LIVRO: MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU
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LIVRO: MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU
LIVRO: MORANGOS MOFADOS, DE CAIO FERNANDO ABREU Contexto da obra - Principais fatos ocorridos nas décadas de 60, 70, e 80 1.960- Inauguração de Brasília. 1.964- O general Castelo Branco conclama os generais a “agirem contra a subversão”. Um golpe militar derruba João Goulart, dando início ao ciclo de presidentes militares, que só se encerraria em 1.985. 1.968-Recesso do Congresso e edição do Ato Institucional n° 5. A censura se intensifica e ocorrem greves de estudantes, manifestações operárias e reação dos intelectuais contra a ditadura. 1.974-O general Ernesto Geisel assume a presidência do Brasil. 1.979-O general João Batista Figueiredo é empossado na Presidência da República e sanciona a lei de anistia. Retornam ao Brasil inúmeros exilados pelo regime militar. 1.985-Um colégio eleitoral elege Tancredo Neves, o articulador da transição para a democracia, Presidente do Brasil, mas ele morre antes de assumir. José Sarney assume o governo. No Brasil dos anos 60, 70 e 80, o que pode observar é uma crescente condição de repressão e a ausência de um horizonte artístico favorável, já que o que se coloca diante dos artistas é uma cortina de fumaça em que o militarismo esmaga a liberdade individual, num tempo em que pensar diferente era algo subversivo e, portanto, deveria ser combatido. É nesse cenário que se desenvolve a contracultura, o projeto cultural que recusava uma sociedade tecnocrata movido pelo rock dos Beatles e dos Rolling Stones. Há para a juventude a opção do desbunde, que buscava desafiar o status quo com muito sexo, drogas e rock´n´roll. Mas, como teria dito o guru Lennon, o sonho acabou. A realidade drasticamente se interpôs entre a utopia das sociedades alternativas e o futuro a ser vivido. A obra Morangos Mofados se insere no exato momento em que os sobreviventes do sonho da sociedade livre se vêem forçados a reconhecer o fracasso do projeto que alimentou os melhores anos de suas vidas. Características da obra ( Textos extraídos do estudo CAIO FERNANDO ABREU E UMA TRAJETÓRIA DE CRÍTICA SOCIAL, de Ana Paula Teixeira Porto e Luana Teixeira Porto ) A obra Morangos Mofados, que conferiu a Caio Fernando Abreu reconhecimento nacional, configura-se como uma manifestação literária que representa anseios e perspectivas sociais de personagens que se deparam com a necessidade de fazer uma avaliação de seus próprios princípios político-ideológicos e projetos num período ainda marcado por repressão. Produzida num contexto autoritário, em que a censura e a perseguição política eram constantes, a obra se mostra desafiadora. A leitura de Morangos Mofados, à primeira vista, parece não indicar sentido de unidade e significado : é algo que desconcerta a percepção do leitor, talvez não familiarizado com a literatura construída a partir de fragmentos. Este último termo explica bem a construção da obra de Caio Fernando Abreu, já que suas histórias, se analisadas separadamente, não remetem a uma unidade temática nem a uma unidade formal. Nessa coletânea, há contos cuja temática é o homoerotismo, outros cujo ponto central é a repressão política. Suas formas também não são homogêneas: algumas apresentam estrutura linear; outras, estrutura fragmentária, num constante entrecruzamento de formas, estilos e linguagens. O drama caracteriza o tom de algumas histórias da obra. A linguagem considerada vulgar é colocada no mesmo plano da culta. Sob o signo da diversidade e da pluralidade, tanto esteticamente quanto em termos de leitura e interpretação, a coletânea de contos se apresenta como um desafio ao leitor. As rupturas com os modos tradicionais de composição verificadas na obra de Caio Fernando Abreu representam esses antagonismos, especialmente se os problemas da experiência social brasileira da segunda metade do século XX discutidos em seus contos forem considerados. Nos contos, o autor nos oferece um narrador ou a ausência dele, em narrativas que são fragmentadas e lacunares, densas e complexas. O autor mostra aspectos do contexto social e valores, condutas e ideologias próprias dos períodos autoritários e de sociedades conservadoras. Ao questionar tais ideologias e posições preconceituosas marcadas por um pensamento conservador, a obra mostra a mediocridade e o preconceito de uma sociedade voltada para o culto de valores tradicionais, convidando o leitor a fazer parte das histórias e a tomar posição crítico-reflexiva em relação ao contexto