Em julho, o MMA publicou quatro
editais para recebimento de propostas de
cinco das nove linhas identificadas para
aplicação de recursos não reembolsáveis.
Setenta projetos, com custo total de mais
de R$ 52 milhões, disputaram os R$ 16
milhões disponíveis.
A reunião ordinária do Comitê, no
final de agosto, tinha como pauta
principal a avaliação de critérios e
procedimentos para decidir a aplicação
não reembolsável. Entretanto, nada foi
resolvido, pois não foi disponibilizado
a tempo um conjunto de informações
que permitiriam que os integrantes do
Comitê tomassem decisões. Nova reunião
extraordinária havia sido marcada para o
final de setembro deste ano.
Muitas incertezas
De que servirá um fundo que aplica
algumas centenas de milhões de reais em
projetos meritórios e úteis, se bilhões de
reais continuarem a fluir para iniciativas
que nada têm de sustentáveis e nenhuma
relação com a economia de baixo
carbono? Será que o Fundo Clima pode
se tornar uma referência de critérios e
procedimentos de investimentos públicos,
inclusive em iniciativas de cunho
empresarial, de tal modo que tantos
outros fundos, recursos orçamentários e
instrumentos financeiros, nos três níveis
de governo, sejam mais consistentes
com as necessidades de lidar com
medidas de mitigação e de adaptação às
mudanças do clima? Será que o próprio
BNDES, além do Banco do Brasil, bancos
regionais e os fundos constitucionais
deixarão de investir em atividades e
empreendimentos que, no curto, médio
e longo prazo, não são consistentes
com um país de baixa intensidade de
produção de gases de efeito estufa?
O Fundo Clima, instrumento importante
da Política Nacional de Mudança de
Clima, começou a funcionar. O desafio
é ter condições de fazer a diferença,
instigando especialmente o poder público
e o setor privado na efetiva alocação de
recursos - financeiros, orçamentários
e especiais - em iniciativas que
contribuam para a transição para uma
sociedade fundada em uma economia
ambientalmente sustentável, socialmente
justa e com baixa emissão de gases de
efeito estufa.
Rubens Harry Born é coordenador executivo adjunto do
Vitae Civilis e representante de ONGs no Comitê Gestor do
Fundo – [email protected]
Alessandra Cardoso*
Contra Corrente
De olho nos investimentos
na Amazônia
Além de sistematizar informações sobre a dinâmica dos financiamentos na região,
Observatório produzirá análises críticas sobre seus atores e os impactos
H
estas que o Instituto de Estudos SócioEconômicos (Inesc) se propôs à construção
do Observatório dos Investimentos na
Amazônia, uma iniciativa que pretende
reunir e sistematizar informações
e análises sobre a dinâmica de
investimentos e financiamentos orientados
à Amazônia brasileira. Evidenciar, de
forma sistêmica e contínua, os bilhões
de reais de recursos públicos e privados
envolvidos nestes investimentos é também
uma forma de contribuir à análise crítica
e propositiva de atores políticos que
disputam o significado e os caminhos
para o “desenvolvimento” e para a
“preservação” da Amazônia. Mais que
levantar e divulgar informações técnicas
e financeiras, o Observatório pretende
ser uma ferramenta útil na produção e
difusão de análises sobre atores, arranjos
institucionais, financeiros e impactos
gerados por estes investimentos.
Verena Glass
idrelétricas, hidrovias, ferrovias,
rodovias, mineração, extração
de gás, concessões florestais,
aquisição de terras e projetos de
Redução de Emissões por Desmatamento
e Degradação (REDD). Se todas estas
dinâmicas de investimento estivessem
visíveis em um mapa amazônico com
seus atores e instrumentos propulsores
– incluindo financiadores, investidores,
subsídios, isenções –, o que veríamos? E
se também pudéssemos ver, a partir deste
olhar mais sistêmico dos investimentos,
seus impactos, também sistêmicos, sobre
os territórios?
Foi estimulado por perguntas como
Observatório confirma riscos anunciados envolvendo o REDD: florestas preservadas podem ser destruídas
Os primeiros temas
Para dar início à construção do
Observatório, que será progressivamente
ampliado, escolheu-se incluir projetos de
REDD e hidrelétricas. Metodologicamente,
este levantamento também exigiu
abordagens distintas.
A opção pelo levantamento de
projetos de REDD se justifica pelo
fato de que a despeito da inexistência
de regulamentação internacional e
nacional do mecanismo ele esteja
sendo rapidamente implementado como iniciativas de governos locais, de
multinacionais, de ONGs, de fundações.
Isto, sem que haja uma reflexão
aprofundada e consistente das suas
potenciais implicações e riscos, quer
seja no âmbito da Política Mundial para
o Clima, quer seja como instrumento
financeiro especulativo, como forma
de imobilização e controle de recursos
territoriais ou, ainda, como uma forma de
privatização da proteção ambiental.
O levantamento dos projetos de REDD
na Amazônia foi realizado entre os meses
de abril e junho de 2011, por meio da
aplicação de questionários às instituições
e organizações do setor público,
23
Percepções confirmam riscos
O resultado do levantamento reforça a
posição de organizações e movimentos
que alertam para os riscos e equívocos
envolvendo o REDD. Entre eles está o
de que florestas preservadas estejam
sob o risco de serem destruídas por
múltiplos vetores de desmatamento.
Com seus “proprietários/detentores”
– inclusive, e talvez prioritariamente,
grandes propriedades hoje improdutivas
- recebendo créditos por redução que
ajudam a alimentar um movimento de
aquisição de mais terras e expansão
do próprio agronegócio. O desafio é
dar continuidade neste levantamento,
incluindo novos projetos que venham a
ser identificados e, também, aprofundar
a reflexão sobre o significado e riscos
envolvendo este mecanismo.
Para o levantamento de projetos de
barragem, o Observatório optou por
desenvolver uma metodologia também
própria, que foi pensada e testada a partir
dos projetos hidrelétricos do Complexo
Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia:
usinas de Jirau e Santo Antônio e linha de
transmissão Rondônia-Araraquara, com
uma extensão de 2.375 km.
A metodologia construída permitiu
reunirmos no banco de dados
informações que consideramos úteis
ao propósito de ampliar e aprofundar
o conhecimento sobre esses projetos,
com prioridade para a investigação
24
Gilmar Rocha
privado e sociedade civil identificadas
como responsáveis ou parceiras no
desenvolvimento desses projetos.
Foram identificados sete projetos de
REDD estruturados conforme parâmetros
técnicos que são comumente requeridos
para alçar projetos à condição de
receptores de investimentos privados
em mercados de carbono chamados
voluntários, tais como: metodologia
crível para o cálculo de emissões
evitadas e/ou biomassa estocada;
tempo de realização delimitado e com
resultados e expectativas definidos; área
de influência definida.
Trabalhadores da obra na usina de Jirau
revoltaram-se, em março: violações dos
direitos humanos e trabalhistas para
“cumprir o cronograma”
dos arranjos econômico-financeiros
utilizados para viabilizá-los, para o
processo de licenciamento ambiental e,
igualmente, para os impactos ambientais
e sociais trazidos pelas obras.
Os dados trazidos pelo Observatório até
aqui evidenciam uma elevada pressão,
de caráter público e privado, envolvendo
bancos, órgãos públicos, empresas,
lobistas e gestores, para que não haja
qualquer tipo de prejuízo ao cronograma
das obras e de sua entrada em operação.
É também sob o desígnio da viabilidade
econômica das obras do Complexo
Madeira que o processo de licenciamento
acaba sendo marcado pelo imperativo da
entrada em operação das hidrelétricas.
Sob o ponto de vista do processo
de licenciamento, a metodologia
desenvolvida busca trazer e reforçar
elementos críticos para ampliar e
fortalecer a reflexão sobre este processo
altamente técnico e hermético que,
se não inviabiliza, dificulta muito o
acompanhamento pela sociedade do
passo a passo das análises dos diferentes
órgãos governamentais. Desde a
autorização para a Elaboração do Estudo
de Inventário de uma bacia hidrográfica
até os programas de mitigação e
compensação dos muitos e imbricados
impactos ambientais e sociais trazidos
pelos empreendimentos antes, durante e
depois das licenças ambientais.
A prestação de contas divulgada pelos
empreendedores durante o processo não
passa de uma peça de marketing social e
ambiental – que está muito distante de
apresentar à sociedade a real dimensão
dos impactos e sua efetiva mitigação e
compensação. O tratamento dado pelo
governo nas diversas fases do processo,
da concepção ao licenciamento do
projeto, também em nada contribui para
dar transparência às informações. Diante
disso, a proposta do Observatório é
contribuir no estímulo e subsídio para a
reflexão e controle social sobre todas as
etapas do processo.
