ENRIQUE VILA-MATAS E A ESTÉTICA ÀS MARGENS

Transcrição

ENRIQUE VILA-MATAS E A ESTÉTICA ÀS MARGENS
242
ENRIQUE VILA-MATAS E A ESTÉTICA ÀS MARGENS
Gabriela Semensato Ferreira1
Fora daqui, essa é minha meta.
E. Vila-Matas, Exploradores do Abismo
Introdução
Enrique Vila-Matas é um romancista, contista e ensaísta nascido em 1948 em
Barcelona, na Espanha. Seu trabalho tem sido reconhecido através de prêmios literários como
o Ciudad de Barcelona, em 2001, Rómulo Gallegos, no mesmo ano, o Prêmio Médicis, em
2003, e o Prêmio da Real Academia Española em 2006. Neste estudo concentramo-nos em
quatro obras desse escritor: Bartleby e Companhia (2000), Mal de Montano (2002), Doutor
Pasavento (2005) e Exploradores do Abismo (2007).
O objetivo mais amplo deste trabalho é o de analisar estas obras comparativamente
para traçar algumas características marcantes da obra de Enrique Vila-Matas. Os objetivos
mais específicos são os de verificar como se constituem, nestas obras, o que pode ser
chamado de “cadernos de notas” ou diários vila-matasianos. Além disso, pretende-se
compreender o papel das notas de rodapé na narrativa deste escritor e as particularidades
desses “diários”.
Como metodologia para o desenvolvimento desse estudo, utilizou-se o método
comparativo com base em textos da crítica e da teoria desenvolvida sobre este escritor nos
últimos anos, além de textos-chave para o estudo da literatura moderna e contemporânea,
como as obras das teóricas Linda Hutcheon e Patricia Waugh. Conceitos importantes no
campo da Literatura Comparada, como o de “intertextualidade” desenvolvido pela teórica
Julia Kristeva, também foram explorados. Além destes, destacamos os conceitos de “utopia” e
“heterotopia” de Michel Foucault, que nos serviram de apoio para o desenvolvimento de uma
hipótese sobre o jogo ficcional de espelhos na obra vila-matasiana.
Assim, este artigo está dividido em cinco sessões, além da introdução, que servem
como esforço inicial de delimitar os aspectos citados acima. Inicialmente, será feita uma
1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
243
explanação acerca dos enredos, da estrutura e das personagens destas obras, para que fiquem
mais evidentes as análises que serão feitas nas considerações finais.
1 Bartleby e Companhia (2000)
Esta obra é composta por trecho introdutório e 86 notas de rodapé a um texto
“invisível, mas nem por isso inexistente” (VILA-MATAS, 2000, p. 11). Logo de início,
percebe-se uma provável intenção desta frase de efeito: causar certo “estranhamento” –
conceito trabalhado pelos formalistas russos – no leitor.
Seria importante perguntar-nos, portanto, sobre a razão deste estranhamento. A
primeira resposta óbvia talvez fosse: é impossível escrever notas a um texto invisível. Porém,
observando-se mais atentamente o enunciado, pode-se perceber que, apesar de invisível, esse
texto existe, está em algum lugar, o que Vila-Matas explica ao dizer que o texto estaria
“suspenso sobre a literatura do próximo milênio”, o que poderíamos considerar como o nosso
milênio, o século XXI.
O título, Bartleby e Companhia, sugere, além disso, a presença de “bartlebys” nessa
obra, personagens que surgem a partir de uma releitura de Bartleby, the scrivener: a story of
Wall Street (1853), conto escrito pelo escritor norte-americano Herman Melville. Com isso, a
figura melvilliana do copista adquire novas dimensões, que serão exploradas pelo escritor
espanhol através das 86 notas de rodapé, que poderiam, na verdade, ser continuadas após a
publicação do livro2.
