ESTÉTICA DOS MAUS TRATOS AOS ANIMAIS

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ESTÉTICA DOS MAUS TRATOS AOS ANIMAIS
São Paulo, n. 9, jan-jun. 2014
ESTÉTICA DOS MAUS TRATOS AOS ANIMAIS
Taís Gomes Corrêa 1
O presente texto até poderia ter como título “Três boas razões para você não ter um
animal de estimação”. Mas seria muito estranho, tendo como autora uma médica veterinária.
Principalmente uma profissional que, entre as atividades que já exerceu, inclui-se a direção de dois
pet shops. Além, claro, de já ter trabalhado no hemisfério da chamada “clínica geral”, onde
costumam aportar os mais estranhos proprietários de animais raros com sintomas os mais
diversos, prioritariamente resultantes de cuidados inadequados. Pois cuidados inadequados são
mais comuns do que se poderia supor.
Os seres humanos têm a tendência de imaginar que tudo neste planeta acontece em
função daquilo que a inteligência – também humana – determina para o restante de todos os
seres vivos. Seria como dizer que, por alguma arrogante razão, tudo na terra deveria estar
ajustado à vida humana. E isto independente de quem decide sobre esse “ajustamento”. Pois,
como se observa, nada escapa ao critério da “inteligência”, seja de quem for.
Há muitos séculos o ser humano decidiu criar em cativeiro uma série de espécies animais.
De um modo muito geral, o próprio conceito de “animal doméstico” é uma decorrência dessa
decisão primitiva. A Civilização, por seu lado, encarregou-se ela própria de estabelecer a cultura
alimentar, em cujo espectro as principais fonte de proteínas são de origem animal.
Se dermos um salto sobre a evolução cultural da humanidade, vamos perceber que
pouca, mas muito pouca coisa mesmo, mudou em termos de alimentação e uso dos recursos de
origem animal. Pode até ser que o assim denominado “conceito” ou ideia nuclear da utilização
desses recursos, que envolve a justificação ética correspondente, tenha sofrido alteração no curso
do tempo. Todavia, esse uso persiste. Seja por necessidade de subsistência, seja para a simples
satisfação do apetite, seja ainda para corresponder à glamourização de algumas práticas sociais,
como a gastronomia, por exemplo, é patente o uso da vida animal pelos seres humanos.
1
Médica veterinária. Presidente da Diretoria do INMOD Instituto da Moda. Presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Dona
Neta. Autora de Ectima contagioso em ovinos: evidências clínicas e evolução da enfermidade (INMOD, 2006).
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De pouco ou quase nada adianta falar sobre os chamados “cuidados especiais”, as “boas
práticas”, o “zelo continuado”, o “abate humanitário” enquanto se consumir, por exemplo, foie
gras, escabeches de codorna, costelas de javali, rãs empanadas, faisões ao molho de amêndoas e
assim por diante. Bem verdade que já não se consomem as passarinhadas que eram tão comuns
até os anos de 1950 em algumas regiões do país. Como, igualmente, não se consomem mais
(respeitando-se leis específicas) tatus, tartarugas, macacos.
Foi necessário verificar a presumível extinção de algumas espécies para que, em todo o
mundo, se adotasse algum tipo de impedimento legal à caça e ao abate de animais dessas
espécies. Mas que dizer dos chamados criatórios em cativeiro, onde se criam, justamente com a
finalidade de abate, algumas dessas espécies? Não seria isto uma hipocrisia da própria cultura?
É evidente que a “revogação” de algumas necessidades alimentares humanas será, não
apenas improvável, como impossível. Afinal, o ser humano depende delas para sobreviver.
Contudo, o fato dessas necessidades estarem ligadas a hábitos muito antigos – por si só – já
determina a vocação cultural de toda a humanidade. Servindo essa vocação, principalmente, para
demonstrar que tudo que se pratica na contemporaneidade é resultado dela. Nem importa se
iniciativas de vegetarianismo, incluindo as modalidades mais radicais, implicam consumo
alimentar livre de proteína animal.
Pois se de um lado há o consumo de produtos derivados do abate de animais, de outro há
esse convívio cultural entre seres humanos e animais de estimação. Um convívio que, certamente,
não ocorre tendo com base em prioridades determinadas pela condição animal. Até porque se isto
se desse, inexistiria a criação de animais de estimação.
