Fundamentação da Metafísica dos Costumes

Transcrição

Fundamentação da Metafísica dos Costumes
IMMANUEL KANT
Fundamentação
da Metafísica
dos Costumes
70
TEXTOS FILOSÓFICOS
1
2
Pôr o leitor directamente em contacto
com textos marcantes da história da filosofia
— através de traduções feitas
a partir dos respectivos originais,
por tradutores responsáveis,
acompanhadas de introduções
e notas explicativas —
foi o ponto de partida
para esta colecção.
O seu âmbito estender-se-á
a todas as épocas e a todos os tipos
e estilos de filosofia,
procurando incluir os textos
mais significativos do pensamento filosófico
na sua multiplicidade e riqueza.
Será assim um reflexo da vibratilidade
do espírito filosófico perante o seu tempo,
perante a ciência
e o problema do homem
e do mundo.
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Textos filosóficos
Director da Colecção: Artur Morão
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Crítica da Razão Prática, Immanuel Kant
Investigação sobre o Entendimento Humano, David Hume
Crepúsculo dos ídolos, Friedrich Nietzsche
Discurso de Metafísica, Gottfricd Wilhelm Leibniz
Os Processos da Metafísica, Immanuel Kant
Regras para a Direcção do Espirito, René Descartes
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant
A Ideia da Fenomenologia, Edmund Husserl
Discurso do Método, René Descartes
Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor, Sören Kierkegaard
A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos, Friedrich Nietzsche
Carta sobre a Tolerância. John Locke
Prolegômenos a Toda a Metafísica Futura, Immanuel Kant
Tratado da Reforma do Entendimento, Bento de Espinosa
Simbolismo: Seu Significado e Efeito, Alfred North Whitehead
Ensaio Sobre os Dados /mediatos da Consciência, Henri Bergson
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epitome (vol. I), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Immanuel Kant
Diálogo sobre a Felicidade, Santo Agostinho
Princípios da Filosofa do Futuro, Ludwig Feuerbach
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epitome (vol. //) Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Manuscritos Económicos-Filosóficos, Karl Marx
Propedêutica Filosófica, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
O Anticristo, Friedrich Nietzsche
Discurso sobre a Dignidade do Homem, Giovanni Pico della Mirandola
Ecce Homo, Friedrich Nietzsche
O Materialismo Racional, Gaston Bachelard
Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, Friedrich Nietzsche
Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filosofo Chinês, Nicolas Malebranche
O Sistema da Vida Ética, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Introdução à História da Filosofia, Georg Wilhelm Friedrich Hegel
As Conferências de Paris, Edmund Husserl
Teoria das Concepções do Mundo, Wilhelm Dilthey
A Religião nos Limites da Simples Razão, Immanuel Kant
Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epitome (vol III), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Investigações Filosóficas Sobre a Essência da Liberdade Humana, F.W.J. Schelling
O Conflito das Faculdades, Immanuel Kant
Morte e Sobrevivência, Max Scheler
A Razão na História, Georg Whilhelm Friedrich Hegel
O Novo Espírito Científico, Gaston Bachelard
Sobre a Metafísica do Ser no Tempo, Henrique de Gand
Princípios da Filosofa, René Descartes
Tratado do Primeiro Princípio, João Duns Escoto
Ensaio sobre a Verdadeira Origem, Extensão e Fim do Governo Civil, John Locke
A Unidade do Intelecto contra os Averroístas, São Tomás de Aquino
A Guerra e Queixa da Paz, Erasmo de Roterdão
Lições sobre a Vocação do Sábio, Johann Gottlieb Fichte
Dos Deveres (De Officiis), Cícero
Da Alma (De Anima), Aristóteles
A Evolução Criadora, Henri Bergson
Psicologia e Compreensão, Wilhelm Dilthey
Deus e a Filosofa, Étienne Gilson
Metafísica dos Costumes. Parte I, Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, Immanuel Kant
Metafísica dos Costumes. Parte //, Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude, Immanuel Kant
Leis. Vol. I, Platão
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Immanuel Kant
Fundamentação
da Metafísica
dos Costumes
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Título original: Grundlegung zur Metaphysic der Sitten
© desta tradução Edições 70, Lda.
Tradução: Paulo Quintela
Capa: FBA
Depósito Legal n° 264507/07
Impressão, paginação e acabamento:
CASAGRAF
para
EDIÇÕES 70, LDA.
Setembro de 2007
ISBN: 978-972-44-1439-3 ISBN da 1ª edição: 972-44-0306-8
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Immanuel Kant
Fundamentação
da Metafísica
dos Costumes
TRADUZIDA DO ALEMÃO POR
PAULO QUINTELA
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RECONHECIMENTO
A colecção «Textos Filosóficos» fica deveras enriquecida
com a introdução, entre os seus títulos, da Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, na versão do Prof. Dr. Paulo Quintela,
versão que se tornou já um bem comum nosso pela sua qualidade
nunca desmentida, pela confiança que inspira e deve inspirar ao
leitor que se embrenha por este clássico texto kantiano e se
entrega à sua fruição filosófica.
Aqui fica expresso ao ilustre germanista o nosso reconhecimento por tão prontamente ter acedido ao nosso desejo de
publicar este texto já esgotado e sempre objecto de incessante
procura pelo público estudioso.
O Editor
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NOTA PRÉVIA DO TRADUTOR
A presente versão portuguesa da Grundlegung zur
Metaphysik der Sitten de Immanuel Kant foi feita sobre o texto da
edição de Immanuel Kants Werke preparada por Artur Buchenau
e Ernst Cassirer e publicada pela casa de Bruno Cassirer,
Berlim, 1922, vol. IV, págs. 241-324. É a reprodução da segunda
edição, de Riga, 1786.
Ao rever a nossa tradução, demo-nos ao trabalho de a
confrontar com as francesas de Victor Delbos (Kant, Fondements de
la Métaphysique des Moeurs, Paris, 1934) e de H. Lachelier (E.
Kant, Fondements de la Métaphysique des Moeurs, 6.3 edição,
Paris, Hachette) e com a espanhola de Manuel G. Morente (M.
Kant, Fundamentación de la metafísica de las costumbres,
Madrid, 1942). Nos passos de interpretação difícil ou duvidosa,
tivemos o cuidado de indicar, em notas assinadas P.Q., o
resultado da colação. O leitor terá assim a possibilidade de
preferir à nossa qualquer das outras interpretações.
Coimbra, Agosto de 1948.
PAULO QUINTELA
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Imprime-se finalmente a tradução feita há quase doze anos
por incumbência do Prof. Joaquim de Carvalho que
repetidamente anunciou a sua inclusão nesta colecção por ele
lançada e dirigida. Deveria sair com prefácio e notas de sua
autoria. Como nada, porém, parece ter-se achado no seu espólio
para este propósito, houve-se por bem publicá-la agora, na
certeza de que o texto, sem mais, cumprirá a sua obrigação
perante o público interessado de língua portuguesa.
Coimbra, Março de 1960.
P.Q.
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// PREFÁCIO
A velha filosofia grega dividia-se em três ciências: a Física,
a Ética e a Lógica. Esta divisão está perfeitamente conforme com
a natureza das coisas, e nada há a corrigir nela a não ser apenas
acrescentar o princípio em que se baseia, para deste modo, por
um lado, nos assegurarmos da sua perfeição, e, por outro,
podermos determinar exactamente as necessárias subdivisões.
Todo conhecimento racional é: ou material e considera
qualquer objecto, ou formal e ocupa-se apenas da forma do
entendimento e da razão em si mesmas e das regras universais do
pensar em geral, sem distinção dos objectos. A filosofia formal
chama-se Lógica; a material porém, // que se ocupa de
determinados objectos e das leis a que eles estão submetidos, é
por sua vez dupla, pois que estas leis ou são leis da natureza ou
leis da liberdade. A ciência da primeira chama-se Física, a da
outra é a Ética; aquela chama-se também Teoria da Natureza,
esta Teoria dos Costumes.
A Lógica não pode ter parte empírica, isto é parte em que as
leis universais e necessárias do pensar assentassem em
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// BA III, IV
13
princípios tirados da experiência, pois que então não seria
Lógica, isto é um cânone para o entendimento ou para a razão
que é válido para todo o pensar e que tem de ser demonstrado.
Em contraposição, tanto a Filosofia natural como a Filosofia
moral podem cada uma ter a sua parte empírica, porque aquela
tem de determinar as leis da natureza como objecto da experiência,
esta porém as da vontade do homem enquanto ela é afectada pela
natureza; quer dizer, as primeiras como leis segundo as quais tudo
acontece, as // segundas como leis segundo as quais tudo deve
acontecer, mas ponderando também as condições sob as quais
muitas vezes não acontece o que devia acontecer.
Pode-se chamar empírica a toda a filosofia que se baseie em
princípios da experiência, àquela porém cujas doutrinas se
apoiam em princípios a priori chama-se filosofia pura. Esta
última, quando é simplesmente formal, chama-se Lógica; mas
quando se limita a determinados objectos do entendimento
chama-se Metafísica.
Desta maneira surge a ideia duma dupla metafísica, uma
Metafísica da Natureza e uma Metafísica dos Costumes. A Física
terá portanto a sua parte empírica, mas também uma parte
racional; igualmente a Ética, se bem que nesta a parte empírica
se poderia chamar especialmente Antropologia prática, enquanto
a racional seria a Moral propriamente dita.
Todas as indústrias, ofícios e artes ganharam pela divisão
do trabalho, // com a experiência de que não é um só homem que
faz tudo, limitando-se cada um a certo trabalho, que pela sua
técnica se distingue de outros, para o poder fazer com a maior
perfeição e com mais facilidade. Onde o trabalho não está assim
diferenciado e repartido, onde cada qual é homem de mil ofícios,
reina ainda nas indústrias a maior das barbarias. Mas, em face
deste objecto que em si não parece indigno de ponderação,
perguntar-se-á se a filosofia pura,
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// BA V, VI
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em todas as suas partes, não exige um homem especial; e se não seria
mais satisfatório o estado total da indústria da ciência se aqueles que
estão habituados a vender o empírico misturado com o racional,
conforme o gosto do público, em proporções desconhecidas deles
mesmos, que a si próprios se chamam pensadores independentes e
chamam sonhadores a outros que apenas preparam a parte racional,
fossem advertidos de não exercerem ao mesmo tempo dois ofícios tão
diferentes nas suas técnicas, para cada um dos quais se exige talvez
um talento especial // e cuja reunião numa só pessoa produz apenas
remendões. Mas aqui limito-me a perguntar se a natureza da ciência
não exige que se distinga sempre cuidadosamente a parte empírica da
parte racional e que se anteponha à Física propriamente dita
(empírica) uma Metafísica da Natureza, e a Antropologia prática uma
Metafísica dos Costumes, que deveria ser cuidadosamente depurada
de todos os elementos empíricos, para se chegar a saber de quanto é
capaz em ambos os casos a razão pura e de que fontes ela própria tira
o seu ensino a priori. Esta última tarefa poderia, aliás, ser levada a
cabo por todos os moralistas (cujo nome é legião), ou só por alguns
deles que se sentissem com vocação para isso.
Não tendo propriamente em vista por agora senão a filosofia
moral, restrinjo a questão posta ao ponto seguinte: — Não é verdade
que é da mais extrema necessidade elaborar um dia uma pura
Filosofia Moral que seja completamente depurada de tudo o que
possa ser // somente empírico e pertença a Antropologia? Que tenha
de haver uma tal filosofia, ressalta com evidência da ideia comum do
dever e das leis morais. Toda a gente tem de confessar que uma lei
que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento duma
obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o
mandamento: «não deves mentir», não é válido somente para os
homens e que outros seres racionais se não teriam que importar com
ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por conseguinte, o princípio da obrigação não se há-de buscar aqui
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// BA VII, VIII
15
na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o
homem está posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da
razão pura, e que qualquer outro preceito baseado em princípios da
simples experiência, e mesmo um preceito em certa medida
universal, se ele se apoiar em princípios empíricos, num mínimo
que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se na
verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral.
// As leis morais com seus princípios, em todo conhecimento
prático, distinguem-se portanto de tudo o mais em que exista
qualquer coisa de empírico, e não só se distinguem essencialmente,
como também toda a Filosofia moral assenta inteiramente na sua
parte pura, e, aplicada ao homem, não recebe um mínimo que seja
do conhecimento do homem (Antropologia), mas fornece-lhe como
ser racional leis a priori. E verdade que estas exigem ainda uma
faculdade de julgar apurada pela experiência, para, por um lado,
distinguir em que caso elas têm aplicação, e, por outro, assegurarlhes entrada na vontade do homem e eficácia na sua prática. O
homem, com efeito, afectado por tantas inclinações, é na verdade
capaz de conceber a ideia de uma razão pura prática, mas não é
tão facilmente dotado da força necessária para a tornar eficaz in
concreto no seu comportamento.
Uma Metafísica dos Costumes, é, pois, indispensavel-mente
necessária, não só por motivos de ordem especulativa para investigar
a fonte dos princípios práticos que residem // a priori na nossa razão,
mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a
sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma
suprema do seu exacto julgamento. Pois que aquilo que deve ser
moralmente bom não basta que seja conforme a lei moral, mas tem
também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrário,
aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta, porque
o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando acções
conformes à lei moral, mas mais vezes ainda acções
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// BA IX, X
16
contrárias a essa lei. Ora a lei moral, na sua pureza e autenticidade
(e é exactamente isto que mais importa na prática), não se deve
buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura, e esta
(Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela não
pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que
mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o
nome de filosofia (pois esta distingue-se do conhecimento racional
comum exactamente por expor em ciência à parte aquilo que este
conhecimento só concebe misturado); merece ainda // muito menos o
nome de Filosofia moral, porque, exactamente por este amálgama de
princípios, vem prejudicar até a pureza dos costumes e age contra a
sua própria finalidade.
Não se vá pensar, porém, que aquilo que aqui pedimos exista já
na propedêutica que o célebre Wolff antepôs a sua Filosofia moral a
que chamou Filosofia prática universal, c que se não haja de entrar
portanto em campo inteiramente novo. Precisamente porque ela devia
ser uma filosofia prática universal, não tomou em consideração
nenhuma vontade de qualquer espécie particular — digamos uma
vontade que fosse determinada completamente por princípios a priori
e sem quaisquer móbiles empíricos, e a que se poderia chamar uma
vontade pura —, mas considerou o querer em geral com todas as
acções e condições que lhe cabem nesta acepção geral, e por aí se
distingue ela de uma Metafísica dos Costumes exactamente como a
Lógica geral se distingue da Filosofia transcendental, // a primeira
das quais expõe as operações e regras do pensar em geral, enquanto
que a segunda expõe somente as operações e regras especiais do
pensar puro, isto é daquele pensar pelo qual os objectos são
conhecidos totalmente a priori. Com efeito, a Metafísica dos Costumes
deve investigar a ideia e os princípios duma possível vontade pura, e
não as acções e condições do querer humano em geral, as quais são
tiradas na maior parte da Psicologia. O facto de na Filosofia prática
universal (sem aliás ter o direito de o fazer) se falar também de leis
__________________________
// BA XI, XII
17
morais e de dever, não constitui objecção alguma ao que eu afirmo.
Porque os autores daquela ciência também nisto continuam fiéis à
ideia que dela fazem; não distinguem os motivos de determinação
que, como tais, se apresentam totalmente a priori só pela razão (1) e
são propriamente morais, dos motivos empíricos, que o
entendimento eleva a conceitos universais só por confronto das
experiências. Consideram-nos, pelo contrário, sem atender à
diferença // das suas fontes, só pela sua maior ou menor soma
(tomando-os a todos como de igual espécief e formam assim o seu
conceito de obrigação; em verdade este conceito não é nada menos
que moral, mas é o único que se pode exigir de uma filosofia que
não atende à origem de todos os conceitos práticos possíveis, sejam
eles a priori ou simplesmente a posteriori.
No propósito, pois, de publicar um dia uma Metafísica dos
Costumes, faço-a preceder desta Fundamentação. Em verdade não
há propriamente nada que lhe possa servir de base além da Crítica
duma razão pura prática, assim como para a Metafísica o é a Crítica
da razão pura especulativa já publicada. Mas, por um lado, aquela
não é como esta de extrema necessidade, porque a razão humana no
campo moral, mesmo no caso do mais vulgar entendimento, pode
ser facilmente levada a um alto grau de justeza e desenvolvimento,
enquanto que, pelo contrário, no uso teórico, mas puro, ela é
exclusivamente // dialéctica; por outro lado, eu exijo, para que a
Crítica de uma razão pura prática possa ser acabada, que se possa
demonstrar simultaneamente a sua unidade com a razão
especulativa num princípio comum; pois no fim de contas trata-se
sempre de uma só e mesma razão, que só na aplicação se deve diferençar. A tal perfeição não podia eu chegar ainda agora, sem
recorrer a considerações de natureza totalmente diversa que
provocariam confusão no. espírito do leitor. Eis por que, em vez
__________________________
(1) Morente (pág. 17) traduz inadvertidamente «sólo por el
entendimiento»; o original diz «bloss durch Vernunft». (P.Q.)
// BA XIII, XIV
18
de lhe chamar Crítica da razão pura prática, eu me sirvo do título de
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1).
Como, porém, em terceiro lugar, uma Metafísica dos
Costumes, a despeito do título repulsivo, é susceptível de um alto
grau de popularidade e acomodamento ao entendimento vulgar,
acho
útil separar dela
este trabalho preparatório
de
fundamentação, para de futuro não ter de juntar a teorias mais
fáceis as subtilezas inevitáveis em tal matéria.
// A presente Fundamentação nada mais é, porém, do que a
busca e fixação do princípio supremo da moralidade, o que constitui
só por si no seu propósito uma tareja completa e bem distinta de
qualquer outra investigação moral. É verdade que as minhas
afirmações sobre esta questão capital tão importante e que até
agora não foi, nem de longe, suficientemente discutida, receberiam
muita clareza pela aplicação do mesmo princípio a todo o sistema e
grande confirmação pelo jacto da suficiência que ele mostraria por
toda a parte; mas tive que renunciar a esta vantagem, que no fundo
seria também mais de amor próprio do que de utilidade geral,
porque a facilidade de aplicação e a aparente suficiência dum
princípio não dão nenhuma prova segura da sua exactidão, pelo
contrário, despertam em nós uma certa parcialidade para o não
examinarmos e ponderarmos em toda a severidade por si mesmo,
sem qualquer consideração pelas consequências.
// O método que adoptei neste escrito é o que creio mais
conveniente, uma vez que se queira percorrer o caminho analiticamente do conhecimento vulgar para a determinação do
princípio supremo desse conhecimento, e em seguida e. em sentido
inverso, sinteticamente, do exame deste princípio e das
__________________________
(1) «Fundamentação», e não «Fundamentos» como geralmente se diz seguindo os
franceses, é que é a boa tradução do alemão «Grundlegung». Fica assim posto em
evidência o esforço demonstrativo e construtivo que o original implica. Morente
também traduz como nós. (P.Q.)
// BA XV, XVI
19
suas fontes para o conhecimento vulgar onde se encontra a sua
aplicação. A divisão da matéria é, pois, a seguinte:
1. Primeira Secção: Transição do conhecimento moral da
razão vulgar para o conhecimento filosófico.
2. Segunda Secção: Transição da filosofia moral popular
para a Metafísica dos costumes.
3. Terceira Secção: Último passo da Metafísica dos costumes
para a Crítica da Razão pura prática.
20
// PRIMEIRA SECÇÃO
TRANSIÇÃO DO CONHECIMENTO MORAL DA RAZÃO
VULGAR PARA O CONHECIMENTO FILOSÓFICO
Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar
que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma
só coisa: uma boa vontade. Discernimento (1), argúcia de espírito
(2), capacidade de julgar (3) e como quer que possam chamar-se os
demais talentos do
__________________________
(1) Verstand no original, parece-me dever ser aqui excepcionalmente
traduzido por «discernimento» e não por «entendimento». Os dois
tradutores franceses propõem «intelligence»; Morente «entendimiento».
(P.Q.)
(2) Witz no original, tem o sentido especial da palavra no alemão do séc.
XVIII. Delbos traduz parafrasticamente: «le don de saisir les ressemblances
des choses»; Lachelier simplesmente «L’esprit»; Morente dá à expressão o
seu sentido actual e traduz «gracejo»! (P.Q.)
(3) Urteilskraft, na paráfrase de Delbos: «la faculté de discerner le
particulier pour en juger». (P.Q.)
// BA 1
21
espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito,
como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos
respeitos coisas boas e desejáveis; mas também podem tornar-se
extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer
uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se
chama carácter, não for boa. O mesmo acontece com os dons da
fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde, e todo o bemestar e contentamento com a sua sorte, sob // o nome de
felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda
em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a
sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir
e lhe dê utilidade geral; isto sem mencionar o facto de que um
espectador razoável e imparcial em face da prosperidade
ininterrupta duma pessoa a quem não adorna nenhum traço duma
pura e boa vontade, nunca poderá sentir satisfação, e assim a boa
vontade parece constituir a condição indispensável do próprio
facto de sermos dignos da felicidade.
Algumas qualidades são mesmo favoráveis a esta boa
vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas não têm todavia
nenhum valor íntimo absoluto, pelo contrário pressupõem ainda e
sempre uma boa vontade, a qual restringe a alta estima que, aliás
com razão, por elas se nutre, e não permite que as consideremos
absolutamente boas. Moderação nas emoções e paixões,
autodomínio e calma reflexão são não somente boas a muitos
respeitos, mas parecem constituir até parte do valor íntimo da
pessoa; mas falta ainda muito para as podermos declarar boas sem
reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente).
Com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas
tornar-se muitíssimo más, e o sangue--frio dum facínora não só //
o torna muito mais perigoso como o faz também imediatamente
mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem
isso.
__________________________
// BA 2, 3
22
A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza,
pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tãosomente pelo querer, isto é em si mesma, e, considerada em si
mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o
que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer
inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.
Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo
apetrechamento avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente
a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenções,
mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos seus maiores
esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata
aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios
de que as nossas forças disponham), ela ficaria brilhando por si
mesma como um jóia, como alguma coisa que em si mesma tem o
seu pleno valor. A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar
ou tirar a este valor. A utilidade (1) seria apenas como que o engaste
para essa jóia poder ser manejada mais facilmente na circulação
corrente ou para atrair sobre ela a atenção daqueles que não são
ainda bastante conhecedores, mas não // para a recomendar aos
conhecedores e determinar o seu valor.
Há contudo nesta ideia do valor absoluto da simples vontade,
sem entrar em linha de conta para a sua avaliação com qualquer
utihdade, algo de tão estranho que, a despeito mesmo de toda a
concordância da razão vulgar com ela, pode surgir a suspeita de que
no fundo haja talvez oculta apenas uma quimera aérea e que a
natureza tenha sido mal compreendida na sua intenção ao dar-nos a
razão
__________________________
(1) É evidente que o pronome singular que Kant emprega se refere a «utilidade».
Morente (pág. 23), traduzindo no plural, refere-o a «utilidade» e «inutilidade», o que
não faz sentido. (P.Q.)
// BA 4
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por governante da nossa vontade. Vamos por isso, deste ponto
de vista, pôr à prova esta ideia.
