TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de

Transcrição

TRAVASSOS, Elizabeth. Poder e valor das listas nas políticas de
Poder e valor das listas nas políticas de patrimônio e na música popular
Porto Alegre, 03 de maio de 2006
Texto elaborado para o debate A memória da música popular promovido pelo
Projeto Unimúsica 2006 – festa e folguedo
Elizabeth Travassos
Instituto Villa-Lobos
Programa de Pós-graduação em Música
UNIRIO
Gostaria de propor como contribuição a essa conversa sobre música popular
uma reflexão sobre o fenômeno das listas; sobre o poder e o valor que têm as
listas nas políticas de patrimônio e na canção popular. Como vocês sabem,
listas e inventários adquiriram visibilidade, recentemente, a partir das
proclamações pela UNESCO de “obras-primas do patrimônio cultural oral e
imaterial da humanidade”.
Segundo a Convenção aprovada na 32ª Assembléia Geral da UNESCO, em
2003, o patrimônio oral e imaterial abrange práticas, representações,
conhecimentos e técnicas. Ele manifesta-se nas tradições e expressões orais,
incluindo a
língua, nos espetáculos, rituais e festas, nas técnicas do
artesanato tradicional, em conhecimentos referentes à natureza.
A Convenção nos propõe então olhar práticas sociais e festas como obrasprimas. Este curto-circuito entre a noção antropológica de cultura,
considerada como totalidade dos artefatos materiais e simbólicos do homem, e
a noção altamente distintiva de obra-prima, causa certa perplexidade. Estaria
incluída no patrimônio cultural a arte da conversação? Não admira que o tema
se preste à controvérsia e mesmo ao humor.
Foi em 2001 a primeira proclamação da UNESCO, que apontou 19 “obrasprimas”, tais como a música de trompas transversas da comunidade Tagbana,
na Costa do Marfim e o canto polifônico na República da Geórgia, entre muitas
outras. Repara-se que cada obra-prima é associada a um estado-nacional
(mesmo quando “gerada” por uma comunidade dentro desse estado). A lista é
apresentada em ordem alfabética de estados-nações: Belize, Benim, Bolívia,
China etc. e termina com as obras-primas de caráter multinacional, i.e.,
apresentadas por dois ou três estados nacionais simultaneamente. 1
A UNESCO noticia a primeira proclamação nos seguintes termos:
No dia 18 de maio de 2001, o Diretor Geral da UNESCO proclamou as
primeiras 19 obras-primas do Patrimônio Oral e Intangível da
Humanidade. Selecionadas por um júri internacional de 18 membros,
elas foram escolhidas por seu destacado valor . Essa primeira
proclamação sublinhou o valor do patrimônio cultural intangível e sua
vulnerabilidade, particularmente diante da globalização, e a urgência
das ações em prol de sua salvaguarda. Ao criar uma distinção
internacional para o patrimônio cultural intangível, a UNESCO dirigiu
a atenção da comunidade internacional para a importância do
2
reconhecimento desse patrimônio que é essencial para a preservação
da identidade e diversidade cultural dos povos. Por seu excepcional
valor artístico, histórico e antropológico, os 19 espaços culturais e
formas de expressão popular e tradicional proclamados representam
uma variedade de testemunhos da riqueza e da diversidade do
patrimônio cultural intangível no mundo: 4 na África, 7 na Ásia, 4 na
Europa e 4 na América Latina e no Caribe. 2
Em 7 de novembro de 2003, a UNESCO emitiu mais uma lista, a da segunda
proclamação, com 28 itens, entre eles a arte gráfica e oral kusiwa, dos índios
Wayãpi, apresentada pelo Brasil, o canto védico na Índia, o teatro de bonecos
na Indonésia, a festa dos mortos no México. 3 Finalmente, em 2005, foi
promulgada uma terceira lista de 43 obras-primas, entre elas o samba-de-roda
do Recôncavo Baiano, o canto polifônico na Bulgária e um outro estilo