Alessandra Cardoso é assessora do Instituto de Estudos
Sócio-Econômicos (Inesc) – [email protected]
Célio Bermann*
Contra Corrente
Petróleo do Pré-Sal:
investindo no passado
Ao invés de priorizar saúde, moradia, saneamento e energia renovável, Brasil opta
por investir em fonte energética sem futuro que causa graves impactos
N
os últimos dois anos, o debate
sobre o Pré-Sal está restrito
ao destino dos royalties da sua
produção. Ainda não se conhece de que
quantidade de reservas está se falando
– os 9,5 a 14 bilhões de barris de óleo,
até o momento confirmados nos campos
de Tupi, Iara e Parque das Baleias, ou se
tratam de reservas que poderão alcançar
de 50 a 150 bilhões de barris.
Estima-se que a área total do Pré-Sal
seja de 149 mil quilômetros quadrados.
Deste total, 42 mil quilômetros quadrados
já foram objeto de concessão e 107 mil
quilômetros quadrados ainda não foram
licitados. A previsão inicial indicava que
a 1ª licitação ocorreria este ano, mas a
indefinição quanto aos royalties levou ao
adiamento. A nova data para a definição
dos contratos com base no modelo de
partilha para leiloar as novas áreas de
exploração de petróleo e gás na camada
pré-sal ficou para o 2º semestre de 2012.
Foi também criada uma nova empresa
estatal, não operacional, que irá gerir
os contratos de exploração. Os recursos
obtidos pela União serão destinados
ao Novo Fundo Social (NFS), também
denominado de ’Fundo Soberano’.
Sem dúvida, a renda petrolífera que
poderá ser extraída com a exploração
desse petróleo atinge cifras gigantescas.
Entretanto, para alcançar uma produção
de 1,815 milhões de barris por dia,
prevista para 2020, os investimentos
nos próximos 10 anos nas atividades de
exploração, desenvolvimento e produção
do petróleo da camada do pré-sal são da
ordem de US$ 111,4 bilhões, conforme
“Trata-se de cerca
de R$ 200 bilhões
a serem investidos
numa fonte energética
que marcou o
desenvolvimento
econômico e o padrão
civilizatório do século
XX. Mas que não
será mais a fonte de
energia do futuro do
nosso planeta.”
as previsões da Petrobrás, incluindo
seus parceiros.
Trata-se de cerca de R$ 200 bilhões a
serem investidos numa fonte energética
que marcou o desenvolvimento
econômico e o padrão civilizatório do
século XX. Mas que, em função da
sua exaustão, não será mais a fonte de
energia do futuro do nosso planeta.
Sob o ponto vista estratégico, a
existência desse petróleo assegura ao
Brasil condições de enfrentar, num
futuro próximo, as restrições cada
vez maiores que vão caracterizar o
período de transição para outras fontes
energéticas. Teremos petróleo, não para
nos transformarmos em “novo país
exportador da OPEP” [Organização dos
Países Produtores de Petróleo], como
querem muitos, mas para ter à disposição
reservas suficientes para atravessar
este período de transição sem grandes
sobressaltos. Apenas isso!
Habitação, saneamento básico e saúde
Mas podemos indagar se esta é a melhor
forma de investimento. Poderíamos
imaginar estes montantes sendo
direcionados para outras demandas
como, por exemplo, a redução do
déficit habitacional, ou para garantir a
universalização do saneamento básico
no Brasil ou, ainda, para cobrir as
necessidades de financiamento à saúde.
Com efeito, com este dinheiro, o Brasil
poderia reduzir pela metade o atual
déficit habitacional de 5,8 milhões de
domicílios, com um custo total estimado
em R$ 406 bilhões.
Ou ainda, para universalizar o
25
26
Mateus Cauduro
saneamento em todo o país
seria necessário aplicar cerca
de R$ 11 bilhões por ano até
atingirmos um total de R$ 220
bilhões em 2020. De acordo com
a Organização Mundial da Saúde
(OMS, 2008), morrem por dia no
Brasil sete crianças entre zero e
cinco anos de idade, vítimas de
diarréias e doenças parasitárias.
Cerca de 34% das crianças dessa
faixa etária se ausentam das
creches e salas de aula devido
às doenças relacionadas
à falta de saneamento. É
também constatado que 15 mil
brasileiros morrem vítimas de
diarréias por ano. Segundo
a Fundação Getúlio Vargas
(FGV, 2008), aproximadamente
53% dos brasileiros não tem
acesso à rede geral de esgoto,
e apenas 20% possuem esgoto
O uso irrestrito do combustível fóssil é considerado uma das principais causas do aquecimento global: energia sem futuro
tratado. Se investisse em
saneamento, o país evitaria
não estabelece o percentual da União
de petróleo pelas biomassas (etanol e
gastos quatro vezes maiores
para a saúde. Os estados devem reservar
biodiesel), serão os veículos elétricos
com tratamento médico hospitalar.
pelo menos 12% do seu orçamento para a
que irão substituir a atual tecnologia
saúde, enquanto que para os municípios o
dos motores à combustão interna. Para
Sistema perverso
piso
é
de
15%
do
orçamento.
superar os atuais desafios da autonomia
O que leva o não investimento nestes
(distância percorrida sem necessidade
setores é a lógica do mercado. Construir
Fontes energéticas do futuro
de recarga), tempo de recarga e custos,
habitações para uma população cuja
Poderíamos também pensar nestes
poderíamos investir em conjunto com a
renda, para 90% dela, é inferior a três
US$ 111,4 bilhões sendo investidos
Bolívia no aproveitamento das reservas
salários mínimos, vai apenas contribuir
de forma diversificada nas fontes
de lítio, localizadas na província de sal
para dinamizar de forma restrita setores
energéticas renováveis.
de Uyuni, com reservas estimadas de
da construção civil e materiais de
Poderíamos
assistir
a
um
formidável
300.000 a 5,5 milhões de toneladas,
construção. Um investimento que não
avanço das usinas eólicas ou da energia
conforme dados da Corporación
encontrará retorno.
solar fotovoltaica. Uma parte deste
Minera de Bolívia (Comibol). TrataO investimento em saneamento
montante poderia ser utilizada para
se do desenvolvimento de baterias de
básico também não se ajusta à
a construção de duas ou três fábricas
lítio de alto desempenho, que serão
lógica do mercado. Trata-se de um
de painéis fotovoltaicos, uma vez
capazes de superar os atuais desafios
investimento sem visibilidade política,
que,
atualmente,
importamos
estes
aos veículos elétricos.
pois são encanamentos enterrados e
equipamentos,
nos
restringindo
ao
papel
São estes alguns exemplos de
estações de tratamento longínquas nos
de um grande mercado para as empresas
possibilidades de investimento no futuro.
centros urbanos.
fabricantes estrangeiras.
Olhar para o petróleo da camada do préEstá também presente no debate atual
Com investimentos em tecnologia
sal é olhar para o passado.
o uso dos royalties do Pré-Sal para o
de ponta poderíamos participar do
financiamento à saúde. Estima-se a
Célio Bermann é professor Livre-Docente do Programa de
desenvolvimento em grande escala dos
necessidade de R$ 30 bilhões anuais, que
Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP)
veículos
elétricos.
Apesar
dos
esforços
na
poderiam ser cobertos sem a criação de
substituição
dos
combustíveis
derivados
um novo tributo. A emenda 29, de 2000,
[email protected]
Philip M. Fearnside*
Contra Corrente
Emissões: os impactos
mais renegados das
hidrelétricas
Indústria, governo e financiadores, como o BNDES, não querem admitir que as
barragens, na Amazônia, são mais prejudiciais que a queima de combustível fóssil
Gabriel Strautman
A
s emissões de gases de efeito
estufa representam um grave
impacto que precisa ser
avaliado tanto no licenciamento pelas
autoridades ambientais brasileiras
como pelas instituições que finaciam a
construção de barragens. A atuação do
Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES) é
particularmente definidora nesse
cenário, uma vez que, além de financiar
a construção de barragens no Brasil,
ele também financia uma série de
projetos na Bolívia e no Peru, onde o
licenciamento é ainda menos rigoroso
que no Brasil.
