Haiti e Guiné

Transcrição

Haiti e Guiné
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE
ISABELLA CAMPOS BRETZ CAVALCANTI
A INTERVENÇÃO EM CONFLITOS INTERNOS EM ASPECTOS
JURÍDICOS E POLÍTICOS:
Haiti e Guiné-Bissau
Belo Horizonte
2010
ISABELLA CAMPOS BRETZ CAVALCANTI
A INTERVENÇÃO EM CONFLITOS INTERNOS EM ASPECTOS
JURÍDICOS E POLÍTICOS:
Haiti e Guiné-Bissau
Monografia apresentada ao Centro Universitário de
Belo Horizonte como requisito parcial à obtenção
do título de bacharel em Relações Internacionais.
Orientadora: Professora Geraldine
Moreira Braga Rosas Duarte
Belo Horizonte
2010
Marcelle
A intervenção em conflitos internos em aspectos jurídicos e políticos: Haiti e
Guiné-Bissau
Isabella Campos Bretz Cavalcanti1
Geraldine Marcelle Moreira Braga Rosas Duarte2
RESUMO
Observa-se, principalmente no pós-Guerra Fria, a existência de intensos conflitos internos que
demandam auxílio internacional. A ocorrência de intervenções humanitárias, missões de paz ou
participações externas também é notada, mas os critérios para que aconteçam não são claros.
Através de um estudo de caso comparando as situações no Haiti e em Guiné-Bissau, verifica-se a
existência de similaridades, como ausência de instituições robustas, golpes de Estado e guerrascivis. Buscou-se avaliar as respectivas respostas internacionais e verificar se há negligência
internacional quanto a conflitos internos. Nota-se que não se atribui a mesma atenção a
problemas similares, havendo uma seleção para agir. As decisões concernentes à intervenção,
supostamente legais, baseadas no Direito Internacional, possuem muitas vezes fundamentos
políticos.
Palavras-chave: intervenção humanitária, Haiti, Guiné-Bissau, negligência.
Considerações Iniciais
O mundo - principalmente no período atual, em meio à tão citada globalização - se
transforma a todo momento. Novos temas surgem e outros mudam de posição na hierarquia da
agenda internacional de acordo com o contexto do momento e, em alguns casos, de acordo com a
ideologia dominante no período.
O discurso é uma ferramenta importante. É possível, através dele, introduzir um objeto,
mostrar sua importância e convencer de que ele precisa ser tratado de forma diferente. Os Estados
Unidos da América utilizaram, em 2003, de um conceito ainda frágil em meio às normas de
1
Aluna do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte
E-mail: [email protected]
2
Professora orientadora Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas
E-mail: [email protected]
1
Direito Internacional para justificar sua invasão no Iraque: a legítima defesa preventiva
(PINHEIRO, 2009). Através do discurso, o país lançou no cenário internacional um novo
conceito e criou uma nova realidade no âmbito das intervenções, sendo agora “justificável” –
para alguns, obviamente – uma guerra preventiva (sem a necessidade de que o ataque ocorra e
desencadeie a legítima defesa de forma clássica).
Observa-se na atualidade a existência de diversos conflitos pelo mundo, em diferentes
proporções. “Explosões e morte de civis em Israel”, “Tropas americanas ainda estão no Iraque”.
Manchetes como essas são constantemente noticiadas. Mas algo chama atenção: alguns conflitos
em particular recebem grande foco da mídia, enquanto outros, da mesma forma intensos, são
esquecidos. A invasão norte-americana no Iraque foi, sim, merecedora de atenção e preocupação.
Mas enquanto bombas eram lançadas em Bagdá, também sofriam com a violência os habitantes
de Serra Leoa, que há anos se encontram num contexto de tensão, sob o atrito entre a Frente
Revolucionária Unida (FRU) e o governo. Da mesma forma, há potências que afirmam quererem
difundir a democracia e promover a paz, citando países que se encontram em instabilidade
política. Mas enquanto eleições no Afeganistão são acompanhadas sob um olhar crítico, em
tempo real, por observadores internacionais, fraudes eleitorais e golpes de Estado, somados a
ações de milícias e mortes intermináveis, ocorrem em outras dezenas de países.
Destaca-se, nesse momento, a situação em Guiné-Bissau. A história política do país é
marcada por golpes e confrontos entre facções rivais do Exército. Há também o fato de que atua
como rota de tráfico de drogas da América Latina em direção à Europa. O assassinato do
Presidente João Bernardo "Nino" Vieira, no início de 2009, pode ter gerado repercussão, mas em
pouco tempo o Estado foi esquecido novamente. O antigo desacordo com o Senegal tem tomado
proporções maiores. A tensão militar tem se estabelecido, visto que forças armadas dos dois
países se encontram prontas para lutar, aguardando um estopim. Seriam as vidas dos guineenses
menos valiosas que as dos palestinos ou haitianos? Seria o aparato político do país mais
desenvolvido, de forma que seja auto-suficiente? A discrepância no sistema internacional
concernente à forma de lidar com conflitos é massiva.
A disciplina das Relações Internacionais surgiu com o objetivo de compreender o
funcionamento do sistema internacional e o comportamento dos Estados, a fim de evitar novas
guerras. Sendo assim, os conflitos são objeto de estudo crucial do campo. A interação entre os
2
Estados, a política, a formação de uma agenda de discussão internacional e a realização de
intervenções, por exemplo, estão atreladas à disciplina.
Diante das idéias apresentadas, este artigo buscará compreender se há negligência em
relação a conflitos internos, mesmo tendo estes características semelhantes às de outros que
recebem foco da mídia e de atores importantes do sistema internacional, até que haja intervenção.
Salienta-se que não será discutido o sucesso das intervenções; o objetivo é a atenção que esses
países em conflito despertam. Assim, os caminhos serão traçados através de um estudo de caso
sobre a situação no Haiti e em Guiné-Bissau, bem como suas respectivas repercussões no cenário
internacional, principalmente na ONU.
As informações são provenientes de uma pesquisa
bibliográfica sobre os conflitos internos, os casos em específico, intervenção e tomada de
decisão.
O caso do Haiti foi escolhido por se tratar de um país com graves problemas internos que
já recebeu diferentes intervenções, sendo a experiência haitiana grande fonte de informação.
Guiné-Bissau é também relevante, visto que se constitui como um foco de tensão (como será
evidenciado posteriormente) que aparentemente não recebe os holofotes, não sendo suas causas e
complicações uma bandeira balançada pelos principais Estados e OI’s. Dessa forma, é possível
comparar os dois casos e encontrar semelhanças e diferenças que comprovem e/ou expliquem
essa situação.
Primeiramente, discutir-se-á as características dos conflitos internos. Como há situações
em que esses sofrem influência externa, cabe tratar sobre intervenções. Essas últimas usualmente
geram grandes debates internacionalmente, seja por sua ocorrência ou não ocorrência. Por esse
motivo, em seguida, uma questão importante tem lugar: a tomada de decisão concernente à
intervenção. O próximo passo é um estudo sobre os casos selecionados. Por fim, uma análise que
objetiva apontar a solução para a questão proposta.
Conflitos internos e sua projeção internacional
Pode-se dizer que no pós-Guerra Fria os conflitos internos passaram de um período em
que eram exceção para outro em que constituem a regra (FILHO, 2004). A evolução do Direito
3
Humanitário, principalmente através das Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais3,
se deu em grande parte pelo aumento de conflitos internos.
O conceito de conflito interno é dado por Michael Brown como “disputas políticas de
caráter violento – potencial ou efetivamente -, cujas origens podem ser traçadas a partir de fatores
domésticos, ao invés de sistêmicos4, e no qual ocorre ou se ameaça o uso de violência armada
dentro das fronteiras de um Estado” (pelo menos em um primeiro momento) (BROWN, 1996).
Ao contrário do que a maioria dos estudiosos afirma, grande parte dos conflitos internos
eclode em decorrência das ações da elite, ou seja, de maus líderes. Além disso, muitos conflitos
internos não são causados por agravantes étnicos, mas por questões de poder, de ideologia,
política entre os grupos internos e a elite, fatores sociais e econômicos – como sistemas
econômicos discriminatórios -, questões culturais e de percepção, como grupos historicamente
problemáticos e discriminação (BROWN, 1996).
Assim como o papel das forças internas, o papel dos Estados vizinhos pode ser também
muito relevante para a geração de um conflito aparentemente interno. Estados estão mais
propícios à violência se suas estruturas estão em colapso devido ao desenvolvimento externo,
problemas internos (como, por exemplo, líderes incompetentes ou corrupção), ou uma
combinação de ambos. Mudanças demográficas, migração, urbanização e fluxos repentinos de
refugiados podem agravar problemas étnicos e mudar a balança de poder interna. Transições
políticas vindas de forma autoritária ou reformas políticas nos Estados, emergência de ideologias
nacionais – como nacionalismo étnico ou fundamentalismo religioso; extremismo em geral –
também podem trazer desestabilização. Disputas de poder entre as elites e a discriminação às
minorias também entram na lista de causas. Pode-se relacionar a esse último caso as situações em
que políticos culpam determinados grupos por problemas políticos, econômicos ou sociais que
3
As Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais são a essência do Direito Internacional Humanitário, o
conjunto de leis que rege a conduta dos conflitos armados e busca limitar seus efeitos. Eles protegem
especificamente as pessoas que não participam dos conflitos (civis, profissionais de saúde e de socorro) e os que não
mais participam das hostilidades (soldados feridos, doentes, náufragos e prisioneiros de guerra). As Convenções e
seus Protocolos apelam para que sejam tomadas medidas para evitar ou para acabar com todas as violações. Eles
contêm regras rigorosas para lidar com as chamadas "violações graves". Os responsáveis pelas violações graves
devem ser buscados, julgados ou extraditados, independente de suas nacionalidades. O Protocolo II Adicional às
Convenções de Genebra de 12 de Agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Não
Internacionais é fundamental para o tratamento dessas questões. Ele pode ser encontrado em
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dih-prot-II-conv-genebra-12-081949.html. Disponível em http://www.icrc.org/web/por/sitepor0.nsf/html/genevaconventions, acessado em 12 de
abril de 2010, às 14:25h.
4
Entretanto, Brown explica como fatores externos, principalmente regionais, podem afetar a ocorrência de conflitos
internos.
4
seus países venham a ter (BROWN, 1996). Conflitos internos podem, dessa forma, serem
causados por grupos que desejam alterar as condições internas de seus países5.
Pode-se dividir as causas dos conflitos internos em dois grandes grupos: causas internas e
externas. As causas internas se dividem, por sua vez, com relação à participação da elite (maus
líderes6) e às questões mais gerais, da massa (problemas domésticos). As externas também se
dividem com relação à participação da elite (maus vizinhos) e às questões da massa (má
vizinhança). Apesar de fatores do nível da massa serem claramente importantes para identificar
lugares em que há maior predisposição à violência - e embora países vizinhos normalmente
dizem respeito às relações exteriores uns dos outros - as decisões e ações da elite doméstica
sempre determinam se as disputas políticas vão caminhar para a guerra ou para a paz7 (BROWN,
1996).
Ao comparar conflitos internacionais e internos, Lake (2003) afirma que é importante
reconhecer as diferenças entre eles, mas que não devemos presumir que tais diferenças são
grandes ou profundas, ou que uma forma de violência é totalmente distinta da outra. A grande
maioria dos conflitos internos tem implicações fundamentais para a estabilidade regional. Os
efeitos desses conflitos nos Estados vizinhos podem ser identificados em: problemas de
refugiados, econômicos, militares, instabilidade e guerra (BROWN, 1996).