Estes personagens, escritores ou artistas, são assim aproximados ao copista de
Melville e representam manifestações do que Vila-Matas chama de síndrome de Bartleby. A
literatura do Não, definida pelo contágio dessa síndrome, manifesta, por isso, “a doença, o
mal endêmico das letras contemporâneas, a pulsão negativa ou atração pelo nada” (VILAMATAS, 2000, p. 10). Seria ela a causa, segundo o narrador, de que certos escritores,
“mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso), nunca
cheguem a escrever” (idem, p. 10), ou então escrevam alguns livros e renunciem à escrita, ou
fiquem, mesmo que por um dia, “paralisados para sempre” (idem, p. 10).
O narrador parte, então, ao rastreamento de bartlebys, e pretende contar as histórias
destes escritores do não. Dispõe-se a passear pelo “labirinto do Não, pelas trilhas da mais
2
Nos anos posteriores à publicação de Bartleby e Companhia, Enrique Vila-Matas, em textos críticos e artigos,
diz ter recebido de leitores vários exemplos de outros bartlebys na literatura.
244
perturbadora e atraente tendência das literaturas contemporâneas” (idem, pg. 11), onde se
encontraria o único caminho para a autêntica criação literária, nas suas palavras.
Essa forma do fazer literário, isto é, a literatura que se discute dentro do próprio
espaço ficcional, é definida de forma mais detalhada por Patricia Waugh em seu ensaio
Metaficcion: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction (1984). Veremos, através
deste estudo, que esta característica não é trabalhada apenas na obra aqui brevemente
explorada, mas faz parte de uma espécie de projeto literário mais amplo que também abrange
as demais obras que serão analisadas.
Apenas para exemplificar como o narrador desenvolve estas notas de rodapé, citamos
alguns nomes conhecidos como o de Robert Walser, primeiro escritor do Não ao qual faz
referência, e que sabe: “escrever que não se pode escrever também é escrever” (idem, pg. 11).
Depois dele, surgem nomes como os de Rimbaud, Musil e de Kafka entre muitos outros, além
de um número considerável de escritores inventados por Vila-Matas.
Nesta obra, há, portanto, a ausência da escrita do texto “central” (invisível), mas que,
por estar ausente, é carrega presença significativa. Essa presença/ausência, conceitos
trabalhados por Jacques Derrida na sua teoria da desconstrução, é, em Vila-Matas, o que
constitui a criação literária/artística. A partir dela, percebe-se a “impossibilidade da criação
plena”, da criação perfeita; a paralisia criativa; a overdose literária; o incômodo gerado pelo
silêncio, pelo vazio ou pela ausência.
Por isso, no seu avesso, o silêncio pode ser criação. No caso dos escritores do Não, o
silêncio literário, artístico abre caminho para a própria literatura do Não, construída, fundada
a partir da leitura de Bartleby e Companhia, a partir de um texto invisível.
As notas de rodapé, deslocadas para o centro da página, são, metaforicamente, o que
possibilita que se perceba mais concretamente o “texto”. Afinal, elas tornam-se a própria
narrativa e são os indícios do que estará como que “suspenso na literatura do por vir” (idem,
pg. 11).
2 O Mal de Montano (2002)
As sentenças listadas abaixo são amostras que se relacionam tanto a Bartleby e
Companhia, quanto a Exploradores do Abismo, a Mal de Montano e a Doutor Pasavento. O
motivo para apresentá-las agora, juntas, é demonstrar, desde este momento, como, a partir
245
delas, estas obras podem estar entrelaçadas, conectadas a um tipo similar de experiência
literária suscitada pelo escritor. Elas podem ser encontradas em mais de uma obra, por isso
não colocaremos referências quanto à sua posição:
•
“Escrever é converter-se num estranho”
•
“Escrever é tornar-se outro”
•
"Escrever é libertar-se” (deixar de ser copista, como Bartleby)
Em O Mal de Montano tem-se contato com esta experiência de tornar-se “outro” em
vários momentos. Na primeira parte do livro, que se chama também O mal de Montano, têmse dois personagens principais: Montano, um escritor que se encontra paralisado depois de
escrever um livro sobre escritores paralisados (intertextualidade com a obra Bartleby e
Companhia) e seu pai, um crítico literário que também está “doente de literatura”, mas no
sentido oposto – ele não consegue parar de pensar em literatura. O encontro dos dois, ao invés
de ajudar a ambos, atrapalha, pois o faz tornarem-se ainda mais doentes.