O desenvolvimento genético de cães e gatos, especialmente para esse tipo de criação, já
revela em si um tipo de violência contra o mundo animal. Uma violência, claro, que do ponto de
vista individual exime qualquer pessoa dessa responsabilidade. Seja, ou não, proprietária de algum
desses animais. Mas condena a cultura, que ao longo da história gerou espaço, gosto e
“necessidade” por esse tipo de criação.
Se olharmos para a imensa variedade de butiques que mundo afora oferecem produtos
pet, (até porque o “pet” já está arraigado em nossa cultura), vamos descobrir uma infinidade de
itens que em princípio destinam-se, sim, aos “usuários” animais. Mas alguém já se indagou se
todos esses itens trazem conforto real, útil e prático a esses “usuários”?
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Dormir com o cachorrinho na mesma cama nada significa além de um carinho que pode
ser comparado ao mesmo carinho que se tem em criança por um bichinho de pelúcia. Tudo que
antecede essa prática, em termos de higiene e cuidados humanos pessoais, indica um predomínio
de gosto humano sobre aquilo a que também poderíamos denominar de “gosto animal”. Gosto,
ou preferência, não importa. O que importa, isto sim, é o predomínio da preferência humana
sobre a preferência do animal.
Banho e tosa, por exemplo, é um dos imperativos dessa preferência. Mas será que o
animal submetido a semelhantes procedimentos gosta disso? Será que realmente aprecia esses
cuidados exaustivos? Certamente que ninguém sabe exatamente. Mas importa mesmo é que a
adoção desses cuidados, como sua incorporação às atividades cotidianas de quem possui um
desses pequenos animais, foram decisões humanas tomadas em função de gostos e preferências
dos seres humanos. O que significa dizer que não foram decisões tomadas pelos seres humanos
em função de necessidades que os seres humanos verificaram no contexto animal.
Por todo o país são incontáveis os espaços destinados à prática de esportes equestres.
Entre esses, contam-se numerosos casos de espaços inadequados, forrageamentos deficientes,
acompanhamentos clínicos muitas vezes precários e, o que é bem pior, exposição dos animais a
ciclos excessivos de exercícios, prejudicando-os com desgaste físico demasiado e desnecessário.
Muitas vezes, um simples aquário já serve para apontar o desequilíbrio entre necessidade
humana e condição de vida animal. “Zé, você deu comida para os peixes hoje?” Simples indagação
corriqueira no contexto familiar, que indica a possibilidade de um esquecimento. Qualquer que
seja a resposta possível. Pois a preocupação com que alguém indaga já admite a possibilidade do
esquecimento e, consequentemente, a condição do peixinho que pode ter ficado sem sua ração.
Pior que esta indagação é uma outra: “Que aconteceu para os peixinhos terem morrido?”
Essa indagação indica com crueza uma situação terrível. Os peixinhos podem ter morrido por
causa de uma displicência muito comum entre proprietários de aquários que não prestam atenção
nos limites da ração. Basta coloca-la em excesso para fazer com que as consequências sejam o
óbito irremediável.
Acontece com tudo. Pássaros em gaiolas. Não importa se pertencem a famílias
legalmente permitidas, ou não. Tudo acaba por demonstrar que, muitas vezes, maus tratos não
são necessariamente aqueles maus tratos já convencionados com tal. Basta que o tratamento do
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animal, qualquer que seja, não atenda às necessidades dele e aconteça, exclusivamente, por conta
do gosto e da preferência de quem detém o animal.
Todas essas considerações são importantes para rever o “convívio” entre o ser
humano/animal no contexto da contemporaneidade. O desejo de possuir um animal, na maior
parte das vezes, pode decorrer de um anseio pessoal que transcende à real necessidade humana.
Encontra uma explicação, isto sim, em condições que só se justificam por necessidades que
ultrapassam as reais necessidades humanas. Ou seja, que estão além das necessidades básicas.
Entre os que passeiam com cães também se encontram aqueles que desfilam, não com
cães propriamente ditos, mas com raças de cães. Ou seja, o cão é elemento de exibição pública de
um estilo pessoal, de um modo de vida que inclui, além de pertences e objetos pessoais, também
o animal de estimação. Um objeto de estética, portanto.