Refugiados podem causar um fardo econômico nos países receptores, além de gerar
problemas de segurança. Os perseguidores frequentemente se misturam aos refugiados e usam os
campos como postos de descanso, recuperação e reorganização. Comércio, transporte,
comunicação, manufaturas, finanças e acesso a materiais podem ser prejudicados por hostilidades
armadas. Os territórios de países vizinhos podem ser usados para entregar provisões a grupos
rebeldes. Pode ser usado também como base de operações desses grupos. Acontece também de
grupos atacarem regiões vizinhas para chamar atenção regional e internacional para a sua causa.
5
When groups choose to take up arms and challenge the status quo through violence, they are opting to act outside
the constitutional rules of politics and rejecting the current hierarchy within their states. (…)Groups can seek to
destroy hierarchy by challenging it, just as the anticipation of its destruction can cause groups to turn to self-defense
to protect themselves. Lurking underneath every hierarchical facade is the potential for internal conflict (LAKE,
2003, p.85).
6
A esse respeito, David Lake (2003, p.86) cita Stoessinger: Insights from the Interstices’: “Indeed, Stoessinger
(2001) labels Slobodan Milosevic of Serbia a ‘‘war lover’’ as well, arguing that the same desires that drove Adolf
Hitler and Saddam Hussein to attack their neighbors led Milosevic to seek Serbian supremacy through violence
against other groups within the former Yugoslavia. Although war lovers and extremists are no doubt important, they
do not themselves bring nations to war”.
7
Para melhor explicação ver The international dimensions of internal conflicts (BROWN, 1996).
5
Se o território do vizinho for usado para entrega de armas ou bases militares, operações de busca
e campanhas de interdição seguem a mesma direção. A instabilidade pode ser criada de diversas
formas, como, por exemplo, a radicalização de refugiados com relação a populações étnicas,
causando alvoroço. Choques militares podem ser causados em países vizinhos, gerando o
transbordamento do conflito. O Estado hospedeiro tentará se defender dos problemas trazidos
pelo Estado em tensão, buscando a manutenção de sua soberania (BROWN, 1996).
Os conflitos internos frequentemente geram impacto internacional. Entretanto, pode-se
observar o caminho inverso através de ações internacionais naquele país. Torna-se então
necessário abordar as intervenções humanitárias, por serem as mais comuns nesse tipo de
situação. Salienta-se, entretanto, que esse não é o único tipo de intervenção ou atuação externa
que será utilizado no decorrer da discussão.
A participação externa
A intervenção humanitária é definida, segundo J.L. Holzgrefe (2003, p.18) como:
(...)a ameaça ou uso da força para além das fronteiras do Estado por um Estado (ou
grupo de Estados), que visa prevenir ou acabar com as violações generalizadas e graves
dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos que não sejam os seus próprios
cidadãos, sem a permissão do Estado em cujo território a força é aplicada8.
Assim como muitos conceitos, o de intervenção não é unânime. Entretanto, pode-se dizer
que (...) em grande parte da literatura recente de Relações Internacionais e do Direito,
a expressão intervenção humanitária diz respeito às ações coletivas que visam proteger
os cidadãos do Estado-alvo, enquanto que as ações que têm por finalidade salvar os
nacionais do Estado que está realizando a intervenção será classificada como legítima
defesa (SPIELER, 2007, p. 163).
A Carta das Nações Unidas dispõe, no Art. 2° §7:
Nenhuma disposição da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em
assuntos que dependam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado, ou
obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente
8
Tradução livre do inglês.
6
Carta9; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas coercitivas
constantes do capítulo VII10.
O capítulo VII, intitulado “Ação em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e ato de
agressão”, através do art. 39 esclarece que:
O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura
da paz ou ato de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser
tomadas de acordo com os Artº.s 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a
segurança internacionais11.
A Carta da ONU explicita, dessa forma, que a responsabilidade por questões de
intervenção é do Conselho de Segurança da ONU12. Há, entretanto, algumas divergências quanto
à existência de outro órgão ou ente legítimo para tal13. Além da questão sobre o agente legitimado
9
Theo Farrell afirma que o conceito de soberania, codificado na Carta da ONU, possui como objetivo prevenir
intervenções nos assuntos internos dos Estados. Contudo, o conceito vem se transformando por conta das
intervenções humanitárias ao longo do tempo. Farrell conclui que a soberania não mais poderá servir de desculpa
nem de licença para que os Estados massacrem suas populações. Logo, a soberania passa ser um conceito que não
mais será respeitado pela comunidade internacional em caso de brutalidades promovidas contra a população, não
mais será uma brecha no direito humanitário internacional, ou ao menos assim deveria ser (FARRELL apud
MATOS, s/d). Já de acordo com Maryann K. Cusimano, a revolução na informação, aparentemente, fez com que o
alcance do princípio da soberania passasse a sofrer limitações causadas por graves crises de natureza humanitária.
Estabeleceu-se a idéia de que, quando em situações de crises extremas, a Comunidade Internacional adquire o direito
de intervir, para ajudar populações desprotegidas pelos Estados. Foram esses os argumentos que justificaram as
Intervenções Humanitárias na Somália e na Bósnia, por exemplo. Nesses casos, ocorreram intervenções, nos
assuntos internos desses Estados, para promover ajudas humanitárias diretamente às populações necessitadas. Essas
intervenções abriram precedentes para tornar, ainda mais, relativo o exercício da prerrogativa estatal de soberania,
em questões humanitárias. No passado, dentro das fronteiras internas de cada Estado, somente ele tinha o direito de
impor a ordem, mesmo em situações de violações de Direitos Humanos, ou da falta do atendimento de necessidades
humanas básicas, como, por exemplo, fome ocasionada por guerra ou por desastres naturais. (CUSIMANO apud
REGIS, 2006).
10
Disponível em http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/onu/textos_onu/cnu.pdf, acessado em 12 de abril de 2010, às
16:10h.
11
Disponível em http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/onu/textos_onu/cnu.pdf, acessado em 12 de abril de 2010, às
18:00h.
12
Na medida em que as operações de manutenção da paz não se enquadram estritamente no capítulo VI (medidas
que implicam consentimento) e tampouco no capítulo VII (medidas mandatórias) da Carta, chegou-se a aventar a
introdução na Carta de um novo capítulo intermediário – ou ao menos um novo artigo – que pudesse regulamentar
sua existência. O Brasil propôs, por exemplo, na XIX Assembléia Geral a inclusão de um novo capítulo da Carta, nos
seguintes termos: “... mediante a inclusão de um novo capítulo, que se chamaria ‘Operações de Manutenção da Paz’
e ‘Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão’” (FONTOURA apud PESTANA, 2004).
Dag Hammarskjöld, quando Secretário-Geral da ONU, preferiu situá-las em um imaginário “capítulo VI e meio”,
uma ponte entre a adoção de medidas voltadas para a solução pacífica de controvérsias e a aplicação de medidas
coercitivas (PESTANA, 2004).
13
Em relação ao caso Kosovo, é oportuno ressaltar que o Conselho de Segurança, em votação de 26 de maio de
1999, de nenhuma forma aceitou a legitimidade das intervenções, que não foram autorizadas por ele. Ao invés, a
maioria dos membros não permanentes invocou o fundamento moral para eximir a OTAN - responsável pela
7
a autorizar a intervenção humanitária, discute-se também sobre o agente que pode conduzi-la. Na
realidade, muitos concordam que tanto a ONU quanto um Estado, uma coalizão de Estados ou
uma organização regional podem, desde que tal poder tenha sido delegado pela ONU, conduzir
uma operação militar14 (SPIELER, 2007).
Em seu estudo sobre a projeção internacional de conflitos internos, Michael Brown faz
uma série de análises relativas a conflitos de todo o globo. Trata-se da atuação de Organizações
Internacionais em conflitos internos, bem como as possibilidades de intervenção e dificuldades
encontradas. Essas organizações possuem algumas vantagens. São amplas, possuem membros
não exclusivos, tendem a ter maior imparcialidade, legitimidade e autoridade moral do que
Estados individualmente, coligações e/ou alianças. O poder inerente das organizações é muito
pequeno, e é impossível isolá-las da influência de seus membros mais poderosos (BROWN,
1996). Esse fator deve ser considerado no que diz respeito à atenção (ou falta dela) que atribuem
aos conflitos, visto que infelizmente não são completamente autônomas e dependem, em alguma
medida, dos interesses de Estados fortes.
Ainda no âmbito da intervenção, (...) a comunidade internacional assumiria
a responsabilidade de proteger15 somente naqueles casos em que os Estados violam
deliberadamente esses direitos ou são incapazes de protegê-los [...]. O recurso militar
poderia ser empregado quando atendesse a seis critérios: causa justa, intenção correta,
último recurso, meios proporcionais, chance razoável de êxito e autoridade adequada
(ALMINO, 2002, p.76).
Essa é uma das posições a esse respeito, mas salienta-se que a intervenção é uma medida
polêmica e depende de diferentes fatores, como, por exemplo, o já citado acima: os interesses das
potências. Sob essa lente, pode-se dizer que grande parte das intervenções tem sido seletiva, pois
a comunidade internacional age de modo pendular, ambivalente, oscilando entre a proteção dos
intervenção - de ter violado dispositivo da Carta das Nações Unidas sobre o uso da força (WHEELER, 2006, p. 49
apud SPIELER, 2007).
14
Mohammed Ayoob sugere a criação de um Conselho Humanitário para trabalhar somente com as questões de
intervenções humanitárias caso não haja vontade política para que as propostas anteriores sejam tomadas. Tal
conselho deveria ser igualmente representado por todas as regiões e deveria ser de caráter rotativo, ter cerca de 50
membros, como o Conselho Econômico Social. O Secretário Geral teria a mesma função que possui no CSNU, não
haveria o poder de veto, e por fim as decisões teriam que ser aprovadas por 2/3 da maioria dos membros (AYOOB
apud MATOS: s/d).
15
A responsabilidade de proteger é uma doutrina que atribui aos Estados a responsabilidade de protegerem as suas
populações contra o genocídio e outros abusos graves dos direitos humanos e que determina que a comunidade
internacional
deve
intervir,
caso
aquela
obrigação
não
seja
respeitada.
Disponível
em
<http://aptonu.motime.com/post/739507/ban-ki-moon-prop%25C3%25B5e-estrat%25C3%25A9gia-tripartida-paraaplicar-princ%25C3%25ADpio-da-responsabilidade-de-proteger>, acessado em 4 de junho de 2010, às 15:30h.
8
direitos humanos e a satisfação dos interesses nacionais, particularmente das grandes potências
– o que, não necessariamente, são opções excludentes (VIGEVANI; LIMA; OLIVEIRA, 2008).
Dessa forma, a questão relativa às situações nas quais realizar intervenção é bastante
controversa no campo. O ex-Secretário-Geral da ONU, Javier Pérez16, ressaltou em seu último
relatório anual de 1991 que o princípio da não-intervenção não pode ser uma barreira protetora
atrás da qual os direitos humanos possam ser maciça ou sistematicamente violados com
impunidade (Doc. ONU A/46/1, 1991. apud SPIELER, 2007, p.163).
Segundo Himes, uma intervenção humanitária é justificada quando o comportamento de
um Estado resulta em graves ameaças à paz e à segurança internacionais de outros Estados e
populações, assim como quando violações graves dos direitos humanos chegam a configurar
genocídio, mesmo que seja dentro das fronteiras nacionais (HIMES apud MATOS, s/d).
De forma mais geral, José Joaquim Gomes Canotilho diz que a intervenção só se justifica
quando se estiver em presença de “situações existenciais coletivas onde não seja possível manter
o standard mínimo humanitário” (GOMES CANOTILHO apud SPIELER, 2007). No caso de
intervenções sem consentimento, essas ocorrem (...)na presença de três pré-requisitos:
1) perpetração de crimes contra a humanidade; 2) ocorrência desses crimes em Estado
falido17, e 3) existência do interesse de agir pela Comunidade Internacional. Intervenção
humanitária em Estados dotados de governo com autoridade e controle é bastante
improvável. Mesmo na evidência da prática de crimes contra a humanidade.
