Uma nova vida - Infoambiente

Transcrição

Uma nova vida - Infoambiente
Adriano Peixoto Panazzolo
Aline Figueiredo Freitas Pimenta
com Sebastião Ribeiro
Um novo caminho
Uma nova vida
Programa de Reassentamento Populacional
da Rodovia do Parque − BR-448/RS
1º edição
Canoas
STE − Serviços Técnicos de Engenharia S.A.
2013
Adriano Peixoto Panazzolo
Aline Figueiredo Freitas Pimenta
com Sebastião Ribeiro
Um novo caminho
Uma nova vida
Programa de Reassentamento Populacional
da Rodovia do Parque − BR-448/RS
1º edição
Canoas
STE − Serviços Técnicos de Engenharia S.A.
2013
Panazzolo, Adriano Peixoto
Um novo caminho Uma nova vida : programa de reassentamento
populacional da Rodovia do Parque – BR-448/RS / Adriano Peixoto
Panazzolo; Aline Figueiredo Freitas Pimenta com Sebastião Ribeiro. – 1. ed. –
Canoas : STE – Serviços Técnicos de Engenharia S.A., 2013.
Prefácio
A institucionalização da questão ambiental no Brasil deu-se com a edição da Lei nº 6.938/81, que
instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, cujo objetivo era preservar, melhorar e recuperar
a qualidade ambiental propícia à vida, visando a assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, à segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.
152p.; 23cm.
Trinta e dois anos depois, inúmeras normas infralegais surgiram, e a retomada do desenvolvimen
to da infraestrutura resultou, muitas vezes, em acúmulo de danos sociais e ambientais, eviden-
ISBN 978-85-67309-00-2
ciando falta de integração entre as diversas políticas públicas.
1. Assentamentos humanos – Rio Grande do Sul. 2. Gestão ambiental –
Rio Grande do Sul. 3. Rodovia do Parque. I. Pimenta, Aline Figueiredo Freitas. II.
Ribeiro, Sebastião. III. Título.
É por essa razão que me sinto particularmente honrado por apresentar aos leitores este trabalho,
que relata uma das mais exitosas experiências do DNIT no que tange à gestão ambiental – em
particular, na dimensão social, em face das atividades desenvolvidas no âmbito dos programas
CDD 22. ed. 333.318165
de educação ambiental, comunicação social e reassentamento populacional.
O DNIT, em parceria com a STE - Serviços Técnicos de Engenharia S.A. - Gestora Ambiental, modelou esse processo de modo que as ligações entre a natureza, o fluxo das atividades econômicas
da região e a construção da rodovia fossem harmonizadas, o que permitiu o alcance dos resultados ora expostos neste inédito trabalho.
Apoio:
O equacionamento de soluções para os problemas ambientais advindos da construção da
BR-448/RS foi, em muitos aspectos, inovador, e, na minha modesta opinião, pela primeira
vez em obras rodoviárias os objetivos socioambientais foram alcançados por padrões eficientes, em que recursos econômicos foram alocados de forma que os benefícios e os custos
resultantes à sociedade fossem de fato iguais.
Realização:
Mas, sem dúvida nenhuma, as grandes contribuições desse processo são o conhecimento e a
habilidade desenvolvidos para compatibilizar a implantação da obra e a superação das questões
sociais, por meio da construção da Vila de Passagem e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de
relações comunitárias e sociais, o fomento de uma atividade econômica sustentável e o resgate
da dignidade humana.
Tarcisio Gomes de Freitas
Diretor Executivo do DNIT
Expediente
Coordenação geral:
Adriano Peixoto Panazzolo (STE S.A.), Aline Figueiredo Freitas Pimenta e Pedro Luzardo Gomes (DNIT)
Coordenação editorial:
Carlos Alfredo Türck Júnior e Letícia Coradini Frantz
Revisão técnica:
Catarina Silveira Muñoz (DNIT), Joceane Gasparetto e Manuela Schneider (Prefeitura Municipal de Canoas)
Reportagem:
Andrea Weschenfelder e Sebastião Ribeiro
Edição jornalística:
Isabel Marchezan
Revisão:
Simone Diefenbach Borges
Projeto gráfico e diagramação:
Ulisses Romano (Visual Agência - Comunicação e Design)
12 3 456
Edição:
STE – Serviços Técnicos de Engenharia S.A. e Cartola – Agência de Conteúdo
Fotos de capa: Consórcio Queiroz Galvão/OAS/Brasília Guaíba, Eduardo Rocha e Prefeitura Municipal de Canoas
Trabalharam no Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS:
Adriano Peixoto Panazzolo
Evandro Feltrin Teixeira
Marlene da Silveira
Aline de Oliveira Viegas
Janaína Pugliese dos Santos
Nêmora Silveira
Aline Márcia Paula Farias
Juliana Pugliese Christmann
Paula Cantergi Padilha
Ana Maria Fialho Borges
Lecir Ribas Marins
Roberto Carlos dos Santos Rocha
Andrea Weschenfelder
Letícia Coradini Frantz
Sara Cristina Kauer Rocha
Andressa Krewer Facin
Luana Rosado Emil
Sílvia Regina de Souza
Andrezza Pinto Nascimento
Luciane Duarte da Silva
Silvia Soares Aurélio
Bárbara Janaína Alves da Annunciação
Luís Adriel Pereira
Suzana Vellinho Englert
Carlos Alfredo Türck Júnior
Luis Eduardo Nunes
Suzielli Paiva Modkowski
Chaiana Teixeira
Marcela Nascimento Sternick
Tais dos Santos Rosa
Daniele Alves Branco
Marcela Rodrigues
Valéria Debom
Denise Natália Zambonin Longhi
Mário de Almeida
Vanessa Santa Helena de Almeida
www.rodoviadoparque.com.br
Introdução
O histórico
da BR-448/RS
A relação com
a comunidade
A Vila de
Passagem
Os desdobramentos na Vila
de Passagem
As casas
definitivas
Conclusão
Pág. 7
Pág. 15
Pág. 63
Pág. 79
Pág. 95
Pág. 127
Pág. 149
Introdução
A BR-448/RS como exemplo
Legalmente previsto no Brasil desde 1981, o processo de licenciamento ambiental de projetos
faz parte da rotina de qualquer empreendedor, seja na iniciativa pública ou privada. Ainda assim, é dinâmico e passa por aperfeiçoamentos à medida que surgem novas regulamentações,
princípios, interpretações e jurisprudências.
A avaliação de impactos – para posterior definição de medidas compensatórias ou mitigatórias
de aspectos negativos ou potencializadoras de positivos – deve envolver os meios físico, biótico e socioeconômico. O senso comum, por vezes equivocadamente, associa ambiente a fauna,
flora e condições do solo. Mas as pessoas têm papel central – marcadamente positivo ou negativo – quando o tema é sustentabilidade. Uma visão sacramentada na Declaração sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e DesenFoto: Eduardo Rocha
volvimento de 1992, a Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, diz que: “Os seres humanos estão no
Reassentamentos
centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e
produtiva, em harmonia com a natureza”.
Assim como as rodovias devem ser planejadas e construídas de forma a ter mitigados, compensados ou potencializados seus impactos na fauna, na flora, no solo, na água e no ar, o mesmo
Responsável por algumas das maiores obras do Brasil, o Departamento Nacional de Infraes-
deve ocorrer no que diz respeito à vida das pessoas que habitam a área afetada. Quando o
trutura de Transportes (DNIT), vinculado ao Ministério dos Transportes, tem sido modelo na
empreendimento demanda liberação de áreas de pessoas que vivem ou são donos da terra, é
execução de medidas mitigadoras, compensatórias ou potencializadoras do impacto de em-
realizado o processo de desapropriação em nome do interesse público, conforme previsto no
preendimentos no contexto socioeconômico e cultural das áreas afetadas. Nesse sentido, o
decreto-lei nº 3.365/41. Nesse caso, o proprietário recebe indenização. No entanto, há casos em
recente caso da BR-448/RS, ou Rodovia do Parque, é um exemplo, especialmente seu Plano
que a área necessária para duplicação ou abertura de uma via está ocupada por quem não é
Básico Ambiental (PBA) no que diz respeito à população diretamente afetada pela rodovia. Um
dono – muitas vezes, famílias em estado de pobreza que ocupam irregularmente área pública
dos Programas Ambientais é o reassentamento involuntário de 599 famílias da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), em um processo que tem a parceria do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal (com a construção de novas moradias por meio do Programa
Minha Casa, Minha Vida), e da Prefeitura Municipal de Canoas, município onde está a maior
parte das famílias realocadas (uma pequena parte é oriunda das cidades de Esteio e Sapucaia
do Sul). A comunidade habitava um local conhecido como Vila do Dique.
O Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS não foi o único realizado pelo
DNIT, mas, pelo número de pessoas de uma única comunidade a serem reassentadas e pelos
resultados da ação, especialmente no acompanhamento social, serve de exemplo para outros
projetos da mesma natureza. Além disso, as circunstâncias do meio em que é implantada a
rodovia agregam complexidade ao empreendimento. Embora o trecho da Vila do Dique seja o
mais delicado nesse sentido, por demandar a retirada da população, em toda a sua extensão
a estrada também passa muito próximo de bairros residenciais e concentrações industriais,
interferindo diretamente na vida da cidade – um desafio a mais para a avaliação de impacto
ambiental. A facilidade de execução de uma obra não necessariamente está relacionada ao seu
porte ou valor, mas muitas vezes ao contexto ambiental em que o empreendimento está inserido. É isso que fez do projeto da Rodovia do Parque um grande desafio, especialmente quando
comparado ao porte do empreendimento, cujo trecho construído é de 22,24 quilômetros.
8
Um novo caminho Uma nova vida
Ação segue diretrizes da ONU
As ações do DNIT seguem diretrizes
fornecidas pelos Princípios Básicos e
Orientações para Remoções e Despejos Causados por Projetos de Desenvolvimento, publicados em 2007 pela
relatoria especial da Organização das
Nações Unidas para Direito à Moradia
Adequada:
• Todas as medidas que tornem a
moradia adequada no novo local
devem ser concluídas antes da remoção/reassentamento, tais como
a construção de casas, escolas,
instalação de saneamento básico,
entre outras;
• A nova moradia, terra ou território
deve ter qualidade superior ou
equivalente à moradia original. Isso
inclui as mesmas condições ambientais, geográficas e estruturais,
como, por exemplo, condições para
o escoamento da produção, espaços
de convívio social etc.;
• A nova moradia deve estar localizada o mais próximo possível do
local original, bem como de fontes
de meio de subsistência ou outras
soluções pactuadas. A adequação
cultural e as tradições do grupo
devem ser respeitadas;
• Os custos de deslocamento para
o trabalho ou para acessar serviços
essenciais no novo local de moradia
não devem pesar no orçamento das
famílias;
• Os locais para onde as pessoas
serão deslocadas não devem estar
situados em áreas de proteção
ambiental, em terras contaminadas
ou próximo de fontes de poluição
que possam afetar o direito à saúde
mental e física dos habitantes;
• O reassentamento deve ser realizado de forma justa e equitativa,
não se admitindo discriminação
contra grupos específicos, nem
formação de áreas segregadas e
guetos;
• O reassentamento não pode resultar na violação dos direitos humanos da população transferida, nem
afetar negativamente as condições
de vida da população que já habitava anteriormente o local, devendo,
pois, respeitar os elementos que
compõem a moradia adequada.
Introdução
9
ou de terceiros. Nesses casos, em que fica caracterizada a ocupação por moradores em situação
moradia, presente no texto constitucional, é reconhecido pela Declaração Internacional dos Di-
de vulnerabilidade social, executar Programas Ambientais para mitigar, compensar ou poten-
reitos Humanos, de 1948, em seu artigo 25, e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,
cializar o impacto nessas comunidades é uma das obrigações do DNIT como empreendedor. Os
Sociais e Culturais, de 1966, em seu artigo 11, entre outros. Já o Alto Comissariado para Direitos
Programas de Reassentamento podem envolver a realocação da família mediante indenização
Humanos da Organização das Nações Unidas estabelece que, nos casos nos quais o despejo
das benfeitorias; compra assistida, por meio da qual o Departamento adquire imóveis na região
forçado é justificável, ele deve ser empreendido com princípio de razoabilidade e proporcio-
impacto ambiental,
e acompanha a mudança das famílias; ou construção de loteamentos para reassentar os mo-
nalidade, não devendo causar situações de pessoas sem-teto ou vulneráveis de qualquer for-
como instrumento
radores, indicada em caso de grande número de pessoas em trechos não muito longos, opção
ma à violação de direitos humanos. Nos comentários gerais da publicação A Luta por Moradia
utilizada no caso da BR-448/RS.
Adequada: Despejos Forçados, de 1997, o órgão da ONU recomenda: “Onde aqueles afetados
“A avaliação do
nacional, será
administrativo pelo qual o órgão
de acordo com o máximo de recursos disponíveis, para garantir que uma adequada alternativa
as atividades
nerabilidade social deriva da legislação ambiental brasileira e é definida, em cada caso, nos
habitacional, reassentamento ou acesso a terra produtiva, conforme o caso, seja disponível”.
respectivos estudos ambientais – entre os quais, o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório
possam vir a
ter um impacto
“A prefeitura de Canoas entendeu a importância da BR-448/RS para
adverso sobre o
a cidade e o Estado. Priorizamos em nosso planejamento o apoio
ambiental competente licencia
a localização, a instalação, a
ampliação e a operação de
O licenciamento ambiental
empreendimentos e atividades
utilizadores de recursos ambientais considerados efetiva ou
potencialmente poluidores ou
Dentro da legislação ambiental, é preciso restar nítido que os Programas de Reassentamento
aqueles que, sob qualquer for-
decorrentes de obras de infraestrutura são parte do processo de licenciamento. A necessida-
ma, possam causar degradação
meio ambiente e
incondicional à obra e ao reassentamento.”
de da licença, por parte do órgão ambiental competente, de empreendimentos com poten-
estejam sujeitas
Jairo Jorge, prefeito de Canoas
cial de poluição ou degradação foi estabelecida pela lei federal nº 6.938/81 e recepcionada
pela Constituição Federal de 1988. Elaborados os estudos ambientais, bem como os planos
à decisão de uma
O estudo ambiental, a partir da caracterização do empreendimento e do diagnóstico do
básicos, os mesmos são submetidos à aprovação dos licenciadores, os quais adotam as me-
autoridade nacional
meio no qual será inserido, avalia a viabilidade ambiental do mesmo. Ou seja, os progra-
didas propostas, estabelecendo-as como condicionantes das licenças das obras, conforme
competente.”
mas voltados à mitigação ou compensação de impacto negativo às pessoas, bem como
prevê a lei federal nº 6.938/81 e as Resoluções Conama nº 001/86 e nº 237/97.
Princípio 17 da Declaração sobre
Meio Ambiente e
Desenvolvimento da Eco-92
define o licenciamento ambiental como o procedimento
A responsabilidade do DNIT em realizar a realocação nos casos de famílias em estado de vul-
de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), que subsidiam as respectivas licenças ambientais.
A resolução Conama nº 237/97
são incapazes de prover para si mesmos, o Estado deve tomar todas as medidas apropriadas,
efetuada para
planejadas que
O que diz a lei
ambiental.
Para subsidiar a etapa de LI, o
empreendedor elabora o Plano
Básico Ambiental (PBA), que detalha os programas ambientais
necessários para a minimização
dos impactos negativos e maximização dos impactos positivos,
identificados quando da elabo-
maximização dos impactos positivos, são parte integrante do licenciamento ambiental de
uma obra, assim como outros, que podem ser voltados à redução de impactos nos ambien-
Já a inclusão no orçamento dos projetos e obras federais, como os relativos à infraestrutura de
tes físico e biótico.
transportes, de uma provisão de recursos para prevenir ou corrigir prejuízos de natureza social,
ração do EIA.
Fonte: IBAMA
ambiental ou cultural é determinação do decreto presidencial nº 95.733/88. Esses recursos
Ao elaborar um Programa de Reassentamento Populacional, o DNIT leva em consideração, além
devem ser de pelo menos 1% do valor total do projeto. Por isso, no caso da BR-448/RS, bem
do estudo ambiental, princípios definidos pela Constituição Federal e por normais nacionais
como de outras rodovias, o DNIT destina recursos, dentro do orçamento de cada projeto, para
e, ainda, por organizações e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. O direito à
prevenção, mitigação ou potencialização de impacto ambiental.
10 Um novo caminho Uma nova vida
Introdução
11
A CGMAB
Processo de gestão ambiental
Em 2004, foi criada a Coordenação Geral de Meio Ambiente (CGMAB) do DNIT, com obrigação de cuidar dos aspectos ambientais de todos os empreendimentos da autarquia em
todas as suas etapas, desde o planejamento, passando pela implantação, até a sua operação. Isso resultou em um salto na valorização da questão ambiental em todas as suas
obras. Em 2006, o Departamento investiu R$ 7,327 milhões em serviços ambientais de
infraestrutura de transportes. Com a segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC II) e o aumento das exigências ambientais por parte dos órgãos licenciadores,
esse valor superou R$ 100 milhões em 2012.
Um marco na execução de serviços ambientais nas obras de transporte foi a incorporação da
gestão ambiental, concomitante à execução da obra. A duplicação da BR-101 entre Florianópolis/SC e Osório/RS foi a primeira obra do DNIT a contar com a destinação de recursos
A Gestão Ambiental dos empreendimentos rodoviários é o ato de
administrar e ter gerência sobre o
ambiente natural durante a execução
(planejamento, acompanhamento e
gerenciamento da implantação de
programas ambientais voltados ao
monitoramento ambiental, implantação de medidas compensatórias) e
operação da via.
Essa gestão tem como base três macroatividades:
• Supervisão Ambiental: atividades
que visam contemplar o efetivo e
sistemático controle ambiental das
obras e premissas estabelecidas nos
estudos ambientais antecessores,
objetivando cumprir os preceitos do
licenciamento ambiental e proporcionar condições para que a obra seja
executada dentro das boas práticas
de execução;
• Gerenciamento Ambiental: atividades que envolvem a avaliação
e revisão, com ênfase ambiental,
do empreendimento no aspecto
qualitativo, mirando a atualização da
elaboração dos Programas Ambientais;
apoio e gerenciamento de convênios
celebrados com empresas especializadas ou instituições de pesquisa para
implementação e desenvolvimento de
programas; gerenciamento junto aos
órgãos ambientais e apoio institucional junto a outros atores; elaboração
de um Sistema de Gestão Ambiental;
alimentação de dados no Sistema de
Apoio à Gestão Ambiental Rodoviária
Federal para que todos os programas
sejam desenvolvidos com a qualidade
almejada e observação da legislação;
• Execução de Programas Ambientais: execução e implantação dos
programas ambientais descritos nas
licenças ambientais e constantes no
PBA ou no Plano de Controle Ambiental, em estrita concordância com
esses estudos.
específicos para a gestão ambiental do empreendimento. Mas há vários outros casos de su-
Investimento anual em serviços ambientais do DNIT
(em R$ milhões)
115,192
105,161
cesso na redução de impacto ambiental de rodovias, como a duplicação da BR-101/NE e da
BR-116/RS e a pavimentação da BR-386/RS e da BR-163/PA. Cada uma dessas gestões resulta
100,351
Ao contar neste livro os pormenores dessa experiência, esperamos que técnicos da adminis-
33,402
tração pública ou privada possam extrair ideias para seus projetos de mitigação de impacto
7,327
2006
a Rodovia do Parque já deixou as suas, especialmente no que diz respeito ao seu Programa de
Reassentamento Populacional.
79,279
25,431
em lições para os novos contratos de Gestão Ambiental. Mesmo com obras em andamento,
nas populações afetadas por empreendimentos, conhecendo de antemão os problemas que
2007
2008
2009
2010
2011
2012
podem advir de qualquer processo de reassentamento e, com isso, evitando-os ou traçando
estratégias prévias para enfrentá-los.
Fonte: CGMAB/DNIT
12 Um novo caminho Uma nova vida
Introdução
13
Foto: Belfoto
O histórico
da BR-448/RS
A vida pregressa
Quando funcionários da prefeitura bateram à sua casa em 2009, coletando dados e fixando um adesivo com o selo 309 atrás da porta, Nadiles da Silva desconfiou da história de que o cadastramento
era o primeiro passo para sua família ser transferida da Vila do Dique, em Canoas, no Rio Grande do
Sul. Quando, dois anos depois, um pessoal vestindo coletes azuis apareceu para atualizar o cadastro,
manteve-se cética. Afinal, não era a primeira nem a segunda vez que chegavam à sua casa com a
promessa de reassentamento em um local com melhores condições.
Mesmo com as obras da BR-448/RS já iniciadas, com a previsão de que a estrada passasse sobre
a vila, poucos dos 2,5 mil moradores do local levavam fé na casa nova. Havia famílias com aproximadamente 40 anos de vida junto aos diques de contenção contra cheias, e isso gerava um sen-
1
timento generalizado de descrença. Para Nadiles, o cadastramento realizado pela prefeitura de
− Ai, mãe, eu estou tão mal - reclamou o garoto.
Canoas em 2009, bem como o seu complemento feito pela equipe social da Gestão Ambiental da
− O que houve, te fizeram mal no colégio?
rodovia, contratada pelo DNIT em 2011, era apenas mais um. Afinal, há quase 20 anos ela mora-
− Não, estou com saudade do pai.
Foto: Eduardo Rocha
va ali, e a região continuava sem serviços básicos como água encanada, esgoto e energia elétrica.
Nadiles chamou o filho para o colo e sentenciou:
Nascida em 1974 em Chapecó, Santa Catarina, Nadiles é a décima segunda de 14 filhos do casal Manuel e Pedrolina da Silva. Naturais de Nonoai, no noroeste gaúcho, os pais trabalhavam na lavoura,
− Meu filho, hoje tu tens de entender que sou teu pai e tua
antes de se mudarem para o estado vizinho e o chefe da família conseguir um emprego na prefeitura
mãe. Ele não volta mais.
local. A filha que foi parar em Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, estudou até a quinta
série do primeiro grau e se casou aos 17 anos com o trabalhador rural Ivaldino Pereira. Moraram um
Os dias que se seguiram à morte do marido foram difí-
tempo no pátio da casa da mãe dela, um tempo no pátio da mãe dele, até se mudarem para Osório,
ceis. Vender o Chevette amarelo dele, ir atrás de pensão,
no litoral gaúcho, onde construíram um barraco no pátio da casa da irmã dele, e, enfim, irem para
reunir documentação. Quem passou madrugadas na fila
Canoas, onde se instalaram no pátio da casa de outra irmã dele. Até que, de pátio em pátio, conse-
do INSS com ela, em busca de benefício, ajudou-a com a
guiram construir uma casa em terreno próprio, embora ocupado irregularmente, em 1995.
papelada, esteve ao seu lado nesse momento, foi Arci, irmão de uma vizinha, e com quem Nadiles se juntaria três
Quando chegaram à Vila do Dique, em 1993, em busca de emprego na Região Metropolitana, o
Nadiles da Silva, moradora da
Vila do Dique desde 1993
meses após o falecimento de Ivaldino.
primeiro filho de Nadiles, Marcos, tinha 15 dias de idade. Com Ivaldino, ela ainda teve outro menino, Renan, nascido em 1998. Depois ainda viriam, com o segundo marido, Arci Durão, Kaynan, de
Com um ou com outro, o que nunca mudou foi a condição precária de moradia no Dique, as
2003, e a menina Samyra, de 2008.
ratazanas que invadiam a casa após cada enchente, o eterno bate-bate de pregação das tábuas
do assoalho, sempre soltas. Tão frágeis que as camas tinham de ser constantemente trocadas de
Se tem um dia que Nadiles não esquece na vida é 19 de maio de 1999. Era uma noite chuvosa na
lugar, para livrar seus pés das madeiras apodrecidas. Tão podres e cheias de cupins que em um
Região Metropolitana. As rádios transmitiam um jogo de futebol do Internacional, quando ela
final de ano, quando Nadiles saía do banho, pisou em uma madeira e feriu a perna, enterrada no
escutou tiros na rua. Primeiramente, achou que era seu marido que havia atirado. Segundo ela,
assoalho. Por mais que ela e o marido estivessem sempre usando parte do dinheiro da pensão dos
embora trabalhador e calmo quando não bebia, Ivaldino se transformava ao beber. E bebia. E
meninos (cerca de um salário mínimo) e alguma renda que o casal tinha com trabalhos normal-
andava armado. Já tinha passado três meses na prisão no ano anterior, por atirar em um homem,
mente sem carteira assinada, a casa estava sempre caindo aos pedaços.
após uma briga de bar (a vítima sobreviveu). Era natural que o marido atirasse. Ou que levasse um
16
tiro. Aos poucos, essa hipótese foi tomando os pensamentos da esposa. Mesmo com chuva, Nadiles
Por isso, quando a equipe de colete azul do DNIT, junto com a equipe da prefeitura de Canoas,
resolveu sair para procurar Ivaldino. Encontrou-o morto, a aproximadamente 50 metros de casa.
começou a atuar diariamente na Vila do Dique, realizando reuniões periódicas com moradores e
Agora, seriam apenas ela e os filhos, como deixou bem nítido no dia em que Marcos chegou triste
aos poucos revertendo a incredulidade da população com o reassentamento, Nadiles encheu-se de
do colégio, um tempo depois da morte do pai.
esperança com a possibilidade – agora real – de morar em uma casa decente.
Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
17
Foto: Andrea Weschenfelder
Os congestionamentos
Com mais de 4,385 mil quilômetros que interceptam dez Estados de norte a sul do Brasil, a
BR-116 é uma rodovia de muitos nomes e muitas faces. Uma das mais complexas está na Região
Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), no Rio Grande do Sul. Para quem precisa cruzar os 43
quilômetros que ligam a capital gaúcha a Novo Hamburgo, o nome BR-116 é sinônimo de dor
de cabeça. Um trajeto que normalmente duraria 35 minutos não leva menos do que uma hora
em alguns momentos do dia. Os engarrafamentos variam de cinco a 15 quilômetros por dia,
registra a Superintendência Regional do DNIT no Estado.
A estrada é passagem virtualmente obrigatória para quem se desloca de Porto Alegre em direção às mais importantes regiões econômicas do norte gaúcho e, principalmente, para aqueles
que diariamente se deslocam para o trabalho ou a universidade entre as cidades da Região MeCongestionamentos na BR-116
perduram praticamente
o dia inteiro
tropolitana. É também rota de passagem para cargas enviadas de alguns dos principais polos
industriais do Estado – como os do Vale do Rio dos Sinos, Vale do Rio Taquari, Serra Gaúcha
ou Polo Petroquímico de Triunfo – para a capital, sul do Estado e Porto de Rio Grande. Estudos
indicam que o horário de pico do trecho (quando o tráfego supera 4 mil veículos por hora),
A conclusão de quem estuda engenharia de tráfego veio ao encontro do sentimento de quem con-
que ia das 17h às 19h em 1997, passou a ser das 7h às 12h e das 13h às 20h dez anos depois.
vive com a realidade da BR-116 nesse trecho: se a infraestrutura de trânsito não fosse reforçada, a
mobilidade na região entraria em colapso.
No trecho mais movimentado, entre Canoas e Porto Alegre, o volume diário de veículos chegava a
120 mil na época, aponta levantamento do Laboratório de Sistemas de Transportes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Hoje, a estimativa é de um volume ainda maior, visto que a
frota brasileira de veículos circulantes cresceu 34,7% entre 2007 e 2011, passando de 25,864 milhões
Porto Alegre
População
PIB (R$ bilhões)
1.409.351
37,788
para 34,857 milhões. O que também contribuiu para o esgotamento da BR-116 entre Porto Alegre
Canoas
323.827
16,444
e Novo Hamburgo, trecho no qual a rodovia é duplicada, além de ter pistas auxiliares em ambos os
Esteio
80.755
2,227
lados, integradas ao sistema viário dos municípios atravessados (Porto Alegre, Canoas, Esteio, Sapu-
Sapucaia do Sul
130.957
1,767
caia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo), foi o inchaço da região, cuja população mais do que
São Leopoldo
214.087
3,302
dobrou desde o início da década de 1970. Essa pequena parte da Região Metropolitana soma apro-
Novo Hamburgo
238.940
4,499
ximadamente 4 milhões de habitantes, respondendo por 37% da população do Estado, e gerou um
RS
10.693.929
215,864
Produto Interno Bruto (PIB), em 2009, de R$ 95,593 bilhões, representando 44,28% do PIB gaúcho.
18
Município
Um novo caminho Uma nova vida
Fonte: População: IBGE/2010; PIB: FEE/2009
O histórico da BR-448/RS
19
As alternativas
As discussões sobre alternativas à sobrecarregada rodovia, implantada em 1939 e pavimentada
em 1948, começaram na década de 1970. Há estudos da época, feitos pelo extinto Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), sobre a construção de um trecho que cruzaria diagonalmente a BR-116 na RMPA, constituindo-se em alternativa à estrada. De lá para cá,
algumas obras que auxiliam no deslocamento regional foram implementadas. No entanto, foi
na década de 1990 que uma alternativa definitiva à BR-116 no trecho virou assunto público no
Rio Grande do Sul, sendo alvo não apenas de estudos, mas de mobilização das comunidades
locais. À época, o governo estadual planejou o chamado Polo Rodoviário Metropolitano, que
previa a construção de duas rodovias paralelas à BR-116. Uma seria a RS-010, a leste da BR116, ligando a BR-290, em Porto Alegre, à RS-239, em Sapucaia do Sul. A outra, a RS-080, ou
Rodovia do Parque, cujo nome estava ligado ao fato de passar por área contígua ao Parque de
Exposições Assis Brasil, em Esteio. Tratava-se de uma estrada que corria paralelamente à BR116, a oeste.