polifônico praticado por quartetos masculinos de pastores, na Sardenha,
Itália. 4
Como explicam os documentos da UNESCO, a idéia da Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Oral e Imaterial é proteger tradições culturais
vivas, porém vulneráveis. Em que consiste esta proteção? Eis uma pergunta
que tem recebido resposta consensual:
...dada a natureza imaterial do bem cultural – diz outra especialista na
matéria, a antropóloga Letícia Vianna – ele só se conservará,
efetivamente, se vivido por pessoas em condições, com garantias e
interesses de vivenciá-lo de modo dinâmico e criativo. 5
Concordam então os especialistas e os técnicos do patrimônio que as ações de
proteção devem incidir sobre os grupos, comunidades e indivíduos para quem
o “patrimônio” constitui referência identitária. Mas seu principal mecanismo é,
no nível da UNESCO, discursivo: trata-se de proclamar. A proclamação é um
ato que distingue, marca com um selo. Ao reconhecer o valor do objeto eleito –
objeto oriundo de uma comunidade minoritária e subalterna, como os índios
Wayãpi, ou os praticantes do samba-de-roda –, a política de patrimônio cria,
de fato, um novo valor, pois o objeto é ipso facto projetado em circuitos que
envolvem mercado, turismo, design, galerias de arte etc.
A antropóloga Barbara Kirshenblat-Gimblett observa: “o patrimônio é um
modo de produção cultural que insufla vida nova nos fenômenos culturais em
vias de extinção ou que saíram de moda, ao exibi-los como patrimoniais”. 6
Não é por acaso que das acepções do verbo ‘proclamar’ que constam do
Dicionário Aurélio – a saber: (1) ‘anunciar em público e em voz alta’, (2) ‘eleger,
intitular, aclamar’, (3) ‘publicar, promulgar, decretar’, (4) ‘arvorar-se em’ –, as
primeiras são empregadas para referir os atos de governantes e outros agentes
sociais investidos de poder, ou os atos que conferem poder ao objeto da
proclama. Os exemplos dados no Dicionário são: “Os generais proclamaram a
guerra”; “O presidente proclama as leis” ; “...proclamavam Castilho príncipe
dos poetas”. A última acepção dada no Dicionário, que é ‘arvorar-se em’, não
deixa de ter relação com a idéia de transferência de poder do proclamador ao
objeto da proclama; no caso, o sujeito da sentença é ele mesmo o objeto de sua
proclamação, mas sua pretensão é ilegítima: “Proclama-se bom aluno, mas
estuda pouco”, ilustra o Dicionário.7
3
Pode-se argumentar que há muito mais coisa envolvida na política do
patrimônio, além das listas, e é verdade. Muitas outras ações antecedem e
sucedem a entrada de um item numa dessas listas: há dotações
orçamentárias alocadas nos organismos culturais dos estados signatários da
Convenção da UNESCO, destinadas às ações de identificação e elaboração dos
dossiês de candidatura, assim como há, também, alocação de recursos
financeiros para implementar planos concretos de salvaguarda. Contudo, a
parte visível da atuação da UNESCO no terreno do patrimônio são as listas de
“obras-primas” (masterpieces, em inglês, chefs-d’oeuvre, em francês ) – uma
categoria herdada do mundo das artes – proclamadas como os exemplos mais
sublimes das capacidades do espírito do homem.
Trata-se, como diz a já citada antropóloga Barbara Kirshenblatt-Gimblett, de
um a ação metacultural que, em lugar de atuar diretamente junto aos
produtores de cultura, financiando exposições, subsidiando escolas,
concedendo bolsas, editando discos , proclama. Isso não significa que a
atuação seja inócua. A lista exerce efeitos importantes na realidade, embora
muito difíceis de prever. Pelo que percebi visitando a página eletrônica da
UNESCO, já começaram os estudos para avaliar o impacto das proclamações
sobre a vida dos grupos sociais e indivíduos que geram e perpetuam as obrasprimas listadas.