Quando consideramos as disposições naturais dum ser
organizado, isto é, dum ser constituído em ordem a um fim que é
a vida, aceitamos como princípio que nele se não encontra
nenhum órgão que não seja o mais conveniente e adequado à
finalidade a que se destina. Ora, se num ser dotado de razão e
vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a sua
conservação, o seu bem-estar, numa palavra a sua felicidade,
muito mal teria ela tomado as suas disposições ao escolher a
razão da criatura para executora destas suas intenções. Pois todas
as acções que esse ser tem de realizar nesse // propósito, bem
como toda a regra do seu comportamento, lhe seriam indicadas
com muito maior exactidão pelo instinto, e aquela finalidade
obteria por meio dele muito maior segurança do que pela razão; e
se, ainda por cima, essa razão tivesse sido atribuída à criatura
como um favor, ela só lhe poderia ter servido para se entregar a
considerações sobre a feliz disposição da sua natureza, para a
admirar, alegrar-se com ela e mostrar-se por ela agradecida à
Causa benfazeja, mas não para submeter à sua direcção fraca e
enganadora a sua faculdade de desejar, achavascando assim a
intenção da natureza; numa palavra, a natureza teria evitado que a
razão caísse no uso prático e se atrevesse a engendrar com as
suas fracas luzes o plano da felicidade e dos meios de a alcançar;
a natureza teria não-somente chamado a si a escolha dos fins, mas
também a dos meios, e teria com sábia prudência confiado ambas
as coisas simplesmente ao instinto.
Observamos de facto que, quanto mais uma razão cultivada
se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem
se afasta do verdadeiro contentamento; e daí provém que em
muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no
uso da razão, se elas quiserem ter
__________________________
// BA 5
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a sinceridade de o // confessar, surja um certo grau de misologia,
quer dizer de ódio à razão. E isto porque, uma vez feito o balanço de
todas as vantagens que elas tiram, não digo já da invenção de todas
as artes do luxo vulgar, mas ainda das ciências (que a elas lhes
parecem no fim e ao cabo serem também um luxo do entendimento),
descobrem contudo que mais se sobrecarregaram de fadigas do que
ganharam em felicidade, e que por isso finalmente invejam mais do
que desprezam os homens de condição inferior que estão mais
próximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande
influência sobre o que fazem ou deixam de fazer. E até aqui temos de
confessar que o juízo daqueles que diminuem e mesmo reduzem a
menos de zero os louvores pomposos das vantagens que a razão nos
teria trazido no tocante à felicidade e ao contentamento da vida, não
é de forma alguma mal-humorado ou ingrato para com a vontade do
governo do mundo, mas que na base de juízos desta ordem está
oculta a ideia de uma outra e mais. digna intenção da existência, à
qual, e não à felicidade, a razão muito especialmente se destina, e à
qual por isso, como condição suprema, se deve subordinar em
grandíssima parte a intenção privada do homem. Portanto, se a razão
não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que
respeita aos seus objectos // e à satisfação de todas as nossas
necessidades (que ela mesma — a razão — em parte multiplica),
visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a
este fim, e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade
prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a
vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma
vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma
vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente
necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto
na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade não será na
verdade o único bem nem o bem total, mas
__________________________
// BA 6, 7
25
terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais,
mesmo de toda a aspiração de felicidade. E neste caso é fácil de
conciliar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos
que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e
incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos
nesta vida, a consecução da segunda que é sempre condicionada,
quer dizer da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de
nada (1), sem que com isto a natureza falte à sua finalidade,
porque a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na
fundação duma boa vontade, ao alcançar esta intenção é capaz
duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a que
pode achar ao atingir um fim que só ela (a razão) // determina,
ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins
da inclinação.
Para desenvolver, porém, ó conceito de uma boa vontade
altamente estimável em si mesma e sem qualquer intenção
ulterior, conceito que reside já no bom senso natural (2) e que
mais precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que
está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas
acções e que constitui a condição de todo o resto, vamos encarar
o conceito do Dever que contém em si o de boa vontade, posto
que sob certas limitações e obstáculos subjectivos, limitações e
obstáculos esses que, muito longe de ocultarem e tornarem
irreconhecível a boa vontade, a fazem antes ressaltar por
contraste e brilhar com luz mais clara.
__________________________
(1) Morente (pág. 26) não traduz esta oração. (P.Q.).
(2) Parece-nos ser esta a melhor tradução a propor para a expressão
alemã neste contexto: «der naturlkhe gesunde Verstand». Morente (pág.
27) traduz literalmente: «el sano entendimiento natural». Delbos (pág.
94): «l’intelligence naturelle saine». Lachelier (pág. 16): «naturellement
contenu dans tout entendement sain». (P.Q.)
// BA 8
26
Deixo aqui de parte todas as acções que são logo reconhecidas
como contrárias ao dever, posto possam ser úteis sob este ou aquele
aspecto; pois nelas nem sequer se põe a questão de saber se foram
praticadas por dever, visto estarem até em contradição com ele.
Ponho de lado também as acções que são verdadeiramente
conformes ao dever, mas para as quais os homens não sentem
imediatamente nenhuma inclinação, embora as pratiquem porque a
isso são levados por outra tendência. Pois // é fácil então distinguir se
a acção conforme ao dever foi praticada por dever ou com intenção
egoísta. Muito mais difícil é esta distinção quando a acção é
conforme ao dever e o sujeito é além disso levado a ela por
inclinação imediata. Por exemplo: — Ena verdade conforme ao
dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador
inexperiente, e, quando o movimento do negócio é grande, o
comerciante esperto também não faz semelhante coisa, mas mantém
um preço fixo geral para toda a gente, de forma que uma criança
pode comprar em sua casa tão bem como qualquer outra pessoa. Ése, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bastante para
acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e
princípios de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de
aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os
seus fregueses, de maneira a não fazer, por amor deles, preço mais
vantajoso a um do que a outro. A acção não foi, portanto, praticada
nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente com
intenção egoísta.
Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é
além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação imediata.
Mas por isso mesmo é que o cuidado, por vezes ansioso, que a
maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e
a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens
conservam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por
dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o
__________________________
// BA 9, 10
27
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desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver;
quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que
desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida
sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua
máxima tem um conteúdo moral.
Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso
muitas almas de disposição tão compassiva que, mesmo sem
nenhum outro motivo de vaidade ou interesse, acham íntimo prazer
em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o
contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu afirmo
porém que neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por
amável que ela seja, não tem contudo nenhum verdadeiro valor
moral, mas vai emparelhar com outras inclinações, por exemplo o
amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que
efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é
consequentemente honroso e merece louvor e estímulo, mas não
estima; pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que
tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por dever.
Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo
desgosto pessoal que apaga toda // a compaixão pela sorte alheia, e
que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos
desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava
bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma
inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal
insensibilidade e praticasse a acção sem qualquer inclinação,
simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor
moral. Mais ainda: — Se a natureza tivesse posto no coração deste
ou daquele homem pouca simpatia, se ele (homem honrado de resto)
fosse por temperamento frio e indiferente às dores dos outros por ser
ele mesmo dotado especialmente de paciência e capacidade de
resistência às suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as
mesmas qualidades dos
__________________________
// BA 11
28
outros; se a natureza não tivesse feito de um tal homem (que em boa
verdade não seria o seu pior produto) propriamente um filantropo,
— não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que
lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum
temperamento bondoso? Sem dúvida! — e exactamente aí é que
começa o valor do carácter, que é moralmente sem qualquer
comparação o mais alto, e que consiste em fazer o bem, não por
inclinação, mas por dever.
Assegurar cada qual a sua própria felicidade é um dever
(pelo menos indirectamente); pois a ausência de contentamento //
com o seu próprio estado num torvelinho de muitos cuidados e no
meio de necessidades insatisfeitas poderia facilmente tornar-se
numa grande tentação para transgressão dos deveres. Mas,
também sem considerar aqui o dever, todos os homens têm já por
si mesmos a mais forte e íntima inclinação para a felicidade,
porque é exactamente nesta ideia que se reúnem numa soma todas
as inclinações. Mas o que prescreve a felicidade é geralmente
constituído de tal maneira que vai causar grande dano a algumas
inclinações, de forma que o homem não pode fazer ideia precisa e
segura da soma de satisfação de todas elas a que chama felicidade;
por isso não é de admirar que uma única inclinação determinada, em
vista daquilo que promete e do tempo em que se pode alcançar a sua
satisfação, possa sobrepor-se a uma ideia tão vacilante. Assim um
homem, por exemplo um gotoso, pode escolher o regalo que lhe dá
qualquer comida de que gosta e sofrer quanto pode, porque, pelo
menos segundo o seu cálculo, não quis renunciar ao prazer do
momento presente em favor da esperança talvez infundada da
felicidade que possa haver na saúde. Mas também neste caso, mesmo
que a inclinação universal para a felicidade não determinasse a sua
vontade, mesmo que a saúde, pelo menos para ele, não entrasse tão
necessariamente no cálculo, ainda aqui, como em todos os outros
casos, continua a existir
__________________________
// BA 12
29
uma lei que lhe prescreve a promoção // da sua felicidade, não por
inclinação, mas pôr dever — e é somente então que o seu
comportamento tem propriamente valor moral.
E sem dúvida também assim que se devem entender os passos
da Escritura em que se ordena que amemos o próximo, mesmo o
nosso inimigo. Pois que o amor enquanto inclinação não pode ser
ordenado, mas o bem-fazer por dever, mesmo que a isso não
sejamos levados por nenhuma inclinação e até se oponha a ele uma
aversão natural e invencível, é amor prático e não patológico, que
reside na vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios
de acção e não em compaixão lânguida. E só esse amor é que pode
ser ordenado.
A segunda proposição é: — Uma acção praticada por dever tem
o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas
na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do
objecto da acção, mas somente do princípio do querer segundo o
qual a acção, abstraindo de todos os objectos da faculdade de
desejar, foi praticada. Que os propósitos que possamos ter ao praticar
certas acções e os seus efeitos, como fins e móbiles da vontade, não
podem dar às acções nenhum valor incondicionado, nenhum valor
moral, resulta claramente do que fica atrás. Em que é que reside pois
este valor, se ele se não encontra na // vontade considerada em
relação com o efeito esperado dessas acções? Não pode residir em
mais parte alguma senão no princípio da vontade, abstraindo dos
fins que possam ser realizados por uma tal acção; pois que a vontade
está colocada entre o seu princípio a priori, que é formal, e o seu
móbil a posteriori, que é material, por assim dizer numa
encruzilhada; e, uma vez que ela tem de ser determinada por
qualquer coisa, terá de ser determinada pelo princípio formal do
querer em geral quando a acção seja praticada por dever, pois lhe foi
tirado todo o princípio material.
__________________________
// BA
13
,
14
30
A terceira proposição, consequência das duas anteriores,
formulá-la-ia eu assim: — Dever é a necessidade de uma acção
por respeito à lei. Pelo objecto, como efeito da acção em vista,
posso eu sentir em verdade, inclinação, mas nunca respeito,
exactamente porque é simplesmente um efeito e não a actividade
de uma vontade. De igual modo, não posso ter respeito por
qualquer inclinação em geral, seja ela minha ou de um outro;
posso quando muito, no primeiro caso, aprová-la, e, no segundo,
por vezes amá-la mesmo, isto é considerá-la como favorável ao
meu próprio interesse. Só pode ser objecto de respeito e portanto
mandamento aquilo que está ligado à minha vontade somente
como princípio e nunca como efeito, não aquilo que serve à
minha inclinação mas o que a domina ou que, pelo menos, a
exclui do cálculo // na escolha, quer dizer a simples lei por si
mesma. Ora, se uma acção realizada por dever deve eliminar
totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objecto da
vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que
a lei objectivamente, e, subjectivamente, o puro respeito por esta
lei prática, e por conseguinte a máxima (*) que manda obedecer a
essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações.
O valor moral da acção não reside, portanto, no efeito que
dela se espera; também não reside em qualquer princípio da acção
que precise de pedir o seu móbil a este efeito esperado. Pois todos
estes efeitos (a amenidade da nossa situação, e mesmo o fomento
da felicidade alheia) podiam também ser alcançados por outras
causas, e não se precisava portanto para tal da vontade de um ser
racional, na qual vontade — e só nela — se pode encontrar o
__________________________
(*) Máxima é o princípio subjectivo do querer; o princípio objectivo (isto é o
que serviria também subjectivamente de princípio prático a todos os seres
racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei
prática. (Nota de Kant.)
// BA 15
31
bem supremo e incondicionado. Por conseguinte, nada senão a
representação da lei em si mesma, que // em verdade só no ser
racional se realiza, enquanto é ela, e não o esperado efeito, que
determina a vontade, pode constituir o bem excelente a que
chamamos moral, o qual se encontra já presente na própria pessoa
que age segundo esta lei, mas se não deve esperar somente do
efeito da acção (*).
__________________________
(*) Poderiam objectar-me que eu, por trás da palavra respeito, busco apenas
refúgio num sentimento obscuro, em vez de dar informação clara sobre esta
questão por meio de um conceito da razão. Porém, embora o respeito seja um
sentimento, não é um sentimento recebido por influência; é, pelo contrário, um
sentimento que se produz por si mesmo através dum conceito da razão, e assim é
especificamente distinto de todos os sentimentos do primeiro género que se
podem reportar à inclinação ou ao medo. Aquilo que eu reconheço
imediatamente como lei para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito
que não significa senão a consciência da subordinação da minha vontade a uma
lei, sem intervenção de outras influências sobre a minha sensibilidade. A
determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta determinação é
que se chama respeito, de modo que se deve ver o efeito da lei sobre o sujeito e
não a sua causa. O respeito é propriamente a representação de um valor que
causa dano ao meu amor-próprio. É portanto alguma coisa que não pode ser
considerada como objecto nem da inclinação nem do temor, embora tenha algo
de análogo com ambos simultaneamente. O objecto do respeito é portanto
simplesmente a lei, quero dizer aquela lei que nos impomos a nós mesmos, e no
entanto como necessária em si. Como lei que é, estamos-lhe subordinados, sem
termos que consultar o amor-próprio; mas como lei que nós nos impomos a nós
mesmos, é ela. uma consequência da nossa vontade e tem, de um lado, analogia
com o temor, e, do outro, com a inclinação. // Todo o respeito por uma pessoa é
propriamente só respeito pela lei (lei da rectidão, etc), da qual essa pessoa nos dá
o exemplo. Porque consideramos também o alargamento dos nossos talentos
como um dever, representamo-nos igualmente numa pessoa de talento por assim
dizer o exemplo duma lei (a de nos tornarmos semelhantes a ela por meio do
exercício), e é isso que constitui o nosso respeito. Todo o chamado interesse
moral consiste simplesmente no respeito pela lei. (Nota de Kant.)
// BA 16, nota: // BA 16
32
// Mas que lei pode ser então essa, cuja representação,
mesmo sem tomar em consideração o efeito que dela se espera,
tem de determinar a vontade para que esta se possa chamar boa
absolutamente e sem restrição? Uma vez que despojei a vontade
de todos os estímulos que lhe poderiam advir da obediência a
qualquer lei(1), nada mais resta do que a conformidade a uma lei
universal das acções em geral que possa servir de único princípio
à vontade, isto é: devo proceder sempre de maneira que eu possa
querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.
Aqui é pois a simples conformidade à lei em geral (sem tomar
como base qualquer lei destinada a certas acções) o que serve de
princípio à vontade, e também o que tem de lhe servir de
princípio, para que o dever não seja por toda parte uma vã ilusão
e um conceito quimérico; e com isto está perfeitamente de acordo
a comum razão humana (2) nos seus juízos práticos e tem sempre
diante dos olhos este princípio.
// Ponhamos, por exemplo, a questão seguinte: — Não posso
eu, quando me encontro em apuro, fazer uma promessa com a
intenção de a não cumprir? Facilmente distingo aqui os dois
sentidos que a questão pode ter: — se é prudente, ou se é
conforme ao dever, fazer uma falsa promessa. O primeiro caso
pode sem dúvida apresentar-se
__________________________
(1) Morente (pág. 35) interpreta este passo de maneira totalmente errada ao
traduzir: «Como he substratdo la voluntad a todos los afanes que pudieran
apartarla del cumplimiento de una ley...». O original diz: «Da ich den Willen
aller Antriebe beraubet habe, die ihm aus der Befolgung irgendeines Gesetzes
entspringen könn-ten...» (P.Q.)
(2) Ativemo-nos, neste passo, à tradução literal do original «die gemeine
Menschenvernunft», embora nos pareça que seria melhor traduzir por «o
humano senso comum». Delbos (pág. 103) traduz: «la raison commune des
hommes»; Morente (pág. 35): «la razón vulgar de los hombres»; Lachelier (pág.
25), quase em concordância connosco: «Le bon sens populaire.» (P.Q.)
// BA 17, 18
33
muitas vezes. E verdade que vejo bem que não basta furtar-me ao
embaraço presente por meio desta escapatória, mas que tenho de
ponderar se desta mentira me não poderão advir posteriormente
incómodos maiores do que aqueles de que agora me liberto; e
como as consequências, a despeito da minha pretensa esperteza,
não são assim tão fáceis de prever, devo pensar que a confiança
uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial do que todo o
mal que agora quero evitar; posso enfim perguntar se não seria
mais prudente agir aqui em conformidade com uma máxima
universal e adquirir o costume de não prometer nada senão com a
intenção de cumprir a promessa. Mas breve se me torna claro que
uma tal máxima tem sempre na base o receio das consequências.
Ora ser verdadeiro por dever é uma coisa totalmente diferente de
sê-lo por medo das consequências prejudiciais; enquanto no
primeiro caso o conceito da acção em si mesma contém já para
mim uma lei, no segundo tenho antes que olhar à rninha volta
para descobrir que efeitos poderão para mim // estar ligados à
acção. Porque, se me afasto do princípio do dever, isso é de
certeza mau; mas se for infiel à minha máxima de esperteza, isso
poderá trazer-me por vezes grandes vantagens, embora seja em
verdade mais seguro continuar--lhe fiel. Entretanto, para resolver
da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma
promessa mentirosa é conforme ao dever, preciso só de perguntar
a mim mesmo: — Ficaria eu satisfeito de ver a minha
máxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa não
verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como
para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo: — Toda a
gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa
dificuldade de que não pode sair de outra maneira? Em breve
reconheço que posso em verdade querer a mentira, mas que não
posso querer uma lei universal de mentir; pois, segundo uma tal
lei, não poderia propriamente haver já promessa alguma, por__________________________
// BA 19
34
que seria inútil afirmar a minha vontade relativamente às minhas
futuras acções a pessoas que não acreditariam na minha afirmação,
ou, se precipitadamente o fizessem, me pagariam na mesma moeda.
Por conseguinte a minha máxima, uma vez arvorada em lei
universal, destruir-se-ia a si mesma necessariamente.
Não preciso pois de perspicácia de muito largo alcance para
saber o que hei-de fazer para que o meu querer // seja moralmente
bom. Inexperiente a respeito do curso das coisas do mundo,
incapaz de prevenção em face dos acontecimentos que nele se
venham a dar, basta que eu pergunte a mim mesmo: — Podes tu
querer também que a tua máxima se converta em lei universal? Se
não podes, então deves rejeitá-la, e não por causa de qualquer prejuízo que dela pudesse resultar para ti ou para os outros, mas
porque ela não pode caber como princípio numa possível
legislação universal. Ora a razão exige-me respeito por uma tal
legislação, da qual em verdade presentemente não vejo em que se
funde (problema que o filósofo pode investigar), mas de que pelo
menos compreendo que é uma apreciação do valor que de longe
ultrapassa o de tudo aquilo que a inclinação louva, e que a
necessidade das minhas acções por puro respeito à lei prática é o
que constitui o dever, perante o qual tem de ceder qualquer outro
motivo, porque ele é a condição de uma vontade boa em si, cujo
valor é superior a tudo.
Assim, no conhecimento moral da razão humana vulgar,
chegámos nós a alcançar o seu princípio, princípio esse que a
razão vulgar em verdade não concebe abstractamente numa
forma geral, mas que mantém sempre realmente diante dos olhos
e de que se serve como padrão dos seus juízos. Seria fácil mostrar
aqui como // ela, com esta bússola na mão, sabe perfeitamente
distinguir, em todos os casos que se apresentem, o que é bom e o
que é mau, o que é conforme ao dever ou o que é contrário a ele.
Basta, sem que com isto lhe ensinemos nada de novo,
__________________________
// BA 20, 21
35
que chamemos a sua atenção, como fez SÓCRATES, para o seu
próprio princípio, e que não é preciso nem ciência nem filosofia
para que ela saiba o que há a fazer para se ser honrado e bom,
mais ainda, para se ser sages e virtuoso. Podia-se mesmo já
presumir antecipadamente que o conhecimento daquilo que cada
homem deve fazer, e por conseguinte saber, é também pertença
de cada homem, mesmo do mais vulgar. E aqui não nos podemos
furtar a uma certa admiração ao ver como a capacidade prática de
julgar se avantaja tanto à capacidade teórica no entendimento
humano vulgar. Nesta última, quando a razão vulgar se atreve a
afastar-se das leis da experiência e dos dados dos sentidos, vai
cair em puras incompreensibilida-des e contradições consigo
mesma ou, pelo menos, num caos de incerteza, escuridão e
inconstância. No campo prático, porém, a capacidade de julgar só
então começa a mostrar todas as suas vantagens quando o
entendimento vulgar (1) exclui das leis práticas todos os móbiles
sensíveis. Faz-se então mesmo subtil, quer ele queira fazer
chicana com a sua consciência ou com outras pretensões em
relação com o que deva chamar-se justo, quer queira
sinceramente determinar // o valor das suas acções para sua
própria edificação; e — o que é o principal (2) —, neste último
caso pode até alimentar esperanças de êxito tão grandes como as
de qualquer filósofo, é nisto até mesmo mais seguro do que este,
porque o filósofo não pode ter outro princípio que o homem
vulgar, mas o seu juízo pode ser facilmente perturbado e desviado
do direito caminho por uma multidão de considerações estranhas
ao caso. Não seria, portanto, mais aconselhável, em
__________________________
(1) «Der gemeine Verstand» — Poderia também traduzir-se: «o senso
comum». (P.Q.).
(2) Morente (pág. 39) traduz erradamente: «lo que es más frecuente». O
original diz: «was das meiste ist.» (P.Q.)
// BA
22
36
matéria moral, ficarmo-nos pelo juízo da razão vulgar e só
recorrer à filosofia para, quando muito, tornar o sistema dos
costumes mais completo e compreensível, expor as regras de
maneira mais cómoda com vista ao seu uso (e sobretudo à
discussão), mas não para desviar o humano senso comum (den
gemeinen Menschenverstand), mesmo em matéria prática, da sua
feliz simplicidade e pô-lo por meio da filosofia num novo
caminho da investigação e do ensino?
A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado
muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão
facilmente seduzir. E é por isso que a própria sageza — que de
resto consiste mais em fazer ou não fazer do que em saber—
precisa também da ciência, não para aprender dela, mas para
assegurar às suas // prescrições entrada nas almas e para lhes dar
estabilidade. O homem sente em si mesmo um forte contrapeso
contra todos os mandamentos do dever que a razão lhe representa
como tão dignos de respeito: são as suas necessidades e inclinações, cuja total satisfação ele resume sob o nome de felicidade.
Ora a razão impõe as suas prescrições, sem nada aliás prometer às
inclinações, irremitentemente, e também como que com desprezo
e menoscabo daquelas pretensões tão tumultuosas e
aparentemente tio justificadas (e que se não querem deixar
eliminar por qualquer ordem). Daqui nasce uma dialéctica
natural, quer dizer uma tendência para opor arrazoados e
subtilezas (1) às leis severas do dever, para pôr em dúvida a sua
validade ou pelo menos a sua pureza e o seu rigor e para as fazer
mais conformes, se possível, aos nossos desejos e inclinações,
isto é, no fundo, para corrompê-las e despojá-las de toda a
sua
__________________________
(1) «Vernünfteln» é a expressão alemã. Lachelier (pág. 29) traduz por
«chicaner»; Delbos (pág. 109) por «sophistiquer»; Morente (pág. 40) por
«discutir». (P.Q.)
