O RETORNO ÀS RAÍZES CABO-VERDIANAS EM CAIS- DO

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O RETORNO ÀS RAÍZES CABO-VERDIANAS EM CAIS- DO
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O RETORNO ÀS RAÍZES CABO-VERDIANAS EM CAISDO-SODRÉ, DE ORLANDA AMARILIS
Glauco Ortega Fernandez2
A República Independente de Cabo Verde está situada no
Oceano Atlântico, a 455 Km do continente Africano. Constitui-se
de um arquipélago que compreende dez ilhas principais e alguns
ilhéus que são tradicionalmente divididos em dois grupos de acordo
com sua posição em relação aos ventos alísios dominantes: o grupo
Barlavento, ao Norte, e o grupo Sotavento, a o Sul.
A impropriedade do solo para a agricultura devido às
formações de origem vulcânica das ilhas, a pobreza e a
degradação do mesmo devido à exploração desenfreada a que os
colonizadores portugueses o submeteram, e a escassez e
irregularidade de chuvas geram a fome e a sede da população. O
mais agravante disso tudo que foi o regime de propriedade da
terra mantido pelo colonizador português geraram/geram uma
falta de trabalho e, conseqüentemente, a miséria que obrigam o
cabo-verdiano a emigrar de seu país, seja para outros países
africanos ou para a América e a Europa. 3
Caracteriza-se assim, em Cabo Verde, uma grande evasão
populacional, o que podemos confirmar com o depoimento do
cabo-verdiano Luís Romano, citado por Manuel Ferreira em sua
obra A aventura crioula:
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Aluno do 4º ano da graduação em Letras da UFSCar. Bolsista de Iniciação
Científica do PIBIC/CNPq/UFSCar.
Para a obtenção destas informações gerais sobre Cabo Verde, no intuito de
elaborar a introdução deste trabalho, recorri ao estudo de GOMES, Simone
Caputo. Uma recuperação de raiz: Cabo Verde na obra de Daniel Filipe.
Praia : Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1993. pp. 21-24
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Os campos tornam-se desertos, o homem, quando escapa, irradia-se ou,
por força das circunstâncias, é irradiado para outros pontos diferentes e
às vezes, como no meu caso, embarca para longe, à procura de um pão
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seguro e uma sombra de paz.
Veremos que essa evasão populacional cabo-verdiana
aparece como tema na Literatura de Cabo Verde escrita em
Língua Portuguesa.
Desta maneira, no intuito de demonstrar a presença desta
temática e a maneira como ela aparece na literatura caboverdiana, apresentamos, neste trabalho, uma análise deste aspecto
no conto Cais-do-Sodré, de autoria da escritora cabo-verdiana
Orlanda Amarílis, “a primeira prosadora cabo-verdiana com livro
publicado”. 5
Logo no princípio do conto, já podemos notar a presença
desta temática da “evasão” da população cabo-verdiana, ou seja, a
necessidade da população de deixar o seu país e ir viver em outro:
É devera, não estava a reconhecê-la.”
Andresa rebusca na memória a família da cara parada na sua frente. (...)
Ou será parente de nhô Antônio Pitra irmão do Faia há muito embarcado
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para a Argentina?
A protagonista Andresa esforça-se para reconhecer uma
patrícia que se senta ao seu lado, enquanto espera o trem em uma
estação, em Portugal. Neste trecho, podemos notar como é
comum as pessoas da terra natal de Andresa (Cabo Verde)
deixarem seu país, quando Andresa, ao tentar identificar a que
família esta sua conterrânea pertencia, pensa: “Ou será parente
de nhô Antônio Pitra irmão do Faia há muito embarcado para a
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ROMANO, Luís. Cabo Verde – elo antropológico entre África e o Brasil.
Natal, 1964. pp. 78-79 apud FERREIRA, Manuel. A aventura crioula. 3ª ed.
rev. Lisboa : Plátano Editora, s.d. p. 80
FERREIRA, Manuel. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São
Paulo : Ática, 1997. p. 80
AMARILIS, Orlanda. “Cais-do-Sodré”. In: SANTILLI, Maria Aparecida.