Convém lembrar que ‘proclamar’ é um verbo performativo – ele constitui a
própria ação que designa. O lingüista John Searle observa que alguns
enunciados do tipo performativo são inteiramente dependentes da posição do
falante numa instituição, caso contrário não podem ser tomados a sério. É o
caso do verbo proclamar, cujo efeito performativo requer do sujeito que ocupe
determinada posição num quadro institucional. Como explica John Searle,
“...não é suficiente que um falante qualquer diga a um ouvinte qualquer: “Eu
abençôo’, ‘Eu excomungo’ etc. É preciso ocupar uma posição numa instituição
extralingüística”.8 Por isso a proclamação surte efeito: os membros do júri
internacional que escolheu, entre as várias candidaturas, aquelas
merecedoras do status de obras-primas, foram investidos desse poder pela
UNESCO.
O Brasil, na condição de estado signatário da Convenção, participa das
construções da UNESCO, além de conceber e implementar sua própria
política patrimonial. Em diálogo com as orientações supranacionais da
UNESCO, mas também a partir das experiências no território nacional, foram
instituídos no Brasil, pelo Decreto 3.551, de 2000, quatro Livros de Registro
do Patrimônio Imaterial. Nos Livros inscrevem-se, conforme sua natureza, os
bens culturais que passam a gozar de reconhecimento oficial: há um livro para
os Saberes e Modos de Expressão, outro para as Celebrações, outro para as
Formas de Expressão e outro para os Lugares. Observe-se que os documentos
brasileiros não empregam a categoria ‘obra-prima’. Tampouco acentuam o ato
de proclamar. Entre nós, a ênfase do discurso está na inscrição em Livros, em
registrar por meio da letra o que era falado e vivido sem necessidade da
escrita. Assim, graças a essa consagração nos Livros do Patrimônio, seria
reduzida a assimetria entre a cultura letrada, oficial, dominante, e as culturas
orais, subalternas. O procedimento do registro em Livros não altera, portanto,
as implicações valorativas da lista de bens patrimoniais intangíveis.
Temos, então, uma outra lista, brasileira, integrada pelos seguintes “bens
culturais”: 1) a arte gráfica e oral dos índios Wayãpi; 2) o samba-de-roda no
4
Recôncavo Baiano (pois a proclamação no nível nacional é pré-condição para a
submissão de uma candidatura no nível supranacional, da “Humanidade”; 3)
a procissão do Círio de Nazaré; 4) o jongo; 5) a viola-de-cocho; 6) o ofício das
baianas de acarajé; 7) o ofício das paneleiras de Goiabeiras.
*****
A temática do patrimônio cultural imaterial é complexa e polêmica. Tem como
premissas as noções de ‘cultura intangível’, ‘patrimônio’, ‘direitos culturais’,
‘diversidade cultural’. Traz à baila discussões sociológicas difíceis, como a das
relações entre cultura ‘legítima’ e ‘culturas populares’; evoca as tensões entre
particularismos e valores universais, como os de direitos humanos e
diversidade cultural. Desencadeia debates sobre a transformação dos rituais
em espetáculo, o avanço da comodificação das práticas sociais. Complica-se
pelas interseções com as legislações da propriedade intelectual. Ela toca,
enfim, uma série de problemas sobre os quais só posso falar superficialmente.
Por essa razão, limito-me a observar que as listas não são um mecanismo
inusitado de memória.
Deixo de lado, então, as da UNESCO, que perfazem 90 ‘obras-primas da
humanidade’, e a do governo brasileiro, que contém 7 ‘bens culturais inscritos
nos Livros do Patrimônio Imaterial’. Destaquei propositadamente, ao
exemplificar as listas da UNESCO, alguns itens relacionados com música e
dança que são sempre potenciais candidatas à inclusão na série de formas de
expressão merecedoras de proteção contra as forças de homogeneização.9
Quero voltar-me agora para o fato de que as listas são freqüentes na própria
música popular. Embora não sejam da mesma natureza, compartilham com
as outras algumas propriedades, afastam-se delas sob vários aspectos.
Vejamos um exemplo. Lembrarei inicialmente os versos de uma moda do Sr.