// BA 23
37
dignidade, o que a própria razão prática vulgar acabará por
condenar.
É assim, pois, que a razão humana vulgar, impelida por
motivos propriamente práticos e não por qualquer necessidade de
especulação (que nunca a tenta, enquanto ela se satisfaz com ser
simples sã razão), se vê levada a sair do seu círculo e a dar um
passo para dentro do campo da filosofia prática. Aí encontra ela
informações e instruções claras sobre a fonte do seu princípio, //
sobre a sua verdadeira determinação em oposição às máximas que
se apoiam sobre a necessidade e a inclinação. Assim espera ela
sair das dificuldades que lhe causam pretensões opostas, e fugir
ao perigo de perder todos os puros princípios morais em virtude
dos equívocos em que facilmente cai. Assim se desenvolve
insensivelmente na razão prática vulgar, quando se cultiva, uma
dialéctica que a obriga a buscar ajuda na filosofia, como lhe
acontece no uso teórico; e tanto a primeira como a segunda não
poderão achar repouso em parte alguma a não ser numa crítica
completa da nossa razão.
__________________________
// BA
24
38
// SEGUNDA SECÇÃO
TRANSIÇÃO DA FILOSOFIA MORAL POPULAR PARA A
METAFÍSICA DOS COSTUMES
Do facto de até agora havermos tirado o nosso conceito de
dever do uso vulgar da nossa razão prática não se deve de forma
alguma concluir que o tenhamos tratado como um conceito
empírico. Pelo contrário, quando atentamos na experiência
humana de fazer ou deixar de fazer, encontramos queixas
frequentes e, como nós mesmos concedemos, justas, (1) de que se
não podem apresentar nenhuns exemplos seguros da intenção de
agir por puro dever; porque, embora muitas das coisas que o
dever ordena possam acontecer em conformidade com ele, é
contudo ainda duvidoso que elas aconteçam verdadeiramente por
dever e que tenham portanto valor moral. Por isso é que houve em
__________________________
(1) Lachelier (pág. 31) traduz, ambiguamente: «...nous enten-drons bien
des personnes se plaindre, et justement nous l’accor-dons...». (P.Q.)
// BA 25
39
todos os tempos filósofos que negaram pura e simplesmente a
realidade desta intenção nas acções humanas e tudo atribuíram ao
egoísmo mais ou menos apurado, sem contudo por isso porem em
dúvida a justeza do conceito de moralidade; pelo contrário,
deploravam profundamente a fraqueza e a corrupção da natureza
humana que, se por um lado era nobre bastante // para fazer de
uma ideia tão respeitável a sua regra de conduta, por outro era
fraca de mais para lhe obedecer, e só se servia da razão, que lhe
devia fornecer as leis, para tratar do interesse das inclinações, de
maneira a satisfazê-las quer isoladamente, quer, no melhor dos
casos, buscando a maior conciliação entre elas.
Na realidade, é absolutamente impossível encontrar na
experiência com perfeita certeza um único caso em que a máxima
de uma acção, de resto conforme ao dever, se tenha baseado
puramente em motivos morais e na representação do dever.
Acontece por vezes na verdade que, apesar do mais agudo exame
de consciência, não possamos encontrar nada, fora do motivo
moral do dever, que pudesse ser suficientemente forte para nos
impelir a tal ou tal boa acção ou a tal grande sacrifício. Mas daqui
não se pode concluir com segurança que não tenha sido um
impulso secreto do amor-próprio, oculto sob a simples capa
daquela ideia, a verdadeira causa determinante da vontade.
Gostamos de lisonjear-nos então com um móbil mais nobre que
falsamente nós arrogamos; mas em realidade, mesmo pelo exame
mais esforçado, nunca podemos penetrar completamente até aos
móbiles secretos dos nossos actos, porque, quando se fala de
valor moral, não é das acções visíveis que se trata, mas dos seus
princípios íntimos que se não vêem.
// Não se pode prestar serviço mais precioso àqueles que se
riem de toda a moralidade como de uma simples quimera da
imaginação humana exaltada pela presunção, do que concederlhes que os conceitos do dever (exacta__________________________
// BA
26
,
27
40
mente como por preguiça nos convencemos que acontece também
com todos os outros conceitos) têm de ser tirados somente da
experiência; porque assim lhes preparamos um triunfo certo. Quero
por amor humano conceder que ainda a maior parte das nossas
acções são conformes ao dever; mas se examinarmos mais de perto
as suas aspirações e esforços, toparemos por toda a parte o querido
Eu que sempre sobressai, e é nele, e não no severo mandamento do
dever que muitas vezes exigiria a auto-renúncia, que a sua intenção
se apoia. Não é preciso ser-se mesmo um inimigo da virtude, basta
ser-se apenas um observador de sangue-frio que não tome
imediatamente o mais ardente desejo do bem pela sua realidade, para
em certos momentos (principalmente com o avançar dos anos e com
um juízo apurado em parte pela experiência, em parte aguçado para a
observação) nos surpreendermos a duvidar se na verdade se poderá
encontrar no mundo qualquer verdadeira virtude. E então nada nos
pode salvar da completa queda das nossas ideias de dever, para
conservarmos na alma o respeito fundado pela lei, a não ser a clara
convicção de que, mesmo que nunca tenha havido acções que
tivessem jorrado de tais fontes // puras, a questão não é agora de
saber se isto ou aquilo acontece, mas sim que a razão por si mesma e
independentemente de todos os fenómenos ordena o que deve
acontecer; de fornia que acções, de que o mundo até agora talvez
não deu nenhum exemplo, de cuja possibilidade poderá duvidar até
aquele que tudo funda na experiência, podem ser irremitentemente
ordenadas pela razão: por exemplo, a pura lealdade na amizade não
pode exigir-se menos de todo o homem pelo facto de até agora talvez
não ter existido nenhum amigo leal, porque este dever, como dever
em geral, anteriormente a toda a experiência, reside na ideia de uma
razão que determina a vontade por motivos a priori.
Se se acrescentar que, a menos que se queira recusar ao
conceito de moralidade toda a verdade e toda a relação
__________________________
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com qualquer objecto possível, se não pode contestar que a sua lei
é de tão extensa significação que tem de valer não só para os
homens mas para todos os seres racionais em geral, não só sob
condições contingentes e com excepções, mas sim absoluta e
necessariamente, torna-se então evidente que nenhuma
experiência pode dar motivo para concluir sequer a possibilidade
de tais leis apodícticas. Porque, com que direito podemos nós //
tributar respeito ilimitado, como prescrição universal para toda a
natureza racional, àquilo que só é válido talvez nas condições
contingentes da humanidade? E como é que as leis da
determinação da nossa vontade hão-de ser consideradas como leis
da determinação da vontade de um ser racional em geral, e só
como tais consideradas também para a nossa vontade, se elas
forem apenas empíricas e não tirarem a sua origem plenamente a
priori da razão pura mas ao mesmo tempo prática?
Não se poderia também prestar pior serviço à moralidade do
que querer extraí-la de exemplos. Pois cada exemplo que me seja
apresentado tem de ser primeiro julgado segundo os princípios da
moralidade para se saber se é digno de servir de exemplo
original, isto é, de modelo; mas de modo nenhum pode ele dar o
supremo conceito dela. Mesmo o Santo do Evangelho tem
primeiro que ser comparado com o nosso ideal de perfeição moral
antes de o reconhecermos por tal; e é ele que diz de si mesmo:
«Porque é que vós me chamais bom (a mim que vós estais vendo)
? Ninguém é bom (o protótipo do bem) senão o só Deus (que vós
não vedes).» Mas donde é que nós tiramos o conceito de Deus
como bem supremo? Somente da ideia que a razão traça a priori
da perfeição moral e que une indissoluvelmente ao conceito de
vontade livre. A imitação não tem lugar algum em matéria moral,
// e os exemplos servem apenas para encorajar, isto é põem fora
de dúvida a possibilidade daquilo que a lei
__________________________
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,
30
42
ordena, tornam intuitivo (1) aquilo que a regra prática exprime de
maneira mais geral, mas nunca podem justificar que se ponha de
lado o seu verdadeiro original, que reside na razão, e que nos
guiemos por exemplos.
Se, pois, não há nenhum autêntico princípio supremo da
moralidade que, independente de toda a experiência, não tenha de
fundar-se somente na razão pura, creio que não é preciso sequer
perguntar se é bom expor estes conceitos de maneira geral (in
abstracto), tais como eles existem a priori juntamente com os
princípios que lhes pertencem, se o conhecimento se quiser
distinguir do vulgar e chamar-se filosófico. Mas nos nossos
tempos talvez isto seja necessário. Pois se se quisesse reunir
votos sobre a preferência a dar ao puro conhecimento racional
separado de todo o empírico, uma metafísica dos costumes
portanto, ou à filosofia prática popular, depressa se adivinharia
para que lado penderia a balança.
Este facto de descer até aos conceitos populares é sem
dúvida muito louvável, contanto que se tenha começado por subir
até aos princípios da razão pura e se tenha alcançado plena
satisfação neste ponto; isto significaria primeiro o fundamento da
doutrina // dos costumes na metafísica, para depois, uma vez ela
firmada solidamente, a tornar acessível pela popularidade. Mas
seria extremamente absurdo querer condescender com esta logo
no começo da investigação de que depende toda a exactidão dos
princípios. E não é só que este método não pode pretender jamais
alcançar o mérito raríssimo de uma verdadeira popularidade
filosófica, pois não é habilidade nenhuma ser compreensível a
todos quando se desistiu de todo o exame em profundidade; assim
esse método traz à luz um asqueroso mistifório de observações
enfeixadas a troixe-moixe
__________________________
(1) No original: anschaulich. Lachelier (pág. 35): «visible». (P.Q.)
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e de princípios racionais meio engrolados com que se deliciam as
cabeças ocas, pois há nisso qualquer coisa de utilizável para o
palavrório de todos os dias, enquanto que os circunspectos só
sentem confusão e desviam descontentes os olhos, sem aliás
saberem o que hão-de fazer; ao passo que os filósofos, que podem
facilmente descobrir a trapaça, pouca gente encontram que os
ouça quando querem desviar-nos por algum tempo da pretensa
popularidade para, só depois de terem alcançado uma ideia
precisa dos princípios, poderem ser com direito populares. Basta
que lancemos os olhos aos ensaios sobre a moralidade feitos
conforme o gosto preferido para breve encontrarmos ora a ideia
do destino particular da natureza humana (mas por vezes também
a de uma natureza racional em geral), ora a perfeição, ora a //
felicidade, aqui o sentimento moral, acolá o temor de Deus, um
pouco disto, mais um pouco daquilo, numa misturada espantosa;
e nunca ocorre perguntar se por toda a parte se devem buscar no
conhecimento da natureza humana (que não pode provir senão da
experiência) os princípios da moralidade, e, não sendo este o
caso, sendo os últimos totalmente a priori, livres de todo o
empírico, se se encontrarão simplesmente em puros conceitos
racionais e não em qualquer outra parte, nem mesmo em ínfima
medida; e ninguém tomará a resolução de antes separar
totalmente esta investigação como pura filosofia prática ou (para
empregar nome tão desacreditado) como metafísica (*)
__________________________
(*) Pode-se, querendo, (assim como se distingue a matemática pura da
aplicada, a lógica pura da aplicada) distinguir igualmente a pura
filosofia dos costumes (Metafísica) da moral aplicada (à natureza
humana). Esta terminologia lembra-nos imediatamente também que os
princípios morais se não fundam nas particularidades da natureza
humana, mas que têm de existir por si mesmos a priori, porém que deles
se podem derivar regras práticas para a natureza humana como para
qualquer natureza racional. (Nota de Kant.)
// BA 32
44
dos costumes, levá-la por si mesma à sua plena perfeição e ir
consolando o público, que exige popularidade, até ao termo desta
empresa.
Ora uma tal Metafísica dos costumes, completamente
isolada, que não anda misturada nem com a Antropologia nem //
com a Teologia, nem com a Física ou a Hiperfísica, e ainda
menos com as qualidades ocultas (que se poderiam chamar
hipofísicas), não é somente um substrato indispensável de todo o
conhecimento teórico dos deveres seguramente determinado, mas
também um desiderato da mais alta importância para a verdadeira
prática das suas prescrições. Pois a pura representação do dever e
em geral da lei moral, que não anda misturada com nenhum
acrescento de estímulos empíricos, tem sobre o coração humano,
por intermédio exclusivo da razão (que só então se dá conta de
que por si mesma também pode ser prática), uma influência muito
mais poderosa do que todos os outros móbiles que se possam ir
buscar ao campo empírico (*),
__________________________
(*) Possuo uma carta do excelente Sulzer, já falecido, em que me pergunta qual
será a causa por que as doutrinas da virtude, contendo tanto de convenientes
para a razão, têm tão curto alcance prático. A minha resposta atrasou-se com os
preparativos para a poder dar completa. Mas ela não pode ser outra senão esta:
— que os próprios mestres não clarificaram os seus conceitos e que, querendo
fazer bem de mais ao reunir por toda a banda motivos que levem ao bem moral,
estragam a mezinha por a quererem fazer especialmente enérgica. Pois a mais
vulgar // observação mostra que, quando apresentamos um acto de honradez, tal
como ele foi levado a efeito com firmeza de alma mesmo sob as maiores
tentações da miséria ou da sedução, apartado de toda a intenção de qualquer
vantagem neste ou noutro mundo, este acto deixa muito atrás de si e na sombra
qualquer outro que se lhe assemelhe mas que tenha sido afectado mesmo em
ínfima parte por um móbil estranho, eleva a alma e desperta o desejo de poder
proceder também assim. Mesmo as crianças de mediana idade sentem esta
impressão, e nunca se lhes deveria expor os seus deveres de maneira diferente.
(Nota de Kant.)
// BA 33
Nota: // BA 33
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em tal grau que, na consciência da sua dignidade, pode desprezar
estes últimos e dominá-los pouco a pouco. Em vez disto uma
doutrina dos costumes mesclada, composta de móbiles de
sentimentos e inclinações ao mesmo tempo que de conceitos
racionais, // tem de fazer vacilar o ânimo em face de motivos
impossíveis de reportar a princípio algum, que só muito casualmente
levam ao bem, mas muitas vezes podem levar também ao mal.
Do aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais
têm a sua sede e origem completamente a priori na razão, e isto
tanto na razão humana mais vulgar como na especulativa em mais
alta medida; que não podem ser abstraídos de nenhum
conhecimento empírico e por conseguinte puramente contingente;
que exactamente nesta pureza da sua origem reside a sua
dignidade para nos servirem de princípios práticos supremos; que
cada vez que lhes acrescentemos qualquer coisa de empírico
diminuímos em igual medida a sua pura influência e o valor
ilimitado das acções; que não só o exige a maior necessidade sob
o ponto de vista teórico quando se trata apenas de especulação, //
mas que é também da maior importância prática tirar da razão pura
os seus conceitos e leis, expô-los com pureza e sem mistura, e
mesmo determinar o âmbito de todo este conhecimento racional
prático mas puro, isto é toda a capacidade da razão pura prática. Mas
aqui não se deve, como a filosofia especulativa o permite e por vezes
mesmo o acha necessário, tornar os princípios dependentes da
natureza particular da razão humana; mas, porque as leis morais
devem valer para todo o ser racional em geral, é do conceito
universal de um ser racional em geral que se devem deduzir. Desta
maneira toda a moral, que para a sua aplicação aos homens precisa
da Antropologia, será primeiro exposta independentemente desta
ciência como pura filosofia, quer dizer como metafísica, e de
maneira completa (o que decerto se pode fazer neste género de
conhecimentos totalmente abstractos). E é preciso ver
__________________________
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bem que, se não estivermos de posse desta, não digo só que será
vão querer determinar exactamente para o juízo especulativo o
carácter moral do dever em tudo o que é conforme ao dever, mas
até que será impossível no uso simplesmente vulgar e prático,
especialmente na instrução moral, fundar os costumes sobre os
seus autênticos princípios e criar através disto puras disposições
morais e implantá-las nos ânimos para o bem supremo do mundo.
// Para, porém, neste trabalho avançarmos por uma gradação
natural, não somente do juízo moral vulgar (que aqui é muito
digno de respeito) para o juízo filosófico, como de resto já se fez,
mas duma filosofia popular, que não passa além do ponto onde
pode chegar às apalpadelas por meio de exemplos, até à
metafísica (que não se deixa deter por nada de empírico e que,
devendo medir todo o conteúdo do conhecimento racional deste
género, se eleva em todo o caso até às ideias, onde mesmo os
exemplos nos abandonam), temos nós de seguir e descrever claramente a faculdade prática da razão, partindo das suas regras
universais de determinação, até ao ponto em que dela brota o
conceito de dever.
Tudo (1) na natureza age segundo leis. Só um ser racional
tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é,
segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para
derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é
outra coisa senão razão prática. Se a razão determina
infalivelmente a vontade, as acções de um tal ser, que são
conhecidas como objectivamente necessárias, são também
subjectivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de
escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação,
// reconhece como praticamente necessário, quer dizer como bom.
Mas se a
__________________________
(1) Ein jedes Ding der Natur, propriamente: «Cada coisa da natureza.»
(P.Q.)
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razão só por si não determina suficientemente a vontade, se esta
está ainda sujeita a condições subjectivas (a certos móbiles) que
não coincidem sempre com as objectivas; numa palavra, se a
vontade não é em si plenamente conforme à razão (como
acontece realmente entre os homens), então as acções, que
objectivamente são reconhecidas como necessárias, são
subjectivamente contingentes, e a determinação de uma tal
vontade, conforme a leis objectivas, é obrigação (Nötigung);
quer dizer, a relação das leis objectivas para uma vontade não
absolutamente boa repre-senta-se como a determinação da
vontade de um ser racional por princípios da razão (1), sim,
princípios esses porém a que esta vontade, pela sua natureza, não
obedece necessariamente.
A representação de um princípio objectivo, enquanto
obrigante para uma vontade, chama-se um mandamento (da
razão), e a fórmula do mandamento chama-se Imperativo (2).
Todos os imperativos se exprimem pelo verbo dever
(sollen), e mostram assim a relação de uma lei objectiva da razão
para uma vontade que segundo a sua constituição subjectiva não
é por ela necessariamente determinada (uma obrigação). Eles
dizem que seria bom praticar ou deixar de praticar qualquer
coisa, mas // dizem-no a uma vontade que nem sempre faz
qualquer coisa só porque lhe é representado que seria bom fazêla. Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por
meio de representações da razão, por conseguinte não por causas
subjectivas, mas objectivamente, quer dizer por princípios que
são válidos para todo o ser racional como tal. Distin__________________________
(1) Morente, pág. 54: «...por fundamentos de la voluntad...».
(2) Lachelier, pág. 41: «La représentation d’un príncipe objectif comme
contraignant la volonté s’apelle Impératif». (P.Q.)
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gue-se do agradável, pois que este só influi na vontade por meio
da sensação em virtude de causas puramente subjectivas que
valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e não como
princípio da razão que é válido para todos (*).
// Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto
igualmente submetida a leis objectivas (do bem), mas não se
poderia representar como obrigada a acções conformes à lei,
pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser
determinada pela representação do bem. Por isso os imperativos
não valem para a vontade divina nem, em geral, para uma
vontade santa; o dever (Sollen) não está aqui no seu lugar,
porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei. Por
isso os imperativos são apenas fórmulas para exprimir a relação
entre leis objectivas do querer em geral e a imperfeição
subjectiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por
exemplo.
__________________________
(*) Chama-se inclinação a dependência em que a faculdade de desejar está em
face das sensações; a inclinação prova sempre portanto uma necessidade
(Bedürfnis). Chama-se interesse a dependência em que uma vontade
contingentemente determinável se encontra em face dos princípios da razão.
Este interesse só tem pois lugar numa vontade dependente que não é por si
mesma em todo o tempo conforme à razão; na vontade divina não se pode
conceber nenhum interesse. Mas a vontade humana pode também tomar
interesse por qualquer coisa sem por isso agir por interesse. O primeiro significa
o interesse prático na acção, o segundo o interesse patológico no objecto da
acção. O primeiro mostra apenas dependência da vontade em face dos princípios
da razão em si mesmos, o segundo cm face dos princípios da razão cm proveito
da inclinação, pois aqui a razão dá apenas a regra prática para socorrer a
necessidade da inclinação. No primeiro caso interessa-me a acção, no segundo o
objecto da acção (enquanto ele me é agradável). Vimos na Primeira Secção que
numa acção praticada por dever se não tem de atender ao interesse pelo objecto,
mas somente à própria acção e ao seu princípio na razão (à lei). — (Nota de
Kant.)
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49
Ora, todos os imperativos ordenam ou hipotética- ou
categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade
prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer
outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O
imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma
acção como objectivamente necessária por si mesma, sem
relação com qualquer outra finalidade.
Como toda a lei prática representa uma acção possível como
boa e por isso como necessária para um sujeito praticamente
determinável pela razão, // todos os imperativos são fórmulas da
determinação da acção que é necessária segundo o princípio de uma
vontade boa de qualquer maneira. No caso de a acção ser apenas boa
como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se
a acção é representada como boa em si, por conseguinte como
necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio
dessa vontade, então o imperativo é categórico.
O imperativo diz-me, pois, que acção das que me são
possíveis seria boa, e representa a regra prática em relação com
uma vontade, que não pratica imediatamente uma acção só
porque ela é boa, em parte porque o sujeito nem sempre sabe que
ela é boa, em parte porque, mesmo que 9 soubesse, as suas
máximas poderiam contudo ser contrárias aos princípios
objectivos duma razão prática.
O imperativo hipotético diz pois apenas que a acção é boa
em vista de qualquer intenção possível ou real. No primeiro caso
é um princípio problemático, no segundo um princípio
assertórico-prático (1). O imperativo cate__________________________
1
( ) Delbos (pág. 126): «Dans le premier cas, il est un príncipe
PROBLÉMATIQUEMENT pratique; dans le second, un príncipe
ASSERTORIQUEMENT pratique.» — Lachelier (pág. 43): «C’est un príncipe
pratique problématique dans le premier cas, assertorique dãns le second.» —
Morente (pág. 57): «En el primer caso es un principio problemático-prático; en el
segundo caso es un principio Asertórico-prático.» (P.Q.)
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50
górico, que declara a acção como objectivamente necessária por si,
independentemente de qualquer intenção, quer dizer sem qualquer
outra finalidade, vale como princípio apodíctico (prático).
// Pode-se conceber que aquilo que só é possível pelas forças
de um ser racional é também intenção possível para qualquer
vontade, e por isso são de facto infinitamente numerosos os
princípios da acção, enquanto esta é representada como
necessária, para alcançar qualquer intenção possível de atingir por
meio deles. Todas as ciências têm uma parte prática, que se
compõe de problemas que estabelecem que uma determinada
finalidade é possível para nós, e de imperativos que indicam
como ela pode ser atingida. Estes imperativos podem por isso
chamar-se imperativos de destreza. Se a finalidade é razoável e
boa não importa aqui saber, mas tão-somente o que se tem de
fazer para alcançá-la. As regras que o médico segue para curar
radicalmente o seu doente e as que segue o envenenador para o
matar pela certa, são de igual valor neste sentido de que qualquer
delas serve para conseguir perfeitamente a intenção proposta.
