Newsletter Junho 2011 - SPT - Sociedade Portuguesa de

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Newsletter Junho 2011 - SPT - Sociedade Portuguesa de
Decorrido mais um congresso LusoBrasileiro, é tempo de fazer o seu
balanço. E de facto o balanço final
que faço é muito positivo. Penso que
foi um congresso bem conseguido,
muito participado, com um programa
equilibrado e apelativo. A ausência
da barreira da língua, já que
comungamos do mesmo idioma,
confere outra vitalidade às discussões dos vários temas
do congresso. Também em número de participantes, foi
muito gratificante. Ultrapassámos as 300 inscrições, o
que para um congresso de Transplantação em Portugal
é um número muito bom. Houve uma grande adesão
ao evento e o eco que tenho recebido dos participantes,
é que foi muito interessante.
Um dos propósitos deste congresso, tal como afirmei
no primeiro boletim de divulgação do congresso, era
tratar dos problemas com os quais diariamente se deparam
os profissionais na sua actividade relacionada com a
transplantação. Tivemos também temas de futuro, que
esperamos seja próximo, como a utilização de células
estaminais; ou a transplantação com doador cruzado.
Contudo, a maioria dos temas foram sobre questões
muito práticas - clínicas, ético-legais, psico-sociais - às
quais temos de dar resposta em cada dia, mas que
podem ter abordagens distintas, e que foram dissecadas
neste congresso.
É óbvio prever que do intercâmbio entre estes dois
países, com a sua relevância internacional na área da
transplantação, se podem obter resultados muito positivos.
Estamos a falar do Brasil, que com a sua dimensão é
um dos líderes mundiais em número absoluto de
transplantes; e de Portugal, que apesar de ser um país
muito mais pequeno, se tem posicionado nos lugares de
topo mundial na transplantação de dador cadáver. No
que respeita à transplantação renal de cadáver, Portugal
atingiu mesmo o 1º lugar do ranking. A transplantação
com dador vivo é um exemplo de sucesso no Brasil a
que Portugal está atento. Os colegas do Brasil exaltaram
a nossa capacidade de captação e colheita de órgãos
de cadáver, que ultrapassou os 30 por milhão de habitante
e esperam melhorar esse índice lá. Estamos a falar de
2 países com provas dadas, com muito bons resultados,
e que podem aprender mutuamente com o que faz de
melhor cada um deles.
O número e a qualidade dos trabalhos apresentados
em comunicações orais e em posters (mais de 200),
também demonstra a vitalidade das nossas sociedades
científicas, a SPT e a ABTO. E demonstram o entusiasmo
dos profissionais na divulgação dos seus resultados e na
discussão das questões que querem trazer à reflexão.
Para finalizar, mas não menos importante, há que referir
os momentos de convívio que também pudemos partilhar.
E que foram também, muitas vezes, uma extensão temporal
para ampliar a discussão de alguns temas, que o tempo
limitado das sessões do congresso não permita que pudesse
continuar dentro de salas. Foram momentos de diversão
e de confraternização e sobretudo contribuíram para
estreitar os fortes laços que nos unem e nos enriquecem.
Foi um prazer acolher-vos nesta bela cidade do Porto.
Agradeço a todos o seu entusiasmo e o seu contributo,
que foram determinantes para o sucesso deste IX Congresso
Luso-Brasileiro de Transplantação, de 2010. NEWSSPT
O número crescente de doentes
transplantados renais, põe às
unidades de transplantação
problemas graves de seguimento
a médio e longo prazo.
Cada doente transplantado
obriga em média a 20/30
consultas no primeiro ano
dependendo de vários factores
(função renal post-tr, idade, infecções, etc.).O seguimento
a médio prazo é igualmente variável na frequência das
consultas em função também do histórico do transplante.
O que hoje todos sabemos é que a esmagadora maioria
dos doentes tem DRC e na classificação actual se situam
maioritariamente nos graus II/III ou seja com compromisso
significativo da função renal.