Na segunda parte do livro, intitulada Dicionário do tímido amor à vida, é-nos revelado
que, na verdade, O Mal de Montano é um romance escrito por um “narrador de ampla e
conhecida trajetória” (VILA-MATAS, 2002, p. 106). Ou seja, o narrador da primeira parte do
livro diz-se não mais um crítico, mas um escritor. Parte, então, para a escrita do que ele
chama de “breve dicionário que contará apenas verdades sobre minha fragmentada vida”
(idem, p. 106), ou seja, para uma espécie de diário pessoal que, em vez de ser realmente sobre
sua “vida íntima”, vai, na maior parte do tempo, falar sobre diários de outros escritores e
demais obras.
A terceira parte do livro – a Teoria de Budapeste – dedica-se a ser um “comentário ao
fragmento” [do diário] da mãe do narrador, Rosário Girondo (idem, p. 132). Acompanhamos,
por isso, o aparecimento de mais um diário: o de Rosário Girondo, sua mãe, um dos textos
comentados pelo narrador no capítulo anterior. Na quarta parte o título mais objetivo – Diário
de um homem enganado – revela mais claramente de que tipo de texto está-se tratando. No
entanto, seu formato se distancia do formato do diário tradicional em várias instâncias, que
poderiam ser reunidas sob o conceito de metaficção.
A pergunta é: Seria essa narrativa, portanto, um “metadiário”?
Os diários, inventários, notas de rodapé, entradas de dicionários trabalhados por
Enrique Vila-Matas nas obras aqui selecionadas dizem respeito à questão do processo de
escrita e de criação, ao “tornar-se outro”, conforme já foi destacado no início desse artigo.
246
Em Mal de Montano, é possível verificar essa transformação (em outro) em várias
instâncias: através do deslocamento do narrador da posição de crítico para a posição de
escritor, através do deslocamento também das entradas de dicionário (ou das notas de rodapé,
ou mesmo do “gênero diário” para o centro do trabalho literário, isto é, retirá-lo, como
gênero, da margem dos estudos literários) e ainda através de outros deslocamentos, dentre os
quais poderíamos citar o jogo formal de linguagem que é produzido nessa narrativa. O sentido
de “verdade”, assim como o de “realidade”, tratados também das obras que detalharemos nas
próximas sessões, os de “criação”, “diário”, “dicionário”, etc., são discutidos de forma
diferente da tradicional. Ao invés de serem considerados como lugar-comum, são retirados
dessa posição estável e reposicionados no centro da discussão teórico-literária. Ganham,
assim, novos sentidos.
3 Doutor Pasavento (2005)
Este livro é dividido em quatro partes: A desaparição do sujeito, O que se dá por
desaparecido, O mito da desaparição e Escrever para ausentar-se. Como se vê, os temas da
desaparição e da ausência continuam sendo fortemente enfocados pelo escritor. Esta narrativa
se parece, uma vez mais, a uma espécie de caderno de notas, cujo formato se aproxima ao de
um diário, onde haveria registros sobre os da vida do personagem-narrador, que se intitula
escritor. Nesta obra, aparece também a voz da crítica através da voz do narrador, assim como
o que acontece no capítulo introdutório do livro de contos Exploradores do Abismo.