As rodovias estaduais não foram construídas, apesar dos acalorados debates que suscitaram. A
solução só chegou em 2005. Foi quando o governo federal anunciou a intenção de solucionar
o problema, encampando a ideia da rodovia a oeste da BR-116. A nova estrada seria a BR-448/
RS e teria traçado semelhante ao da anteriormente planejada Rodovia do Parque. Além de
passar atrás do Parque Assis Brasil, ela estaria muito próxima aos limites do Parque Estadual
do Delta do Jacuí e passaria por uma pequena fatia da Área de Preservação Ambiental (APA)
do Delta do Jacuí. Por isso mesmo, o apelido, já consagrado entre os gaúchos, foi mantido na
proposta de comunicação da gestão ambiental da estrada. Embora a nova alternativa não vá
solucionar 100% dos problemas de tráfego na RMPA, é sem dúvida a principal esperança para
desafogar a BR cujos engarrafamentos causam mal-estar diário para seus usuários. A estimativa
é de que ela absorva 40% dos veículos que hoje utilizam a BR-116 em seu trecho mais crítico,
entre Porto Alegre e Sapucaia do Sul.
Mapa ilustrativo
da rodovia
20 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
21
Uma das fases mais importantes foi a definição do traçado. Algumas alternativas foram consideradas antes da decisão de uma estrada federal a oeste da BR-116, paralela ao Rio dos Sinos,
sem excluir a opção a leste, que deve ser viabilizada com o projeto da rodovia estadual ERS010, ligando a BR-290 em Porto Alegre à RS-239 em Sapiranga do Sul.
Uma opção tradicional para desafogar trechos sobrecarregados é a construção de uma rodovia
de contorno, sem necessariamente passar próximo à via principal, para desviar o tráfego de
passagem, ou seja, aqueles veículos que não circulam somente no trecho problemático, mas
estão em viagem mais longa. No entanto, como 90% do tráfego da BR-116 na Região Metropolitana é local, isso se tornou inviável. A alternativa de alargamento da própria capacidade da
BR-116 também foi descartada por diferentes motivos. Um deles foi a própria dificuldade de se
desenvolver obras em uma rodovia que convive com engarrafamentos diários e se constitui em
alternativa insubstituível para deslocamentos na região. O período de construções agravaria os
congestionamentos e possivelmente geraria protestos da comunidade devido ao aumento de
poluição sonora e visual, por exemplo. Além disso, as desapropriações de propriedades contíguas à via elevariam demais os custos dessa opção.
O custo de desapropriações também seria um dos entraves para uma rodovia a oeste da BR-116,
porém, que cruzasse a área urbanizada dos municípios. Ainda mais importante do que o valor do
investimento foi a oposição das prefeituras e comunidades dos municípios atingidos, manifestada
BR-116: capacidade de tráfego
da principal via de entrada e
saída de Porto Alegre está esgotada desde os anos 90
Foto: Trensurb
durante o EIA/RIMA, a qualquer escolha que envolvesse cruzar áreas urbanizadas. Especialmente
em Canoas, mas também em Esteio e Sapucaia do Sul, o fato de a BR-116, assim como o Trensurb
Traçado
− o trem metropolitano −, cindir as cidades representa grandes transtornos à população. Por isso,
os municípios solicitaram uma mudança no traçado original previsto: que deixasse de coincidir
com o da antiga linha férrea para passar mais próximo ao Rio dos Sinos.
O caminho para a construção efetiva da Rodovia do Parque começou a ser construído pela
Medida Provisória nº 274/2005, posteriormente transformada na lei federal nº 11.297/2006.
Após os estudos, o traçado final para a BR-448/RS foi definido: inicia-se no entroncamento da
A legislação inclui esse trecho da BR-448/RS no Sistema Rodoviário Federal. Com isso, ficou
BR-116 com a RS-118, em Sapucaia do Sul, e termina na BR-290, em Porto Alegre, junto ao Bair-
definido que esse projeto de rodovia alternativa à BR-116 na RMPA ficaria a cargo do governo
ro Humaitá, em frente à Arena do Grêmio (novo estádio do time de futebol porto-alegrense). A
federal, e a nova estrada poderia enfim ser incluída nos seus planos de investimento.
maior parte da rodovia está nos domínios dos municípios de Esteio e Canoas, onde se localiza
22 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
23
a única comunidade diretamente afetada pela rodovia: a da Vila do Dique, que abrigava moradores em área de risco e com saneamento ambiental precário. A obra da estrada promoveria
uma oportunidade para melhorar as condições de moradia daquela comunidade. Além disso,
o traçado selecionado seria uma maneira de preservar a APA do Delta do Jacuí, constituindo-se
a Rodovia do Parque em uma barreira física entre a cidade e a área preservada.
Características
da BR-448/RS
O ambiente
A BR-448/RS localiza-se em uma área de várzea do Rio dos Sinos e do Delta do Rio Jacuí. A faixa
• Extensão: 22,34 km
de domínio da rodovia ficou definida entre 40 metros e 200 metros a partir do leito, dependendo
• Municípios cruzados: quatro
das características de cada trecho. Quem cruzasse seu traçado antes das obras encontraria em
- Km 0 ao Km 1,9 - Sapucaia do Sul
- Km 1,9 ao Km 7,590 - Esteio
volta muitas plantações de arroz irrigado pelas águas dos rios, arroios e córregos que abundam
- Km 7,590 ao Km 21,880 - Canoas
nessa parte do sul do país. Nos períodos pós-colheita, as terras costumam receber gado, de
- Km 21,880 ao Km 22,860 - maneira que, às barbas da metrópole, não é raro ver a boiada pastando em propriedades rurais.
Porto Alegre
Além da atividade orizícola, que ocupa 103 dos 168 hectares da área de influência direta da obra,
• Extensão com pontes, viadutos
e elevadas na linha geral: 4,45 Km
• Número de pistas: duas
encontram-se pequenas propriedades com produção de hortifrutigranjeiros, várzeas preservadas
e também os trechos de ocupação urbana, com presença de indústrias e residências.
• Número de faixas por pista:
duas (entre BR-116, RS-118 e
BR-386) e três (entre BR-386 e
BR-290)
• Largura da faixa: 3,60m
Flora
Entre os campos bastante modificados pela utilização agrícola ou urbana, encontram-se algumas
áreas pouco exploradas, onde a vegetação se desenvolve com menos interferência. O EIA/RIMA
da obra identificou 204 espécies de plantas na área de influência, com alta presença de exóticas
e invasoras. O domínio é de espécies rasteiras ou de baixo porte, mas há algumas exceções, como
jerivá, araucária e grápia. Elas compõem um grupo de sete espécies ameaçadas da flora do Rio
Grande do Sul que foram localizadas na área afetada pela nova rodovia. Complementam a lista
das protegidas, porém passíveis de transplante, o butiazeiro, a corticeira-do-banhado, a figueira-vermífuga e a figueira-da-folha-miúda.
Foto: Belfoto
24 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
25
Fauna
Flora transplantada
Foto: Andrea Weschenfelder
A análise da fauna local identificou a ocorrência ou provável ocorrência, na região, de 23 espécies de anfíbios e 24 de répteis. Entre as aves, duas campanhas de amostragem mapearam 127
espécies. Ainda foram identificadas 10 espécies de mamíferos. Não foram localizados animais
ameaçados de extinção, embora alguns tenham merecido destaque, seja porque são menos comuns, seja porque surpreenderam a equipe em um ambiente no qual, por ser tão tocado pelo
homem e exposto às mazelas urbanas, eram menos esperados. Estão nesse grupo espécies como
cardeal-do-banhado ou socoí-amarelo. A lontra, também encontrada, está quase ameaçada no
Rio Grande do Sul e é considerada vulnerável no Brasil.
A grande quantidade de rios, arroios, canais e banhados torna a água um elemento muito presente na paisagem próxima da BR-448/RS. Esses cursos e reservatórios de água são bastante utilizados pela população local para fins econômicos e de lazer. A pesca, como atividade profissional
ou de entretenimento, é comum na região. Na área de influência direta do empreendimento, entre animais coletados e presentes em bibliografia, verificou-se a existência de 27 espécies de peixes. Entre os mais valorizados para consumo humano achados na região estão o jundiá e a traíra.
As árvores protegidas localizadas
nas áreas afetadas pela Rodovia do
Parque foram transplantadas para
parques, escolas, para a própria faixa
de domínio e até para a Vila de Passagem que receberia provisoriamente
as famílias reassentadas.
Com a necessidade de intervenção
na flora local, a Gestão Ambiental
da BR-448/RS realizou mais de
400 transplantes de árvores, como
corticeiras-do-banhado, figueiras,
butiás e jerivás. Bromélias e orquídeas
também foram realocadas. O processo
de transplante, comparado ao plantio
de novas árvores, reduz o tempo de
restabelecimento das plantas e, além
de assegurar o salvamento de uma
parcela da biodiversidade local, contribui para o embelezamento paisagís-
tico. Após o transplante, e seguindo o
PBA da rodovia, há o monitoramento
de cada árvore.
Entre as espécies transplantadas, o
percentual de sobrevivência total
foi de aproximadamente 70%. Para
isso, contribuiu o fato de os vegetais
terem sido levados para locais muito
próximos e com características semelhantes aos de origem.
Característica
Área (ha)
Área (%)
Cultivo de arroz
103,51
61,59
Área urbana
38,68
23,02
Várzea
23,34
13,89
Hortifrutigranjeiros
1,88
1,12
Corpos hídricos
0,41
0,24
Vegetação arbórea exótica
0,24
0,14
Total
168,05
100
Fonte: EIA/2008
26 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
27
Parque Estadual do Delta do Jacuí
A área ambientalmente mais sensível da nova rodovia fica entre os quilômetros 15 e 21 da BR448/RS, no município de Canoas, próximo à divisa com Porto Alegre. Nesse trecho, a estrada passa pela Unidade de Conservação - Área de Proteção Ambiental (APA) Estadual do Delta do Jacuí.
A APA, criada em 2005 pela lei estadual nº 12.371, protege um pedaço dos biomas Pampa e
Mata Atlântica. Tem 22,826 mil hectares – entre os municípios de Porto Alegre, Canoas, Nova
Santa Rita, Triunfo e Eldorado do Sul –, dos quais 14,242 mil hectares pertencem ao Parque
Estadual do Delta do Jacuí, uma unidade de proteção integral. A APA engloba 25 ilhas, formadas por um emaranhado de cursos d’água, na verdade braços principais e secundários dos rios
Jacuí, Caí, Gravataí e dos Sinos. Os quatro deságuam no lago Guaíba, popularmente conhecido
como Rio Guaíba, situado ao norte da Lagoa dos Patos e ligado a esta por hidrovia.
O parque estadual foi criado em 1976 para preservar um ecossistema único, rico em espécies associadas a ambientes aquáticos, e um gigantesco manancial hídrico. Desde sua fundação, está
prevista a retirada, por parte do Estado, das famílias que nele habitam, normalmente em zonas
de ocupação irregular, em áreas de risco. No entanto, até outubro de 2012, esse projeto não havia
sido executado.
O mapeamento com geolocalização das residências instaladas na área do parque, primeiro passo para a retirada, foi realizado pelo governo do Estado. Já no cinturão de mais de 8
mil hectares ao redor do parque, pertencente à APA, é permitida a ocupação legal, desde
que seguindo princípios de sustentabilidade. A realocação dos moradores da Vila do Dique,
capitaneada pelo DNIT, veio ao encontro das condicionantes da lei que criou a área de preservação, uma vez que a presença de uma comunidade carente de saneamento e muitos
recicladores de lixo não contribui com a preservação ambiental.
Embora com águas poluídas devido à ocupação intensiva das margens de cursos d’água que
Preservação das espécies e redução dos atropelamentos
A diversidade de espécies animais
estabelecidas na área de influência
da Rodovia do Parque pode ser
comprovada no dia a dia da construção da estrada. Avistamentos
e encontros com a fauna local
fizeram parte da rotina de operários
e da equipe da Gestão Ambiental,
que acompanha os casos.
As ações para proteger a fauna
incluíram desde o monitoramento
das espécies encontradas no período de obras até a construção de
cinco passagens de animais sob a
rodovia, para evitar atropelamentos
durante sua operação. Dessas, duas
são pontes a transpor o Arroio
Sapucaia e a Vala Mathias, e as
demais são galerias, situadas em
cotas superiores ao terreno natural,
e com dimensões que permitam
a entrada de luz natural a fim de
garantir iluminação interna durante
o dia. Esses passa-faunas têm
especial relevância na BR-448/RS,
uma vez que a rodovia cruza área
alagadiça e, quando há inundação,
os animais tendem a buscar refúgio
na área seca, localizada do lado
leste da estrada.
Os operários responsáveis pela
construção dos túneis e galerias
receberam informações da Gestão
Ambiental sobre a importância do
projeto que estão implantando. Isso
contribuiu para que os trabalhadores dos consórcios construtores
mantivessem a equipe da Gestão
Ambiental informada da presença
de animais, permitindo que muitos
deles fossem resgatados e retira-
dos da área de obras. Entre os répteis e mamíferos mais presentes,
estão o furão, o ratão-do-banhado,
o tigre-d’água, o cágado-de-barbela, a cobra-d’água, a jararaca
e alguns lagartos-do-papo-amarelo.
Foto: Andrea Weschenfelder
ali desembocam, a APA do Delta do Jacuí permite a preservação da fauna e da flora nativas.
28 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
29
Proteção ao Delta do Jacuí
A Área de Proteção Ambiental (APA)
Delta do Jacuí, constituída por terras
públicas e privadas, tem por finalidade
a proteção dos recursos hídricos ali
existentes, em especial as áreas de
influência fluvial, os ecossistemas de
banhado, restingas e floresta estacional decidual, com o objetivo básico de
disciplinar o processo de ocupação e
assegurar a sustentabilidade do uso
dos recursos naturais, de forma a
conservar a diversidade de ambientes,
de espécies e de processos naturais
pela adequação das atividades humanas às características ambientais da
área, além de garantir a conservação
do conjunto paisagístico e da cultura
regional.
A APA Delta do Jacuí é constituída
pelo Parque Estadual Delta do Jacuí,
O trauma do episódio foi decisivo para impulsionar a
implantação de um sistema de proteção contra inuncom área total definida pela lei nº
12.371/2005, e tem como objetivos básicos a preservação de ecossistemas
naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a
realização de pesquisas científicas e
o desenvolvimento de atividades de
educação e interpretação ambiental
de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico.
dações na RMPA. O extinto Departamento Nacional
de Obras e Saneamento (DNOS) solicitou a seus engenheiros estudarem soluções para a região já na década
de 1940 e, em 1949, estavam implantados diques para
formação do chamado pôlder do aeroporto, na capital
gaúcha. Embora a enchente em Porto Alegre tenha ficado mais famosa devido ao maior impacto econômico
e pessoas atingidas, vários outros municípios também
guardam em seus arquivos históricos tragédias marcadas pelas águas, em 1941 e outros anos, de forma que
as obras do DNOS se estendem da zona sul porto-ale-
Os diques
grense até São Leopoldo.
Em Canoas, por exemplo, as cheias cobriam bairros como Mathias Velho e Rio Branco, aproxi-
Desde sua povoação por colonos açorianos, em 1752, a população de Porto Alegre acostumou-
mando-se do centro da cidade. A solução para o trecho canoense foi a construção de diques
-se com períodos de cheias. O mesmo se pode dizer das comunidades instaladas na RMPA e
de contenção, formando quatro pôlderes – denominados Rio Branco, Araçá, Niterói e Mathias
banhadas pelo lago Guaíba e pelos rios que nele desembocam. Afinal, inundações são parte
Velho –, em um sistema que ainda conta com casas de bombas, canais de macrodrenagem e
da vida de aglomerados urbanos formados às margens de reservatórios e cursos d’água. No
galerias de comportas. A construção das barreiras físicas foi executada pelo DNOS no início da
século XX, houve dezenas de episódios em que as facilidades de uma cidade portuária trans-
década de 1970.
Enchentes, como esta no bairro
Rio Branco, eram comuns antes
da construção dos diques em
Canoas
formaram-se em pesadelo para os moradores da capital gaúcha. Cheias relevantes foram registradas periodicamente. Mas nenhuma foi tão marcante quanto a ocorrida em 1941, quando a
Os diques de proteção de Canoas formam uma barreira, impedindo que a água do Rio dos
água encobriu a régua do porto até o nível 4,74 metros, marca histórica lembrada hoje por uma
Sinos inunde a área urbana. Sua parte ocupada irregularmente corresponde a um trecho de
placa no pórtico do Cais Mauá.
cinco quilômetros, ao longo do qual moram de forma irregular quase 600 famílias. A ocupação começou há mais de 30 anos. Uma foto aérea de 1971 demonstra o primeiro trecho
Cerca de 70 mil pessoas, aproximadamente um quarto da população, ficaram desabrigadas,
dos diques já construído e sem nenhuma moradia à sua margem. Imagens de 1978, no en-
além de conviver com falta de água e luz e paralisação de serviços essenciais como bondes e
tanto, já apresentam as primeiras ocupações. De lá até a chegada das obras da Rodovia do
correio. Por isso, na história da cidade houve enchentes e a Grande Enchente de 1941, quando,
Parque, a população ali concentrada seguia, em sua maior parte, privada de infraestrutura
entre 10 de abril e 12 de maio, choveu 619 milímetros.
e condições básicas de moradia.
30 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
31
A Vila do Dique
nico dos canos que ali desembocam, oriundos diretamente dos vasos sanitários, esse valo circunda o dique.
Deixando Porto Alegre pela BR-116, é possível acessar a Vila do Dique sem passar pelo centro de
Os pontilhões que o atravessam separam a população
Canoas. Para isso, basta pegar o acesso ao bairro Rio Branco. O visitante então se depara com uma
atendida pela infraestrutura urbana básica daquela ex-
típica comunidade de classe média de periferia, em uma zona relativamente tranquila, onde a igreja
cluída de grande parte dos serviços públicos.
e o comércio local ao redor da praça central dão um ar interiorano. Nos finais de tarde, é comum ver
as crianças indo a pé, de uniforme, da escola para casa, enquanto trabalhadores chegam da labuta
Na região do bairro Rio Branco, o dique tem cota de co-
de ônibus ou bicicleta. Nessa comunidade, o supermercado não ostenta bandeira de multinacional
roamento de 6,5 metros. Em seu cume, ou, como dizem
e é comum os vizinhos reunirem-se na calçada para tomar chimarrão aos finais de semana.
os moradores, “lá em cima”, fica uma rua de chão batido, na qual o veículo mais esperado é o caminhão-pipa
No entanto, quem cruzar o bairro Rio Branco seguindo na direção oeste, onde fica o Delta do
da prefeitura, que abastece as casas com água três vezes
Rio Jacuí, encontrará um valo. Tomado por plantas aquáticas, alimentadas pelo material orgâ-
por semana. As moradias ficam “lá embaixo”, entre a
A vila, entre o arroio e o dique
construído para conter as águas
elevação e o valo, no lado leste, ou o arroio, no lado
oeste. Em alguns trechos, não se consegue sequer enxergar o telhado das casas, quase todas feitas de tábuas,
de chapas de compensado, de lona ou do que houver
para tapar os buracos.
Economia da periferia: a Vila do
Dique mantinha um comércio
com cara de interior
Apesar das condições precárias da maioria das habitações, esse trecho tantas vezes esquecido
da cidade pode parecer a quem ali vive um agradável lugar para se habitar e criar a família. Estar afastado do asfalto tem lá suas vantagens. À margem da urbanização, a vida ganha ares rurais. Em uma manhã de sol do inverno gaúcho, um vendedor percorre a rua sobre o dique com
sua bicicleta carregada de mercadorias, anunciando “pão sovado” e “cuca recheada” – espécie
de bolo alemão coberto por farofa doce. Cada um se vira como pode. Uma placa anuncia
“sacolé”, outra “trufas”, outra “tatuagens”. A economia da periferia tem suas peculiaridades.
A rua elevada pelo dique é local de passagem, de trabalho, de diversão. É onde os vizinhos sentam para jogar conversa fora e tomar um mate, enquanto famílias passam os dias a separar o
lixo reciclável coletado por carroceiros e carrinheiros que percorrem a RMPA. Em determinado
ponto, as casas e os depósitos informais de lixo dão lugar a um descampado que virou canFoto: Belfoto
32 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
33
Foto: Eduardo Rocha
cha de futebol. Logo ao lado, a menos de 100 metros do dique,
uma árvore, distante cerca de 200 metros, e diz: “Ali embaixo se matava, roubava, estuprava”.
passa o Arroio das Garças, aparentemente limpo, serpenteando
Mesmo com tantos relatos atuais de jovens mortos em decorrência da violência, não são pou-
entre arbustos e capinzais. No fim de tarde, o sol se põe sobre a
cos os habitantes que consideram a Vila do Dique um local “tranquilo” para se viver.
água, formando uma paisagem de tirar o fôlego. A poucos metros
dali, no entanto, um cavalo alimenta-se com pimentões que já
A sensação de tranquilidade pode estar associada aos ares rurais que, em pleno século XXI,
estiveram à venda em um mercado da cidade. O lugar é tomado
alguns trechos dos diques mantêm. Não como antigamente, antes das moradias irregulares,
por um cheiro fétido, quase insuportável ao nariz dos desacostu-
quando aquele pedaço de terra era ocupado por chácaras. Nem como no tempo dos porcos,
mados. Crianças brincam junto aos montes de lixo acumulados
engordados às centenas com o lixo recolhido por catadores na cidade. Mas a proximidade com
pelos recicladores, no meio dos quais ratos, gatos, cães e galinhas
o Delta do Jacuí e a circulação ínfima de automóveis contribuem para o ambiente bucólico.
disputam os restos de comida.
Nos primórdios da ocupação, os moradores locais eram principalmente prestadores de servi-
Como era
ços domésticos, pescadores, além dos criadores de animais de pequeno porte para revenda
e consumo. Hoje, alguns ainda mantêm tais atividades ou são aposentados, mas muitos começaram a trabalhar com a triagem do resíduo sólido urbano, ou seja, com o lixo gerado pela
Olhando-se para a margem oposta do Arroio, que passa ao lado
cidade, que, durante essas décadas, além de aumentar, foi tornando-se uma matéria valiosa, a
das palafitas da casa de Beto Barbudo, é possível ter uma ideia de
partir do desenvolvimento de tecnologias para reaproveitamento e reciclagem.
como era a região dos diques antes da ocupação. Só “guanxuma e
Arroio das Garças passa ao
lado das palafitas de algumas
casas da Vila do Dique
maricá”, como descreve o morador, referindo-se à vegetação rasteira e à árvore espinhenta que dividem espaço na paisagem.
Quando ele chegou, no início da década de 1980, já havia ocupações irregulares. Nem todas resistiram, muitos barracos caíram,
outros tantos foram erguidos. Nos primórdios da Vila do Dique,
o lugarejo ficava ainda mais afastado da cidade. Era o esconderijo
perfeito para bandidos. Se a violência nos dias atuais também faz
parte da realidade da vila, os mais antigos são unânimes: já foi
muito pior. Os contadores de histórias desfiam nomes de célebres
fora da lei. Uma senhora diz se arrepiar só de ouvir falar de um
Muitos moradores não temiam violência e consideravam o
Dique um lugar tranquilo para viver
tal Sérgio Balaca. Assassinado depois de praticar toda sorte de
estripulias, é quase lenda na região. A mesma moradora olha para
Foto: Eduardo Rocha
34 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
35
Beto Barbudo
Norberto Bião, ou Beto Barbudo, como é conhecido, já criou porcos. Mais de 100, até a proibição da criação devido a questões sanitárias. Em meados de 2012, tinha dois cavalos e cerca
de 60 galos e galinhas. Chumbinho e Grandão, os dois equinos, cumprem jornada diária
puxando as carroças usadas pela esposa e pelas duas filhas do pescador na coleta de lixo em
mercados da região. As aves, Bião vende a R$ 15 a unidade. Somando o dinheiro que a família
ganha com a catação de lixo, a venda de animais, a mensalidade por cuidar de mais de 15
“A violência era muito
braba antes. De deitar
no chão pra não
pegar bala. Sempre
de noite. Hoje não
tem mais disso. Uns
morreram, uns foram
embora.”
barcos de terceiros e uma aposentadoria, Beto Barbudo acumula uma renda mensal familiar
de pelo menos R$ 1,3 mil. Já o dinheiro da pesca fica todo com um dos filhos – que anuncia
o quilo do peixe congelado por R$ 5.
Dos seis filhos que Beto Barbudo e a esposa Teresinha tiveram, quatro vivem no mesmo terreno, com suas famílias, um em cada casa. A área é uma espécie de santuário familiar, coberta
com um bosque de árvores plantado pelo patriarca. É difícil não prestar atenção quando as
palavras saem, rápida e atabalhoadamente, por entre a barba espessa do velho morador. Ele
é o típico habitante das ilhas do Delta do Jacuí. Filho de pescador, nasceu na Ilha do Pavão,
viveu isolado com a mulher na Ilha do Humaitá, até se estabelecer há cerca de 30 anos no
Dique. Com 60 anos, tem calafrios só de pensar em ir à cidade pagar uma conta. É um homem do rio e dali não sai “por nada neste mundo”, costuma dizer. Gosta mesmo é de ficar de
Dona Vita,
ex-moradora da Vila do Dique
bermuda e chinelo de dedo, pescando, cuidando dos barcos ou alimentando suas galinhas
e cavalos com os restos de comida coletados por Teresinha. Sua casa é repleta de bibelôs,
fotos, quadros, brinquedos, santos, objetos, coisas mil − compradas, presenteadas, achadas
no lixo − que preenchem cada centímetro das paredes e das prateleiras. Beto Barbudo construiu à margem do dique um estilo de vida tão próprio que torna o seu caso um dos mais
complexos do Programa de Reassentamento. Como todos, ele terá de sair da área pública do
Parque Estadual do Delta do Jacuí. A prefeitura municipal estuda a criação de uma marina em
um local próximo chamado Prainha do Paquetá. Beto Barbudo poderá optar por casa nova ou
indenização das benfeitorias.
Foto: Solano Ferreira
36 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
37
Diagnóstico por amostragem
O perfil da população que habita a área dos diques foi detalhado no EIA/RIMA durante a caracterização do meio antrópico. O número total de moradias foi calculado em 599. Para os
Tempo de moradia
do chefe de família
na Vila do Dique
estudos, estabeleceu-se uma amostragem de 171 famílias, que mostrou-se satisfatória para
Até 1 ano
20,71%
te da totalidade é suficiente nessa fase inicial de análise ambiental. Essa prática pode estar
De 1 a 5 anos
44,97%
em desacordo com alguns representantes de órgãos ambientais que defendem o contato de
De 6 a 10 anos
18,34%
todas as famílias para a elaboração do EIA/RIMA. Mas a análise escolhida otimiza os recursos
De 11 a 15 anos
5,33%
públicos, visto que, quando da realocação efetiva das famílias, será necessário cadastrar toda
De 16 a 20 anos
4,73%
De 21 a 25 anos
a população, realizando assim o congelamento da área. Convém lembrar que há um intervalo
2,96%
De 26 a 30 anos
2,96%
Fonte: EIA/2008
traçar um panorama apurado da situação dos moradores. Essa metodologia demonstra, de
forma confiável, o “retrato” da comunidade, pois representa 30% da população total. A caracterização dos habitantes da área de influência do empreendimento por meio de um recor-
de tempo entre elaborar os estudos e implantar os empreendimentos e que os possíveis impactos ambientais já são vislumbrados nessa porcentagem envolvida da comunidade, pois as
mais variadas ações socioambientais são verificadas.
Embora a ocupação da Vila do Dique tenha se iniciado na década de 1970, o EIA/RIMA revelou uma população que se expandiu rapidamente nos anos 2000. Aproximadamente dois
Última procedência
do chefe de família
terços de todos os chefes de família entrevistados moravam há menos de cinco anos no local.
A maioria (73%) tinha como procedência anterior a própria cidade de Canoas. O principal
motivo alegado pelas famílias para se transferir à Vila do Dique foi a busca pela casa própria.
Motivos da mudança
Obtenção da casa própria
45%
Motivos relacionados à melhoria da condição de moradia
22%
Obtenção ou melhoria das condições de trabalho
14,7%
Motivos relacionados à família
13,6%
Outros
4,7%
Fonte: EIA/2008
Atividades realizadas pelos moradores da Vila do Dique
Coletor de material para reciclagem
27,57%
Dona de casa
21,89%
Autônomo
20,81%
Empregado do comércio ou serviços
12,18%
Aposentado e pensionista
6,22%
Dono de comércio ou serviço
2,97%
Trabalhador rural
2,43%
Diarista
2,16%
Desempregado
1,62%
Empregado na indústria
1,62%
Funcionário público
0,54%
Canoas
73%
Melhoria das condições de moradia e de trabalho e motivos relacionados à família também
RMPA
14%
foram citados. É comum observar a presença de grandes grupamentos familiares na área. Mui-
Outros municípios do RS
12%
tas vezes, os novos moradores são irmãos ou têm outras relações de parentesco ou amizade
1%
com habitantes que chegaram anteriormente. Vieram, portanto, já estimulados pela presença
Ocupações informais estão entre as principais atividades dos habitantes locais. A coleta de
do antecessor com o qual mantêm laços.
material para reciclagem é uma delas. Na época do levantamento, mais de um quarto dos
Outros estados
Fonte: EIA/2008
Fonte: EIA/2008
entrevistados trabalhava com lixo. A separação do material reciclável se dá às margens da
Na fase de elaboração do EIA/RIMA, também foi traçado um panorama da situação econômica
rua, em galpões e, principalmente, no pátio de casa, de forma que o local de moradia e o de
das famílias. Verificou-se a precariedade da condição laboral dos moradores da Vila do Dique.
trabalho se confundem, com prejuízos à sanidade das famílias.