A etiologia da DRC depende de factores relativos ao dador,
ao receptor, bem como á medicação e claro á imunologia
do transplante. Muitas destas causas são dificilmente
controláveis, outras porem, podem ser atenuadas dependendo
do controle atempado, do diagnóstico e terapêutica.
Bertoni, em estudo observacional verificou que após o
transplante o grau de anemia, hipertensão arterial,
dislipidemia, doença óssea, estão na sua grande maioria
fora de controlo. O risco cardiovascular é elevado
continuando a ser a principal causa de morte nestes doentes.
Vários estudos confirmam esta realidade. Assim nos
doentes transplantados vários cuidados devem ser
tomados: tratamento da anemia, apoio nutricional,
educação do doente (incumprimento da medicação….),
vigilância da função renal/proteinuria, controle da HTA
e dislipidemia, modulação da imunossupressão, vigilância
da doença óssea e diabetes….e ainda prevenção das
infecções e screening de neoplasias.
Será isto possível nas consultas de pot-transplante em
que o número crescente de doentes aumenta
exponencialmente? A reposta caberá a cada unidade mas
creio que dificilmente unidades com actividade acima da
média, conseguirão dar resposta a menos que mudem
radicalmente a sua organização interna ou criem protocolos
com serviços/unidades de nefrologia exteriores ao hospital
onde se efectua o transplante.
Se hoje faz parte do curriculum de nefrologia estágio
obrigatório na área de transplante, faz pouco sentido que
os nefrologistas não assegurem o seguimento destes doentes.
A SPT já realizou um curso de transplante renal dirigido
aos colegas em formação e nefrologistas que estivessem em
unidades periféricas e está em vias de realizar um novo curso.
Parecem-me da maior importância estes cursos. Na
verdade, hoje, que se põe o assento tónico na prevenção
da DRC não faz qualquer sentido que os doentes
transplantados estejam “marginalizados” desta
preocupação. Acresce ainda que para alem da DRC á
que somar a maior incidência de tumores, infecções, etc.
Se se conseguir atrasar a evolução da DRC, que ganhos
vamos obter na sobre vida do doente e do enxerto?
Não havendo estudos para dar resposta a esta pergunta
não me parece ilógico que um bom seguimento se traduza
numa mais-valia também nos doentes transplantados.
Hoje em Portugal cerca de 50% dos doentes em tratamento
da sua IRT são doentes transplantados a perda precoce
do enxerto é a todos os títulos difícil de aceitar. Assim
sendo devemos olhar para estes doentes como portadores
de DRC e prevenir a sua evolução para a IRT.
O transplante com órgão de
dador vivo está em franca
expansão. Este implemento
deve-se em parte à escassez de
órgãos para acorrer às
necessidades dos doentes. Do
ponto de vista dos resultados o
transplante com órgãos de dador
vivo está bem justificado, sendo
o principal factor limitante os riscos que o dador assume.
Deve-se assegurar que o processo de doação imponha o
menor stress psicológico e económico sobre estes seres
humanos altruístas, passíveis da nossa admiração.
Por vezes o transplante de dador vivo é evitado devido a
uma incompatibilidade do grupo sanguíneo (ABOi) ou devido
a uma reacção cruzada positiva (CM+). Além disso a
probabilidade de acesso ao transplante cadavérico de
candidatos do grupo O era em 1997 2,7 e 2,3 vezes inferiores
aos candidatos do grupo A e B respectivamente (1).Existem
algumas possibilidades de tentar ultrapassar estes problemas
(incompatibilidade ou acumulação dos doentes do grupo O
na lista de espera) usando técnicas de remoção de anticorpos
e terapêuticas imunossupressoras geralmente mais agressivas
e/ou pelo transplante renal cruzado.