Represas hidrelétricas não produzem
“energia limpa”, ao contrário das
afirmações da indústria hidrelétrica,
porta-vozes governamentais e os
bancos que financiam a construção
das barragens. Infelizmente, represas
liberam gases de efeito estufa,
contribuindo, dessa forma, com o
aquecimento global. Na Amazônia,
frequentemente, as barragens são
mais prejudiciais do que a queima de
combustível fóssil para a geração de
energia, por várias décadas. A própria
Floresta Amazônica se encontra sob
ameaça de mudanças climáticas nessa
Ao financiar barragens na Amazônia, o BNDES pode ser (co) responsabilizado pelos seus graves
impactos, inclusive pelas emissões de gases de efeito estufa
escala de tempo, fazendo com que
barragens como essas jamais poderiam
ser consideradas mitigadoras do
aquecimento global.
Nas barragens amazônicas, gases de
efeito estufa são liberados de diferentes
formas. Primeiro, as árvores mortas
pela inundação da florestas se projetam
acima da superfície da água e se
deterioram ao ar livre, liberando gás
carbônico (CO2). Esse gás se constitui
em uma contribuição líquida ao efeito
27
estufa, diferente do gás carbônico que
será liberado da água do reservatório,
resultante da decomposição subaquática
de plantas que crescem no reservatório
ou na área circunvizinha, depois da
construção da represa.
A quantidade de gás carbônico que
essas plantas absorvem da atmosfera
enquanto elas crescem é a mesma
que será liberada após a morte delas,
durante o processo de decomposição.
Porém, muito da matéria vegetal que
se decompõe no reservatório não libera
seu carbono na forma de gás carbônico,
mas sim como metano (CH4). Isto ocorre
porque a água do fundo do reservatório
praticamente não tem oxigênio e,
portanto, o oxigênio necessário para
formar gás carbônico não é disponível.
Um impacto muito superior
A metade do peso seco da vegetação
é carbono, e o impacto sobre o efeito
estufa é maior quando a vegetação que
se decompõe debaixo d’água libera
este carbono na forma de metano
em vez de gás carbônico. Isso ocorre
porque, de acordo com o relatório de
2007 do Painel Intergovernamental
sobre Mudança de Clima (IPCC), uma
tonelada de gás metano, ao longo de
100 anos, equivale a 25 toneladas de
gás carbônico. Entretanto, análises mais
recentes, que incluem efeitos indiretos
sobre poeira e outros aerossóis indicam
que o impacto de metano é 34 vezes
maior que o de gás carbônico, para o
mesmo período.
Os reservatórios hidrelétricos são
muito diferentes de lagos naturais,
na medida em que a água de um
reservatório sai pelas turbinas,
localizadas perto do fundo ou, então,
pelos vertedouros, onde a água passa
por uma fenda que se abre quando
uma porta de aço é levantada, também
a uma profundidade considerável na
coluna d’água. Em um lago natural,
a água deixaria o lago através de
um córrego de saída. Dessa forma,
a água viria da superfície, onde ela
28
estaria em contato com o ar. A água
de um reservatório se separa em duas
camadas, uma superfícial – de 2 a 10m
de profundidade, aproximadamente -,
onde a água é relativamente quente e
contém oxigênio dissolvido oriundo
do contato com a atmosfera; e uma
camada mais profunda, onde é água
fria. A camada profunda, e onde o
oxigênio é praticamente ausente, não
se mistura com a camada superficial.
No sedimento no fundo do reservatório,
“Para chegar
a uma decisão
racional sobre
qualquer projeto
energético, a
primeira pergunta
a ser respondida
é a questão sobre
o que irá ser feito
com a energia.”
a decomposição produz metano, que
permanece em concentração elevada na
água na camada profunda. Parte deste
metano é liberada para a superfície
na forma de bolhas ou, por meio de
difusão - essa última, especialmente em
um reservatório recém-formado.
A maior parte da emissão, no entanto,
ocorre quando a água passa pelos
vertedouros e turbinas. Essa água está
sob alta pressão e, quando é lançada
abaixo da barragem, a pressão cai
subitamente. Os gases dissolvidos na
água repentinamente tornam-se menos
solúveis (Lei de Henry, na química),
e a maior parte é liberada durante
um curto espaço de tempo. Esse é o
mesmo processo que ocorre quando
uma garrafa de refrigerante é aberta e
surgem bolhas de CO2, exceto que, no
caso de um refrigerante, a diferença de
pressão é muito menor do que em uma
barragem hidrelétrica.
Quando um reservatório hidrelétrico
é inundado pela primeira vez ocorre
um grande pulso de emissões de
gases de efeito estufa, que permanece
durante os primeiros anos. Isso
inclui o lançamento do CO2 oriundo
da decomposição das árvores mortas,
acima da superfície da água, e a
liberação de CO2 e CH4 oriundos de
outros estoques de carbono existentes
antes do enchimento do reservatório,
tais como carbono do solo e das
folhas que caem, quando as árvores
morrem. Este impulso inicial diminui à
medida que se esgotam os estoques de
carbono em formas que são facilmente
degradáveis.
Após o pico inicial das emissões
a partir de estoques pré-existentes
de carbono, haverá uma emissão
sustentada em um nível inferior,
oriunda de carbono que é produzido
por fotossíntese no reservatório,
na zona de deplecionamento e das
folhas de árvores presentes na área
de captação. Essas folhas caem e,
posteriormente, são levadas para
o rio e seus afluentes pelas chuvas
torrenciais e os eventos de inundação
associados. A emissão sustentada de
metano pela decomposição de biomassa
com essa origem representa uma fonte
permanente de emissões de gases de
efeito estufa.
Conspiração? Só se for a corporativa
A sugestão de que os reservatórios de
hidrelétricas liberam gases de efeito
estufa foi feita pela primeira vez em
1993 por um grupo de canadenses
com base em dados de reservatórios
Contra Corrente
naquele país. Minha publicação, em
1995, provocou a fúria da indústria
de hidroenergia por ter revelado que
a represa de Balbina, na Amazônia
brasileira, teria um impacto maior do
que os combustíveis fósseis. Portavozes da Associação Americana de
Hidrelétricas (dos EUA) e da Associação
Internacional de Hidrelétricas (do
Reino Unido) alegaram que a noção
que barragens produzem metano seria
uma “asneira” e que reservatórios
representavam “um jogo de soma zero”
porque as emissões provenientes dos
ecossistemas pré-reservatórios seriam
eliminadas. No entanto, os ajustes para
essas emissões são incluídos nos meus
cálculos, e os cálculos indicam um
grande impacto líquido de barragens.
A Eletronorte atribuiu a idéia a uma
conspiração internacional que queria
falar mal do Brasil (ver ambos os lados
do debate na seção “Controvérsias
Amazônicas” no site http://philip.inpa.
gov.br).
Nos anos seguintes, uma quantidade
significativa de pesquisas comprovou
as emissões de gases de efeito estufa,
e a indústria hidrelétrica foi forçada a
reconhecer que as barragens liberam
esses gases. No entanto, passou a
sustentar que as emissões são poucas
e muito menores do que as emitidas
a partir de combustíveis fósseis para
gerar a mesma energia. Esta posição,
geralmente, tem sido sustentada
por simplesmente ignorar as fontes
principais de emissões das barragens,
tais como o metano liberado das
turbinas e vertedouros, bem como o CO2
da decomposição de árvores, acima da
superfície da água. As únicas emissões
incluídas na maioria dos estudos
financiados pela indústria hidrelétrica
são as bolhas e a difusão através da
superfície dos próprios reservatórios.
Camuflagem governamental
O primeiro inventário brasileiro de
emissões de gases de efeito estufa,
lançado em Buenos Aires, em 2004,
na Conferência das Partes (COP), da
Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Mudaças do Clima, incluía
uma seção sobre as emissões de
hidrelétricas. No entanto, as emissões
provenientes desta fonte não foram
“Esses impactos
[das emissões]
precisam ser
considerados não
apenas no sistema
de licenciamento
ambiental mas
também no
planejamento de
desenvolvimento
nacional e nas
decisões sobre
financiamento
dos bancos que
constroem as
barragens.”
incluídas no total da contribuição
do País para o aquecimento global.
Além disso, a seção sobre emissões
hidrelétricas, mais uma vez, só
incluiu as emissões da superfície do
reservatório. Minhas estimativas, por
exemplo, são mais do que 10 vezes
maiores do que os números oficiais
para as duas barragens na Amazônia,
incluídas no relatório (Tucuruí e
Samuel). Essa diferença é resultante,
principalmente, da inclusão das
emissões provenientes das turbinas,
vertedouros e da decomposição de
árvores mortas, acima da superfície
da água (ver trabalhos sobre cada
barragem disponíveis em http://philip.
inpa.gov.br). Nada mudou no Plano
Nacional de Mudanças Climáticas
(PNMC), apresentado na COP, em
Copenhague, em 2009. Nele, as
barragens são descritas como energia
limpa e as emissões das turbinas e
vertedouros não são mencionadas.