Estórias africanas: história e antologia. São Paulo : Ática, 1985. (Série
Fundamentos) p. 135
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Argentina?” 7 Ou seja, quando começa a lembrar das famílias de
sua terra, às quais poderia pertencer esta conterrânea que estava
ao seu lado, Andresa conclui que integrantes de algumas destas
famílias também já deixaram Cabo Verde. Este fato habitual da
evasão cabo-verdiana é confirmado em seguida, quando o
pensamento de Andresa revela o seu costume de sempre querer
descobrir a que família pertencem os patrícios que encontra em
Portugal, revelação esta que nos permite concluir ser muito
comum encontrar cabo-verdianos neste país. Andresa reflete,
ainda, sobre a conversa “calma” e “saborosa” que sempre tem
com estes patrícios quando os encontra.
É tão comum esta “emigração” da população caboverdiana que o narrador, depois de a senhora contar a Andresa
que o motivo de sua ida a Portugal foi a doença do pai, afirma:
“Esta pequena história já vem sendo repetida inúmeras vezes” 8.
Porém, o narrador diz, em seguida, que a senhora tem necessidade
de contá-la para desabafar.
Estas reflexões iniciais da protagonista nos mostram,
através da necessidade que ela tem de conhecer a origem de seus
conterrâneos, a estreita ligação que possui com a sua própria
origem, com sua terra natal, o que é confirmado pela qualificação
que ela faz da conversa que tem com estes patrícios como
“calma”, “saborosa” (quase sempre): “E a conversa, por esse elo,
estende-se, alarga-se, num desfolhar calmo, arrastado, saboroso
quase sempre”. 9
Em seguida, vemos que é involuntário este seu desejo de
manter contato com seus conterrâneos, quando o narrador afirma:
“Andresa ajeita a mala sobre os joelhos (...), sem atinar por que
dera conversa à senhora”. 10 Andresa demonstra, assim, uma
resistência, uma relutância em conversar com esta senhora de sua
terra, ao afirmar “Ainda hei-de perder essas manias”, e promete
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Idem, ibidem, p. 135, (Grifo nosso).
Idem, ibidem, p. 136
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Idem, ibidem, p. 135
10
Idem, ibidem, p. 135
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não mais dar atenção aos conterrâneos que encontrar: “Apareçame pela frente seja quem for, não conheço, acabou-se”. 11
Esta resistência é rápida e automaticamente desfeita
quando Andresa, involuntariamente, corresponde à conversa da
senhora, cedendo a mesma, uma vez que, como ela mesma afirma
“[as conversas] Têm um fio, um caminho a percorrer” 12. Ou seja,
a ligação à sua terra é tão forte que não permite que ela “fuja” do
diálogo com uma conterrânea.
A “involuntariedade” do desejo de continuar a conversa com
a senhora de sua terra é marcada no conto em diversos momentos.
Em um deles, o narrador afirma que Andresa responde “Coitado” 13
à revelação da senhora de que o pai havia morrido somente para dar
continuidade à conversa, de modo que ela não parasse por aí.
Semelhantemente ocorre quando o narrador diz ser mentira a
afirmação de Andresa de que desconfiava que a senhora fosse
sobrinha de Simão Filili, no momento em que esta lhe diz que ele era
seu pai. O mesmo diz o narrador sobre a afirmação de Andresa de
que desconfiava que Zinha, que a senhora acabara de afirmar ser sua
irmã, era prima da mesma. Estas “mentiras” mais uma vez revelam
uma estratégia involuntária utilizada pela protagonista para continuar
a conversa com a patrícia. Em outro momento, ainda, esta
involuntariedade é marcada pelo narrador, quando afirma: “movida
não sabe por que curiosidade indagou: (...)”14
A partir do momento em que a senhora se identifica,
dizendo que seu nome era Tanha, que era irmã de Zinha e que seu
pai era Simão de Filili, a protagonista recorda-se realmente quem
era ela, sentindo-se mais à vontade para continuar a conversa,
uma vez que, conhecendo as origens de Tanha, possuía elementos
para conversar com a mesma. Esta identificação da origem de
Tanha faz com que ela se permita aproximar mais da conterrânea,
quando, por exemplo, lhe pergunta: “O seu irmão já está
formado? Não sabia”. 15, demonstrando uma certa preocupação
11
Idem, ibidem, pp. 135-136
Idem, ibidem, p. 136
13
Idem, ibidem, p. 136
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Idem, ibidem, p. 138, (Grifo Nosso)
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Idem, ibidem, p. 138
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em ter notícias do seu irmão. Tanha, por sua vez, também
“aproxima-se” mais de Andresa, revelando uma certa intimidade
quando lhe confidencia que a cunhada é atrevida e por isso
preferiu morar com as primas: “As mondrongas são atrevidas e
em casa das minhas primas estou mais à vontade”. 16 Depois
desta revelação, a protagonista sorri, confirmando a “intimidade”
com a patrícia.