38 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
39
É debaixo de um telhado de zinco colado na casa de madeira que Irene Gonçalves Martins
gravidade, dentro de canalizações improvisadas, até as casas, localizadas na parte baixa. Nos
passa a maior parte dos seus dias. Maquinalmente, desfia fardos de tiras plásticas coloridas
locais onde não havia essa diferença de nível, como no Beco do Boscheti, a água tinha de ser
enviadas por uma indústria de reciclagem da região. Quem recebe o material e repassa para
levada para dentro de casa em baldes e vasilhames. Não era assim no banheiro que servia à
Irene é o próprio filho, dono do único galpão de separação de lixo da Vila do Dique. A tarefa
família de Irene, onde um elevador de cargas improvisado elevava a caixa d’água. Mas o era nas
dela é separar as tiras por cor. O material segregado é reenviado à recicladora que o mandou
demais residências da rua.
para separação na vila.
Saneamento ambiental
“Vocês não têm
Irene morava no Beco do Boscheti, via sem saída de 120 metros que começa no dique e termina
ideia do que é dividir
em um canal ligado ao Arroio das Garças. Sua casa ficava às margens do curso d’água, onde,
com mais 17 pessoas
em outros tempos, antes dos carros-pipa abastecerem a região, ela lavava roupas e se banhava.
Qualquer ação de realocação de uma comunidade gera impacto
O córrego tomado por verde na outra margem forma uma bela paisagem, contrastando com a
social, principalmente se os moradores são afastados do seu recur-
poluição visual da vila, o cheiro de lixo orgânico em decomposição e o incômodo dos insetos
so de subsistência ou as relações de parentesco e compadrio não
que temos. Ainda
que nesse ambiente proliferam. Em 2012, aos 55 anos, mãe de cinco filhos, Irene lidava com o
são mantidas pela desagregação. Mesmo nos casos em que a situa-
bem que estamos
lixo o dia todo porque era o que lhe restava. Sem aposentadoria, recebia, em meados daquele
ção de moradia das famílias é precária, existem ônus sociais para as
ano, por volta de R$ 200 mensais, pagos pelo filho, pelo trabalho. Além dela, aproximadamen-
famílias reassentadas que vão além dos custos financeiros, como
te dez pessoas ajudavam na separação de resíduos sólidos no galpão, sem rendimento fixo.
o pagamento de transporte, impostos e prestações que antes não
histórias para contar
Quando foi feito o EIA/RIMA, mais de 70% dos trabalhadores da Vila do Dique recebiam menos
faziam parte de suas despesas. São os custos de desfazer laços de
são muitas, mas não
do que um salário mínimo e 36% dos moradores tinham algum tipo de benefício governamen-
vizinhança e de parentesco, de mudar as relações de trabalho e
tenho mais saúde
tal, principalmente Bolsa Família. Abastecimento regular de energia elétrica inexistia – as casas
renda. Com os reassentamentos, há riscos de desagregação dos sis-
só tinham luz graças às ligações clandestinas com a rede pública. Mas talvez nada seja mais
temas de produção, de empobrecimento pela eventual perda de
para viver aqui.”
indicativo das condições de precariedade da infraestrutura do que o fato de que quase um
fontes de renda, de enfraquecimento de redes sociais e instituições
quarto das moradias não dispunha de instalações sanitárias. Em outras palavras: abrigavam
comunitárias, de perda de identidade cultural.
o único banheiro
saindo daqui. As
Sônia Moraes,
ex-moradora da Vila do Dique
Foto: Andrea Weschenfelder
famílias que utilizavam o mato ou o banheiro de vizinhos para fazer as necessidades.
Estudar a forma como a população afetada por uma obra vive,
A casa de Irene, por exemplo, não tinha banheiro. Ela dividia com outras 15 pessoas, de três
para poder avaliar suas condições, inclui não somente a apuração
casas da família, um sanitário na casa do filho. Por volta das 18h, havia fila para o banho.
de dados básicos – quantas casas possuem banheiro, esgoto, água
Como na maioria das residências do bairro, o abastecimento de água era feito por carros-pipa
encanada, luz elétrica; se as residências são de alvenaria ou de ma-
da prefeitura de Canoas. Em frente a cada moradia, ao nível do chão ou muito próximo dele,
deira; se têm uma relação adequada entre cômodos e número de
ficavam caixas d’água, bombonas e outros recipientes abastecidos pela mangueira acoplada
habitantes. Dados como esses são coletados no EIA/RIMA, e no
ao veículo. Como os reservatórios ficavam, em sua maioria, sobre o dique, a água escorria por
caso da Vila do Dique ficou nítida a possibilidade de se proporcionar
40 Um novo caminho Uma nova vida
Água encanada não existia no
Dique, e banheiro era um luxo
de poucas famílias
O histórico da BR-448/RS
41
a melhora desses indicadores mediante um Programa de Reassentamento. No estudo, o programa
A banheira de Maria Carmem
Foto: Andrea Weschenfelder
é considerado uma compensação à comunidade local, e não um impacto, visto que muitas casas
que entraram não estão na faixa de domínio da obra. Embora todo processo de realocação seja
controverso, neste caso ele foi considerado, em estudo prévio, como uma possibilidade de me-
“Aqui chove muito,
lhoria de vida para famílias que há muito viviam com expectativa ou ameaça de despejo do local.
o valo enche e
Há que se considerar, entretanto, que o reassentamento representa certo desconforto para as
a água alaga a
famílias, pela alteração do cotidiano e por deixarem o lugar onde viveram por tantos anos. Avaliar
minha cozinha. Não
o impacto social da remoção das famílias, bem como mitigar os efeitos negativos desse processo,
depende de uma análise mais ampla. As ciências sociais possuem ferramentas para que sejam
quero nenhuma
observados e analisados fatores mais ocultos da organização de uma população. Para isso, deve-
lembrança dessa
-se trabalhar com uma ideia desenvolvida a partir da década de 1970, a da integralidade do ser
casa. O futuro é de
humano – que implica avaliar o bem-estar, pensado não somente por saúde física, mas também
mental e social. Nesse sentido, o saneamento ambiental pretende abarcar não apenas o acesso
boas perspectivas.
básico da população a água potável, tratamento adequado de esgoto e destinação de resíduos
Espero que seja bem
sólidos, mas também uma relação integral com o meio ambiente e sua capacidade de desenvol-
melhor que agora.
vimento de laços sociais, parentais, de compadrio e afetivos.
Pretendo arrumar
Ao seguir essa linha, o trabalho realizado no EIA/RIMA da Rodovia do Parque mapeou as relações
um serviço melhor e
de vizinhança na Vila do Dique. Verificaram-se laços muito fortes entre as famílias habitantes. Por
ajudar meu marido
nas despesas.”
Sheila Silveira da Rosa,
ex-moradora da Vila do Dique
viverem em um local estigmatizado, não só pela falta de infraestrutura básica, mas pelo uso do lixo
como meio de sustento para boa parte dos moradores, as famílias locais mantinham laços estreitos
entre si. Com a inclusão social prejudicada por esse estigma, a estrutura de trabalho dependente
da mão de obra familiar, como no caso dos recicladores, as relações endogâmicas e de compadrio
são estimuladas. Reconhecer essa realidade, bem como as formas de trabalho na Vila do Dique, foi
essencial para adotar mecanismos que respeitassem as relações e a forma de vida locais no PBA.
42 Um novo caminho Uma nova vida
A caixa de plástico, ela achou abandonada em um valão. Tinha menos
de um metro de comprimento e
volume de menos de 20 litros. O
que antes servia para transportar
perecíveis aos mercados era em
2012 a banheira de Maria Carmem
Cunha, então com 53 anos. Com as
pernas dobradas, ela conseguia sentar na caixa. Sem chuveiro em casa,
quando não tomava banho na casa
de uma amiga, era ali que se lavava.
Primeiro, aquecia a água no fogão.
Se faltava dinheiro para o gás, esquentava a panela em um fogareiro
improvisado na rua, alimentado por
pedaços de madeira. Depois, enchia
a caixa de água morna e mergulhava os cabelos na “banheira”,
acomodando-se a seguir.
Quem visse Maria Carmem não
imaginava. No dia da entrevista,
estava maquiada no capricho, a
sombra prateada fazendo brilhar os
olhos. Vestia uma bata azul com fios
dourados e um short que deixava à
mostra as pernas compridas. O corpo não condizia com o rosto cheio
de vincos — herança de uma vida
ao sol.
Desempregada, Maria Carmem
sobrevivia com R$ 32 que recebia
de Bolsa Família, mais doações
esporádicas de filhos, amigos, um
grupo da igreja. Morrer de fome não
iria, que a solidariedade era uma das
virtudes da qual a vizinhança da Vila
do Dique se gabava.
Dias melhores estão eternizados
em fotografias, como uma em que
aparece montada em uma égua,
em dia de descanso. Atrás dela, a
Variant do marido, Nilo, falecido em
2010 após um derrame cerebral.
Ainda convivia com a dor da perda
de um dos cinco filhos, assassinado,
segundo ela, em um assalto, no qual
queriam roubar-lhe o moletom.
No Beco do Boscheti, Maria Carmem
vivia em um barraco de três cômodos com pouco mais de 10 metros
quadrados. Com ela, morava uma
neta de oito anos, deixada pelo pai
assassinado. A casa era organizada,
mas tudo era improvisado. A cama
era um sofá. A pia da cozinha, um
balde com uma torneira plástica
acoplada. O assoalho, repleto de
furos feitos pelas ratazanas que à
noite tomavam conta do barraco.
Poucas pessoas na Vila do Dique
precisavam tanto de uma moradia
como Maria Carmem. Ela sabia disso
e queria a nova casa. Mas dizia ter
“paixão” pelo lugar onde vivia.
O histórico da BR-448/RS
43
Avaliação de Impactos Sociais
A Avaliação dos Impactos Sociais (AIS) de um projeto tende a ser mais complexa do que a dos impactos no meio físico e biótico. Para avaliar, por exemplo, repercussões do projeto na fauna, flora e
solo, os indicadores são mais objetivos. Já a análise social é mais complexa, pois envolve as formas
Idade dos moradores da Vila do Dique, conforme amostra do EIA/RIMA
0 a 10 anos
31,71%
11 a 20 anos
23,17%
21 a 30 anos
16,26%
31 a 40 anos
10,84%
de relacionamento, a cultura, a economia local e os costumes da população afetada, bem como
41 a 50 anos
9,90%
a sua relação com o meio ambiente e com o empreendimento em licenciamento. Além disso,
51 a 60 anos
5,69%
como os impactos em cada um dos meios (físico, biótico e antrópico) estão interligados, qualquer
61 a 70 anos
1,22%
alteração em um implica repercussões no outro, aumentando ainda mais a complexidade dessa
Mais de 71 anos
1,22%
avaliação. Sem contar que a análise de impacto social deve envolver tanto as partes diretamente
Fonte: EIA/RIMA/2008
afetadas por um empreendimento como as interessadas, que com elas se relacionam.
absoluto. Até porque as relações e valores a serem considerados estão em constante mutação.
Essas dificuldades são reconhecidas internacionalmente e dão origem a iniciativas que buscam
Esse processo envolve apontar mudanças projetadas nos seguintes aspectos, ainda segundo os
definir de forma científica o processo de AIS. A International Association for Impact Assessment
Princípios Internacionais de AIS.
(IAIA), após cinco anos de discussões em workshops, reuniões e seminários, publicou em 2003
Avaliação de Impacto
Ambiental
“Estudo realizado para identificar, prever e interpretar, assim
como prevenir, as consequências
ou efeitos ambientais que deter-
os Princípios Internacionais de Avaliação de Impactos Sociais. As ações tomadas na realocação
• Modo de vida das pessoas – como vivem, trabalham, ocupam o tempo de lazer, interagem no dia a dia;
das famílias da BR-448/RS seguem as orientações gerais desse documento, além de estarem
• A sua cultura: crenças, valores, costumes, linguagem;
em consonância com a legislação brasileira e com tratados internacionais dos quais o Brasil é
• A sua comunidade, no que diz respeito a coesão, estabilidade, identidades, acesso a serviços e
signatário. Empoderamento da comunidade local afetada, melhoria da posição social de mu-
facilidades;
lheres, redução das formas de dependência e da pobreza são alguns dos objetivos gerais que
• Seu sistema político: o quanto as pessoas podem participar das decisões que afetam a sua vida,
permearam todo o trabalho desenvolvido junto à população que vem sendo realocada devido
o nível de democratização e os recursos fornecidos para isso;
à construção da Rodovia do Parque e que constam na publicação da IAIA.
• Seu ambiente: a qualidade do ar e da água que as pessoas consomem; a disponibilidade e qua-
minadas ações, planos, programas ou projetos podem causar à
saúde, ao bem-estar humano e
ao entorno.”
Caderno de Licenciamento Ambiental do Ministério do Meio
Ambiente
lidade de comida; o nível de segurança e os riscos; a poeira e os ruídos a que estão expostas; a
Apesar da complexidade da AIS, há dados objetivos que são fundamentais para a avaliação
adequação sanitária, a segurança física, o acesso e o controle sobre os recursos;
do impacto social de uma obra na comunidade, como os dados exibidos em gráficos e tabe-
• Sua saúde e bem-estar: saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiri-
las do EIA/RIMA da Rodovia do Parque, a exemplo do perfil etário da população ou fontes de
tual, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade;
renda. No entanto, eles são uma pequena parte do trabalho, auxiliares na constituição de um
• Seus direitos individuais e de propriedade, especialmente se as pessoas são economicamente afe-
diagnóstico muito mais abrangente e complexo, que deve analisar a situação de momento
tadas ou sofrem danos pessoais que podem envolver a violação de direitos e liberdades;
da população, mas também projetar alterações, a fim de avaliar impactos potenciais. Ainda
• Seus receios e aspirações: sua percepção sobre segurança, o futuro da comunidade e aspirações
assim, é preciso aceitar que o conhecimento sobre os aspectos sociais não será completo ou
em relação ao seu futuro e o de seus filhos.
44 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
45
Como todo o processo de licenciamento ambiental envolve o desenvolvimento sustentável,
isto é, o usufruto dos recursos naturais no presente sem comprometer o seu uso no futuro, a AIS
deve considerar todos os impactos sobre os seres humanos e formas de interação das pessoas
e comunidades com seu meio sociocultural, econômico e biofísico. E deve, acima de tudo, assegurar a maximização dos benefícios de um empreendimento, minimizando assim os custos.
A natureza do impacto, isto é, se ele é direto ou indireto, também deve ser avaliada. Os impactos
diretos são mais fáceis de se identificar e, consequentemente, de se propor medidas mitigadoras.
É isto que se espera em um processo de licenciamento, quando o órgão licenciador determina a
elaboração de um EIA: que se avalie os potenciais impactos ambientais de um empreendimento,
Ambiente mais humano e mais sustentável
“A AIS inclui os processos de análise, monitoramento e gestão das
consequências sociais, pretendidas
ou não, positivas e negativas, de
intervenções planejadas (políticas,
programas, planos, projetos) e inclui
quaisquer processos de mudança
social provocados por essas intervenções. O seu objetivo primordial
é contribuir para a existência de um
ambiente biofísico e humano mais
sustentável.”
Princípios Internacionais de
Avaliação de Impactos Sociais,
documento elaborado por Frank
Vanclay para a IAIA
visando subsidiar a tomada da melhor decisão acerca da concretização ou não do projeto, bem
como, em caso positivo de implementação, a maneira pela qual ele deve ser levado adiante de
forma a mitigar os efeitos negativos e potencializar os efeitos positivos da intervenção planejada.
Impactos positivos à população
Direitos individuais
“Algumas concepções de AIS centram
a avaliação na proteção dos direitos
individuais de propriedade, com exigência clara de declaração de impactos
adversos, de forma a assegurar que
os direitos individuais não são desrespeitados. Quando tais direitos são
postos em causa, a AIS pode contribuir
para os mecanismos de mitigação
e compensação. Nesta perspectiva,
a AIS tende a concentrar-se nos
impactos negativos. Contudo, noutros
contextos, particularmente em países
em desenvolvimento, deverá ser
colocada menor ênfase nos impactos
negativos ocorrentes em pequenos
grupos de indivíduos ou nos direitos
individuais de propriedade. Ao invés,
deverá existir maior preocupação com
a maximização da utilidade social e do
potencial de desenvolvimento, embora
assegurando que tal desenvolvimento
é generalizadamente aceitável para a
comunidade, equitativo e sustentável.
A AIS deve também focalizar-se na reconstrução dos modos de vida. O desenvolvimento do bem-estar social da
comunidade deve ser explicitamente
reconhecido como um objetivo das
intervenções planeadas e, como tal,
deve constituir um indicador a considerar em qualquer forma de avaliação.
Contudo, a questão da distribuição
diferencial dos impactos pelos diferentes grupos sociais e, particularmente,
o impacto suportado pelos grupos sociais mais vulneráveis, deve constituir
sempre uma preocupação central.”
Princípios Internacionais de
Avaliação de Impactos Sociais,
documento elaborado por Frank
Vanclay para a IAIA
No caso específico da BR-448/RS, são evidentes os benefícios da rodovia à economia gaúcha,
à mobilidade na RMPA e ao desenvolvimento do Estado como um todo. Mas, além dessa avaliação focada em um contexto maior, importante para justificar um empreendimento, também
foram analisados os impactos positivos – assim como os negativos – de sua implantação para a
população local.
Entre as consequências positivas da implantação da BR-448/RS para a comunidade local, algumas
são comuns a todos os empreendimentos rodoviários do gênero. São exemplos a geração de
emprego e renda no momento da implantação, com ênfase para contratação de mão de obra
local, garantida por medida mitigadora do afluxo populacional para a região; o fortalecimento
do comércio e dos serviços locais, devido à massa salarial paga aos trabalhadores envolvidos no
projeto; o surgimento de oportunidades de negócio geradas por investimentos na construção
da estrada, como aquisição de áreas para pátios, vias e edificações necessários à implantação e
46 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
47
Classificação do impacto de melhoria da qualidade de vida dos
moradores da Vila do Dique com respectiva justificativa
Parâmetro
Fase
Localização
Natureza
Ocorrência
Classificação
Implantação
ADA
Positiva
Provável
Justificativa
Antes de iniciar as obras, essa população deverá
ser realocada.
operação da rodovia. Entre os impactos negativos, pode-se citar o tráfego de cargas em meio à
área urbana durante a construção e o aumento do nível de ruído.
Com a rodovia em operação, também são esperadas modificações na vida dos habitantes da região.
Se a estrada não fosse construída, a perspectiva seria de crescimento das atividades urbanas na área,
sem, no entanto, o planejamento e a organização necessários para transformar esse movimento em
melhor qualidade de vida na cidade. Além disso, a nova estrada será altamente benéfica para a den-
O impacto está associado somente às áreas de
sa população que vive às margens da BR-116 em Canoas, Esteio e Sapucaia do Sul, que terá redução
ocupação irregular, localizadas ao longo do dique.
de emissões de poluentes e de fluxo de carga perigosa junto a suas moradias, por exemplo. Isso
porque a nova rodovia reduzirá o tráfego e aliviará os congestionamentos na estrada mais antiga.
O que é qualidade
ambiental?
Mas quem mais sentirá o impacto direto devem ser mesmo os habitantes da Vila do Dique. A
A pesquisadora Sâmia Maria
Melhoria da qualidade de vida da população
realocada.
É necessária a realocação das famílias do local de
implantação do Programa de Reassentamento Populacional representa uma interferência na
inserção da obra, sendo que o programa de reas-
vida das pessoas, com possibilidade de impactos negativos, como desagregação de relações.
sentamento deve prever melhorias na condição de
vida dos moradores oriundos daquela localidade.
Contudo, também é esperada a melhoria da qualidade de vida da população, o que é considerado um impacto positivo.
A realocação é um impacto gerado diretamente
pela obra. O traçado da rodovia coincide – no trecho
Origem
Direta
específico – com o dique de contenção, que foi ocupado irregularmente pelas famílias que atualmente
Duração
Temporalidade
Permanente
Médio prazo
um impacto positivo permanente, uma vez que a
Licença ambiental
Fonte: EIA/2008
48 Um novo caminho Uma nova vida
Irreversível
dades e obras, de forma a garantir a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental, que está diretamente relacionada à qualidade de vida.
A realocação das famílias requer planejamento
Desde o projeto de engenharia da BR-448/RS, técnicos da superintendência do DNIT no Rio
finalidade
Reversibilidade
O licenciamento ambiental estabelece mecanismos de controle de intervenções, serviços, ativi-
rodovia será construída no local.
e a elaboração de um plano específico para tal
A realocação de famílias daquele trecho é irreversível, porque ali será implantada a rodovia.
Estudos Ambientais da Universidade Estadual Paulista (UNESP),
define qualidade ambiental como
“a expressão das condições e
dos requisitos básicos que um
ecossistema detém, de natureza
residem no local.
A realocação dos moradores pode ser considerada
Tauk Tornisielo, do Centro de
física, química, biológica, social,
econômica, tecnológica e política, resultantes da dinâmica dos
mecanismos de adaptação e dos
mecanismos de auto-superação
dos ecossistemas”.
Grande do Sul ficaram tocados com a situação precária de vida na área da Vila do Dique. Não
obstante a importância da minimização dos impactos da rodovia no ambiente físico e biótico,
era a realidade das famílias que ali viviam que sensibilizava os representantes da autarquia.
Assim, com a construção da estrada, surgia a oportunidade de se fazer a diferença. Com isso,
o DNIT não apenas estaria cumprindo seu papel legal, enquanto empreendedor, de mitigar ou
O histórico da BR-448/RS
49
compensar os impactos ambientais das obras e da operação da rodovia, mas também partici-
Conheça os 22 programas ambientais
pando ativamente de uma iniciativa que vai ao encontro da principal meta de um governo que
posteriormente assumiria o lema “País Rico é País sem Pobreza”. De fato, a experiência mos-
Gestão Ambiental das Obras
trou a capacidade do departamento de realizar o compromisso da construção rodoviária tendo
Organiza e compatibiliza a implementação de cada um dos programas ambientais do Plano
como horizonte a sustentabilidade e assumindo a execução de um grande projeto social, em
Básico Ambiental (PBA), avaliando, aprimorando e acompanhando a execução de suas etapas,
parceria com a prefeitura local e órgãos da administração federal e estadual.
bem como interferindo diretamente na busca do sincronismo entre as atividades para a otimiza-
“Podemos medir
o sucesso do
ção dos resultados.
Ainda na fase do EIA/RIMA, foram empreendidas negociações com a Fundação Estadual de
Proteção Ambiental Henrique Luis Röessler (Fepam) sobre alternativas a serem construídas
Controle e Monitoramento de Particulados
para aquela população. Devido ao impacto regional da estrada planejada e ao fato de ela
Controla e monitora as emissões de material particulado (principalmente poeira e fumaça) na
Reassentamento à
passar por uma unidade de preservação ambiental do Estado, o licenciamento foi feito pelo
atmosfera, atendendo aos limites da legislação vigente, a fim de garantir a preservação da saúde
medida que não foi
órgão ambiental do governo gaúcho – e não pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
e o bem-estar da comunidade e dos colaboradores da obra.
Programa de
registrado nenhum
incidente grave
de atrito com a
comunidade, nem
Educação Ambiental
Fomenta a preservação e o cuidado do meio ambiente com os mais variados atores sociais (comu-
A licença prévia para a construção da BR-448/RS foi entregue em março de 2008, já prevendo
nidade, rede escolar, colaboradores de obra etc.) por meio de atividades socioambientais.
1.075/2011 e 488/2012 do DNIT,
da autarquia têm competência
plena para, em suas jurisdições,
“acompanhar e operacionalizar
os procedimentos de licenciamento ambiental referentes a
destinação de uma porcentagem do valor do investimento para o Estado, a fim de empreender ações de regularização fundiária do Parque Estadual do Delta do Jacuí. Além dessa
protestos. A obra
Monitoramento e Controle de Ruídos
compensação ambiental, foram fixadas as demais ações de redução de impacto a serem de-
Monitora e implementa práticas e medidas empregadas pelos lotes de obra, reduzindo ou minimizan-
está andando.”
talhadas pelo DNIT. Isso ocorreu em agosto de 2009, quando a autarquia apresentou o Plano
do os impactos gerados pela emissão de ruídos na área diretamente afetada pelo empreendimento.
Catarina Silveira Muñoz,
fiscal do contrato da Gestão
Ambiental da BR-448/RS
De acordo com as portarias nº
as superintendências regionais
Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A fiscalização da gestão ambiental ficou a cargo da superintendência regional do DNIT, sob a supervisão da CGMAB.
DNIT tem atuação
regional
projetos e obras de infraestrutura, interagindo junto aos órgãos
ambientais da esfera municipal,
estadual e representações
federais nos Estados”, bem como
Básico Ambiental (PBA), elaborado pela contratada STE – Serviços Técnicos de Engenharia
S.A., com a previsão de 22 programas ambientais. Destes, certamente o de maior complexi-
Comunicação Social
dade é o Programa de Reassentamento Populacional.
Estabelece canal direto e sistemático de comunicação entre o empreendedor e as comunidades
promover os atos para cumprir
as condicionantes das licenças.
beneficiadas pela obra por meio da criação e distribuição de material impresso, realização de palestras e participação em eventos e veículos de comunicação.
Monitoramento dos Recursos Hídricos Subterrâneos
Direciona e especifica estudos e ações necessárias para o monitoramento dos recursos hídricos subterrâneos quanto a possíveis impactos ambientais relacionados à construção da rodovia por meio
de 14 poços piezométricos.
50 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
51
Monitoramento dos Recursos Hídricos Superficiais
tário das espécies terrestres e aquáticas na fase de implantação da rodovia.
Gerenciamento dos Resíduos
Implementa os procedimentos relativos ao sistema de gerenciamento de resíduos referentes à minimização, segregação, acondicionamento, tratamento e disposição final de todo o resíduo gerado
nos canteiros e frentes de obras, de acordo com a legislação vigente.
Redução de Atropelamento de Fauna
Aplica mecanismos que possam mitigar possíveis impactos à fauna causados na fase de operação
da rodovia, ou seja, auxilia na travessia dos animais ou mesmo os impede de cruzar as áreas com
maiores riscos. Os mecanismos mais utilizados nesses casos são túneis, pontes, cercas, refletores e
placas de sinalização.
Supervisão Ambiental
Estrutura, diagnostica e propõe medidas para as atividades desenvolvidas pela Supervisão Ambiental durante o empreendimento, estabelecendo a metodologia para o acompanhamento das
obras pela equipe.
Foto: Andrea Weschenfelder
Direciona ações necessárias, por meio do monitoramento dos recursos hídricos superficiais, quanto
Programa Ambiental de Construção
a possíveis impactos ambientais relacionados à construção da rodovia, em pontos específicos ao
Apresenta os critérios a serem empregados pelos lotes construtores durante a fase de implantação
longo do empreendimento.
da obra e indica os procedimentos operacionais para minimizar possíveis impactos ambientais.
Programa de Resgate de Flora e Fauna
Prospecção, Monitoramento e Salvamento Arqueológico
Reduz o impacto gerado pela perda e fragmentação de habitats de fauna e flora decorrentes da
Realiza a prospecção, o monitoramento e o salvamento dos sítios arqueológicos na área direta-
supressão de vegetação da área de influência direta do empreendimento.
mente afetada ou eventualmente identificados por ocasião da implantação da obra.
Monitoramento da Fauna
Reposição Florestal
Monitora as ações implementadas para mitigar os impactos ambientais causados à fauna. Iden-
Recompõe e revegeta áreas relevantes para a flora, fauna e qualidade dos recursos hídricos na área
tifica pontos de maior ocorrência de atropelamentos, verifica a funcionalidade e a eficiência das
de influência do empreendimento. O cumprimento da reposição florestal é estabelecido por lei e é
estruturas instaladas para a passagem da fauna. Realiza o manejo da fauna atropelada e o inven-
realizado por meio do plantio de espécies arbóreas nativas.
52 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
53
Controle de Processos Erosivos
Indenização dos Proprietários
O objetivo principal é a desocupação da faixa de domínio para a construção da BR-448/RS, praticando indenizações justas, sob o ponto de vista econômico e social.
Adequação de Sistema Viário
Implanta “caminhos de serviço” para facilitar a construção da rodovia, considerando também as
vias de tráfego existentes e adequando-as para o trânsito de veículos relacionados à obra, com placas
de identificação e sinalização adicional quando é necessária a interdição de alguma via.
Prevenção e Controle de Acidentes com Cargas Perigosas
Apresenta os procedimentos a serem empregados na operação da rodovia, na finalidade de evitar
e minimizar os possíveis impactos ambientais causados nas operações que envolvam a logística de
produtos perigosos.
Reassentamento Populacional
Consiste na realocação assistida das famílias residentes ao longo do traçado com o objetivo de
desocupar a área para implantação da BR-448/RS.