Victor Aquino, ao considerar a circunstância da necessidade de “marca pessoal”, que
remete àquilo que também pode ser entendido como identidade, diz que “almost all in the world
shows style and the way of life to somebody who needs to show who really is or who really want
to be”.2 A frase é praticamente um modo de assinalar que quase tudo serve ao ser humano como
marca pessoal, ou como modo de cada um dizer quem ou o que é. Por essa razão, entendido
desse modo, passa-se a perceber que até mesmo os animais de estimação servem a esse
propósito.
Contudo, quando se percebe que o dito animal de estimação é também “instrumento”
que “opera uma circunstância” fora (ou além) da natureza animal, uma preocupação se torna
inarredável: o animal, ainda que de estimação, está literalmente a serviço de uma necessidade
não essencial, de uma vaidade, de um imperativo descartável, de apenas uma satisfação do ser
humano. O que deveria ser questionado.
Constituiu-se mundo afora um complexo processo de produção de bens que se destinam
a suprir e a manter isso que se conhece como universo “pet”. Aparentemente tudo que se percebe
integrar esse universo se destina a um pretenso “conforto” do animalzinho que se possui. Mas não
terá sido o animalzinho que “sugeriu” a necessidade de nada nesse sentido. Apenas esta
constatação já seria suficiente para que se refletisse a respeito.
2
Aquino, Victor. Aesthetics, as way for watching Art and things. Monroe, WEA Books, 2004, p. 93.
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Pois não é mais uma necessidade básica, ou da provisão de alimento que transforma o
animal em presa de abate pelo ser humano, ou de uso para tração das ferragens empregadas para
preparação da terra na seara de plantio, ou para transporte de cargas de qualquer natureza, ou
para a prática de algum esporte. Não. Agora simplesmente o animal foi transformado em item de
exibição, de decoração, de instrumento subjetivo da identidade humana.
A ideia de “pet” está indisfarçavelmente associada a um componente estético. Pode-se
até mesmo dizer que há um predomínio desse componente sobressaindo do conceito que reúne
tudo aquilo que passou a integrar a ideia de “pet”. Componente este que justifica a preocupação
para com o emprego e a destinação cultural de animais que passam a existir em função de uma
outra necessidade humana, muito além de qualquer necessidade básica ou essencial. Pois do
ponto de vista humano não há como justificar qualquer necessidade, básica ou essencial, a partir
da posse de qualquer um animal. Principalmente os ditos animais de estimação.
Desse modo, na perspectiva da Civilização, fora esse particular que trata apenas do
universo “pet”, a relação do ser humano com todos os animais mantém-se absolutamente a
mesma desde a antiguidade. Canais da TV a cabo em todo o mundo, com certa regularidade
exibem programas sobre pesca. Que se vê nesses programas? Difícil admitir, mas o que se assiste
aí é sempre o ato predatório tolerado pela cultura. Esteja ele disfarçado do que for.
Já não importa se há explicações pedagógicas, longas e complexas, sobre o cumprimento
e o peso do atum recém pescado em mar aberto. O que importa é entender as razões de utilização
do sacrifício animal como satisfação do prazer humano. Veja-se, como outro exemplo, aqueles
filminhos realizados em pesqueiros particulares, como em represas ou rios brasileiros, onde, após
a captura do peixe, munido de um alicate de corte, o pescador-apresentador retira o anzol da
mandíbula do animal e o devolve à água, certo de que apenas a exibição da cena não traz dor ou
sofrimento ao peixe.
Há como que uma hipocrisia latente na cultura. De um lado, assistem-se aos movimentos
sociais, tanto como as ações legais, que combatem as touradas, as corridas de touro, as farras do
boi. De outro, essas pescarias exibidas em programas de televisão, que dizem o contrário. Cenas
em que se alçam a bordo de barcos de luxo peixes de quase dois metros de comprimento, com
cerca de meia tonelada de peso. Peixes os quais, ao serem depositados sobre o convés, chamam a
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atenção pelas extensas fisgadas laterais, onde se arremessaram arpões para garantir que eles não
possam escapar.
Enquanto isso, providências para recolhimento de animais traficados, que recebem
tratamento e cuidados antes da devolução ao habitat correspondente, são confrontadas por
outras atitudes humanas que, embora aceitas, constituem parte dessa ambivalência cultural de
convívio entre seres humanos e animais.