O transplante renal cruzado pressupõe a troca de rins entre
dois ou mais pares incompatíveis. Se considerássemos apenas
a troca entre pares ABOi (par 1 na fig.1), o receptor do grupo
O, num sistema convencional de troca, não conseguiria dador
em virtude do dador do grupo O do outro par (par 2) ser
dador universal (podendo portanto dar sempre ao seu próprio
receptor). Uma das formas de ultrapassar esta dificuldade é
introduzir pares com CM+. Mesmo assim a percentagem de
dadores O nos conjuntos (pool) assim formados ( 25%) tende
a ser significativamente inferior à percentagem de dadores O
dum programa de dadores compatíveis (60%) e a percentagem
de receptores O maior (2).
Bibliografia
Kukla A, et al-NDT 2007;10:1093
Akbari A, et al - Nephron Clinical Pract. - 2007;107:c7-13
Bertoni E, et al - Transp.Proceedings, 2006;38:1024-1025
Matas A, et al - Kid.Int. 2002;62:704-708
Pascual - NEJM-2002; 346:580-590 NEWSSPT
Fig. 1
A introdução de pares com CM+ aumenta contudo a
complexidade do procedimento. O receptor apresenta
muitas vezes anticorpos contra múltiplas especificidades
HLA, o que pode tornar a possibilidade de encontrar um
dador de outro par bastante reduzida. Para aumentar a
possibilidade de identificar (match) pares compatíveis,
aumentando assim o nº de transplantes, desenvolveramse programas em que se procura identificar o par
compatível em conjuntos de múltiplos pares (pool).
Quanto maior for o pool, maior será o nº de transplantes
possíveis no momento (match run) de procurar os pares
compatíveis para a troca (3). Se encontrar os pares
compatíveis manualmente é fácil quando se usam apenas
trocas de 2 vias com pares ABOi, a tarefa torna-se
praticamente impossível, muito fastidiosa e sujeita a erros
quando se usam múltiplos pares e se introduzem os pares
CM+. Por este motivo, para tornar os programas de
transplante renal cruzado sustentáveis, desenvolveramse programas de computador, baseados na teoria dos
algoritmos de Edmonds, para identificar os pares
compatíveis no pool (3). Em Portugal usando um programa
adaptado por Bruno Lima do Centro de
Histocompatibilidade da Zona Norte (CHZN), simulamos
a identificação de pares num pool de 13 pares
incompatíveis (fig. 2), identificados na base de dados do
CHZN. Fomos capazes de identificar 7 transplantes
possíveis (4).
logísticos e com ganho marginal de nº de transplantes,
em pools com grande nº de pares. A regularidade com
que se faz a alocação dos rins (mathc run) geralmente
também não é uniforme nos diferentes programas activos,
sendo a mais comum a trimestral (5).
Por vezes durante a selecção dos pares para cruzamento
pode-se encontrar mais que um par compatível.
Fig. 3
No exemplo ilustrado na figura 3 que par excluir? 0
P2,2 procedendo-se aos transplantes P1,3 e P3,1 ou o
par P3,3 procedendo-se aos transplantes P1,2 e P2,1 ?
O princípio geral deverá ser sempre transplantar o receptor
mais difícil, tendo em conta o seu PRA e o nº de dadores
ABO compatíveis, com especificidades HLA proibidas
para esse receptor (aqueles antigénios HLA dos dadores
contra os quais o receptor tem anticorpos). (6)
Pensemos no seguinte exemplo: o pool tem 20 dadores
dos quais 12 do grupo O.
O receptor 2 também do grupo O (representado na
figura 3) tem um PRA de 60% e tem anticorpos anti DR6
e anti B22. Cinco dos 12 dadores do grupo O têm os
antigenios DR6, B22 ou ambos. Logo 7 dos dadores
serão compatíveis. A probabilidade de compatibilidade
Fig.2: Modelo da teoria dos grafos de nodos dador/receptor
incompatíveis, mostrando o nº máximo (7) de transplantes possíveis: (PC) será : (1-PRA)*(% de dadores ABO compatíveis no
pool sem especificidades proibidas)* 100 = (1P1,3 ; P3,1 ; P4,12 ; P12,4 ; P10,13 ; P13,8 ; P8,10.
0,6)*(7/12)*100=23,3%.