Como não sabemos na primeira juventude quais os fms que se nos
depararão na vida, os pais procuram sobretudo mandar ensinar
aos filhos muitas coisas e tratam de lhes transmitir a destreza no
uso dos meios para toda a sorte de fins, de nenhum dos quais
podem saber se de futuro se transformará realmente numa intenção do seu educando, sendo entretanto possível que venha a ter
qualquer deles; e este cuidado é tão grande que por ele descuram
ordinariamente a tarefa de formar e corrigir o juízo dos filhos
sobre o valor // das coisas que poderão vir a eleger como fins.
Há no entanto uma finalidade da qual se pode dizer que
todos os seres racionais a perseguem realmente (enquanto lhes
convêm imperativos, isto é como seres dependentes), e portanto
uma intenção que não só eles podem ter, mas de que se deve
admitir que a têm na generali__________________________
// BA
41
,
42
51
dade por uma necessidade natural. Esta finalidade é a felicidade.
O imperativo hipotético que nos representa a necessidade prática
da acção como meio para fomentar a felicidade é assertórico.
Não se deve propor somente como necessário para uma intenção
incerta, simplesmente possível, mas para uma intenção que se
pode admitir como certa e a priori para toda a gente, pois que
pertence à sua essência. Ora a destreza na escolha dos meios para
atingir o maior bem-estar próprio pode-se chamar prudência
(Klugheit) (*) no sentido mais restrito da palavra. Portanto // o
imperativo que se relaciona com a escolha dos meios para
alcançar a própria felicidade, quer dizer o preceito de prudência,
continua a ser hipotético; a acção não é ordenada de maneira
absoluta, mas somente como meio para uma outra intenção.
Há por fim um imperativo que, sem se basear como
condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo
comportamento, ordena imediatamente este comportamento. Este
imperativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da
acção e com o que dela deve resultar, mas com a forma e o
princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom na
acção reside na disposição (Gesinnung) (*), seja qual for o
resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da
moralidade.
__________________________
(*) A palavra prudência é tomada em sentido duplo: ou pode designar a
prudência nas relações com o mundo, ou a prudência privada. A primeira é a
destreza de uma pessoa no exercício de influência sobre outras para as utilizar
para as suas intenções. A segunda é a sagacidade em reunir todas estas intenções
para alcançar uma vantagem pessoal durável. A última é propriamente aquela
sobre que reverte mesmo o valor da primeira, e quem é prudente no primeiro
sentido mas não no segundo, desse se poderá antes dizer: é esperto e manhoso,
mas em suma é imprudente. (Nota de Kant.)
(1) Delbos, pág. 128: intention; Lachelier, pág. 46: intention; Morente, pág. 59:
ánimo. (P.Q.)
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52
O querer segundo estes três princípios diferentes dis-tinguese também claramente pela diferença da obrigação imposta à
vontade. Para tornar bem marcada esta diferença, creio que o
mais conveniente seria denominar estes princípios por sua ordem,
dizendo: ou são regras da destreza, ou conselhos da prudência, ou
mandamentos (leis) da moralidade. Pois só a lei traz consigo o
conceito de uma necessidade incondicionada, objectiva e
consequentemente de validade geral, e mandamentos são // leis a
que tem de se obedecer, quer dizer que se têm de seguir mesmo
contra a inclinação. O conselho contém, na verdade, uma
necessidade, mas que só pode valer sob a condição subjectiva e
contingente de este ou aquele homem considerar isto ou aquilo
como contando para a sua felicidade; enquanto que o imperativo
categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e
se pode chamar propriamente um mandamento, absoluta-, posto
que praticamente, necessário. Os primeiros imperativos poderiam
ainda chamar-se técnicos (pertencentes à arte), os segundos
pragmáticos (*) (pertencentes ao bem-estar), os terceiros morais
(pertencentes à livre conduta em geral, isto é aos costumes).
Surge agora a questão: como são possíveis todos estes
imperativos? Esta pergunta não exige que se saiba como é que
pode ser pensada a execução da acção ordenada pelo imperativo,
mas somente como é que pode ser pensada a obrigação da
vontade que o imperativo exprime na tarefa
__________________________
(*) Parece-me que a verdadeira significação da palavra pragmático se pode
assim determinar da maneira mais exacta. Cha-mam-se pragmáticas as sanções
que decorrem propriamente não do direito dos Estados como leis necessárias,
mas da prevenção pelo bem-estar geral. A História é escrita pragmaticamente
quando nos torna prudentes, quer dizer quando ensina ao mundo actual a
maneira de assegurar a sua vantagem melhor ou pelo menos tão bem como o
mundo das gerações passadas. (Nota de Kant.)
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53
a cumprir. Não precisa discussão especial como seja possível um
imperativo de destreza. Quem quer o fim, quer também (se a
razão tem influência decisiva sobre as suas // acções) o meio
indispensavelmente necessário para o alcançar, que esteja no seu
poder. Esta proposição é, pelo que respeita ao querer, analítica;
pois no querer de um objecto como actividade minha está já
pensada a minha causalidade como causalidade de uma força
actuante, quer quer dizer o uso dos meios, e o imperativo extrai o
conceito das acções necessárias para este fim do conceito do
querer deste fim; (para determinar os próprios meios para
alcançar uma intenção proposta são já precisas na verdade
proposições sintéticas, que não dizem porém respeito ao
princípio, mas ao objecto a realizar). Que para dividir uma linha
em duas partes iguais, segundo certo princípio, tenho de tirar dois
arcos de círculo que se cruzem partindo das extremidades dessa
linha, isso ensina-mo a Matemática na verdade só por proposições
sintéticas; mas que, quando eu sei que só por esta acção é que o
efeito pensado se pode dar, se eu quiser obter esse efeito
completamente, tenho de querer também a acção que para isso é
indispensável, isto é uma proposição analítica; pois que
representar-me qualquer coisa como um efeito que me é possível
obter de determinada maneira e representar-me a mim mesmo
agindo dessa maneira em relação a esse efeito é a mesma coisa.
Os imperativos da prudência coincidiriam totalmente com os
da destreza // e seriam igualmente analíticos, se fosse igualmente
fácil dar um conceito determinado de felicidade. Com efeito,
poder-se-ia dizer aqui como acolá: quem quer o fim, quer também
(necessariamente conforme à razão) os únicos meios que para isso
estão no seu poder. Mas infelizmente o conceito de felicidade é tão
indeterminado que, se bem que todo o homem a deseje alcançar, ele
nunca pode dizer ao certo e de acordo consigo mesmo o que é que
propriamente deseja e quer. A causa disto é que
__________________________
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,
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todos os elementos que pertencem ao conceito de felicidade são
na sua totalidade empíricos, quer dizer têm que ser tirados da
experiência, e que portanto para a ideia de felicidade é necessário
um todo absoluto, um máximo de bem-estar, no meu estado
presente e em todo o futuro. Ora é impossível que um ser, mesmo
o mais perspicaz e simultaneamente o mais poderoso, mas finito,
possa fazer ideia exacta daquilo que aqui quer propriamente. Se é
a riqueza que ele quer, quantos cuidados, quanta inveja e quanta
cilada não pode ele chamar sobre si! Se quer muito conhecimento
e sagacidade, talvez isso lhe traga uma visão mais penetrante que
lhe mostre os males, que agora ainda se lhe conservam ocultos e
que não podem ser evitados, tanto mais terríveis, ou talvez venha
a acrescentar novas necessidades aos desejos que agora lhe dão já
bastante que fazer! Se quer vida longa, quem é que lhe // garante
que ela não venha a ser uma longa miséria? Se quer pelo menos
saúde, quantas vezes a fraqueza do corpo nos preserva de
excessos em que uma saúde ilimitada nos teria feito cair! Etc. Em
resumo, não é capaz de determinar, segundo qualquer princípio e
com plena segurança, o que é que verdadeiramente o faria feliz;
para isso seria precisa a omnisciência. Não se pode pois agir
segundo princípios determinados para se ser feliz, mas apenas
segundo conselhos empíricos, por exemplo: dieta, vida
económica, cortesia, moderação, etc, acerca dos quais a experiência
ensina que são, em média, o que mais pode fomentar o bem-estar.
Daqui conclui-se: que os imperativos dá prudência, para falar com
precisão, não podem ordenar, quer dizer representar as acções de
maneira objectiva como praticamente necessárias; que eles se
devem considerar mais como conselhos (consilia) do que como
mandamentos (praecepta) da razão; que o problema de determinar
certa- e universalmente, que acção poderá assegurar a felicidade de
um ser racional, é totalmente insolúvel, e que portanto, em relação
com ela, nenhum imperativo é possível que
__________________________
// BA
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possa ordenar, no sentido rigoroso da palavra, que se faça aquilo que
nos torna felizes, pois que a felicidade não é um ideal da razão, mas
da imaginação, que assenta somente em princípios empíricos dos
quais é vão esperar que determinem uma conduta necessária para
alcançar a totalidade de uma série de consequências // de facto
infinita. Este imperativo da prudência seria entretanto, admitindo que
era possível determinar exactamente os meios da felicidade, uma
proposição analítica-prática; pois ele distingue-se do imperativo da
destreza só em que neste o fim é simplesmente possível, enquanto
que naquele é dado. Mas como ambos eles apenas ordenam os meios
para aquilo que se pressupõe ser querido como fim, o imperativo que
manda querer os meios a quem quer o fim é em ambos os casos
analítico. Não há pois também dificuldade alguma a respeito da
possibilidade de um tal imperativo.
Em contraposição, a possibilidade do imperativo da
moralidade é sem dúvida a única questão que requer solução, pois
que este imperativo não é nada hipotético e portanto a
necessidade objectiva que nos apresenta não se pode apoiar em
nenhum pressuposto, como nos imperativos hipotéticos. Aqui,
porém, é preciso não perder de vista que não se pode demonstrar
por nenhum exemplo, isto é empiricamente, se há por toda a parte
um tal imperativo; mas há a recear que todos os que parecem
categóricos possam afinal ser disfarçadamente hipotéticos.
Quando, por exemplo, dizemos: «Não deves fazer promessas
enganadoras», — admitimos que a necessidade desta abstenção
não é somente um conselho para evitar // qualquer outro mal, como
se disséssemos: «Não deves fazer promessas mentirosas para não
perderes o crédito quando se descobrir o teu procedimento»;
admitimos pelo contrário que uma acção deste género tem de ser
considerada como má por si mesma, que o imperativo da proibição é
portanto categórico; mas não poderemos encontrar nenhum
exemplo seguro em que a vontade seja deter__________________________
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56
minada somente pela lei, sem qualquer outro móbil, embora
assim pareça; pois é sempre possível que o receio da vergonha,
talvez também a surda apreensão de outros perigos, tenham
influído secretamente sobre a vontade. Quem é que pode provar
pela experiência a não existência de uma causa, uma vez que a
experiência nada mais nos ensina senão que a não descobrimos?
Neste caso, porém, o pretenso imperativo moral, que como tal
parece categórico e incondicional, não passaria de facto de uma
prescrição pragmática que chama a nossa atenção para as nossas
vantagens e apenas nos ensina a tomá-las em consideração.
Teremos pois que buscar totalmente a priori a possibilidade
de um imperativo categórico, uma vez que aqui nos não assiste a
vantagem de a sua realidade nos ser dada na experiência, de
modo que não seria precisa a possibilidade para o
estabelecermos, mas somente para o explicarmos. Notemos no
entanto provisoriamente que só o imperativo categórico tem o
carácter de uma // lei prática, ao passo que todos os outros se
podem chamar em verdade princípios da vontade, mas não leis;
porque o que é somente necessário para alcançar qualquer fim
pode ser considerado em si como contingente, e podemos a todo
o tempo libertar-nos da prescrição renunciando à intenção, ao
passo que o mandamento incondicional não deixa à vontade a
liberdade de escolha relativamente ao contrário do que ordena, só
ele tendo portanto em si aquela necessidade que exigimos na lei.
Em segundo lugar, o princípio da dificuldade que suscita
este imperativo categórico ou lei da moralidade (a dificuldade de
reconhecer a sua possibilidade), é também muito grande. Ele é
uma proposição sintética-prática (*)
__________________________
(*) Eu ligo à vontade, sem condição pressuposta de qual quer inclinação, o
acto a priori, e portanto necessariamente (posto
// BA 50
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a priori, e pois que a explicação da possibilidade das proposições
deste género levanta tão grande dificuldade no conhecimento
teórico, já se deixa ver que no campo prático essa dificuldade não
será menor.
// Neste problema vamos primeiro tentar se acaso o simples
conceito de imperativo categórico não fornece também a sua
fórmula, fórmula que contenha a proposição que só por si possa
ser um imperativo categórico; porque a questão de saber como é
possível um mandamento absoluto, posto saibamos já o seu teor,
exigirá ainda um esforço particular e difícil que reservamos para
a última secção desta obra.
Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de
antemão o que ele poderá conter. Só o saberei quando a condição
me seja dada. Mas se pensar um imperativo categórico, então sei
imediatamente o que é que ele contém. Porque, não contendo o
imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima (*) que
manda con__________________________
que só objectivamente, quer dizer partindo da ideia de uma razão que teria pleno
poder sobre todos os móbiles subjectivos). Isto é pois uma proposição prática
que não deriva analiticamente o querer de uma acção de um outro querer já
pressuposto (pois nós não possuímos uma vontade tão perfeita), mas que o liga
imediatamente com o conceito da vontade de um ser racional, como qualquer
coisa que nele não está contida. (Nota de Kant.)
(*) Máxima é o princípio subjectivo da acção e tem de se distinguir do princípio
objectivo, quer dizer da lei prática. Aquela contém a regra prática que determina
a razão (1) em conformidade com as condições do sujeito (muitas vezes em
conformidade com a sua ignorância ou as suas inclinações), e é portanto o
princípio segundo o qual o sujeito age; a lei, porém, é o princípio objectivo,
válido para todo o ser racional, princípio segundo o qual ele deve agir, quer
dizer um imperativo. (Nota de Kant.)
(1) Delbos (pág. 136) dá uma interpretação diferente, fazendo de «a razão» o
sujeito da operação relativa. (P.Q.)
// BA 51
58
formar-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição
que a limite, nada mais resta senão a universalidade de uma lei
em geral à qual a máxima da acção // deve ser conforme,
conformidade essa que só o imperativo nos representa
propriamente como necessária.
O imperativo categórico é portanto só um único, que é este:
Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo
tempo querer que ela se torne lei universal.
Ora se deste único imperativo se podem derivar, como do
seu princípio, todos os imperativos do dever, embora deixemos
por decidir se aquilo a que se chama dever não será em geral um
conceito vazio, podemos pelo menos indicar o que pensamos por
isso e o que é que este conceito quer dizer.
Uma vez que a universalidade da lei, segundo a qual certos
efeitos se produzem, constitui aquilo a que se chama
propriamente natureza no sentido mais lato da palavra (quanto à
forma), quer dizer a realidade das coisas, enquanto é determinada
por leis universais, o imperativo universal do dever poderia
também exprimir-se assim: Age como se a máxima da tua acção
se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da
natureza.
Vamos agora enumerar alguns deveres, segundo a divisão
habitual em deveres para // connosco mesmos e deveres para com
os outros, em deveres perfeitos e imperfeitos (*).
__________________________
(*) Deverá notar-se aqui que reservo inteiramente para uma futura Metafísica
dos Costumes a classificação dos deveres, e que esta agora é adoptada apenas
por comodidade (para ordenar os meus exemplos). De resto, entendo aqui por
dever perfeito aquele que não permite excepção alguma em favor da inclinação,
e então não tenho apenas deveres perfeitos exteriores, mas também interiores, o
que vai de encontro à terminologia adoptada nas escolas; mas não tenciono dar
agora qualquer justificação, pois que, para o meu propósito, é indiferente que se
aceite ou não. (Nota de Kant.)
// BA
52
,
53
59
I) Uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao
desespero e sente tédio da vida, mas está ainda bastante em posse
da razão para poder perguntar a si mesmo se não será talvez
contrário ao dever para consigo mesmo atentar contra a própria
vida. E procura agora saber se a máxima da sua acção se poderia
tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém, é a
seguinte: Por amor de mim mesmo, admito como princípio que,
se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com desgraças do que
me promete alegrias, devo encurtá-la. Mas pergun-ta-se agora se
este princípio do amor de si mesmo se pode tornar em lei
universal da natureza. Vê-se então em breve que uma natureza,
cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento
cujo objectivo é suscitar a sua // conservação, se contradiria a si
mesma e portanto não existiria como natureza. Por conseguinte
aquela máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei
universal da natureza, e portanto é absolutamente contrária ao
princípio supremo de todo o dever.
2) Uma outra pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir
dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas
vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer
firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de
fazer a promessa; mas tem ainda consciência bastante para
perguntar a si mesma: Não é proibido e contrário ao dever livrarse de apuros desta maneira? Admitindo que se decidia a fazê-lo, a
sua máxima de acção seria: Quando julgo estar em apuros de
dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora
saiba que tal nunca sucederá. Este princípio do amor de si mesmo
ou da própria conveniência pode talvez estar de acordo com todo o
meu bem-estar futuro; mas agora a questão é de saber se é justo.
Converto assim esta exigência do amor de si mesmo em lei universal
e ponho assim a questão: Que aconteceria se a minha máxima se
transformasse em lei universal? Vejo então imediatamente
__________________________
// BA
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60
que ela nunca poderia valer como lei universal da natureza e
concordar consigo mesma, mas que, pelo contrário, ela se
contradiria // necessariamente. Pois a universalidade de uma lei
que permitisse a cada homem que se julgasse em apuros prometer
o que lhe viesse à ideia com a intenção de o não cumprir, tornaria
impossível a própria promessa e a finalidade que com ela se
pudesse ter em vista; ninguém acreditaria em qualquer coisa que
lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais declarações como de
vãos enganos.
3) Uma terceira pessoa encontra em si um talento natural
que, cultivado em certa medida, poderia fazer dele um homem
útil sob vários aspectos. Mas encontra-se em circunstâncias
cómodas e prefere ceder ao prazer a esfor-çar-se por alargar e
melhorar as suas felizes disposições naturais. Mas está em
condições de poder perguntar ainda a si mesmo se, além da
concordância que a sua máxima do desleixo dos seus dons
naturais tem com a sua tendência para o gozo, ela concorda
também com aquilo que se chama dever. E então vê que na
verdade uma natureza com uma tal lei universal poderia ainda
subsistir, mesmo que o homem (como os habitantes dos mares do
Sul) deixasse enferrujar o seu talento e cuidasse apenas de empregar
a sua vida na ociosidade, no prazer, na propagação da espécie, numa
palavra — no gozo; mas não pode querer que isto se transforme em
lei universal da natureza ou que exista dentro de nós por instinto //
natural. Pois como ser racional quer ele necessariamente que todas as
suas faculdades se desenvolvam, porque lhe foram dadas e lhe
servem para toda a sorte de fins possíveis.
Uma quarta pessoa ainda, que vive na prosperidade ao
mesmo tempo que vê outros a lutar com grandes dificuldades (e
aos quais ela poderia auxiliar), pensa: Que é que isso me importa?
Que cada qual goze da felicidade que o céu lhe concede ou que
ele mesmo pode arranjar;
__________________________
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55
,
56
61
eu nada lhe tirarei dela, nem sequer o invejarei; mas contribuir
para o seu bem-estar ou para o seu socorro na desgraça, para isso
é que eu não estou! Ora supondo que tal maneira de pensar se
transformava em lei universal da natureza, é verdade que o género
humano poderia subsistir, e sem dúvida melhor ainda do que se
cada qual se pusesse a pairar de compaixão e bem-querença e
mesmo se esforçasse por praticar ocasionalmente estas virtudes,
ao mesmo tempo que, sempre que pudesse, se desse ao engano,
vendendo os direitos dos outros ou prejudican-do-os de qualquer
outro modo. Mas, embora seja possível que uma lei universal da
natureza possa subsistir segundo aquela máxima, não é contudo
possível querer que um tal princípio valha por toda a parte como
lei natural. Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em
contradição consigo mesma; podem com efeito desco-brir-se
muitos casos em que a pessoa em questão precise do amor e da
compaixão dos outros e em que ela, graças a tal lei natural //
nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma toda a
esperança de auxílio que para si deseja. Estes são apenas alguns
dos muitos deveres reais ou que pelo menos nós consideramos
como tais, cuja derivação do princípio único acima exposto
ressalta bem clara. Temos que poder querer que uma máxima da
nossa acção se transforme em lei universal: é este o cânone pelo
qual a julgamos moralmente em geral. Algumas acções são de tal
ordem que a sua máxima nem sequer se pode pensar sem
contradição como lei universal da natureza, muito menos ainda se
pode querer que devam ser tal. Em outras não se encontra, na
verdade, essa impossibilidade interna, mas é contudo impossível
querer que a sua máxima se erga à universalidade de uma lei da
natureza, pois que uma tal vontade se contradiria a si mesma.
Facilmente se vê que as do primeiro género contrariam o dever
estrito ou estreito (iniludível), e as do segundo o dever mais largo
(meritório); e assim todos os deveres, pelo que respeita
__________________________
// BA
57
62
à natureza da obrigação (não ao objecto da sua acção), pelos
exemplos apontados, ficam postos completamente em
dependência do mesmo princípio único.
Se agora prestarmos atenção ao que se passa em nós mesmos
sempre que transgredimos qualquer dever, descobriremos que na
// realidade não queremos que a nossa máxima se torne lei
universal, porque isso nos é impossível; o contrário dela é que
deve universalmente continuar a ser lei; nós tomamos apenas a
liberdade de abrir nela uma exeepção para nós, ou (também só
por esta vez) cm favor da nossa inclinação. Por conseguinte, se
considerássemos tudo partindo de um só ponto de vista, o da
razão, encontraríamos uma contradição na nossa própria vontade,
a saber: que um certo princípio seja objectivamente necessário
como lei universal e que subjectivamente não deva valer
universalmente, mas permita excepções. Mas como, na realidade,
nós consideramos a nossa acção ora do ponto de vista de uma
vontade totalmente conforme à razão, ora, por outro lado, vemos a
mesma acção do ponto de vista de uma vontade afectada pela
inclinação, não há aqui verdadeiramente nenliuma contradição, mas
sim uma resistência da inclinação às prescrições da razão
(antagonismus), pela qual resistência a universalidade do princípio
(universalitas) se transforma numa simples generalidade
(generalitas), de tal modo que o princípio prático da razão se deve
encontrar a meio caminho com a máxima. Ora, ainda que isto se não
possa justificar no nosso próprio juízo imparcial, prova contudo que
nós reconhecemos verdadeiramente a validade do imperativo categórico e nos permitimos apenas (com todo o respeito por ele) algumas
// excepções forçadas e, ao que nos parece, insignificantes.
Conseguimos portanto mostrar, pelo menos, que, se o dever
é um conceito que deve ter um significado e conter uma
verdadeira legislação para as nossas acções, esta legislação só se
pode exprimir em imperativos cate__________________________
// BA
58
,
59
63
góricos, mas de forma alguma em imperativos hipotéticos; de
igual modo determinámos claramente e para todas as aplicações,
o que já é muito, o conteúdo do imperativo categórico que tem de
encerrar o princípio de todo o dever (se é que, em verdade, há
deveres). Mas ainda não chegámos a provar a priori que um tal
imperativo existe realmente, que há uma lei prática que ordene
absolutamente por si e independentemente de todo o móbil, e que
a obediência a esta lei é o dever.