Foto: Andrea Weschenfelder
Direciona, orienta e especifica estudos e ações, preventivas e/ou corretivas, necessárias quando
O Programa de Reassentamento Populacional previa a retirada e a acomodação em novas mo-
constatados indícios de processos erosivos ou instabilidades geotécnicas no trecho da rodovia.
radias de todas as famílias habitantes da Vila do Dique, até mesmo daquelas localizadas fora da
faixa de domínio. A decisão levou em conta a necessidade de se preservar as relações de vizi-
Paisagismo
nhança e compadrio entre os habitantes da comunidade, bem como equidade entre as famílias.
Propõe ações que possam mitigar os impactos ambientais passíveis de serem causados a partir da
Ao mesmo tempo, a retirada da integralidade da Vila do Dique contribuiria para a preservação
implantação da rodovia, buscando incorporá-la na paisagem em termos estruturais e ambientais.
do Parque Estadual do Delta do Jacuí, reduzindo a interferência humana no ecossistema e o lan-
Este programa foca, prioritariamente, a revegetação da faixa de domínio.
çamento de esgoto diretamente no sistema hídrico. Por fim, deixar as moradias fora da faixa de
domínio poderia se constituir em um estímulo para novas ocupações irregulares na área de pre-
Prevenção de Acidentes e Controle de Saúde Pública
servação e nas margens da rodovia, além de separar laços existentes entre as famílias. O controle
Visa à melhoria contínua das condições de trabalho nas obras e evitar a sobrecarga que o empre-
fica facilitado quando não existe imóvel algum no local. Por isso, a realocação de toda a Vila do
endimento possa vir a causar na estrutura de saúde pública da região.
Dique foi inserida entre as condicionantes ambientais para o empreendimento.
54 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
55
Reassentar as famílias era a opção mais adequada para o caso, uma vez que os moradores
consórcio Enecon/STE S.A. No total, as contratações do DNIT somaram R$ 1.081.085.143,58. Do
residiam em área pública e, portanto, não poderiam ser indenizados pelos terrenos sobre os
total investido, 5,4% foram nas ações socioambientais, o que inclui, além da gestão ambiental,
quais não tinham direito de propriedade. Contudo, lhes foi oferecida a opção de indenização
a compensação ambiental, a vila de passagem e obras de infraestrutura dos loteamentos. Nesse
não pela terra, mas pelas benfeitorias construídas. A prefeitura de Canoas estabeleceu como
percentual, não está incluído o valor do convênio entre Caixa Econômica Federal, Ministério
diretriz que o trabalho social devia priorizar o reassentamento, e as famílias indenizadas seriam
das Cidades e a prefeitura de Canoas (R$ 38 milhões) para construir as 599 unidades habitacio-
exceção. Somente foram indenizadas as famílias com direito a R$ 45 mil ou mais, valor que
nais. Cabe salientar que a administração canoense custeou ainda o terreno da vila de passagem
possibilitou aquisição de nova moradia.
e a manutenção desta.
Até poucos anos atrás, no caso de famílias instaladas irregularmente em faixa de domínio de
vias a serem duplicadas, o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) colocava óbice a gastos
com indenizações, entendendo que o dever do poder público era simplesmente retirar as moradias. Antigamente, essa era uma prática também adotada em casos de construção de novas
rodovias, atingindo as famílias que ocupavam irregularmente as áreas a serem interceptadas.
Hoje, entretanto, a orientação geral e a interpretação jurídica são favoráveis às medidas social
e ambientalmente mais responsáveis, no sentido de não manter famílias em situação de vul-
Proteção do
direito à moradia
uma análise de cada caso. No entanto,
O parecer nº 00143/2013/FM/PFE/DNIT
do reassentamento de famílias no
da Procuradoria Federal Especializada
âmbito das condicionantes da licença
o parecer aponta para a legalidade das
indenizações de benfeitorias (embora
não das terras ocupadas), bem como
– DNIT da Advocacia Geral da União
ambiental. Para os invasores que não se
nerabilidade. O entendimento do TCU vem ao encontro da compreensão de que investimen-
ressalta o fato de a legislação nacional
enquadram nessa categoria, indenização
tos com realocação de famílias são parte da gestão ambiental da obra. Os programas sociais,
prever a responsabilidade de o DNIT
e realocação não teriam amparo jurídico.
ingressar com ação demolitória no caso
A legalidade de reassentamento ou a in-
de construções em faixa de domínio
denização de famílias carentes também
ocupadas irregularmente, mas também
foram reconhecidas na auditoria do TCU
de proteger direitos fundamentais, como
sobre realocação de famílias no caso da
à moradia. Diante dessas duas orien-
BR-101/NE, no processo nº 8.807/2007,
tações e dos conflitos de direitos, cabe
e em outros casos analisados.
sendo exigências das licenças ambientais fazem parte de um mesmo plano ambiental, assim
como os programas de monitoramento da fauna, da flora e dos recursos hídricos.
O início das obras
A versão final do PBA aceita pela Fepam permitiu a emissão, em agosto de 2009, da Licença
de Instalação do empreendimento e o início das obras. As máquinas iniciaram a construção
da BR-448/RS no final daquele ano. As obras foram divididas em três lotes, a um custo total
de R$ 1.004.422.420,88. Também foram licitadas a contratação de supervisão, fiscalização e
acompanhamento das obras, vencida pela Magna Engenharia e Ecoplan; a da gestão e supervisão ambiental, ganha pela STE S.A.; e a do gerenciamento, que ficou sob responsabilidade do
56 Um novo caminho Uma nova vida
Construtoras da Rodovia do Parque
Lote 1
Consórcio Sultepa - Toniolo, Busnello
Lote 2
Consórcio Construcap – Ferreira Guedes
Lote 3
Consórcio Queiroz Galvão – OAS – Brasília Guaíba
O histórico da BR-448/RS
57
Parceria
aprovação de planos urbanísticos especiais e promulgação de decretos expropriatórios, entre
outras medidas jurídicas envolvidas em programas de reassentamento populacional.
A Prefeitura Municipal de Canoas foi uma aliada de primeira hora do DNIT no projeto da Rodovia do Parque. Desde a definição da instalação da estrada, o executivo municipal dedicou-se a apoiar o projeto, tendo em vista o interesse local e regional da via. Ainda em 2009, ano
Diferenças
de expedição da licença de instalação, uma equipe da prefeitura iniciou os contatos com a
população da Vila do Dique, realizando cadastramento e selagem de casas de todas as fa-
Vale salientar que a maior parte dos casos de realocação relacionados com obras de infraestrutura
mílias que lá viviam. O trabalho teve o propósito de congelar a área, limitando beneficiários
possui uma característica distinta da observada na BR-448/RS. No caso gaúcho, há uma concentra-
do Programa de Reassentamento Populacional, e ao mesmo tempo de elaborar o projeto de
ção de famílias em um trecho relativamente curto de rodovia – a Vila do Dique margeia a Rodovia
reassentamento a ser apresentado ao DNIT.
do Parque em menos de 10 quilômetros. Normalmente, no entanto, as rodovias demandam programas de realocação em distâncias muito maiores, o que dificulta o trabalho de acompanhamento e
Ainda em janeiro de 2010, o município e o departamento firmaram termo de compromisso
orientação das famílias, bem como a proximidade entre a equipe social constituída e os moradores
para realização de obras, construção de 599 unidades habitacionais, colaboração e coopera-
que serão indenizados ou reassentados. O desafio a ser enfrentado em projetos de estradas mais
ção técnica no desenvolvimento do projeto de reassentamento de famílias a serem realocadas
longas é que as moradias na faixa de domínio estão dispostas de forma muito mais esparsa, as
devido à construção da Rodovia do Parque. A formatação final das parcerias inclui, além da
características das famílias a serem realocadas divergem e os vínculos e relações pessoais são mais
prefeitura de Canoas e DNIT, Ministério das Cidades e Caixa Econômica Federal.
difíceis de serem mantidos.
As casas e os apartamentos a serem construídos e entregues às famílias realocadas devido à
O caso da duplicação da BR-101/NE – com trechos na Paraíba, no Rio Grande do Norte e em
implantação da BR-448/RS passaram a fazer parte do Programa Minha Casa, Minha Vida. As
Pernambuco – é emblemático nesse sentido. Foram cerca de 400 quilômetros de rodovia, envol-
novas moradias são totalmente subsidiadas pelo governo federal, ou seja, as famílias realo-
vendo a indenização para realocação de mais de 1.200 famílias. O trabalho contou com o apoio
cadas não pagam pela casa nova. O total investido em dois loteamentos de casas – Canoas
do Exército, que acompanhou o Programa de Realocação e coordenou o acompanhamento social
Minha Terra I e II – e em apartamentos – condomínio Morada Cidadã – foi de R$ 52 milhões.
das famílias realocadas, com o objetivo de fazer com que os indenizados permanecessem em condições de vida iguais ou superiores às que tinham na faixa de domínio da rodovia. Uma das metas
Embora fique claro o papel de liderança do empreendedor, enquanto responsável pelos pro-
era manter ou ampliar a qualidade de moradia e do acesso a serviços, além de estimular o de-
gramas de mitigação ou compensação de impactos, é fundamental buscar parcerias para a
senvolvimento de relações sociais e comunitárias de forma salutar em suas novas comunidades.
execução de projetos. Notadamente no caso de reassentamento de famílias carentes em função da instalação de rodovias, o Ministério das Cidades e as prefeituras locais devem ser os
Já no começo do trabalho, o mapeamento das famílias ao longo da rodovia se constituiu em
aliados principais. Os municípios têm atribuição constitucional para planejar e executar a
um desafio. O mapeamento posterior, para que os beneficiários continuassem sendo acompa-
política urbana, com instrumentos para isso garantidos pelo Estatuto das Cidades (lei federal
nhados pela equipe social nas moradias que adquiriram ou para as quais se mudaram mos-
nº 10.257/2001). As parcerias são necessárias para instituição de zonas de interesse social,
trou-se ainda mais complexo. Enquanto no caso da BR-448/RS o cadastro de todas as famílias
58 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
59
foi feito em alguns meses, e o acesso aos cadastrados durante todo o acompanhamento era
Como tantos outros casos, a BR-101/NE deixou lições incorporadas a novos projetos. O traba-
imediato, para mapear todas as famílias realocadas na BR-101/NE, a equipe social do DNIT
lho social no empreendimento foi importante para que as obras da rodovia evoluíssem com
levou cerca de um ano. Ainda assim, nem todas as 1.241 famílias que seriam visitadas foram
um baixo número de contestações judiciais sobre as indenizações para realocação da popula-
localizadas. Dessas, 1.166 foram entrevistadas e tiveram sua situação posterior acompanhada,
ção. A ausência de conflitos também foi uma marca do trabalho social na Rodovia do Parque,
enquanto as demais não tiveram seus endereços localizados ou foram indicadas como des-
o qual pode ser considerado exemplar para outros reassentamentos.
conhecidas. Se em um caso como o da Vila do Dique o cuidado no cadastro já é importante,
no caso de famílias que habitam as margens de uma longa rodovia, ao longo de centenas de
A complexidade de se avaliar o impacto nos empreendimentos lineares de grande porte não
quilômetros, passando por áreas rurais, é fundamental. Pequenos erros no momento de ca-
se verifica apenas no meio antrópico. Projetos que envolvem distâncias maiores costumam
dastrar nomes e endereços podem significar um grande desperdício de tempo e recursos em
afetar diferentes ecossistemas. As mudanças de paisagem, as alterações nas características da
uma situação como a da BR-101 no trecho nordestino. A localização posterior à mudança dos
fauna, da flora, do solo e dos recursos naturais devem ser registradas e levadas em conta ao se
indenizados passa, muitas vezes, a depender de contatos com diferentes municípios, diferen-
avaliar o impacto ambiental de uma rodovia.
tes comunidades, localizados em áreas rurais de difícil acesso. Para ajudar nessa localização,
é recomendada até mesmo a inclusão, no cadastro, de apelidos ou nomes pelos quais os
beneficiários são mais conhecidos.
No caso da BR-101/NE, a equipe social que fez o acompanhamento das famílias realocadas
contatou 23 prefeituras de municípios pelos quais passa rodovia e mais de 90 instituições, a
fim de mapear serviços públicos e de apoio social e comunitário que pudessem auxiliar na
melhora das condições das famílias indenizadas. O trabalho foi mais fácil em municípios que
fizeram parceria com a Caixa Econômica Federal para construir casas em loteamentos destinados aos antigos moradores da faixa de domínio da rodovia.
O fato é que, antes ou depois da realocação, apesar das distâncias e das moradias esparsas, o
trabalho social deve envolver relação direta com cada uma das famílias. Em muitos casos, o
Exército, parceiro do DNIT, orientou para a confecção da documentação básica, como cédula
de identidade, acompanhou famílias nos bancos para recebimento de indenizações, abriu caminhos para que buscassem benefícios sociais, e até supervisionou aquisições de novas moradias, dando informações para que as famílias não adquirissem imóveis em áreas de risco, áreas
públicas ou com qualquer tipo de gravame.
60 Um novo caminho Uma nova vida
O histórico da BR-448/RS
61
A relação com
a comunidade
Ao longo do processo de implementação do Programa de Reassentamento Populacional da
BR-448/RS, concluiu-se que o tempo para estabelecer a relação com as famílias e para construção da infraestrutura das casas seria superior ao da chegada da obra na área diretamente afetada. Esta sobreposição de prazos e espaços é uma dificuldade nesse tipo de programa, visto que
o custo de paralisação de uma obra rodoviária representa uma perda financeira robusta para
os cofres públicos. A solução encontrada foi a construção de uma Vila de Passagem, um local
com cerca de 300 moradias provisórias, ao lado da Vila do Dique, nas quais seriam instaladas
famílias que deveriam sair imediatamente para que a obra da estrada se desenrolasse. Essa vila
foi construída pelo próprio consórcio responsável pelo Lote 3 da rodovia.
Foto: Andrea Weschenfelder
2
A possibilidade de aluguel social, uma alternativa utilizada pelo DNIT em outras obras, por
meio da qual as famílias com moradias no leito planejado da rodovia são realocadas em
imóveis locados pelo poder público, foi cogitada como opção à Vila de Passagem. Essa hipótese, no entanto, foi logo descartada, devido a dificuldades operacionais. Como o número
de famílias com retirada urgente e obrigatória chegava perto de 300, seria preciso encontrar
igual número de imóveis disponíveis. Ainda que houvesse oferta, o valor da locação tenderia
a disparar, dada a pressão da demanda repentina, a menos que a busca incluísse unidades
habitacionais em uma região geográfica mais ampla do que o município de Canoas e as
adjacências da Vila do Dique. Nesse caso, entretanto, seria de se esperar descontentamento
Objetivo geral do Plano
de Reassentamento
• Gestão do processo de liberação
da faixa de domínio para a implantação da rodovia BR-448/RS nos
locais onde existe ocupação de
moradias, com apoio às famílias
a serem reassentadas para que
a mudança não traga prejuízos à
comunidade.
das famílias por serem colocadas em imóveis distantes de sua realidade atual, de seus locais
de trabalho, dos vínculos escolares, além de serem separadas de sua vizinhança e relações
comunitárias. Para a gestão ambiental da BR-448/RS e para a prefeitura de Canoas, o aluguel
social também seria um entrave ao desenvolvimento do trabalho, uma vez que o acompanhamento de centenas de famílias em locais esparsos é inviável.
A necessidade de realocação de famílias provisoriamente em uma Vila de Passagem, com pos-
Objetivos específicos
• Assegurar às famílias reassentadas
as condições socioeconômicas de que
dispunham no local de origem;
• Atuar no sentido de disponibilizar
meios para que essas famílias efe-
tivamente melhorem sua condição
socioeconômica;
• Implantar mecanismos que garantam a efetiva participação da população a ser reassentada no processo de
realocação, possibilitando o exercício
da cidadania em todas as fases do
programa;
• Acompanhar a implantação de moradias dotadas de infraestrutura básica (saneamento básico, drenagem
pluvial, energia elétrica, acessos),
dentro das possibilidades das áreas
destinadas à realocação;
• Assegurar junto ao poder público
que as famílias sejam realocadas em
áreas onde tenham acesso aos serviços sociais básicos (saúde, educação,
transporte coletivo, entre outros),
bem como a locais de comércio (para
compra e venda de produtos);
• Garantir o acesso aos meios de produção de que já dispunham antes, bem
como a manutenção dos vínculos de
trabalho (permanentes, temporários,
registrados, acordados etc.);
• Assegurar a manutenção dos laços
culturais e sociais das famílias;
• Estimular o empoderamento da cidadania e melhoria da qualidade de vida;
• Sensibilizar e fomentar a mudança
de hábitos e cuidados com o meio
ambiente;
• Melhorar as condições socioambientais das famílias realocadas;
• Promover o bom uso dos equipamentos individuais (apartamentos,
casas) e coletivos (áreas condominiais, praças, galpões, sedes de
associação etc.).
terior mudança para as casas definitivas, foi um dos primeiros desafios enfrentados pela equipe
social montada pela STE S.A. (gestora ambiental contratada pelo DNIT) e pelas equipes da
prefeitura de Canoas para o serviço.
O início
Apresentação
A apresentação da equipe da Gestão Ambiental e da prefeitura de Canoas à comunidade da Vila
do Dique foi no dia 18 de março de 2011, em uma reunião na Escola Monteiro Lobato, próximo às
Em março de 2011, essa equipe social assumiu suas funções. No primeiro mês, o trabalho foi no
áreas afetadas. Toda a comunidade foi convidada. O encontro teve a presença do prefeito munici-
escritório, focado no estudo sobre a comunidade, principalmente a partir do EIA, e na montagem
pal, Jairo Jorge, e do superintendente regional do DNIT no Rio Grande do Sul, Vladimir Casa. Cou-
do Plano de Reassentamento. Esse documento atende a diretrizes e requisitos estabelecidos no
be ao coordenador da Gestão Ambiental da BR-448/RS, Adriano Panazzolo, apresentar a equipe
Programa de Reassentamento como estipulado no PBA, agregando cronograma de ações a serem
do reassentamento e de outros programas, e a prefeitura de Canoas apresentou o cronograma de
executadas, definição da equipe ligada ao projeto e reafirmação dos objetivos do PBA. Inclui des-
reuniões com a comunidade. Àquela altura já havia sido desenvolvido um colete de identificação
de a previsão de um plano de comunicação com as famílias a serem removidas até a formalização
azul para o grupo, bem como a logomarca do empreendimento, de forma que os trabalhadores
das responsabilidades de cada parceiro do programa.
da Gestão Ambiental passaram a ser identificados pela vestimenta.
64 Um novo caminho Uma nova vida
A relação com a comunidade
65
Feitas as apresentações, a equipe social estava pronta para entrar em campo. O mês anterior
fora marcado por treinamentos intensivos e montagem do Plano de Reassentamento. Foi formado um grupo de trabalho, coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação e composto por STE S.A., DNIT, secretarias municipais da Saúde, Transporte
e Meio Ambiente. Esse grupo definiu a metodologia do reassentamento, planejou e distribuiu
as tarefas de cada um no processo. Todos os integrantes do grupo, antes de ir para a rua,
mostravam-se conscientes do papel que teriam e dos objetivos gerais da ação.
Composição da
equipe
A equipe de Gestão Ambiental
do Programa de Reassentamento
foi formada por 10 pessoas, além
da equipe existente de comunicação e educação ambiental:
• Um coordenador de campo (nível superior)
As capacitações preliminares serviram para estudar os modos de agir na comunidade. Detalhes
como a obrigatoriedade do uso de colete, crachá de identificação e Equipamentos de Proteção
Individual, a exemplo de botas, foram absorvidos pelo grupo da STE S.A. Cuidados básicos,
• Dois assistentes sociais
• Cinco agentes comunitários
• Uma secretária
• Um motorista
como não se encostar em cercas e materiais cortantes, a fim de evitar lesões e infecções por pica-
18 de março de 2011: em reunião
aberta à comunidade, a equipe
social é apresentada aos moradores
do Dique
Foto: Andrea Weschenfelder
Isso foi importante para o primeiro desafio da equipe social: vencer a desconfiança da comunidade. O clima na reunião não era dos melhores. Previamente informados, porém sem grandes
detalhes, de que haveria instalação de famílias em uma Vila de Passagem, muitos compareceram ao encontro dispostos a protestar contra essa possibilidade, com faixas e cartazes. O
grande temor dos moradores sempre foi de que as famílias fossem alocadas nas unidades provisórias e ali esquecidas, sem jamais ir para casas e apartamentos definitivos. No entanto, com
o desenrolar das apresentações, a solidez de um Programa de Reassentamento Populacional
atrelado à construção de uma rodovia restou evidente, aplacando os ânimos dos dispostos ao
protesto. Detalhes sobre localização das novas moradias, configurações das unidades habitacionais e do processo de realocação, apresentados na oportunidade pela prefeitura de Canoas
e pelo DNIT, foram fundamentais para isso.
66 Um novo caminho Uma nova vida
Equipe social foi qualificada para usar equipamentos de identificação e
segurança, tomar cuidados básicos e se comportar adequadamente
Foto: Andrea Weschenfelder
A relação com a comunidade
67
João-de-barro
das de animais, também foram passados aos membros da equipe, bem como a forma de abor-
Vulnerabilidade social
dagem, sempre se identificando e apresentando os objetivos do contato previamente. Tudo isso
Um estudo realizado pela Orga-
deveria ser feito com a máxima gentileza. Por serem elementos novos na região, os integrantes
nização das Nações Unidas para
da equipe social deveriam respeitar os costumes dos locais. E, fundamentalmente, deveriam
ouvir as demandas da população, mesmo que não se tratasse de questões relativas ao DNIT. Até
porque, como executores de um programa social específico, eles não poderiam resolver todos
os problemas dos moradores, mas orientar ou encaminhar para órgãos competentes quando
Foto: Andrea Weschenfelder
fosse o caso. Isso incluiu mapeamento das necessidades individuais e verificação da oferta de
a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
que originou o livro “Juventude,
Violência e Vulnerabilidade Social
na América Latina: Desafios para
as Políticas Públicas”, trabalha
serviços e benefícios sociais disponíveis para cada situação. Com o conhecimento das neces-
com a seguinte definição para
sidades e direitos da população e das oportunidades oferecidas pelo poder público e terceiro
vulnerabilidade social, delineada
setor, pode-se abrir caminho para que as famílias busquem programas de renda, serviços de
saúde e educação adequados ou cursos de qualificação, por exemplo.
por J.R. Vignoli e C.H. Filgueira:
“O resultado negativo da relação
entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos
Um dos princípios no trabalho da assistência social é o profissionalismo, a escuta das necessiNa conquista da confiança da população, a equipe social ganhou um aliado de primeira hora: o joão-de-barro.
Pássaro comum na área da obra,
bem como em todo território sul-brasileiro, o Furnarius rufus, nome
científico da espécie, virou mascote
da Gestão Ambiental da BR-448/RS.
E ninguém poderia ser melhor do
que ele para auxiliar na educação
ambiental e representar o processo de realocação das famílias. O
joão-de-barro é reconhecido pelo
esmero na construção da casa de
sua família. Por ser um obreiro nato,
tem tudo a ver com a empreitada da
nova estrada e das novas moradias
para a população da Vila do Dique.
68 Um novo caminho Uma nova vida
dades cotidianas da vida das pessoas, contudo, sem envolvimento pessoal, evitando o “assisEm forma de personagem em gibis e
material didático trabalhado com as
crianças das escolas locais, em forma
de boneco em atividades lúdicas e
educativas, o mascote faz a festa
com a meninada e seus pais.
O personagem foi apenas uma das
ferramentas trabalhadas em conjunto pelos programas de Reassentamento Populacional, de Educação
Ambiental e de Comunicação Social,
todos sob a mesma coordenação da
STE S.A. O Planejamento Estratégico
de Comunicação Social se iniciou
com entrevistas a representantes de
diferentes públicos relacionados com
o empreendimento, de moradores
da Vila do Dique a promotores e
autoridades políticas. A partir desse
diálogo, chegou-se ao slogan “Um
Novo Caminho, Uma Nova Vida”, que
passou a ser associado a toda a Gestão Ambiental da nova rodovia.
O conceito geral da Gestão Ambiental
está representado também na logomarca comum a todos os programas,
que traz uma estrada, uma folha e
uma mão, simbolizando os meios
físico, biótico e socioeconômico.
atores, sejam eles indivíduos ou
grupos, e o acesso à estrutura
de oportunidades sociais econô-
tencialismo”. A assistência social é regulamentada no país desde 1993, por sua lei orgânica (lei
micas culturais que provêm do
federal nº 8.742/93), que, em seu artigo 15º, estabelece a legitimidade das ações emergenciais.
Estado, do mercado e da socie-
E é à luz dessa legislação e dos princípios que regem a atividade que a equipe envolvida nos
trabalhos do Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS atua.
dade. Esse resultado se traduz
em debilidades ou desvantagens
para o desempenho e mobilidade social dos atores”. Segundo os
O trabalho de assistência social pode ser executado por inúmeros profissionais – como psicólo-
autores, o “conceito de vulnerabilidade ao tratar da insegurança,
gos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e outros, entre eles assistentes sociais com formação
incerteza e exposição a riscos
para isso. A assistência social, como área de atuação, cumpre com o papel de pensar, articular
provocados por eventos socio-
e executar os serviços que abranjam o atendimento do cidadão em situações de vulnerabilidade social. Assim, passa a ser entendida como uma forma de garantia de direitos, a partir da
informação e seguridade.
econômicos ou ao não-acesso a
insumos estratégicos apresenta
uma visão integral sobre as
condições de vida dos pobres, ao
mesmo tempo em que considera
Para os integrantes da equipe social, ver uma família passando frio e não se mobilizar para
a disponibilidade de recursos e
estratégias para que estes indi-
doar o blusão do próprio corpo não é tarefa fácil. Mas o procedimento correto em casos de
víduos enfrentem as dificuldades
urgência é buscar uma organização formal que ofereça o suporte. Essa é uma missão que só
que lhes afetam.”
A relação com a comunidade
69
pode ser cumprida quando existe a compreensão macro do trabalho que está sendo execu-
Congelamento
tado. E o objetivo geral não é ajudar a todos com soluções paliativas, mas sim contribuir para
que os assistidos conquistem uma melhoria da qualidade de vida, tendo acesso a seus direitos
A equipe social, ou “os de colete azul”, como já diziam os residentes da Vila do Dique, teve como
e também exercendo os deveres de cidadão. Por anos e anos, políticas paternalistas incutiram
sua primeira grande atividade atualizar os dados cadastrais de todas as famílias do local, traba-
nas populações carentes da região a visão de que eram merecedoras de favores ou benesses.
lhando em conjunto com a prefeitura municipal. A ordem era não apresentar a ação como um
Dar-lhes o direito à cidadania é abrir as portas de uma vida nova, empoderá-las. É, portanto,
novo cadastro, mas apenas como atualização das informações coletadas no congelamento de
um trabalho de longo prazo.
2009 executado pelo município. Isso era essencial para não transmitir a ideia de que o trabalho
32,56%
estaria incluindo famílias no Programa de Reassentamento, contrariando o que fora estabelecido
“Eu aprendi muito
em 2009 e incentivando novas famílias a ocuparem irregularmente os terrenos às margens dos
com soluções
de engenharia
Famílias por
cor do selo
diques, a fim de ganhar uma casa nova.
49,11%
18,33%
Foto: Andrea Weschenfelder
Na atualização cadastral, a metodologia para selagem foi trocada, com as famílias divididas em
fantásticas na BR-
três grandes grupos. Cada um recebeu selo de uma cor: verde, para as que deveriam sair antes
448/RS. Mas com
por estar na área diretamente afetada pelas obras; vermelho, para as que iriam direto para
as moradias definitivas; laranja, para as casas que se estabeleceram após o congelamento de
certeza a coisa mais
2009. O momento do congelamento cadastral é uma definição fundamental para o andamen-
linda do projeto é o
to do programa, dada a alteração constante do local e a impossibilidade de se abarcar todos
trabalho social que
Verde: 276 famílias
Vermelho: 183 famílias
Laranja: 103 famílias
Fonte: STE
aqueles interessados em ter melhores condições de moradia, mas que só foram habitar o local
posteriormente ao processo de cadastramento com interesse de obter a casa nova.
está se fazendo.”
Pedro Luzardo Gomes,
Superintendente do DNIT
no Rio Grande do Sul
Estas novas famílias ainda teriam sua ida para as casas e apartamentos definitivos definida posteriormente, após aprovação da Comissão de Acompanhamento de Obras, formada por representantes da própria comunidade. Além da inovação das cores, a selagem foi feita com pintura do
número na parte externa das residências, a fim de facilitar a identificação por parte do DNIT e a
fiscalização da prefeitura de Canoas. Essa metodologia também teve o objetivo de desestimular
o estabelecimento de novas famílias no local. Os números dos selos ganharam ares de carimbo,
à medida que foram inscritos dentro de uma moldura com a logomarca do Programa de Reassentamento. Mais do que um cuidado, isso reforçou a identidade do trabalho da Gestão Ambiental
Equipe social: trabalho para garantir direitos a
partir da informação e seguridade
70 Um novo caminho Uma nova vida
e a ideia de que não se tratava de mais uma selagem ineficaz, como outras pelas quais a popu-
Selagem das moradias originais:
procedimento para facilitar a
identificação das famílias e a
fiscalização da prefeitura
lação local já passara. O uso de cores foi importante não apenas para orientar a equipe social,
A relação com a comunidade
71
Instalações sanitárias
nas moradias
mas também para comunicar de forma mais didática o grau de prioridade de remoção de cada
para estabelecer os laços da equipe social com a comunidade. Coletar dados de uma popula-
família dentro do processo de reassentamento, com símbolos visuais passíveis de compreensão
ção socialmente vulnerável e desassistida é uma tarefa com inúmeros obstáculos. Era comum a
até mesmo para o não desprezível número de analfabetos na comunidade.
equipe deparar com crianças não registradas, adultos sem documentos, constantes alterações
nas estruturas familiares, com novas uniões, separações, nascimentos de filhos, falecimentos.