Joaquim Crisóstomo, de São João d’Aliança (Goiás), gravada em 1998. Eles
dizem: 1
1
Disco Sertão ponteado. Memórias musicais do Entorno do DF. Viola Correa, 1998.
5
Um dia lá em casa, oi, ai
Quando eu ouvi chamar, oi, ai
Eu saí para atender
Era o meu primo Demar
Foi chegando, foi entrando
E falando de uma vez
Vim aqui para saudar
A folia de Santos Reis
Nesta hora eu me lembrei
De tudo que já passou
Me alembrei de tanta gente
Que pro céu Deus já levou
Me alembrei de Zé di Telo
E do caixeiro Fulô
Vendo as moda de Domingo
Só a saudade ficou
A Folia de Santos Reis
Vovô Aprício criou
Me alembro Padrim Gregório
A festa continuou
Me alembro Padrim Euzébio
Que era o seu irmão
De Abelar e Zé Antônio
Só deixou recordação
O canto é uma homenagem aos foliões falecidos, parentes e amigos do autor
da moda, o Sr. Joaquim. O canto tem um jeito de lamento, acentuado pelos
versos que terminam em ‘oooi, aaai’ ; o pessoal que dança responde aos versos
com sapateados e palmas, vigorosos mas muito sérios. No final das seis
estrofes transcritas acima, surge o recortado, uma espécie de coda, geralmente
com texto jocoso. O recortado do Sr. Joaquim, porém, nada tem de alegre – ele
quer esquecer, mas lembra.
A folia de Santos Reis
Não esqueço nunca mais
De tanta gente boa
Que nela não gira mais
Ai, ai, a saudade faz doer
Ai, ai, neste peito machucado
Coração está cansado
Não consegue esquecer.
Ouçamos agora “Paratodos” que Chico Buarque compôs e gravou em 1992:
2
Disco Paratodos. Chico Buarque. RCA e BMG Ariola Discos. V 120.046.
2
6
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinícius
Beba Nelson Cavaquinho
Foi Antonio Brasileiro
Quem soprou esta toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minha jornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas
Para um coração mesquinho
Contra a solidão agreste
Luiz Gonzaga é tiro certo
Pixinguinha é inconteste
Tome Noel, Cartola, Orestes
Caetano e João Gilberto
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia , crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro
Viva Erasmo, Ben, Roberto
Gil e Hermeto, palmas para
Todos os instrumentistas
Salve Edu, Bituca, Nara
Gal, Bethânia, Rita, Clara
Evoé, jovens à vista
Vinte e cinco nomes célebres da música popular compõem a lista de Chico,
que abrange pessoas mortas e vivas. Podemos aumentar a cifra, pois a ‘Rita’
citada pode ser ‘Lee’, mas pode ser ‘Maria Rita’. Edu é com certeza o ‘Lobo’,
parceiro de Chico, mas poderia ser o ‘da Gaita’.
Nas duas canções, os autores nomeiam os indivíduos que protagonizaram
momentos memoráveis de seus respectivos universos sociais. Ambas as
canções são inscrições de uma memória coletiva, como são as árvores
genealógicas, as galerias de retratos dos líderes políticos e outras formas de
listagens.
A primeira lista restringe-se à turma dos foliões de São João d’Aliança: ela
exemplifica um memorialismo local que nos toca indiretamente, na medida em
que
compartilhamos com o sujeito da canção a prática periódica de
rememoração dos mortos. Mas os homens concretos que ele homenageia,
como Vovô Aprício, Padrinho Gregório e Padrinho Euzébio são, para nós,
apenas nomes próprios.
Não é o caso dos nomes citados em “Paratodos”. Nessa canção desfilam os
membros da linhagem simbólica de Chico Buarque (que inclui seus ancestrais
e seus contemporâneos na música popular). Todos são reconhecidos por um
número grande de pessoas, que considera Chico Buarque como membro da
linhagem da MPB. A memória assume aqui uma outra escala: já não estamos
no perímetro de um grupo de familiares e vizinhos, e sim no circuito da
música distribuída comercialmente pela mídia de alcance nacional e
internacional.