Se quisermos atingir este fim, será da mais alta importância
advertir que não nos deve sequer passar pela ideia querer derivar a
realidade deste princípio da constituição particular da natureza
humana. Pois o dever deve ser a necessidade prática-incondicionada
da acção; tem de valer portanto para todos os seres racionais (os
únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo), e só por
isso pode ser lei também para toda a vontade humana. Tudo o que,
pelo contrário, derive da // disposição natural particular da
humanidade, de certos sentimentos e tendências, mesmo até, se
possível, duma propensão especial que seja própria da razão humana
e não tenha que valer necessariamente para a vontade de todo o ser
racional, tudo isso pode na verdade dar lugar para nós a uma
máxima, mas não a uma lei; pode dar-nos um princípio subjectivo
segundo o qual poderemos agir por queda ou tendência, mas não um
princípio objectivo que nos mande agir mesmo a despeito de todas as
nossas tendências, inclinações e disposições naturais. Tanto assim,
que a sublimidade e íntima dignidade do mandamento expresso num
dever resplandecerão tanto mais, quanto menor for o apoio e mesmo
quanto maior for a resistência que ele encontre nas causas
subjectivas, sem que com isto enfraqueça no mínimo que seja a
obrigação que a lei impõe ou ela perca nada da sua validade.
Ora aqui vemos nós a filosofia posta de facto numa situação
melindrosa, situação essa que deve ser firme,
__________________________
// BA 60
64
sem que possa encontrar nem no céu nem na terra qualquer coisa
a que se agarre ou em que se apoie. Aqui deve ela provar a sua
pureza como mantenedora das suas próprias leis e não como
arauto daquelas que lhe segrede um sentido inato ou não sei que
natureza tutelar, as quais no seu conjunto, sendo melhores que
coisa nenhuma, nunca poderão aliás fornecer princípios que a
razão dite e que tenham de ter a sua origem totalmente a priori e
com ela simultaneamente a sua autoridade // imperativa: nada
esperar da inclinação dos homens, e tudo do poder supremo da
lei e do respeito que lhe é devido, ou então, em caso contrário,
condenar o homem ao desprezo de si mesmo e à execração
íntima.
Tudo portanto o que é empírico é, como acrescento ao
princípio da moralidade, não só inútil mas também altamente
prejudicial à própria pureza dos costumes; pois o que constitui o
valor particular de uma vontade absolutamente boa, valor
superior a todo o preço, é que o princípio da acção seja livre de
todas as influências de motivos contingentes que só a experiência
pode fornecer. Todas as prevenções serão poucas contra este
desleixo ou mesmo esta vil maneira de pensar, que leva a buscar
o princípio da conduta em motivos e leis empíricas; pois a razão
humana é propensa a descansar das suas fadigas neste travesseiro
e, no sonho de doces ilusões (que lhe fazem abraçar uma nuvem
em vez de Juno), a pôr em lugar do filho legítimo da moralidade
um bastardo composto de membros da mais variada proveniência
que se parece com tudo o que nele se queira ver, só não se parece
com a virtude aos olhos de quem um dia a tenha visto na sua
verdadeira figura (*).
__________________________
(*) Ver a virtude na sua verdadeira figura não é mais do que representar a
moralidade despida de toda a mescla de elementos sensíveis // e de todos os
falsos adornos da recompensa e do amor
// BA 61
Nota: // BA 61
65
// A questão que se põe é portanto esta: — É ou não é uma
lei necessária para todos os seres racionais a de julgar sempre as
suas acções por máximas tais que eles possam querer que devam
servir de leis universais? Se essa lei existe, então tem ela de
estar já ligada (totalmente a priori) ao conceito de vontade de
um ser racional em geral. Mas para descobrir esta ligação é
preciso, por bem que nos custe, dar um passo mais além, isto é
para a Metafísica, posto que para um campo da Metafísica que é
distinto do da Filosofia especulativa, e que é: a Metafísica dos
Costumes. Numa filosofia prática, em que não temos de
determinar os princípios do que acontece mas sim as leis do que
deve acontecer, mesmo que nunca aconteça, quer dizer leis
objectivas-práticas; numa tal filosofia, digo, não temos
necessidade de encetar investigações sobre as razões por que
qualquer coisa agrada ou desagrada, por que, por exemplo, o
prazer da simples sensação se distingue do gosto, e se este se
distingue de um prazer universal da razão; não precisamos de
investigar sobre que assenta o sentimento do prazer e do
desprazer, e como é que daqui resultam desejos e tendências, e
como destas por sua vez, com o concurso da razão, resultam as //
máximas; porque tudo isto pertence a uma psicologia empírica
que constituiria a segunda parte da ciência da natureza se a
considerássemos como Filosofia da Natureza, enquanto ela
se funda em leis empíricas. Aqui trata-se, porém, da lei objectiva-prática (1), isto é darelação de uma vontade consigo mesma
enquanto essa vontade se determina só pela razão, pois que então
tudo o que se relaciona com o empírico
__________________________
de si mesmo. Como ela então deixa na sombra tudo o que às inclinações parece
tão encantador, eis o que cada qual pode facilmente ver pelo menor esforço da
sua razão, se esta não estiver já de todo incapacitada para toda a abstracção.
(Nota de Kant)
(1) Lachelier (pag. 63) e Morente (pág. 76) traduzem a expressão no
plural. (P.Q.)
// BA 62, 63
66
desaparece por si, porque, se a razão por si só determina o
procedimento (e essa possibilidade é que nós vamos agora
investigar), terá de fazê-lo necessariamente a priori.
A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a
si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas
leis. E uma tal faculdade só se pode encontrar em seres racionais.
Ora aquilo que serve à vontade de princípio objectivo da sua
autodeterminação é o fim (Zweck), e este, se é dado pela só razão,
tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais. O que
pelo contrário contém apenas o princípio da possibilidade da
acção, cujo efeito é um fim, chama-se meio. O princípio
subjectivo do desejar é o móbil (Triebfeder) (1), o princípio
objectivo do querer é o motivo (Bewegungsgrund); daqui a
diferença entre fins subjectivos, que assentam em móbiles, e
objectivos, que dependem de motivos, válidos para // todo o ser
racional. Os princípios práticos são formais, quando fazem
abstracção de todos os fins subjectivos; mas são materiais quando
se baseiam nestes fins subjectivos e portanto em certos móbiles.
Os fins que um ser racional se propõe a seu grado como efeitos da
sua acção (fins materiais) são na totalidade apenas relativos; pois
o que lhes dá o seu valor é somente a sua relação com uma
faculdade de desejar do sujeito com características especiais,
valor esse que por isso não pode fornecer princípios universais
para todos os seres racionais, que sejam também válidos e
necessários para todo o querer, isto é leis práticas. Todos estes
fins relativos são, por conseguinte, apenas a base de imperativos
hipotéticos.
Admitindo porém que haja alguma coisa cuja existência em
si mesma tenha um valor absoluto e que, como fim em si mesmo,
possa ser a base de leis determinadas, nessa
__________________________
(1)
Morente (pág. 76): «resorte». (P.Q.).
// BA 64
67
coisa e só nela é que estará a base de um possível imperativo
categórico, quer dizer de uma lei prática.
Ora digo eu: — O homem, e, duma maneira geral, todo o ser
racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o
uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas
as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas
que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser
considerado simultaneamente como fim. Todos os objectos das
inclinações têm somente um valor condicional, pois, se não
existissem as inclinações e as necessidades que nelas se baseiam,
o seu objecto seria sem valor. As próprias inclinações, porém,
como fontes das necessidades, estão tão longe de ter um valor
absoluto que as torne desejáveis em si mesmas, que, muito pelo
contrário, o desejo universal de todos os seres racionais deve ser o
de se libertar totalmente delas. Portanto o valor de todos os
objectos que possamos adquirir pelas nossas acções é sempre
condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da
nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres
irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se
chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam
pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si
mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como
simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o
arbítrio (1) (e é um objecto do respeito). Estes não são portanto
meros fins subjectivos cuja existência tenha para nós um valor
como efeito da nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizer
coisas cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se
não pode pôr nenhum outro no seu lugar em
__________________________
(1) O original: «...mithin sofern alle Willkür einschränkt» — é assim traduzido
por Delbos (pág. 149): «...qui par suite limite d’autant toute faculté d’agir
comme bon nous semble». (P.Q.).
// BA
65
68
relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios;
porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que
tivesse valor absoluto; mas se todo // o valor fosse condicional, e
por conseguinte contingente, em parte alguma se poderia
encontrar um princípio prático supremo para a razão.
Se, pois, deve haver um princípio prático supremo e um
imperativo categórico no que respeita à vontade humana, então
tem de ser tal que, da representação daquilo que é
necessariamente um fim para toda a gente, porque é fim em si
mesmo, faça um princípio objectivo da vontade, que possa por
conseguinte servir de lei prática universal. O fundamento deste
princípio é: A natureza racional existe como fim em si. É assim
que o homem se representa necessariamente a sua própria
existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio
subjectivo das acções humanas. Mas é também assim que
qualquer outro ser racional se representa a sua existência, em
virtude exactamente do mesmo princípio racional que é válido
também para mim (*); é portanto simultaneamente um princípio
objectivo, do qual como princípio prático supremo se têm de
poder derivar todas as leis da vontade. O imperativo prático será
pois o seguinte: Age ‘de tal maneira que uses a humanidade,
tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e
simultaneamente como fim e nunca // simplesmente como meio.
Vamos ver se é possível cumprir isto. Atendo-nos aos exemplos
dados atrás, veremos: Primeiro: Segundo o conceito do dever
necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em
suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua acção pode estar de
acordo com a ideia da humanidade como fim em
__________________________
(*) Apresento aqui esta proposição como um postulado. Na última secção
encontraremos as razões em que se apoia. (Nota de Kant.)
// BA
66
,
67
69
si mesma. Se, para escapar a uma situação penosa, se destrói a si
mesmo, serve-se ele de uma pessoa como. de um simples meio
para conservar até ao fim da vida uma situação suportável. Mas o
homem não é uma coisa; não é portanto um objecto que possa ser
utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve
ser considerado sempre em todas as suas acções como fim em si
mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa
para o mutilar, o degradar ou o matar. (Tenho de deixar agora de
parte a determinação mais exacta deste princípio para evitar todo
o mal-entendido, por exemplo no caso de amputação de membros
para me salvar, ou no de pôr a vida em perigo para a conservar,
etc.; essa determinação pertence à moral propriamente dita.)
Segundo: Pelo que diz respeito ao dever necessário ou estrito
para com os outros, aquele que tem a intenção de fazer a outrem
uma promessa mentirosa reconhecerá imediatamente que quer
servir-se de outro homem // simplesmente como meio, sem que
este último contenha ao mesmo tempo o fim em si. Pois aquele
que eu quero utilizar para os meus intuitos por meio de uma tal
promessa não pode de modo algum concordar com a minha
maneira de, proceder a seu respeito, não pode portanto conter em
si mesmo o fim desta acção. Mais claramente ainda dá na vista
esta colisão com o princípio de humanidade (1) em outros homens
quando tomamos para exemplos ataques à liberdade ou à
propriedade alheias. Porque então é evidente que o violador dos
direitos dos homens tenciona servir-se das pessoas dos outros
simplesmente como meios, sem considerar que eles, como seres
racionais, devem ser sempre tratados ao mesmo tempo como fins,
isto é uni__________________________
(1) Kant diz simplesmente: «das Prinzip anderer Menschen» — «o princípio de
outros homens». Seguimos neste passo a interpretação de Delbos (pág. 152) e de
Lachelier (pág. 68). (P.Q.).
// BA 68
70
camente como seres que devem poder conter também em si o
fim desta mesma acção (*).
Terceiro: Pelo que respeita ao dever contingente (meritório) para consigo mesmo, não basta que a // acção não esteja
em contradição com a humanidade na nossa pessoa como fim
em si, é preciso que concorde com ela. Ora, há na humanidade
disposições para maior perfeição que pertencem ao fim da
natureza a respeito da humanidade na nossa pessoa; descurar
essas disposições poderia em verdade subsistir com a
conservação da humanidade como fim em si, mas não com a
promoção deste fim.
Quarto: No que concerne o dever meritório para com
outrem, o fim natural que todos os homens têm é a sua própria
felicidade. Ora, é verdade que a humanidade poderia subsistir se
ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contanto que
também lhes não subtraísse nada intencionalmente; mas se cada
qual se não esforçasse por contribuir na medida das suas forças
para os fins dos seus semelhantes, isso seria apenas uma
concordância negativa e não positiva com a humanidade como
fim em si mesma. Pois que se um sujeito é um fim em si mesmo,
os seus fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela
ideia poder exercer em mim toda a sua eficácia.
Este princípio da humanidade e de toda a natureza racional
em geral como fim em si mesma (que é a condição
__________________________
(*) Não vá pensar-se que aqui o trivial: quod tibi non vis fieri etc, possa servir
de directriz ou princípio. Pois este preceito, posto que com várias restrições, só
pode derivar daquele; não pode ser uma lei universal, visto não conter o
princípio dos deveres para consigo mesmo, nem o dos deveres de caridade para
com os outros (porque muitos renunciariam de bom grado a que os outros lhes
fizessem bem se isso os dispensasse de eles fazerem bem aos outros), nem
mesmo finalmente o princípio dos deveres mútuos; porque o criminoso poderia
por esta razão, argumentar contra os juízes que o punem, etc. (Nota de Kant.)
// BA 69
71
suprema que limita a liberdade // das acções de cada homem)
não é extraído da experiência, — primeiro, por causa da sua
universalidade, pois que se aplica a todos os seres racionais em
geral, sobre o que nenhuma experiência chega para determinar
seja o que for; segundo, porque nele a humanidade se
representa não como fim dos homens (subjectivo), isto é
como objecto de que fazemos por nós mesmos efectivamente um
fim, mas como fim objectivo, o qual, sejam quais forem os fins
que tenhamos em vista, deve constituir como lei a condição
suprema que limita todos os fins subjectivos, e que por isso só
pode derivar da razão pura. É que o princípio de toda a
legislação prática reside objectivamente na regra e na forma da
universalidade que a torna capaz (segundo o primeiro princípio)
de ser uma lei (sempre lei da natureza); subjectivamente, porém,
reside no fim; mas o sujeito de todos os fins é (conforme o
segundo princípio) todo o ser racional como fim em si mesmo:
daqui resulta o terceiro princípio prático da vontade como
condição suprema da concordância desta vontade com a razão
prática universal, quer dizer a ideia da vontade de todo o ser
racional concebida como vontade legisladora universal.
Segundo este princípio são rejeitadas todas as máximas que
não possam subsistir juntamente com a própria legislação
universal da vontade. A vontade não está pois simplesmente
submetida // à lei, mas sim submetida de tal maneira que tem de
ser considerada também como legisladora ela mesma (1), e
exactamente por isso e só então submetida à lei (de que ela se
pode olhar como autora).
__________________________
(1) No original «... als selbstgesetzgebend». Delbos (pág. 155) traduz: «comme
instituant elle-même la loi»; Lachelier (pág. 70): «qu’elle soit législatrice»;
Morente (pág. 82): «como legislándose a sí propria». (P.Q.).
// BA 70, 71
72
Os imperativos, tais como atrás no-los representámos, quer
dizer como constituindo uma legislação das acções
universalmente semelhante a uma ordem natural, ou como
universal privilégio de finalidade dos seres racionais em si
mesmos (1), excluíam sem dúvida do seu princípio de autoridade
toda a mescla de qualquer interesse como móbil, exactamente por
serem concebidos como categóricos; mas eles só foram
admitidos como categóricos porque tínhamos de admiti-los como
tais se queríamos explicar o conceito de dever. Mas que houvesse
proposições práticas que ordenassem categoricamente, eis o que
por si não pôde ser provado e o que nesta secção tão-pouco se
pode provar ainda; mas podia ter acontecido uma coisa, a saber:
indicar no próprio imperativo, por qualquer determinação nele
contida, a renúncia a todo o interesse no querer por dever como
carácter específico de distinção do imperativo categórico em face
do hipotético. Ora é precisamente o que acontece na presente
terceira fórmula do princípio, isto é na ideia da vontade de todo o
ser racional como vontade legisladora universal.
__________________________
(1) Confronte-se a nossa tradução do passo original: — «Die Imperativen nach
der vorigen Vorstellungsart, nämlich der allgemein einer Naturordnung
ähnlichen Gesetzmässigkeit der Handlungen oder des allgemeinen
Zwecksvorzuges vernünftiger Wesen an sich selbst...» — respectivamente com
as de Delbos (pág. 155), Lachelicr (págs. 70-71) e Morente (pág. 83): — «Les
impératifs, selon le genre de formules que nous avons présentées plus haut, soit
celui qui exige que les actions soient conformes à des lois universelles comme
dans un ordre de la nature, soit celui qui veut que les êtres raisonnables aient la
prérogative universelle de fins en soi...» — «Les impératifs, tels que nous
venons de les représenter, c’est-à-dire constituant une législation pratique
sembla-ble en general à l’ordre de la nature, ou accordant aux êtres raisonnables, consideres en eux-mêmes, le privilège de la finalité en soi...» — «Los
imperativos, según el modo anterior de representados, a saber: la legalidad de
las acciones semejante a un orden natural, o la preferencia universal del fin en
pro de los seres racionales en si mismos...». (P.Q.)
73
// Pois quando pensamos uma tal vontade, se bem que uma
vontade subordinada a leis possa estar ainda ligada a estas leis
por meio de um interesse, não é no entanto possível que a
vontade, que é ela mesma legisladora suprema, dependa,
enquanto tal, de um interesse qualquer; pois que uma tal vontade
dependente precisaria ainda de uma outra lei que limitasse o
interesse do seu amor-próprio à condição de uma validade como
lei universal.
Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana
seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas
máximas (*), se fosse seguramente estabelecido, conviria
perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que,
exactamente por causa da ideia da legislação universal, ele se não
funda em nenhum interesse, e portanto, de entre todos os
imperativos possíveis, é o único que pode ser incondicional; ou,
melhor ainda, invertendo a proposição: se há um imperativo
categórico (i. é uma lei para a vontade de todo o ser racional), ele
só pode ordenar que tudo se faça em obediência à máxima de
uma vontade que simultaneamente se possa ter a si mesma por //
objecto como legisladora universal (1); pois só então é que o
princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser
incondicionais, porque não têm interesse algum sobre que se
fundem.
Se agora lançarmos um olhar para trás sobre todos os
esforços até agora empreendidos para descobrir o princípio da
moralidade, não nos admiraremos ao ver que todos eles tinham
necessariamente de falhar. Via-se o
__________________________
(*) Posso dispensar-me de apresentar aqui exemplos para esclarecer este
princípio, pois os que serviram há pouco para explicar o imperativo categórico e
a sua fórmula podem agora ser todos utilizados para este fim. (Nota de Kant.)
(1) Morente (pág. 84) traduz: «...que se haga todo por la máxima de una
voluntad tal que pueda tener-se a si misma al mismo tiempo como
universalmente legisladora respecto del objecto». (P.Q.).
// BA 72, 73
74
homem ligado a leis pelo seu dever, mas não vinha à ideia de
ninguém que ele estava sujeito só à sua própria legislação,
embora esta legislação seja universal, e que ele estava somente
obrigado a agir conforme a sua própria vontade, mas que,
segundo o fim natural, essa vontade era legisladora universal.
Porque, se nos limitávamos a conceber o homem como submetido
a uma lei (qualquer que ela fosse), esta lei devia ter em si
qualquer interesse que o estimulasse ou o constrangesse, uma vez
que, como lei, ela não emanava da sua vontade, mas sim que a
vontade era legalmente obrigada por qualquer outra coisa a agir
de certa maneira. Em virtude desta consequência inevitável,
porém, todo o trabalho para encontrar um princípio supremo do
dever era irremediavelmente perdido; pois o que se obtinha não
era nunca o dever, mas sim a necessidade da acção partindo de
um determinado interesse, interesse esse que ora podia ser próprio
ora alheio. Mas então o imperativo tinha que resultar sempre
condicionado // e não podia servir como mandamento moral.
Chamarei, pois, a este princípio, princípio da Autonomia da
vontade, por oposição a qualquer outro que por isso atribuo à
Heteronomia.
O conceito segundo o qual todo o ser racional deve
considerar-se como legislador universal por todas as máximas da
sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às
suas acções, leva a um outro conceito muito fecundo que lhe anda
aderente e que é o de um Reino dos Fins.
Por esta palavra reino entendo eu a ligação sistemática de
vários seres racionais por meio de leis comuns. Ora como as leis
determinam os fins segundo a sua validade universal, se se fizer
abstracção das diferenças pessoais entre os seres racionais e de
todo o conteúdo dos seus fins particulares, poder-se-á conceber
um todo do conjunto dos fins (tanto dos seres racionais como fins
em si, como tam__________________________
// BA 74
75
bém dos fins próprios que cada qual pode propor a si mesmo)
em ligação sistemática, quer dizer, um reino dos fins que seja
possível segundo os princípios acima expostos.
Seres racionais estão pois todos submetidos a esta lei que
manda que cada um deles jamais // se trate a si mesmo ou aos
outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente
como fins em si. Daqui resulta porém uma ligação sistemática de
seres racionais por meio de leis objectivas comuns, i. é um reino
que, exactamente porque estas leis têm em vista a relação destes
seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar um
reino dos fins (que na verdade é apenas um ideal).
Mas um ser racional pertence ao reino dos fins como seu
membro quando é nele em verdade legislador universal, estando
porém também submetido a estas leis. Per-tence-me como chefe
quando, como legislador, não está submetido à vontade de um outro.
O ser racional tem de considerar-se sempre como legislador
num reino dos fins possível pela liberdade da vontade, quer seja
como membro quer seja como chefe. Mas o lugar deste último
não pode ele assegurá-lo somente pela máxima da sua vontade,
mas apenas quando seja um ser totalmente independente, sem
necessidade nem limitação do seu poder adequado à vontade.
A moralidade consiste pois na relação de toda a acção com a
legislação, através da qual somente se torna possível um reino
dos fins. Esta legislação tem de poder encon-trar-se em cada ser //
racional mesmo e brotar da sua vontade, cujo princípio é: nunca
praticar uma acção senão em acordo com uma máxima que se
saiba poder ser uma lei universal, quer dizer só de tal maneira que
a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao
mesmo tempo como legisladora universal. Ora se as máximas não
são já pela sua natureza necessariamente concordes com este
princípio objectivo dos seres racionais como legisladores
universais, a necessidade da acção segundo aquele
__________________________
// BA
75
,
76
76
princípio chama-se então obrigação prática, isto é, dever. O dever
não pertence ao chefe no reino dos fins, mas sim a cada membro
e a todos em igual medida.
A necessidade prática de agir segundo este princípio, isto é,
o dever, não assenta em sentimentos, impulsos e inclinações, mas
sim somente na relação dos seres racionais entre si, relação essa
em que a vontade de um ser racional tem de ser considerada
sempre e simultaneamente como legisladora, porque de outra
forma não podia pen-sar-se como fim em si mesmo. A razão
relaciona pois cada máxima da vontade concebida como
legisladora universal com todas as outras vontades e com todas as
acções para connosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer
outro móbil prático ou de qualquer vantagem futura, mas em
virtude da ideia da // dignidade de um ser racional que não obedece
a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá.
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer
outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais
do homem tem um preço venal; aquilo que, mesmo sem
pressupor uma necessidade, é conforme a um certo gosto, isto é a
uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas
faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento
(Affektionspreis); aquilo porém que constitui a condição só
graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não
tem somente um valor relativo, isto é um preço, mas um valor
íntimo, isto é dignidade.