22,95%
77,05%
No momento da nova selagem, além da pintura na fachada, foi tirada uma foto de cada chefe
Quando se trata de um grande número de pessoas e um ambiente no qual o exercício da cida-
de família ao lado do selo. Como regra, todos os atos relevantes da equipe social estão ampla-
dania é pouco estimulado, a manutenção de cadastros atualizados envolve uma alta complexi-
mente registrados por fotografias, vídeos e documentos. A prática é fundamental para ilustrar
dade administrativa na gestão ambiental de uma obra.
os relatórios enviados pela empresa executora da gestão ambiental à fiscalização do DNIT e
também para prevenir a autarquia em quaisquer casos de contestação judicial, servindo como
suporte na defesa jurídica. Além disso, as imagens servem como memória do processo, poden-
Com banheiro
do subsidiar futuros reassentamentos e ajudando na avaliação de dificuldades enfrentadas e
Sem banheiro
soluções criadas.
Fonte: EIA/2008
Mapeamento
Terminada a atualização cadastral, tinha-se o perfil completo da população. Nesse momento, tornaram-se possíveis análises detalhadas, que confirmaram a situação geral apurada
Famílias
por faixa de renda
familiar mensal
1,12%
13,03%
22,95%
32,22%
Outra atenção foi para que as entrevistas com as famílias, no momento da atualização cadas-
no EIA/RIMA, porém com maior acurácia. Esses dados continuaram sendo atualizados no
tral, fossem feitas nas porta das casas, com o intuito de verificar se efetivamente as residên-
decorrer do trabalho social. A contagem mais recente, em setembro de 2012, indicava 2 mil
cias eram ocupadas. Sempre que houvesse qualquer desconfiança de que uma casa não era
pessoas beneficiadas pelo Programa de Reassenta-
habitada ou havia sido instalada com o fim único de servir como ponte para o recebimento
mento, quase a totalidade da Vila do Dique, em-
de moradia definitiva, a equipe social era orientada a pedir para ingressar na residência, bem
bora houvesse um pequeno número de famílias
como certificar-se com vizinhos do histórico do local e da efetiva utilização por moradores.
que viviam em áreas ocupadas nos municípios de
Nesse momento, foram verificados alguns casos de casas desabitadas, cujo propósito do
Esteio e Sapucaia do Sul.
pretenso morador parecia ser somente o benefício. Por vezes, havia até certa sofisticação na
prática, com instalação de móveis para dar ares de lar a um esqueleto de madeira e telha.
Entre outros dados sobre o perfil dessa população,
Mas uma apuração mais detalhada é capaz de identificar a falta de uso dos equipamentos.
foi possível apurar que 85,85% das famílias viviam
Em uma das casas que foram retiradas pela prefeitura de Canoas por não abrigar família, a
com renda familiar inferior a R$ 1 mil por mês, sen-
equipe social encontrou um sofá, uma cama e uma televisão quebrada. Nada de geladeira,
do que 30,33% recebiam Bolsa Família. Além disso,
De R$ 0 a R$ 500
comida, lixo. As conversas com vizinhos reforçaram que se tratava de imóvel desabitado,
averiguou-se, por exemplo, que 27 moradias eram
De R$ 500 a R$ 1.000
uma “casa de fachada”, escassamente mobiliada com o interesse de receber selo e, conse-
utilizadas para fins comerciais, enquanto quatro
De R$ 1.000 a R$ 2.000
quentemente, o direito a uma moradia definitiva.
abrigavam casas de religião e uma era sede de asso-
77,05%
53,63%
ciação de moradores. E ainda que 129 residências,
De R$ 2.000 a R$ 3.000
Fonte: EIA/2008
Comércio na Vila do Dique: houve
preocupação em manter atividades
das famílias após a mudança
Os momento da retificação e confirmação dos dados do cadastro das famílias foi fundamental
72 Um novo caminho Uma nova vida
ou 22,95% do total, não contavam com banheiro.
A relação com a comunidade
73
A divisão
a presença constante da equipe social na Vila do Dique permita uma relação direta com qualquer interessado, o diálogo entre representantes e representados é uma demonstração clara e
Com a população local contada, mapeada e cadastrada, uma das primeiras medidas foi divi-
formal de que todos são parte do processo. Além disso, os integrantes da comissão podem as-
dir a Vila do Dique em cinco áreas, nominadas conforme referências locais: Dique Rio Branco,
sumir o papel de agentes de transformação da vida da comunidade, levando à população en-
Dique Canil, Dique Paquetá, Dique Prainha e Dique Fátima. A separação se deu com base em
sinamentos e oportunidades apresentadas pelo Programa de Reassentamento Populacional.
critérios geográficos, respeitando relações de parentesco e vínculos criados entre os habitantes
“Me criei no meio
do mato, lidando
com bicho. Por mim
de cada trecho, suas associações e lideranças. A classificação serviu para a formação de uma
Para que os integrantes da comissão desempenhassem seu papel de representação, não ape-
comissão de obras. O grupo, composto por 22 representantes comunitários (pelo menos três
nas decidindo pelos demais, mas sim com eles, houve uma intensiva de reuniões com o grupo
de cada dique), foi eleito pelos habitantes de cada comunidade, em encontros convocados
eleito no início do trabalho. Os encontros ocorriam aos sábados, dia escolhido pelos próprios
pela equipe social, os quais também serviram para dirimir as dúvidas, que ainda eram muitas,
membros como o ideal, e serviram para colocar a população a par das principais informações
da população local.
ligadas à obra: o andamento do Programa de Reassentamento Populacional, o estágio de construção da rodovia, a construção das novas casas e apartamentos, os serviços oferecidos pela
A convocação das reuniões para formar a Comissão de Acompanhamento de Obras era feita com
Gestão Ambiental e pela prefeitura de Canoas, as atividades desenvolvidas pela equipe social.
convites pessoais às lideranças, fixação de cartazes nos locais e entrega de panfletos. Mesmo com
Ao mesmo tempo, essas reuniões também foram utilizadas para capacitação do grupo. Era
Aqui tenho minhas
as formas escritas, a conversa com os habitantes sempre foi ponto indispensável no processo de
preciso não apenas reconhecer e respeitar a liderança dos eleitos, mas também capacitá-los
ferramentas, meus
comunicação. Não apenas porque parte do público-alvo é analfabeta, mas porque a tradição oral
para exercê-la de forma responsável e disseminar práticas ambientalmente responsáveis. Nessa
é muito forte na cultura brasileira. Essas reuniões, coordenadas pela prefeitura de Canoas, foram
linha, o grupo teve palestras sobre higiene ministradas por um técnico da Secretaria Municipal
realizadas em locais tão diversos quanto embaixo de árvores ou no leito da obra.
de Saúde, aprendeu sobre aproveitamento integral de alimentos em oficina que incluiu prepa-
não saía do Dique.
animais, tenho
silêncio.”
Maurício Winck,
ex-morador da Vila do Dique
ro de bolo com casca de banana e debateu questões como a presença dos animais na comuni-
Comissão de Acompanhamento de Obras
Na comunicação com a população da Vila do Dique, o respeito às lideranças locais foi fundamental. Sempre que houvesse novas informações sobre o processo de construção das casas
dade e os riscos de zoonoses a ela associados e a importância da organização dos recicladores
em cooperativas, assunto trabalhado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente.
O contato direto
e de reassentamento, os líderes eram comunicados e chamados a trazer a visão da popula-
Meio de transporte
por família
22,77%
77,33%
Possuem carro ou moto
Não possuem carro ou moto
Fonte: EIA/2008
População da
Vila do Dique
por faixa etária
+ de 60 anos
2,99%
50-59 anos
5,87%
40-49 anos
9,30%
30-39 anos
12,45%
20-29 anos
18,26%
ção. Da mesma forma, esses representantes eleitos deveriam ser ouvidos sempre que algo
Apesar de indispensável, a comunicação via lideranças disseminadoras não pode ser a única
10-19 anos
24,13%
necessitasse de posicionamento da comunidade. Portanto, a constituição de uma comissão
forma de relação com a comunidade. O contato direto com a totalidade das famílias é essen-
0-9 anos
27%
de obras com nomes apontados pelas famílias beneficiadas é peça-chave do processo. Além
cial. Só assim se consegue desmanchar a atmosfera de desconfiança que reina em comuni-
de deliberar, esse grupo tinha o papel de levar para os moradores as informações relativas ao
dades carentes e com histórico de promessas não cumpridas. Mas falar apenas não basta. A
andamento das obras das novas casas e dos processos de relocação de famílias. Por mais que
percepção geral de que a BR-448/RS realmente viria para mudar a vida das 2 mil pessoas que
74 Um novo caminho Uma nova vida
Fonte: EIA/2008
A relação com a comunidade
75
habitavam o local só se consolidou após as visitas aos canteiros de obras. Primeiro, a Comis-
rurais em busca de uma vida melhor na cidade grande. Mesmo na metrópole, mantiveram hábitos
são de Obras foi convidada a percorrer os trechos em construção, desde o início da rodovia,
campesinos, sem contar a nostalgia de uma infância no campo – por menos recursos que tivessem.
em Sapucaia do Sul, até seu término, em Porto Alegre. Depois, foram promovidas visitas aos
terrenos que abrigariam as novas casas e à Vila de Passagem. O que horas de conversa e expli-
O operário Maurício Winck, por exemplo. Natural de Sarandi, na Região Planalto do Rio Grande do
cações não conseguiam traduzir virava convicção após cada visita.
Sul, ele veio para Canoas em busca de emprego e oportunidades. Sua casa na Vila do Dique não
“As dimensões
tinha chuveiro. Cansados de tomar banhos de bacia, as duas filhas, os dois filhos, o neto e a esposa,
sociais do ambiente
Convencimento
era repleta de buracos, mas tinha espaço para Winck guardar suas ferramentas e os arreios dos dois
– designadamente,
cavalos. Era rodeada por lixo, mas também por mato. Ali, ele se sentia livre. Nos novos condomínios,
mas não
Outro desafio ao longo de todo o trabalho social foi convencer os moradores da Vila do Dique
temia o vizinho que ouviria rap, a impossibilidade de criar galinhas e de ter mais de um cavalo. Em
dos benefícios do reassentamento. Para quem não participa do processo, é até mesmo difícil com-
seu lar no Dique, onde muitos enxergariam tantas limitações, o operário via a liberdade.
exclusivamente, a
preender como famílias que vivem em barracos, sem água encanada ou esgoto, com luz instável,
paz, a qualidade
misturadas a ratos, baratas e outros vetores urbanos, titubeiem ante a possibilidade de se transferir
das relações sociais,
Resistências
a libertação do
Quando se inicia um processo de reassentamento, espera-se que surjam resistências. E que inte-
medo, o sentimento
Se é verdade que, para alguns, essa transferência era a oportunidade tão es-
resses sejam contrariados. Na Vila do Dique, o problema das drogas é presente. Não são poucos
de pertença –
perada por anos, para outros, representava um transtorno. Sem nunca terem
os casos de famílias que perderam seus filhos, especialmente para o crack. Há quem consuma e há
sido servidos por infraestrutura urbana básica, parte dos moradores da Vila do
quem venda. Não se sabe que prejuízos ou mesmo benefícios o tráfico de drogas – bem como ou-
são importantes
Dique tinha dificuldade até de avaliar os benefícios das novas moradias. Além
tras atividades econômicas legais e ilegais – terá com a mudança. Daí, a possibilidade de conflito.
para casas de alvenaria, interligadas à rede pública de água, luz e esgoto, frente a ruas calçadas e
Canteiro de obras: construção da
rodovia proporcionou acesso inédito
a infraestrutura básica aos
moradores do Dique
Maria Angelúcia Ferreira da Silva, queriam se mudar logo para a Vila de Passagem. A casa da família
infraestrutura urbana que compreende acesso facilitado ao transporte público e espaços de lazer.
aspectos de saúde
e qualidade de vida
disso, por pior que fosse a vida no dique, abandoná-la significava abrir mão de
alguns hábitos e assumir algumas responsabilidades. A necessidade de seguir
Diante disso, para o poder público, é importante demonstrar que o reassentamento é um proces-
regras de convívio social, na Vila de Passagem e nas novas moradias, era motivo
so inexorável, e que a equipe social não tem o papel de polícia. Da equipe, espera-se a criação de
de tensão para muitos. Uma das principais queixas dos resistentes à mudança
condições para que algumas famílias possam seguir um caminho distante do vício. Àqueles envol-
era relativa à falta de liberdade que teriam nas casas ou apartamentos novos.
vidos em um Programa de Reassentamento Populacional, cabe esclarecer, ouvir a opinião e rece-
Palavras como “prisão” ou “cemitério” foram muitas vezes usadas para des-
ber todos os integrantes de uma comunidade, não importa o papel social que ocupem no grupo.
das pessoas.”
Princípios Internacionais de
Avaliação de Impactos Sociais,
documento elaborado por Frank
Vanclay para a IAIA
crever o estilo de vida em condomínios verticais ou horizontais, como os que
estavam sendo construídos para a comunidade. É preciso se colocar no lugar
É provável que qualquer programa social desenvolvido junto a populações carentes tenha de lidar
das famílias para compreender esse processo e, dessa maneira, revertê-lo com
com o problema da drogadição. Preparar-se para diferentes tipos de abordagem, dependendo de
ações educativas. Boa parte dos moradores do Dique veio de comunidades
cada local, é fundamental nesse caso.
Foto: Eduardo Rocha
76 Um novo caminho Uma nova vida
A relação com a comunidade
77
A Vila de
Passagem
O projeto
A Vila de Passagem foi uma iniciativa emergencial para evitar atraso nas obras, que andavam a
um ritmo mais acelerado do que a construção das novas unidades habitacionais. Os trabalhos
no terreno destinado ao local transitório iniciaram-se no começo de 2011, e a estrutura ficou
pronta em setembro do mesmo ano.
Arquitetonicamente, a Vila de Passagem é muito semelhante aos alojamentos de trabalhadores
em grandes obras de infraestrutura construídos Brasil afora. Feitos em Oriented Strand Board
(OSB) – material composto por tiras de madeira e resina –, com piso de cimento, os módulos
têm resistência suficiente para durar mais do que o tempo previsto de operação do local. Cada
unidade foi construída com 18 metros quadrados, divididos entre uma peça grande e um ba-
Foto: Eduardo Rocha
3
nheiro ventilado, equipado com chuveiro, vaso sanitário, descarga e pia. Já o cômodo principal
unidade tinha espaço suficiente, mas também poten-
possui uma janela, uma pia e um bico de luz. Na parte externa, os módulos contam com um
cial de se transformar em um verdadeiro lar.
tanque e espaço gradeado para os botijões de gás, reivindicação da comunidade para que não
“Passei muita
fossem roubados. Todas as unidades possuem energia elétrica, água encanada e estrutura de
Para isso, uma das residências foi decorada, assim
esgoto, providas pela prefeitura municipal, sem encargo para os usuários. Mesmo com dimen-
como ocorre nos grandes empreendimentos imobi-
sões reduzidas, as casas passageiras ofereciam condições de infraestrutura, higiene e habitação
liários. Com participação da Gestão Ambiental, da
bastante superiores a praticamente qualquer moradia do Dique.
construtora do Lote 3 e da prefeitura de Canoas, foram adquiridos alguns objetos e móveis. Outros ainda
vergonha quando
A localização da Vila de Passagem não deixa de ser simbólica. Fica entre um dos trechos da Vila
foram doados ou emprestados por colaboradores da
fui à casa da minha
do Dique e o loteamento Canoas Minha Terra II, o primeiro dos locais de reassentamento de
STE S.A. Um dos princípios da ação era não fazer fic-
famílias realocadas devido à BR-448/RS pronto. Ou seja, como local transitório, fica geográfica
ção, ou seja, não decorar a unidade com objetos caros
e cronologicamente entre as moradias a serem destruídas, representando o passado, e as defi-
e inacessíveis para quem ali moraria. Assim, a mesa
nitivas, representando o futuro.
ganhou toalha de plástico; a geladeira, a companhia
sogra, pois meu filho
pequeno levou um
susto do chuveiro.
Nunca havia tomado
banho num. Para
mim vai ser muito
melhor viver na Vila
de Passagem.”
Ana Vilma Caldeira,
ex-moradora da Vila do Dique
de um pinguim; o fogão, um pano de prato. CortiQuando a notícia da existência de uma Vila de Passagem chegou à comunidade da Vila do
nas para o box, toalhas no banheiro, colcha na cama,
Dique, causou uma onda de apreensão entre os locais. Não era de se esperar diferente, na
cada detalhe dava um pouco de vida aos cômodos.
medida em que esse não era o plano inicial. Os maiores temores manifestados por moradores
eram de que seriam transferidos para o local provisório e ali esquecidos, jamais sendo removi-
Ao lado desse módulo, havia outros dois: um equipado apenas com os móveis e utensílios bási-
dos para as residências permanentes. Também havia o medo de que os módulos não tivessem
cos e outro totalmente vazio. As famílias foram levadas pela equipe social para conhecer os três.
dimensão para acomodar o mobiliário básico de uma casa.
Não apenas olhar, mas experimentar, sentar no sofá, circular pelo interior. Vivenciando o espaço,
Casa decorada: uma forma simples
de encantar as famílias reassentadas
e provar que era possível fazer dos
módulos verdadeiros lares
perderam o receio, projetaram uma nova vida, saíram animadas com a mudança. O boato de
Módulo decorado
que o espaço seria insuficiente para comportar uma família de até quatro pessoas dissipou-se.
A experiência da unidade decorada foi um sucesso. Além de comprovar a possibilidade de rece-
Os trabalhos de terraplenagem do Canoas Minha Terra II, contíguo ao espaço destinado à Vila
ber as famílias, reforçou o vínculo entre a equipe social e a comunidade. A maioria saiu satisfeita
de Passagem, ajudaram a aplacar o medo de esquecimento das famílias no espaço provisório.
da visita e com vontade de se mudar. Não foi nada planejado, mas o fato de as visitas terem
Já a insegurança com relação ao tamanho da unidade habitacional foi vencida com criatividade
ocorrido durante os rigores do inverno gaúcho ajudou. A Vila do Dique está situada na várzea,
pela equipe social. Diante de tantas dúvidas, a Gestão Ambiental da BR-448/RS decidiu mobiliar
sobre área alagadiça. Quando chove e faz frio, a umidade penetra pelo assoalho das casas. Uma
um dos módulos, para que servisse de exemplo e modelo aos futuros moradores. A ideia não se
casa com maior isolamento térmico, telhado sem goteiras e piso impermeável é com o que as
resumiu à colocação de sofá, cama, mesa, cadeiras, geladeira e fogão. Era preciso provar que a
famílias sonham no inverno.
80 Um novo caminho Uma nova vida
A Vila de Passagem
81
A infraestrutura
tos, avisar familiares, solicitar dispensa no trabalho e até mesmo se preparar psicologicamente.
Além disso, a prefeitura de Canoas emitiu atestados de que os moradores participaram do pro-
“Esse projeto da
Vila de Passagem
foi muito bom
para o nosso povo.
Agora temos tudo
na mão. Mudou
A infraestrutura da Vila de Passagem ia além dos módulos e ruas internas. Toda cercada, com
cesso de mudança, para que os transferidos pudessem justificar ausência em seus empregos,
portão de entrada, vigiado 24 horas por segurança particular, o local tem algumas caracterís-
além da falta dos filhos na escola.
ticas de condomínio fechado. Uma pracinha para as crianças, brinquedoteca, centro comunitário, salas para cursos, território digital com acesso à internet e campo de futebol são espaços
Também com a participação da Comissão de Obras, foram definidas regras para a mudança.
de lazer. Um galpão de reciclagem, baia para cavalos, espaço para estacionamento de carros
Atendendo a pedido da comunidade, ficou estabelecido que cada módulo habitacional abri-
completam a estrutura comum. Além disso, a equipe social intensificou ali os serviços presta-
garia até quatro pessoas. Casas que na Vila do Dique abrigavam cinco ou mais moradores, por-
dos à comunidade. A reunião das famílias em um condomínio comum, inicialmente uma solu-
tanto, dariam direito a duas unidades na Vila de Passagem. Quem tinha comércio no Dique re-
ção emergencial, se mostraria um poderoso catalisador do processo de formação de cidadãos
ceberia um módulo para sediar seu negócio – casos especiais seriam analisados pela comissão.
participativos e preparação dos moradores para a vida nas moradias definitivas.
VIla de Passagem: primeira etapa de
uma nova vida
muita coisa. Estou
feliz. Solucionamos
nosso problema de
saúde pública, não
tínhamos água e
nem luz própria e
de qualidade, nem
segurança,transporte
coletivo e assistência
Uma nova vida
As famílias que se mudariam para a Vila de Passagem foram mapeadas de acordo com as previsões de evolução da construção da rodovia. Teriam de sair não apenas as que seriam alcançadas
pelo canteiro de obras, mas também as localizadas muito perto dele, já que a simples proximidade do bate-estacas era capaz de causar danos estruturais às frágeis moradias da Vila do Dique.
Nem todas as 300 famílias se mudariam ao mesmo tempo. Por isso, para a operação da Vila
de Passagem, é necessário um constante diálogo entre os construtores do Lote 3, a Gestão
Ambiental e a prefeitura. É o ritmo de construção de cada trecho da estrada que define quem
de saúde.”
deve sair com urgência dos diques. Embora se pudesse planejar boa parte da operação, em
Helena Mousquer,
ex-moradora da Vila do Dique
afetadas, há mudanças de curso. Para evitar um impacto ainda maior na vida dos moradores
um processo que envolve ao mesmo tempo obras de engenharia civil e a rotina de famílias
a serem removidos, por meio da Comissão de Obras, a comunidade apresentou demandas.
Delas, surgiram regras para o momento da mudança. Entre as solicitações acatadas estava a de
que nenhuma família iria para a Vila de Passagem sem ser comunicada com um mínimo de 15
dias de antecedência. Era o tempo necessário para se planejar, arrumar malas, acomodar objeFoto: Eduardo Rocha
82 Um novo caminho Uma nova vida
A Vila de Passagem
83
Planejando a mudança
(além de 12 caixas de abelha), sendo os mais comuns cães, gatos, galinhas, bovinos e cavalos.
A estatística informava que 112 famílias possuíam equinos, que desempenhavam um papel es-
Para que não houvesse surpresas no dia do deslocamento, a equipe social atualizou, mais
sencial na economia doméstica, por servirem de tração para as carroças nas quais os catadores
uma vez, o cadastro de todos que iriam para a Vila de Passagem, acrescentando informações
coletam o lixo da cidade.
essenciais, como quantidade exata de móveis e de animais, entre outras. As residências que
contassem com número de móveis maior do que a capacidade do módulo teriam o exce-
Na mudança para a Vila de Passagem, ficou definido que cada família poderia levar no má-
dente guardado em uma unidade destinada a depósito. Antes de armazenada, cada peça
ximo um cavalo, a ser alojado em baia específica. Todos os equinos receberam um chip de
Cadastro de
animais na
Vila do Dique
recebeu uma etiqueta, sinalizando o proprietário.
identificação, como forma de manter o controle sobre o animal e dar mais segurança para os
Galinhas: 2.448
donos, anteriormente habituados a mantê-los praticamente dentro das casas por medo de
A transferência dos animais mereceu atenção especial. Embora o Plano Diretor de Canoas im-
os terem roubados. Cães e gatos também receberam microchips de identificação, além de
possibilite, em tese, a criação de animais de produção, a Vila do Dique é repleta deles. Ao
serem revisados, vacinados e receberem medicações antivermes e outras necessárias. Tudo
todo, na atualização cadastral, foram mapeados nada mais, nada menos do que 4.055 animais
isso foi feito pelo Setor de Zoonoses e Centro de Bem Estar Animal da Prefeitura de Canoas.
Cães: 781
Foto: Divulgação PMC
A mesma equipe comandou um processo de castração de animais.
Gatos: 328
Cavalos: 196
A logística do deslocamento
Patos: 90
Bovinos: 74
Caprinos: 41
A mudança para a Vila de Passagem envolveu uma logística complexa. Para cada família
Suínos: 40
deslocada, era necessário um caminhão de mudança, com motorista e quatro trabalhadores
Pássaros: 26
para carregar os móveis, equipe social, um automóvel ou van para transportar os moradores,
Coelhos: 13
uma equipe da Guarda Municipal para evitar quaisquer conflitos, que, na prática, nunca exis-
Ovinos: 13
tiram, técnico e fiscal da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação e uma equipe
Gansos: 5
do Centro de Bem-Estar Animal da prefeitura de Canoas, para levar os bichos de estimação.
Abelhas: 12 caixas
Cada família transferida tinha um caminhão exclusivo – um cuidado a mais para evitar que
móveis de duas famílias se misturassem e se extraviassem. A equipe social era dividida em
duas, com uma parte apoiando a saída da Vila do Dique e outra realizando a recepção na
Vila de Passagem. Quando havia crianças envolvidas, elas chegavam no local e eram imediatamente encaminhadas à brinquedoteca, onde eram entretidas com atividades lúdicas,
enquanto os adultos se envolviam na preparação da nova morada e recebiam as orientações
Mais de 4 mil animais foram cadastrados; cães, gatos e cavalos receberam chips de identificação
84 Um novo caminho Uma nova vida
necessárias.
A Vila de Passagem
85
Nos tempos de trabalho mais intenso, o contingente de trabalhadores envolvidos, que não
munidade. Mas a urgência da mudança dava-se mesmo pela proximidade do bate-estacas,
raro superava vinte pessoas divididas em duas equipes, realizou até 14 mudanças por dia. Nas
que chegava a derrubar copos das moradias próximas e ameaçava a estrutura das já frágeis
transferências, a equipe social acompanhava de perto cada família. O processo de mudança
casas às margens do Dique. Ederson já se prevenira escorando as paredes laterais da casa
costuma ocasionar diversas reações. Deixar um local no qual se habitou por anos, para ir para
com barras de madeira.
“A vida na Vila
outro, ainda que em melhores condições, não é simples. Em muitos casos, as famílias se emo-
de Passagem é
cionaram. Ampará-las e evitar quaisquer inseguranças, prestando todos os esclarecimentos
Ele e Lisiane eram colegas de colégio quando se apaixonaram. O rapaz tinha 17 anos, e ela, 16,
maravilhosa. Lembro
nesse momento, é fundamental. No entanto, é inevitável que os próprios integrantes da equi-
quando foram morar juntos, mudando-se para uma casa próxima à que ele sempre habitou com
pe também se sintam tocados emocionalmente, mesmo quando preparados para a situação.
a família, no bairro Rio Branco, contíguo à Vila do Dique. A residência do casal tinha cerca de 40
Pequenos gestos das famílias emocionaram a todos, como o de uma dona de casa que fez
metros quadrados e ficava bem em frente a uma engarrafadora
questão de encher um vaso com terra da Vila do Dique e nele cultivar uma planta e levá-la
de gás liquefeito de petróleo, responsável pelo cheiro caracte-
para a Vila de Passagem. Foi uma forma de ter na nova casa um pouco da história de anos e
rístico de gás de cozinha com o qual os vizinhos se habituaram
anos de vida na antiga.
a conviver. A instalação de luz e de água foi o dono mesmo que
daquele dique sem
luz e sem água, das
enchentes: as roupas
boiando, e, quando a
água baixava, ficavam
as sanguessugas, os
ratos, os sapos e as
aranhas. Não tem preço
chegar em casa e ter
providenciou. Como todos os outros vizinhos, usou um fio para
Em todas as mudanças, o dono era convidado a acompanhar seus pertences. Só quem podia
puxar energia da rede pública, disponível a 80 metros de distân-
tocar nos objetos carregados eram os proprietários e os operários. Pequenas regras como essa
cia, do outro lado do valão que beira o dique e corre nos fundos
são importantes para que, se qualquer problema acontecer, as responsabilidades de cada par-
da sua casa. Nas primeiras instalações, ladrões de cobre rouba-
te estejam bem delimitadas. O papel da equipe social na mudança é registrar, com fotos ou
ram a fiação. Até que Ederson irritou-se. Escalou o mais alto que
vídeo, orientar e dar suporte à família. Como a mudança é um processo potencialmente tenso
pôde no coqueiro próximo ao poste de luz e ali prendeu o fio.
um chuveiro quente
e traumático, é normal que a emoção aflore. É indispensável, portanto, um acompanhamento
para tomar banho.
permanente das famílias realocadas nesse momento.
Não quero que meus
filhos passem o que eu
passei.”
Fátima da Silva,
ex-moradora da Vila do Dique
O problema com os larápios estava resolvido. Mas havia outros, como a ligação de água da casa. Naquele trecho da Vila
Quando o caminhão da mudança estacionou em frente à casa do gari Ederson Santos e da
do Dique, os moradores também abastecem suas torneiras
dona de casa Lisiane Rogoski, em um dia ensolarado do inverno gaúcho, era o fim de quase
ligando-as irregularmente na rede hidráulica pública. Antes de
uma década de muitos contratempos enfrentados na Vila do Dique. A transferência para a
chegar às casas, o encanamento ilegal cruza o valão. Quando chovia, o nível desse mesmo cór-
Vila de Passagem se deu com a chegada da obra da rodovia, que transformava a rotina da
rego que recebe o esgoto das casas costumava cobrir os canos e mangueiras responsáveis por
comunidade. No próprio dia da saída, o caminhão-baú que levava os móveis da família dis-
abastecer lares como o de Ederson. Como muitas dessas ligações eram furadas, a água que saía
putava espaço no dique com uma imensa carreta carregada de estacas de concreto destina-
das torneiras tornava-se um misto da que corre na rede pública e da que corre no valo.