Conhecido apresentador brasileiro de um desses programas de televisão, corre o mundo
exclamando “veja como esse cara é simpático”, no esforço de passar a impressão de que, não
produzindo nenhum ato de agressão está contribuindo para “ampliar” o conhecimento a respeito
das espécies. Mas o próprio programa é um ato de agressão. Principalmente quando finge dançar
com um canguru, em que arrasta o animal por metros e metros de terreno. Será que o animal se
sente bem com isso?
O mesmo apresentador invade o habitat de répteis, aves, batráquios, mamíferos, insetos,
ou o que for, mais conhecidos ou menos conhecidos, dissimulado no mesmo propósito,
certamente aborrecendo esses animais que jamais estarão preocupados com o ser humano, com o
estilo de vida ou com a preocupação que se tem, ou não se tem com eles.
Acontece de tudo nesse universo. Universo no qual o ser humano exerce controle
absoluto. Imagina-se que o animal, simplesmente tendo a vida preservada, já terá garantida sua
“imunidade” e estará a salvo no equilíbrio do conjunto de tudo que mantém a vida no planeta.
Programas como Animal Planet e canais como Nat Geo existem por que esse tipo de conduta,
além de amplamente aceitos como normais, são aceitos porque se disseminou determinado
“acordo” na modernidade de que apenas mostrando não se está prejudicando nada. Mas, será?
Há outros programas de entretenimento em tudo semelhantes. A própria hipocrisia do
entretenimento humano, com base na transformação da vida animal em espetáculo, já serve
como demonstração do quanto o ser humano se vale da vida animal para os seus propósitos. Tudo
além de necessidades que, fossem legítimas, até poderiam justificar esse ato.
Pior que isto é a desinformação continuada. Adeptos de correntes extremas do
vegetarianismo, que deixam de consumir qualquer item de natureza animal em nome de um
preceito quase religioso, mas que se fazem conduzir em automóveis com bancos de couros, são a
mais evidente demonstração de que se vive em um grave momento da contemporaneidade.
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Para o lado ao qual se olhe se observará uma aberração cultural envolvendo o convívio de
seres humanos e animais. Pois que são a conchotomia e caudectomia realizada em filhotes de cães
da raça dobermann? Uma intervenção cirúrgica para modificar drasticamente orelhas e caudas
desses animais, apenas para satisfazer uma convenção estética da imagem visual que se tem
deles. E, na mesma direção, outras amputações, apenas para satisfação da identificação estética
em outra dimensão, como os “pompons” de cauda nos poodles que acompanham certas
senhoras, após tratamento de “toucador” de banho e tosa. A amputação de parte da cauda nada
mais é do que uma intervenção voltada ao “design”, cuja propriedade é atender a uma convenção
estética de “luxo” e “beleza”.
Por outra via cães da raça dog alemão também sofrem essa intervenção. Ninguém poderá
negar o verdadeiro interesse dessas “cirurgias” no animal. Pois se alterando o “design” original da
raça, confere-se ao animal uma característica, digamos, mais agressiva. Outra vez, as mesmas
perguntas: Por quê? Para que? Qual a justificativa que há para isso? Certamente será muito difícil
justificar qualquer sacrifício, dor, situação de desconforto ou de sofrimento animal.
Principalmente se isso ocorrer para atender a um capricho de natureza humana.
Muitos criadores de cães da raça pitbull se tornaram conhecidos pelo “estilo” imputado
ao animal que, em algumas regiões do mundo, eram utilizados no manejo de rebanhos de
bovinos. (Só isto já serve como uma referência da relação ser humano-vida animal). Esses
criadores se tornaram conhecidos por ampliar os níveis de agressividade do animal,
transformando-o em um símbolo de força e violência. Símbolo tão forte que acabou utilizado em
marca de energético, servindo de referência à presumível resistência e vigor de quem o
consumisse.
Essa mesma raça tem sido objeto de incontáveis polêmicas, a ponto de já ter ensejado
uma interminável discussão acerca da necessidade de sacrificar toda a espécie. Vale novamente
indagar a razão pela qual o ser humano não consegue viver em seu próprio habitat sem o
envolvimento com outras espécies. Rinhas de pit bulls, o desenvolvimento de animais para essas
lutas, ou a simples posse de cães tão “bombados” quanto seus donos, em bucólicos passeios, cujo
destino é um só, o da exibição da forma física de seres humanos e animais como estética de
violência, vigor, resistência e agressividade. Em outras palavras, de discutível superioridade.