Ora a moralidade é a única condição que pode fazer de um
ser racional um fim em si mesmo, pois só por ela lhe é possível
ser membro legislador no reino dos fins. Portanto a moralidade, e
a humanidade enquanto capaz
__________________________
// BA
77
77
de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade. A
destreza e a diligência nó trabalho têm um preço venal; a argúcia
de espírito, a imaginação // viva e as fantasias têm um preço de
sentimento (*); pelo contrário, a lealdade nas promessas, o bemquerer fundado em princípios (e não no instinto) têm um valor
íntimo. A natureza bem como a arte nada contêm que à sua falta
se possa pôr em seu lugar, pois que o seu valor não reside nos
efeitos que delas derivam, na vantagem e utilidade que criam,
mas sim. nas intenções, isto é nas máximas da vontade sempre
prestes a manifestar-se desta maneira por acções, ainda que o
êxito as não favorecesse. Estas acções não precisam também de
nenhuma recomendação de qualquer disposição ou gosto
subjectivos para as olharmos com favor e prazer imediatos; não
precisam de nenhum pendor imediato ou sentimento a seu favor:
elas representam a vontade, que as exerce, como objecto de um
respeito imediato, pois nada mais se exige senão a razão para as
impor à vontade e não para as obter dela por lisonja, o que aliás
seria contraditório tratando-se de deveres. Esta apreciação dá pois
a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito
e põe-na infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser
posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um
preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade.
E o que é então que autoriza a intenção moralmente boa ou a
virtude a fazer tão altas // exigências? Nada menos do que a
possibilidade que proporciona ao ser racional de participar na
legislação universal e o torna por este meio apto a ser membro de
um possível reino dos fms, para que estava já destinado pela sua
própria natureza
__________________________
(1) No original: «Witz, lebhafte Einbildunskraft und Launen einen
Affektionspreis.» — Morente (pág. 88) traduz: «la gracia, la ima-ginación viva,
el ingenio, tienen un precio de afecto». (P.Q.)
// BA 78,
79
78
como fim em si e, exactamente por isso, como legislador no reino
dos fins, como livre a respeito de todas as leis da natureza,
obedecendo somente àquelas que ele mesmo se dá e segundo as
quais as suas máximas podem pertencer a uma legislação
universal (à qual ele simultaneamente se submete). Pois coisa
alguma tem outro valor senão aquele que a lei lhe confere. A
própria legislação porém, que determina todo o valor, tem que ter
exactamente por isso uma dignidade, quer dizer um valor
incondicional, incomparável, cuja avaliação, que qualquer ser
racional sobre ele faça, só a palavra respeito pode exprimir
convenientemente. Autonomia é pois o fundamento da dignidade
da natureza humana e de toda a natureza racional.
As três maneiras indicadas de apresentar o princípio da
moralidade são no fundo apenas outras tantas fórmulas dessa
mesma lei, cada uma das quais reúne em si, por si mesma, as
outras duas. Há contudo entre elas uma diferença, que na verdade
é mais subjectiva do que objectivamente prática, para aproximar
a ideia da razão mais e mais da intuição (Anschauung) (segundo
uma certa analogia) // e assim do sentimento. Todas as máximas
têm, com efeito:
1) uma forma, que consiste na universalidade, e sob este
ponto de vista a fórmula do imperativo moral expri-me-se de
maneira que as máximas têm de ser escolhidas como se
devessem valer como leis universais da natureza;
2) uma matéria, isto é, um fim, e então a fórmula diz: o
ser racional, como fim segundo a sua- natureza, portanto como
fim em si mesmo, tem de servir a toda a máxima de condição
restritiva de todos os fins meramente relativos e arbitrários;
3) uma determinação completa de todas as máximas por
meio daquela fórmula, a saber: que todas as máximas por
legislação própria, devem concordar com a ideia de
__________________________
// BA 80
79
um reino possível dos fins como um reino da natureza (*). O
progresso aqui efectua-se como que pelas categorias da unidade
da forma da vontade (universalidade dessa vontade), da
pluralidade da matéria (dos objectos, i. é dos fins), e da
totalidade do sistema dos mesmos. Mas é melhor, no juízo moral,
proceder sempre segundo o // método rigoroso e basear-se
sempre na fórmula universal do imperativo categórico: Age
segundo a máxima que possa simultaneamente fazer-se a si mesma
lei universal. Mas se se quiser ao mesmo tempo dar à lei moral
acesso às almas, então é muito útil fazer passar uma e a mesma
acção pelos três citados conceitos e aproximá-la assim, tanto
quanto possível (1), da intuição.
Podemos agora acabar por onde começámos, quer dizer pelo
conceito de uma vontade absolutamente boa. E absolutamente
boa a vontade que não pode ser má, portanto quando a sua
máxima, ao transformar-se em lei universal, se não pode nunca
contradizer. A sua lei suprema é pois também este princípio: Age
sempre segundo aquela máxima cuja universalidade como lei
possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a
qual uma vontade nunca pode estar em contradição consigo
mesma, e um tal imperativo é categórico. E pois que a validade
da vontade, como lei universal para acções possíveis, tem
analogia com a ligação universal da existência das coisas segundo
leis universais, que é o elemento formal da natureza em geral, o
imperativo categórico pode exprimir-se
__________________________
(*) A teleologia considera a natureza como um reino dos fins; a moral considera
um possível reino dos fms como um reino da natureza. Acolá o reino dos fms é
uma ideia teórica para explicar o que existe. Aqui é uma ideia prática para
realizar o que não existe mas que pode tornar-se real pelas nossas acções ou
omissões, e isso exactamente em conformidade com esta ideia. (Nota de Kant.)
(1) Morente (pág. 91): «...en cuanto ello sea posible». (P.Q.)
// BA 81
80
também assim: Age segundo máximas que possam simultaneamente ter-se a si mesmas por objecto como leis universais da
natureza. // Assina fica constituída a fórmula de uma vontade
absolutamente boa.
A natureza racional distingue-se das restantes por se pôr a si
mesma um fim. Este fim seria a matéria de toda a boa vontade.
Mas como na ideia de uma vontade absolutamente boa, sem
condição restritiva (o facto de alcançar este ou aquele fim), se
tem de abstrair inteiramente de todo o fim a realizar (o que faria
toda a vontade só relativamente boa) (1), o fim aqui não deverá
ser concebido como um fim a alcançar, mas sim como fim
independente, portanto só de maneira negativa; quer dizer:
nunca se deverá agir contra ele, e não deve ser avaliado nunca
como simples meio, mas sempre simultaneamente como fim em
todo o querer. Ora este fim não pode ser outra coisa senão o
sujeito de todos os fins possíveis, porque este é ao mesmo tempo
o sujeito de uma possível vontade absolutamente boa; pois esta
não pode sem contradição ser posposta a nenhum outro objecto.
O princípio: Age a respeito de todo o ser racional (de ti mesmo e
de outrem) de tal modo que ele na tua máxima valha
simultaneamente como fim em si, é assim no fundo idêntico ao
princípio: Age segundo uma máxima que contenha
simultaneamente em si a sua própria validade universal para todo
o ser racional. Pois o facto de eu, no uso dos meios para qualquer
fim, dever restringir a minha máxima à condição da sua validade
universal como // lei para todo o sujeito, equivale exactamente a
dizer: o sujeito dos fins, isto é o ser racional mesmo, não deve
nunca ser posto por fundamento de todas as máximas das acções
como simples
__________________________
(1) Morente (pág. 92) traduz assim o parêntesis: «como que cada voluntad lo
haría relativamente bueno». O original diz: «als der jeden Willen nur relativ gut
machen würde». (P.Q.)
// BA 82, 83
81
meio, mas como condição suprema restritiva no uso dos meios,
isto é sempre simultaneamente como fim.
Ora daqui segue-se incontestavelmente que todo o ser
racional, como fim em si mesmo, terá de poder conside-rar-se,
com respeito a todas as leis a que possa estar submetido, ao
mesmo tempo como legislador universal; porque exactamente
esta aptidão das suas máximas a constituir a legislação universal é
que o distingue como fim em si mesmo. Segue-se igualmente que
esta sua dignidade (prerrogativa) em face de todos os simples
seres naturais tem como consequência o haver de tomar sempre as
suas máximas do ponto de vista de si mesmo e ao mesmo tempo
também do ponto de vista de todos os outros seres racionais como
legisladores (os quais por isso também se chamam pessoas). Ora
desta maneira é possível um mundo de seres racionais (mundus
intelligihilis) como reino dos fins, e isto graças à própria legislação
de todas as pessoas como membros dele. Por conseguinte cada ser
racional terá, de agir como se fosse sempre, pelas suas máximas, um
membro legislador no reino universal dos fins. O princípio formal
destas máximas é: // Age como se a tua máxima devesse servir ao
mesmo tempo de lei universal (de todos os seres racionais). Um
reino dos fins só é portanto possível por analogia com um reino
da natureza; aquele, porém, só segundo máximas, quer dizer
regras que se impõe a si mesmo, e este só segundo leis de causas
eficientes externamente impostas. Não obstante dá-se também ao
conjunto da natureza, se bem que seja considerado como
máquina, o nome de reino da natureza, enquanto se relaciona com
os seres racionais como seus fins. Um tal reino dos fins realizar-se-ia
verdadeiramente por máximas, cuja regra o imperativo categórico
prescreve a todos os seres racionais, se elas fossem universalmente
seguidas. Mas, ainda que o ser racional não possa contar com que,
mesmo que ele siga pontualmente esta máxima, todos os outros se
lhe conservem fiéis, nem com que o reino da natureza
__________________________
// BA
84
82
com a sua ordenação de finalidade venha a concordar com ele,
como membro apto, na realização de um reino dos fins que ele
mesmo tornaria possível, quer dizer venha a favorecer a sua
expectativa de felicidade, a despeito de tudo isto aquela lei que
diz: «Age segundo máximas de um membro universalmente
legislador em ordem a um reino dos fins somente possível»,
conserva a sua força plena porque ordena categoricamente. E é
nisto exactamente que reside o paradoxo: que a simples dignidade
do homem considerado como natureza // racional, sem qualquer
outro fim ou vantagem, a atingir por meio dela, portanto o
respeito por uma mera ideia, deva servir no entanto de regra
imprescindível da vontade, e que precisamente nesta
independência da máxima em face de todos os motivos desta
ordem consista a sua sublimidade e torne todo o sujeito racional
digno de ser um membro legislador no reino dos fins; pois de
contrário teríamos que representar-no-lo somente como
submetido à lei natural das suas necessidades. Mesmo que se
concebesse o reino da natureza e o reino dos fins como reunidos
sob um só chefe e que desta sorte o segundo destes reinos não
continuasse a ser já uma mera ideia mas recebesse verdadeira realidade, aquela receberia sem dúvida o reforço dum móbil
poderoso, mas nunca aumentaria o seu valor íntimo (1);
__________________________
(1) Divergem os vários tradutores na interpretação do passo que diz no original:
«Obgleich auch das Naturreich sowohl als das Reich der Zwecke als unter
einem Oberhaupte vereinigt gedacht würde, und dadurch das letztere nicht mehr
blosse Idee bliebe, sondern wahre Realität erhielte, so würde hierdurch zwar
jener der Zuwachs einer starken Triebfeder, niemals aber Vermehrung ihres
innern Werts zus-tatten kommen...». — Delbos (págs. 168-169): «Alors même
que le règne de la nature aussi bien que le règne des fins seraient conçus comme
unis sous un thef, et qu’ainsi le second de ces règnes ne serait plus une simple
idée, mais acquerrait une véritable réalité, il y aurait là assurément pour cette
idée un bénéfice qui lui viendrait de l’addition d’un mobile puissant, mais en
aucune façon d’un accroissement de sa valeur intrinsèque...».—
// BA
85
83
pois a despeito disso deveria mesmo aquele legislador único e
ilimitado ser representado sempre como julgando o valor dos
seres racionais só pela sua conduta desinteressada que lhes é
prescrita apenas por aquela ideia. A essência das coisas não se
altera pelas suas relações externas, e o que, sem pensar nestas
últimas, constitui por si só o valor absoluto do homem, há-de ser
também aquilo por que ele deve ser julgado, seja por quem for,
mesmo pelo Ser supremo. A moralidade é pois a relação das
acções com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação //
universal possível por meio das suas máximas (1). A acção que
possa concordar com a autonomia da vontade é permitida; a que
com ela não concorde é proibida. A vontade, cujas máximas
concordem necessariamente com as leis da autonomia, é uma
vontade santa, absolutamente boa. A dependência em que uma
vontade não absolutamente boa se acha em face do princípio da
autonomia (a necessidade moral) é a obrigação. Esta não pode,
portanto, referir-se a um ser santo. A necessidade objectiva de
uma acção por obrigação chama-se dever.
Pelo que antecede podemos agora explicar-nos facilmente
como sucede que, ainda quando nos representamos sob o
conceito de dever uma sujeição à lei, possamos achar não
obstante simultaneamente uma certa sublimidade e dignidade na
pessoa que cumpre todos os s,eus deveres.
__________________________
Lachelier (pág. 84) dá fundamentalmente a mesma interpretação. — Morente
(pág. 95), ao que nos parece erradamente, traduz: «Aun cuando el reino de la
naturaleza y el reino de los fines fuesen pensados como reunidos bajo un solo
jefe y, de esta suerte, el último no fuera ya mera idea, sino que recibiese
realidad verdadera, ello, sin duda, proporcionaria al primero el refuerzo de un
poderoso resorte y motor, pero nunca aumentaria su valor interno...». (P.Q.)
(1) Morente (pág. 95) traduz: «La moralidad es, pues, la relación de las acciones
con la autonomia de la voluntad, esto es, con la posible legislación universal,
por medio de las máximas de la misma.» (P.Q.).
// BA
86
84
Pois enquanto ela está submetida à lei moral não há nela
sublimidade alguma; mas há a sim na medida em que ela é ao
mesmo tempo legisladora em relação a essa lei moral e só por isso
lhe está subordinada. Também mostrámos mais acima como não é
nem o medo nem a inclinação, mas tão-somente o respeito à lei que
constitui o móbil que pode dar à acção um valor moral. A nossa
própria vontade, na medida em que agisse só sob a condição de uma
legislação // universal possível pelas suas máximas, esta vontade que
nos é possível na ideia, é o objecto próprio do respeito, e a dignidade
da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser
legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo
tempo submetido a essa mesma legislação.
A AUTONOMIA DA VONTADE COMO PRINCÍPIO
SUPREMO DA MORALIDADE
Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à
qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da
natureza dos objectos do querer). O princípio da autonomia é
portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da
escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo,
como lei universal. Que esta regra prática seja um imperativo,
quer dizer que a vontade de todo o ser racional esteja
necessariamente ligada a ela como condição, é coisa que não
pode demonstrar-se pela simples análise dos conceitos nela
contidos, pois se trata de uma proposição sintética; teria que passarse além do conhecimento dos objectos e entrar numa crítica do
sujeito, isto é da razão prática pura; pois esta proposição sintética,
que ordena apodicticamente, tem que poder reconhecer-se
inteiramente a priori. Mas este assunto não cabe na presente secção.
// Pela simples análise dos conceitos da moralidade pode-se, porém,
mostrar muito bem que o citado princípio
__________________________
// BA
87
,
88
85
da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se
descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo
categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem
menos do que precisamente esta autonomia.
A HETERONOMIA DA VONTADE COMO FONTE
DE TODOS OS PRINCÍPIOS ILEGÍTIMOS
DA MORALIDADE
Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em
qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas
para a sua própria legislação universal, quando, portanto,
passando além de si mesma, busca essa lei na natureza de
qualquer dos seus objectos, o resultado é então sempre
heteronomia. Não é a vontade que então se dá a lei a si mesma,
mas é sim o objecto que dá a lei à vontade pela sua relação com
ela. Esta relação, quer assente na inclinação quer em
representações da razão, só pode tornar possíveis imperativos
hipotéticos: devo fazer alguma coisa porque quero qualquer outra
coisa. Ao contrário, o imperativo moral, e portanto categórico, diz:
devo agir desta ou daquela maneira, mesmo que não quisesse
outra coisa. Por exemplo, aquele diz: não devo mentir, se quero
continuar a ser honrado; este, // porém, diz: não devo mentir,
ainda que o mentir me não trouxesse a menor vergonha. O último,
portanto, tem que abstrair de todo o objecto, até ao ponto de este
não ter nenhuma influência sobre a vontade, para que a razão
prática (vontade) não seja uma mera administradora de interesse
alheio, mas que demonstre a sua própria autoridade imperativa
como legislação suprema. Assim eu devo, por exemplo, procurar
fomentar a felicidade alheia, não como se eu tivesse qualquer
interesse na sua existência (quer por inclinação imediata, quer,
indirectamente, por qualquer satisfação obtida
__________________________
// BA
89
86
pela razão), mas somente porque a máxima que exclua essa
felicidade não pode estar incluída num só e mesmo querer como lei
universal.
CLASSIFICAÇÃO DE TODOS OS PRINCÍPIOS
POSSÍVEIS DA MORALIDADE SEGUNDO
O ADOPTADO CONCEITO FUNDAMENTAL
DA HETERONOMIA
A razão humana, aqui como sempre no seu uso puro, enquanto
lhe falta a crítica, experimentou primeiro todos os caminhos errados
antes de conseguir encontrar o único verdadeiro.
Todos os princípios que se possam adoptar partindo deste
ponto de vista são, ou empíricos, ou // racionais. Os primeiros,
derivados do princípio da felicidade, assentam no sentimento
físico ou no moral; os segundos, derivados do princípio da
perfeição, assentam, ou no conceito racional dessa perfeição
como efeito possível, ou no conceito de uma perfeição
independente (a vontade de Deus) como causa determinante da
nossa vontade.
Princípios empíricos nunca servem para sobre eles fundar
leis morais. Pois a universalidade com que elas devem valer para
todos os seres racionais sem distinção, a necessidade prática
incondicional que por isso lhes é imposta, desaparece quando o
fundamento dela se deriva da particular constituição da natureza
humana ou das circunstâncias contingentes em que ela está
colocada. O princípio mais condenável, porém, é o princípio da
felicidade própria, não só porque é falso e porque a experiência
contradiz a suposição (*) de que o bem-estar se rege sempre pelo
bem-obrar; não só ainda porque não contribui em nada
__________________________
(1) Vorgeben. Lachelier (pág. 88) traduz por «proposition»; Morente
(pág. 100) por «el supuesto». (P.Q.)
// BA 90
87
para o fundamento da moralidade, uma vez que é totalmente
diferente fazer um homem feliz ou fazê-lo bom, e fazê-lo
prudente e finório em atenção ao seu interesse ou fazê-lo
virtuoso; mas sim porque atribui à moralidade móbiles que antes
a minam e destroem toda a sua sublimidade, juntando na mesma
classe os motivos que levam // à virtude e os que levam ao vício,
e ensinando somente a fazer melhor o cálculo, mas apagando
totalmente a diferença específica entre virtude e vício. Pelo
contrário o sentimento moral, este pretenso sentido (*) especial,
(por superficial que seja apelar para ele, pois são aqueles que não
são capazes de pensar que julgam poder libertar-se com a ajuda
do sentimento, mesmo naquilo que depende somente de leis
universais, e ainda que os sentimentos, que por natureza são
infinitamente distintos uns dos outros em grau, não possam
fornecer uma escala igual para medir o bem e o mal, exactamente
como ninguém pode julgar, partindo do seu próprio sentimento,
validamente por outras pessoas) está, contudo, mais perto da
moralidade e da sua dignidade, porque tributa à virtude a honra
de lhe atribuir imediatamente a satisfação e o respeito por ela e
não lhe diz na cara que não é a sua beleza, mas somente o
interesse, que a ela nos liga.
Entre os princípios racionais da moralidade, o preferível é
ainda o conceito ontológico da perfeição // (por vazio,
indeterminado e portanto inutilizável que ele seja para encontrar,
no campo imensurável da realidade possível, a maior soma que
nos convenha, e embora também,
__________________________
(*) Ligo o princípio do sentimento moral ao da felicidade porque todo o
interesse empírico promete uma contribuição para o bem-estar por meio do
agrado que só alguma coisa nos produz, quer imediatamente e sem intuito de
vantagem, quer com referência a esta vantagem. Igualmente se tem de ligar,
com Hutcheson, o princípio da participação por simpatia na felicidade alheia ao
mesmo sentido moral admitido por este filósofo. (Nota de Kant.)
// BA
91
,
92
88
ao distinguir especificamente de qualquer outra a realidade de
que aqui se trata, ele tenha a tendência inevitável para girar em
círculo e não possa evitar pressupor tacitamente essa moralidade
que deve explicar). A despeito de tudo isto, o conceito ontológico
da perfeição é melhor do que o conceito teológico que faz derivar
a moralidade de uma vontade divina infinitamente perfeita, e isto
não só porque nós não podemos intuir a perfeição da vontade
divina, mas apenas a podemos derivar dos nossos conceitos, entre
os quais o da moralidade é o mais nobre, mas ainda porque, se
assim não fizéssemos (e, se tal acontecesse, isso seria um
grosseiro círculo na explicação), o único conceito da vontade
divina que ainda nos restaria teria de fazer das propriedades da
ambição de honra e de domínio, ligadas às imagens terríveis do
poderio e da vingança, o fundamento de um sistema dos
costumes exactamente oposto à moralidade.
Se eu tivesse porém de escolher entre o conceito do sentido
moral e o da perfeição em geral (ambos os quais pelo menos, não
lesam a moralidade, embora não sirvam para lhe dar uma base
sólida), decidir-me-ia pelo // último, porque, afastando pelo
menos da sensibilidade e levando ao tribunal da razão pura a
decisão da questão, embora este aqui também nada decida,
conserva no entanto, para uma determinação mais precisa, sem a
falsear, a ideia indeterminada (de uma vontade boa em si).
Creio de resto poder dispensar-me de uma refutação mais
desenvolvida destas doutrinas. Ela é tão fácil e provavelmente tão
bem reconhecida mesmo por aqueles cujo ofício os obriga a
pronunciar-se a favor de uma destas teorias (pois os ouvintes não
toleram de bom grado a suspensão do juízo), que seria trabalho
supérfluo o fazê-la. O que aqui porém mais nos interessa é saber
que estes princípios nada mais dão como primeiro fundamento da
moralidade do que heteronomia da vontade e que, por isso
mesmo, têm de falhar necessariamente o seu fim.
__________________________
// BA
93
89
Onde quer que um objecto da vontade tem de ser posto como
fundamento para prescrever a essa vontade a regra que a
determina, esta regra não é senão heteronomia; o imperativo é
condicionado, a saber: se ou porque se quer este objecto, tem-se
que proceder deste ou daquele modo; não pode, portanto, mandar
nunca moralmente, quer dizer, categoricamente. Quer o objecto
determine a vontade por meio da inclinação, como no caso do
princípio da felicidade // própria, quer a determine por meio da
razão dirigida a objectos do nosso querer possível em geral, como
no princípio da perfeição, a vontade nunca se determina
imediatamente a si mesma pela representação da acção, mas
somente pelo móbil resultante da influência que o efeito previsto
da acção exerce sobre ela: devo jazer tal coisa, porque quero uma
tal outra; e aqui tem de ser posta no meu sujeito uma outra lei
como fundamento, segundo a qual eu quero necessariamente essa
outra coisa, e essa lei, por sua vez, precisa de um imperativo que
limite esta máxima. Pois como o impulso que a representação de um
objecto, possível por nossas forças, segundo a constituição natural do
sujeito, deve exercer sobre a vontade do sujeito pertence à natureza
deste, quer seja da sensibilidade (inclinação ou gosto), quer seja do
entendimento e dá razão, as quais se exercitam com satisfação num
objecto segundo a peculiar disposição da sua natureza, resulta que
seria a natureza quem propriamente daria a lei, e essa lei, como tal,
não só tem que ser reconhecida e demonstrada pela experiência e,
portanto, em si mesma contingente e por isso imprópria como regra
prática apodíctica, como tem de ser a lei moral, mas sim que é
sempre só heteronomia da vontade; a vontade não se dá a lei a si
mesma, mas é sim um impulso estranho que lhe dá a lei a ela por
meio de uma disposição natural do sujeito acomodada à //
receptividade desse mesmo impulso.