Ederson Santos derrubou uma
parede da antiga casa para fazer
passar um armário na mudança:
ela não deixaria saudades
das à construção da elevada da BR-448/RS, cada uma com 19,6 metros de comprimento e 12
toneladas. O transporte das barras gigantes, por um guindaste, até a área da obra, localizada
Ederson conta isso enquanto observa o córrego poluído pela janela dos fundos de casa. No
no outro lado da rua, era apenas uma das atividades que passavam a atrair a atenção da co-
meio dele, mostra o que outrora foram dois banheiros de sua casa. Restaram apenas as pala-
86 Um novo caminho Uma nova vida
A Vila de Passagem
87
fitas que os suportavam. Mal fixados na terra molhada, o resto desabou. Toda a casa, aliás,
A senhora reparou em alguma coisa no banheiro? Reparou nestas duas cordinhas?
vivia ameaçada pela irregularidade do terreno alagadiço. Certa vez, afundou quase um metro,
− Nunca vi descarga assim − respondeu a dona de casa.
aproximando-se do valão. Foi quando o dono recorreu a um macaco hidráulico para elevá-la.
− Isso é para economizar água. Lá no dique, a senhora não pagava água e luz. Aqui, também não
O esgoto a céu aberto aos fundos da residência também foi responsável por mais uma dor de
vai pagar. Mas, nas casas definitivas, sim. Então, a gente orienta para ir se acostumando. A cordinha
cabeça para a família: os ratos. Ederson e Lisiane até haviam comprado um berço para a filha,
da direita despeja três litros, a senhora usa para o xixi. A outra tem oito litros, usa para o cocô.
Ágata, de um ano e um mês na data da mudança, que, até o final do ano, ganharia um irmão.
− E se eu puxar errado?
Os dois preferiam, no entanto, que o bebê dormisse na cama do casal, junto deles, com medo
− Não vai estragar, mas a senhora não vai ter economizado. Outra coisa, a senhora tem uma fi-
dos roedores que invadiam a casa à noite.
lhinha. A gente orienta para que cuide as crianças, para que não atirem fralda e outros objetos no
vaso. E cachorro, a senhora tem?
Para retirar todos os móveis do casal, os operários da mudança precisaram se esgueirar na
− Tenho, sim, o Mau-Mau.
estreita escadaria que ligava a residência ao topo do dique. Havia, no entanto, um roupeiro
− Então, vou dar um conselho, bota um portão para ele ficar preso.
que não passava no espaço da porta. O gari logo encontrou uma saída. Vestindo tênis, calça
de abrigo e moletom, agarrou um pé de cabra e se pôs a golpear a parede frontal da casa, de
E, assim, as orientações para os recém-
madeira. Trinta minutos e algumas centenas de golpes depois, não sobrava uma tábua sequer.
-chegados se seguiam, até a entrega das
A casa não deixaria saudades.
regras de convivência da Vila de Passa-
Mudança para a Vila de Passagem
incluiu a adoção de novas regras de
convivência pelos moradores
gem, elaboradas pela STE S.A. e prefei-
Bem-vindos à Vila de Passagem
tura de Canoas com a participação da
comunidade por meio da Comissão de
Obras. Essa conversa inicial envolvia mui-
Lisiane, a filha Ágata e o bebê que ela carregava no ventre foram com o restante dos
tas vezes aspectos básicos, como a utili-
móveis para a Vila de Passagem. Lá, foram recepcionados por uma representante da pre-
zação correta do chuveiro ou a necessida-
feitura, que administra o local, e pela equipe da Gestão Ambiental. Quando uma família
de de instalar o botijão de gás na rua, por
chegava, todos os equipamentos eram testados na presença do novo morador: luzes,
segurança. Em se tratando de uma popu-
torneiras, descarga, chuveiro. Se algo estivesse estragado, já se comunicava aos adminis-
lação oriunda de local onde uma parte
tradores municipais para que providenciassem o reparo. Os detalhes sobre a construção,
das casas não possuía banheiro, não era
o local mais adequado para a colocação segura do fogão, assim como outras orientações
preciosismo. De fato, havia famílias que
úteis eram informados já nesse momento da chegada, quando também eram dadas as
precisaram aprender regras básicas de hi-
primeiras orientações sobre sustentabilidade. Como fez com cada um dos novos mora-
giene. Nesse sentido, a Vila de Passagem
dores, uma das integrantes da equipe de educação ambiental explicou o funcionamento
desempenhou um papel fundamental na
do vaso sanitário a Lisiane logo no primeiro contato:
transição para a nova realidade.
88 Um novo caminho Uma nova vida
Foto: Andrea Weschenfelder
A Vila de Passagem
89
Regras de convivência
Vila de Passagem
• Conviver em harmonia com familiares e vizinhos, sendo sempre solidário e educado;
• Não desperdiçar água e luz;
• Não são permitidas extensões (“puxadinhos”) em casas, baias, garagens etc.;
• As baias para cavalos deverão ser conservadas pelos donos, que devem mantê-las limpas,
bem como as carroças;
• As garagens são para carros e motos, sendo responsabilidade do dono cuidar do seu espaço,
mantendo-o limpo e não ocupando vagas dos outros;
• Preservar a área de lazer e mantê-la limpa: sujou, limpou;
• Manter o portão de entrada fechado;
• Ter cuidado com as instalações de gás, para evitar vazamentos e incêndios;
• Os animais de estimação deverão ser presos com correntes, dentro dos pátios;
• Não colocar lixo nas vias da Vila de Passagem, nem queimá-lo. Usar as lixeiras coletivas;
• Não armazenar materiais para reciclagem fora do galpão de reciclagem;
• Lembrar sempre que a educação gera educação, e bom senso gera harmonia;
• O auditório será usado coletivamente para oficinas, reuniões e festas comemorativas, como
Dia da Criança, Páscoa, Natal, Ano-Novo etc., sendo proibido o consumo de bebidas alcoólicas;
• Não fazer barulho entre as 22h e 8h.
Foto: Andrea Weschenfelder
90 Um novo caminho Uma nova vida
A Vila de Passagem
91
Nadiles na Vila de Passagem
já foi um alívio. Aos poucos, Nadiles adaptava-se
ao novo lar. Passou a frequentar os cultos evangé-
Em meados de 2011, a situação da casa de Nadiles na Vila do Dique ficou insustentável. Cada
licos celebrados segundas e quintas-feiras à noite
vez que caminhava, ela sentia como se estivesse pisando em ovos. Tinha de cuidar para não apoiar
no auditório comunitário da vila. Não gosta tanto
o pé nas tábuas soltas. Foi então que pediu ajuda à Defesa Civil e também manifestou à equipe do
quanto da igreja que frequentava anteriormente,
Programa de Reassentamento da BR-448/RS o desejo de se mudar para a Vila de Passagem.
onde era a segunda dirigente do coral e da qual
Devido à situação precária da moradia da família, o pedido foi aceito, e a mudança, mar-
se afastou devido à distância, mas a participação
cada para as 14h30min dia 18 de novembro de 2011. Naquele dia, às 7h30min já estava todo
ajuda a se manter em dia com a religião. Aos do-
mundo de pé na casa de Nadiles. O marido Arci saíra mais cedo para descarregar caminhões
mingos, pegou o hábito de ir à pracinha comuni-
em uma empresa próxima. É esse seu trabalho. Quando tem carga, ligam e chamam. Não há
tária com os filhos e tomar chimarrão acompa-
carteira assinada. O pagamento é por carregamento. Naquele período, o serviço estava parti-
nhada de outros pais e amigos.
cularmente escasso. Rendia cerca de R$ 300 por mês. Ainda tinha a pensão dos filhos, cerca de
Os filhos foram os que mais rápido se adap-
um salário mínimo, mas, no final do mês, nas palavras de Nadiles, “não sobrava dez centavos
taram. Em especial Kaynan. Dava para ver pela
para comprar um ovo sequer”.
alegria do menino ao pular corda com os ami-
A mãe e os quatro filhos ficaram em casa no dia da mudança – os três meninos ajudando a
gos em uma manhã de setembro de 2012. En-
embalar os pertences da família. As roupas foram ensacadas em lençóis e cobertores amarrados
quanto isso, ao som de música gospel, a mãe
na extremidade. Boa parte da louça foi acomodada dentro da banheira da filha Samyra, de quatro
cozinhava uma galinha no fogão de seis bocas. A cozinha fica no mesmo módulo em que ela
anos. Os alimentos foram colocados em sacarias de farinha. Naquele dia, Nadiles mal almoçou, de
dorme, separada da área de dormitório por um roupeiro. As paredes da casa são repletas de
tão nervosa. Quando o caminhão da mudança e os operários começaram a transportar a carga,
trabalhos feitos pelos filhos na escola, além de presentes dados por eles nos dias dos pais e das
a família pôs em curso a própria logística. Renan, o filho de 14 anos, iria de bicicleta, puxando a
mães, como o quadro que diz: “Mãe, existo porque sou fruto do teu amor. Obrigada por seu
coleira do cachorro da família, Preto. Marcos, de 19, e Nadiles acompanhariam a mudança e cui-
carinho. Eu te amo”.
dariam de Samyra. Kaynan, de nove anos, ficaria com o pai, que chegou às 15h e se encarregou da
Samyra dorme na cama com os pais. No módulo ao lado, sempre bagunçado, ficam os três
retirada dos fios da casa. O material, de cobre, foi vendido para recicladores e, segundo Nadiles,
meninos. Dormem em um beliche e uma cama, separados por um roupeiro da área de estar, onde
garantiu “a carne e o refrigerante para os churrascos no Natal e Ano-Novo”.
ficam o sofá e o televisor, conectado a uma antena que recebe a programação via satélite, median-
O clima era tórrido em Canoas naquele final de novembro. Ao chegar na Vila de Passagem
te uma mensalidade de R$ 49 por mês.
com a mudança, às 16h30min, Nadiles, suada, se deparou com a vizinha do módulo ao lado e
Mas a parte preferida de Nadiles é o pequeno pátio em frente à casa – uma área de menos de
pediu de cara um copo d’água. Começava ali, com Maria, uma de tantas novas amizades que
20 metros quadrados que ela usou para fazer uma horta. Ali, entre bicicletas, os tanques de lavar,
ela faria no local.
o cachorro Preto e as roupas no varal, plantou, em vasos e no chão, poejo, salsinha, erva-cidreira,
A família, por ter seis pessoas, foi instalada em dois módulos contíguos, de 18 metros quadrados
cada. Ainda assim, é um espaço pequeno. Mas só o fato de pisar em um chão de cimento na casa
92 Um novo caminho Uma nova vida
Em vasos e no chão do pátio,
Nadiles plantou temperos, chás,
orquídeas e até um pé de algodão
chuchu, manjerona, onze-horas, cravinho, orquídeas e até um pé de algodão. Planeja transportar
tudo para a casa nova, para onde se muda em 2013.
A Vila de Passagem
93
Os desdobramentos
na Vila de Passagem
Locais
O respeito às relações de vizinhança estabelecidas no Dique ao se acomodar uma família na
Vila de Passagem não é garantia de satisfação para todos os transferidos. A nova forma de morar, com os módulos lado a lado, trouxe alguns problemas. Houve casos de famílias trocadas de
módulo após solicitações, motivadas normalmente por desavenças com vizinhança.
Uma das metas da equipe social é orientar os moradores para que consigam, sozinhos, resolver
conflitos sem utilização da violência. Os atendimentos feitos no escritório de assistência social
montado na Vila de Passagem demonstram que muitas rixas entre vizinhos eram questões administráveis com diálogo e negociação. Em muitos casos, a tentativa de resolver os problemas
na base do grito e ameaças precedia qualquer tentativa de conversa e entendimento. Assim
era a cultura local. Contribui para isso o fato de a maioria das famílias jamais ter vivido em
condomínio ou sujeita a quaisquer regras formais de convivência. Embora houvesse regiões na
Vila do Dique onde as casas eram bastante próximas, praticamente coladas, como regra geral,
a proximidade na Vila de Passagem era muito maior.
Foto: Eduardo Rocha
4
O importante nesta fase inicial, quando todos estão se adaptando a uma nova forma de viver,
seja em local de passagem, seja em moradias definitivas, é estar aberto para escutar todas as
demandas da população. Esse era o papel do escritório de atendimento social montado em
um dos módulos da Vila de Passagem. A prefeitura de Canoas criou a coordenação da Vila de
“Antes, nós íamos
Passagem, um escritório para servir de interface entre moradores e prefeitura. No local, para
conversas reservadas, um assistente social ficava à disposição para receber as demandas da
atrás da população
população. E elas eram diversas: problemas de agressão familiar, uso de drogas, doenças, de-
para ajudar. Depois,
savenças entre vizinhos originadas de brigas entre crianças, excesso de barulho, cachorro solto,
eles passaram a
entre tantas outras. O que não era alvo de atuação da equipe social terminava encaminhado
para órgãos competentes, como Conselho Tutelar, Secretaria de Saúde, entre outros. Além
confiar no nosso
do encaminhamento, as situações continuavam sendo monitoradas pelos assistentes sociais.
trabalho e vir nos
O histórico dos atendimentos no escritório era rapidamente recuperável mediante consulta
procurar. A gente
à pasta pessoal de cada morador na Vila do Dique, mantida pela equipe social, onde ficam
registrados os dados relativos ao indivíduo e os relatórios das interações.
percebe uma
grande mudança
positiva na vida
A mudança para a Vila de Passagem reforçou ainda mais os laços entre a equipe social e a
comunidade. Diariamente, os assistentes sociais e educadores ambientais do Programa de Reassentamento Populacional realizavam rondas pelas ruas do local, visitando casas, ouvindo
das pessoas com a
demandas, incentivando práticas de higiene, disseminando conteúdos de educação ambien-
social relata que não há dificuldades em fazer o contato com os moradores. Abrir as portas
vinda para a Vila de
tal. Os atendimentos na Vila do Dique continuavam, mas, com a relação diária na Vila de Pas-
para transformação, sim, é difícil.
Passagem.”
Letícia Coradini Frantz,
engenheira civil, coordenadora
setorial da Gestão Ambiental da
BR-448/RS
Atuação da equipe social na Vila
de Passagem: contato frequente
foi fundamental para conquistar
confiança dos moradores
sagem foi que a transformação na vida das pessoas e a inclusão social ficaram mais evidentes.
A experiência demonstrou que, quanto mais sólidos e contínuos os laços da equipe social com
Um dos exemplos ocorreu quando do convite à população para assistir a uma peça de te-
a população, melhores os resultados do trabalho de ressocialização.
atro no centro da cidade, promovida pela distribuidora de energia elétrica AES Sul. Assistir
a apresentações artísticas e às vezes até deslocar-se até a área central não faz parte do coti-
Contatos
diano da população. Seduzi-los, envolvê-los para que vivam novas experiências e deixem-se
surpreender era o grande desafio. No caso do teatro, até mesmo aqueles adultos que muito
resistiram mostraram-se absolutamente fascinados com a apresentação, entregaram-se ao
No entanto, não basta apenas manter contato com a população. O sucesso do trabalho pode
momento lúdico. Esse encantamento é importante na medida em que estimula a abertura
ser medido pela capacidade de abrir horizontes para a comunidade, fazê-la aceitar mudanças
ao novo. E o novo pode ser uma vida com maiores possibilidades e oportunidades para
que proporcionem melhor qualidade de vida, maior autonomia, novas experiências. A equipe
cada um dos beneficiários do Programa de Reassentamento Populacional.
96 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
97
Comissão da Vila de Passagem
Foi necessária a criação de uma comissão específica da Vila de Passagem, uma equipe de moradores que, em conjunto com a prefeitura de Canoas e a equipe da STE S.A., estabelecesse uma
rotina de diálogo e resolução de conflitos. Muitas foram as vezes em que essa comissão organizou mutirões de limpeza, reuniões específicas e assumiu tarefas de coordenação de atividades.
Eram 18h30min de um dia de semana. Um grupo forma uma roda no salão do centro comunitário
da Vila de Passagem, e uma integrante da equipe do Programa de Reassentamento da BR-448/RS
lembra a pauta do dia: quem vai fazer os bolos? De que ingredientes precisam? Vai ter pipoca?
Como alguns ainda esperavam que ela mesma desse as respostas, referentes à festa junina da comunidade, a representante da Gestão Ambiental apressou-se em deixar claro:
− Eu não estou aqui para organizar. Vou no máximo orientar para que vocês organizem a festa!
O grupo logo entendeu o recado. Uma líder comunitária assumiu o comando da reunião e,
em meia hora, as tarefas estavam divididas. As primeiras festas da comunidade da Vila de Passagem, no Natal de 2011, Carnaval e Páscoa de 2012, tiveram grande participação da equipe
social na organização. A partir daquela festa junina, o foco era estimular a própria comunidade a tomar as rédeas de seus eventos. Deu certo, e a festa de Dia das Crianças foi totalmente
organizada pela Comissão da Vila de Passagem.
Valorizar o poder das lideranças e organizações comunitárias locais é promover a cidadania e
a inclusão social das famílias. Por isso, a formação da Comissão, com seis mulheres e quatro
Momento de mudança e de solidariedade
As condições precárias de vida de
famílias transferidas da Vila do Dique para a Vila de Passagem mobilizaram os profissionais encarregados
de fazer as mudanças. Ao transportar os pertences das famílias, eles
notaram que sobravam bens para
algumas famílias, que aproveitavam
a mudança para se desfazer de móveis e objetos, enquanto faltavam
para outros. Foi assim que passaram
a ficar atentos às sobras e necessidades, de forma a repassar itens
deixados para trás para famílias
necessitadas. Um morador transferido que não possuía cama ganhou
a sua − sobra de uma família que
abandonara o móvel − devido a essa
mobilização da equipe.
Desacostumados a lidar com situações de vulnerabilidade social,
esses encarregados da mudança
chocaram-se com realidades que
presenciaram. Uma geladeira repleta
de carne apodrecida e um casal de
bebês gêmeos dormindo perto do
lixo, tapado de insetos, são cenas
que ainda estão na memória dos trabalhadores. Assim como os momentos de brincadeiras com a criançada
transferida para a Vila de Passagem,
com quem jogavam bola no campo
de futebol improvisado no local.
Lidando diariamente com a transferência de famílias, os carregadores
de mudanças também se mostraram
gratificados ao ver a transformação
na vida de algumas famílias levadas
para as casas provisórias. Muitos
passaram a adotar hábitos de higiene
- como banhos diários, lavagem de
roupas - que não mantinham na Vila
do Dique por falta de infraestrutura
adequada. No relato de um dos
operários, após a mudança para a
Vila de Passagem, muitos moradores
pareciam nem ser os mesmos dos
tempos de Vila do Dique.
Saúde
homens, foi incentivada pela equipe social. O grupo participou ativamente da organização
de eventos, das discussões relativas à estrutura local e do gerenciamento de atividades, como
A prefeitura de Canoas desenvolveu um planejamento especial na área da saúde, voltado aos
distribuição de peças de roupa doadas para as famílias carentes. Em reuniões lideradas pela
moradores do novo local. As ações focaram tanto a população quanto os animais domésti-
prefeitura de Canoas, os problemas decorrentes do novo formato de moradia eram expostos
cos. Pofissionais da área mantinham moradores informados acerca de hábitos de higiene pes-
e debatidos, para, de forma conjunta, encontrar soluções junto ao poder público ou pela
soal e do meio em que vivem. A Unidade Móvel de Saúde da Prefeitura de Canoas prestava
própria comunidade.
atendimentos na Vila de Passagem a cada 15 dias, nas áreas de odontologia, clínica médica
98 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
99
Foto: Andrea Weschenfelder
Segurança
e orientações de higiene. Além
A segurança no local provisório também era uma preocupação. Uma série de ações foram exe-
disso, a Secretaria Municipal
cutadas para a manutenção da ordem no interior da Vila de Passagem. Para tanto, a prefeitura
de Saúde também promovia
de Canoas disponibilizou dois vigias patrimoniais no local – eles controlavam o fluxo de entra-
atividades voltadas para o pú-
da e saída de pessoas, além de realizar rondas de moto dentro do loteamento provisório. Para
blico infantil sobre cuidados
dar apoio a esse trabalho, a Guarda Municipal realizava rondas periódicas na Vila de Passagem,
com a saúde.
além de participar de reuniões e eventos comunitários. Desta forma, tanto as equipes quanto
as famílias se sentiamm mais seguras para realizar as ações necessárias.
As
ações
bem-estar
direcionadas
animal
ao
tinham
A Secretaria de Segurança também procurou se fazer presente no cotidiano das famílias, tra-
como propósito o controle da
zendo às crianças da Vila de Passagem atividades lúdicas como o Teatro de Fantoches da Guar-
população canina dentro da
da Municipal, um projeto existente no município que tem por propósito tratar temáticas tais
Vila de Passagem com vistas
como consumo de drogas e violência escolar.
a garantir melhores condições
Crianças aprendem como cuidar da
higiene para manter uma boa saúde
de higiene a toda a comuni-
Além disso, as questões ligadas à segurança na Vila de
dade. Quando da entrada das
Passagem são tratadas dentro do Grupo de Gestão In-
famílias no local, todos os ca-
tegrada, criado pela prefeitura de Canoas, com o pro-
chorros foram chipados para
pósito de discutir questões ligadas à segurança pública
que assim se pudesse ter al-
entre diversos agentes de segurança, tais como Brigada
gum controle de identificação
Militar, Polícia Civil, Bombeiros, Defesa Civil, subpre-
do animal, evitando com isso
feituras, PGM e outros.
Prefeitura de Canoas criou grupo de
gestão para discutir a segurança;
Guarda Municipal participou do cotidiano das famílias realocadas
as situações de abandono recorrentes dentro dessa pauta.
Desde meados de 2012, a Vila de Passagem passou a
100 Um novo caminho Uma nova vida
Além disso, todos os moradores da Vila de Passagem que tinham interesse em
contar também com nove câmeras de monitoramento.
castrar seus animais receberam esse serviço gratuitamente. Os animais eram co-
Atendendo a uma demanda da população da Vila de
letados pela equipe de Bem-Estar Animal da Secretaria Municipal de Saúde, le-
Passagem, estas câmeras eram interligadas ao sistema
vados para o procedimento de castração e, na sequência, entregues novamente
de videomonitoramento da Secretaria de Segurança
às famílias, que recebiam orientações dos técnicos para os cuidados dos animais.
Pública e Cidadania, permitindo aos agentes de segu-
Foram castrados 70 bichos.
rança intervir com maior agilidade se necessário.
Os desdobramentos na Vila de Passagem
101
Foto: Andrea Weschenfelder
A mudança nas escolas
A transferência das famílias para a Vila de Passagem teve reflexos no comportamento da população em outros palcos da vida social. Nos colégios da região, os professores sentiram a
transformação. A professora Gislaine de Souza, da Escola Municipal Rui Cirne Lima, de Canoas,
leciona para dezenas de alunos envolvidos no Programa de Reassentamento Populacional.
Quando houve a mudança da Vila do Dique para a Vila de Passagem, a primeira alteração de
“As crianças
comportamento percebida foi nos hábitos de higiene. Com chuveiro e banheiro em casa, vi-
andavam curvadas,
vendo longe do lixo e recebendo orientações permanentes da equipe de educação ambiental,
desanimadas. Hoje,
a meninada passou a se apresentar de banho tomado e com as roupas limpas. Isso também
contribuiu para outro ganho observado pelos educadores: a elevação da autoestima desses
estão de peito
alunos. Vivendo em moradias mais dignas e ainda sendo transportadas ao colégio por ônibus
estufado. Elas se
escolar, disponibilizado pela prefeitura de Canoas para os estudantes moradores da Vila de
renovaram. Estão se
Passagem, as crianças passaram a exibir orgulho no lugar de vergonha. A professora Gislaine
cita o caso de uma aluna da segunda série do ensino fundamental, a Geisi, de oito anos. Quan-
sentindo valorizadas.
do morava na Vila do Dique, era uma menina quieta, tímida. Ao se mudar para a casa provisó-
São parte desta
ria, ficou falante. O orgulho se manifestava a cada diálogo com a educadora.
conquista na vida
– Professora, a senhora é rica? – perguntou um dia Geisi.
dos pais.”
– Não.
Gislaine de Souza,
professora da Escola Municipal
Rui Cirne Lima, de Canoas
– A senhora mora em casa de rica?
– Eu não – repetiu Gislaine.
– Eu moro em casa de rica – contou a menina, referindo-se ao módulo da Vila de Passagem e emocionando a professora.
tal – foram realizadas em mais de 30 escolas na região de abrangência da Rodovia do Parque.
Entre junho de 2010 e junho de 2012, foram 770 encontros com 9,5 mil estudantes. Por meio
Os detalhes sobre a nova vida passaram a ser assunto em sala de aula. Principalmente as
da arte-educação, que utiliza o jogo e a brincadeira como formas de educar, a equipe da Ges-
atividades na brinquedoteca da Vila de Passagem. No espaço, além de brincar, os pequenos
tão Ambiental desenvolveu oficinas, palestras, hora do conto e plantios, alcançando de forma
tinham lições ambientais, que depois iam para debate em sala de aula. No ambiente escolar,
interativa as mais diversas idades, em um esforço contínuo para a criação de multiplicadores
esse tema também foi estimulado pela própria ação da equipe de educação ambiental. As
dessa consciência. Para o trabalho, foram desenvolvidos materiais didáticos especiais, como
ações de sensibilização junto a professores e alunos – parte do Programa de Educação Ambien-
um gibi com o João-de-Barro, mascote da Gestão Ambiental, como personagem principal.
102 Um novo caminho Uma nova vida
Morar em casas novas, tomar
banho todos os dias e usar
roupas limpas elevaram a
autoestima das crianças
Os desdobramentos na Vila de Passagem
103
Não são poucos os casos em que os diferentes Programas Ambientais se inter-relacionam, como
para o local coletivo o que tinham de melhor. Era uma forma de fazer com que se sentissem par-
esse, relativo à atuação nas escolas. A educação ambiental tem lugar na Vila do Dique e na Vila
te da construção da brinquedoteca, onde tinham acesso às atividades recreativas e educativas.
de Passagem, permeando o Programa de Reassentamento Populacional. Ao mesmo tempo, as
Pintar, recortar, colar, desenhar, cantar, dançar eram apenas algumas das atividades oferecidas.
atividades educativas voltadas à sustentabilidade desenvolvidas com as crianças são levadas
Ao terem a possibilidade de se entregar a uma atividade lúdica, as crianças abriam-se a novos
à escola pelos alunos ou pelo Programa de Educação Ambiental, gerando debate sobre meio
horizontes, nem sempre possíveis no cotidiano de “vida real” da Vila do Dique. Colorir, em espe-
ambiente, mas também reflexões sobre o próprio processo de reassentamento das famílias.
cial, mostrou-se uma das paixões dos jovens que passaram a frequentar o espaço. O mundo das
cores, o mundo do imaginário, é liberto nesse momento de pausa cotidiana da brinquedoteca.
Para que a mudança para a Vila de Passagem não interferisse nos estudos das crianças, a prefei-
Uma experiência comumente reprimida no dia a dia de famílias nas quais crianças muitas vezes
tura de Canoas manteve-se mobilizada desde o início do trabalho com a comunidade. As pri-
têm responsabilidades de adultos, devendo tomar conta das crianças ainda menores para que os
meiras ações consistiram em mapear as crianças e suas respectivas escolas com o propósito de
pais possam trabalhar e sustentar a casa.
viabilizar o acesso a estas, com o remanejo para escolas mais próximas do local de moradia ou
disponibilização do meio de locomoção quando dentro da Vila de Passagem. Ao mesmo tem-
Um dos momentos mais esperados na briquedoteca era a Hora do Conto, com estórias
po, as ações na área de educação também visam ampliar o número de adultos em programas
clássicas adaptadas para transmitir mensagens educativas. O dia de vestir fantasias, incor-
de educação tais como o Educação de Jovens e Adultos, principalmente entre os recicladores.
porar personagens, também era aguardado
Equipe de educação ambiental
promove atividades com as crianças
na Vila de Passagem
com ansiedade, trazendo novas experiênOutras ações do eixo educação foram desenvolvidas com eventos culturais, como o Encontro
cias para a meninada. Em todos os casos,
com o Escritor, atividade promovida pela Secretaria Municipal de Cultura na qual um escritor
enquanto brincavam, as crianças eram con-
era convidado a ler uma obra sua às crianças e brincar com elas. As crianças receberam a visita
vidadas a ser corresponsáveis pelo espaço.
do escritor Celso Gutfrend durante as atividades da Colônia de Férias 2013.
Diariamente, eram escolhidos, entre os
frequentadores do espaço, os ajudantes do
Brinquedoteca
dia. A atividade visava a estimular o senso
de responsabilidade de cada um sobre o espaço, preparando desde cedo os indivíduos
No turno em que não estavam na escola, as crianças transferidas para a Vila de Passagem tinham
para exercerem a cidadania.
a opção de realizar atividades na brinquedoteca. Inicialmente prevista para ocupar apenas um
módulo da Vila de Passagem, a brinquedoteca foi ampliada para dois módulos. Quando foi
A musicalidade também foi bastante explo-
instalada, a estrutura recebeu brinquedos da prefeitura de Canoas, além de alguns doados vo-
rada. No Carnaval de 2011, uma educado-
luntariamente por funcionários da STE S.A., que se solidarizaram com o trabalho da equipe am-
ra ambiental da equipe social formou uma
biental, e muitos outros levados pela comunidade, pelos recicladores e pelas próprias crianças
banda com instrumentos de brinquedo ou
moradoras da vila. A regra era, em vez de escolher os brinquedos que não usavam em casa, levar
improvisados: tambores de lata, chocalhos,
104 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
105
pandeiros. A iniciativa fez tanto sucesso que a educadora passou a utilizá-los ao chamar a
criançada para a brinquedoteca. Enchia um saco com os instrumentos e percorria as ruas da
Vila de Passagem. Cada criança que se juntava a ela começava a chacoalhar ou batucar. O
barulho alertava os demais, que prontamente também corriam para fora de casa. Antes das
brincadeiras se iniciarem, os pequenos formavam uma verdadeira banda puxada pela equipe
de educação ambiental. O bloco tinha seu ponto de chegada no pátio da sala de brincadeiras.