Apesar disso, ainda é o vínculo familiar que fornece o modelo das relações
entre o cantor e os personagens rememorados. A primeira estrofe de
“Paratodos” menciona as quatro gerações antecessoras do ‘ego’ da canção e
7
conclui evocando o “maestro soberano”. Cruzam-se, assim, os parentescos
consangüíneo e simbólico: “o meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o
meu bisavô mineiro, meu tataravô baiano, meu maestro soberano foi Antônio
Brasileiro”.
A canção eleva à escala da nação referências particularizadas. Os
antepassados paulistas, baianos e
pernambucanos sintetizam-se
magicamente no Brasileiro: a música popular é “para todos”.
Uma outra lista, de Paulinho da Viola (em “Beba do samba”), parece ser uma
alternativa à de Chico Buarque:
Beba do samba (bis)
Beba da chama também
Chama que o samba semeia
A luz de sua chama
A paixão vertendo ondas
Velhos mantras de Aruanda
Chama por Cartola
Chama por Candeia
Chama Paulo da Portela, chama
Ventura,
João
da
Gente
Claudionor
Chama por Mano Heitor
Chama Ismael, Noel e Sinhô
Chama Pixinguinha, chama
Donga e João da Baiana
Chama por Nonô
Chama Ciro Monteiro
,
Wilson e Geraldo Pereira
Monsueto,
Zé
com
Fome
e
Padeirinho
Chama Nelson Cavaquinho
Chama Ataulfo, chama por Bide e
Marçal
Chama, chama, chama
Bucy, Raul e Arnô Canegal
Chama por Mestre Marçal
Silas, Osório e Aniceto
Chama Mano Décio
Chama meu compadre Mauro
Duarte
Jorge e Geraldo Babão
Chama Alvaiade, Manacéia e Chico
Santana
E outros irmãos de samba
Chama, chama, chama
“Beba do samba” foi feito em feitio de oração, ou de “mantra de Aruanda”. O
imperativo “chama” , à força de ser reiterado, desprende-se do contexto
gramatical da oração. É também da chama acesa do samba que o cantor fala.
A lista de Paulinho tem 37 nomes, dos quais somente quatro integraram
também a lista de Chico Buarque. São eles: Pixinguinha (que “é inconteste”,
como diz a canção), Noel Rosa, Cartola e Nelson Cavaquinho. Mais uma vez, as
relações entre o cantor e seus homenageados são modeladas pelo vínculo de
parentesco, consangüíneo ou fictício: “Chama meu compadre Mauro Duarte
[...] e outros irmãos de samba”.
Por que falar dessas listas? Num momento em que se institui a figura jurídica
do ‘patrimônio imaterial’ , em que listas despontam nas ações de política
cultural e como ações de política cultural governamental, é útil lembrar que os
grupos sociais cultivam suas memórias de várias maneiras, proclamam seus
heróis e usam a própria música como ‘livro’ de registro.
8
Aliás, as homenagens aos mestres têm foro de ação oficial nos países que
instituíram os Tesouros Humanos Vivos, categoria que a UNESCO adotou
também, inspirada no Japão. Oficializa-se, por essa via, a premiação de
indivíduos que detêm uma sabedoria que corre o risco de se extinguir com sua
morte. Um objetivo explícito do programa é estimular os jovens a se tornarem
aprendizes desses mestres raros: não é o que fazem também as canções que
ouvimos?10
A resposta é positiva, mas não quero concluir que são irrelevantes as políticas
conduzidas seja por governos , seja pela UNESCO. Como falei no início, desejo
propor que se pense no poder dessas listas. Constatamos, em primeiro lugar,
que múltiplas listagens emanam de lugares sociais variados. Seus produtores
estão apoiados em quadros institucionais igualmente variados, que os
investem do direito de apontar suas respectivas seleções de pessoas ou
saberes.