Neste momento, o exemplo mais
flagrante de que essas emissões são
ignoradas é o Estudo de Impacto
Ambiental (EIA) e o Relatório de
Impacto Ambiental (Rima) para a
barragem de Belo Monte, proposta
para o Rio Xingu. O EIA discute as
emissões de gases de efeito estufa, mas
não chega a nenhuma quantificação
do impacto do projeto e restringe a
discussão às emissões da superfície do
reservatório. Há quinze anos atrás,
isso poderia ser desculpável mas,
atualmente, fingir que emissões das
turbinas e vertedouros não ocorrem
é indefensável (consulte a revisão
sobre o EIA/Rima de Belo Monte em
http://colunas.globoamazonia.com/
philipfearnside/). O EIA/Rima de
Belo Monte ignora completamente
a literatura, hoje substancial,
mostrando a liberação de quantidades
significativas de metano das turbinas
e vertedouros. Estas emissões não são
meros “cálculos”, pois têm sido medidas
diretamente em Balbina, no Brasil, e em
Petit Saut, na Guiana Francesa.
Outra tragédia anunciada
No caso de Belo Monte, a controvérsia
vai muito além das emissões das
principais fontes de metano da represa
29
em si. A maior controvérsia envolve
o retrato da barragem na versão atual
do EIA/Rima como sendo a única
planejada no Rio Xingu. A maioria dos
observadores que não trabalha para
a indústria hidrelétrica ou que não é
financiada por ela (inclusive este autor)
considera este cenário fictício (veja
evidência citada nos trabalhos sobre
Belo Monte, disponíveis em http://
philip.inpa.gov.br). O plano original
incluía a construção de cinco represas,
à montante de Belo Monte. Três dessas
represas (embora em locais ligeiramente
diferentes) foram incluídas no último
plano, antes do anúncio do cenário de
uma única represa, em 17 de julho de
2008. O Conselho Nacional de Política
Energética (CNPE), que instituiu a
política de uma única barragem, é
livre para reverter esta decisão a
qualquer hora.
A sequência mais provável de eventos
é que, após a conclusão de Belo
Monte, ou quando ela ainda estiver em
construção, haveria uma “descoberta
surpresa” de que Belo Monte seria
economicamente inviável sem a água
armazenada em represas à montante e,
com isso, apareceriam as justificativas
necessárias para a aprovação das
represas adicionais. A represa
mais conhecida como “Babaquara”
(oficialmente renomeada como
“Altamira”) seria a primeira prioridade.
No projeto original, esta represa teria
um reservatório com 6.140 km2 de área,
o dobro da área da notória represa
de Balbina. A Babaquara teria uma
zona de 3.580 km2 exposta na época
da água baixa (i.e., maior que toda a
área de Balbina) que seria re-inundada
todos os anos. A emissão potencial
de uma represa como esta é enorme.
Parte da emissão ocorreria no próprio
reservatório de Babaquara e parte
com a passagem da água carregada
de metano para o reservatório de Belo
Monte, localizado imediatamente
abaixo dela. O “Complexo Altamira”
(Belo Monte/Babaquara) não teria um
30
Sociedade civil brasileira e internacional demandam que o BNDES
não financie a usina de Belo Monte
saldo positivo em termos de impacto
sobre o aquecimento global durante 41
anos (veja http://www.periodicos.ufpa.
br/index.php/ncn/article/view/315/501).
Planejamento fechado e irracional
O problema fundamental quando se
trata de barragens e de emissões de
gases de efeito estufa é a forma como
as decisões são tomadas. Para chegar
a uma decisão racional sobre qualquer
projeto energético, a primeira pergunta
a ser respondida é a questão sobre o
que irá ser feito com a energia. Isto é
particularmente importante no caso da
barragem de Belo Monte, onde o fator
dominante é a exportação de materiais
eletro-intensivos, especialmente o
alumínio. Esta é uma das utilizações
de eletricidade que gera menos
emprego no Brasil por GWh de energia
consumida. Uma discussão nacional
sobre quais seriam as melhores formas
de utilização de energia (em oposição
à produção de energia) para o País
nem sequer começou. A questão está
totalmente ausente do atual Plano
Decenal de Expansão de Energia
(PDEE), para 2011-2020.
Uma vez decidida a questão do
uso de energia, as várias opções
devem ser comparadas, incluindo
investimentos em eficiência energética
e a geração de energia a partir de
uma ampla variedade de fontes
potenciais além de combustíveis fósseis
e hidrelétricas. Essas comparações
exigem uma contabilidade aberta e
abrangente, tanto dos impactos como
dos benefícios, de cada opção. As
emissões de gases de efeito estufa
representam apenas um dos muitos
impactos das barragens hidrelétricas
que devem ser considerados em tais
comparações. As estimativas dos
impactos das emissões devem incluir
as emissões de metano pelas turbinas
e pelos vertedouros que têm sido
ignoradas, de forma sistemática, nas
posições oficiais brasileiras sobre o
assunto. Esses impactos precisam ser
considerados não apenas no sistema de
licenciamento ambiental, mas também
no planejamento de desenvolvimento
nacional e nas decisões sobre
financiamento dos bancos que
constroem as barragens. Nesse cenário,
o BNDES é o ator mais importante e,
por isso, a sociedade civil demanda
que ele seja (co) responsabilizado pelos
impactos das obras em que investe.
Ainda mais considerando que o seu
alcance ultrapassa as fronteiras do
Brasil. Em países como a Bolívia e o
Peru, pelo menos uma dúzia de barragens
estão prestes a receber financiamento
do BNDES e serem construídas por
empreiteiras brasileiras,visando a
exportação de eletricidade para o Brasil.
Philip Fearnside é pesquisador do Instituto Nacional de
Pesquisas da Amazônia (INPA) - [email protected]
Jeremias Vunjanhe*
Contra Corrente
África:
expropriação de terras
e mudanças climáticas
Continente vulnerável às mudanças climáticas tem suas terras “tomadas” por estrangeiros para
produção de agrocombustíveis e mercado de carbono, dentre outras atividades neo-colonizadoras
João Correia Filho
N
os últimos 30 anos, o
desenvolvimento de Moçambique
- e de toda África - tem,
simultaneamente, registado progressos
assinaláveis e percorrido caminhos
diversos e não menos controversos. A
partir do final do século XX, surgiram
novas formas de pensar e repensar
o desenvolvimento, suas esferas e
seus sujeitos e o centro deslocouse violentamente do Estado para os
setores privados, favorecendo a entrada
maciça de investimentos diretos
estrangeiros. Galvanizados pela relativa
estabilidade política e o sucesso na
pacificação do continente, novos atores
- nacionais e estrangeiros - disputam
e reivindicam o protagonismo pelo
controle da África, muitas vezes sob o
prisma propagandístico de investimento
e de promoção de desenvolvimento
sustentável.
Os processos de transição política de
ditaduras para a democracia e para a
economia neoliberal e a necessidade
urgente de desenvolvimento, fundado
na lei de mercado e de lucro,
converteram a maioria dos países
africanos em verdadeiros campos
de batalha e de disputa de políticas
externas de países do “centro do
mundo” para a realização de interesses
Entre 51 e 63 milhões de hectares de terra – área equivalente à França – foram negociados na África nos
últimos 10 anos: impactos devastadores nas comunidades
capitalistas, das elites corruptas
nacionais e de Financiamento e
Investimento Direto Estrangeiros
(FIDE). A partir do modelo dos mega
projetos, o FIDE tem elevado o custo
social e ambiental dos povos africanos.
Cada vez mais pobres e expostos
aos impactos nefastos da crise mundial
e das mudanças climáticas, os povos
africanos enfrentam a nova corrida
pela aquisição, controle e partilha
das suas terras, de seus recursos e
do seu continente pelos interesses
estrangeiros. A expropriação1 de terras
constitui a mais recente estratégia
seguida pelos governos ocidentais
e poderosos grupos empresariais
estrangeiros para estrangular a África,
31
capitulá-la e colocá-la a serviço
de seus interesses econômicos e
imperialistas, em prejuízo de mais de
900 milhões de almas africanas.
Colonização pós moderna?
