Revista Público
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VALTER VINAGRE, SÉRIE “PENSOU ESTAR PRÓXIMO” JORGE FIGUEIRA VIDA FUTURA O VOTO LATINO S A miscigenação já não parece possível. Somos latinos e amantes, Angela; o mundo precisa de nós 8 | Domingo 11 Novembro 2012 | 2 EXPOSIÇÃO FOTÓGRAFOS NO PANÓPTICO Panóptico: uma palavra de raiz grega, que significa “visão total”, utilizada por Bentham na transição do século XVIII para o XIX para qualificar uma estrutura arquitectónica, com finalidade disciplinar e educativa, que permitia a visão simultânea e sem falhas a partir de um dado ponto. Nas prisões, nos hospitais psiquiátricos, nos reformatórios, o panóptico teve ampla divulgação. Em Portugal há ainda hoje panópticos em funcionamento em diversos estabelecimentos prisionais, e existiu um outro, que albergava os doentes perigosos, no Hospital Miguel Bombarda. É deste que hoje falamos. Luís Campos, médico e artista, teve a ideia de realizar aqui uma exposição sobre o tema do hospital, inaugurada a 3 de Novembro e que coincide com um Congresso Internacional dos Hospitais. A ideia foi bem acolhida, tanto mais que todo o hospital está desactivado e que este pavilhão foi entretanto classificado. Hospital, o nome que escolheu para a iniciativa, reúne 24 artistas, cada qual ocupando uma das celas concêntricas do pavilhão circular. A separá-las, um jardim e por cima um céu azul de Outono como Lisboa raramente tem gozado nos últimos tempos. Neste céu, um dos artistas presentes, Manuel Valente Alves, filmou dois parapentes que executam um bailado lindíssimo. “Significa a esperança. Não se pense que este era só um lugar de sofrimento. Era também um lugar de cura.” Esta é uma das poucas obras que interagem com a própria arquitectura do local. Quase todas as outras relatam experiências pessoais, ou, ainda mais, um olhar incisivo sobre aquilo que o hospital significa na sociedade de hoje. Nascimentos, mortes, mas também o processo de cura ou os diferentes caminhos para lá chegar, a par dos muitos sinais que esta estrutura conserva da passagem de utentes e funcionários, inspiraram os trabalhos de, por exemplo, Paulo Catrica e Valter Vinagre, Augusto Brázio ou Pedro Rio. André Gomes, por outro lado, criou uma ficção sobre um alter-ego imaginário que se toma por Édipo. A exposição inclui ainda trabalhos de Alves da Silva, Catarina Botelho, Jordi Burch, André Cepeda, José Pedro Cortes, António Júlio Duarte, Luísa Ferreira, Pedro Letria, Maçãs de Carvalho, Jorge Molder, Duarte Amaral Netto, Inês d’Orey, Maria José Palla, André Príncipe, Sandra Rocha, João Paulo Serafim, João Serra e Pedro Ventura. O panóptico, que Foucault, num livro célebre, demonstrou ser a metáfora de todas as sociedades contemporâneas, prova ser hoje o lugar onde a boa fotografia se dá a ver. Luísa Soares de Oliveira A exposição Hospital pode ser vista no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, até 2 de Fevereiro (de 3.ª a sábado, das 12h às 18h) VEJAISTO empre que ouço falar no voto latino, nas eleições americanas, imagino uma procissão comandada pela Jennifer Lopez dançando na direcção das urnas. O modo americano de dividir a população em “etnias” para bem ou mal tratar dos seus direitos minoritários é-nos particularmente estranho, para não dizer repugnante. O modo latino da miscigenação, como é vivido no Brasil e como nos explicou Gilberto Freyre, é um modelo melhor, embora não signifique a paz na terra. Em plena reflexão eleitoral, concluí então, depois de toda a gente, que a latinidade é cool. É aliás a única alternativa viável à hegemonia do mundo anglo-saxónico, que nos escapa largamente. Para lá de todo o actual alarido, talvez a China daqui a três milénios também o possa ser; mas por essa altura já não se distinguirá a réplica do original. Qual Paris? A grande força e fraqueza da latinidade é o seu arcaísmo latente; a afeição à força da gravidade. No período colonial, na América Latina, constroem-se igrejas que permanecem hoje como lugares de culto; nos Estados Unidos, o sistema balloon frame levanta construções de madeira que rapidamente são consumidas pelo tempo ou pelo fogo. Mesmo em países novos e ardentemente modernos como o Brasil, a arquitectura colonial pesa: o Aleijadinho, filho de um arquitecto luso e de uma escrava, é um mito fundador; as curvas de Niemeyer podem ou não referir-se ao barroco português. A arquitectura moderna de matriz latina não se deixa deslumbrar pela tecnologia ou pelo novo, preferindo uma permanente negociação com a história e com a tradição, como é patente em Fernando Távora, Lucio Costa ou Luis Barragán, grandes arquitectos latinos do nosso tempo. A latinidade precisa de uma língua comum. Que integre tudo e todos, e lhes preste homenagem, só estou a ver o “brasileiro”. Um português in progress falado em desacordo e desafio ortográfico. Obrigando nuestros hermanos a ultrapassarem a barreira linguística que para eles é uma barreira do som. A capital deve ser São Paulo, lugar de uma latinidade em expansão cósmica. Na Universidade, em “Espaços Narrados”, sobre literatura e arquitectura, ouvimos o escritor de Manaus, Milton Hatoum, e leituras de Guimarães Rosa: a língua portuguesa em modo espectral como uma malha ocupada por objectos voadores. E a experiência de uma latinidade espacial, igualmente importante, em África, por José Forjaz e Mia Couto, e em Portugal, por Souto de Moura. O modo latino é imperfeito e tosco, especialmente quando tenta falar inglês. Mas há uma beleza nisso, não é só embaraçante. Espera-se que em breve o voto latino possa ter também expressão na Europa. A miscigenação já não parece possível. Somos latinos e amantes, Angela; o mundo precisa de nós.