Já no início do enredo, o escritor disserta sobre o tema acerca do qual tratará no
simpósio ou evento literário ao qual se encaminha. O tema não poderia ser outro além do
“desaparecer”. No entanto, ele decide não ir. Prefere desaparecer, assim como o fez a
escritora Agatha Christie por 11 dias, até ser encontrada. Hospeda-se, então, em Paris, na Rue
Vaneau, a rua onde viveram André Gide e Julien Green, “dois dos maiores escritores de diário
da França”, aqueles que disputaram para ver quem escrevia o diário pessoal maior, segundo a
narrativa.
Ali, o escritor, que já é personagem narrador, segue comprando jornais e vendo como
o conto que escrevia, “continuava por si próprio” a cada dia. O escritor escreve e reescreve
esse conto à medida que as notícias se seguem. “Un día, decidí retomar mi cuento sirio y
añadirle todas esas historias de última hora, incluida la del sorprendente viaje de mi editor
247
francés a Damasco, Siria. Amplié mi relato con los nuevos acontecimientos y lo envié a un
suplemento cultural mexicano” (VILA-MATAS, 2005, p. 29). Ficção e “realidade” tornam-se
ficção no conto que o narrador escreve, porém é interessante notar como tudo no diário é,
concretamente, ficção. Ficção dentro de ficção, um jogo de espelhos.
Refletindo sobre o próprio “eu”, o narrador pergunta “¿Y yo a quién me parezco?”, e
segue respondendo “pues seguramente tengo algo de equilibrista que, en una alameda del fin
del mundo, está paseando por la línea del abismo. Y creo que me muevo como un explorador
que avanza en el vacío” (idem, p. 33). Essa é precisamente a teoria de Exploradores do
Abismo e também reflete o enredo de Doutor Pasavento, onde o personagem começa a
desenvolver ou criar novas “personalidades” (com recordações para cada uma delas) e
também a interpretá-las. É como se andasse, como uma equilibrista, na fronteira entre a
“ficção puramente ficcional” e a “ficção que pretende refletir algo da realidade” ou ainda
entre a ficção que se estabelece no romance como “verdade” e a ficção que se estabelece
como “mentira/invenção” (como as identidades que o Doutor Pasavento vai inventar ao longo
de toda a narrativa) dentro do próprio texto, pois ele repete frequentemente que acredita na
verdade e não na realidade.
Na passagem “Escribo esto, y de pronto me sorprendo a mí mismo apareciendo y
desapareciendo en el espejo de la habitación. Aparecer y desaparecer. Como si estuviera
obligado a llevar al límite ambos verbos” (idem, p. 59) é fundamental a menção do espelho. A
imagem do espelho refere-se ao desejo do personagem de levar a cabo seu projeto de
desaparecer e, ao mesmo tempo, seu desejo de que alguém note o desaparecimento. Como um
detetive, quer viver nas sombras, observar o mundo, descrevê-lo em seus cadernos, com sua
letra minúscula, imitando os microgramas de Robert Walser. Anseia, paradoxalmente, a paz
do isolamento, e rejeita a idéia de total esquecimento.
O narrador passa a querer escrever invisível para o mundo, pois essa é sua “única
possibilidade de existência interior” (idem, p. 69). Chegando a um hotel, entrega seu
passaporte ao recepcionista, a quem diz se chamar Pasavento, ou melhor, doutor Pasavento, e
que responderá àqueles que perguntem pelo doutor Pynchon.
Ele tem consciência de sua “loucura mínima” (idem, p. 80) e, de fato, ao longo do
livro fala dessa “loucura”, na qual se apresentam várias personalidades, de forma natural,
aceitando a troca de nomes que ele mesmo utiliza tanto em situações sociais quanto
intimamente. Para confrontar seu passado, aquele em que sua mulher o havia abandonado por
248
outro, em que sua filha Nora havia morrido por overdose de drogas, ele diz que passará a
pensar no doutor Pasavento como se não fosse ele mesmo, mas apenas um personagem que
houvesse inventado; seria esse doutor, “um homem novo, com a mesma consciência de ser
único que eu tinha antes, quando me chamava Andrés Pasavento, a não ser, nesse caso, pela
escassa ou nula biografia” (idem, p. 81). O doutor Pasavento, portanto, tem direito a uma
nova biografia.