A magnitude do comércio de terras é
bastante devastadora e ocorre quase
em toda a África. Estudos publicados
em 2010 concluem que entre 51 e 63
milhões de hectares de terra, uma área
equivalente à França, fazem parte de
lucrativos negócios de terras africanas
na primeira década deste milênio. De
acordo com a Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura
(FAO), nos últimos três anos, 20
milhões de hectares de terras foram
adquiridos por interesses estrangeiros
no continente, a maior parte deles
envolvendo mais de 10.000 e 500.000
hectares por concessão. Etiópia,
Moçambique, Madagascar, Sudão,
Mali e República Democrática do
Congo constam na lista dos países com
grandes transações de terra.
Para justificar a concessão de vastas
extensões de terras, os governos
africanos muitas vezes socorrem-se
de expressões como “terra disponível”
e “terra marginal”, além de usarem a
necessidade do aproveitamento dos
recursos naturais nelas existentes
como justificativa. Eventualmente,
a maioria da população é retirada e
tem sua situação de extrema pobreza
ainda mais agravada. Paradoxalmente,
o período de concessão - que pode
chegar até a 100 anos renováveis - e
o envolvimento direto de governantes
e políticos mostram que os respectivos
dividendos são partilhados entre si e
com as empresas estrangeiras.
As mesmas e velhas práticas
A nova saga expansionista dos
países ricos e emergentes, na sua
maioria ocidentais, caracterizada pela
corrida desenfreada na aquisição,
controle, transação e partilha de terras e
recursos africanos, intensificou-se
32
a partir do final de 2008, com a
eclosão da violenta crise mundial
alimentar, energética, ambiental,
financeira e econômica que se abateu
sobre os grandes centros capitalistas.
A ocorrência do fenômeno de
expropriação de terras e de recursos
naturais em muitos países africanos
tem sido facilitada pelas políticas
de desregulamentação, de acordos
comerciais com a União Européia,
de políticas nacionais de atração de
investimentos diretos estrangeiros,
de sistemas e governos corruptos e
de reformas de governança voltadas
para o mercado adotadas no início
da década de 1990 pelos governos
africanos e patrocinadas pelo Banco
Mundial (BM) e pelo Fundo Monetário
Internacional (FMI). Na verdade, as
reformas estruturais facilitadas por
estas duas instituições financeiras
constituem importantes instrumentos
de viabilização do atual processo
de aquisição, transação e partilha
de terras, em clara confrontação
com os direitos e liberdades dos
povos, conquistados nas lutas pela
independência da África.
Em Moçambique, de acordo com
o estudo da União Nacional de
Camponeses (UNAC) e da Justiça
Ambiental (JA!), publicado em
agosto de 2011, sobre o fenômeno
de usurpação de terras naquele país,
“os investimentos analisados têm
vindo a criar cada vez mais conflitos
e a agravar a situação de pobreza,
carência e vulnerabilidade das
comunidades rurais. Os investidores
dos países nórdicos, apesar de nos
seus países de origem cumprirem com
os mais elevados padrões de respeito
pelos direitos humanos e por todos
os processos de participação pública
em qualquer empreendimento que
apresente potenciais impactos sociais
e ambientais, em Moçambique, o seu
comportamento e padrões a seguir
são completamente distintos. As
suas práticas alimentam um sistema
corrupto, beneficiando-se das falhas
existentes na implementação das
leis em vigor no país e agravando,
deste modo, as condições de vida já
precárias da maioria da população
africana”. E acrescenta ainda que “o
Fenômeno de Usurpação de Terra
ocorre em Moçambique e é facilitado
pelas inúmeras falhas em todo o
processo de atribuição do Direito de
Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT),
beneficiando os investidores em
detrimento das comunidades rurais”.
Brasil, explorando o continente “irmão”
Neste processo de apropriação de terras,
o Brasil desempenha um papel crucial
na chamada África lusófona, com
particular presença forte em Angola
e Moçambique. As grandes empresas
com capitais brasileiros, tais como a
Vale, Camargo Correia e Odebrecht,
dentre outras, financiadas pelo
Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), estão
entre os protagonistas do processo de
aquisição, controle e partilha das terras
africanas. O projeto de exploração do
carvão mineral da Vale, em Moatize,
no Moçambique, constitui um exemplo
emblemático ao expropriar a terra de
mais de 1.300 famílias, violando seus
direitos e colocando-as em situações de
riscos diversos.
No último mês de agosto, o Ministro
da Agricultura moçambicano, José
Pacheco, anunciou a transação de cerca
de 6 milhões de hectares de terra a
agricultores brasileiros num projeto a
ser desenvolvido nas regiões Centro
e Norte de Moçambique. Denominado
Pró Savana e implementado no âmbito
do programa de Cooperação Triangular
para o Desenvolvimento da Agricultura
das Savanas Tropicais em Moçambique
(uma Cooperação Trilateral Brasil,
Japão e Moçambique), o projeto
envolve o governos brasileiro através
da Agência Brasileira de Cooperação
(ABC), Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), Empresa
Contra Corrente
karmo
de Assistência Técnica e Extensão
Rural (Emater) e do Serviço Nacional
de Aprendizagem Rural (Senar). O
Japão está presente através da Agência
Japonesa de Cooperação Internacional
(JICA).
Impactos relacionados ao clima
De um lado, governos e investidores
financeiros estão empenhados na compra
e aquisição de terras para a plantação de
agrocombustíveis, sequestro de carbono
e exploração de recursos naturais – de
modo a garantir a posse de ativos, com
grandes valores e rendimentos a médio
e longo prazo, em prejuízo da maioria
da população africana. De outro lado, os
impactos do fenômeno de apropriação
de terra são devastadores para as
comunidade locais e têm causado mais
conflitos de terras, aumento da pobreza,
degradação florestal, deslocamento de
populações locais, insegurança alimentar,
piora das condições de vida e aumento
da vulnerabilidade das comunidades
rurais, diante da crescente ameaça das
mudanças climáticas.
A disponibilidade e acesso à terra e
água pelas comunidades locais têm sido
fortemente prejudicados pelas transações
de terras, dado que a maior parte delas
são em áreas férteis e próximas dos rios e
fontes de água naturais, frequentemente
usadas pelas comunidades. Desse modo,
a comercialização da terra afeta as
populações que têm na agricultura e
na pecuária suas principais atividades
de sustentação. Nesse sentido, muitos
governos africanos estão privilegiando
um esquema de inserção na economia
global assentado na alienação dos seus
territórios, na sistemática violação dos
direitos de seus povos e na crescente
exposição a riscos imprevisíveis e de
dimensão catastrófica.
Cabe ressaltar que esta situação
será agravada pelo impacto das
mudanças climáticas que estão a afetar
significativamente o modo de vida
das populações africanas. Estima-se
que a África seja o continente a ser
particularmente mais afetado pelas
mudanças climáticas devido à sua fraca
capacidade de adaptação. Os seus grandes
deltas estarão em perigo por se tratar
de regiões muito populares e bastante
expostas ao aumento de níveis do mar,
às marés de tempestade e ao aumento
fluvial. Neste particular, Moçambique
é considerado um dos países de África
mais vulneráveis às alterações climáticas
ao longo das suas costas. Com um
litoral de cerca de 2.700 km, 60% da sua
população (estimada em 20,5 milhões)
vive nas áreas costeiras, consideradas
baixas com praias arenosas, estuários e
mangais, e cuja sobrevivência depende,
em grande medida, dos recursos naturais.
Em 2011, Moçambique registrou as
temperaturas mais baixas dos últimos 50
anos, de acordo com dados do Instituto
Nacional de Meteorologia. O rigoroso frio
do inverno impossibilitou a produção
agrícola de milhares de famílias.
Resistência e equilíbrio
Ainda assim, nos últimos dez anos, a
organização e mobilização da sociedade
civil africana e das comunidades
locais para assuntos relacionados com
a invasão e expropriação das suas
terras e dos recursos naturais têm se
revelado uma alternativa viável diante
da incapacidade e incompetência das
instituições dos Estados africanos
em cumprir com os preceitos da
governança ambiental e na promoção
de um desenvolvimento sustentado nas
necessidades humanas atuais e futuras.
Para além disso, é urgente repensar e
redefinir a matriz de desenvolvimento
e de governança, estabelecendo um
equilíbrio entre as dimensões econômica,
social e ambiental. Caso contrário,
estaremos a assinar prematura e
criminosamente a nossa certidão de
extinção e a das futuras gerações.