e a posturas assumidas pela classe dominante. A heterogeneidade da forma e estrutura dos contos de Morangos Mofados aliada à sensação de fracasso e de ilusões perdidas que perpassa na leitura das narrativas dessa obra, aguça uma questão: se o saldo das experiências dos personagens é negativo, que tipo de sentimento é possível apreender dos textos? ESTRUTURA DA OBRA 1° PARTE: O MOFO ( CONTOS: DIÁLOGO, OS SOBREVIVENTES, O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO , PELA PASSAGEM DE UMA GRANDE DOR, ALÉM DO PONTO, OS COMPANHEIROS, TERÇA-FEIRA GORDA; EU,TU,ELE; LUZ E SOMBRA) 2° PARTE: OS MORANGOS ( CONTOS: TRANSFORMAÇÕES, SARGENTO GARCIA, FOTOGRAFIAS; PÊRA, UVA OU MAÇÃ?, NATUREZA VIVA, CAIXINHA DE MÚSICA, O DIA QUE JÚPITER ENCONTROU SATURNO, AQUELES DOIS, MORANGOS MOFADOS) RESUMOS E TRECHOS DOS CONTOS MAIS SIGNIFICATIVOS 1° PARTE: O MOFO DIÁLOGO: Duas pessoas, nomeadas A e B começam a conversar a partir da declaração de A,de que é companheiro de B. O outro lhe pergunta o que isso significa, obviamente tentando ler as entrelinhas dessa declaração. O conto trata da suspeita que pode surgir por trás do ser companheiro, numa época de repressão e perseguições. OS SOBREVIVENTES: Dois personagens não nomeados, um homem e uma mulher discutem enquanto ela bebe e fuma sem parar. Ambos são sobreviventes da geração de Lenon, que acreditou no sonho, que lutou contra a corrida armamentista da Guerra Fria. Mas o que sobrou para ambos foi a frustração de não ter mais objetivos, não ter mais contra o que lutar. O sonho havia acabado, só restava a dura realidade do “maldito emprego de oito horas diárias” que sustenta as despesas reais da vida real. TRECHO DO CONTO: OS SOBREVIVENTES Sri Lanka, quem sabe? ela me pergunta, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável ela continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? Uma certa saudade, e você em Sri Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodca nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz tão rouca, fico por aqui mesmo comparecendo a atos públicos, pichando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Teresa de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apóia nossos fatigados pés descalços ao fim de mais outra semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio-políticos existenciais e bababá em comum só podiam era dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, que foi meu deus que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro e não queria lembrar, mas não me saía da cabeça o teu pau murcho e os bicos dos meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, e não sei se você acreditou. Eu quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanto tesão mental espiritual moral existencial e nenhum físico, eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, éramos melhores, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos mais, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou. Cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, eu enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite e pedia mete fundo, coração, explode junto comigo, me fode, depois virava de bruços e chorava no travesseiro, naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, meu bem, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo o nome da fanchona? Vita, isso, Vita Sackville-West e o veado do marido dela, ora não se erice queridinho, não tenho nada contra veados não, me passa a vodca, o quê? e eu lá tenho grana para comprar wyborowas? não, não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. . O DIA EM QUE URANO ENTROU EM ESCORPIÃO: Um rapaz entra no apartamento de um grupo de amigos dizendo que Urano estava entrando em Escorpião. Ninguém lhe dá atenção e ele fica frustrado que ninguém tenha levado a sério uma previsão astrológica com conseqüências talvez até devastadoras. Furioso com a desatenção geral ele tenta se matar, através da janela do apartamento, mas é contido e consolado na sua decepção. Finalmente, após um chá de camomila e um baseado ele se sente melhor. PELA PASSAGEM DE UMA GRANDE DOR: Quando se preparava para fazer um café, ouvindo Erik Satie, Lui recebe um telefonema de uma amiga que está muito deprimida e precisa de alguém para conversar. Ela o convida para sair e se convida para ir até a sua casa, talvez para falar banalidades. Eles conversam coisas à toa,enquanto a amiga se distrai e se sente bem pela atitude de compreensão do amigo Lui. Despede-se e desliga o telefone. ALÉM DO PONTO: O narrador procura a casa de um amigo, levando consigo uma garrafa