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Nem há mais a necessidade de recorrer a outra bobagem de televisão, que é o
encantador de cães, quando se sabe, por exemplo, que ele só existe porque há grande número de
animais estressados. Estressados porque estão vivendo em ambientes não naturais que produzem
desequilíbrio entre o conforto e o bem-estar negados.
Criadores de cães que fazem como colecionadores, possuindo em um mesmo canil
diferentes raças. Isto seria o mínimo de dizer, não fora muitos deles não respeitarem a tipologia da
espécie canina de acordo com as condições ambientais de clima e temperatura. Tão grave quanto
isso é a questão alimentar de cães e gatos. A cultura “pet” generalizou a aceitação da conhecida
“dieta balanceada”. Indústrias poderosas, valendo-se dessa moda de ter em cada casa um
animalzinho que necessita alimentar-se, desenvolveram produtos classificados e justificados, cuja
aceitação “homologa” uma decisão humana sobre esse tipo de comida. Mas será que está correto
manter o bichano doméstico, durante sua existência inteira, apenas ingerindo ração de pacote?
Todas essas considerações destinam-se apenas a pontuar essa circunstância cultural da
relação entre seres humanos e animais. Apenas a sublinhar um dado que tem sido omitido,
deliberada ou involuntariamente, das discussões sobre cultura. É importante encarar o fato de que
seres humanos usam a condição animal sem muitas vezes perceber que, embora não queiram,
causam dor, sofrimento, inadequação ambiental a um ser que é regido por outra natureza.
Além de dor, sofrimento, inadequação ambiental que atingem os chamados animais
domésticos, também há todo um complexo sistema de conceitos (e preconceitos) desenvolvidos
ao longo do tempo, que alcançam o universo em que vivem os animais, quaisquer que sejam. Por
exemplo, o nojo que todos sentem da barata. Claro, são eventuais condutores de bactérias
indesejadas por transitarem por esgotos, lixos e valas de dejetos. São insetos repulsivos e, como
tal, ninguém deseja nenhum tipo de contato com eles. Mas alguém já se indagou se as baratas
têm alguma coisa a ver com quem construiu e mantém nesse abjeto estado de podridão e sujeira
quase todos os esgotos mundo afora?
Claro que não. Pois tudo isso é decorrência da vida humana, dita civilizada. A observação
não tem outro propósito que o de chamar a atenção, mais uma vez, para o modo como o ser
humano classifica as coisas. Alterações ambientais, degradação do equilíbrio das espécies,
modificações climáticas, tudo depende do modo como o ser humano interferiu (e continua a
interferir) na natureza. Há trinta anos quase não se via um único quero-quero em campos de
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futebol no sudeste brasileiro. Terá sido a transformação dos espaços de pecuária em áreas
agrícolas, com a redução de pastagens no extremo sul do país, que forçou a espécie a migrar. Aves
cujo habitat eram as extensas planícies do pampa foram obrigadas a viver em jardins, sítios,
chácaras e até tentar a existência em campos de futebol.
Se isto vai mudar um dia? Difícil dizer. Mas seria importante que essa questão fosse
incluída, no mínimo, em discussões sobre ética, estética e cultura. Pois quando se afirmava no
início deste paper, quase em tom de blague, “três boas razões para você não ter um animal de
estimação”, pensava-se em chamar a atenção para o fato de que o ser humano, racional,
inteligente, consciente, sensibilizado por preocupações contemporâneas de sustentabilidade,
devia refletir mais sobre este assunto.
Inteligência é a condição humana que ajuda, principalmente, a estabelecer distinções
entre certo e errado. Assim como a avaliar os avanços decorrentes das decisões corretas, ou o
contrário. Coerência é a condição humana que auxilia no ajuste entre aquilo em que se acredita e
o modo como se procede de acordo com essa crença. Competência é a capacidade humana de
fazer qualquer coisa para a qual se dispõe da correspondente habilitação.
Então, vejamos.