Certamente, isto explica as razões da não intervenção na Rússia, na Indonésia, em Israel
ou na China. Todos Estados bem estruturados. Nesses Estados, as violações de Direitos
16
O quinto secretário-geral da ONU, Javier Pérez de Cuellar, ficou no cargo de 1982 a 1987. Nascido em Lima
(Peru), em 19 de janeiro de 1920, é advogado e diplomata de carreira, atualmente aposentado. Atuou em diferentes
lugares como diplomata, também como representante nas Nações Unidas, inclusive no Conselho de Segurança. A
partir de abril de 1981, atuou como representante pessoal do secretário-geral para o Afeganistão, dando continuidade
às negociações iniciadas meses antes, pelo então secretário-geral, entre o país e o Paquistão. Em maio de 1981,
voltou a trabalhar no Ministério de Relações Exteriores do Peru, mas continuou a representar o secretário-geral em
questões relacionadas ao Afeganistão. No mesmo ano, foi nomeado secretário-geral da ONU. Pérez de Cuellar foi
professor de direito internacional na Academia Diplomática do Peru e de Relações Internacionais na Academia de
Guerra Aérea do Peru. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/conheca_secret.php#link3>, acessado em 8 de
junho de 2010, às 16:00h.
17
Cita-se Krasner a respeito dos Estados Falidos: “Os indivíduos vivem num ambiente que, se não é exatamente um
Estado de natureza hobbesiano, é algo próximo a uma operação de extorsão na qual aqueles que detém cargos
formais de Estado, ou ao menos aqueles com armas, criam inseguranças e incertezas que os permitem recolher o
sangue e os tesouros de seu próprio povo. Em alguns países, as estruturas de autoridade entraram totalmente em
colapso, ou, se elas existem formalmente, são conchas ocas. Os serviços, como de saúde e educação, são
dolorosamente inadequados. Os direitos humanos são ignorados. A infra-estrutura se deteriorou. A corrupção é
desenfreada. As fronteiras são desreguladas. A moeda nacional foi substituída por dólares ou outro meio de troca
internacionalmente reconhecido. O PIB decai. A expectativa de vida diminui. Direitos humanos básicos são
pisoteados. O crime se alastra. Grupos armados operam dentro das fronteiras do Estado, mas fora do controle do
governo. A pobreza é endêmica” (KRASNER apud MONTEIRO, 2006).
9
Humanos, cometidas contra vítimas inocentes, justificariam intervir. Soberania versus
Responsabilidade de Proteger é uma falsa dicotomia (REGIS, 2006).
Quem participa, então, de operações de paz? Os principais atores são os Estados e as
Organizações Internacionais, tendo como auxiliares muitas vezes Organizações NãoGovernamentais. Embora os militares constituam a espinha dorsal da maioria das operações de
manutenção da paz, as muitas faces de paz agora incluem administradores e economistas,
policiais e peritos legais, de-miners18 e observadores eleitorais, monitores de direitos humanos e
especialistas em assuntos civis e de governo, trabalhadores humanitários e especialistas nas
comunicações e informação pública19.
As Organizações Internacionais são sujeitos do Direito Internacional, ou seja, gozam de
personalidade jurídica plena, embora derivada dos Estados. Isso quer dizer que podem apresentar
reclamações perante tribunais internacionais, possuem capacidade de celebrar tratados e acordos
válidos no sistema internacional e gozam de privilégios e imunidades concedidos por jurisdições
nacionais (NGUYEN QUOC; DAILLIER; PELLET, 2003). Assim, OI’s têm certa autonomia
para agir no sistema internacional, sendo que a atuação em conflitos, incluindo possibilidades de
intervenção, estão sob esse escopo20.
Em seu estudo sobe conflitos internos, Michael Brown afirma que essas organizações
possuem algumas vantagens nesse âmbito, como explicitado anteriormente. Em teoria, se uma
guerra ocorre, uma organização de segurança coletiva deveria identificar o agressor, ou
agressores, e posteriormente reunir seus membros para combater a agressão. Entretanto, na
prática, agem de forma mais simples. Atuam como fórum de discussões, sendo corpo para a
criação de tratados e observância do direito internacional e uso de mecanismos para peacekeeping
e mediação. Todavia, dependem militar e economicamente dos seus Estados membros
(BROWN,1996).
A mobilização de respostas internacionais é mais difícil se as fronteiras não foram
violadas, além de ser também difícil manter a paz em fronteiras não muito claras. Além disso,
receber consentimento para atuação humanitária, peacekeeping ou outras operações de paz não é
tão fácil. Em conflitos interestatais, atravessar a fronteira é um simples e claro sinal. Ele define
que houve violação e acelera respostas internacionais. O mesmo não ocorre em conflitos internos,
18
Desativadores de minas terrestres.
Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/>, acessado em 8 de junho de 2010, às 18:45h.
20
Como é o caso das Nações Unidas.
19
10
que acontecem dentro dos Estados e nos quais os grupos hostis se misturam. Além disso, esses
conflitos normalmente envolvem forças militares não-regulares, o que pode trazer problemas
políticos. São difíceis de se distinguir da população civil, se movem rapidamente e permeiam até
mesmo limites bem definidos. Mediações e peacekeeping tendem a ser mais fáceis se os grupos
forem menos intercalados e se tiverem estruturas governamentais e economia independentes
(BROWN, 1996).
As Organizações devem atuar de acordo com sua força, quando o partidos dão
consentimento e agindo com imparcialidade. Devem também evitar operações que exijam mais
do que o uso mínimo da força. Toda operação de paz corre o risco de falhar. Missões coercitivas
normalmente aumentam esses riscos. Segundo o autor, essas últimas deveriam ser evitadas em
áreas de interesses periféricos, a menos que as necessidades humanitárias sejam fortes o
suficiente para criar uma estrutura política forte para sustentar a operação. Em áreas de conflitos
etno-nacionalistas, em que o ódio é disseminado, as organizações devem lançar campanhas
informativas para promover os direitos humanos e os direitos das minorias, refutando
reclamações incorretas ou seletivas e introduzindo perspectivas mais amplas e calmas para o
debate político. Essas campanhas são legais, baratas, fáceis de implementar e eficazes. Elas
deveriam ter um papel mais importante na prevenção, gerência e resolução de conflitos (Idem).
Brown mostra o que entende sobre a ação de organizações em conflitos internos bem
como as dificuldades encontradas, entretanto não deixa muito claro o critério para a intervenção
(ou não) das mesmas nesses conflitos. Cita o consentimento como fundamental para a ação e
mostra que os grupos hostis, a dificuldade de lidar com as forças irregulares e as questões de
fronteira, por exemplo, são barreiras para a atuação. Entretanto, não se aprofunda em outras
razões que sejam empecilho para a intervenção das organizações, bem como fatores que a
motivam. Assim, as Organizações Internacionais tem grande influência para determinar a agenda
internacional no que diz respeito a conflitos e intervenções, mas possuem suas próprias regras
para isso. Deve-se compreender, então, que há diferentes possibilidades para a tomada de decisão
nesse âmbito.
11
A tomada de decisão
Como a agenda internacional é construída? Por que se discute o que se discute? Essas são
questões comumente debatidas nas Relações Internacionais. Correntes e teóricos do campo já
manifestaram suas opiniões, atribuindo a esse processo diferentes fatores como protagonistas.
Argumentos mais realistas focam-se nos interesses de Estados (principalmente potências) e nas
questões de poder e segurança, colocando-as como “hight politics”. Explicações neoliberais se
apóiam na idéia de que, no contexto de mundo interdependente atual, a agenda não é hierárquica
com predominância da segurança (SARFATI, 2005). Grupos de interesse internos são capazes de
elevar uma temática à discussão internacional e dar-lhe foco. Neste final de século21,
a agenda internacional se apresenta muito diferente. A separação entre high politics e
low politics deixou de existir e novos itens passaram a ocupar lugar de destaque: meio
ambiente, narcotráfico, as novas bases da competitividade internacional, direitos
humanos, conflitos étnico-religiosos, entre outros. Na verdade, as questões relativas à
segurança estratégica não deixaram de ocupar posição de destaque, mas passaram a ser
vistas de modo cada vez mais integrado a esses novos temas da agenda internacional
(SATO, 2000, p.139).
Adota-se o fim da Guerra Fria como marco visto que este fato se deu como divisor de
águas na forma de se observar e realizar política internacionalmente. A corrida armamentista e
sensação de insegurança que os dois blocos viessem a ter fizeram com que o tema da segurança
fosse isoladamente e incontestavelmente colocado no topo de prioridades. Além disso, a questão
ideológica é fundamental na percepção da realidade e na orientação das ações e tomada de
decisão, tendo essa variante, inerente ao período, colaboração total à formação da agenda. O fim
da Guerra Fria teve um papel importante na mudança da agenda internacional. A
mudança não apareceu de modo tão evidente na composição dessa agenda, mas sim no
grau de importância atribuída às diversas questões. Isto é, a maioria das questões
integrantes dessa agenda já existia, no entanto, a maneira pela qual essas questões
passaram a ser percebidas é que sofreu transformações significativas com o fim da
Guerra Fria (SATO, 2000, p. 142).
Os Estados ainda são os principais atores, aqueles que possuem personalidade jurídica no
Direito Internacional e que formam soberanamente as Organizações Internacionais. A
21
Referente ao século XX (citação do ano 2000).
12
sobrevivência, ou seja, a segurança, ainda é sua preocupação essencial. Entretanto a distância que
a separa dos outros temas diminuiu22.
Mesmo dentro de uma área, de uma temática, há hierarquia de assuntos. Assim, o foco
dado a determinados conflitos em detrimento de outros é também uma questão de agenda
internacional. Há casos em que o Estado em conflito, mesmo necessitando de ajuda humanitária e
auxílio político, não recebe intervenção, enquanto outros recebem. Para Kofi Annan23, a era da
globalização trouxe novos desafios para as Nações Unidas, entre eles, o de responder
satisfatoriamente às crises de natureza humanitária que afetam muitas partes do globo.
Os meios usados pela Comunidade Internacional em situações de crise humanitária têm
variado significativamente, e dessa forma, variam também as justificativas para as
intervenções ou para as omissões. Em alguns casos houve vontade de agir, enquanto
noutros, não houve (ANNAN apud REGIS, 2006).
Freqüentemente essa certa autonomia das OI’s é questionada e essas são acusadas de
servirem aos interesses dos mais fortes. A invasão do Iraque por parte dos Estados Unidos, em
2002, sem a devida autorização da ONU, pode ser dada como um exemplo bastante ilustrativo da
fragilidade dessas Organizações. Embora a ONU não tenha servido diretamente a esse interesse
americano, não pôde fazer nada para impedir.
O processo de tomada de decisão em Organizações pode se dar de formas diferentes. A
negociação intergovernamental é uma delas. Decisões dentro de organizações são geralmente
alcançadas através de negociações entre os atores mais poderosos, representando interesses
divergentes (WILSON; DIIULIO apud RITTBERGER; ZANGL, s/d). São os Estados,
especialmente os poderosos e seus representantes, que controlam a tomada de decisão24.
22
Para uma visão mais completa sobre a agenda internacional no pós Guerra Fria, ler ‘A agenda internacional depois
da
Guerra
Fria:
novos
temas
e
novas
percepções’,
disponível
em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292000000100007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt,
acessado em 31 de março de 2010, às 13:00h.
23
Kofi Annan, sétimo secretário-geral das Nações Unidas, foi eleito para o mandato 1997-2001 e reeleito para 20022006. Nascido em Gana (África), em 1938, casado e pai de três filhos, Annan serviu à ONU por mais de 30 anos.
Trabalhou em diversos postos-chave e países. Em dezembro de 2001, Kofi Annan e as Nações Unidas receberam o
Prêmio Nobel da Paz por seus esforços para construir um mundo mais pacífico e mais bem organizado. Em
dezembro de 2006, após dez anos de mandato, Kofi Annan deixou o cargo de secretário-geral das Nações Unidas.