Por outro lado, a leitura das relações de obras-primas da UNESCO causa,
inevitavelmente, certa perplexidade, um espanto que as canções não são
capazes de provocar no ouvinte. Isso se deve à mudança da escala em que
operam as instituições extralingüísticas em pauta – a folia, a MPB, o mundo
do samba, o IPHAN, a UNESCO – e à relação que seus agentes mantêm com as
coisas listadas. A UNESCO, operando no nível abstrato da humanidade, por
melhor que justifique cada uma das escolhas não consegue dissipar a
sensação de arbitrariedade das proclamações.
As listas elaboradas por indivíduos (Joaquim Crisóstomo, Paulinho da Viola,
Chico Buarque) têm o poder de assimilá-los aos heróis e antepassados
nomeados, portanto de afirmar sua condição de membros da linhagem. Aqui,
os efeitos são de mão dupla: há transferência recíproca de valor entre os
citados e o cantor.
Essa é uma diferença crucial entre as canções e as listas do IPHAN e da
UNESCO, cujos agentes não se identificam nem são assimilados às coisas
sociais que escolhem. A distância entre o júri da UNESCO e as práticas
culturais que eles elegem a cada proclamação permanece gigantesca.
Todas as listas são discutíveis, sob certo ponto de vista, e isso se aplica,
naturalmente, à minha própria lista de listas. Seus critérios de seleção sempre
podem ser objeto de disputas. Para encerrar, comento um detalhe nas canções
de Chico Buarque e Paulinho da Viola: os dois reconhecem o poder inebriante
do contato com os heróis; ambos nos aconselham a nos banharmos nos efeitos
terapêuticos desse contato: “beba do samba”, “fume Ari, cheire Vinícius”. Em
termos mais austeros, o conselho pode ser lido num artigo do Diretor-Adjunto
da Divisão de Patrimônio Cultural da UNESCO:
“A literatura oral, os conhecimentos tradicionais, os saberes, os
sistemas de valores, as artes de representação e as línguas constituem
estas diversas formas de expressão que são as fontes fundamentais da
identidade cultural dos povos. Preservá-las constitui um dos meios
suscetíveis de conter o risco crescente de empobrecimento cultural
decorrente da revolução tecnológica nas áreas da informação e da
comunicação[...] é a diversidade que deve ser salva, não o conteúdo
histórico que cada época lhe conferiu”. 11
9
Preservando as fontes da identidade cultural dos povos, asseguramos o nível
mínimo de diversidade sem o qual os membros da humanidade correm risco
de desumanização.
Cito a lista extraída do site da UNESCO em 15 de abril de 2006: “Belize supported
by Honduras and Nicaragua - The Garifuna Language, Dance and Music; Benin
supported by Nigeria and Togo - The Oral Heritage of Gelede; Bolivia - The Oruro
Carnival; China - Kunqu Opera ; Côte d’Ivoire - The Gbofe of Afounkaha: the music of
the Transverse Horns of the Tagbana Community; Dominican Republic - The Cultural
Space of the Brotherhood of the Holy Spirit of the Congos of Villa Mella ; Georgia Georgian Polyphonic Singing ; Guinea - The Cultural Space of Sosso-Bala in
Nyagassola ; India - Kutiyattam, Sanskrit Theatre ; Italy - Opera dei Pupi, Sicilian
Puppet Theatre ; Japan - Nôgaku Theatre ; Korea (Republic of) - Royal Ancestral Rite
and Ritual Music in Jogmyo Shrine ; Lithuania supported by Latvia - Cross Crafting
and its Symbolism in Lithuania ; Morocco - The Cultural Space of Jemaa el-Fna
Square ; Philippines - Hudhud Chants of the Ifugao ; Russian Federation - The
Cultural Space and Oral Culture of the Semeiskie ; Spain - The Mystery Play of Elche;
Uzbekistan - The Cultural Space of the Boysun District; Multinational - Ecuador-Peru
- The Oral Heritage and Cultural Manifestations of the Zápara People”
(http://www.unesco.org/culture/intangible-heritage/masterpiece ).