* Jeremias Vunjanhe é jornalista e coordenador de
imprensa da Justiça Ambiental – Amigos da Terra
Moçambique e da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento
das Comunidades Rurais (Adecru) - [email protected]
1- Nota da editora: o termo expropriação é equivalente à
palavra acarapamento utilizada no texto original e bastante
comum tanto na África como na América Latina
33
Winnie Overbeek*
Raposa no galinheiro
Para garantir a continuidade de emissões de três empresas nos EUA, organização
brasileira prejudica severamente o “bem viver” de comunidades tradicionais
Winnie Overbeek
E
A imposição de regras “externas” e a utilização da força bruta não
combinam com o histórico da comunidade
34
m 1999, anos antes do lançamento do mecanismo de
Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação
(REDD), um dos primeiros projetos de carbono em
áreas de floresta no mundo já havia iniciado. Trata-se de um
projeto da ONG brasileira Sociedade de Pesquisa em Vida
Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), em parceria com a
ONG estadunidense TNC (The Nature Conservancy). O projeto
está sendo desenvolvido no litoral do estado do Paraná, na
região Sul do Brasil, mais especificamente, nos municípios de
Antonina e Guaraqueçaba.
Com recursos de três empresas americanas, a General Motors,
a American Eletric Power e a Chevron, a SPVS adquiriu áreas
que, juntas, abrangem 18,6 mil hectares. Com atividades de
preservação e restauração de áreas degradadas, a entidade
afirma já ter removido 860 mil toneladas de carbono da
atmosfera1. Na lógica dos projetos REDD, os créditos advindos
do carbono seriam aproveitados pelas três empresas dos
Estados Unidos, que financiam a SPVS, para compensar uma
parcela das suas emissões de poluentes. No entanto, não
foram encontradas muitas informações no site da SPVS, nem
no site das empresas, sobre os valores repassados por essas
empresas à SPVS. As comunidades locais visitadas tampouco
têm informação a respeito, o que já mostra uma falta de
informação e transparência nesse aspecto.
O site da SPVS2 divulga que, segundo o Serviço Florestal
Brasileiro, o projeto está na categoria de “ações de REDD
que têm gerado bons resultados”. No entanto, o projeto tem
causado um impacto devastador sobre as comunidades locais
residentes em torno das reservas da SPVS.
Contra Corrente
Um histórico de “bem viver”
Desde o processo de colonização
da região, o litoral paranaense tem
sido habitado por comunidades
chamadas de ‘caiçaras’3, além de
comunidades indígenas e quilombolas.
As comunidades se caracterizam por
serem agricultoras e extrativistas.
Historicamente, elas convivem de modo
respeitoso com a mata, onde produzem
seus alimentos de subsistência pelo
sistema de pousio (descanso), com
destaque para a produção da farinha
de mandioca. Tiram da Mata Atlântica
o palmito para se alimentar, cipó para
fazer artesanato e madeira para a
construção de moradias, cercas e canoas
para a pesca. Praticam a caça e a pesca
para a alimentação de suas famílias.
Portanto, percebe-se que essas
comunidades dependem totalmente
da floresta, com a qual construíram
uma convivência harmoniosa. Prova
disso é o fato de que essa região
situa-se entre as mais preservadas
do bioma Mata Atlântica, o mais
devastado do País.
As comunidades nunca se
preocuparam em registrar ou cercar
as terras onde moram, já que
consideravam esse território como uma
área de uso comum, de usufruto de
todos. As terras são, na sua maioria,
devolutas e sobre as quais as famílias
sempre tiveram suas posses, repassadas
de geração em geração. Trabalhavam no
território, às vezes de forma individual,
por família, e às vezes coletivamente,
nas roças itinerantes.
Chegada dos fazendeiros =
grilagem
A primeira grande mudança na
região ocorreu a partir dos anos de
1960, com a chegada de madeireiras
e, sobretudo, de fazendeiros. Estes
começaram a registrar e se apropriar
das terras, muitas vezes utilizando-se
da grilagem (prática comum nas áreas
rurais no Brasil). Em consequência
disso, as famílias das comunidades
foram ameaçadas e, muitas, expulsas
de suas áreas. Os fazendeiros usavam
‘jagunços’ e até mesmo búfalos para
invadir e tomar as propriedades dos
pequenos agricultores. A utilização da
criação de búfalos nessa região, em
vez do gado bovino, deve-se ao fato
“As comunidades
buscam resistir à
pressão da SPVS,
que só pode ter como
objetivo a expulsão
de todas elas.”
de este ser um animal mais rústico
e, portanto, mais adequado para
conviver com o ambiente local nas
áreas desmatadas, constantemente
alagadas e, em geral,
de difícil acesso e locomoção.
Chegada da SPVS = promessas
não cumpridas
No final dos anos de 1990, a SPVS
chegou à região e começou a comprar
grandes áreas dos fazendeiros. Ela
também conseguiu comprar algumas
áreas de posseiros, sobretudo daqueles
que se sentiram mais pressionados
pela ação dessa organização. Segundo
os moradores, inicialmente, a SPVS
empregou 47 pessoas da comunidade,
pagando pouco mais de um salário
mínimo. Três dos funcionários eram
mulheres com salários ainda menores
que os dos homens. A SPVS prometeu
que os empregos durariam cerca de 40
anos, o mesmo tempo de existência
previsto para o projeto. A maioria
dos funcionários foi empregada como
guarda florestal. Além
do emprego, a SPVS prometeu
melhorias
na renda e na vida das famílias.
Impactos sobre a comunidade
No entanto, a chegada da SPVS
constituiu um verdadeiro golpe
para as comunidades. Foi a partir
da compra das terras pela SPVS que
as comunidades nessas áreas e no
entorno começaram a perder o acesso
à floresta abundante na região e aos
rios - ou seja, começaram a perder
liberdade, autonomia, o direito de
ir e vir e de exercer o seu modo de
vida. Perderam até mesmo o direito
de cortar árvores nativas de suas
próprias propriedades, como foi o
caso de um morador que plantou,
para sua sobrevivência, uma área com
palmito-juçara, uma árvore nativa.
Hoje, ele não pode mais cortar essas
árvores, mesmo que elas estejam em
sua própria terra.
Para amedrontar as comunidades, a
SPVS começou, junto com a polícia
ambiental do estado do Paraná,
chamada de Força Verde, a perseguir
as comunidades. Essa violência
continua até hoje, pois a Força
Verde invade até mesmo as casas das
pessoas, sem que possua a devida
autorização para isso:
35
karmo
Um morador de uma das
comunidades conta que:
“Queriam fazer parceria com nós
ali. Nós até aceitemos de fazer uma
parceria (...) mas aí, de repente, eles
começaram a mandar as guardas
também. Passou mais ou menos uns
três dias aí, começaram a mandar os
guardas lá em casa. Entravam dentro
da casa dizendo que tinha coisas
escondido ali, tanta coisa errada. E se
tivesse fechada a porta, entrava para
dentro. Batiam na porta, eles falaram
que era ordem de juiz, não estavam
nem ligando, mas entravam assim
mesmo. (...) a Força Verde entrava ali,
isso várias vezes, não era uma nem
duas vezes, muitas vezes. (...) Nossa
casa ali, se tiver algum tipo de arma
aí, que prendesse tudo, levasse (...).
Não podia ter um facão que eles
queriam levar, queriam tudo. (...) Não
apresentavam nada, só chegavam
e estavam dentro de casa lá. Nessa
hora, não estava em casa quando
eles chegaram, com revólver em
punho. Meu cunhado estava deitado
na cama, a porta estava encostada
assim, meu pai estava lá fora. Eles
entraram para dentro, empurraram
a porta, bateram até na porta até
sair a trancazinha da porta. Ainda o
meu cunhado estava meio adoentado
36
com gripe e dor de cabeça. Já levou
o revólver em punho, meu cunhado
disse: “O que é isso rapaz, estou
adoentado aqui, você entra desse
jeito aí”. (...) É dessa maneira que eles
chegaram várias vezes em casa. E
a parceria? Desse jeito não adianta
parceria; parceria para te incomodar.
Então, não adianta, melhor suspender.
E eles queriam enganar muita gente
desse jeito.”
Uma outra moradora conta que o
marido foi algemado em casa pela
Força Verde, que disse que era o
“serviço” deles. Em outra ocasião,
quando ele cortou uma árvore para
fazer uma canoa, ficou preso por
11 dias. Para sair, teve que pagar
fiança. Hoje vivem com dificuldades
e medo: se ficar em casa, não tem
como sobreviver. Mas se o marido sai
para conseguir algum trabalho fora,
a esposa e as crianças ficam numa
situação de medo e insegurança, o
que mostra também que os impactos
da perseguição e do projeto da SPVS
afetam as mulheres e as famílias
como um todo.