Era hora de lavar as mãos, sempre sob a orientação atenta de uma educadora ambiental. E não
bastava passar sabonete e colocá-las debaixo da pia. Era preciso esfregar a palma, o entrededos, as unhas, seguindo as orientações da educadora. A atividade ensinava à criançada hábitos
de higiene, ajudando também na prevenção de doenças, como a gripe A. O envolvimento das
Brinquedoteca na Vila de Passagem:
além da brincadeiras, lições de
higiene para as crianças
crianças com a equipe fez com que cerca de 40 crianças, de seis a 12 anos, utilizassem o espaço
Cineminha Ambiental
A existência de um centro comunitário na Vila de Passagem permitiu
a exibição de filmes para as crianças locais, na atividade batizada de
Cineminha Ambiental. Em média,
50 crianças participavam de cada
sessão.
Na projeção, vídeos divertidos e
educativos, tratando de assuntos
como preservação da fauna, higiene
pessoal ou saúde bucal. Quando
foi abordado esse último tema,
após a exibição, as crianças foram
reunidas para ter lições práticas de
escovação dos dentes, orientadas
por técnicos da Secretaria Municipal
de Saúde de Canoas.
Além disso, terminados os filmes,
as pautas foram discutidas com o
público presente, a fim de permitir
troca de impressões e melhor compreensão das mensagens.
Foto: Andrea Weschenfelder
diariamente.
Capacitação
A mudança para a Vila de Passagem também aproximou a população dos serviços públicos.
Presente não apenas na administração do local, a prefeitura de Canoas intensificou as ações
junto à comunidade no local. Um dos eixos de atuação foi no sentido de facilitar o acesso a
programas sociais e dar novas oportunidades de capacitação para o mercado de trabalho.
As ações visavam proporcionar ao público-alvo meios de se atingir melhor qualidade de
vida e independência, quer seja por meio de oficinas de capacitação profissionalizantes,
quer seja pelo acesso a políticas sociais tais como o Bolsa Família. Desde o início do trabalho, o município ofereceu oportunidades de formação com as Frentes Emergenciais de
Trabalho, do Pronatec, do Projeto Cidade da Solda, ou do Território Digital.
As Frentes Emergenciais de Trabalho são cursos profissionalizantes com seis meses de duração voltados para a capacitação profissional na área de serviços gerais, zeladoria condominial, jardinagem e azulejista. Já o Pronatec – Senai/Senac faz parte da política pública
Foto: Eduardo Rocha
106 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
107
federal na área, consistindo em cursos técnicos em diversas especialidades com inscrições
abertas o ano todo. Os cursos têm duração de até dois meses e capacitam seus participantes
para os seguintes ofícios: ajustador mecânico, auxiliar administrativo, recepcionista, vendedor, cabelereiro, cuidador de idoso, manicure e pedicure, costureiro, modelista, desenhista,
montagem e manutenção de computadores e operador de computadores.
O Projeto Cidade da Solda visava a propiciar o desenvolvimento regional e a qualificação dos
moradores da cidade. A partir de uma seleção baseada em critérios sócio-econômicos, essa
iniciativa capacitou 540 cidadãos canoenses como Soldador em Eletrodo Revestido. A assinatura do convênio entre Petrobras e o Instituto Integrar, bem como do termo de cooperação
entre prefeitura de Canoas, Senai e demais parceiros ocorreu em junho de 2012. O curso tem
carga horária de 240 horas e foi oferecido para turmas nos três turnos, com duração de três
meses cada ciclo. A capacitação técnica, bem como a certificação, é realizada pelo Senai.
Moradores da Vila do Dique e da Vila de Passagem entre 18 e 59 anos puderam participar.
Na própria Vila de Passagem, foi inaugurado, em junho de 2012, um espaço com 11 computadores. O local faz parte do projeto Território Digital, da prefeitura de Canoas, que tem por
objetivo oferecer cursos gratuitos de informática para jovens, principalmente, em situação de
vulnerabilidade social e com falta de oportunidades de acesso à informática e ao mercado
de trabalho. Além disso, o espaço ofereceu aos moradores da Vila de Passagem a oportunidade de realizar pesquisas e entretenimento na internet.
A sucata vira arte
Um dos símbolos do trabalho realizado pela Gestão Ambiental da BR-448/RS foi a exposição
“Que Árvore Você Quer para o Futuro? Não Faça do Lixo a Semente”. Ela foi composta de
quatro obras, denominadas Mundo Eletrônico, Mutação da Infância, Carona Perigosa e Nossa
Moradores da Vila do Dique e da Vila de Passagem participaram de curso para soldador promovido pela prefeitura de Canoas, Petrobras e Senai
108 Um novo caminho Uma nova vida
Pegada. Cada uma era formada por base de metal, fazendo as vezes de tronco e galhos, onde
foram pendurados objetos descartados ou achados no lixo.
Os desdobramentos na Vila de Passagem
109
As estruturas foram montadas pelo artista plástico e educador ambiental da BR-448/RS Eduardo
Nunes, com a participação de outros artistas plásticos e dos próprios recicladores do Dique.
Torradeiras estragadas, chuveiros elétricos queimados, teclados de computador, bonecas velhas,
latinhas de cerveja, sapatos furados e centenas de itens que haviam virado lixo – muitos encontrados na faixa de domínio da rodovia – ganharam outro significado. E ajudaram a sensibilizar
sobre problemas como violência no trânsito, violência infantil, destinação inadequada de resíduos sólidos e de lixo eletrônico. A instalação das árvores era acompanhada por uma exposição de
fotos captadas pela jornalista Andrea Weschenfelder durante os trabalhos da Gestão Ambiental.
Entre os diversos locais onde as obras foram apresentadas, está a Rio+20, conferência da Organização das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro,
em junho de 2012.
Artistas plásticos e recicladores,
juntos, fizeram arte a partir de lixo
Foto: Caco Argemi
Foto: Carlos Türck
110 Um novo caminho Uma nova vida
Foto: Andrea Weschenfelder
Governador do RS, Tarso Genro,
confere a exposição das criações
originadas no lixo reciclável
Instrumentos musicais
também foram produzidos a
partir de resíduos sólidos
Os desdobramentos na Vila de Passagem
111
Locais de exposição
As fotos nesta e na página ao
lado fizeram parte da exposição
“Que árvore você quer para
o futuro? Não faça do lixo a
semente”, que passou por Shopping Total (Porto Alegre), Shopping Canoas, Conselho Regional
de Engenharia e Agronomia do
Rio Grande do Sul, Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul,
Prefeitura de Sapucaia do Sul,
Prefeitura de Esteio, Trensurb,
Feira Internacional de Tecnologia para o Meio Ambiente
de Bento Gonçalves, Centro de
Convenções Ulysses Guimarães,
DNIT (Brasília e Porto Alegre) e
Rio+20, entre outros.
Fotos: Andrea Weschenfelder
112 Um novo caminho Uma nova vida
Fotos: Andrea Weschenfelder
Os desdobramentos na Vila de Passagem
113
Oficinas
Embora o empoderamento das moradoras assistidas pela
equipe social fosse uma das prioridades, também se buscou
Depois de um levantamento realizado na Vila do Dique sobre quais oficinas de capacitação os
oferecer atividades que atraíssem mais os homens, pouco
moradores estariam interessados em fazer, a equipe social passou a buscar parceiros para mi-
interessados nas oficinas de artesanato. A opção foi o pro-
nistrá-las. A primeira, oferecida pela própria STE S.A., responsável pela Gestão Ambiental, foi a
jeto Horta Solidária, uma parceria com a ONG Cooplantio
oficina de fuxico para mulheres.
Solidária, responsável por capacitar os interessados e doar
as sementes e todo o material necessário para o cultivo de
O artesanato com fuxico aproveita restos de tecido para criar ou customizar acessórios como
hortigranjeiros.
niqueleiras, bijuterias, bolsas, broches, entre outros. Além da mensagem ambiental de reaproveitamento do tecido, a capacitação buscou sensibilizar as alunas para a oportunidade de
renda gerada pela atividade. Outra oficina que atraiu o público feminino foi a de artesanato,
Galpão de reciclagem
Foto: Andrea Weschenfelder
Oficina de fuxico ensinou mulheres a
aproveitar restos de tecido
oferecida pela empresa Acrilex – Regional Sul, com mais de 35 inscritos. Na atividade, os alunos receberam noções básicas de pintura em tecido e vidro reciclado, utilizando as técnicas
Junto à divisa da Vila de Passagem com o terreno que recebeu um dos condomínios de moradias
de decupagem e craquelê. A tinta que sobrou foi doada para a brinquedoteca. Também na
definitivas, foi erguido um galpão de reciclagem. A estrutura começou a funcionar em dezembro
linha do artesanato, foram oferecidas atividades de transformação do lixo em embalagens de
de 2011 e permaneceu ativa após a desativação da área provisória. Fez parte de um dos objetivos
presente, cata-ventos, arranjos de natal e porta-retratos.
da gestão ambiental, que era proporcionar condições de vida e de trabalho mais salubres à população de recicladores da região.
O resultado dessas oficinas veio ao encontro de um dos princípios que nortearam os trabalhos do
Programa de Reassentamento: a valorização das mulheres, na trilha do Plano Nacional de Políti-
Na Vila do Dique, existiam os recicladores autônomos e aqueles que, de alguma forma, atu-
cas para as Mulheres. O documento aponta que atualmente as mulheres têm papel fundamen-
avam em conjunto. Os independentes, na maioria dos casos, trabalhavam com carrinhos de
tal na manutenção dos laços, na diminuição da violência e no aumento da escolaridade infantil
tração humana. Saíam pelas ruas de Canoas coletando na via pública, abrindo os sacos de lixo
nas classes populares. Com a disponibilização de atendimento social no escritório comunitário,
deixados nas calçadas para pegar o material reciclável ou recolhendo os resíduos de empresas,
onde os moradores da Vila do Dique e Vila de Passagem podem realizar atendimentos privativos,
condomínios, residências familiares – que são como clientes. Nesse caso, é comum que deem
e o estímulo a que a população exerça a cidadania, o Programa de Reassentamento Populacional
aos catadores o lixo misturado, seco e orgânico. A separação era feita depois, na própria Vila
registrou ocorrências que indicam o fortalecimento da figura feminina. Foram relatados casos de
do Dique, normalmente em local junto à residência, para evitar roubo de material. Os resíduos
mulheres que conseguiram denunciar o abuso que sofriam dos parceiros a ponto de romper com
sólidos têm valor, pois são vendidos pelos autônomos para atravessadores ou empresas de reci-
esse laço sem prejuízo na subsistência de sua família, conforme as garantias da Lei Maria da Pe-
clagem da região. O lixo orgânico vai para alimentação animal (galinhas, cavalos, porcos etc.) e
nha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Há mais
humana (quando se trata de sobras de mercado que perderam valor comercial, mas ainda não
de um relato de mulheres que voltaram a estudar. Além disso, mais da metade dos integrantes
apodreceram) ou é queimado, jogado fora ao fundo das casas, no mato, em arroios que com-
das comissões de Obras e da Vila de Passagem são mulheres.
põem o Delta do Jacuí. Os restos de comida atirados nos terrenos eram alimento farto para ratos,
114 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
115
Esse processo de separação e descarte de materiais, orgânicos ou não, no ambiente era semelhante para os autônomos ou para aqueles que trabalhavam em conjunto. A diferença é que esse
segundo grupo trabalhava mais à semelhança de empresas, com divisão de tarefas. Normalmente era formado por famílias com um poder econômico um pouco maior, dentro dos padrões da
Vila do Dique. Esse tipo de organização pressupõe hierarquia e algumas regras. Havia famílias que
atuavam com três carroças operando na rua, coletando o lixo de “clientes”, e tinham até cavalo
reserva, caso um se lesionasse. Quem estava numa posição superior no negócio normalmente
trabalhava na linha de frente, sobre as carroças, recolhendo o lixo nas empresas e condomínios.
Já a separação era tarefa para outros integrantes da família e vizinhos desempregados ou aposentados, que a realizavam por valores muito baixos ou até mesmo em troca de favores ou de restos
de alimentos em bom estado encontrados entre os descartes dos clientes. Esse tipo de relação
de trabalho era semelhante no caso do único galpão informal de reciclagem da Vila do Dique.
Alguns catadores do lixo do Dique
formavam organizações,
com hierarquia, várias carroças
e até cavalo reserva
FOTO DIQUECARROCA.JPG
Foto: Andrea Weschenfelder
Na Vila do Dique, restos de alimento
se misturavam a material rejeitado
pelas recicladoras junto às casas
moscas, outros animais e bactérias responsáveis por uma série de doenças que terminavam se
tornando problema de saúde pública na região. Mas não eram a causa do principal dano ambiental, até por serem materiais de rápida decomposição. O maior problema eram pedaços de
isopor, plásticos sujos e rotos e outros materiais inorgânicos que, devido ao mau estado, eram
rejeitados pelas empresas recicladoras ou tinham valor comercial tão pequeno que valia mais a
pena economicamente para os catadores largá-los no mato ou no arroio, independente da lenta
decomposição e impacto ambiental.
Foto: Andrea Weschenfelder
116 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
117
Nadiles no galpão de reciclagem
Quando começou a trabalhar na cooperativa, o combinado era que cada um apresentaria ao fim
do dia tudo o que levaria por sua casa, e o grupo fixaria um valor simbólico. Depois, permaneceu
Uma imensa bolsa − mais alta dos que os 1,60 metro de Nadiles − repleta de sacolas de lixo seco
a formalidade de mostrar os pertences retidos, mas o preço foi cortado.
é colocada sobre a mesa. A recicladora a esvazia pouco a pouco, trazendo para diante de si, como
Logo que chegou à Vila de Passagem, em 2011, houve um dia em que Nadiles flagrou o mari-
um caixa de supermercado na esteira, os resíduos atirados sobre a mesa. É preciso atenção para
do sozinho, em momento de reflexão, com os olhos cheios de lágrimas por falta de dinheiro. Foi
não errar. São mais de 30 categorias de plástico, metais, papéis, vidro − cada uma tem um saco ou
com alegria que no primeiro aniversário dele na casa provisória, dia 18 de julho de 2012, ela o
bombona específicos para ser depositada. Somente de plástico, são 14 tipos.
levou a um grande magazine e o presenteou com uma bicicleta nova, paga no crediário. À noite,
Ao longo de sua trajetória, Nadiles já havia trabalhado como faxineira, em casas de família ou
empresas, sempre que o cuidado com os filhos não lhe exigia ficar em casa. Até março de 2012,
comemorou com uma carne assada na carcaça de uma geladeira, que faz as vezes de churrasqueira na casa da família.
quando sua inscrição no galpão de reciclagem da Vila de Passagem foi aceita, nunca havia lidado
com isso. Logo que começou, as colegas de trabalho pensaram: “Esta aí nunca vai aprender”. Quatro meses depois, ela já se mostrava atenta para selecionar até mesmo aquilo que parece, mas não
Renda do trabalho no Galpão de
Reciclagem permitiu a Nadiles
presentear o marido com uma
bicicleta nova no aniversário
é. Como uma embalagem plástica de adoçante líquido que pega na mão e demonstra.
− Sabe o que é isso? Ninguém imagina, mas vai junto com a garrafa PET. Olha só, está escrito
na parte de baixo: PET.
São muitos os materiais que enganam. Os potinhos de leite fermentado, por exemplo, vão na
pilha dos plásticos de “balde e bacia”. As bombonas de água mineral, de cinco litros, são azuis,
mas classificadas como plástico transparente, explica Nadiles. Saber discernir os detalhes exige
ainda mais atenção na esteira. Momentos de seriedade que ela quebra a cada objeto curioso encontrado no lixo. Ao vestir uns óculos de cor laranja do tipo usado para animar festa, ela faz as
colegas de trabalho caírem na risada. Tem cada curiosidade no lixo, que assunto não falta para os
recicladores.
Cada um pode pegar para si os objetos que lhe interessem, desde que tenham aparecido em sua
esteira de seleção. Nadiles já pegou telefone, alpargatas, aparelho de barbear elétrico, controle de
videogame, dezenas de peças de roupas. Mas seu ponto fraco são mesmo os esmaltes e produtos
de beleza. Sob as luvas de proteção, Nadiles esconde unhas multicoloridas, pintadas mergulhando-as em uma bacia com água e esmaltes de diferentes tonalidades. No trabalho − cabelos amarrados por um nó, botina, calça de abrigo e blusão de lã sujo pelo contato com o lixo − nem parece,
mas ela é vaidosa. Em casa, tem uma coleção de mais de 100 vidros de esmaltes − poucos comprados, quase todos pegos na reciclagem. Cada semana, aparece com uma novidade nas unhas.
Foto: Eduardo Rocha
118 Um novo caminho Uma nova vida
Os desdobramentos na Vila de Passagem
119
Parte do grupo também visitou uma cooperativa de recicladores formada em torno de um galpão vinculado à prefeitura de Canoas. O município tinha quatro galpões oficiais, geridos em
sistema de cooperativismo, envolvendo cerca de 160 associados. Cada grupo recebia, além da
carga dos caminhões de coleta de lixo municipal, um subsídio mensal de R$ 25 mil. O novo galpão da Vila de Passagem foi inaugurado como uma espécie de filial dos oficiais − sem subsídio
mensal, mas recebendo o excedente de cargas de lixo seco não processado nos demais. Com 260
metros quadrados, ele suporta o trabalho de até 15 pessoas ao mesmo tempo. Se operasse em
três turnos, poderia ser alternativa de renda para até 45 pessoas. Mas, em seu primeiro ano, o
pessoal variou entre sete e 18. Um dos problemas, além da dificuldade de uma estrutura do tipo
ser autossustentável sem subsídio, foi a inconstância da quantidade de cargas recebidas.
Por outro lado, também houve forte resistência da comunidade em migrar do modelo de produção baseado na coleta e separação para o do galpão, em que o foco é apenas na separação.
O maior entrave diagnosticado foi cultural. Acostumada com uma vida com características
nômades, de andanças livres diárias pelas ruas da cidade, a maioria dos recicladores não se
sentiu à vontade atuando em local fixo. Era difícil trocar sensação de liberdade da rua pela
rotina repetitiva e a disciplina exigidas nas mesas de seleção do galpão. Mesmo que para os
autônomos houvesse a perspectiva real de manter ou até ampliar os rendimentos, caso houvesse dedicação em um turno de oito horas no galpão, o gosto pelo serviço autônomo falava
mais alto. Para as famílias que lideravam grupos de recicladores, a superação do rendimento
Galpão de reciclagem: recicladores
trocaram andança nas ruas pela rotina e disciplina da mesa de seleção
Foto: Andrea Weschenfelder
Obstáculo cultural
médio obtido no dique era mais difícil, já que ganhavam também com a exploração de mão
de obra. Embora os cálculos da equipe do Programa de Reassentamento demonstrassem que
era possível ter uma renda semelhante com o trabalho no galpão, a percepção dessa realidade pelas famílias mostrou-se de difícil compreensão, uma vez que o faturamento do trabalho
Para sensibilizar os recicladores da Vila do Dique sobre os benefícios do galpão de reciclagem
independente era maior. No entanto, uma contabilidade mais precisa, incluindo as despesas
que seria implantado, foram feitas 22 reuniões com o grupo. As três principais famílias envol-
com aquisição e manutenção dos cavalos, entre outras, poderia mostrar que não havia vanta-
vidas na atividade, que atuam como pequenas empresas, participaram do processo, além de
gem econômica de trabalhar na rua, considerando a soma dos rendimentos que os integrantes
autônomos. Nesses encontros, houve explicações sobre os prejuízos ambientais causados pelo
da família poderiam ter no galpão.
tipo de reciclagem praticado na Vila do Dique, sobre o problema de saúde pública, sobre a
ilegalidade da coleta informal de resíduos sólidos na cidade.
120 Um novo caminho Uma nova vida
Na cooperativa, a remuneração individual é definida pelo número de horas trabalhadas no
Os desdobramentos na Vila de Passagem
121
local. Cada um recebe proporcional ao tempo que trabalhou. Associados que trabalhavam
O processamento correto do material reciclável, com uso de equipamentos adequados, tam-
oito horas diárias recebiam cerca de R$ 1 mil, líquidos, por mês, no segundo semestre de 2012.
bém é uma forma de melhorar a produtividade do galpão de reciclagem. Quando foi montada,
Apesar de o salário médio ficar acima do mínimo e acima da renda individual de muitas famí-
a estrutura recebeu doações de empresas que se engajaram no projeto. Uma delas foi a Vonpar,
lias, a falta de adaptação à forma de trabalho ocasionou uma alta rotatividade de associados.
fabricante de bebidas Coca-Cola, que, após intermediação da prefeitura de Canoas, doou a
Um dos fenômenos observados é que as mulheres mostraram se adaptar com mais facilidade
prensa, o elevador, a balança e as bombonas para separação e estocagem do lixo. Com isso,
ao serviço de seleção. Elas revelaram-se mais pacientes e atentas diante do trabalho repetitivo
“Vim para o galpão
das mesas. Já os homens costumam assumir as funções que exigem força, como deslocar as
porque, no futuro, não
bolsas e fardos de lixo dentro do galpão, manter a limpeza, carregar o caminhão do frete.
vai mais ter espaço
para quem trabalha na
rua. Só para quem se
Autogestão
organiza. No começo, o
A ideia do galpão de reciclagem é que os próprios trabalhadores do local possam gerir o negó-
galpão vendia somente
cio em forma de cooperativa. Para pavimentar os caminhos para isso, a iniciativa contou com
para um intermediário.
um consultor da Gestão Ambiental da BR-448/RS, cuja função era mostrar caminhos para o
Depois, fomos fazendo
desenvolvimento dos negócios. O primeiro desafio era aumentar a competitividade do novo
contato com as
empresas e pegando
preço melhor pelo
material.”
José Fagundes,
Presidente da cooperativa
do galpão de reciclagem
galpão, agregando valor ao material recebido. Para isso, foi preciso aperfeiçoar o processo de
seleção desenvolvido pelos recicladores na Vila do Dique. Pesquisa de campo demonstrou
que, no local, os catadores separavam o lixo em sete categorias diferentes. Contato feito com
as empresas de reciclagem da região responsáveis pela compra do material segregado, bem
como a experiência de alguns recicladores antigos que aderiram ao galpão, apontou que o
mercado trabalhava com até 36 materiais diferentes, e que os compradores estariam dispostos
a pagar mais, caso a separação no galpão incluísse um número maior de categorias e etapas
de processamento então realizadas nas indústrias recicladoras. Por exemplo: uma empresa
que pagava R$ 1,50 pelo quilo do tubo de alumínio de desodorante passaria a pagar R$ 2,50
era possível organizar o espaço interno de maneira mais eficiente, poupar custos logísticos
se o mesmo fosse entregue já sem a peça plástica que compõe o spray − e assim passou a ser
com embarques de cargas mais pesadas e menos volumosas, controlar o peso da produção
feito no galpão. Além disso, descobriu-se que havia mercado para outros produtos antes não
local, entre outras vantagens. Outros parceiros também se aliaram ao projeto, como a Refina-
comercializados no trabalho na Vila do Dique, como as caixas de leite Tetrapak, descartadas
ria Alberto Pasqualini, que passou a destinar ao galpão caminhões com lixo reciclável, a Rossi
nos arroios e matos, mas que tinham valor comercial de R$ 0,06 o quilo, e passaram a ser sele-
Engenharia e os próprios consórcios construtores da BR-448/RS, doando resíduos sólidos dos
cionadas no galpão da Vila de Passagem.
canteiros de obras.
122 Um novo caminho Uma nova vida
Negócio mais rentável: recicladores
ampliaram leque de materiais coletados, agregaram valor ao produto
vendido e aumentaram a renda
Os desdobramentos na Vila de Passagem
123
Foto: Andrea Weschenfelder
A desativação da Vila de Passagem
A Vila de Passagem será desativada quando todas as famílias que a ocupam estiverem acomodadas nas casas definitivas. O cronograma depende da liberação das novas residências. A
equipe social acompanha todo o processo, de maneira que ocorra de forma harmônica, como
todas as mudanças realizadas na primeira etapa. A avaliação é de que o processo de saída da
Vila de Passagem para moradias novas tende a ser mais tranquilo, uma vez que as famílias vão
para casas maiores e melhores. A ansiedade por sair de um lugar onde tinham raízes, registrada na saída da Vila do Dique, não se repete. Após o reassentamento das famílias nas casas
definitivas, a equipe social ainda permanece por um período de adaptação da população ao
novo local, em um trabalho com foco na consolidação da organização comunitária e de suas
lideranças. O atendimento social também é mantido, com encaminhamento das demandas,
Saída da Vila de Passagem
para as casas definitivas terá
acompanhamento contínuo
da equipe social
especialmente as relativas à instalação em um novo local, para escolas, postos de saúde e órgãos competentes.
Educar para transformar
Outra empresa que apoiou as atividades do galpão de reciclagem foi a
distribuidora de energia AES Sul, que
desenvolve o projeto Educar para
Transformar junto às comunidades
de 39 municípios nos quais atua. A
iniciativa tem como meta atingir 150
mil pessoas, incluindo capacitação
de 2 mil professores e instrumentalização com material didático de 6,4
mil educadores. As ações discutem
sustentabilidade em quatro eixos:
energia, água, mobilidade e lixo.
Dentro dos trabalhos relativos a
este último tema, o Educar para
124 Um novo caminho Uma nova vida
Transformar fechou uma parceria
com a Gestão Ambiental da Rodovia
do Parque para que uma parte da
sucata encontrada no galpão de
reciclagem fosse transformada em
instrumentos musicais.
A confecção teve a coordenação da
equipe de educação ambiental, que
orientou os associados da cooperativa de reciclagem nas oficinas de
fabricação dos 4 mil instrumentos
encomendados. Na oficina, tampinhas de garrafa viraram chocalhos,
garrafas plásticas compuseram um
berimbau, latas de achocolatado
Foto: Andrea Weschenfelder
se transformaram em tambores.
Todo o material foi fabricado para
utilização em dinâmicas em sala de
aula e capacitações de professores,
dentro das atividades do Educar
para Transformar.
A contrapartida da AES Sul veio em
aperfeiçoamento da estrutura do
galpão, com a construção de uma
copa e cozinha, incluindo geladeira,
fogão e forno de micro-ondas. Com
isso, os associados passam a ter
onde armazenar o lanche e almoço,
além de realizar as refeições com
mais higiene, em área específica.
Diretores do DNIT são recebidos pela
equipe da Gestão Ambiental para
conhecer as casas definitivas
Os desdobramentos na Vila de Passagem
125
As casas
definitivas
Um dos grandes trunfos do Programa de Reassentamento Populacional da BR-448/RS é a localização das novas moradias. Os três loteamentos construídos para abrigar as famílias ficam em
bairros próximos às áreas do dique, o que garante a minimização do impacto social da Rodovia
do Parque. As famílias realocadas continuam convivendo com os mesmos vizinhos, podendo
fazer compras no mesmo supermercado, ter seus filhos estudando nas mesmas escolas, exercer
suas atividades laborais nas mesmas regiões.
Ao todo, as novas moradas somam 599 unidades. São 168 casas no loteamento Canoas Minha Terra I, no bairro Fátima, mais 175 no Canoas Minha Terra II, no bairro Mato Grande, e
ainda 256 apartamentos no condomínio Morada Cidadã, também no Fátima. As habitações
foram construídas por meio do Programa Minha Casa, Minha Vida, sem custos para a população realocada. A Caixa Econômica Federal foi o agente responsável pela documentação e
entrega dos imóveis às famílias.
Foto: Eduardo Rocha
5
Todas as novas unidades habitacionais têm dois quartos, um espaço de estar e jantar, um
banheiro, cozinha e espaço para área de serviço. As casas ficam em um terreno de 120
A infraestrutura de cada conjunto habitacional
metros quadrados. Já os apartamentos estão localizados em um condomínio com centro
comunitário equipado de auditório, além de espaços para conjuntos comerciais. Tanto os
loteamentos Canoas Minha Terra quanto o Morada Cidadã contam com praças e área de
lazer e infraestrutura urbana completa, incluindo ruas asfaltadas, abastecimento de água,
saneamento básico e iluminação pública.