Logo após este momento de aproximação, tenta, novamente,
lutar contra sua vontade de aproximação da conterrânea quando
mente a mesma dizendo que só não a acompanha no trem porque
está à espera do marido. Irritada consigo mesma, ela revela: “Ora,
não vou com ela, porque não estou mesmo nada interessada. Para
conversa já chega” 17. Esta contradição é comentada pelo narrador
que, em seguida, afirma que a protagonista não compreende como se
constrangia em acompanhar a Tanha, e que isto se tornou algo
habitual com ela quando encontrava um patrício: primeiro sentia o
desejo de conversar com ele para relembrar sua terra, sua gente, mas
em seguida se “desencantava”, de modo que lhe parecia não ter mais
afinidades com as pessoas de há quinze anos (já que este era o tempo
que estava fora de seu país), como se elas não fossem as mesmas.
Esta reflexão de Andresa sobre seus sentimentos
caracteriza muito bem o jogo presente o tempo todo no conto
entre a sua “resistência” em manter uma relação com sua
conterrânea Tanha e, como conseqüência, às tradições de seu país,
e o “ceder” aos seus sentimentos, ou seja, o deixar-se levar por
sua vontade, que era a de dar atenção a conterrânea, o que lhe
faria recordar o seu país.
A partir desta reflexão, a protagonista começa a recuperar
a história do personagem nhô Simão Filili, pai de Tanha. Vemos,
então, que neste momento em que ela detém-se recuperando as
“imagens” do mesmo, entrega-se, deixa-se levar pelas lembranças
de sua terra natal, Cabo Verde. Assim, no jogo entre “resistir” ou
“ceder” aos sentimentos de aproximação às suas raízes, Andresa
cede aos mesmos.
16
17
Idem, ibidem, p. 138
Idem, ibidem, p. 138
12
Esse aspecto do sentimento da personagem central, ou
seja, a sua atração pelas raízes cabo-verdianas, pelas tradições de
seu país, é muito bem discutido por Santilli (1985), quando trata
das personagens femininas de Orlanda Amarilis. Vejamos:
As mulheres de Ilhéu dos Pássaros parecem seguir pois, certas pegadas
de suas antecessoras de Cais-do-Sodré te Salamansa, na medida em que
mantêm vivas as raízes caboverdianas, quer houvessem sido fadadas ao
insulamento definitivo, quer se deixassem levar nas correntes do mundo
por um vapor qualquer. Assim é com Andresa, a emigrada de “Cais-doSodré”, que enquanto quer desvencilhar-se da viajante conterrânea em
Lisboa, se sente irresistivelmente atraída pela força magnética das raízes
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comuns com ela.
Estas recordações da personagem principal estão repletas
de elementos da tradição cabo-verdiana, dos mitos, dos rituais, da
cultura e das histórias populares, como podemos ver nos trechos
que se seguem:
Nhô Simão Filili vivo, por certo continuaria a ser a mesma figura
lendária e de meter respeito. Era de uma raça! Toda a gente conhecia
19
Nhô Simão Filili. Nhô Simão Escochóde, segredavam os meninos.
Bia Antônia, a velha criada da casa, era quem contava estas e outras
patranhas à Andresa. Depois do jantar, Bia Antônia sentava-se num
caixote, perto da escada, na varanda sobranceira ao quintal. Entre duas
fumaças do canhoto sempre dependurado no canto da boca, a serva
desfiava um ror de histórias. Andresa, debruçada à varanda, ouvia-a
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distraída.