Hoje, muitas famílias vivem
traumatizadas e a situação é de
tamanha gravidade que várias
acabaram desistindo de continuar
vivendo no local onde moravam há
gerações. Famílias que produziam
e vendiam farinha, atualmente,
compram tudo para comer, inclusive a
farinha. Com isso, mudou a qualidade
da alimentação - um dos motivos
pelos quais a saúde das pessoas não
é mais a mesma, segundo relatos dos
moradores. Hoje, parte da população
local tem hipertensão arterial, estresse,
entre outros problemas de saúde. Além
disso, como há um esvaziamento
das comunidades, a classe média de
Curitiba tem comprado casas e áreas
na região para passar seus finais de
semana e feriados.
As promessas de melhoria das
condições de vida e geração de
renda resultaram em algumas
iniciativas, que foram se esvaziando
ao longo dos anos. Um trabalho
de organização de um grupo de
mulheres em torno do propósito de
gerar renda através de corte-costura
funcionou algum tempo, mas hoje
está parado, segundo os depoimentos
de várias mulheres das comunidades.
E a promessa de emprego por parte
da SPVS tampouco foi cumprida. Exempregados das comunidades contam
que a grande maioria foi demitida,
restando apenas sete funcionárias.
Apenas um trabalho de produção
Contra Corrente
de mel parece ter dado certo,
porém não envolve diretamente as
comunidades mais impactadas.
Árdua luta pela própria terra
No entanto, as comunidades ainda
resistem à pressão da SPVS, que só
pode ter como objetivo a expulsão de
todas elas. Uma delas organizou-se de
forma especial. No início da década
passada, em uma das localidades no
município de Antonina, um fazendeiro
queria vender sua área para SPVS,
o que poderia levar à expulsão de
todas as famílias que viviam no local.
Elas se organizaram e com o apoio
do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST), realizaram,
em 2003, uma ocupação. Atualmente,
há 20 famílias no local lutando pela
oficialização do acampamento, que
tem o nome do ambientalista José
Lutzenberger, para que seja um
assentamento da reforma agrária.
Ao longo da luta árdua dessa
comunidade contra as pressões do
fazendeiro, da SPVS e de órgãos
ambientais, foram denunciados
crimes ambientais cometidos pelo
próprio fazendeiro, como o desvio
de um rio e o uso indiscriminado de
agrotóxicos, os quais não receberam
atenção dos órgãos ambientais.
Por outro lado, a comunidade
realizou pequenos trabalhos de
reflorestamento e, a partir da opção
pela agroecologia, escolheu a
proposta de trabalhar coletivamente
através do sistema agroflorestal,
como proposta principal para
futuramente gerar renda para as
famílias. Além disso, cada uma das
famílias terá sua área individual para
sua subsistência básica.
A área do acampamento faz limite
com a área da SPVS mas, segundo os
moradores, as áreas de florestas sob
controle das comunidades estão em
melhores condições, se comparadas
com as áreas da SPVS.
Futuro ameaçado
Perto de uma das comunidades
encontra-se uma casa no meio da
floresta onde a SPVS faz pesquisas
das espécies da Mata Atlântica,
graças à parceria com o banco
privado HSBC, através da Parceria
de Clima da HSBC (HSBC climate
partnership, no original, em inglês).
Segundo o site da HSBC, trata-se de
um ‘programa ambiental inovador’
para ‘dar continuidade à preservação
do planeta’.4
Enquanto isso, o futuro das
comunidades está extremamente
ameaçado se a proposta de
preservação das áreas florestais da
SPVS, que conta com todo o apoio
do aparelho estatal, principalmente
da área ambiental e da área policial,
continuar dominando na região.
É absolutamente urgente que
parem o abuso e a perseguição das
comunidades. O que ocorre nessa
região, conforme testemunham os
moradores, são violações graves dos
direitos humanos, inclusive sociais,
culturais e ambientais.
Uma moradora conta que:
“Sim, a gente sempre manteve a
floresta. Só que, às vezes, a gente
precisa derrubar alguma coisa
também, às vezes a gente precisa
construir uma casa, precisa tirar uma
madeira. No caso, não pode e, aí, fica
difícil. (...) Antes a gente fazia para
plantar roça onde hoje você não pode
mais. Quando a SPVS entrou, acabou
tudo. Onde meu pai morava, hoje não
pode mais. Antes não comprava feijão,
não comprava milho, muitas verduras
plantava, que podia desmatar um
pouco, não mata alta, mais baixa, ele
roçava, plantava, ele colhia a maioria
das coisas da terra. E hoje não pode
plantar, tudo tem que comprar. (...)
Antes, a gente não via enfermidade.
Hoje, a maioria vive até doente,
muitos. (...) Eles falaram, prometeram,
que iam ajudar meu pai mas, até hoje,
a gente nunca viu nenhuma ajuda,
sempre piorou porque, no caso, eles
falaram que iam ajudar e depois veio
a Força Verde e ainda queriam levar
meu pai preso. Essa é a ajuda deles.”
Para “atacar” o aquecimento global,
é urgente também que as empresas
estrangeiras envolvidas no projeto
da SPVS comecem imediatamente a
reduzir suas emissões de carbono, em
vez de compensar emissões por meio
de compra de créditos de carbono
vindos de uma área onde o povo é
castigado por algo que deveria ser
motivo de respeito:
sua prática de conservação da floresta.
Winnie Overbeek é coordenador internacional do
Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla
em inglês) e membro da Coordenação Nacional da Rede
Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, pela Rede
Alerta Contra o Deserto Verde - [email protected]
1- http://www.revistavisaoambiental.com.br/site/index.
php?option=com_content&view=article&id=643:projeto-decarbono-colabora-com-o-desenvolvimento-sustentavel-decomunidades-no-parana&catid=5:noticias&Itemid=5
2 - http://www.spvs.org.br/download/boletins/bol_jan10.html :
3 - Comunidades que surgiram da miscigenação genética
e cultural entre os primeiros colonizadores portugueses e
indígenas que viviam no litoral. Vivem de forma isolada,
praticando diferentes atividades para sua sobrevivência. (fonte:
http://www.ilhabela.com.br/CULTURA/index.html)
4 - http://www.hsbc.com.br/1/2/portal/pt/sobre-o-hsbc/
sustentabilidade/meio-ambiente/hsbc-climate-partnership
37
O REDD na vida real
No Amazonas, a flexibilização da legislação, o ajuste estrutural das políticas ambientais e a
privatização das unidades de conservação estaduais estão umbilicalmente relacionados à
implantação dos mecanismos de “economia verde”. Para piorar, comunidades que preservam
a floresta, de fato, são impedidas de viverem de modo tradicional
“
É
interessante, nessa discussão do REDD e de tudo o que está
por trás, observar que a primeira lei de mudanças climáticas
do Brasil foi feita aqui no Amazonas, antes até da lei
federal. E houve toda uma preparação sobre a criação de unidades de
conservação, que a gente percebe hoje que foi feita exatamente para
vender mesmo os créditos de carbono.
Temos mais de 60 unidades de conservação no estado, entre reserva
de desenvolvimento sustentável, reserva extrativista, floresta estadual
e parque estadual. Estes tipos de unidades foram criadas no estado; e,
hoje, estão negociando um mercado de carbono em Chicago.
Foi criado também a FAS, Fundação Amazonas Sustentável.
Quem investiu nela foi o Bradesco, a Coca Cola... Várias empresas
transnacionais investiram muitos recursos. E em cima deste fundo,
elas têm dado R$ 50 reais por família por mês. O que é ruim é que
as famílias não podem mais fazer nada na terra. Toda aquela forma
de lidar com a terra - que sempre tiveram porque são comunidades
tradicionais, ribeirinhos... Hoje não podem mais fazer nem uma roça
pra plantar a mandioca pra fazer farinha. Isso, pra nós, é um absurdo
muito grande porque se eles sempre fizeram e sempre preservaram, por
que o estado hoje está reprimindo?
Outro agravante é que a FAS, apesar de receber todos estes recursos
do estado, é uma entidade privada. E ninguém sabe quanto ela recebe,
de que forma ela presta conta, porque ela não presta conta. É uma
caixa preta, que ninguém abre, ninguém sabe. Tudo isso é bastante
complicado. O ex-governador Eduardo Braga continua ganhando
prêmios internacionais porque ele se diz como defensor da floresta. E,
na prática, a gente tem visto que o estado tem ganho muito dinheiro
com a preservação, enquanto as famílias continuam pobres, exploradas,
e os conflitos agrários que existiam nessas áreas onde foram construídas
unidades de conservação não foram resolvidos. Então, este é um
complicador muito grande porque nós lutamos pela demarcação das
unidades de conservação, mas para garantir a vida que as comunidades
tradicionais sempre viveram. E a gente tem visto que as unidades do
estado não têm respondido a isso.