Assumiu seu posto o sul-coreano Ban Ki-moon. Disponível em < http://www.onu-brasil.org.br/conheca_secret.php>,
acessado em 9 de junho de 2010, às 20:44h.
24
Ao pensar sob essa ótica, pode-se dizer que numa ordem anárquico-realista, os Estados mais fortes buscam poder,
enquanto os mais fracos procuram se defender contra potenciais ameaças dos mais fortes. Deste modo, por razões
evidentes, as Intervenções Humanitárias podem ser vistas, pelos mais fracos, como ameaça a sua segurança no
sistema. Não podemos esperar Intervenções Humanitárias dos países mais fracos nos mais fortes, elas, se ocorrerem,
serão sempre dos mais fortes, ou autorizadas por estes (quando feitas por organizações internacionais), nos mais
fracos. Em outros termos, intervir é mostrar força, é exercer poder (REGIS, 2006).
13
A votação por maioria, um outro modelo de tomada de decisão, é caracterizada pelas
tentativas de formação de coalizões entre os atores mais relevantes. Já no modelo da escolha
racional, as organizações políticas calculam à luz de seus interesses os custos e benefícios de
todas as possíveis opções, antes de escolher a que melhor se aplica a tais interesses.
Constantemente esses interesses são autônomos com relação aos Estados parte, mesmo aqueles
mais fortes. Segundo o modelo de procedimentos operacionais padrão, as decisões não são
resultado de um cálculo custo-benefício de atores racionais, mas o produto de uma rotina de
procedimentos que é colocada de forma uniforme e recorrente em torno de situações de tomada
de decisão (ALLISON; ZELIKOW apud RITTBERGER; ZANGL, s/d). De acordo com o
modelo de políticas burocráticas, a existência de diferentes ramos dentro da administração de
organizações políticas pode proporcionar diferentes decisões. A decisão se dá pela negociação e
barganha entre diferentes ramos dentro do aparato burocrático da organização (RITTBERGER;
ZANGL, s/d).
Observa-se que se pode analisar a tomada de decisão através de diferentes lentes, podendo
essa ter origens diversas25. Assim também se dá no âmbito das intervenções. Os motivos para se
intervir em algum lugar ou para se negligenciar um conflito em que caiba intervenção podem ter
diferentes raízes. As intervenções humanitárias, ou melhor, a sua execução, segundo Farrell, é
definida por aspectos políticos determinados domesticamente e dentro do Conselho de
Segurança. O autor também afirma que os Estados nos quais se realizariam intervenções
humanitárias deveriam ser aqueles que promovem matanças e genocídios, e/ou Estado Falidos
(FARREL apud MATOS, s/d). Martha Finnemore, por sua vez, afirma que o interesse de
promover uma intervenção humanitária passa pelo contexto internacional que influencia o
interesse de um Estado em promovê-la (FINNEMORE apud MATOS, s/d). Ayoob entende que
as decisões referentes às intervenções humanitárias não podem ser objeto da realpolitik. Elas
configuram, sim, um desejo universal imperativo e não podem ser objeto de escolhas seletivas de
Estados (AYOOB apud MATOS, s/d, p.8).
25
Mearsheimer e Walt (2003), ao analisar a proximidade entre EUA e Israel, e o interesse do primeiro no segundo,
afirmam que este não ocorre devido a questões estratégicas ou morais. Os autores argumentam, através de diversos
exemplos, que há um grupo pró Israel interno, suficientemente forte, que consegue levar seus interesses até o Estado
em si. Apesar de não ser intervenção humanitária, evidencia-se que a atenção voltada para um outro Estado pode
surgir de demandas internas.
14
Um Estado em apuros na América Central
Os olhos foram voltados para o Haiti após o terremoto que afligiu o país em janeiro de
2010. Governos, OI’s, ONG’s, empresas, artistas, famílias; o mundo se mobilizou para ajudar o
Estado, então devastado. Mas essa não foi a primeira catástrofe que ali teve lugar, nem a primeira
intervenção externa. O país coleciona em sua história desastres naturais, pobreza, discórdia racial,
tiranias, repressão e grande instabilidade política; fatores esses que favorecem a ocorrência de
episódios violentos.
Independente em 1804, o Haiti se constituiu como uma exceção no mundo, visto que foi o
único cujo processo de independência foi conduzido pelos escravos e não pela elite. A fim de se
livrar do bloqueio comercial a ele realizado – como um tipo de punição por parte de EUA e
Europa -, que perdurou por 60 anos, o país concordou em pagar à França 150 milhões de francos
como indenização. A dívida foi posteriormente reduzida para 90 milhões, mas ainda assim foi
suficiente para desnutrir a economia local e tornar o Haiti o país mais pobre da América Latina.
Observa-se, portanto, que o início da dívida externa haitiana remonta aos tempos da
independência26.
O sistema escravista havia demonstrado a eficácia da violência e da coerção em controlar
os outros; o preconceito racial inerente ao sistema colonial sobreviveu sob a república negra. A
elite branca assumiu desproporcionalmente parte do controle político e econômico.
Historicamente faltaram instituições bem desenvolvidas, burocracias elaboradas, além da
capacidade de fazer mais do que manter o poder e extrair a riqueza de uma grande base
camponesa27. A combinação da natureza caótica e personalista da cultura política haitiana com o
subdesenvolvimento crônico ali existente foi crucial para o surgimento de um terreno fértil para a
sucessão de déspotas e ditadores28. Exemplos como Dumarsais Estimé (1946-1950) e François
Duvalier (1957-1971), que poderiam ser considerados como aqueles cuja eleição aparentemente
refletiu o desejo popular, foram na verdade desprovidos de procedimentos constitucionais. A
revolta popular que depôs o presidente Jean-Claude Duvalier (1971-1986) demonstrou a rejeição
do povo haitiano ao parasitário despotismo. Entretanto, a revolta trouxe outra lição importante e
26
De acordo com Federal Research Division, disponível em <http://lcweb2.loc.gov/frd/cs/> acessado em 30 de maio
de 2010, às 23:00h.
27
Idem.
28
De
acordo
com
Federal
Research
Division,
disponível
em
<http://lcweb2.loc.gov/cgibin/query/r?frd/cstdy:@field%28DOCID+ht0012%29>, acessado em 10 de junho de 2010, às 11:15h
15
evidenciada em toda a história do Haiti, que é o fato de a violência ser muitas vezes a via
encontrada para a mudança29.
Após a queda de Jean-Claude Duvalier – tendo entrado no poder com mandato vitalício nos anos 80, houve uma série de curtos governos: entre fevereiro de 1986 e setembro de 1988,
foram cinco. Mesmo as forças armadas do Haiti, a instituição mais poderosa do país, sofriam de
facciosismo, corrupção e um colapso geral da cadeia de comando. Uma nova Constituição foi
feita em 1987, e em 1990 foi eleito Jean-Bertrand Aristide, com 67% dos votos. Foi retirado do
poder pouco tempo depois por um golpe militar liderado pelo General Raul Cedras e uma nova
ditadura dominava o lugar. Com o auxílio dos EUA, voltou ao poder em 1994, mas a onda de
violência e miséria não teve fim. Aristide prometeu eleições livres dentro de seis meses em 2003,
mas a intensidade dos violentos protestos da população fez com que o presidente saísse do
poder30. Em 29 de fevereiro de 2004, o presidente Jean-Bertrand Aristide, 52, foi expulso
do Haiti por tropas franco-estadunidenses. A intervenção foi repudiada pela associação
dos países do Caribe [CARICOM] que desconheceu os governos títeres impostos. A
seguir, para legalizar e socializar os custos da ocupação, ela foi entregue à força
expedicionária da ONU, o que feria sua carta, já que organizada contra a vontade do
governo haitiano. George Bush propôs e Lula da Silva aceitou incontinente que o Brasil
comandasse as forças da ONU e enviasse 1.400 soldados ao Haiti. A substituição das
tropas estadunidenses era urgente devido à resistência à ocupação no Iraque e
Afeganistão (MAESTRI, 2006, p.5).
Proibiu-se o retorno de Aristide e seus seguidores foram reprimidos. A mobilização contra
a fraude nas eleições de 2006 fez com que o governo do Brasil, então líder da MINUSTAH31,
propusesse o reconhecimento imediato da vitória de René Préval32, diante do perigo de
insurreição popular. Posteriormente, em 7 de maio, Préval tomou posse. O novo presidente do
Haiti pediu que as tropas de ocupação permanecessem no país enquanto não se organizasse
polícia não corrupta. Em face da situação do país, pode-se dizer, portanto, que por prazo
indeterminado. A declaração registra o medo, por um lado, de golpismo de inspiração
29
Idem.
Ibidem.
31
Página 19 deste trabalho.
32
O favoritismo de René Préval, antigo militante, que concorreu pela independente Plataforma Esperança, registrou o
amplo rechaço à ocupação, pondo fim às veleidades eleitorais republicanas. Para garantir uma frente anti-Préval, em
um segundo turno, ou, ao menos, enfraquecer sua vitória, o Conselho Eleitoral Provisório da ONU, sob ordens dos
estadunidenses, empreendeu sucessivas postergações do pleito e, finalmente, a fraude generalizada, quando da
votação, em 7 de fevereiro de 2006. De acordo com o Global Security, disponível em
<http://www.globalsecurity.org/military/ops/victor_squared.htm>, acessado em 10 de junho de 2010, às 15:30h
30
16
republicana, caso o poder civil se confronte, sem anteparo, com as forças policial-militares, e
por outro, o temor da agitação que ganhará o país quando a população sentir-se, outra vez,
traída nas suas expectativas (Idem).
No decorrer da história haitiana, ocorreram algumas intervenções. Em 1915 os EUA
realizaram uma intervenção a fim de restabelecer a democracia. As tropas americanas ocuparam
o país por dezenove anos, e essa ocupação pouco colaborou para o desenvolvimento local
(CORRÊA, s/d).
Depois do golpe militar que tirou Aristide do poder meses após tomar posse, em 1990, a
Operação Victor Squared (setembro de 1991) envolveu a evacuação de cidadãos americanos do
Haiti. Estima-se que entre 300 e 500 haitianos foram mortos nos dias seguintes ao golpe de
setembro, e 3000 nos três anos seguintes. O golpe criou um grande êxodo de haitianos, e a
Guarda Costeira americana resgatou um total de 41.342 haitianos entre 1991 e 1992, mais do que
o número de refugiados resgatados nos 10 anos anteriores. A operações Safe Harbor e Able
Manner ocorreram nessa ocasião. Em 1993 também foram realizadas operações em águas que se
localizam entre Haiti e Cuba, na passagem de Barlavento, para interditar imigrantes haitianos33.
Essa operação prosseguiu até 1994.
Em 1994, como supracitado, os EUA novamente participaram. Apesar de a intervenção
ter trazido de volta Aristide ao poder, não foi suficiente para criar uma estrutura governamental
competente. Algumas pessoas envolvidas com Aristide, e o próprio Aristide, afirmaram que o que
se passava naquele momento no Haiti era um golpe contra o Estado haitiano, legitimado pelas
forças internacionais (CORRÊA, s/d). A chamada Operation Uphold Democracy aconteceu. Na
realidade os EUA começaram a planejar a Operation Uphold Democracy em agosto de 1994. O
grupo teve que fazer dois planos diferentes: a entrada permissiva no Haiti (Operation Uphold
Democracy), ou uma entrada forçada (Operation Restore Democracy). Os planos para a
Operação Restauração da Democracia pararam quando as negociações do ex-presidente Jimmy
Carter com o general Raul Cedras tiveram sucesso. A operação desenvolveu atividades políticas,
militares, diplomáticas e humanitárias. Em 31 de março de 1995, os Estados Unidos transferiram
a responsabilidade para funções de manutenção da paz das Nações Unidas34.