Esse processo é executado pelo personagem-narrador, fazendo com que passe a existir
outro enredo, outra “estória”, dentro da “estória” à qual lemos. Ao mesmo tempo, esse
“pensar no doutor Pasavento como se não fosse ele mesmo” indica que há uma espécie de
“conflito de identidades”, que já atua nesta parte do enredo. Mais adiante, ocorrerá também
uma confluência entre recordações, misturando-se dados de uma e de outra. Ao final do livro,
o conflito parece desaparecer, mas permanecem pelo menos duas identidades, a do doutor
Ingravallo e a do doutor Pasavento existindo em paralelo.
Assim, o narrador define sua forma de explorar a realidade: avançar no vazio, assim
como os “exploradores de abismos”, em referência, provavelmente, aos personagens do livro
de contos que carrega o mesmo nome.
Ao longo dos capítulos, aparecem nomes de vários escritores, como Roberto Bolaño, a
quem a intensidade da ausência (morte) o angustia; Thomas Pynchon (ou Pinchon, uma de
suas “personalidades”), escritor norte-americano para quem existiriam conexões entre todas
as coisas; Robert Walser, escritor suíço a quem o narrador muito admira e cuja técnica de
desaparecer seria perfeita; Antonio Lobo Antunes, escritor português; Salinger, outro escritor
“invisível”, entre outros. Esses nomes não são apenas citados a modo de exemplo para definir
e explicar o que ocorre com o narrador. São, antes disso, constitutivos dessa narrativa, pois
têm um importante significado na sua constituição.
É essencial notar que, refletindo ainda sobre o fenômeno de desaparecer, o duplo
narrador/escritor diz: “a mí me parece que, en la historia de la desaparición del sujeto
moderno, la pasión por desaparecer es al mismo tiempo un intento de afirmación del yo”
(idem, p. 194). Isso pode ser aproximado ao conceito de espelho trabalhado por Foucault
como um “outro espaço” que possibilitaria a constituição do “eu”, o que será melhor tratado
nas considerações finais deste estudo.
Finalmente – continuando a descrever os momentos finais do enredo – de volta à
cidade em que se instala por um tempo, Lokunowo, o personagem é interrogado por
249
psiquiatras quanto a sua identidade. Querem saber se leva uma vida dupla, se tem várias
identidades. Ele pergunta como se faria isso. Respondem que uns o conseguem pela internet,
outros inventam um nome falso. O narrador complementa: “e outros, como eu, escrevendo”
(idem, p. 370). Retorna, aí, à teoria de que escrever é passar-se por outro, é tornar-se outro, é
desaparecer como “eu”, ou, em outras palavras, fazer o papel de copista.
4 Exploradores do Abismo (2007)
Em Exploradores do Abismo, o narrador descreve personagens que, segundo ele,
investigam o nada até que encontrem algum de seus possíveis conteúdos. Essa obra, formada
por 18 contos e um epílogo, explora, assim como assinala o título, locais obscuros da
literatura: os abismos. Esta sessão é dedicada a uma análise mais detalhada do capítulo
introdutório dessa obra, por entender que, através dela, é possível visualizar as principais
características do livro.
Nos contos, é desenvolvido um tipo de reflexão sobre o fazer literário, que envolve as
conseqüências desse trabalho na vida do escritor como produtor de literatura e como leitor.
Reflexão que se destaca na escrita vila-matasiana, já que marcada por um estilo que envolve,
já no início do primeiro conto, a tentativa de explicar ou detalhar alguns dos objetivos algo
“transcendentais” de seus personagens e mesmo da escrita do livro em questão.