A vontade absolutamente boa, cujo princípio tem que ser um
imperativo categórico, indeterminada a respeito de
__________________________
// BA
94
,
95
90
todos os objectos, conterá pois somente a forma do querer em
geral, e isto como autonomia (1); quer dizer: a aptidão da máxima
de toda a boa vontade de se transformar a si mesma em lei
universal é a única lei que a si mesma se impõe a vontade de todo
o ser racional, sem subpor (2) qualquer impulso ou interesse como
fundamento.
Como é que é possível uma tal proposição prática sintética a
priori? e porque é que ela é necessária? — eis um problema cuja
solução não cabe já nos limites da Metafísica dos Costumes. Tãopouco afirmámos nós aqui a sua verdade, e muito menos
pretendemos ter no nosso poder os meios de a provar. Mostrámos
apenas, pelo desenvolvimento do conceito de moralidade uma vez
posto universalmente em voga, que a ele anda inevitavelmente
ligada, ou melhor, que está na sua base, uma autonomia da vontade. Quem, pois, considere a moralidade como alguma coisa real
e não como uma ideia quimérica sem verdade, tem de conceder
simultaneamente o princípio dela por nós enunciado. Esta
segunda // secção foi, pois, como a primeira, puramente analítica.
Ora para estabelecer que a moralidade não é uma quimera vã,
coisa que se deduz logo que o imperativo categórico e com ele a
autonomia da vontade sejam verdadeiros e absolutamente
necessários como princípio a priori, é preciso admitir um possível
uso sintético da razão pura prática, o que não podemos arriscar
sem o fazer preceder de uma crítica desta faculdade da razão. Na
última secção exporemos os seus traços principais, suficientes
para o nosso propósito.
__________________________
(1) «...und zwar als Autonomie». — Morente (pág. 104) traduz simplesmente:
«como autonomía»; Lachelier (pág. 92): «et cest en cela que consiste
l’autonomie». (P.Q.)
(2) O alemão unterlegen é traduzido por Delbos (pág. 177) por «faire
intervenir»; Lachelier (pág. 92) «ajouter»; Morente (pág. 104) «sin que
intervenga». (P.Q.)
// BA 96
91
92
// TERCEIRA SECÇÃO
TRANSIÇÃO DA METAFÍSICA DOS COSTUMES
PARA A CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA PURA
O Conceito da Liberdade é a chave da explicação da
Autonomia da Vontade
A vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos,
enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade desta
causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente
de causas estranhas que a determinem; assim como necessidade
natural é a propriedade da causalidade de todos os seres
irracionais de serem determinados à actividade pela influência de
causas estranhas.
A definição da liberdade que acabámos de propor é negativa
e portanto infecunda para conhecer a sua essência; mas dela
decorre um conceito positivo desta mesma liberdade que é tanto
mais rico e fecundo. Como o conceito de uma causalidade traz
consigo o de leis segundo as quais, por meio de uma coisa a que
chamamos causa, tem de ser posta outra // coisa que se chama
efeito, assim
__________________________
// BA
97
,
98
93
a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade
segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem
antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de
uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre
seria um absurdo. A necessidade natural era uma heteronomia das
causas eficientes; pois todo o efeito era só possível segundo a lei
de que alguma outra coisa determinasse à causalidade a causa
eficiente; que outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade
senão autonomia, i. é a propriedade da vontade de ser lei para si
mesma? Mas a proposição: «A vontade é, em todas as acções,
uma lei para si mesma», caracteriza apenas o princípio de não
agir segundo nenhuma outra máxima que não seja aquela que
possa ter-se a si mesma por objecto como lei universal. Isto,
porém, é precisamente a fórmula do imperativo categórico e o
princípio da moralidade; assim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa..
Se, pois, se pressupõe liberdade da vontade, segue-se daqui a
moralidade com o seu princípio, por simples análise do seu conceito.
Entretanto este princípio continua a ser uma proposição sintética:
uma vontade absolutamente boa é aquela cuja máxima pode sempre
conter-se a si // mesma em si, considerada como lei universal; pois
por análise do conceito de uma vontade absolutamente boa não se
pode achar aquela propriedade da máxima. Mas tais proposições
sintéticas só são possíveis por os dois conhecimentos estarem ligados
entre si pelo enlace com um terceiro em que eles de ambas as partes
se encontram. O conceito positivo da liberdade cria esse terceiro que
não pode ser, como nas causas físicas, a natureza do mundo sensível
(em cujo conceito se vêm juntar os conceitos de alguma coisa, como
causa, em relação com outra coisa, como efeito). O que seja então
este terceiro a que a liberdade nos remete e de que temos uma ideia a
priori, eis o que se não pode ainda mostrar imediatamente, como
também se não pode
__________________________
// BA
99
94
deduzir da razão prática pura o conceito de liberdade, e com ela
também a possibilidade de um imperativo categórico. Para isso
precisamos ainda de mais alguma preparação.
A LIBERDADE TEM DE PRESSUPOR-SE COMO
PROPRIEDADE DA VONTADE DE TODOS
OS SERES RACIONAIS
Não basta que atribuamos liberdade à nossa vontade, seja
por que razão for, se não tivermos também razão suficiente para a
atribuirmos a todos os seres racionais. Pois como a moralidade //
nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, tem ela
que valer também para todos os seres racionais; e como não pode
derivar-se senão da propriedade da liberdade, tem que ser
demonstrada a liberdade como propriedade da vontade de todos
os seres racionais, e não basta verificá-la por certas supostas
experiências da natureza humana (se bem que isto seja
absolutamente impossível e só possa ser demonstrado a priori),
mas sim temos que demonstrá-la como pertencente à actividade
de seres racionais em geral e dotados de uma vontade ( 1). Digo,
pois: Todo o ser que não pode agir senão sob a ideia da
liberdade, é por isso mesmo, em sentido prático, verdadeiramente
livre, quer dizer, para ele valem todas as leis que estão
inseparavelmente ligadas à liberdade, exactamente como se a sua
vontade fosse definida como livre em si mesma e de modo válido
na filosofia teórica (*). Agora afirmo eu: A todo o ser //
__________________________
(1) Morente (pág. 108) traduz por engano: «dotados de libertad». (P.Q.)
(*) Este método de admitir como suficiente para o nosso propósito a
liberdade apenas como baseada só na ideia por seres racionais nas suas
acções, adopto-o para não me obrigar a demonstrar
// BA 100,
101
95
racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe
necessariamente também a ideia da liberdade, sob a qual ele
unicamente pode agir. Pois num tal ser pensamos nós uma razão
que é prática, quer dizer, que possui causalidade em relação aos
seus objectos. Ora é impossível pensar uma razão que com a sua
própria consciência recebesse de qualquer outra parte uma
direcção a respeito dos seus juízos, pois que então o sujeito
atribuiria a determinação da faculdade de julgar, não à sua razão,
mas a um impulso. Ela tem de considerar-se a si mesma como
autora dos seus princípios, independentemente de influências
estranhas; por conseguinte, como razão prática ou como vontade
de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre;
isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a
ideia da liberdade, e, portanto, é preciso atribuir, em sentido
prático, uma tal vontade a todos os seres racionais.
DO INTERESSE QUE ANDA LIGADO ÀS IDEIAS DA
MORALIDADE
Acabámos de referir, afinal, o conceito determinado da
moralidade à ideia da liberdade; mas hão pudemos demonstrar
esta como algo real nem sequer em nós mesmos e na natureza
humana; vimos somente que temos que pressupô-la se quisermos
pensar // um ser como racional e com consciência da sua
causalidade a respeito das acções, isto é, dotado de uma vontade,
e assim achamos que,
__________________________
a liberdade também no sentido teórico. Pois, mesmo que este último ponto tenha
que ficar indeciso, as mesmas leis que obrigariam um ser que fosse
verdadeiramente livre continuariam a ser válidas para um ser que não possa agir
de outro modo senão sob a ideia da sua própria liberdade. Podemos, pois, aqui
libertar-nos do fardo que pesa sobre a teoria. (Nota de Kant.)
// BA
102
96
exactamente pela mesma razão, temos que atribuir a todo o ser
dotado de razão e vontade esta propriedade de se determinar a
agir sob a ideia da sua liberdade.
Da pressuposição desta ideia decorreu porém também a
consciência de uma lei de acção que diz que os princípios
subjectivos das acções, isto é as máximas, têm que ser sempre
tomados de modo a valerem também objectivamente, quer dizer a
valerem universalmente como princípios e portanto a poderem
servir para a nossa própria legislação universal. Mas, porque é
que devo eu subme-ter-me a este princípio, e isso como ser
racional em geral, e portanto todos os outros seres dotados de
razão? Quero conceder que nenhum interesse me impele a isso,
pois daí não poderia resultar nenhum imperativo categórico; e
contudo tenho necessariamente que tomar interesse por isso e
compreender como isso se passa; pois este dever é propriamente
um querer que valeria para todo o ser racional, sob a condição de
a razão nele ser prática sem obstáculos; para seres que, como nós,
são afectados por sensibilidade como móbiles de outra espécie,
para seres em que nem sempre acontece o que a razão por si só
faria, // aquela necessidade da acção chama-se um dever (1), e a
necessidade subjectiva distingue-se da necessidade objectiva.
Parece, pois, que na ideia da liberdade pressupusemos
apenas propriamente a lei moral, isto é o próprio princípio da
autonomia da vontade, sem podermos demonstrar por si mesma a
sua realidade e necessidade objectiva; teríamos então, na
verdade, ganhado algo de muito importante, por termos
determinado pelo menos o princípio autêntico com mais
exactidão do que costuma suceder; mas, pelo
__________________________
(1) No original: «heisst... nur ein Sollen». Delbos (pág. 185) traduz: «cette
nécessité de l'action s'exprime seulement par le verbe 'devoir'». (P.Q.)
// BA
103
97
que respeita à sua validade e à necessidade prática de se submeter
a ele, nada teríamos adiantado; pois não poderíamos dar resposta
satisfatória a quem nos perguntasse por que é que a validade
universal da nossa máxima, considerada como lei, tem de ser a
condição limitativa das nossas acções, e sobre que é que
fundamos o valor que atribuímos a tal modo de agir, valor que
deve ser tão grande que não pode haver em parte alguma nenhum
interesse mais alto, e como é que acontece que o homem só assim
julga sentir o seu valor pessoal, perante o qual o de um estado
agradável ou desagradável deve ser considerado nulo.
Achamos, é certo, que podemos tomar interesse por uma
qualidade pessoal de que não depende o // interesse da nossa
situação, contanto que ela pelo menos nos torne capazes de
participar dessa situação no caso de a razão vir a efectuar a sua
distribuição, isto é, achamos que o simples facto de ser digno da
felicidade, mesmo sem o motivo de participar dessa felicidade,
pode por si só interessar. Mas este juízo é, em realidade, apenas o
efeito da já pressuposta importância das leis morais (quando nós,
pela ideia da liberdade, nos separamos de todo o interesse empírico); desta maneira, porém, não podemos ainda compreender que
devamos separar-nos deste interesse, isto é, considerar-nos livres
no agir e, no entanto, nos devamos considerar submetidos a
determinadas leis, para só acharmos valor na nossa pessoa, valor
esse que nos possa compensar da perda de tudo aquilo que
proporciona valor à nossa condição; não podemos tão-pouco
compreender como isto seja possível, quer dizer, donde provém
que a lei moral obrigue.
Mostra-se aqui — temos que confessá-lo francamente —
uma espécie de círculo vicioso do qual, ao que parece, nãó há
maneira de sair. Consideramo-nos como livres na. ordem das
causas eficientes, para nos pensarmos submetidos a leis morais na
ordem dos fins, e depois pensamo-nos
__________________________
// BA 104
98
como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade
da vontade; pois liberdade e própria legislação da vontade são
ambas // autonomia, portanto conceitos transmutáveis, um dos
quais porém não pode, por isso mesmo, ser usado para explicar o
outro e fornecer o seu fundamento, mas quando muito apenas
para reduzir a um conceito único, em sentido lógico,
representações aparentemente diferentes do mesmo objecto
(como se reduzem diferentes fracções do mesmo valor às suas
expressões, mais simples).
Mas ainda nos resta uma saída, que é procurar se, quando
nós nos pensamos, pela liberdade, como causas eficientes a
priori, não adoptamos outro ponto de vista do que quando nos
representamos a nós mesmos, segundo as nossas acções, como
efeitos que vemos diante dos nossos olhos.
Há uma observação que se pode fazer sem necessidade de
qualquer subtil reflexão e que se pode supor ao alcance do
entendimento mais vulgar, ainda que à sua maneira, por meio de
uma obscura distinção da faculdade de julgar, a que ele chama
sentimento: e é que todas as representações que nos vêm sem
intervenção do nosso arbítrio (como as dos sentidos) nos dão a
conhecer os objectos de modo não diferente daquele como nos
afectam, ficando-nos assim desconhecido o que eles em si
mesmos possam ser, e não podendo nós chegar, por conseguinte,
pelo que respeita a esta espécie de representações, ainda com o
maior esforço de atenção // e clareza que o entendimento possa
acrescentar, senão somente ao conhecimento dos fenómenos, e
nunca ao das coisas em si mesmas. Logo que se tenha feito esta
distinção (em todo o caso por meio da diferença notada entre as
representações que nos são dadas de fora e nas quais nós somos
passivos, e as que nós produzimos unicamente de nós mesmos e nas
quais demonstramos a nossa actividade), segue-se por si que por trás
dos fenómenos há que admitir e conceder ainda outra coisa que
__________________________
// BA
105
,
106
99
não é fenómeno, quer dizer as coisas em si, ainda quando, uma
vez que elas nunca nos podem ser conhecidas senão apenas e
sempre como nos afectam, nos conformamos com não
podermos aproximar-nos bastante delas e nunca podermos
saber o que elas são em si. Daqui tem de resultar a distinção,
embora grosseira, entre um mundo sensível e um tinindo
inteligível, o primeiro dos quais pode variar muito segundo a
diferença de sensibilidade dos diversos espectadores, enquanto o
segundo, que lhe serve de base, permanece sempre idêntico. Nem
a si mesmo e conforme o conhecimento que de si próprio tem por
sentido íntimo pode o homem pretender conhecer-se tal como ele
é em si. Pois, visto ele não se criar a si mesmo, por assim dizer, e
não ter de si um conceito a priori mas sim um conceito recebido
empiricamente, é natural que ele só possa também tomar
conhecimento de si pelo seu sentido íntimo e //
consequentemente só pelo fenómeno da sua natureza c pelo
modo como a sua consciência é afectada, enquanto que tem de
admitir necessariamente, para além desta constituição do seu
próprio sujeito composta de meros fenómenos, uma outra coisa
ainda que lhe está na base, a saber o seu Eu tal como ele seja
constituído em si, e contar-se, relativamente à mera percepção e
receptividade das sensações, entre o mundo sensível, mas pelo
que respeita àquilo que nele possa ser pura actividade (aquilo que
chega à consciência, não por afecção dos sentidos, mas imediatamente) contar-se no mundo intelectual, (1) de que aliás nada
mais sabe.
Conclusão semelhante tem que tirá-la o homem reflexivo de
todas as coisas que se lhe apresentem; provavel__________________________
(1) Intellektuelle Welt, no original, que corresponde à expressão acima traduzida
por «mundo inteligível» (Verstandeswelt). Del-bos (pág. 189) e Lachelier (pág.
103) traduzem por «mundo inteligível». (P.Q.)
// BA 107
100
mente tal conclusão se encontra também no entendimento mais
vulgar, o qual, como é sabido, é muito inclinado a supor, por trás
dos objectos dos sentidos, ainda mais alguma coisa de invisível e
por si mesmo activo; mas em breve estraga de novo esta ideia ao
dar uma forma sen-sível a esta coisa invisível, i. é ao querer
fazer dela um objecto de intuição, com o que não avança nem
um só passo em sabedoria.
Ora o homem encontra realmente em si mesmo uma
faculdade pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até
de si // mesmo, na medida em que ele é afectado por objectos;
essa faculdade é a razão («Vernunft»). Esta, como pura
actividade própria, (l) está ainda acima do entendimento
(«Verstand») no sentido de que, embora este seja também
actividade própria e não contenha somente, como o sentido, (2)
representações que só se originam quando somos afectados por
coisas (passivos portanto), cie não pode contudo tirar da sua
actividade outros conceitos senão aqueles que servem apenas
para submeter a regras as representações sensíveis e reuni-las
por este meio numa consciência, sem o qual uso da sensibilidade
ele não pensaria absolutamente nada. A razão, pelo contrário,
mostra sob o nome das ideias uma espontaneidade tão pura que
por ela ultrapassa de longe tudo o que a sensibilidade pode
fornecer ao entendimento (3); e mostra a sua mais elevada função
na distinção que estabelece entre mundo
__________________________
(1) Reine Selbsttatigkeit. Dclbos (pág. 190) traduz «spontanéité pure»;
Lachelicr (pág. 103): «ativité spontanée». (P. Q.)
(2) Sinn. — Delbos (pág. 190) e Lachelier (pág. 103) traduzem por «sensibilité».
(P.Q.)
(3) Temos aqui que ser explícitos na tradução do pronome ihm do original,
referido a Verstand (entendimento). A tradução de Morente (pág. 114) — «todo
lo que la sensibilidad pueda darle» — pode levar a interpretação equívoca.
(P.Q.)
// BA
108
101
sensível e mundo inteligível, marcando também assim os limites
ao próprio entendimento.
Por tudo isto é que um ser racional deve considerar-se a si
mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas
forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas
como pertencendo ao mundo inteligível (1); tem por conseguinte
dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e
reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas
acções: o primeiro, enquanto pertence ao mundo // sensível, sob
leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao
mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não
são empíricas, mas fundadas somente na razão.
Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo
inteligível, o homem não pode pensar nunca a causalidade da sua
própria vontade senão sob a ideia da liberdade, pois que
independência das causas determinantes do mundo sensível
(independência que a razão tem sempre de atri-buir-se) é
liberdade. Ora à ideia da liberdade está inseparavelmente ligado o
conceito de autonomia, e a este o princípio universal da
moralidade, o qual na ideia (2) está na base de todas as acções de
seres racionais como a lei natural está na base de todos os
fenómenos.
Agora desaparece a suspeita, que atrás levantámos, de que
houvesse um círculo vicioso oculto na nossa conclusão da
passagem da liberdade à autonomia e desta à lei moral, i. é de
talvez termos posto como fundamento a ideia de
__________________________
(1) Cf. todo este passo com a tradução de Morente (pág. 115): «... un ser
racional debe considerarse a si mismo como inteligencia (esto es, no por la
parte de sus potencias inferiores) y como perteneciente, no al mundo sensible,
sino al inteligible...» — Na nossa interpretação, «como inteligência» equivale a
«enquanto inteligência». (P.Q.)
(2) In der Idee, isto é «na ideia» ou «idealmente». Morente (pág. 115) traduz:
«...que sirve de fundamento a la ídea de todas las acciones...». (P.Q.)
// BA 109
102
liberdade apenas por causa da lei moral, para depois concluir esta
por sua vez da liberdade, e portanto de que não podíamos dar
nenhum fundamento daquela, mas que apenas a admitíamos
como concessão de um princípio que as almas bem formadas de
bom grado nos outorgariam, sem que a pudéssemos jamais //
estabelecer como proposição demonstrável. Pois agora vemos
que, quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo
inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da,
vontade juntamente com a sua consequência — a moralidade;
mas quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos
como pertencentes ao mundo sensível e contudo ao mesmo
tempo também ao mundo inteligível.
COMO É POSSÍVEL UM IMPERATIVO
CATEGÓRICO?
O ser racional, como inteligência, conta-se como pertencente ao mundo inteligível, e só chama vontade à sua
causalidade como causa eficiente que pertence a esse mundo
inteligível. Por outro lado tem ele consciência de si mesmo como
parte também do mundo sensível, no qual as suas acções se
encontram como meros fenómenos daquela causalidade; mas a
possibilidade dessas acções não pode ser compreendida por essa
causalidade, que não conhecemos, senão que em seu lugar têm
aquelas acções que ser compreendidas como pertencentes ao mundo
sensível, como determinadas por outros fenómenos, a saber: apetites
e inclinações. Se eu fosse um mero membro do mundo inteligível,
todas as minhas acções seriam perfeitamente conformes ao princípio
da autonomia da vontade pura; mas, como mera parte do mundo
sensível, elas teriam de ser tomadas como totalmente conformes à
lei natural dos apetites e inclinações, por conseguinte à hete-ronomia
// da natureza. (As primeiras assentariam no prin__________________________
// BA 110,
111
103
cípio supremo da moralidade; as segundas, no da felicidade.) Mas
porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo
sensível, e portanto também das suas leis, sendo assim, com
respeito à minha vontade (que pertence totalmente ao mundo
inteligível), imediatamente legislador e devendo também ser
pensado como tal, resulta daqui que, posto por outro lado me
conheça como ser pertencente ao mundo sensível, terei, como
inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo
inteligível, isto é à razão, que na ideia de liberdade contém a lei
desse mundo, e portanto à autonomia da vontade; por conseguinte
terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos
para mim e as acções conformes a este princípio como deveres.
E assim são possíveis os imperativos categóricos, porque a
ideia da liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível;
pelo que, se eu fosse só isto, todas as minhas acções seriam
sempre conformes à autonomia da vontade; mas como ao mesmo
tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas
acções devem ser conformes a essa autonomia. E esse dever
categórico representa uma proposição sintética a priori, porque
acima da minha vontade afectada por apetites sensíveis sobrevêm
ainda a ideia dessa mesma vontade, mas como pertencente ao mundo
inteligível, pura, prática por si mesma, que // contém a condição
suprema da primeira, segundo a razão; mais ou menos como às
intuições do mundo sensível se juntam conceitos do entendimento,
os quais por si mesmos nada mais significam senão a forma de lei
em geral, e assim tornam possíveis proposições sintéticas a priori
sobre as quais repousa todo o conhecimento de uma natureza.
O uso prático da razão comum humana confirma a exactidão
desta dedução. Não há ninguém, nem mesmo o pior facínora,
contanto que de resto esteja habituado a usar da razão, que não
deseje, quando se lhe apresentam exemplos de lealdade nas
intenções, de perseverança na
__________________________
// BA
112
104
obediência a boas máximas, de compaixão e universal
benevolência (e ainda por cima ligados a grandes sacrifícios de
interesses e comodidades), que não deseje, digo, ter também esses
bons sentimentos. Mas não pode realizar esse desejo apenas por
causa das suas inclinações e impulsos, desejando todavia ao
mesmo tempo libertar-se de tais tendências que a ele mesmo o
oprimem. Por este meio prova ele, pois, que em pensamentos se
transpõe, por uma vontade livre de impulsos da sensibilidade, a
uma ordem de coisas totalmente diferente da dos seus apetites no
campo da sensibilidade, pois daquele desejo não pode ele esperar
nenhum prazer dos apetites e, portanto, nenhum estado
satisfatório para qualquer das suas inclinações reais ou //
imaginárias (porque então a ideia, que lhe arranca esse desejo,
perderia a sua excelência), mas tão-somente um maior valor
íntimo da sua pessoa. Esta pessoa melhor crê ele sê-lo quando se
situa no ponto de vista de um membro do mundo inteligível, a
que involuntariamente o obriga a ideia da liberdade, isto é, da
independência de causas determinantes do mundo sensível.