1
O texto original, extraído do site da Unesco, diz: “On 18 May 2001, UNESCO's
Director-General proclaimed the first 19 Masterpieces of the Oral and Intangible
Heritage of Humanity. Selected by an international jury of 18 members, they were
chosen for their outstanding value. This first proclamation highlighted the value of the
intangible cultural heritage and underlined its vulnerability, particularly in the face of
globalization, and the urgency of taking action for its safeguarding. In creating an
international distinction for the intangible cultural heritage, UNESCO drew the
international community's attention to the importance of giving recognition to this
heritage, which is essential to the preservation of the identity and cultural diversity of
peoples. With their exceptional value from an artistic, historical and anthropological
point of view, the 19 cultural spaces and forms of popular and traditional expression
proclaimed, represent as many different testimonies to the richness and diversity of
the intangible cultural heritage throughout the world: 4 in Africa, 7 in Asia, 4 in
Europe
and
4
in
Latin
America
and
the
Caribbean”.
(http://www.unesco.org/culture/intangible-heritage/masterpiece ).
2
Azerbaijan – Azerbaijani Mugham; Belgium – The Carnival of Binche; Bolivia – The
Andean Cosmovision of the Kallawaya; Brazil – The Oral and Graphic expressions of
the Wajapi; Cambodia – The Royal Ballet of Cambodia; Central African Republic – The
Oral Traditions of the Aka Pygmies of Central Africa; China – The Art of Guqin Music;
Colombia – The Carnival of Barranquilla; Cuba - La Tumba Francesa; Egypt – The AlSirah Al-Hilaliyyah Epic; Estonia – The Kihnu Cultural Space ; India – The tradition of
Vedic Chanting; Indonesia – Wayang Puppet Theatre; Iraq – Iraqi Maqam; Jamaica –
The Maroon Heritage of Moore Town; Japan – Ningyo Johruri Bunraku Puppet
Theatre; Korea (Republic of) The Pansori Epic Chant; Kyrgyzstan – The Art of Akyns,
Kyrgyz Epic Tellers; Madagascar – Woodcrafting Knowledge of the Zafimaniry; Mexico –
The Indigenous Festivity Dedicated to the Dead; Mongolia – The Traditional Music of
Morin Khuur; Tonga – Lakalaka, Dances and Sung Speeches; Turkey – The Art of the
Meddah, Public Storytellers; Vanuatu – Vanuatu Sand Drawings; Vietnam – le
Nhanhac, Vietnamese Court Music; Yemen – Song of Sanaa; Multinational – Estonia,
Latvia and Lithuania – The Baltic Songs and Dance Celebrations; Tajikistan and
Uzbekistan Shashmaqom Music” . (http://www.unesco.org/culture/intangibleheritage/masterpiece ).
3
10
4 Albanian Folk iso-polyphony (Albania); The Ahellil of Gourara (Algeria); Duduk
Music (Armenia); Baul Songs (Bangladesh); Processional Giants and Dragons in
Belgium and France (Belgium-France); The Mask Dance of the Drums from Drametse
(Bhutan); The Samba of Roda of the Recôncavo of Bahia (Brazil); The Bistritsa Babi –
Archaic Polyphony, Dances and Ritual Practices from the Shoplouk Region (Bulgaria);
Sbek Thom, Khmer Shadow Theatre (Cambodia); The Art of Uyghur Muqam of
Xinjiang (China); The Cultural Space of Palenque de San Basilio (Colombia);
Oxherding and Oxcart Tradition in Costa Rica (Costa Rica); Slovácký Verbuňk, Dance
of Recruits (Czech Republic); Cocolo Dance Drama Tradition (Dominican Republic);
Rabinal Achí, Dance Drama (Guatemala); Ramlila: the Traditional Performance of the
Ramayana (India); Indonesian Keris (Indonesia); The Tenore Song, an expression of the
Sardinian pastoral culture (Italy); Kabuki (Japan); The Cultural Space of the Bedu in
Petra and Wadi Rum (Jordan); Vimbuza Healing Dance (Malawi); Gule Wamkulu
(Malawi-Mozambique-Zambia); Mak Yong Theatre (Malaysia); The Cultural Space of
the yaaral et degal (Mali); Urtiin Duu: Traditional Folk Long Song (Mongolia-China);