Se a inteligência, apenas, não foi suficiente para fazer com que o ser humano entendesse
que sua relação com os animais era para ter sido compartilhada universalmente no curso da
evolução, no limite de cada espécie, também não é suficiente para que o ser humano,
independentemente até mesmo da ciência, compreenda que não é coerente o modo como tudo
se coloca na Civilização. Fato do qual se conclui que, também independente de qualquer
circunstância da ciência, a Civilização continua a carecer amplamente de condições para que o ser
humano, de um modo geral, seja dotado de competência para realinhar sua relação com os
animais.
Assim, poder-se-ia dizer que para não comprometer sua inteligência, não ser incoerente
e, finalmente, não demonstrar incompetência, ninguém deveria, sequer, pensar em possuir um
animal de estimação. Pois sempre haverá predomínio, ainda que minimamente, dos desejos,
emoções e sensações humanas sobre as do animal. Predomínio que sempre comprometerá o
conforto, o bem-estar e o conforto animal. E ninguém, pelo menos no chamado mundo civilizado
contemporâneo, deseja isso.
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Cada vez mais, os exemplos se sucedem. Os animais têm sido os elementos constitutivos
da evidência de uma relação que transcende a própria cultura. Talvez se possa explicar a partir não
apenas dos animais, como de toda a natureza, uma certa inquietação do ser humano com tudo
que é diferente de sua própria condição. Pois que são as “ants”, as árvores que falam da cultura
nórdica? 3
David Bidney, em obra clássica, já explicava que tudo que se desconhece, como quase
tudo que é diferente da gente, ou aquilo que não se espera existir, pode se converter em medo,
ou causar algum tipo de temor pelo desconhecido.
4
O imaginário humano, no entanto, tem
transformado as apreensões da diferença, o medo e o desconhecido que emergem do mundo
animal, ao longo do tempo, em literatura. Que dizer, pois, de Moby Dick, King Kong, Anaconda,
Free Willy, Flipper, Na Montanha dos Gorilas, a saga Tubarão, Lassie, K-9, A Revolução dos Bichos e
tantas outras ficções semelhantes? Nelas são reconstruídos os terrores, os medos, os prazeres e
tuto que se imagina que possa ocorrer no contato com os animais. Animais que existem ou não,
mas que mesmo assim projetam o ser humano a uma realidade fantástica, sem paralelo, na qual a
fantasia foi produzida pelo que se conhece pouco, quase nada, ou absolutamente nada da vida
animal. Mas que servem para alimentar as distâncias entre os dois universos.
Na mesma direção também se coloca uma infinidade de títulos infantis, que contribuem
ora alimentam essa condição, ora para projetar em personagens animais características humanas.
Sem contar as ancestrais fábulas, a exemplo das antigas fábulas com origem na Grécia ou na Roma
antiga, muitas delas recontadas por autores como La Fontaine, em que a fantasia projeta situações
de conduta humana em personagens animais.
Tudo contribui para demonstrar que há séculos o ser humano se utiliza da vida animal,
não apenas como suprimento de suas necessidades de alimentação e subsistência, como em um
ideário fantástico de criações que servem a incontáveis propósitos. O animal, por sua vez, sempre
esteve presente na história da Civilização, desde tempos remotos aos tempos atuais. E não se
esqueça aqui dos usos de animais em laboratório, para o desenvolvimento da ciência, em
experimentos e até como garantia de teste de condições de segurança em projetos delicados.
Caso, por exemplo, da cachorrinha Laika, quando, no início da corrida espacial entre americanos e
soviéticos, foi sacrificada às vistas do mundo, em teste espacial cujos erros lhe causaram a morte.
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4
ANTS ANTS ANTS
BIDNEY, David. Theoretical anthropology.
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Livros, filmes, ou livros e filmes que continuam a discorrer sobre essas distâncias, ou essas
diferenças, são a mais clara testificação da supremacia do ser humano em um cenário no qual não
apenas o poder exercido sobre o universo animal, mas principalmente dessa condição que o ser
humano estabeleceu para si, dando conta de uma discutida superioridade. Superioridade que põe
em causa uma pretensa hierarquização das espécies.
O próprio conhecimento científico está a serviço dessa superioridade. De algum modo,
quanto mais o tempo passa, o conhecimento científico também serve para homologar as relações
entre ser humano e mundo animal, justificando todos os demais fazeres que incluam essas
relações. A começar pelos programas de entretenimento, pelos documentários, pelas matérias
jornalísticas que incluem a exibição de animais, do mundo animal, do habitat dos animais, das
curiosidades que envolvem a vida animal e assim por diante. Nunca esquecendo que esse tipo de
exibição, de exposição daquilo que seria a vida “privada” das espécies já é, em si, uma violência.