A obra, assim como Mal de Montano, Doctor Pasavento, entre outras, mescla
características “tradicionais” do desenvolvimento do texto ficcional, como criação de
personagens, com histórias, particularidades, memórias, além da criação de um enredo, tempo
e espaço, mesmo que esse enredo e espaço sejam propositalmente concebidos e tratados de
forma irônica.
Pode acontecer, por exemplo, de a narração em terceira ou primeira pessoa sobre
algum evento ser interrompida para ser seguida por uma longa reflexão sobre o próprio texto
que está sendo “escrito”. Esse momento de reflexão (que faz referência ao espaço ficcional
dentro do próprio espaço ficcional) envolve a citação de um número importante de obras
diferentes, ou mesmo da dita “vida” de algum escritor ou artista, inventado ou não. Algumas
vezes, a partir do pacto literário mantido com o leitor, ocorre um jogo em que este é
“enganado”. Depois de ler toda a primeira parte de um dos contos (ou romances), o leitor
pode vir a descobrir que aquela parte era apenas um conto inserido dentro de uma estória
250
maior e escrito pelo personagem-escritor. Ou seja, a segunda parte da estória é a que conta a
história de quem escreveu o primeiro conto. A confusão proposital faz com que o leitor se
sinta dentre de um labirinto “espelhado”. Quando acha a trilha de saída do primeiro labirinto,
descobre que se encontra dentro de um labirinto maior, e assim por diante. Os textos dentro de
outros textos mostram que a diferença entre literatura e vida, para este escritor, faz parte do
jogo ficcional.
Os narradores de Exploradores do Abismo parecem desempenhar múltiplas funções.
Em certas ocasiões, esses narradores são aqueles que escreveram a história que narram, são
também personagens ou ainda críticos. Isto é, são, por vezes ou ao mesmo tempo, quem narra
a história, quem vive a história e quem critica ou avalia a história.
Neste livro, explica o narrador,
há histórias sobre as diversas formas de se relacionar com a angústia e também
histórias sobre a criatividade extrema que podem surgir às vezes quando nos
achamos a um só passo do abismo e queremos que esse passo nos mantenha vivos,
mas fora daqui 3 (VILA-MATAS, 2007, p. 12)
Ao mesmo tempo, de acordo com a visão do narrador, esses relatos poderiam ser
cubistas, pelo nome do café onde o narrador-personagem se encontra (o café Kubista), mas
também pelo “gosto por ampliar as dimensões de certos espaços e por fugir do ponto de vista
fixo clássico, e permitir que cedo ou tarde os cruze a sombra de algum ou outro explorador de
abismo” (VILA-MATAS, 2007, p. 12). Esses relatos, segundo ele, se parecem com os
quadros de Vermeer, em que os interiores pertencem a Delft, mas as janelas se abrem para o
nada, para a luz. Evidencia-se, dessa forma, a importância colocada no ponto de vista do
observador que define o desenho, a delimitação do espaço.
Os exploradores são caracterizados como otimistas. Eles indagam o que pode haver
“fora daqui”. Não são especialmente modernos, porque desdenham o fastio existencial tão em
voga. São qualificados como “gente antiquada e muito ativa que mantêm uma relação muito
desinibida e direta com o vazio” (idem, p. 13). Em alguns casos, o abismo é o centro do
conto. Em outros, o vazio chega a ser um pretexto para sua escrita.
O narrador diz-se, ainda, confiante de que não poderia ter escrito esses “relatos” se
previamente não houvesse se transformado em “alguém bem distinto”, se não houvesse se
convertido, novamente, “em outro” (idem, p. 13).
3
Tradução nossa.