de vodka - chove muito – enquanto anda na chuva, pensa em como será bom rever o amigo para se embebedarem e falar da vida. Porém, ao chegar à porta do amigo, ele bate mas ninguém vem abrir. OS COMPANHEIROS: É uma história embaçada, que contém personagens como O de Camisa Xadrex, A Médica Curandeira, A Moreninha Brejeira, um Ator Bufão e o Jornalista Cartomente. Todos são envolvidos numa pseudo-história, sem pé nem cabeça, recheada de reflexões e alucinações, com uma presença constante de morcegos voando em torno da casa. TERÇA-FEIRA GORDA: O narrador nos fala de um encontro que teve com um homem no carnaval. Eles se sentem muito atraídos e se entregam ao amor nas areias da praia. Um grupo de pessoas ataca o casal gay com ofensas, socos e chutes. Curiosamente é terçafeira de Carnaval, quando tudo é farra, fantasia e alegria, momento de se liberar, sem nenhum tipo de repressão. Mas os dois amantes, reais, homossexuais, ousam abalar a estrutura conservadora de uma sociedade hipócrita e são violentamente agredidos. O narrador foge deixando sozinho seu amante. EU, TU, ELE: Conto baseado em reflexões sobre o comportamento, em que o narrador avalia sua relação com o tu sem deixar de comparar com a presença do ele. A estrutura e o enredo do conto são muito fragmentados, não havendo uma ação em andamento ou qualquer outro objetivo explícito por parte do narrador. LUZ E SOMBRA: O narrador encontra-se em seu apartamento, completamente alheio do mundo e de si. Tenta dar algum sentido ao que pretende dizer, mas tudo se resume às suas reflexões sobre seu estado de espírito. TRECHO DO CONTO: LUZ E SOMBRA Deve haver alguma espécie de sentido ou o que virá depois? - são coisas assim as que penso pelas tardes, parado aqui nesta janela, em frente aos intermináveis telhados de zinco onde às vezes pousam pombas, e dito desse jeito você logo imagina poéticas pombinhas esvoaçantes, arrulhantes.São cinzentas, as pombas, e o ruído que fazem é sinistro como o de asas de morcego.Conheço bem os morcegos, seus gritinhos agudos, estridentes. Mas não quero me apressar. Penso que se conseguir dar algum tipo de ordem nisto que vou dizendo haverá em conseqüência também algum tipo de sentido. E penso junto, ou logo depois, não sei ao certo, que após essa ordem e esse sentido deve vir alguma coisa. O que virá depois? - pergunto então para a tarde suja atrás dos vidros, e me sinto reconfortado como se houvesse qualquer coisa feito um futuro à minha espera. Assim como se depois do chá fumasse lentamente um cigarro mentolado, olhando para longe, aquecido pelo chá, tranqüilizado pelo cigarro, enlevado pelo longe e principalmente atento ao que virá depois deste momento. Faz tempo não tomo chá, e controlo tanto os cigarros que, cada vez que acendo um, a sensação é de culpa, não de prazer, você me entende? Não, você não me entende. Sei que você não me entende porque não estou sendo suficientemente claro, e por não ser suficientemente claro, além de você não me entender, não conseguirei dar ordem a nada disso. Portanto não haverá sentido, portanto não haverá depois.Antes que me faça entender, se é que conseguirei, queria pelo menos que você compreendesse antes, antes de qualquer palavra, apague tudo, faz de conta que começamos agora, neste segundo e nesta próxima frase que direi. Assim: é um terrível esforço para mim. Se permanecer aqui, parado nesta janela, estou certo que acontecerá alguma coisa grave - e quando digo grave quero dizer morte, loucura, que parecem leves assim ditas.Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois.Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.Falava da janela. Poderia começar por ela, então. É uma janela grande, de vidro. Do teto até o chão, vidro que não abre, compacto. A sala é muito pequena, não há nada nela a não ser um carpete verde-musgo, que me enjoa até o vômito. E agora me ocorre algo novo: creio que foi para não vomitar tanto e tão freqüentemente que passei a olhar pela janela, dando as costas ao carpete. Então, os telhados.Não me pergunte como nem por quê, mas a janela não dá para uma rua, como a maioria das janelas costuma dar. A janela dá para aqueles intermináveis telhados de zinco dos quais já falei.Sim, sim, tentei me interessar pelas manchas do zinco, seus pequenos sulcos, as ondulações e todas essas coisas. E realmente me interessei, durante algum tempo. Mas os telhados são intermináveis, você sabe. Não, você não sabe, você não sabe como tentei me interessar pelo desinteressantíssimo. Então começou novamente aquela sensação de enjôo: os telhados estendem-se até o horizonte, como um