33
De
acordo
com
o
Global
Security,
disponível
em
<http://www.globalsecurity.org/military/ops/victor_squared.htm>, acessado em 18 de junho de 2010, às 19:30h.
34
De
acordo
com
o
Global
Security,
disponível
em
<http://www.globalsecurity.org/military/ops/victor_squared.htm>, acessado em 10 de junho de 2010, às 15:30h.
17
A United Nations Mission in Haiti (UNMIH) foi originalmente criada pela
Resolução do Conselho de Segurança 867 (1993), de 23 de Setembro de 1993, para
ajudar a implementar certas disposições do Acordo de Governos Island, assinado pelas
partes do Haiti, em 3 de Julho de 1993. Seu mandato foi para ajudar na modernização
das forças armadas do Haiti e que institui uma nova força policial. No entanto, devido à
não colaboração das autoridades militares haitianas o UNMIH não pôde ser totalmente
implantado naquele tempo e realizar o seu mandato35.
Em 31 de março de 1995, então, assumiu a UNMIH, com 1° de março de 1996 como
prazo para a conclusão, depois que um novo presidente tomasse posse36. Após a saída de
Aristide, instaurou-se uma operação multifuncional no Haiti. Posteriormente, de acordo com a
Resolução 1063 (1996) do Conselho de Segurança37, foi criada a UNSMIH (United Nations
Support Mission in Haiti). Seus objetivos eram: ajudar o Governo na profissionalização da
polícia; na manutenção de um ambiente seguro, propício estável para o sucesso dos esforços para
estabelecer e formar uma força policial nacional eficaz e, para coordenar as atividades do sistema
das Nações Unidas na promoção do desenvolvimento institucional; e a reconciliação nacional e
reabilitação econômica. Seu mandato expirou em julho de 199738.
A próxima intervenção no país foi a UNTMIH (United Nations Transition Mission in
Haiti). Sua duração foi de agosto a novembro de 1997. Foi estabelecida com base num relatório
de julho de 1997 pelo Secretário-Geral ao Conselho de Segurança (S/1997/564). No relatório, o
Secretário-Geral afirmou que o Haiti tinha tomado passos significativos para frente. No entanto, o
país continuou com assustadores desafios políticos e econômicos. Os trabalhos buscavam
reformas necessárias para fortalecer as instituições democráticas, gerar crescimento econômico e
criar empregos. Avançou-se também em relação à formação da nova força policial. No entanto, o
progresso foi lento e o Secretário-Geral compartilhou com a opinião de líderes políticos do Haiti
35
Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmihmandate.html>, acessado em 10 de junho
de 2010, às 15:20h.
36
As eleições presidenciais foram realizadas com sucesso em 17 de dezembro de 1995 e a transferência de poder
para o novo presidente teve lugar no dia 07 de fevereiro de 1996. Após a recepção do pedido do presidente do Haiti,
o mandato da UNMIH foi prorrogado por resolução do Conselho de Segurança 1048 (1996) para o período final, até
30 de junho de 1996. Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unmihmandate.html>,
acessado em 10 de junho de 2010, às 16:00h.
37
A
Resolução
encontra-se
em
<http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N96/162/13/PDF/N9616213.pdf?OpenElement>, acessado em 10 de junho de 2010, às
15:30h.
38
Disponível em < http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unsmih.htm>, acessado em 10 de junho de
2010, às 16:00h.
18
que, sem constante apoio da comunidade internacional, não seria possível lidar com incidentes
graves, com risco de deterioração da situação de segurança39.
Após a UNTMIH, a MIPONUH (United Nations Civilian Police Mission in Haiti) foi a
responsável pelo Haiti. Em oposição às missões de paz anteriores, esta não possuía componente
militar. Sua missão era continuar o trabalho das Nações Unidas para apoiar a polícia nacional
haitiana e contribuir para sua profissionalização. Seu mandato foi de dezembro de 1997 a março
de 200040.
Em 22 de março de 2004 ela foi nomeada Operation Secure Tomorrow. Essa força
interina multinacional, realizada de acordo com a Resolução 1529 do Conselho de Segurança,
então liderada pelos EUA, contava com 3.300 pessoas dos EUA, Chile, França e Canadá.
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH41) foi
estabelecida em 1° de junho de 2004, através de uma resolução do Conselho de Segurança42, e
sucedeu a operação anterior, com liderança americana. Tendo determinado que a situação no
Haiti continua a constituir uma ameaça para a paz internacional e a segurança na região
e agindo sob o capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança,
através da sua resolução 1542 de 30 de abril de 2004, decidiu estabelecer a Missão de
Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH) e solicitou que a autoridade
fosse transferida da Força Multinacional Provisória (MIF), autorizado pelo Conselho de
Segurança em Fevereiro de 2004, para a MINUSTAH, em 1 de Junho de 200443.
O Brasil é o país que chefia essa missão, que até os dias de hoje permanece no Haiti. Ela
foi fundamental no auxílio pós-terremoto de janeiro de 2010. O mandato original da MINUSTAH
foi estabelecido para a criação de um ambiente seguro e estável, de forma a promover o processo
político, fortalecer as instituições do governo do Haiti, assim como promover e proteger os
direitos humanos44.
39
Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/untmih.htm>, acessado em 10 de junho de
2010, às 15:25h.
40
Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/miponuh.htm>, acessado em 10 de junho de
2010, às 15:45h.
41
Do francês “Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti”.
42
A resolução pode ser lida em <http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/1542%282004%29>,
acessado em 5 de junho de 2010, às 20:00h.
43
Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/mandate.shtml>, acessado em 10 de junho
de 2010, às 16:15h.
44
Mais informações em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/minustah/mandate.shtml>, acessado em 19
de junho de 2010, às 23:15h.
19
Os caminhos da ex-colônia portuguesa
Portugal estabeleceu a “Guiné Portuguesa” em 1446, mas apenas algumas relações foram
constituídas antes de 1600. Em 1630 formou-se uma capitania geral, que deu início à
intensificação da exploração. Guineenses eram levados ao ocidente – Europa e posteriormente
Américas - para realizar trabalho escravo, atividade que predominou até o século XIX.
Posteriormente caracterizou-se como um centro comercial. Disputas com outros países como
França e Grã-Bretanha fizeram com que Portugal perdesse parte do território originalmente
ocupado45. O interesse britânico na região em muito enfraqueceu após o fim do seu comércio
escravo, em 1807. Como os franceses estabeleceram a Guiné Francesa, complicações
concernentes às fronteiras eram comuns. Duas séries de negociações (em 1886 e 1902-5)
puseram fim a essas questões, definindo em um acordo os limites fronteiriços46.
Movimentos nacionalistas surgiram por toda a África na década de 1950, e não foi
diferente em Guiné-Bissau. Em 1956, Amílcar Cabral e Raphael Barbosa fundaram o PAIGC Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde. Após tentativas mais pacíficas, uma
rebelião armada foi efetivamente estabelecida contra o domínio português em 196347. Com o
apoio da URSS, China e Cuba, o PAIGG conseguiu quebrar a resistência portuguesa - após o
assassinato de Amílcar, que ocorrera no mesmo ano – e declarar unilateralmente a independência
em 24 de setembro de 1973. O novo país foi admitido pela ONU no mesmo ano, mas Portugal
reconheceu a independência somente em 10 de setembro de 1974 após a queda da ditadura
(Revolução dos cravos). Luís de Almeida Cabral (o irmão de Amílcar Cabral) tornou-se o
primeiro presidente da Guiné-Bissau, admitida nesse mesmo ano nas Nações Unidas.
Embora Portugal tivesse recusado dar ao mesmo tempo a independência às ilhas do
Cabo Verde e a Guiné-Bissau (a independência do Cabo Verde teve lugar apenas em
1975), os dois países mantiveram o PAIGC como partido político comum durante cinco
anos. Vindo Cabo a transformar o PAIGC em PAICV, após o golpe de estado de 14 de
Novembro de 1980 na Guiné-Bissau, na sequência da qual caiu por terra o projecto e a
política de unidade dos dois países e povos. Aquando da independência os indicadores
socioeconómicos eram catastróficos: apenas 5% da população podia ler, a esperança de
vida era de 35 anos, 45% das crianças morriam antes da idade de 5 anos. Na sequência
da guerra, a produção de arroz tinha caído de 70% e teve de ser importado pela primeira
45
Disponível em < http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/5454.htm> , acessado em 16 de setembro de 2010, às 22:40h.
Disponível em < http://www.historyworld.net/wrldhis/PlainTextHistories.asp?historyid=ad46>, acessado em 16 de
setembro de 2010, às 23:00h.
47
Disponível em < http://www.anpguinebissau.org/historia/historia-guine-bissau/historia-da-guine-bissau>, acessado
em 16 de setembro de 2010, às 23:25h.
46
20
vez no partido de Estado com uma linha de condução socialista. Tomou o controlo da
economia e eliminou sistematicamente os seus48.
Um golpe trouxe ao poder João Bernardo Vieira. Primeiramente atuou através de um
conselho revolucionário e, em seguida, a partir de 1984, através de um Conselho de Estado
apoiado por uma assembléia de 150 membros nomeados. Em 1991, um sistema multipartidário
foi introduzido em uma nova Constituição. Dez partidos de oposição foram registrados antes das
eleições, essas realizadas em 1994. O PAIGC vence 64 dos 100 assentos na nova Assembléia,
mas na corrida para a presidência Vieira derrota, por pouco, Kumba Ialá, líder do Partido da
Renovação Social49.
Em 1998 um clima de grande tensão foi estabelecido, após o Presidente Nino Vieira (João
Bernardo) ter demitido seu comandante de exército Ansumane Mane. Começou a luta entre os
partidários do general e forças leais ao governo. O Senegal mandou tropas em apoio a Vieira e
centenas de pessoas morreram. A violenta guerra civil deslocou milhares de pessoas de suas casas
e devastou a já frágil economia do país, baseada em agricultura de subsistência, pesca e
exportações de castanha de caju50. Em agosto de 1998, um cessar o fogo foi declarado, mas em
outubro de 1998 os combates retomavam. Em maio de 1999, a Junta Militar venceu o conflito.
Após ter exilado Nino Vieira em Portugal, Malam Bacai Sanha – antes Presidente da Assembléia
- se estabeleceu como Presidente temporário51. Esse conflito foi responsável pela presença do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha no país, que lá se encontra desde 1998. Nessa época, a
organização se concentrava em responder às necessidades das vítimas da guerra civil
que acontecia no país, em particular ajudando a população civil, com as visitas às
pessoas privadas de liberdade e o restabelecimento de contato entre familiares
separados pelo conflito. Atualmente, o CICV continua realizando atividades em favor
das pessoas detidas e promovendo o direito internacional humanitário entre as
autoridades políticas e as forças armadas de Guiné-Bissau. No norte do país, o CICV
presta assistência às populações residentes e aos refugiados procedentes de Casamance,
região do Senegal afetada pela violência armada. Com essa assistência, o CICV facilita
o acesso a água potável e sistemas de saneamento adequados e apóia a retomada de
certas atividades econômicas locais (CICV, 2010).
48
Idem.
Disponível em < http://www.historyworld.net/wrldhis/PlainTextHistories.asp?historyid=ad46>, acessado em 17 de
setembro de 2010, às 1:15h.
50
Disponível em < http://www.globalsecurity.org/military/library/news/2003/08/mil-030825-irin09.htm>, acessado
em 20 de setembro de 2010, às 20:45h.
51
Disponível em <http://www.anpguinebissau.org/historia/historia-guine-bissau/historia-da-guine-bissau>, acessado
em 20 de setembro de 2010, às 23:00h.
49
21
Como evidenciado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, um movimento
separatista senegalês tem muito afetado o país. O Movimento das Forças Democráticas da
Casamança (MFDC) busca a independência da região desde 1982, e tem usado o território
vizinho do sul, Guiné-Bissau, como suporte. Além disso, o presidente João Bernardo Vieira foi
acusado de apoiar uma das facções rivais52. A constante invasão do território guineense, trazendo
banditismo e violência fez com que as fronteiras fossem fechadas em 2000. Um grande número
de refugiados se direcionou à Guiné-Bissau53.