251
É possível, pelos exemplos citados, extrair um – ou muitos – sentidos desta expressão
“converter-se em outro”. Em primeiro lugar, pode-se levar em conta a questão dos “múltiplos
papéis” desempenhados pelos narradores vila-matasianos (mas mais especificamente na obra
em questão), onde se pode verificar a presença de uma voz que atua como quem narra, como
quem vivencia as experiências e como quem critica a obra que escreve. Por outro lado, há o
fato de, no ato da escrita, o escritor tornar-se um tipo de copista, pelo fato de passar ao papel
idéias que lhe vêm, lhe “surgem” ou que “re-configura” a partir de suas experiências com os
livros que para ele constituem sua própria história. Sobre isso, há um trecho logo adiante:
“Tive a sensação de haver herdado a obra literária de outro e ter agora tão somente que gerir”
(idem, p.13), como aquele que deglute a obra do outro e depois cria a sua.
A sensação de não-autoria da obra deve-se ao fato do narrador ter-se convertido em
um “explorador de abismo”, em um “dissidente de si mesmo”, em “outro”, a partir do ato da
escrita. Em relação a esse outro ser no qual se transforma, diz ter princípios diferentes dos
dele, como o da geometria e o fato de ter voltado a escrever contos. O escritor que ele era,
portanto, é diferente daquele em que se tornou: não mais escreve romances, mas passa aos
contos; não tem os mesmos princípios geométricos, o mesmo ponto de vista, mas outro. A
obra literária, devido a esses fatores, se torna o veículo através do qual ocorre a
transformação.
Mais que se precipitarem ao abismo, seus exploradores se detêm e, antes de atirar-se,
se dedicam a dissecar o vazio, a estudá-lo.
Os contos que seguem o capítulo introdutório mantêm a temática descrita pelo
narrador. Não iremos detalhar ainda mais cada um deles, esperando que as características
trazidas até então tenham sido úteis para a compreensão da análise que vem a seguir.
5 Considerações finais
A partir do que foi acima descrito, consideramos, pois, que as notas de rodapé, os
cadernos e notas, os diários (como gênero considerado anteriormente “menor”), são
deslocados da margem, da página ou da literatura, para o centro. Ao mesmo tempo, em
Bartleby e Companhia, ocorre uma inversão na escrita de uma espécie de “história da
literatura” às avessas: as notas do narrador falam sobre escritores/criadores que deixaram de
252
escrever ou nunca escreveram, isto é, seus nomes marcaram a história não pelas obras que
produziram, mas pelas obras que deixaram de produzir.
Em Mal de Montano, assim como neste livro, o narrador diz gostar de escrever sobre
escritores e livros. Os livros que já publicou tornam-se, no entanto, escrita pessoal e privada –
os diários. Estes diários, no entanto, ao invés de tratarem apenas de suas memórias e
experiências pessoas, tratam especialmente das histórias de outros. Surgem, portanto, vozes
de outros dentro de sua estória e na história de sua vida.
Do mesmo modo, em Doutor Pasavento, o escritor Pasavento passa por diversas
transformações, tanto de nome (Pasavento, doutor Pasavento, Pynchon, Ingravallo), como de
passado, de dados biográficos. Exatamente por isso nesse livro surgem também outras vozes,
tanto a dos escritores, como a do “crítico”, como ainda a dos “doutores em psiquiatria”.
Muito apropriadamente, portanto, o diário do escritor em Mal de Montato trata de
tantos outros nomes, como os de André Gide, Julien Green, Karl Marx, Emmanuel Bove. É
através deste diário que ele pretende “narrar a história da ambígua desaparição do sujeito em
nossa civilização” e a contar “através de uns fragmentos da história de minha vida. (…)”
(VILA-MATAS, 2005, p. 58). Esta vida totalmente ficcional faz com que o seu relato se
transforme não em realista, mas talvez em surrealista. Isso nos leva, novamente, às várias
referências que Vila-Matas faz em seus livros aos movimentos modernistas de arte e ao
quanto eles significam ainda na chamada pós-modernidade.
Mas é em Doutor Pasavento que se encontra uma das mais claras definições da
personalidade desses escritores de diários e notas tão similares nos livros aqui analisados.