O receptor 3 do grupo O tem um PRA de 5% e não
Assim, para existir um programa sustentável são
necessários geralmente programas multicêntricos, tem nenhuma especificidade proibida. (PC)= (10,05)*(12/12)*100=95%.
supervisionados por comissões independentes inseridas
No exemplo dado exclui-se o P3,3 (aquele cujo receptor
nas autoridades de transplantação locais, com o intuito
de permitir a supervisão clínica, logística e ética dos tem maior probabilidade de compatibilidade, 95%) e
programas. Em Portugal o Programa Nacional de Doação procede-se aos transplantes P1,2 e P2,1 . Outros critérios
Renal Cruzada (PNDRC) encontra-se regulado por lei
de selecção existem com diferentes graus de prioridade
(portaria nº 808/2010 de 23 de Agosto). Aderiram à em caso do primeiro não conseguir fazer a selecção .
rede nacional de hospitais do PNDRC 5 centros de
Usam-se diferenças se idade entre dador e receptor ou
transplante: Hospital de São João, Hospital de Santo diferença de idade entre dadores (programa português),
António/Centro Hospitalar do Porto, Hospitais da
tempo de diálise e ainda preferência a cadeias curtas
Universidade de Coimbra, Hospital Curry Cabral e
versus longas. A diferença de idades entre dador-receptor
Hospital de Santa Cruz.
parte do pressuposto que um dador 20 a 30 anos mais
idoso implicaria um pior outcome do receptor (sobrevivência
De notar que no exemplo dado no grafo da figura 2
permitiram-se trocas de 2 e 3 vias. Outras combinações do enxerto e do doente) e a diferença de idades entre
são possíveis (trocas de 4 e mais vias) tornando o dadores tenta que o receptor do par que intervirá sempre
procedimento extremamente complexo em termos
no transplante (P1,1) receba um rim dum dador de idade
semelhante ao seu. Recentemente a análise de 2364
transplantes de dador vivo na Austrália demonstrou não
haver diferenças significativas entre os 882 receptores que
receberam rins de dadores viovs com uma diferença de
idade superior a 20 anos e os restantes (7).
Após o 1º match run começam-se a acumular no pool
doentes do grupo O e hipersensibilizados, díficeis de
transplantar nos match run seguintes. Segundo a
experiência do Programa Holandês a grande maioria
dos pares de sucesso foram identificados em 3 match
run. Depois deste nº de match run a probabilidade de
encontrar um par compatível torna-se diminuta e devemse procurar outras alternativas, por exemplo, terapêuticas
de dessensibilização associadas ou não ao programa de
transplante cruzado. (8).
Conhecidos os pares a transplantar após o match run,
os doentes são retirados da lista activa de transplante de
cadáver e as cirurgias são programadas para iniciarem
à mesma hora. Coloca-se a questão se o dador deve
viajar para o hospital do receptor, separando-se o par
relacionado (familiar, esposa…) e aumentando a
possibilidade de quebra de confidencialidade exigido
pela maioria dos programas ou se deve ser o rim a ser
enviado, aumentando assim o tempo de isquemia. Paul
Terasaki em dados recolhidos na UNOS não encontrou
diferenças significativas na sobrevivência dos enxertos
comparando as duas opções (9).
Se por qualquer motivo excepcional um dos rins não
foi colhido (deterioração aguda do estado do dador
durante a indução anestésica), ou foi colhido e não pode
ser implantado, deve o receptor não transplantado entrar
em lista de espera super-urgente a nível nacional
gratificando assim a generosidade do seu par, que
contribuiu para o transplante de outro doente.
O caso do rim perdido no período pós-operatório
imediato levanta também dificuldades. Assumindo a
possibilidade de problemas técnicos terem ocorrido há
quem defenda que o doente deve ser colocado em lista
prioritária nacional logo que possível e outros que
defendem que um comité de peritos nomeado pela
autoridade de transplantação deve decidir caso a caso.