Em substituição à presidência temporária, Koumba Yala foi eleito presidente em fevereiro
de 2000, conquistando 72% dos votos em uma votação que, de forma geral, foi considerada como
livre e justa. Entretanto, as tensões não cessaram e, em novembro de 2000, Ansumane Mane foi
assassinado por tropas em uma tentativa de golpe54. Na sequência da dissolução da Assembléia
Nacional Popular, em novembro de 2002 pelo Presidente, este último nomeou um
governo de iniciativa presidencial, responsável pela gestão dos negócios correntes e a
preparação de eleições. A vida política, então, era marcada por uma contestação
permanente da oposição e uma situação conflituosa no plano jurídico – institucional
onde surgiam acusações ligadas ao controlo dos meios de comunicação, as intimidações
de oponentes, a não promulgação da nova Constituição, aprovada pela Assembléia
Nacional Popular, e a nomeação pelo Presidente da República do presidente do
Supremo Tribunal de Justiça55.
Um subseqüente golpe afastou Yala do poder em 2003. A Carta de Transição Política foi
adotada e, assim, eleições foram realizadas de acordo com a data prevista e foram ganhas pelo
PAIGC. As eleições presidenciais, que tiveram lugar com os escrutínios de 19 de Junho (1ª volta)
e 24 de Julho (2ª volta) de 2005, proporcionaram a eleição de Nino Vieira ao cargo de
Presidente da República56.
No dia 2 de março de 2009, o Presidente Nino Vieira foi assassinado aos 70 anos de idade
em sua residência, um dia depois da morte do general Na Waié, que faleceu num atentado à
52
As causas do conflito e sua perpetuação são complexas. Questões citadas como contribuintes incluem fatores
históricos, econômicos negligência, falta de oportunidades de emprego para a juventude, as questões de direitos a
terra, e desrespeito às normas culturais indígenas. O conflito teve efeitos negativos em praticamente todos os
aspectos da vida em Casamança: o meio ambiente tem degradado devido à exploração descontrolada ou negligência,
a vida normal da aldeia e sistemas de apoio social têm sido interrompidos, a pobreza aumentou, as cidades estão
superlotadas, escolas e postos de saúde foram fechados ou deslocados e os investimentos e o turismo diminuíram.
Tradução livre do inglês. Disponível em http://www.globalsecurity.org/military/world/para/mfdc.htm, acessado em
25 de setembro de 2010, às 18:45h.
53
Um censo do ACNUR em 2002 contabilizou cerca de 7.000 senegaleses vivendo no norte de Guiné-Bissau. Idem.
54
Disponível em <http://www.guine-bissau.net/ue/pt/historia.htm>, acessado em 21 de setembro de 2010, às 00:20h.
55
Idem.
56
Disponível em <http://www.guine-bissau.net/ue/pt/historia.htm>, acessado em 22 de setembro de 2010, às 21:00h.
22
bomba no Quartel- General das Forças Armadas57. Eleições foram realizadas em dois turnos nos
meses de junho e julho de 2009. Malam Bacai Sanha derrotou Kumba Yala e assumiu então a
Presidência58, acompanhada dos desafios que o país carrega.
Não foi realizada no país nenhuma operação de peacekeeping da ONU, em nenhum
período. Uma pequena intervenção norte-americana, mesmo que não diretamente no país, foi
feita. Em 10 de junho de 1998, o Comando Europeu dos Estados Unidos enviou forças para
Dakar, no Senegal, em resposta às complicações na situação em Guiné-Bissau. A Joint Task
Force Pastor Venture foi formada, com o objetivo de “melhorar a capacidade dos militares de
garantir a segurança dos cidadãos dos EUA na região”. A força total foi de cerca de 130
funcionários. O Comando ordenou que as forças voltassem às suas bases em 15 de junho e a
operação terminou em 7 de junho de 199859.
Uma Comissão de peacebuilding60 foi estabelecida no país em 2007, a United Nations
Peace-Building Support Office in Guinea-Bissau (UNOGBIS)61. Em carta endereçada a Ban KiMoon62, em julho de 2007, o Primeiro Ministro Martinho Dafa Cabi chamou atenção para as
necessidades do país, caracterizado por ele como “um frágil Estado no qual a estabilidade está
comprometida pela inabilidade do Estado de prover os serviços sociais mínimos e atender
57
Disponível em < http://www.africanidade.com/articles/2238/1/Morte-de-Nino-Vieira-um-golpe-de-EstadoquotnAo-assumidoquot-diz-oposiAAo/Paacutegina1.html>, acessado em 22 de setembro de 2010, às 22:00h.
58
Disponível
em
<http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1246816-5602,00CANDIDATO+DO+GOVERNO+VENCE+ELEICOES+PRESIDENCIAIS+EM+GUINEBISSAU.html>, acessado
em 22 de setembro de 2010, às 22:15h.
59
Disponível em <http://www.globalsecurity.org/military/ops/shepherd_venture.htm>, acessado em 05 de outubro de
2010, às 20:15h.
60
A Comissão de Peacebuilding desempenha um papel único em que (1) reúne todos os atores relevantes, incluindo
os doadores internacionais, as instituições financeiras internacionais, governos nacionais, os países contribuintes de
tropas, (2) recursos de triagem e (3) aconselha e propõe estratégias integradas para a construção da paz pós-conflito e
recuperação e, eventualmente, destacando as lacunas que ameaçam minar a paz. Tradução livre do inglês. Disponível
em <http://www.un.org/peace/peacebuilding/> , acessado em 01 de outubro de 2010, às 19:45h.
61
Uma resolução do Conselho de Segurança de 1999 (S/1999/232) já falava sobre a necessidade do escritório para
harmonizar o ambiente pós-conflito, convocando inclusive as instituições de Bretton Woods para auxiliar o
UNOGBIS. Entretanto, o primeiro mandato tem data de 2006. O agora chamado UNIOGBIS (United Nations
Integrated Peace-Building Office in Guinea-Bissau) substituiu o escritório anterior de acordo com a demanda da
Resolução 1876 (2009). Disponível em <http://unogbis.unmissions.org/>, acessado em 01 de outubro de 2010, às
20:00h.
62
Ban Ki-moon, oitavo secretário-geral da ONU, foi eleito para o mandato 2007-2011. Nascido na Coréia do Sul em
1944, o atual secretário-geral é casado e pai de três filhos. O atual secretário-geral das Nações Unidas recebeu
inúmeros prêmios nacionais e internacionais. Em 1975, 1986 e novamente em 2006, Ban Ki-moon recebeu a Ordem
do Mérito, máxima distinção da República da Coréia, pelos serviços prestados ao seu país. Disponível em <
http://www.onu-brasil.org.br/conheca_secret.php>, acessado em 01 de outubro de 2010, às 19:55h.
23
despesas essenciais”
63
.
O Primeiro Ministro queixou-se das condicionalidades do FMI e da
dificuldade em conseguir orçamento para a reconstrução do país.
Em suas palavras:
“Se a comunidade internacional falhar em prover a assistência requerida, Guiné-Bissau
corre o risco de continuar em espiral decadente, com todas as conseqüências sociais e
políticas relativas que alguém possa imaginar em termos de ameaça à segurança
humana e paz, assim como em toda a sub-região”64.
É um claro, direto e intenso pedido de socorro de um líder político que vê seu Estado à
beira da falência. Ban Ki-Moon encaminhou o pedido de Cabi ao Presidente do Conselho de
Segurança em novembro do mesmo ano65. Guiné-Bissau foi colocado na agenda em 19 de
dezembro de 200766.
Faz-se necessário realizar uma busca entre os documentos oficiais das Nações Unidas, a
fim de constatar a discussão da situação em Guiné-Bissau na Organização em face da aparente
negligência. Encontram-se 38 reports do Secretário-Geral (de 1999 à 2010) e 5 resoluções do
Conselho de Segurança: Resolução 1216 (1998), Resolução 1233 (1999), Resolução 1325 (2000)
e Resolução 1580 (2004)67 e Resolução 1876 (2009). Encontram-se também 15 resoluções da
Assembléia Geral referentes a Guiné-Bissau68. Nota-se que essas são encontradas com mais
frequência em datas próximas a independência. A Assembléia manifesta seu apoio à
independência e demonstra preocupação com o desenvolvimento do país, bem como com
situações que poderiam desestabilizar a paz (a exemplo, uma ocupação portuguesa em GuinéBissau em 197369). As resoluções do Conselho demandam esforço para resolver as questões do
63
A carta em que o Primeiro Ministro de Guiné-Bissau faz requisição para que o país seja incluído na agenda da
Comissão pode ser lida em <http://www.un.org/peace/peacebuilding/Country-Specific%20Configurations/GuineaBissau/country%20request%20GB.pdf>, acessado em 01 de outubro de 2010, às 20:00h.
64
Tradução
livre
do
inglês.
Disponível
em
<http://www.un.org/peace/peacebuilding/CountrySpecific%20Configurations/Guinea-Bissau/country%20request%20GB.pdf>, acessado em 01 de outubro de 2010, às
20:00h.
65
O documento feito por Ban Ki-Moon, endereçado ao Presidente do Conselho de Segurança, pode ser lido em
<http://www.un.org/peace/peacebuilding/Country-Specific%20Configurations/GuineaBissau/GB%20letter%20of%20referral.pdf>, acessado em 01 de outubro de 2010, às 20:30h.
66
Disponível em <http://www.un.org/peace/peacebuilding/guinea-bissau.shtml>, acessado em 01 de outubro de
2010, às 20:35h.
67
Disponível em < http://www.unogbis.org/docs/arquivos-en.html>, acessado em 1 de outubro de 2010, às 20:45h.
68
As resoluções da Assembléia Geral podem ser encontradas em <http://www.un.org/documents/resga.htm> ,
acessado em 1 de outubro de 2010, às 20:50h.
69
Resolução XXVIII da Assembléia Geral, de 2 de novembro de 1973. Disponível em
<http://www.un.org/Depts/dhl/resguide/r28.htm>, acessado em 01 de outubro de 2010, às 20:45h.
24
país e encarregam o Representante do Secretário-Geral de mandar relatórios e acompanhar as
ações da missão.
Em abril de 2010, o atual Primeiro Ministro Carlos Gomes Júnior e outro membro do
governo ficaram um período de tempo detidos pelas forças armadas. O episódio e outras
complicações no país fizeram com que Guiné-Bissau reclamasse atenção e ajuda internacional
em reunião da Assembléia Geral70. O Conselho de Segurança, em julho de 2010, chamou o país a
realizar uma reforma na segurança71. O UNIOGBIS mantém suas atividades no país72.
Uma visão crítica dos fatos
Após levantamento histórico das situações em Guiné-Bissau e no Haiti, é proveitoso
realizar uma comparação entre os dois casos, evidenciando similaridades e diferenças.
No percurso dos dois Estados observa-se falta de representatividade política, causadora de
inúmeras crises, momentos de tensão e ocorrência de governos curtos. A democracia não é
exemplar; eleições foram fraudadas, realizadas sem o padrão procedimental necessário, e a
população ficou diversas vezes submetida a líderes que não escolheu. Ressalta-se a importância
dada por Brown (1996) à existência de maus líderes e de transições políticas vindas de forma
autoritária para a ocorrência de conflitos internos. Falta de instituições robustas e estruturas mais
complexas em muito contribuíram para o impedimento de um bom funcionamento das relações
políticas e sociais - relação de causalidade também identificada em Brown (1996) ao abordar as
causas desse tipo de conflito.