A gente também percebe que, juntamente com o REDD, foi feito nos
últimos anos, a flexibilização das leis ambientais, exatamente para
garantir o REDD. Você faz uma lei - que é a concessão de florestas
públicas; depois faz uma outra lei - que é a de regularização fundiária
na Amazônia, a 11.952; depois, faz a mudança do Código Florestal.
Ou seja, três leis super importantes que vão atingir diretamente a
Amazônia. Por que tudo isso? A legislação ambiental era muito rígida
com a Amazônia, na forma de preservar, de utilizar os recursos e
com essa flexibilização agora, você vai poder desmatar, vai poder
fazer várias coisas, desde que depois pague com compensações ou
mitigações ambientais. Então, na verdade, você percebe um REDD,
mas um REDD estadual. A gente vê isso claramente na forma como foi
construído para chegar neste ponto em que chegou. Para nós, é uma
preocupação muito grande.
Seria legal se a gente pudesse fazer um levantamento, um
acompanhamento de todas as unidades de conservação e ver como as
unidades mais antigas não modificaram e não melhoraram a qualidade
de vida dessas comunidades. É o contrário. E muitas delas pioraram
porque agora elas não podem nem mais plantar a mandioca que antes
se fazia a farinha, um dos meios de vida deles.
Hoje, a gestão dessas unidades de conservação estaduais é feita pela FAS.
A gente não consegue entender isso porque, pela lei do estado, [isso] seria
inconstitucional. Porque se é uma unidade de conservação do estado, eu
não posso passar aquilo para uma entidade privada. E em todas as unidades
de conservação do estado, a gestão é da FAS. Já era da FAS, quando a FAS
foi criada... Criaram vários institutos para administrar, para fazer a gestão
das unidades de conservação. Hoje, elas estão todas dentro da FAS. A
gestão não é do governo do estado, apesar dessas unidades de conservação
serem do estado. A gestão é da FAS e todo recurso que vem para o governo
do estado, vai também para a FAS. E quem é que administra a FAS?
Dentre outras pessoas, o Virgílio Viana, ex-secretário de Desenvolvimento
Sustentável do Estado do Amazonas, que era a Secretaria de Meio
Ambiente. Tudo é coligado para arrecadar dinheiro e não repassar para
quem, de fato e de direito preserva, que são as comunidades tradicionais.”
karmo
38
Depoimento de Marta Valéria, Comissão
Pastoral da Terra (CPT), regional Amazonas,
participante do Seminário Regional sobre
Mudanças Climáticas na Amazônia,
recolhido por Lucia Ortiz, em agosto de 2011
(link para o vídeo-testemunho:
www.youtube.com/watch?v=1M5bq1l-E1Y)
Alimento para a mente
Para contribuir na compreensão deste tema complexo e ainda tão obscuro, a Contra Corrente preparou
uma relação de materiais, disponíveis na internet, sobre os principais instrumentos do capitalismo “verde”,
como REDD, pagamento por serviços ambientais e mercado de carbono, dentre outros. Aproveite!
Pagamento por Serviços Ambientais (TEEB)
e flexibilização do Código Florestal para um
capitalismo “verde”, Terra de Direitos, agosto de
2011, em português:
http://terradedireitos.org.br/biblioteca/pagamentopor-servicos-ambientais-e-flexibilizacao-docodigo-florestal-para-um-capitalismo-verde/
Projetado para fracassar? Os conceitos, práticas
e controvérsias por trás do comércio de carbono.
Fern, junho de 2011, em português: http://www.
fern.org/projetadoparafracassar
Banco Mundial: catalizador da devastadora
mudança climática, Amigos da Terra Internacional,
junho de 2011, em espanhol: http://www.foei.org/
es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2011/
banco-mundial-catalizador-del-cambioclima301tico-devastador/view
O REED+ e os mercados de carbono: dez mitos
explodidos, Fern, Amigos da Terra Internacional,
Greenpeace e Fundação Floresta Tropical, junho
de 2011, em português: http://www.fern.org/
REDDdezmitosdetonados
Boletim Desenreddando REDD, já com quatro edições, Censat Amigos da Terra Colômbia,
2011, em espanhol:
http://www.censat.org/articulos/10062-desenreddando/
Reflexões estruturais sobre o mecanismo de REDD, edição 146 do Cadernos IHU Idéias,
entrevista com Camila Moreno, 2011, em português:
http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/1303995179.8012pdf.pdf
Justiça Climática, Proposta - Revista Trimestral de Debate da Fase, no 122, 2011, em
português: http://www.fase.org.br/vitrine/lojinha/produto.php?id=148
REDD, Uma Leitura Crítica, coletânea de artigos, dezembro de 2010, em espanhol:
http://www.carbontradewatch.org/articles/redd-una-lectura-cr-tica.html Declaração de Cancun: mudar o sistema, única forma de superar a crise climática,
dezembro de 2010, em espanhol: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/dividaambiental/declaracao-de-cancun-mudar-o-sistema-unica-forma-de-superar-a-criseclimatica/
Declaração Cumbre Sul-Sul sobre Justiça Climática e Financiamento para o Clima, dezembro
de 2010, em espanhol: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/
declaracao-cumbre-sul-sul-sobre-justica-climatica-e-financiamento-para-o-clima/
REDD: realidades em branco e preto, Amigos da Terra Internacional, novembro de 2010, em
português:
http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2010/redd-as-realidades-embranco-e-preto
Basta de dívidas: pelos direitos humanos e os
direitos da natureza, Jubileu Sul, agosto de 2010,
em português: http://www.jubileubrasil.org.br/
somos-credores/divida-ambiental/Cartilha%20
basta%20de%20debitos%20final.pdf
REDD na Colômbia, Censat Amigos da Terra
Colômbia, agosto de 2010, em espanhol:
http://www.censat.org/component/content/
article/1021 O REDD e a destruição dos povos indígenas do
planeta, artigo da Organização Fraternal Negra
Hondurenha, Ofraneh, agosto de 2010, em
espanhol:
http://www.censat.org/component/content/
article/1027
REDD e o futuro das florestas: uma opção pelo
ambientalismo de mercado?, Amigos da Terra
Brasil, abril de 2010, em espanhol:
http://www.natbrasil.org.br/Docs/publicacoes/
cartilhareddweb.pdf
Documento final sobre Dívida Climática da
Conferência dos Povos, em Cochabamba, Bolívia, abril de 2010, em espanhol: http://www.
jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/divida-climatica-resultado-daconferencia-de-cochabamba-abril-2010/
Declaração sobre REDD do Grupo de Trabalho Floresta da Conferência dos Povos, em
Cochabamba, Bolívia, abril de 2010, em espanhol:
http://cmpcc.org/2010/04/28/conclusiones-finales-grupo-de-trabajo-14bosques/#more-1860
Carta de Belém, resultante do Seminário Clima e Floresta - REDD e mecanismos
de mercado como solução para a Amazônia?, em Belém, outubro de 2009, em
português: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/carta-debelem-sobre-o-clima-e-a-floresta/
REDD Não! Guia para Povos Indígenas, IEN, Rede Ambientalista Indigena, 2009, em
espanhol:
http://noredd.makenoise.org/no-redd-guia-para-pueblos-indigenas.html
Mitos sobre o REDD, Amigos da Terra Internacional, 2008, em espanhol:
http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2008/redd-myths/view
Vozes das Comunidades Afetadas pelas Mudanças Climáticas, Amigos da Terra
Internacional, novembro de 2007, em português: http://www.natbrasil.org.br/Docs/
publicacoes/mudancas_climaticas_portugues_NAT.pdf
A História do Mercado de Emissões, Free Range Studios (mesmo gurpo que produziu a
História das Coisas), Animação, 20 min, em inglês, legendado: http://www.youtube.
com/watch?v=IPS5jTwo1Tk
“A humanidade está diante de uma grande encruzilhada:
continuar pelo caminho do capitalismo, da depredação
e da morte, ou empreender um caminho de harmonia
com a natureza e o respeito à vida”.
(Acordo dos Povos, abril 2010, Cochabamba, Bolívia)
A pifeira Zabé da Loca é um símbolo de resistência e comunhão
com o ambiente em que vive, o cariri paraibano.

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