Concluindo, os Programas de Transplante Renal Cruzado
promovem uma distribuição equitativa de benefícios,
sendo a sua utilidade inquestionável uma vez que permitem
a saída de dois ou mais doentes da lista de espera para
transplante de cadáver, melhorando assim o acesso de
outros doentes a esta lista. Contudo para serem programas
sustentáveis colocam problemas organizacionais, logísticos
e éticos importantes.
Organizacionais e logísticos, porque exigem
colaboração entre médicos, coordenadores de transplante,
imunologistas e autoridades de transplante para
promoverem o estudo e selecção, procederem às
respectivas cirurgias e seguimento dos pares. Também
importante para a sustentabilidade do programa é a
colaboração de informáticos para a implementação dos
algoritmos adaptados às realidades locais.
Éticos, porque a manutenção da confidencialidade
para evitar a possibilidade de coacção, e as questões
levantadas pela acumulação de doentes do grupo O no
pool com o inerente risco de seleccionar pares compatíveis,
exige que o sistema seja centralizado e monitorizado
pela autoridade de transplante (10).
Correspondência: [email protected]
1.
Dados fornecidos pelo Dr. Bruno Lima, Centro de
Histocompatibilidade da Zona Norte, Porto Portugal
2. S E gentry,RA montgomery et al. Expanding kidney paired
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3. Inessa Kaplan_, Julie A. Houp, Mary S. Leffell, John M.
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Journal of Transplantation 2005; 5: 2306-2308
4. Bruno A. Lima, Leonídio Dias, António C. Henriques,
Helena Alves. The Portuguese match algorithm in the
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5. Paolo Ferrari, Marry de Klerk. Jnephrol www.sinitaly.org/jnonline - www.jnephrol.com
6. K.M. Keizer, M. de Klerk, B.J.J.M. Haase-Kromwijk, and
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8. Marry de Klerk, Willem Wiemar et al. The optimal chain
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10. Consensus and recommendations on Legal, Ethical,
Registration and Living donr Protection Practices. EULID
PROJECT. Accepted for publication in Transplantation. Matí
Manyalich, Assumpta Ricart, Christian Hiesse, Pal-Dag Line,
Andy Maxwell, Ingela Fehrman-Ekholn, Leonídio Dias.
NEWSSPT
As leis de “consentimento
presumido”, aplicadas à colheita de
órgãos e tecidos de cadáveres para
fins terapêuticos, continuam a ser
objecto de controvérsia e dúvida. Os
opositores a esse tipo de fundamento
legal afirmam, seguramente com
alguma razoabilidade, que só há
verdadeiramente consentimento
quando ele é afirmado de modo
explícito, sendo assim abusivo
pressupor haver consentimento quando ele não é, ou não
foi, claramente solicitado a quem pode dizer sim ou não.
Nesta perspectiva, a expressão “consentimento presumido”
é uma contradictio in terminis, uma contradição nos termos,
um paradoxo.
I - O estatuto do cadáver
Na tradição cultural e legal da maioria das civilizações,
o cadáver têm um estatuto particular: não sendo já uma
pessoa não é apenas uma coisa, não tendo já os direitos
e a dignidade de um indivíduo humano, não é um mero
objecto material. O cadáver de um indivíduo mantém
funções simbólicas, geralmente respeitadas, que levam
a que não possa ser livremente manipulado ou
considerado posse de alguém. Cultural e legalmente os
cadáveres merecem respeito.
III - Os indivíduos, os familiares e o destino
dos restos mortais.
Actualmente, as normas legais referentes à disponibilidade
do próprio corpo limitam a execução daquilo que o indivíduo
pode ter expresso que desejaria que fosse feito aos seus restos
mortais: se pode ser aceite que uma pessoa formule indicações
sobre a inumação do seu corpo, já não terá qualquer
consequência prática se, nos nossos dias, alguém, repetindo
o que D. Pedro IV fez, exprimir no testamento que deseja que
o seu coração seja sepultado em uma cidade e o resto do
seu corpo em outra…
Assim, os direitos de uma pessoa quanto ao destino
dos seus despojos não são ilimitados, são legalmente
muito restringidos.