The Moussem of Tan-Tan (Morocco); Chopi Timbila (Mozambique); El Güegüense
(Nicaragua);
Ifa Divination System in Nigeria (Nigeria); The Palestinian Hikaye
(Palestine); Taquile and its Textile Art (Peru); Darangen Epic of the Maranao People of
Lake Lanao (Philippines); Gangneung Danoje Festival (Republic of Korea); The Căluş
Tradition (Romania); Olonkho, Yakut Heroic Epos (Russian Federation); The
Kankurang, or Manding Initiatory Rite (Senegal-Gambia); Fujara: Musical Instrument
and its Music (Slovakia); The Patum of Berga (Spain); The Mevlevi Sema Ceremony
(Turkey); Bark Cloth Making in Uganda (Uganda); The Space of Gong Culture
(Vietnam); The Makishi Masquerade (Zambia); Mbende, Jerusarema Dance
(Zimbabwe)” (http://www.unesco.org/culture/intangible-heritage/mastlist_en.htm. Acesso em 15 de
abril de 2006) .
5 V. Letícia Vianna. “Dinâmica e preservação das culturas populares: experiências de
políticas no Brasil”, Revista Tempo Brasileiro, 147, Rio de Janeiro, 2001, p. 93-100.
6 Barbara Kirshenblatt-Gimblett. “El patrimônio inmaterial como producción
metacultural”, Museum International, 221/222. UNESCO. Tradução minha.
7 V. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1ª
ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p. 1141.
8 Searle, John. Expressão e significado: estudos da teoria dos atos da fala. Rio de
Janeiro: Martins Fontes, 1995, p. 10.
9 Diz o Diretor-Adjunto da Divisão de Patrimônio Cultural da UNESCO: “O Patrimônio
Imaterial engloba [...] uma infinidade de manifestações portadoras de valores
profundos da vida de uma população ou de uma comunidade. A literatura oral, os
conhecimentos tradicionais, os saberes, os sistemas de valores, as artes de
representação e as línguas constituem essas diversas formas de expressão que são as
fontes fundamentais da identidade cultural dos povos. Preservá-las constitui um dos
meios suscetíveis de conter o risco crescente de empobrecimento cultural decorrente
da revolução tecnológica nas áreas da informação e da comunicação” ( Laurent LeviStrauss. “Patrimônio Imaterial e diversidade cultural: o novo decreto para a proteção
dos bens imateriais”, Revista Tempo Brasileiro, 147, Rio de Janeiro, 2001, p. 23-27).
.
10 Os objetivos do programa são: “1) The perpetuation and development of their
knowledge and skills; 2) The transmission of their knowledge and skills to the younger
generations through efficient training programmes; 3) Contributing to the
documenting and recording of the intangible cultural heritage concerned (video or
audio recording, publications, etc.); 4) Dissemination of their knowledge and skills
through exhibitions, demonstrations, etc.; 5) Any additional duties as stipulated by
Member States. The system should also encourage younger people to learn and
acquire the knowledge and skills required for the enactment or creation of specific
11
elements of the intangible cultural heritage by providing them with recognition and
support, and national or international recognition. In nominating a person or a group
to the rank of "Living Human Treasure", the Commission should consider the following
criteria: the excellence in the application of the knowledge and skills displayed; the
dedication of the person or group; the ability of the person or group to further develop
his knowledge and skills; the ability of the person or group to pass on the knowledge
and skills to trainees”. (Guidelines for the Establishment of National “Living Human
Treasures” Systems. Extraído de http://portal.unesco.org/culture em 15 de abril de
2006).
Laurent Levi-Strauss. “Patrimônio Imaterial e diversidade cultural: o novo decreto
para a proteção dos bens imateriais”, Revista Tempo Brasileiro, 147, Rio de Janeiro,
2001, p. 23-27.
11