enorme carpete verde. Antes de começar a vomitar olhando os telhados, felizmente vieram as pombas. Mas como eu já disse: são cinzentas, o ruído que fazem é como o de asas de morcego.Seus bicos batem freqüentemente contra o vidro da janela. Não houvesse vidro, tocariam meu rosto.Para não vomitar, tento olhar para além dos telhados que se fundem ao infinito.Não vejo nada, só o cinza pesado do céu e a fuligem que se deposita aos poucos na beirada da janela.Ao entardecer a fuligem ganha uns tons rosados, e logo depois, quando baixa o escuro, chega o momento de me encolher sobre o carpete para finalmente dormir. Pela manhã, todo dia, alguém enfiou um pedaço de pão pela fresta da porta, uma lata com água, como se eu fosse um cão, e um maço de cigarros. Não sei quem é.Escuto que constantemente range os dentes, o que talvez seja apenas um jeito de sorrir.Acho que no começo fumava muito, pelo menos o quarto está cheio de cinzas, de pontas de cigarros, já que não existem cinzeiros e é impossível abrir a janela, você está me ouvindo? 2° PARTE: OS MORANGOS TRANSFORMAÇÕES: É mais uma história narrada por um personagem não nomeado, frustrado, perdido, sem compreender-se ou seu estar no mundo, alguém que passou por muitas e profundas transformações e não reconhece a si nem aos outros numa crise completa de identidade. SARGENTO GARCIA: O narrador Hermes nos conta que, no dia de sua apresentação ao serviço militar obrigatório, foi dispensado por ser arrimo de família. Porém, no caminho de volta para casa, foi abordado pelo sargento que o dispensara e recebeu um assédio sexual descarado da autoridade. Eles vão a um hotel, mas Hermes não se deixa penetrar. Mas o sargento tem um orgasmo sobre o rapaz. Hermes foge assustado e decide que começará a fumar no dia seguinte. FOTOGRAFIAS: Duas mulheres se descrevem, física e psicologicamente. Uma é otimista e alegre e a outra é triste e pessimista. PÊRA, UVA OU MAÇÃ?: Um analista recebe uma paciente que tem o hábito de reparar no modo como seu analista se veste. Nesse encontro, ela repara que ele está com meias diferentes. Ele revela um grande desconforto e espera que a consulta acabe o mais rápido possível. Enfim, sua paciente narra que, ao vir para a consulta, algo muito estranho lhe acontecera, ela tropeçou em um caixão de defunto que saía para o enterro. Este episódio sugere que enquanto a mulher se dirigia para uma sessão de análise onde divagaria sobre seus problemas talvez imaginários, a realidade se interpôs em seu caminho, de forma brutal. NATUREZA VIVA: Este conto é um monólogo comovido em que o personagem dedica-se a refletir sobre o conhecer-se e compreender os sentimentos. É mais um dos momentos de tentativa de auto-compreensão e da busca de um sentido para a vida. CAIXINHA DE MÚSICA: Um homem conta para a sua mulher que sonhou com uma árvore que era amante da primavera. Ele sente-se sufocado por uma terrível angústia existencial que provoca nele pesadelos. Toda essa angústia e esse sufoco se convertem numa explosão de ódio contra a opressão do casamento, na figura da esposa. O homem estava louco e acaba por estrangular a mulher. TRECHO DO CONTO: CAIXINHA DE MÚSICA O homem pegou a caixinha de música e ficou com ela entre as mãos, como se fosse tocar. Com a luz mortiça da manhã iluminando o rosto dele, ela agora podia ver os olhos muito abertos, fixos em algo que ela não via, a barba por fazer, a mão parada no ar e o grisalho dos pêlos no peito. E continuava sem sentir nada, a não ser um calor fugindo entre as coxas.Ele não dizia nada.- O que foi que você descobriu?Ele sorriu sem mover músculo algum do rosto. Apenas os cantos da boca ergueram-se rápidos, como se alguém apertasse um botão ou puxasse um fio oculto. Girou nas mãos a caixinha.- Descobri que não era um caso de amor, O salgueiro estava seco, morto. A primavera tinha assassinado ele. Não era um caso de amor. Ela estrangulou, vampirizou, assassinou ele. Aquela escuridão de dentro era a fraqueza dele, o fracasso dele, a morte dele. Você está me entendendo? Eu vou falar bem devagar para que você compreenda: aquela loucura de flores e cores do lado de fora era a vitória dela. A vitória da vaidade dela às custas da vida dele. Uma vitória louca, você está ouvindo?Como se tivesse frio, ela encolheu-se violentamente. Sem querer, olhou para o lado e viu o relógio. Eram cinco e quinze da manhã. Ele repetiu:- Uma vitória louca, uma vitória doente. Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio.Muito calma e um tanto casual, acendendo outro cigarro, afastando uma mecha de cabelos da testa um pouco fria, um pouco suada, mas nada de grave, a mulher ergueu levemente a sobrancelha esquerda, num gesto muito seu, um gesto cotidiano, habitual e sem novidades, que usava muito ao fazer compras, indagando preços, ao estender uma xícara de chá, ao dar ordens à empregada, ao girar o botão ligando o televisor, e perguntou absolutamente tranqüila, absolutamente controlada, absolutamente segura de si:- Você está querendo dizer que acha que eu o destruí?Depositando com extremo cuidado a caixinha de música, ele disse alguma coisa em voz tão baixa que ela não chegou a entender.- Como?Não ouviu a resposta. As duas mãos grandes e fortes do homem fecharam-se rápidas e precisas em volta da garganta dela. A mulher estendeu a perna como se chutasse algo no ar, derrubando a caixinha no chão. O dia estava quase claro quando uma nota de corda arrebentada ficou ressoando aguda no ar. Entre o som e a luz, ela ainda conseguiu ver o sorriso iluminado do homem, e se pudesse falar diria então que era exatamente: como se estivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. O DIA QUE JÚPITER ENCONTROU SATURNO: Dois jovens encontram-se por acaso em uma festa, conversam, sentem que são amigos. Falam de tudo, entendendo-se muito bem, apesar de nunca terem se visto antes. Ao final do conto, o rapaz sai e atravessa a rua. De repente, “na cabeça dele soaram cinco tiros”. AQUELES DOIS: Raul e Saul são amigos e trabalham na mesma repartição. Ambos já tiveram namoradas, mas estão sós. Eles são parecidos e se gostam, mas sua homossexualidade não chega a se concretizar. Eles acabam sendo despedidos por terem sido denunciados em cartas anônimas que falavam em uma relação anormal e numa “desavergonhada aberração”. MORANGOS MOFADOS: Esse conto-título é narrado em 3° pessoa e nos mostra um homem cansado, que imagina ter uma doença grave, mas sabe que seu mal é tristeza, frustração por tudo o que não foi nem fez, pelo sonho que se foi e pela incrível necessidade de encarar a realidade com seus limites. Depois de passar pela náusea e pelo vômito, ele se depara com a necessidade de observar a realidade que se impõe e vê com surpresa que há novos caminhos a seguir. afinal de contas, os morangos são eternos, como afirma a epígrafe do conto “strawberry fields forever” Nosso homem renascido, segundo o narrador, “Abriu os dedos, Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar?(...) Achava que sim”. TRECHO DO CONTO: MORANGOS MOFADOS No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo — e queria? Enumerava frases como é-assimqile-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-defazer ou apenas lTttsafinalque.importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto dernorangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de algama gaveta. Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que trocado em miúdos significavá algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de dormir, só que juntos — e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou, e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beaties, mas ainda na cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora, perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda— Feira ninguém sabe o quê.Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por? Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos & impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice, mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho, estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz que se. (…) Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas, latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse que rodandonas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo. (...) Debruçado no terraço, amanhecia.Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro dedentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como — não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito — uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo. Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recémnascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.Achava que sim.Que sim.Sim. Biografia Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu no dia 12 de setembro de 1948, em Santiago (RS). Jovem ainda mudou-se para Porto Alegre onde publicou seus primeiros contos. Cursou Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, depois Artes Dramáticas, mas abandonou ambos para dedicar-se ao trabalho jornalístico no Centro e Sul do país, em revistas como Pop, Nova, Veja e Manchete, foi editor de Leia Livros e colaborou nos jornais Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. No ano de 1968 — em plena ditadura militar — foi perseguido pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Considerado um dos principais contistas do Brasil, sua ficção se desenvolveu acima dos convencionalismos de qualquer ordem, evidenciando uma temática própria, juntamente com uma linguagem fora dos padrões normais. Em 1973, querendo deixar tudo para trás, viajou para a Europa. Primeiro andou pela Espanha, transferiu-se para Estocolmo, depois Amsterdã, Londres — onde escreveu Ovelhas Negras — e Paris. Retornou a Porto Alegre em fins de 1974, sem parecer caber mais na rotina do Brasil dos militares: tinha os cabelos pintados de vermelho, usava brincos imensos nas duas orelhas e se vestia com batas de veludo cobertas de pequenos espelhos. Assim andava calmamente pela Rua da Praia, centro nervoso da capital gaúcha. Em 1983 transferiu-se para o Rio de Janeiro e em 1985 passou a residir novamente em São Paulo. Volta à França em 1994, a convite da Casa dos Escritores Estrangeiros. Lá escreveu Bien Loin de Marienbad. Ao saber-se portador do vírus da AIDS, em setembro de 1994, Caio Fernando Abreu retorna a Porto Alegre, onde volta a viver com seus pais. Põe-se a cuidar de roseiras, encontrando um sentido mais delicado para a vida. Foi internado no Hospital Menino Deus, onde faleceu no dia 25 de fevereiro de 1996. QUESTÕES SOBRE O LIVRO MORANGOS MOFADOS 01. O título Morangos Mofados se distribui nas duas partes que compõem o livro: O Mofo e Os Morangos. Relativamente ao mofo, pode se inferir que representaria: a) A opção pela luta revolucionária armada, que aparece descrita nos contos que integram essa 1° parte do livro. b) O fracasso do projeto da contracultura e o desconforto decorrente do fim do sonho de uma sociedade mais livre. c) Uma proposta de se manter a todo custo a busca de uma sociedade alternativa em que predominasse a paz e o amor. d) uma crítica ao uso de drogas como forma de libertação. e) A tentativa de resgate do estilo de vida utópico proposto Lennon, numa prova de que o sonho não morreu. 02. A temática do homossexualismo, como aspecto social desafiador da ordem estabelecida sob padrões conservadores, aparece nos contos listados na alternativa: a) Os companheiros – Aqueles dois – Os sobreviventes b) Os sobreviventes – Sargento Garcia – Natureza viva c) Luz e Sombra – Natureza viva – Aqueles dois d) Terça-feira gorda – Aqueles dois – Sargento Garcia e) Os companheiros – Os sobreviventes – Aqueles dois 03. Eis o tema do conto: Um homem sente-se sufocado por uma terrível angústia existencial que provoca nele pesadelos. Toda essa angústia e sufocamento se converte numa explosão de ódio contra a opressão do casamento, na figura da esposa. O homem acaba por estrangular a mulher. Trata-se do enredo do conto: a) Os sobreviventes b) Pela passagem de uma grande dor c) Além do ponto d) Transformações e) Caixinha de música 04. Com relação à composição dos contos do livro Morangos Mofados, podemos perceber que alguns têm estrutura fragmentária, em que os fatos não são ordenados numa cronologia clara ou então falta definição sobre os personagens. Há também contos cuja estrutura obedece mais exatamente a composição tradicional com início, meio e fim e nos quais há uma boa caracterização das personagens e do tema desenvolvido. As considerações acima podem ser exemplificadas respectivamente pelos contos: a) Além do ponto ; Natureza viva b) Eu, tu, ele ; Sargento Garcia c) Aqueles dois ; Luz e Sombra d) Caixinha de música ; Natureza viva e) Aqueles Dois ; Eu, tu, ele 05. No conto Morangos Mofados, que dá título ao livro, encontraremos uma personagem que sofre de um terrível mal. Uma frustração terrível por ter sentido de perto e por dentro o desmoronar do projeto sonhado por sua geração. O sonho acabou, mas o mundo não. Entre os excertos abaixo extraídos do referido conto, um aponta a possibilidade de reconstrução, um novo caminho a trilhar após a constatação do fim. Essa imagem lúcida e consciente das novas possibilidades encontra-se no trecho da alternativa: a) “(...) a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, não tinha descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana”. b) “Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, (...)”. c) “Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio(...)?” d) “Abriu os dedos, Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar?(...) Achava que sim”. e) “ Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente apertou o botão? E se aquele cinza-claro no sucedâneo do horizonte for o clarão metálico?”