Essa definição vem do próprio personagem-narrador: “A quem me pareço? Pois seguramente
tenho algo de equilibrista que, em uma alameda do fim do mundo, está passeando pela linha
do abismo. E creio que me movo como um explorador que avança no vazio” (VILA-MATAS,
2005, p. 33).
Parece ser pela inserção dessas várias vozes ou personalidades em seus textos que o
narrador se descreve como um “equilibrista”, na fronteira entre verdade e realidade. A
“verdade”, entretanto, é sempre a escolhida, o que faz que possa ser traçado um paralelo entre
verdade e ficção, como se entre elas houvesse uma estreita ligação, de similaridade, não de
diferença.
Por todas essas características o narrador se encontra como que de frente a um
espelho, brincando de desaparecer e aparecer. Vendo, assim, sua imagem refletida,
253
posicionada lá longe em um espaço não-localizável ou utópico, segundo os termos de
Foucault (1984). É como o narrador de Mal de Montano descrevesse essa experiência através
e devido à escrita: “Escrevo isso e surpreendo a mim mesmo aparecendo e desaparecendo no
espelho da habitação. Aparecer e desaparecer. Como se estivesse obrigado a levar ao limite
ambos os verbos.” (VILA-MATAS, 2005, p. 59).
Existiria, nessa obra, não só um diário, mas vários. O diário, assim como a imagem no
espelho, não-localizável ou irreal, aquele em que escreve o personagem-escritor, e o diário
localizável, aquele que, como leitores, podemos tocar. A esses espaços irreais Foucault chama
utopias, e aos localizáveis heterotopias. Entre esses espaços haveria uma experiência mista,
mediana, o espelho. Através dele, na heterotopia, pode ocorrer a descoberta, do ponto de vista
do observador, de estar ausente pela imagem que se vê lá longe, dentro do espelho. É a partir
disso que o olhar daquele que narra se volta para ele mesmo e ele se constitui. Sabe-se
literário.
Conclui-se, por isso, que, nos cadernos ou diários de notas de Enrique Vila-Matas há
um jogo do deslocamento entre margem e centro. Podem ser considerados textos à margem da
página, como as notas de rodapé, mas ganham o lugar do texto principal. Tratam, além disso,
de vozes às margem do discurso, como os criadores sem criação, dão lugar às vozes que
preferiram calar, analisam e teorizam acerca do espaço onde se encontram, o espaço literário,
de criação, de ficção e, por essas razões, não fazem parte do da classificação do gênero “diário
tradicional”. São antes diários metaficcionais, diários sobre outros diários, diários críticos,
mas também pessoais, na medida em que retratam a relevância da história da literatura, das
obras de outros escritores, diluídos na tessitura de uma história pessoal.
Referências
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Ditos e escritos, 1984.
HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. Cambridge:
University Printing House, 1988.
SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e Companhia. , Barcelona: Anagrama,2000.
______, Enrique. Mal de Montano. Barcelona: Anagrama,2002.
______, Enrique. Mal de Montano. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
254
______, Enrique. Doutor Pasavento. Barcelona, Anagrama: 2005
______, Enrique. Exploradores del Abismo. Barcelona: Anagrama, 2007.
WAUGH, Patrícia. Metaficcion: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction. Londres:
Routledge, 1984.

Documentos relacionados

CRIMES DE AUTOR – A MORTE METAFORIZADA DOS SUJEITOS

CRIMES DE AUTOR – A MORTE METAFORIZADA DOS SUJEITOS casualmente, ao falar da criação, tornam seus personagens escritores expostos à morte. São eles: As horas (de Stephen Daldry, 2002) e Mais estranho que a ficção (de Marc Forster, 2006). Em todos os...

Leia mais

A literatura como doença na obra O mal de Montano, de Enrique

A literatura como doença na obra O mal de Montano, de Enrique literatura”, como ele próprio diz: “(...)vim a Nantes para espairecer um pouco e evitar que, ao menos durante alguns dias, a literatura continuasse me asfixiando. Vim a Nantes para ...

Leia mais