Outro fator importantíssimo, provocador de crises, é o faccionismo, corrupção e divisão
dentro do exército. A coesão dessa instituição tem grande participação na coesão do país. Por
esse motivo, esses dois Estados sofreram com golpes militares, oriundos de insatisfações nas
forças armadas. Os fatores socioeconômicos em muito se assemelham nos dois casos. Ambos
carregam em sua história escravidão e exploração por parte dos colonizadores, Portugal em
Guiné-Bissau e França no Haiti. Não se desenvolveram economicamente e, em conseqüência, não
70
Disponível em <http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=36189&Cr=West+Africa&Cr1=&Kw1=guineabissau&Kw2=&Kw3=>, acessado em 01 de outubro de 2010, às 20:40h.
71
Disponível em <http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=35397&Cr=bissau&Cr1=&Kw1=guineabissau&Kw2=&Kw3=> acessado em 01 de outubro de 2010, às 20:45h.
72
Disponível em < http://unogbis.unmissions.org/Default.aspx?tabid=440>, acessado em 01 de outubro de 2010, às
20:45h.
25
conseguiram construir para sua população uma estrutura suficiente para prover o bem comum.
Educação e saúde, por exemplo, possuem baixos índices, e o narcotráfico é intenso. Ocorrência
de guerra civil é também comum nos dois países. Assim, como de costume em conflitos armados,
foi deixado aos guineenses e haitianos um legado de destruição física e institucional e muito
trabalho a ser feito.
Ao observar os mandatos das intervenções de peacekeeping realizadas no Haiti, percebese que abarcavam diferentes focos, dentre eles: restabelecimento da democracia, modernização
das forças armadas e instituição de força policial efetiva, desenvolvimento institucional
(principalmente fortalecendo a democracia), reconciliação nacional, reabilitação econômica,
geração de empregos, observação de eleições e proteção dos direitos humanos. Os problemas que
essas missões e intervenções buscavam resolver indubitavelmente podem ser identificados
também na história guineense. Nota-se que, mesmo em face dos pontos comuns, não é possível
dizer que ações mais complexas como as feitas no Haiti foram igualmente feitas em GuinéBissau, que os dois países receberam a mesma resposta internacional.
As resoluções da Assembléia Geral e do Conselho de Segurança mostram que não houve
total negligência quanto à Guiné-Bissau, que o tema foi discutido. Entretanto, observa-se que o
país teve que chamar a atenção da ONU para receber auxílio mais efetivo. A missão foi
estabelecida após o período de maior crise, em caráter reconstrutivo. As resoluções da
Assembléia Geral remontam ao período da independência e década seguinte, desaparecendo a
partir da década de 90. Compara-se a quantidade de reports do Secretário Geral (38), com a
quantidade de resoluções do Conselho (5), ou seja, os documentos relevantes, realmente
vinculativos do organismo. Parece pouco o número de resoluções, para o caso de um país que
enfrenta sérias dificuldades desde sua independência. Lembra-se que a existência de diferentes
ramos dentro da administração de organizações políticas - de acordo com o modelo de políticas
burocráticas - pode proporcionar diferentes decisões (RITTBERGER; ZANGL, s/d). Os
Secretários-Gerais da ONU, desde a independência de Guiné-Bissau, demonstraram grande
preocupação com o caso. Partiram de homens nesse cargo iniciativas importantes, como a
formação do UNOGBIS. Entretanto suas competências são diferentes e muitas vezes dependem
do Conselho de Segurança para medidas mais concretas.
Como exposto na segunda seção deste artigo, questões relativas a operações de paz e
intervenções são complicadas por lidarem com a soberania nacional e o consentimento. Além
26
disso, lembrando Brown (1996) ao discorrer sobre os impactos internacionais de conflitos
internos, quando claramente há agressão, como em violações fronteiriças interestatais, as
respostas internacionais costumam ser mais rápidas. Em conflitos internos os atores
internacionais são mais cautelosos, embora os critérios não sejam muito objetivos. A exemplo,
retoma-se a posição de José Joaquim Gomes Canotilho, segundo a qual a intervenção só se
justifica quando se estiver em presença de situações existenciais coletivas onde não seja possível
manter o standard mínimo humanitário (CANOTILHO apud SPIELER, 2007, p.164). A
identificação dos fatores que constituem esse padrão mínimo não é clara. Sendo assim, a
determinação das situações nas quais deve haver intervenção se dá num meio cheio de
ambivalências. Sobre o consentimento, esse não é uma barreira intransponível no caso de GuinéBissau, visto que um importante representante do próprio país se expressou a fim de atrair a ONU
para situação, pedindo auxílio em 2007. No período após a morte de Nino Vieira, em março de
2009, o país novamente pediu atenção. O porta-voz do PRS73 justificou a necessidade da
colaboração externa para apoiar as instituições nacionais pelo facto de que, segundo ele,
a tragédia que se abateu sobre o seu país no início deste mês "não deve preocupar
apenas a Guiné-Bissau mas toda a comunidade internacional, em geral, e a região em
particular74.
Para aqueles que defendem a intervenção quando há ameaça à paz e segurança nacional e
regional, como Himes (HIMES apud MATOS, s/d), eis o respaldo para agir. Entretanto essa
atribuição - de ameaça à paz – feita pelo porta-voz, não é de sua “responsabilidade legal”. A
situação atinge Guiné-Bissau, o Senegal, país com o qual há problemas, como o já citado caso do
Movimento das Forças Democráticas de Casamança e o fluxo de refugiados, assim como os
vizinhos. O agravamento da situação prejudica as relações regionais devido ao enfraquecimento
do Estado e, além, caso haja o transbordamento do conflito e a geração de um maior fluxo de
refugiados, outros Estados serão afetados diretamente (BROWN, 2006). Salientando a posição
de Lake (2003), a grande maioria dos conflitos internos tem implicações fundamentais para a
estabilidade regional.
Regis (2006) coloca como um dos requisitos para haver intervenção aquele que, portanto,
tem força inquestionável: a existência do interesse de agir pela Comunidade Internacional.
73
Partido da Renovação Social, principal formação política de oposição em Guiné-Bissau.
Disponível em <http://www.africanidade.com/articles/2238/1/Morte-de-Nino-Vieira-um-golpe-de-EstadoquotnAo-assumidoquot-diz-oposiAAo/Paacutegina1.html>, acessado em 10 de novembro de 2010, às 21:00h.
74
27
Restringindo um pouco mais seu argumento, lembra-se novamente a Carta da ONU, que deixa
claro que decisões sobre intervenções ficam a cargo do Conselho de Segurança. São questões
jurídicas, que envolvem legalidade, resolvidas por um órgão político (CANOTILHO apud
PESTANA, 2004), controlado por apenas cinco Estados. Ao falar do papel da ONU em ações de
intervenção, mesmo quando sua realização se dá de forma regionalizada ou descentralizada,
Canotilho afirma que as exigências democráticas obrigarão a rever a composição do Conselho
de Segurança de forma a torná-lo representativo da comunidade internacional de hoje e não de
ontem (CANOTILHO apud PESTANA, 2004, p.15). Novamente retomando Brown (1996), é
impossível isolar completamente uma Organização da influência de seus membros mais
poderosos. O próprio conceito de ameaça à paz, que pode dar origem à ação, não é objetivo ou
específico: é também determinado pelo Conselho de Segurança, de acordo com o art. 39 da Carta:
O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura
da paz, ou ato de agressão e deverá fazer recomendações, ou decidir que medidas
devam ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, para manter ou restaurar a paz e
segurança internacionais75.
Os órgãos responsáveis não podem utilizar o conceito de domínio reservado76 dos Estados
para evitar comprometimento com o país em questão. É importante observar o caráter
peculiar da crise no Haiti, uma vez que, pela primeira vez, o Conselho de Segurança se
considerou competente para dispor a respeito de golpes de Estado, questão que, até
então, era considerada exclusivamente de domínio reservado dos Estados. Todavia, é
fato que a instalação de governos opressivos e ditatoriais, em regra, ceifa os direitos
mais básicos da população e, assim sendo, só se verifica o respeito aos direitos humanos
e às liberdades fundamentais quando se vive num regime democrático, no qual a
pluralidade de idéias e comportamentos não é encarada como atentatória à segurança do
Estado e, tampouco, sujeita a punições. Destarte, a intervenção no Haiti enquadra-se à
definição de intervenção humanitária, haja vista que o governo do Estado haitiano não
só rompeu com as instituições democráticas do país, como instalou uma condenável
política de perseguição à população (RODRIGUES apud SILVEIRA, 2009, p.22).
75
Disponível em http://www.fd.uc.pt/hrc/enciclopedia/onu/textos_onu/cnu.pdf, acessado em 10 de novembro de
2010, às 21:30h
76
A conseqüência da extensão do domínio reservado conferida aos Estados é impedir a ingerência dos demais países
em matérias pertencentes ao direito interno de outros. (...) Matérias como desarmamento, soberania territorial e,
principalmente, direitos humanos não fazem mais parte do domínio reservado dos Estados. É possível afirmar que as
matérias que ainda pertencem ao domínio reservado dos Estados são aquelas que não se tornaram objeto de qualquer
compromisso internacional assumido por estes. Desta feita, não parece viável determinar o exato alcance e conteúdo
do domínio reservado, pois é problemático dissociar as atividades internas e externas de um Estado de maneira
segura e objetiva (MACEDO apud SILVEIRA, 2009).
28
O argumento utilizado para intervenção no Haiti também se encaixa para Guiné-Bissau,
visto que está centrado na competência de realizar intervenções em casos de golpe de Estado,
entretanto não houve ação desse tipo no segundo. A resolução 940 que autorizava a intervenção
militar no Haiti reiterava o pedido para que a comunidade internacional prestasse assistência e
apoio ao desenvolvimento econômico, social e institucional no Haiti (SILVEIRA, 2009, p.22),
necessidades também encontradas em Guiné-Bissau. É certo que as condições dos dois países não
eram idênticas, mas havia elementos no segundo que estavam em conformidade com objetivos
costumeiramente focados nesse tipo de operação.
As causas dessa discrepância de preocupação internacional podem ser as mais diversas,
mas parece claro que o alicerce é o fato de serem escolhas políticas. Segundo Chomsky, na
política de intervenção humanitária desenvolvida atualmente em diversas partes do
mundo, a qualificação de violação a direitos humanos depende de quem seja o acusado.
Os amigos criminosos merecem proteção e não se pode cogitar de cometerem violações
a direitos humanos, enquanto os que se tornam inimigos merecem a mais severa punição
com base nos mais altos princípios de direitos humanos77 (CHOMSKY apud LIMA JR.,
2008, p.132).
De acordo com Tony Blair, há regimes ruins em demasia no mundo, o que inviabilizaria
a intervenção em todos os casos
78
. Dessa forma, há sim um processo seletivo, não
necessariamente pautado em urgência ou bem-estar da população. Lembra-se que durante a
Guerra Fria houve uma grande paralisação nesse âmbito, já que qualquer ação empreendida
pelas Nações Unidas em prol da paz era imediatamente bloqueada pelos Estados Unidos ou pela
União Soviética, por meio do direito de veto no seio do Conselho de Segurança (SILVEIRA,
2009). Mortes e grandes tensões políticas não deixaram de acontecer, mas não eram prioridade
em meio a esse grande embate político que durou décadas79.
77
Chomsky afirma também que países ocidentais manipulam informações sobre o grau das atrocidades como forma
de desviar o foco sobre suas próprias atividades (LIMA JR. 2008, p. 137).
78
Ao expor a sua Doutrina da Comunidade Internacional em abril de 1999, em discurso feito no Chicago Economic
Club (PESTANA, 2004).
79
Com o fim da Guerra Fria, percebe-se a aceitação da primazia da proteção dos direitos do homem e a concordância
de que o sofrimento humano e a segurança internacional são assuntos intimamente ligados e correlatos ao sistema de
segurança coletiva das Nações Unidas. É a partir deste momento, que os direitos humanos passam a integrar a
agenda internacional e definitivamente são excluídos das matérias pertencentes ao domínio reservado dos Estados
(RAMOS apud SILVEIRA, 2009).