Ainda que aparentemente ninguém esteja violando nada.
A própria literatura profissional de manejo científico, como livros, manuais e compêndios,
a exemplo de Small animal surgical nursing, 5 é indicativa dessa ótica de tratamento do animal na
perspectiva das sensações humanas. A preocupação para com a dor, o desconforto e o sofrimento
de natureza animal, também é indicativa de uma experiência humana muito antiga, que é pautada
na imaginação de que tudo funciona na perspectiva humana. Ainda no campo da técnica cirúrgica,
em obra de extrema relevância nesse sentido, Anesthesia and analgesia for veterinary technicians,
6
percebe-se nitidamente a preocupação. Ocorre que não há como saber se, além da dor, qualquer
animal sente outra sensação. Ou, então, que tipo de sensação pode ser.
O desenvolvimento de medicamentos veterinários também passa por essa via. Não como
saber. Afinal, apenas quem, ou o que fosse de uma mesma espécie teria condições de opinar. Há
obras que sequer escondem a preocupação de caráter tipicamente humano no desenvolvimento
de medicamentos e o seu emprego, sempre voltados para soluções que o próprio ser humano
imagina. Caso, por exemplo, da obra Clinical pharmacology and therapeutics for the veterinary
technician. 7
5
TEAR, Marianne. Small animal surgical nursing, 2nd ed. New York, Mosby, 2011.
THOMAS, John. Anesthesia and analgesia for veterinary technicians, 4th. New York, Mosby, 2010.
7 BILL, Robert L. Clinical pharmacology and therapeutics for the veterinary technician, 3rd ed. New York, Mosby, 2006.
6
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Em trabalhos semelhantes, como na formação profissional de áreas relacionadas à vida
animal, são muitos os exemplos em que a natureza humana orienta e determina tudo que se faz e
se destina à vida animal. Não se trata de negar essa determinação humana, desenvolvida no curso
da Civilização, integrando todas as culturas ao redor do mundo. Também não se trata de negar a
história. Ou de negar a ciência. O que se questiona é a falta de reflexão sobre o assunto, tentando
alcançar uma possível diferença se essa relação ser humano e animais fosse diferente.
Desde que os animais foram colocados a serviço do ser humano, como desde que se
descobriu que eram fonte de alimento, ou desde que se percebeu que pouco ou nada fariam (os
animais) para “subverter” essa ordem, tudo começou a se arranjar, a se organizar e a se manter
como continua até hoje. É evidente que, sendo tudo como é, o mínimo que se pode fazer é
promover cuidados e prover a existência deles (os animais). Já que a inteligência humana é a
responsável pela organização dessa relação como se conhece, a inteligência humana deve
encontrar meios e modos de, no mínimo, tornar a vida deles (os animais) melhor.
Mas mesmo assim, com essa, digamos, tolerância, tudo é objeto de consumo e vantagem
humana. Já se descobriu que podem ser excelente pretexto de negócio.
8
A ciência, que abriu
caminho para a ciência veterinária, também abriu caminho para o negócio veterinário. 9 Sem falar
na performance do negócio propriamente dito. 10 Contudo, como se sabe, o mundo inteiro gira em
torno do negócio. Qualquer que seja ele. E não se sabe exatamente quando os animais,
transformados em objeto do próprio discurso publicitário, começaram a ser utilizados em
personagens de campanhas inteiras. E não apenas como elemento de reforço em anúncios de
ração. Pois o animal, como tudo que se mexe neste mundo em que se vive, também está a serviço
da publicidade.
Uma vez mais, entretanto, cabe a indagação: tudo isso tem servido para tornar a vida
desses seres mais confortável, mais segura e mais agradável?
8 TAYLOR, Jonathan; PORTWOOD, Russell. The oficial veterinary marketing guide: how to use online media, viral marketing and
direct response to grow your veterinary practice in today’s economy. New York, VetNet Marketing, 2011.
9 TASSAVA, Brenda. Social media for veterinary professional. Toronto, Lulu.com, 2011.
10 CHAMBLEE, Justin; REIBOLDT, Max. Financial management of the veterinary practice. New Jersey, 2010.
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Referências
ANTS ANTS ANTS
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