4. A vida do nordestino no inferno verde

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4. A vida do nordestino no inferno verde
A VIDA DO NORDESTINO NO INFERNO VERDE
No ano de 1877, João Gabriel de Uruburetama chegou à foz do Acre.
Segundo as estatísticas existentes, naquele período chegaram 4.600 nordestinos,
deslocados pelo latifúndio, pela seca e pelas promessas de ficarem ricos. Em
1900 somavam 158 mil.
“Em menos de vinte anos, ao raiar do século XX, o Acre havia se
transformado de território indígena em um verdadeiro resumo do mundo,
apesar da predominância absoluta de brasileiros de diferentes origens. Uma
nova sociedade construída a partir da diversidade étnica e cultural dos que
para cá migraram em busca da fortuna da borracha e na qual podemos
identificar uma importante participação negra. Tão significativa quanto a
própria presença de negros na sociedade brasileira da época”.1
Os nordestinos deixavam a caatinga seca e chegavam à floresta verde e
abundante de chuva. Chegavam, sem saber, ao “inferno verde”.
Numa viagem, sem retorno,
contemplaram uma nova natureza
que abria seus amplos braços
abraçando a todos. Uma imensa
natureza, nunca vista, apresentava-se
como paraíso sonhado por todos,
fonte de fortuna para voltar ao
saudoso Nordeste.
A vida, porém, foi mostrando
a cruel realidade de um mundo
imprevisto e nunca desejado. A
realidade foi bem pior do que a
imaginação tinha criado nas suas mentes, famintas de uma vida melhor.
O panorama descrito por algum poeta não deixa espaço para pensar que a
selva, a terra do Acre, não era a terra pensada e sonhada pelos nordestinos.
“Os rios eram as veias abertas da selva. Pelos rios corriam esperanças,
murmúrios e notícias. Os rios, imensas solidões de água encaixada entre muros
verdes, viam indiferentes como se revezavam os homens indo e voltando,
esforçando-se por dominar uma selva bravia e feroz.
A floresta deixava-os fazer e logo os via sair triunfando, uns poucos, ou
derrotados, com as forças no limite do esgotamento, ou os via descer para a
fossa, atacados pelo paludismo, o beribéri, a febre amarela ou qualquer outra
doença.
A selva não se entregava nunca. Silêncio e vazio era o que ficava de
muitos sonhos, enrolados naquelas águas de escravidão. Sonhavam sair ricos,
pura ilusão. A selva, pois, era o limite de destinos, árbitro de vida e de morte;
1
Marcos Vinícius Neves. A cor do invisível, em “Negros no Acre”. Pág. 12.
ela era a onipresente, a invisível, a que não tinha rosto nem coração, a única
sábia.
E sobre aquela selva, sobre aquela terra sempre molhada, os nordestinos,
com poeira de seca na alma, lutando contra tudo o que tinha desejado durante
décadas: água, verde, umidade. Mas, não para que a aproveitasse a terra, não
para a cana de açúcar ou para os cultivos fincar raízes, onde se criava gado. A
água que nem o chão queria, suava-a a borbotões. Água demais que não podia
abarcar, sempre envolvendo-o, possuindo-o.
Sobre aqueles rios, os seringueiros. Subindo e descendo rios que nunca
chegaram a sonhar, os famintos de terra, de água, de trabalho, os famintos de
fortuna. Uma multidão humana ocupando as beiras dos rios no final das
chuvas, regueiro de formigas saindo no começo da estação seca. Fluxo e
refluxo, micróbios dentro de um organismo gigante.
Porque da terra, nada. Do chão, nada. Somente a seringa e a fila de
árvores para construir o assoalho e as paredes das barracas. Das outras
árvores, lenha para alimentar as
caldeiras dos vapores. Sem perder
tempo em outra coisa que sua condena
silenciosa: explorar as ‘heveas’. Da
terra, só o assento para suster aquele
império de árvores dessangradas. Mas,
sem cultivar, só para os pastos dos
burros. Total, embora duzentas vezes
mais caro, tudo vinha da Europa e
América, através de Manaus ou Belém.
A selva, expectante, indiferente.
Olhando os vapores, as gaiolas, as canoas, as balsas, os batelões e barcos
mover-se por suas artérias barrentas, subir com homens e mercadorias, baixar
com as bolas de borracha, arrecadação feita de lágrimas negras. Selva partida,
aberta com faca de água, feroz persistência do aquoso, perante quem tudo se
dobra: os homens, porém, não o sabiam”.2
Com o passar dos anos, sem esperança de voltar à sua terra natal, sem
forças para tentar uma nova vida, que devia passar pela fuga do seringal,
controlado por capangas que controlavam as bocas dos rios e combinados entre
todos os seringalistas, só ficava lamentar, chorar na solidão, e matar as saudades
com alguma alegria que produzia a cachaça, único elemento que trazia prazer e
fazia esquecer os sofrimentos.
“Ao longo dos anos os “bravos” se tornavam “mansos”. Era a aceitação
da escravidão, penitência total do condenado, que não se rebelava contra seu
cruel destino. Nada adiantava atrás daquele labirinto. E a selva, além demais,
tinha criaturas, animais que podiam atacar, gênios que favoreciam ou
2
Alfonso Domingo. La estrella solitária. Editorial Algaida. Salamanca. Pág. 83-84. (Tradução do autor)
prejudicavam. Assim que, mordidos por cobras, afogados, flechados por índios,
possuídos pela malária, o beribéri ou a lepra, uns quantos se convertiam em
cruzes anônimas com uma pequena escrita que acabaria se perdendo,
misturada com a matéria vivente da selva”.3
E, sua vida continuava numa tediosa monotonia, semelhante às águas do
rio, que contemplava todos os dias passar, na frente de sua pobre barraca.
Sozinho, com uma garrafa de cachaça ao lado, repetia balbuciando a
música que várias vezes tinha ouvido cantar aos colegas, lá no terreiro do
barracão: “Eu sou seringueiro, no rio Acre, do meu Ceará vivo tão distante!
Sempre a trabalhar, pr’a arranjar um saldo que tempere o caldo, d’um escravo
errante”.
“Não se tocava o chão para descansar -o seringueiro dormia na rede,
como os indígenas- e só a morte trazia consigo o abraço da terra: lembrança do
pó e sequidão dos confins nordestinos. O campo-santo se colocava ao redor da
capela de madeira levantada em muitos seringais. Nos cemitérios descansavam
os caídos em caixões de tábuas, às vezes tirados das mesmas seringueiras secas,
paradoxo final de quem tinha sangrado centos delas.
Escravo dessas árvores, o seringueiro imaginava umas riquezas que
jamais alcançaria e se consumia em desejos impossíveis, em ter ao menos uma
mulher para desafogar. Porque não ficavam nem as alegrias do amor ou a
família, nem o sexo. A mulher não chegava a traspassar aquele universo, salvo
em contadas exceções: a do patrão, a do gerente ou a do guarda-livros. Poucas
mulheres se internavam nas selvas para partilhar a vida do escravo verde. E
quando o faziam, em ocasiões, as consequências eram nefastas. Despertavam as
invejas dos seringueiros vizinhos, os instintos sexuais reprimidos durante meses
e inclusive anos. Por uma mulher se matava. Passou muitas vezes”.4
3
4
Alfonso Domingo. La estrella solitária. Editorial Algaida. Salamanca. Pág. 142. (Tradução do autor)
Alfonso Domingo. La estrella solitária. Editorial Algaida. Salamanca. Pág. 142-143. (Tradução do autor)

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