Andresa recorda-se da primeira vez que viu nhô Simão
Filili, e nesta recordação já podemos ver a presença das crenças
populares, quando diz: “Falava assim por ser maçônico, dizia-se.
Era da maçonaria, confirmava o povo, fazia arte como as
feiticeiras” 21, o que mostra a opinião do povo sobre o pai de
18
SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo : Editora Ática, 1985.
(Contornos Literários) p. 110
19
AMARILIS, Orlanda. Opus cit., p. 139
20
Idem, ibidem, pp. 139-140
21
Idem, ibidem, p. 139, (Grifos Nossos)
13
Tanha e sobre a maçonaria, instituição à qual diziam que o
mesmo pertencia.
Recorda-se também de uma “cantiga de ninar” popular,
relacionada com as “bruxas”, com a qual as criadas embalavam os
bebês: “Nhá Chica Maçaroca ta buli ta bai, ta buli ta bem”. 22
Em seguida, narra um fato importantíssimo: afirma que a
maioria das histórias que sabe sobre nhô Simão Filili lhe foi
contada por Bia Antônia, a velha criada de sua casa. A figura
desta criada ocupa um lugar de grande destaque no conto, devido
ao seu papel de “contadora de histórias”, ou seja, é uma mulher já
idosa e que detém o conhecimento das tradições populares, das
histórias, dos mitos, etc.
Andresa reproduz, através de suas recordações, as falas de
Bia Antônia ao lhe contar as histórias, e estas falas são repletas de
mitos populares, como, por exemplo, nos momentos em que a
velha fala sobre a maçonaria: “A primeira prova para um homem
ser maçonco é atravessar descalço um mar de alfinetes. (...) nhô
Simão Filili fez esta prova como nenhum outro”; “(...) maçoncos
têm pacto com o xuxo”. 23
O narrador afirma que a protagonista gostava de ouvir
estas histórias populares de Bia Antônia, e, em seguida,
demonstra a importância das mesmas para o povo: “Andresa
gostava de ouvir estas histórias espalhadas pela boca do povo. E
o povo acreditava tanto nelas a ponto de nhô Simão Filili tornarse temido e respeitado de ponta a ponta da ilha”. 24
Depois de “mergulhar” neste universo cultural de seu
país, através das recordações, a personagem principal sente-se
muito apegada à sua terra natal, “Como se nunca se tivesse
despegado da Mãe-Terra (...)” 25. Isto a faz levantar e ir em busca
de Tanha para fazer-lhe companhia na viagem, não somente por
estar com pena dela, mas porque também sente a necessidade de
uma companhia de sua terra, uma companhia que “condiga” com
22
Idem, ibidem, p. 139
Idem, ibidem, p. 140
24
Idem, ibidem, p. 140
25
Idem, ibidem, p. 142
23
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a sua situação saudosista, uma patrícia. Esta necessidade é
despertada nela pelas suas recordações da terra natal.
Levanta-se e começa a andar. Junto à segunda carruagem espreita.
Tanha, olhar descansado, a face serena, num canto do assento como se
devessem caber aí mais umas cinco pessoas ainda no mesmo banco, sorri
26
para Andresa. Coitada de Tanha! Vou com ela até Caxias.
Podemos concluir, então, que no jogo entre “resistir” ou
“ceder” à sua necessidade de busca das raízes, necessidade esta
presente nos sentimentos de Andresa durante todo o conto, ao
final a protagonista cede à mesma, uma vez que se deixa vencer
pelos seus sentimentos e decide fazer companhia à conterrânea.
Referências Bibliográficas
Amarilis, Orlanda. “Cais-do-Sodré”. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias
africanas: história e antologia. São Paulo : Ática, 1985. (Série
Fundamentos)
Ferreira, Manuel. A aventura crioula. 3ª ed. rev. Lisboa : Plátano Editora, s.d.
______. Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. São Paulo : Ática,
1997.
Gomes, Simone Caputo. Uma recuperação de raiz: Cabo Verde na obra de
Daniel Filipe. Praia : Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1993.
Santilli, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo : Editora Ática, 1985.
(Contornos Literários)
26
Idem, ibidem, p. 142