Canoas Minha Terra I
• 175 casas de 43,5m² cada
• Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço
• Lotes individualizados de 120m²
• Uma praça com academia ao ar livre
• Ruas pavimentadas, abastecimento de água,
saneamento básico e iluminação pública
Foto: Divulgação PMC
Canoas Minha Terra II
• 168 casas de 43,5m² cada
• Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço
• Lotes individualizados de 120m²
• Uma praça com academia ao ar livre
• Ruas pavimentadas, abastecimento de água,
saneamento básico e iluminação pública
Apartamentos da Morada Cidadã
Moradores visitam um
loteamento pronto para se
familiarizar com as novas casas
Foto: Andrea Weschenfelder
Resistência
No primeiro levantamento feito pelo DNIT na Vila do Dique, apenas oito famílias manifestaram interesse em se mudar para o Morada Cidadã. Acostumados a viver sempre em casas
• 256 apartamentos de 45,72m² cada
• Dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço
• Duas praças com quadras esportivas, arquibancadas e
academia ao ar livre
• Centro comunitário com auditório, sanitários, cozinha
e sala administrativa
• Conjunto comercial com oito lojas e sanitários
e próximo de áreas verdes, muitos moradores consideravam apartamentos como “prisões”.
128 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
129
Como, no entanto, 256 moradias são em edifício, uma das tarefas dos integrantes da equipe social foi esclarecer a população sobre as condições do condomínio. Como ocorreu em
outros casos, foi somente com a visita de integrantes da Comissão de Obras e de outros
moradores da Vila do Dique que o preconceito quanto aos apartamentos foi se dissipando.
Ao serem levados de ônibus até unidades iguais às que receberiam, entrar nos imóveis, visualizar o tamanho, conferir a qualidade e a infraestrutura dos prédios, uma parte cedeu aos
Os critérios para escolher uma casa:
• Localização geográfica (10 pontos):
• Pessoas com deficiência física na
• Ter um comércio (8 pontos): marca-
marcaram pontos as famílias que esco-
família (4 pontos): marcaram pontos as
ram pontos as famílias que mantinham
lheram o loteamento ou condomínio mais
famílias que tinham pessoas com defici-
comércio.
perto de onde viviam na Vila do Dique.
ência na casa.
• Tempo de moradia (10 pontos): mar-
encantos do condomínio. A visita aos apartamentos-modelo foi fundamental para dissemi-
• Número de pessoas por família (10
• Trabalho com reciclagem (4 pontos):
caram pontos as famílias que moravam
pontos): marcaram pontos as famílias
marcaram pontos as famílias que traba-
na Vila do Dique de cinco anos.
nar as informações relativas à qualidade dos condomínios e unidades habitacionais. Muito
que tinham mais de três pessoas na casa.
lhavam com reciclagem.
• Idosos na família acima de 65 (4 pon-
• Ter cavalos (5 pontos): marcaram pon-
caram pontos as famílias que receberam
tos): marcaram pontos as famílias com
tos as famílias que tinham cavalos.
selo no congelamento de 2009.
embora as características já tivessem sido informadas em reuniões, conversas com a equipe
social e por meio de panfletos, somente com a conferência in loco houve alguma reversão
do desinteresse nas unidades do Morada Cidadã.
• Possui selo de 2009 (10 pontos): mar-
idosos na casa.
Critérios
Mesmo assim, o número de apartamentos disponíveis superou o número de interessados
Para demonstrar o funcionamento do sistema, foram marcadas reuniões com a comu-
em viver no Morada Cidadã. O impasse foi resolvido pela própria Comissão de Obras.
nidade. Em uma delas, na Associação dos Moradores do Bairro Rio Branco, a Secretaria
Mais uma vez, os representantes eleitos pela comunidade definiram os rumos do Pro-
Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação de Canoas, responsável por manter
grama de Reassentamento. Nas reuniões do grupo, com a orientação da equipe social,
o cadastro das famílias e formalizar as transferências, apresentou a tabela e fez simula-
foram estabelecidos os critérios para definição de quem teria preferência para escolher se
ções de preenchimento com informações prestadas pelos próprios presentes. Em meio
gostaria de ir para o Morada Cidadã ou para os loteamentos Canoas Minha Terra I e II. As
ao burburinho gerado antes da simulação, incluindo lamentações de quem não queria ir
discussões iniciais levaram à definição das situações que contribuiriam para que um mora-
para apartamentos, uma assessora da secretaria tentava explicar os motivos do estabele-
dor tivesse preferência sobre outro. Após, o grupo definiu quais dessas situações deveriam
cimento de critérios:
ser mais relevantes, atribuindo um valor a cada uma. As categorias foram marcadas em
uma planilha de dados, cujo preenchimento resultava em uma pontuação e consequente
− Existem critérios para que se possa pensar não só no individual, mas também no coletivo. É
geração de um ordenamento das famílias. Quem marcasse mais pontos teria prioridade
importante que as pessoas não pensem que alguém foi para uma casa porque é meu amigo ou
para escolher onde morar. Alguns aspectos que favoreceram a moradia em casa, como
amigo do fulano.
trabalhar com reciclagem, ter cavalos ou a presença de pessoas portadoras de deficiência
na família, foram valorizados. Além de critérios de antiguidade, privilegiando quem vivia
As explicações, no entanto, não foram suficientes para aplacar a tensão de alguns. Um dos volun-
há mais tempo na Vila do Dique.
tários para realizar a simulação no seu caso, mais nervoso e exaltado, repetia:
130 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
131
− Se for para ir para um apartamento, me compra um caixão. Se for para ir para apartamento,
me compra um caixão...
A pontuação desse morador indicava que ele poderia escolher uma casa. Mas isso só seria
comunicado quando os dados de todos fossem checados e consolidados. Apesar da objetividade dos critérios, a insegurança e os questionamentos sobre quem receberia apartamentos
persistiram.
As novas casas
O loteamento com a obra mais avançada era o Canoas Minha Terra II, localizado em terreno lindeiro com a Vila de Passagem e junto ao galpão de reciclagem. No entanto, quando as primeiras casas
foram erguidas, em julho de 2012, trouxeram mais apreensão do que alívio à população. Construídas de forma industrial, com tecnologia inovadora, elas têm as paredes de concreto revestidas com
PVC. Bastou uma unidade ficar pronta para o boato se espalhar como rastilho de pólvora pelas
comunidades da Vila de Passagem e Vila do Dique: “Vão nos colocar em casas de plástico”. As informações prestadas previamente − de que todas eram feitas de concreto, de que o PVC tornava a
manutenção mais fácil, de que inexistiam prejuízos à durabilidade, até pelo contrário − não bastaram para convencer a comunidade. O preconceito só foi quebrado, novamente, quando integrantes da Comissão de Obras e outros representantes da comunidade foram levados a um loteamento
semelhante, no qual as casas tinham sido erguidas com a mesma tecnologia. Ao mirarem um bairro inteiro com as casas todas brancas, devido ao revestimento de PVC, e tocarem insistentemente
na parede para se certificar que era mesmo de concreto, os moradores se convenceram de que as
casas eram bastante resistentes, e mais do que isso: em conjunto, faziam uma figura bem bonita.
Quem participou da visita, então, voltou espalhando: “As casas não são de plástico”.
Além da excursão, foi marcada uma reunião, no centro comunitário da Vila de Passagem, para
que técnicos da Caixa Econômica Federal e da empresa construtora explicassem a nova tecnologia, que permitia obras mais ágeis, além de longa durabilidade das moradias. Quarenta moFoto: Eduardo Rocha
132 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
133
radores − e, como sempre, dezenas de crianças − compareceram ao encontro. O arquiteto da
Caixa Econômica Federal Everton Eltz explicou que, para fazer parte do Minha Casa, Minha
Vida, uma tecnologia de produção deve ser testada e aprovada. As casas com revestimento
de PVC passaram nesse teste, demonstrando ter duração de mais de 40 anos. Um vídeo
demonstrando a forma de construção e as características técnicas foi apresentado pela
empresa Kaefe Engenharia, contratada para a construção. Entre as vantagens do sistema
“É nítida a diferença de
comportamento, com
construtivo inovador estão a rapidez de montagem, a simples manutenção, uma vez que
as casas não têm reboco ou pintura e são facilmente laváveis, a alta resistência e o conforto
térmico.
relação às novas casas,
entre os moradores
que vieram da Vila de
Passagem e da Vila do
Dique. Os hábitos de
higiene e a adaptação à
A primeira casa
Manhã de 21 de dezembro de 2012. É sexta-feira e chove torrencialmente em Canoas. Na Vila
de Passagem, uma árvore de Natal montada com garrafas pet lembra que faltam quatro dias
para o feriado cristão. O presente de algumas famílias, no entanto, chegará antes.
nova casa são melhores
entre aqueles que
O de Angélica da Cunha é um deles. De calça jeans e blusa floreada, ela está sentada em uma
estiveram na Vila de
das dezenas de cadeiras reunidas debaixo de um gazebo instalado entre a Vila de Passagem
Passagem.”
e o Loteamento Canoas Minha Terra II. Divide espaço com algumas autoridades, jornalistas e
de um sonho para muitos, e o superintendente regional da Caixa Econômica Federal, Mauro
vizinhos, moradores da Vila do Dique ou da Vila de Passagem. A cerimônia é singela ante seu
Roberto Bom, ressalta a importância de se ter um endereço.
Marcela Nascimento,
coordenadora de campo do
reassentamento
simbolismo. Depois de cerca de sete anos desde o anúncio do governo federal de que faria
Foto: Andrea Weschenfelder
a Rodovia do Parque, mais de três anos desde que a prefeitura cadastrou os moradores dos
Terminadas as falas das autoridades, Angélica é chamada ao palco. Ali, recebe a chave da pri-
diques e um ano e nove meses desde a entrada da equipe social do DNIT, os primeiros mora-
meira de 599 casas que serão entregues, até que a estrada esteja finalizada, a moradores da
dores receberiam as chaves de suas novas casas.
Vila do Dique e arredores. A dona de casa é alvo dos flashes de fotógrafos, câmeras de vídeo,
Prefeito de Canoas, superintendentes do DNIT e da Caixa entregam a
primeira casa a Angélica da Cunha
gravadores de áudio. Sem aparentar euforia ou nervosismo, mantém um ar de tranquilidade e
O prefeito de Canoas, Jairo Jorge, em seu discurso, lembra as décadas de reivindicações dos
não muda o tom da voz ao dar entrevistas.
moradores da Vila do Dique, junto aos quais construiu boa parte de sua vida política, e
quando a luta era por uma bica d’água para ser dividida pela comunidade. O superintenden-
Quando perguntada sobre o que vai melhorar em sua vida, não fala das qualidades físicas da
te do DNIT no Rio Grande do Sul, Pedro Luzardo Gomes, diz que o momento é a realização
sua casa nova, mas sim do fato de que agora terá um endereço formal. Agora terá comprovante
134 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
135
rão. O marido continuará a viver da coleta de lixo e de carretos com a carroça; a renda mensal,
incluindo Bolsa Família, continuará próxima a um salário mínimo; ela seguirá fazendo compras
na mesma vizinhança, perto de onde ficava sua casa na Vila do Dique.
Tudo isso, ela só consegue contar no dia seguinte ao recebimento da chave, quando finalmente toma posse da casa. Ao chegar em sua nova moradia, pela manhã, Angélica escutou as
orientações técnicas sobre a unidade e as boas-vindas da equipe social, além de dicas sobre
como manter boas relações de vizinhança, economia de energia e de água. Ainda recebeu um
manual de utilização com a planta da casa.
À tarde, foi a vez de mais um ato simbólico: a assinatura do contrato. Servidores da Caixa Econômica Federal transformaram a casa 370 em um escritório avançado do banco. Representantes das primeiras famílias reassentadas – oriundas algumas da Vila de Passagem e outras da Vila
do Dique, devido à necessidade de liberação imediata de áreas – fizeram fila para assinar. São
mais de 70 assinaturas e rubricas necessárias
Contratos: Caixa transformou uma
das casas em escritório avançado
para as assinaturas
nas diferentes vias do contrato. Impossível ler
cada detalhe rapidamente. Um representante
da prefeitura ajuda os servidores da Caixa a explicar o principal. A casa tem valor de R$ 55
mil, integralmente bancados pelo governo federal. Os novos moradores também têm suas
obrigações.
Angélica não precisará mais usar o
endereço de amigas para comprar
no crediário
Foto: Eduardo Rocha
− Não pode vender, não pode alugar, não pode
ceder para outros − explica um funcionário da
de residência, não precisará mais comprar móveis e eletrodomésticos no crediário usando o
prefeitura.
nome e o endereço de amigas. Algumas coisas mudarão. A casa é nova, de concreto revestido
por PVC, ela terá água encanada, luz, com as respectivas contas, um pequeno pátio que ganhará uma cerca para abrigar o cavalo do marido. Depois de 20 anos na Vila do Dique tomando
banho de banheira, ela também terá agora um chuveiro. Mas tantas outras coisas não mudaFoto: Eduardo Rocha
136 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
137
Preparação
Antes da entrega de cada quadra de um loteamento, o conjunto de famílias que ali moraria
era convidado a organizar, juntamente com as equipes da prefeitura de Canoas e do DNIT,
a vizinhança dessa quadra. Com isso, objetiva-se garantir que os vínculos de amizade e solidariedade desenvolvidos ao longo do período em que moraram nos diques permaneçam.
O resultado dessa ação vem se mostrando muito positivo se comparado a outros processos
de reassentamento nos quais as unidades habitacionais foram sorteadas entre os futuros
habitantes ou àqueles em que a vizinhança é composta por famílias oriundas de áreas distintas da cidade.
Ainda na etapa preliminar ao recebimento das residências, as famílias foram convidadas a
refletir sobre a qualidade da rua em que querem morar e o papel de cada uma para que a rua
ideal (limpa, segura, agradável etc.) se torne realidade. Além das responsabilidades do município, a limpeza e a manutenção das ruas dos loteamentos dependem da postura de cada
família. A reflexão sobre a rua ideal também visa estabelecer alguns padrões de construção
junto às famílias, tais como altura dos muros, tipos de cerca, formas de ampliação da casa
ou cobertura para a garagem do carro. O resultado dessa ação também já se pode observar
na prática, uma vez que as casas já entregues são protegidas por cercas similares, as ruas do
loteamento estão limpas e não há ocupação indevida das calçadas, algo bem diferente do
que se via nos diques.
Esse processo envolveu questões ligadas a mediação de conflitos, uso consciente de recursos
naturais, gestão dos espaços comuns, tais como os centros comunitários e os condomínios,
e o incentivo à composição de uma associação de moradores.
Foto: Andrea Weschenfelder
138 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
139
Foto: Eduardo Rocha
A mudança de Nadiles
Às 8h15min de um sábado de janeiro de 2013, um pequeno caminhão de mudanças e uma
Kombi da prefeitura de Canoas estacionam em frente à casa de Nadiles na Vila de Passagem. As
ruas do local estão um pouco mais sujas do que de hábito. É que nos últimos dias novas famílias
chegaram da Vila do Dique, ocupando os módulos de quem já recebeu a casa definitiva. “Demora
um tempo para o pessoal adquirir novos hábitos”, explica a integrante da equipe social que se
aproxima para dar início à mudança de Nadiles para o Canoas Minha Terra II. Está nublado, a
chuva vai e vem, mas a moradora recebe animada a equipe.
− Bom dia!
− Ué, Nadiles, onde estão as tuas plantas, o teu jardim?
− Ah, levei tudo ontem. Arrumei uma carroça e já deixei na casa nova.
− E o pessoal?
− O Arci tá lá, fazendo uma areazinha atrás para botar o tanque. Os dois grandes (os filhos
Renan e Marcos) até dormiram lá.
Sem demora, o pessoal da mudança começa a pegar os móveis e utensílios. Estantes, camas,
caixas com sapatos, caixas de brinquedo, bola de futebol, vai tudo no caminhão. Kaynam, o menino mais novo, ata uma corda no pescoço do cão, Preto, para levá-lo a pé. A caçula, Samyra, alheia
ao movimento da mudança, permanece imóvel, deitada na cama, agarrada a uma boneca suja
e esfarrapada – ela tem outras mais novas, mais limpas, mais bonitas, mas não desgruda desta.
E só se levanta quando os operários têm mesmo de levá-la. Quando o carregamento está quase
terminando, as nuvens pretas na rua dão lugar aos raios de sol. Nadiles não deixa de reparar.
− Samyra, olha lá o arco-íris!
les, uma hora depois do início da mudança, embarcou com a filha no veículo da prefeitura para per-
Nadiles em frente à casa definitiva:
geladeira, aparelho de som e estante novos, comprados no crediário
correr o pequeno trajeto que separa sua casa provisória na Vila de Passagem da sua casa definitiva.
− O Patati Patatá canta uma música daquilo – reponde a pequena, apontando para o arco-íris
e referindo-se a uma dupla de palhaços que faz sucesso na tevê.
Muita coisa mudara em sua vida nos últimos meses, desde sua saída da Vila do Dique. E continuava mudando. Há cerca de três meses, o marido tinha arrumado um emprego como vigilante
O momento tem até uma fortuita trilha sonora: na Kombi da prefeitura toca The Sound of Silence,
clássico de Simon & Garfunkel. O clima da manhã não podia ser mais tranquilo. E foi assim que Nadi-
140 Um novo caminho Uma nova vida
nas obras da BR-448/RS, garantindo renda fixa à família. Já ela tinha deixado o trabalho no galpão de reciclagem, por desentendimentos com colegas.
As casas definitivas
141
Agora, queria voltar a trabalhar em outra área para novamente ajudar o marido nas finanças
“As novas casas ganham uma configuração bastante diferente da realidade da Vila de Passagem
da casa. Eles ainda tinham de pagar as contas da geladeira, do aparelho de som e da estante que
e mais distante ainda da estrutura de habitação no Dique. Os próprios moradores conceituam de
a família comprara no crediário para a casa nova. E Nadiles tinha usado suas economias para ir a
outra forma o local onde moraram nas três etapas: 1)Vila Dique, 2)Vila de Passagem e 3)Casas
Santa Catarina no Natal, visitar a mãe, de 77 anos, cujo estado de saúde era frágil. Há nove anos
definitivas.
que não a via. Foi com os quatro filhos, e lhe fez bem rever a mãe e os irmãos.
Depois de passar por todas as etapas, as famílias na nova casa se referem à antiga morada como
Quando desceu da Kombi para concluir sua mudança, Nadiles foi recebida por outra integrante
da equipe social.
‘barraco’. Embora essa denominação tenha geralmente um sentido pejorativo, nota-se que ela
está relacionada muito mais à forma estrutural do que a uma avaliação qualitativa. Como define
uma das moradoras: ‘É que lá não era casa, era barraco, porque, assim, não tinha esgoto e a luz
− Seja bem-vinda! Que aqui você recomece.
era daquele jeito, mas lá era meu também’, havendo ainda um sentimento saudoso quando se
− Já recomecei! – respondeu, animada, Nadiles.
referem aos seus antigos ‘barracos’.
Análise
A estada na Vila de Passagem ganha também suas interpretações. Os moradores se referem ao
local como ‘pavilhões’ ou como ‘aquele aperto’. No local, as famílias organizavam sua vida em
um espaço menor, se comparado ao que muitos tinham na Vila do Dique, principalmente se
Quando Nadiles chegou ao Canoas Minha Terra II, o loteamento já ganhava ares de bairro, com
considerada a possibilidade de circulação e a indefinição entre a ‘casa’ e a ‘rua’, que permitia a
dezenas de famílias habitando as novas casas e construindo ali suas histórias. A ocupação deu-se
ampliação da ‘casa’. Na Vila de Passagem, ao final do dia, as cadeiras de praia também toma-
de maneira um tanto heterogênea – tanto quanto as músicas que escapavam das janelas de casas
vam as calçadas, mas essa ocupação da ‘rua’ era em menor proporção do que na Vila do Dique,
e automóveis da vizinhança na manhã em que ela se mudou. Sertanejo, rock anos 80, funk e pop
provavelmente pela menor disponibilidade de sombra. A dificuldade repetidamente narrada, em
ecoavam pelas ruas. A diferença mais evidente do ponto de vista visual era relativa à organização
relação à estada na vila transitória, é a sensação de ‘não posse’, do ‘não é meu’. Os moradores
do espaço externo nas residências ocupadas por catadores de lixo, normalmente com utilização de
contam a dificuldade que foi não poder ‘mexer em nada’, fazer melhorias, ou mesmo arrumar,
cavalo e carroça, e nas demais. As ruas e pátios nos quais se concentrava o primeiro grupo exibiam
por não estarem habitando o seu lugar.
um maior volume de resíduos sólidos. Especialmente entre as residências das famílias com outras
fontes de renda podia se observar já nas primeiras semanas de ocupação detalhes que denotam
Ao habitarem esses lugares, as famílias passaram não só por mudanças físicas de espaço, mas de
maior cuidado com a moradia. Caixas de correios novas, enfeites nas portas e nos pátios, cortinas
sensações, sentimentos e percepções. No decorrer do processo, com constante sentimento de in-
nas janelas, cercas planejadas e até mesmo uma casa pintada de rosa chamavam a atenção.
certeza, tiveram posse (mesmo que não formalizada), não-posse, para voltar a ter a posse de sua
moradia. Pode-se identificar, a partir das narrativas analisadas, que a principal diferença da Vila do
Para apurar o sentimento e a adaptação dos moradores à casa nova, a equipe do DNIT em-
Dique para as moradias definitivas não é tanto o fato de terem a titulação do espaço que habitam,
preendeu uma breve pesquisa, incluindo em sua metodologia entrevistas a um universo res-
mas o fato de, agora, morarem em ‘casas’, não mais em ‘barracos’ ou ‘apertos’.
trito de proprietários. O estudo chegou a algumas conclusões:
142 Um novo caminho Uma nova vida
As casas definitivas
143
Foto: Eduardo Rocha
As ‘casas’, então, são significadas como lugar onde há saneamento, no qual se distinguem espaços
(cozinha, sala, quarto, banheiro). Essas divisões podiam até existir nos ‘barracos’, mas de forma improvisada, ou não tão nitidamente delineada. As casas ainda têm um grande diferencial, a elas há um
endereço correspondente, sendo que uma das primeiras ações dos moradores em sua nova casa foi a
compra/instalação das caixas de correspondência. A forma de percepção do espaço de moradia ganhou novo sentido a partir da experiência. Assim a casa, agora, é o local de correspondência e cuidado.
A percepção do ambiente interno e externo, privado e público, casa e rua, também passou por
alterações. Na Vila do Dique, a casa e a rua se confundiam, em alguns casos sem marcações
específicas entre um e outro terreno (até porque vários núcleos de uma mesma família dividiam
o mesmo). A rua é espaço público, mas não só de passagem, de lazer, e por vezes acaba por
ser espaço privado onde algumas famílias mantêm sua sociabilidade ou até mesmo constroem
galinheiros e baias para abrigo de seus animais. Na Vila de Passagem, embora pequenos, cada
núcleo familiar ficou com um módulo, havendo divisão por meio de cercamento. Os ‘pavilhões’
foram divididos em vários módulos, e se distinguiam bastante da rua por esta ter calçamento. E
assim as definições fluidas entre o espaço público e o espaço privado começaram a ter a definição de fronteiras mais precisa a partir da Vila de Passagem. Na Vila do Dique o espaço da casa
se confunde com a rua, como pode ser observado nas fotografias.
No loteamento Canoas Minha Terra II, até o momento, parece haver a definição de um espaço
intermediário entre casa e rua. Os moradores ressaltam a possibilidade de ter ‘o seu pátio’. Novas
classificações do espaço, assim como novas noções de propriedade, vêm se delineando no processo
de mudança. O ‘pátio’ agora faz parte da casa e, principalmente, é de responsabilidade individual,
não mais coletiva. Os cercados se tornam, então, signo de arranjo diferente entre a ‘rua’ e a ‘casa’;
o ‘público’ e o ‘privado’. A fronteira do pátio é uma das formas pelas quais se materializa a sensação de propriedade para essas pessoas.
Assim, se há alteração na forma de perceber a ‘casa’, a forma de habitá-la também se modifica.
territorialidade que se constitui pela nova forma de habitar dos antigos moradores da Vila do Dique
A maioria narrou alguma forma de alteração na rotina cotidiana, seja pela facilidade de acesso
parte, então, de uma percepção da casa como local do cuidado privado. As narrativas ressaltaram
ao posto, proximidade do mercado, mudança da escola dos filhos ou aumento dessa distância. A
‘sua casa’ e ‘seu espaço’, constituindo uma sociabilidade menos abrangente.”
144 Um novo caminho Uma nova vida
Propriedade particular: novas moradias despertaram nas famílias sentimento de cuidado com um espaço
próprio, que no Dique não existia
As casas definitivas
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Foto: Ireno Jardim
Fotos: Eduardo Rocha
146 Um novo caminho Uma nova vida
Foto: Divulgação PMC
Foto: Divulgação PMC
As casas definitivas
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Conclusão
O pioneirismo
O direito ao bem-estar e a uma moradia norteia políticas públicas do governo federal, está
garantido na Constituição Federal, na Declaração Universal de Direitos Humanos, em normas, leis, tratados e princípios. Garantir a melhora nas condições de vida e de habitação
de mais de 2 mil pessoas em apenas um empreendimento é motivo de orgulho para toda a
equipe do DNIT envolvida no processo. Experiências semelhantes já tinham ocorrido com as
ampliações e construções de outras rodovias. Mas o caso da BR-448/RS mostrou-se emblemático pelo número de pessoas abrangidas em uma mesma comunidade e pelo envolvimento direto da Gestão Ambiental no trabalho social desenvolvido. O DNIT tem o objetivo de
ser referência na área de empreendimentos de transportes, e o resultado do reassentamento
da rodovia gaúcha demonstra que a autarquia tem capacidade para conduzir, contando com
parcerias estratégicas, projetos de grande porte, de forma a mitigar ou compensar possíveis
impactos das obras nas comunidades afetadas.
Foto: Eduardo Rocha
6
Responsabilidade ambiental
A legislação ambiental brasileira não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do empreendedor
Os resultados positivos do trabalho, no caso da BR-448/RS, puderam ser medidos pela ausên-
em executar programas para reduzir o impacto ambiental das obras. O DNIT, nos últimos anos,
cia de impedimentos da população à continuidade das obras, pela transformação dos hábitos
tem se estruturado para atender a essas exigências de forma cada vez mais eficiente, demonstran-
das famílias após o contato com as equipes social e de educação ambiental e pela confiança
do um crescente compromisso com o meio ambiente. Recentemente, consolidou-se o entendi-
mútua entre comunidade e trabalhadores da Gestão Ambiental. Quem teve o privilégio de
mento de que o meio antrópico pode ter tanta ou maior importância do que os físico e biótico
acompanhar de perto as atividades constatou a dedicação de todos os envolvidos no Progra-
na análise do impacto de uma obra de infraestrutura de transportes, a depender do meio no qual
ma de Reassentamento Populacional e a vibração do grupo com as conquistas de cada família
o empreendimento está iserido. Esse reconhecimento abriu espaço para o aprofundamento das
reassentada. Restou a certeza de um trabalho bem executado.
medidas que visam a reduzir os possíveis efeitos negativos das obras na vida das pessoas. Entre
elas, os programas de reassentamento associados à melhoria da qualidade de vida das famílias
Por isso, a experiência da Rodovia do Parque deve servir de modelo para outros programas de
afetadas diretamente por estradas. A Gestão Ambiental da BR-448/RS é um reflexo dessa visão.
reassentamento executados no País, sempre respeitando as peculiaridades de cada caso e de
cada região. Um dos aprendizados proporcionados pelo trabalho na BR-448/RS, por exemplo,
Realocar famílias e incluir socialmente
foi o de que a utilização de uma Vila de Passagem, nos casos em que casas definitivas demorem
mais do que a obra, é viável. Mais do que isso: nos casos em que as famílias a serem reassentadas vivem em condições precárias, o local transitório serve como uma escola, para prepará-las
O trabalho realizado no empreendimento demonstrou que um processo de reassentamento vai
para os desafios da moradia definitiva, além de propiciar um estreitamento da equipe social
muito além da retirada de famílias da área afetada pela rodovia e instalação em um novo local,
com a população.
liberando a área para as obras da estrada. Para que haja efetiva melhoria na qualidade de vida
da população, é preciso um trabalho de acompanhamento e comunicação permanente com
Por ser um ator relativamente novo na execução direta de políticas de inclusão social, sempre
as famílias impactadas. O caso da Rodovia do Parque comprovou que o sucesso desse processo
associadas à redução do impacto social de um empreendimento de transportes, o DNIT ainda
passa pela presença contínua de uma equipe social na comunidade, pela valorização das insti-
tem a evoluir com cada experiência. Estabelecer padrões mais objetivos de avaliação do suces-
tuições e lideranças locais, pela realização de repetidas reuniões e visitas técnicas com os mo-
so ou correção do trabalho social realizado nos Programas de Reassentamento Populacional
radores, pela transparência em todos os contatos e informes à população, pela priorização de
é um dos desafios. Mesmo assim, a experiência da BR-448/RS, bem como de outros progra-
grupos de maior vulnerabilidade, como portadores de deficiência e idosos, entre outros. Como
mas semelhantes já realizados pelo DNIT, demonstra o acerto da autarquia em assumir sua
empreendedor, o DNIT deve não somente fazer a realocação, mas também trabalhar para as
responsabilidade no processo de reassentar e incluir socialmente famílias afetadas por obras
comunidades serem sustentáveis, em um projeto que depois deve ser continuado por demais
rodoviárias. E constitui uma importante base para a fixação de novas diretrizes para Programas
órgãos da administração pública. A responsabilidade da autarquia é limitada à prevenção, mi-
de Reassentamento Populacional. Afinal, conforme demonstram os valores fundamentais da
tigação ou potencialização de impactos, não cabendo ao empreendedor a responsabilidade
Avaliação de Impacto Social, definidos pela IAIA, “o conhecimento e a experiência locais são
permanente por executar políticas sociais junto às famílias realocadas.
valiosos e podem ser utilizados para melhorar as intervenções planeadas”.
150 Um novo caminho Uma nova vida
Conclusão
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