29
É inquestionável a necessidade do Haiti por ajuda internacional para enfrentar toda a
complexidade de suas dificuldades. Mas ao olhar para além das fronteiras haitianas, outros
fatores despontam. O primeiro e mais evidente: geopolítica. O Haiti está quase tão perto dos EUA
quanto Cuba, e ter um Estado falido a essa distância não é de nenhuma forma interessante.
Haitianos podem tentar se deslocar para o vizinho do norte em grandes números, criando um
desastre humanitário e grande pesadelo para a Guarda Costeira americana e para a Marinha, além
de difundir doenças mais comuns no Haiti80. Assiste-se atualmente no país a uma epidemia de
cólera com status de problema de segurança nacional, visto que toda a população do país está em
risco de contágio81. As projeções para a situação são catastróficas; e no caso de um fluxo intenso
de refugiados para as terras americanas, por exemplo, os danos seriam imensuráveis. A presença
de um Estado colapsado perto dos EUA, dentro desse contexto, deveria ser impedida. Como
esclarece Brown (1996), esse tipo de fluxo de refugiados pode trazer sérios problemas
econômicos e de segurança. Cientistas afirmam que há uma grande quantidade de petróleo
debaixo no solo haitiano, em reservatórios muito maiores do que os encontrados na Venezuela,
além de urânio. Segundo investigações de especialistas, muitos governos anteriores já estavam
cientes da existência desse petróleo. Questionado sobre a não-exploração destes locais,
Ginette Mathurin disse que esses depósitos são declarados os estoques dos Estados
Unidos da América. Ao fazer sua incompreensão de tal situação, lembre-se que o
Caribe é considerado o quintal dos Estados Unidos82.
Além do fator econômico, os Estados diretamente envolvidos na história do país –
Estados Unidos e França - também podem ser um fator a ser considerado. No período da Guerra
Fria os Estados Unidos, França e Canadá estiveram em algum grau nas mãos dos Duvalier83. Eles
tinham grandes contas em bancos franceses, como membros da elite haitiana atual ainda tem. Em
80
Disponível em <http://open.salon.com/blog/don_rich/2010/01/14/why_help_haiti_franco-american_duty_and_selfinterest>, acessado em 14 de novembro de 2010, às 14:30h.
81
Disponível
em
<http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1374745-7823ONU+ADVERTE+QUE+TODA+POPULACAO+DO+HAITI+TEM+RISCO+DE+CONTRAIR+COLERA,00.html
>, acessado em 14 de novembro de 2010, às 14:50h.
82
Tradução livre do francês. Disponível em < http://www.metropolehaiti.com/metropole/full_une_fr.php?id=13439>
, acessado em 14 de novembro às 15:40h.
83
Ao discutir a relação norte-americana com determinados países, Noam Chomsky afirma que, entre os amigos
criminosos, além de Saddam até antes da primeira guerra do Golfo, figuraram Ferdinando Marcos,‘‘Baby Doc’’
Duvalier, Suharto, Nicolau Ceausescu e Mobutu Sese Seko2, todos personas da mais alta consideração e equivalente
apoio político e militar (CHOMSKY apud LIMA Jr., 2008, p. 132).
30
contrapartida Guiné-Bissau não era ponto tão estratégico no período do enfrentamento entre
capitalistas e comunistas84.
Guiné-Bissau encontra-se na África, continente que, apesar das belezas e riquezas
naturais, é marcado por países pobres de independência recente, palco de inúmeros conflitos
internos e guerras civis, infrações graves aos direitos humanos, por séculos fonte de escravos,
altas dívidas externas e baixo desenvolvimento. Apesar das diversas intervenções já realizadas no
continente, pode-se dizer que ele é marginalizado no sistema mundial85. Maior atenção e
verdadeira preocupação com as situações conflituosas são necessárias. A posição brasileira é a de
que uma abordagem equilibrada dos temas humanitários requer: a) evitar a percepção
errônea de que os países em desenvolvimento são apenas receptores de assistência,
quando, de fato, geralmente doam seus escassos recursos; b) a promoção do direito
internacional humanitário, dos direitos humanos e dos direitos dos refugiados; c) igual
atenção a problemas equivalentes, o que implica a eliminação de padrões duplos no
tratamento de crises de refugiados e de outros temas humanitários; d) mais
especificamente, a comunidade internacional deve demonstrar em relação à crise
africana o mesmo nível de interesse e envolvimento político apresentado em outras
partes do mundo. (FONSECA apud PESTANA, 2004, p.9, grifo da autora)
Apesar de ter se discutido muito sobre intervenção em geral, essa foi usada apenas como
instrumento principal - medidor da atenção dos principais atores internacionais para com as
situações de tensão - visto que é utilizada para resolver os tipos de problema citados. Entretanto
isso não quer dizer que sempre funciona ou que é benéfica em todos os casos. A intervenção em
Darfur, por exemplo, foi considerada negativa, assim como a do Kosovo, em que a ONU só
chegou após a OTAN ter resolvido a parte mais crítica, devido à demora em se chegar a um
consenso da necessidade (Informação verbal)86. No ousado livro “A Bed for the Night”, David
Riff (2002) classifica o humanitarismo como uma ideologia perigosa, em que imagens de
sofrimento são usadas por ONGs para manipular e usar governos para propósitos políticos
internos. Segundo ele, as instituições internacionais não são manifestações da comunidade, mas
do poder; e sua existência não pressupõe a existência de um consenso moral. Além, compara a
presunção paternalista e superioridade moral das intervenções humanitárias ao colonialismo
europeu do século XIX. O autor questiona por que países como o Canadá ofereceriam seus
84
Disponível em <http://open.salon.com/blog/don_rich/2010/01/14/why_help_haiti_franco-american_duty_and_selfinterest>, acessado em 14 de novembro de 2010, às 14:30h.
85
Disponível em <http://www.angonoticias.com/full_headlines.php?id=1063>, acessado em 14 de novembro de
2010, às 16:00h.
86
Segundo análise realizada pela Profa. Mestre Luciana Diniz Durães Pereira, em aula do curso de Pós-Graduação
em Direito Internacional do Centro de Direito Internacional. Direito Humanitário, 2010.
31
soldados para essas operações, respondendo que isso ocorreria quando houvesse conformidade
com o interesse nacional, pois só assim haveria tolerância com as baixas.
Claro que há críticas e que esse sistema precisa muito evoluir. Mas é o melhor que se
dispõe atualmente. O exemplo do Timor Leste é um exemplo de sucesso, mostrando que quando
bem realizada, no momento certo, a intervenção pode trazer mudanças significativas (SMITH;
DEE, 2003). Países do Terceiro Mundo, defensores da não-intervenção, apoiaram medidas
realizadas no Haiti, o que mostra uma alteração na posição com relação às intervenções
(AMARAL JÚNIOR apud SILVEIRA, 2009). Assim, pode-se afirmar que a intervenção
humanitária começa a ser vista pela sociedade internacional como uma possível medida
de assistência humanitária e, conseqüentemente, de defesa dos direitos humanos; é
indubitável que o que precisa ser desenvolvido para a sua completa aceitação é uma
estrutura adequada que garanta a imparcialidade da utilização do instituto (SILVEIRA,
2009, p.27).
Considerações Finais
As questões de intervenção estão basicamente centralizadas nas Nações Unidas. A
Organização nasceu com valores políticos e morais, mas percebe-se que a preeminência dos
morais aos políticos é por certo improvável, visto que ela precisa dos seus Estados mantenedores.
Se os direitos humanos são universais, dever-se-ia zelar por eles em qualquer situação, em
qualquer lugar. A decisão da intervenção deveria estar fundamentada em violações aos direitos
humanos e ameaça à paz; mas como a identificação desses critérios cabe a poucos, as bases de tal
fundamentação não escapam da politização.
A Guerra-Fria polarizou a ONU e o seu fim não trouxe a despolarização. Uma reforma no
Conselho de Segurança é fundamental para uma verdadeira, ou ao menos aproximada,
representatividade da nova realidade. Discussões correntes sobre a entrada da Índia - com apoio
americano - mostram possibilidades de abertura das portas do Conselho. Todavia, um olhar um
pouco mais desconfiado traz a idéia de que é uma chance para os EUA formarem uma aliança
com o país, a fim de contrapor o poder militar na China no sul da Ásia87.
87
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/831142-exercito-do-brasil-discute-apoio-dos-eua-a-indiano-conselho-de-seguranca-da-onu.shtml>, acessado em 16 de novembro de 2010, às 12:20h.
32
Retomando Fonseca, o que é necessário é atribuir igual atenção a problemas equivalentes,
eliminando padrões duplos no tratamento de crises de refugiados e de outros temas humanitários.
De forma mais direta, a crise africana deve receber da comunidade internacional o mesmo
interesse, envolvimento político e ação que os direcionados a outras partes do mundo
(FONSECA apud PESTANA, 2004).
Observe que a discussão aqui não é a ingerência, a intromissão, a intervenção
indiscriminada (problema que possui ampla discussão no Direito Internacional e nas Relações
Internacionais), mas sim a ausência dessa, o pequeno interesse em resolver problemas de Estados
em dificuldades e em meio à tensão. A situação no Haiti é, sem dúvidas, requerente de ajuda
internacional, mas a de Guiné-Bissau, como de diversos outros Estados fragilizados, também o é.
Dessa forma, a resposta ao questionamento inicial torna-se clara: em face da seleção para agir
que ocorre, há sim, em algum grau, negligência de conflitos no sistema internacional. Ao
contrário do que se imaginava a princípio, resoluções da Assembléia Geral e do Conselho de
Segurança e a presença de uma missão da ONU mostram preocupação com a situação no país.
Todavia, ao considerar que a missão se colocou presente somente após 2006, ainda em
necessidade, mas após o período mais complexo, conclui-se que houve resposta à crise em
Guiné-Bissau, mas atrasada e insuficiente. A estrutura internacional atual não comporta a
demanda, mas há uma seleção e, novamente, em suas raízes há política.
É importante ressaltar que o presente trabalho por vezes assume um caráter normativo.
Entretanto, isso não invalida a discussão realizada e seus resultados, visto que estudos nessa área,
como se observa na literatura do tema, costumeiramente possuem essa característica. Igualmente,
salienta-se que os resultados aqui encontrados se aplicam aos casos estudados. Apesar de se
concluir que há certa negligência, como no caso de Guiné-Bissau – que apresentava
‘necessidades’ como as que os mandatos de operações de paz tentavam resolver no Haiti, porém
sem receber operações dessa complexidade -, não há pretensão de aplicar essa causa a todas as
situações em que não houve/há intervenção.
“Se houver uma saída no atual momento histórico, essa saída seria a população em geral
assumir o controle de seu próprio destino, passando a se preocupar com os assuntos de interesse
comunitário, guiada pelos valores de solidariedade e comprometimento com os outros”88.
88
Manufacturing consent: Chomsky and the media. Mark Achbar e Peter Wintonick (diretores). Austrália, Finlândia,
Noruega, Canadá: Zeitgeist Films, 1992. 167 min. apud LIMA JR., 2008.
33
The intervention in internal conflicts in legal and political aspects: Haiti and Guinea-Bissau
ABSTRACT
It is observed, mainly in the post-Cold War, the existence of intense internal conflicts that require
international assistance. The occurrence of humanitarian interventions, peace missions or
external participation is also noticed, but the criteria for that to happen are not clear. Through a
case study comparing the situations in Haiti and Guinea-Bissau, it appears that there are
similarities, as the absence of robust institutions, State coups and civil wars. The objective was to
evaluate their international responses and check if there is negligence concerning internal
conflicts. It is noted that equal attention to similar problems is not given, with a selection to act.
Decisions regarding the intervention, supposedly legal, based on International Law, many times
have political underpinnings.
Key-words: humanitarian intervention, Haiti, Guinea-Bissau, negligence.
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