De modo análogo, também os familiares não podem,
por exemplo, ir além de limites fixados quanto aos tempos,
locais ou modos de sepultura do seu parente.
Na lei portuguesa, uma pessoa pode opor-se a que
órgãos ou tecidos venham a ser retirados do seu corpo
post-mortem.
IV - As leis, os seus fundamentos e os conflitos
de interesses
Os referidos opositores às leis de consentimento
presumido invocam, para além da mencionada
contradição nos termos, que é a família que cabe decidir
sobre a possibilidade de retirar tecidos ou órgãos do
corpo falecido e, assim, invocam falta de respeito pelos
familiares quando tal não é legalmente exigido. Ora o
conceder à família esse direito de permitir ou proibir a
II - As leis sobre cadáveres
manipulação do cadáver tem duas consequências, poucas
Os motivos morais aludidos, conjugados com necessidades
vezes enunciadas nos inúmeros debates sobre leis “optingin” versus “opting-out”:
de higiene e saúde pública, levaram a que o Direito
estabelecesse normas reguladoras do que é obrigatório,
– Por um lado, diminui o respeito devido aos restos
mortais de um indivíduo, coisificando-os, tratando-os
permitido ou proibido fazer aos restos mortais de um
indivíduo. É obrigatório sepultar ou cremar os cadáveres como se fossem uma herança;
– Por outro lado, em casos de conflitos de interesse
durante um determinado prazo após a morte, é permitido
entre
os sentimentos dos familiares e a necessidade dos
que a família organize, dentro de regras fixadas, cerimónias
órgãos
para salvar vidas, essa concessão de direitos à
fúnebres, é proibido ultrajar ou mutilar os corpos falecidos.
família permite que, em nome do respeito por esses
Reconhecida, pelo menos desde o Renascimento, a
sentimentos, uma pessoa, cuja única possibilidade de
utilidade do estudo dos corpos inanimados para o
continuar viva seja a de ser transplantada - e transplantada
progresso científico, Portugal foi dos primeiros países a com um órgão de um certo dador em determinado
considerar, em textos legais, que o interesse colectivo
momento - afinal … morra. Ou seja, entre um direito
pode, em circunstâncias determinadas, prevalecer e subjectivo (derivado das emoções de uma família) e um
justificar a mutilação de cadáveres: desde o século XVI interesse objectivo e vital (o de alguém se manter vivo),
que a lei permite o aproveitamento de cadáveres para os opositores ao consentimento presumido permitem que
a lei proteja mais o primeiro do que o segundo.
estudos de Anatomia o que , uns duzentos anos depois,
Enquanto não existirem terapêuticas alternativas à
no consulado do Marquês de Pombal, foi reforçado nos
transplantação
de órgãos para tratar insuficiências
Estatutos da Universidade que concedem ao Reitor e à
“terminais”
desses
mesmos órgãos, não parece admissível
Faculdade de Medicina “…todo o pleno poder, e
que
se
conceda,
como
continua a acontecer em muitos
autoridade, para fazerem conduzir para o Teatro Anatómico
os cadáveres necessários, e para obrigarem a consentir países usualmente considerados “civilizados”, esse direito,
irrestrito e generalizado, de alguém se poder opor a que
nisso a todas, e quaisquer pessoas, que quiserem repugnar
outra pessoa continue viva.
à entrega deles: Procedendo contra os rebeldes, como
Há que salientar que os argumentos a favor do
inimigos do bem público, e fautores das preocupações, consentimento presumido não só nada desrespeitam
que tanto dano têm causado ao progresso da medicina,
como não são meramente utilitaristas. Afinal, não se trata
e à saúde e vida dos homens”.
apenas de facilitar a obtenção de mais órgãos, trata-se
Portugal foi assim pioneiro, no Direito, a considerar o
também de não considerar os cadáveres como objectos
herdados pelas famílias.
cadáver como uma res communis.

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