Colocado nesse ponto de vista, tem ele a consciência de possuir
uma boa vontade, a qual constitui, segundo a sua própria
confissão, a lei para a sua má vontade como membro do mundo
sensível, lei essa cuja dignidade reconhece ao transgredi-la. O
dever moral é, pois, um próprio querer necessário seu como
membro de um mundo inteligível, e só é pensado por ele como
dever na medida em que ele se considera ao mesmo tempo como
membro do mundo sensível.
DO LIMITE EXTREMO DE TODA
A FILOSOFIA PRÁTICA
Todos os homens se concebem como livres quanto à
vontade. Daí provêm todos os juízos sobre acções tais
__________________________
// BA 113
105
que deveriam ter, embora não tenham, acontecido. No entanto
esta liberdade não é um conceito da experiência, nem pode sê-lo,
pois se mantém sempre, mesmo que a experiência mostre o
contrário // daquelas exigências que, pressupondo a liberdade, se
representam como necessárias. Por outro lado, é igualmente
necessário que tudo o que acontece seja determinado
inevitavelmente por leis naturais, e esta necessidade natural não é
também um conceito da experiência, exactamente porque implica
o conceito de necessidade e, portanto, o de um conhecimento a
priori. Mas este conceito de uma natureza é confirmado pela
experiência e tem de ser mesmo pressuposto inevitavelmente, se
se quiser que seja possível a experiência, isto é o conhecimento
sistemático dos objectos dos sentidos segundo leis universais (1).
Por isso a liberdade é apenas uma ideia da razão cuja realidade
objectiva é em si duvidosa; a natureza, porém, é um conceito do
entendimento que demonstra, e tem necessariamente de
demonstrar, a sua realidade por exemplos da experiência.
Embora daqui resulte uma dialéctica da razão, uma vez que,
pelo que respeita à vontade, a liberdade que a esta se atribui
parece estar em contradição com a necessidade natural, e nesta
encruzilhada a razão, sob o ponto de vista especulativo, acha o
caminho da necessidade natural muito mais plano e praticável do
que o da liberdade, no entanto, sob o ponto de vista prático, o
caminho de pé posto da liberdade é o único por que é possível
fazer uso da razão nas nossas acções e omissões; pelo que será
impossível à mais subtil // filosofia como à razão humana mais
vulgar
__________________________
(1) Zusammenhängende Erkenntnis der Gegenstände der Sinne. —
Morente (pág. 120) traduz: «...el conocimiento de los objectos de los
sentidos, compuesto según leyes universales». (P.Q.)
// BA
114
,
115
106
eliminar a liberdade com argumentos sofísticos (1). Há pois que
pressupor que entre liberdade e necessidade natural dessas
mesmas acções humanas se não encontra nenhuma verdadeira
contradição; pois não se pode renunciar nem ao conceito da
natureza nem ao da liberdade.
Entretanto é preciso pelo menos eliminar de modo
convincente esta aparente contradição, mesmo quando se não
pudesse nunca conceber como é que é possível a liberdade. Pois
se até o pensamento de liberdade se contradiz a si mesmo ou à
natureza, que é igualmente necessária, teria ela que ser
abandonada inteiramente em face da necessidade natural.
E impossível, porém, escapar a esta contradição se o sujeito,
que se crê livre, se pensasse no mesmo sentido ou na mesma
relação quando se chama livre que quando se considera
submetido à lei natural, com respeito à mesma acção. Por isso é
um problema inevitável da filosofia especulativa mostrar, pelo
menos, que a sua ilusão por causa desta contradição assenta em
que pensamos o homem em sentido e relação muito diferente
quando lhe chamamos livre do que quando o consideramos como
peça da natureza e // submetido às suas leis, e que ambos, não só
podem muito bem estar juntos, senão que devem ser pensados
como necessariamente unidos no mesmo sujeito; porque, de
contrário, não se poderia explicar por que havíamos de
sobrecarregar a razão com uma ideia que, embora se deixe unir
sem contradição a outra suficientemente estabelecida, vem no
entanto enredar-nos numa questão que põe a razão no seu uso
teórico em grandes dificuldades. Mas este dever incumbe apenas
à filosofia especulativa para poder
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(1) ...die Freiheit wegzuvernünfteln.— Delbos (pág. 197): «....mettre en
doute la liberté par des arguties». — Lachelier (pág. 110): «...écarter la
liberté par des sophismes». — Morente (pág. 121): «...excluir la
libertad». (P.Q.)
// BA 116
107
abrir caminho livre à filosofia prática. Não cabe, portanto, no
arbítrio do filósofo resolver ou deixar intacta a aparente
contradição; pois neste último caso a teoria a este respeito é um
bonum vacans, em cuja posse pode instalar-se com razão o
fatalista e expulsar toda a moral do seu pretenso domínio que ela
possui sem título algum.
Não se pode contudo dizer ainda aqui que começa a fronteira
da filosofia prática. Pois aquela liquidação do debate não lhe
pertence de maneira alguma; o que ela exige da razão
especulativa é somente que acabe com esta discórdia em que se
acha embaraçada em questões teóricas, para que a razão prática
tenha repouso e segurança em face dos ataques exteriores que
poderiam disputar-lhe o terreno sobre que quer instalar-se.
// Mas a pretensão legítima que mesmo a razão humana
vulgar tem à liberdade da vontade funda-se na consciência e na
pressuposição admitida da independência da razão quanto a
causas determinantes puramente subjectivas, que no conjunto
constituem o que pertence somente à sensação e, por conseguinte,
cai sob a designação geral de sensibilidade. O homem que, desta
maneira, se considera como inteligência, coloca-se assim numa
outra ordem de coisas e numa relação com princípios
determinantes de espécie totalmente diferente, quando se pensa
como inteligência dotada de vontade e por conseguinte de
causalidade, do que quando se percebe como um fenómeno no
mundo sensível (o que realmente também é) e subordina a sua
causalidade, segundo leis da natureza, a uma determinação
externa (1). Ora em breve se apercebe de que ambas
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(1) «...und seine Kausalität ausserer Bestimmung nach Natur-gesetzen
unterwirft». — Delbos (pág. 199) traduz, menos exactamente: «....et qu'il
subordonne sa causalité, selon une détermination extérieure, aux lois de la
nature». — Lachelier (pág. 112), semelhantemente: «...et qu'il subordonne sa
causalité à la détermination extérieure des lois naturelles». (P.Q.)
// BA
117
108
as coisas podem, e até devem, acontecer ao mesmo tempo. Pois
que uma coisa na ordem dos fenómenos (como pertencente ao
mundo sensível) esteja submetida a certas leis, de que essa
mesma coisa, como coisa ou ser em si, é independente, isso não
contém a menor contradição; mas que o homem tenha que
representar-se e pensar-se a si mesmo desta maneira dupla, isso
funda-se, para o primeiro caso, na consciência de si mesmo como
objecto afectado pelos sentidos, para o segundo na consciência
de si mesmo como inteligência, quer dizer como ser
independente, no uso da razão, de impressões sensíveis (portanto
como pertencente ao mundo inteligível).
// Daqui provém que o homem se arrogue uma vontade que
não deixa medrar nada que apenas pertença aos seus apetites e
inclinações, e que, pelo contrário, pensa como possíveis por si, e
mesmo como necessárias, acções que só podem acontecer
desprezando todos os apetites e todas as solicitações dos sentidos.
A causalidade dessas acções reside nele como inteligência e nas leis
dos efeitos e acções segundo princípios de um mundo inteligível, do
qual nada mais sabe senão que nesse mundo só dá a lei a razão, e a
razão pura, independente da sensibilidade. Igualmente, como nesse
mundo é ele, como inteligência, que é o eu verdadeiro (ao passo que
como homem é apenas fenómeno de si mesmo), essas leis
importam-lhe imediata- e categoricamente, de sorte que aquilo a que
solicitam as inclinações e apetites (por conseguinte toda a natureza
do mundo sensível) em nada pode lesar as leis do seu querer como
inteligência; mais ainda, ele não toma a responsabilidade desses
apetites e inclinações e não as atribui ao seu verdadeiro eu, isto é à
sua vontade; o que ele se imputa, sim, é a complacência que poderia
ter por elas se lhes concedesse influência sobre as suas máximas
com prejuízo das leis racionais da vontade.
Ao introduzir-se assim pelo pensamento num mundo
inteligível, a razão prática não ultrapassa em nada os seus
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limites; mas ultrapassá-los-ia se quisesse entrar nesse mundo por
intuição, por sentimento (1). Aquele primeiro é apenas um
pensamento // negativo com respeito ao mundo sensível, o qual
não dá leis à razão na determinação da vontade; só é positivo
neste único ponto: que essa liberdade, como determinação
negativa, está ligada ao mesmo tempo a uma faculdade (positiva)
e até a uma causalidade da razão a que chamamos uma vontade e
que é a faculdade de agir de tal modo que o princípio das acções
seja conforme ao carácter essencial de uma causa racional, quer
dizer, à condição da validade universal da máxima como lei. Mas
se a razão quisesse ainda tirar do mundo inteligível um objecto da
vontade, isto é um móbil, então ultrapassaria ela os seus limites e
pretenderia conhecer alguma coisa de que nada sabe. O conceito
de um mundo inteligível é portanto apenas um ponto de vista que
a razão se vê forçada a tomar fora dos fenómenos para se pensar
a si mesma como prática, o que não seria possível se as influências da sensibilidade fossem determinantes para o homem, o que
porém é necessário na medida em que se lhe não deve negar a
consciência de si mesmo como inteligência, por conseguinte
como causa racional e actuante pela razão, isto é livremente
eficiente. Este pensamento traz na verdade consigo a ideia de uma
outra ordem e legislação do que a do mecanismo natural que
conerne o mundo sensível, e torna necessário // o conceito de um
mundo inteligível (isto é, o todo dos seres racionais como coisas
em si mesmas), mas isto sem a mínima pretensão de ultrapassar
aqui o pensamento do que é simplesmente a sua condição
__________________________
(l) «...wohl aber, wenn sie sich hineinschauen, hineinempfin-den wollte». —
Delbos (pág. 201); «elle ne les dépasserait que si elle voulait, en entrant dans ce
monde, s'y apercevoir, s'y sentir». — Lache-lier (pág. 113): «...comme elle le
ferait si elle voulait s'y apercevoir et s'y sentir». — Morente (pág. 124): «los
traspassa cuando quiere intuirse, sentirse en ese mundo». (P.Q.)
// BA 119,
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110
formal, quer dizer a universalidade da máxima da vontade como
lei, por conseguinte a autonomia da vontade, que é a única que
pode ser compatível com a sua liberdade; pelo contrário, todas as
leis que se relacionem com um objecto têm como resultado
heteronomia, que só se pode encontrar em leis naturais e se
refere só ao mundo sensível.
Mas a razão ultrapassaria logo todos os seus limites se se
arrojasse a explicar como é que a razão pura pode ser prática, o que
seria a mesma coisa que explicar como é que é possível a liberdade.
Pois nós nada podemos explicar senão aquilo que possamos
reportar a leis cujo objecto possa ser dado em qualquer experiência
possível. Ora a liberdade é uma mera ideia cuja realidade objectiva
não pode ser de modo algum exposta segundo leis naturais e,
portanto, em nenhuma experiência também, que, por consequência,
uma vez que nunca se lhe pode subpor um exemplo por nenhuma
analogia, nunca pode ser concebida nem sequer conhecida. Ela vale
somente como pressuposto necessário da razão num ser que julga
ter consciência duma vontade, isto é duma facilidade bem diferente
da simples faculdade de desejar (a saber a faculdade de se
determinar a agir como inteligência, por conseguinte segundo leis da
razão independentemente de // instintos naturais). Ora, onde cessa a
determinação segundo leis naturais, cessa também toda a
explicação, e nada mais resta senão a defesa, isto é, a repulsão das
objecções daqueles que pretendem ter visto mais fundo na essência
das coisas e por isso atrevidamente declaram a liberdade impossível.
Pode-se-lhes mostrar somente que a contradição que eles julgam ter
descoberto aqui não consiste senão no seguinte: — para tornar
válida a lei natural no que concerne as acções humanas, eles tiveram
de considerar o homem necessariamente como fenómeno; e agora,
quando se exige deles que o pensem também, enquanto inteligência,
como coisa em si mesma, eles continuam ainda a considerá-lo como
fenómeno; e então,
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111
em verdade, o facto de subtrair a causalidade do homem (quer
dizer a sua vontade) a todas as leis naturais do mundo sensível
em um e o mesmo sujeito, constituiria uma contradição; mas
esta contradição desaparece se eles quiserem reflectir e
confessar, como é justo, que por trás dos fenómenos têm de
estar, como fundamento deles, as coisas em si mesmas (ainda
que ocultas), a cujas leis eficientes se não pode exigir que sejam
idênticas àquelas a que estão submetidas as suas manifestações
fenomenais.
A impossibilidade subjectiva de explicar a liberdade da
vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e tornar
concebível um // interesse (*) que o homem possa tomar pelas
leis morais; e, no entanto, é um facto que ele toma realmente
interesse por elas, cujo fundamento em nós é o que chamamos
sentimento moral, sentimento que alguns têm falsamente
apresentado como padrão do nosso juízo moral, quando é certo
que ele deve ser considerado antes como o efeito subjectivo que
a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os
princípios objectivos.
__________________________
(*) Interesse é aquilo por que a razão se torna prática, isto é, se torna cm causa
determinante da vontade. Por isso se diz só de um ser racional que ele toma
interesse por qualquer coisa; as criaturas irracionais sentem apenas impulsos
sensíveis. A razão só toma um interesse imediato na acção quando a validade
universal da máxima desta acção é princípio suficiente de determinação da
vontade. Só um tal interesse é puro. Mas quando a razão só pode determinar a
vontade por meio de um outro objecto do desejo ou sob o pressuposto de um
sentimento particular do sujeito, então ela só toma na acção um interesse
mediato; e, como a razão não pode descobrir por si mesma, sem experiência,
nem objectos da vontade nem um sentimento particular que lhe sirva de fundamento, este último interesse seria apenas empírico e não um interesse racional
puro. O interesse lógico da razão (para fomentar os seus conhecimentos) nunca
é imediato, mas pressupõe sempre propósitos do seu uso. (Nota de Kant.)
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Para que um ser, ao mesmo tempo racional e afectado pelos
sentidos, queira aquilo que só a razão lhe prescreve como dever, é
preciso sem dúvida uma faculdade da razão que inspire um
sentimento de prazer ou de satisfação no cumprimento do dever, e,
por conseguinte, que haja uma causalidade // da razão que determine
a sensibilidade conforme aos seus princípios. Mas é totalmente
impossível compreender, isto é tornar concebível a priori, como é
que um simples pensamento, que não contém em si nada de sensível,
pode produzir uma sensação de prazer ou de dor; pois isto é uma
espécie particular de causalidade, da qual, como de toda a
causalidade, absolutamente nada podemos determinar a priori, mas
a respeito da qual temos de consultar só a experiência. Ora, como
esta não nos pode oferecer relação alguma de causa a efeito senão
entre dois objectos da experiência, e como aqui a razão pura deve
ser, por simples ideias (que não fornecem nenhum objecto para a
experiência), a causa de um efeito que reside, sem dúvida, na
experiência, é-nos totalmente impossível a nós homens explicar
como e porquê nos interessa a universalidade da máxima como lei,
e, portanto, a moralidade. Apenas uma coisa é certa: — e é que não é
porque tenha interesse que tem validade para nós (pois isto seria
hete-ronomia e dependência da razão prática em relação a um
sentimento que lhe estaria na base, e neste caso nunca ela poderia ser
moralmente legisladora), mas sim interessa porque é válida para
nós como homens, pois que nasceu da nossa vontade, como
inteligência, e portanto do nosso verdadeiro eu; mas o que pertence
ao simples jenómeno é necessariamente subordinado pela razão a
constituição da coisa em si mesma.
// A pergunta, pois: — Como é possível um imperativo
categórico? — pode, sem dúvida, responder-se na medida em
que se pode indicar o único pressuposto de que depende a sua
possibilidade, quer dizer a ideia da liberdade, e igualmente na
medida em que se pode aper__________________________
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,
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113
ceber a necessidade deste pressuposto, o que para o uso prático da
razão, isto é para a convicção da validade deste imperativo, e
portanto também da lei moral, é suficiente; mas como seja possível
esse pressuposto mesmo, isso é o que nunca se deixará jamais
aperceber por nenhuma razão humana. Mas pressupondo a liberdade
da vontade de uma inteligência, a consequência necessária é a
autonomia dessa vontade como a condição formal que é a única sob
que ela pode ser determinada. Não é somente muito possível (como a
filosofia especulativa pode mostrar) pressupor esta liberdade da
vontade (sem cair em contradição com o princípio da necessidade
natural na ligação dos fenómenos do mundo sensível), mas é
também necessário, sem outra condição, para um ser racional que
tem consciência da sua causalidade pela razão, por conseguinte de
uma vontade (distinta dos desejos), admiti-la praticamente, isto é na
ideia, como condição de todas as suas acções voluntárias. Ora como
uma razão pura, sem outros móbiles, venham eles donde vierem,
possa por si mesma ser prática, isto é, como o simples princípio da
validade // universal de todas as suas máximas como leis (que seria
certamente a forma de uma razão pura prática), sem matéria alguma
(objecto) da vontade em que de antemão pudeáse tomar-se qualquer
interesse, possa por si mesma fornecer um móbil e produzir um
interesse que pudesse chamar-se puramente moral; ou, por outras
palavras: como uma razão pura possa ser prática — explicar isto,
eis o de que toda a razão humana é absolutamente incapaz; e todo o
esforço e todo o trabalho que se empreguem para buscar a
explicação disto serão perdidos.
É exactamente o mesmo como se eu buscasse descobrir
como seja possível a liberdade mesma como causalidade de uma
vontade. Pois aqui abandono eu o princípio filosófico da
explicação, e não tenho nenhum outro. É verdade que poderia
agora aventurar-me a voos fantásticos no mundo inteligível, que
ainda me resta, no mundo das inteligências;
__________________________
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125
114
mas, posto que dele tenha uma ideia, e bem fundada, não tenho,
contudo, o menor conhecimento dele nem posso nunca vir a tê-lo
com todo o esforço da minha faculdade natural da razão. Este
mundo (1) significa apenas alguma coisa que subsiste depois de
eu ter excluído dos princípios determinantes da minha vontade
tudo o que pertence ao mundo sensível, só para restringir o
princípio dos móbiles tirados do campo da sensibilidade,
limitando esse campo e mostrando que ele não abrange o todo no
todo, mas que fora dele há ainda algo mais; este algo mais,
porém, // não o conheço. Da razão pura que pensa este ideal nada
mais me resta, depois de separar dela toda a matéria, isto é, todo o
conhecimento dos objectos, do que a forma, quer dizer a lei
prática da validade universal das máximas e, em conformidade
com ela, pensar a razão em relação com um mundo puro
inteligível como causa possível eficiente, isto é, como causa
determinante da vontade; aqui o móbil tem que faltar
inteiramente, a não ser que esta ideia de um mundo inteligível
fosse ela mesma o móbil ou aquilo por que a razão toma
originariamente interesse; mas tornar isto concebível é
exactamente o problema que nós não podemos resolver.
E aqui, pois, que se encontra o limite extremo de toda a
investigação moral; mas determiná-lo é de grande importância já
para que, dum lado, a razão não vá andar no mundo sensível, e
por modo prejudicial aos costumes, à busca do motivo supremo
de determinação e dum interesse, concebível sem dúvida, mas
empírico, e para que, por outro lado, não agite em vão as asas,
sem sair do mesmo sítio, no espaço, para ela vazio, dos conceitos
transcenden__________________________
(1) «Este mundo...» — Delbos (pág. 207) e Lachelier (pág. 119) traduzem o
«sie» do original como reportando-se a «ideia»: «cette idée...» — Parece-me que
Morente (pág. 130) interpreta melhor: «Ese mundo...» (P.Q.)
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tes, sob o nome de mundo inteligível, e para que se não perca
entre quimeras. De resto a ideia de um mundo inteligível puro,
como um conjunto de todas as inteligências, ao qual pertencemos
nós mesmos como seres racionais (posto que, por outro lado,
sejamos ao mesmo tempo membros do mundo sensível),
continua a ser uma ideia utilizável e lícita em vista de uma crença
// racional, ainda que todo o saber acabe na fronteira deste mundo,
para, por meio do magnífico ideal de um reino universal dos fins em
si mesmos (dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como
membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo
máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza,
produzir em nós um vivo interesse pela lei moral.
NOTA FINAL
O uso especulativo da razão, com respeito à natureza,
conduz à absoluta necessidade de qualquer causa suprema do
mundo; o uso prático da razão, com respeito à liberdade, conduz
também a uma necessidade absoluta, mas somente das leis das
acções de um ser racional como tal. Ora, é um princípio essencial
de todo o uso da nossa razão levar o seu conhecimento até à
consciência da sua necessidade (pois sem. ela não seria nunca
conhecimento da razão). Mas também é uma limitação
igualmente essencial da mesma razão não poder ela conhecer a
necessidade nem do que existe ou acontece, nem do que deve
acontecer, sem pôr uma condição sob a qual isso existe ou
acontece ou deve acontecer. Desta sorte, porém, pela constante
pesquisa da // condição, vai sendo sempre adiada a satisfação da
razão. Por isso ela busca sem descanso o incondicionalnecessário e vê-se forçada a admiti-lo, sem meio algum de o
tornar concebível a si mesma; feliz bastante quando pode achar já
só o conceito que se compadece com este
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116
pressuposto. Não é, pois, nenhum defeito da nossa dedução do
princípio supremo da moralidade, mas é sim uma censura que
teria de dirigir-se à razão humana em geral, o ela não poder tornar
concebível uma lei prática incondicionada (como tem que sê-lo o
imperativo categórico) na sua necessidade absoluta; pois não há
que censurá-la por que ela o não queira fazer por meio de uma
condição, quer dizer por meio de qualquer interesse posto por
fundamento, porque então não seria uma lei moral, isto é, uma lei
suprema da liberdade. E assim nós não concebemos, na verdade, a
necessidade prática incondicionada do imperativo moral, mas
concebemos, no entanto, a sua inconcebibilidade, e isto é tudo o
que, com justiça, se pode exigir de uma filosofia que aspira a
atingir, nos princípios, os limites da razão humana.
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118
ÍNDICE
Reconhecimento................................................................................9
Nota Prévia do Tradutor ............................................................ 11
PREFÁCIO ............................................................................... 13
PRIMEIRA SECÇÃO
Transição do conhecimento moral da razão para o
conhecimento filosófico ............................................................21
SEGUNDA SECÇÃO:
Transição da Filosofia Moral Popular para a Metafísica
dos Costumes .............................................................................39
TERCEIRA SECÇÃO:
Transição da Metafísica dos Costumes para a Crítica
da Razão Prática Pura ...............................................................93
119
A Fundamentação da Metafísica dos Costumes data de 1785
e antecipa-se à Crítica da Razão Prática (1788), abordando
com profundidade o problema do imperativo moral,
irredutível a qualquer outro fundamento anterior.
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