a questão da mestiçagem na poética e na música brasileira

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a questão da mestiçagem na poética e na música brasileira
Vivências: Revista Eletrônica de Extensão da URI
ISSN 1809-1636
A QUESTÃO DA MESTIÇAGEM NA POÉTICA E NA MÚSICA BRASILEIRA
The question of miscegenation in Brazilian music and poetics
Selma Sângele Rocha FREITAS1
RESUMO
Este trabalho tem por propósito apresentar uma breve abordagem acerca de questões concernentes à
cultura, identidade e mestiçagem tomando-se por base o poema Canção do Exílio, de Murilo
Mendes. O enfoque prioritário do trabalho reside na análise de diversos elementos de mestiçagem
presentes no poema. Ademais, é estabelecida uma relação analógica com a obra de Gonçalves Dias,
fonte de inspiração desta entre outras canções do exílio nas quais manteve relações de mestiçagem
e, ainda, com a música Pátria Minha de Vinicius de Moraes.
Palavras-chave: Cultura; mestiçagem; identidade; cruzamento; tradução.
ABSTRACT
This paper aims at the present a brief overview on matters pertaining to culture, identity and racial
taking based on the poem Song of the Exile, of Murilo Mendes. The priority focus of the work lies
in the analysis of various components of mixing present in the poem.Moreover, it established an
analogical relation with the work of Gonçalves Dias, a source of inspiration of this and other songs
of exile in which he maintained relations of racial and also with the song My Fatherland Vinicius de
Moraes.
Key words: Culture; miscegenation, identity, intersection; translation.
INTRODUÇÃO
A
modernidade
e
as
várias
transformações advindas da era industrial
levaram as pessoas a se afastarem de suas
tradições, de suas histórias, e de seus
sentimentos de pertencimento a uma cultura, a
uma comunidade. O homem moderno ou,
segundo alguns autores, pós-moderno,
despertencido e desraizado é cativo de um
modelo fragmentado de percepção e inserção
na vida que o coloca em crise com a sua
própria identidade. No entanto, é inerente à
sua natureza humana ser constituído a partir
de diversas raízes, posto o caráter relacional
da vida que impõe o estabelecimento
constante de vínculos físicos e simbólicos
com tudo com o qual se relaciona. O contínuo
cruzamento de elementos culturais, históricos,
1
lingüísticos, entre outros que se encontram e se
imbricam sem perder a sua integridade, é o que
constitui o processo de mestiçagem, tão natural na
cultura brasileira.
Tal processo é o ponto de partida para este
trabalho, que discute questões relativas à cultura, à
identidade, e à mestiçagem – cujo conceito é aqui
abordado à luz dos postulados de Laplantine e
Nouss – tomando-se por base o poema Canção do
Exílio, de Murilo Mendes. O enfoque prioritário
do artigo reside na análise de diversos
componentes de mestiçagem presentes no poema,
percebidos sobretudo diante da comparação com a
obra de Gonçalves Dias, que notadamente serviu
de inspiração a Murilo Mendes e, ainda, com a
música Pátria Minha, de Vinícius de Moraes,
afinal, a composição musical é a linguagem
artística que melhor exemplifica a mestiçagem.
Nela, os elementos de mestiçagem são
Pós-graduanda do curso de Especialização em Literatura Brasileira: Formação do Cânone e Contrapontos Críticos, da
Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus XX - [email protected].
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evidenciados no uso comum da reescrita sob a
forma de transcrição, do empréstimo ou da
citação – ou da auto-citação - conforme
atestam Laplantine e Nouss (2008, p. 105).
1 CULTURA
A noção de cultura vem suscitando
intensos e contraditórios estudos nas mais
diversas áreas relacionadas às ciências sociais.
A contradição reside no fato de que o termo
“pode tanto designar um panteão de grandes
obras ‘legítimas’ como tomar um sentido mais
antropológico, por englobar as maneiras de
viver, sentir e pensar, próprias de um grupo
social”. (CUCHE, 1996 apud MATTELART
e NEVEU, 2006, p. 11).
No que diz respeito especificamente à
cultura brasileira Vannucchi (2002, p. 13),
apoia-se na lição autorizada de Darci Ribeiro,
não para defini-la, mas para compreendê-la à
luz da configuração social do Brasil:
A conjunção dos três elementos – indígena,
africano e europeu – possibilitou um novo
tecido cultural que foi e vem sendo
diferenciado pelas influências do meio,
pelas diversas atividades econômicas pela
criatividade nativa e pela incorporação de
outros contextos culturais estrangeiros.
Assim, só se é possível compreender a
cultura brasileira como uma entidade
complexa, produto da sua formação étnica,
social, política e econômica mestiça.
Vannucchi (2002) propõe ainda que a cultura
só poderá ser conceituada como autorealização da pessoa humana no seu mundo
enquanto estabelece entre os dois uma
interação dialética e social. Pois a cultura só
existe em seres humanos concretos,
pertencentes a um povo, a uma classe,
estabelecidos em um território, com um
determinado regime político, dentro de certa
realidade econômica, numa dinâmica de
maior ou menor velocidade de mudanças.
Afinal, a cultura não se cristaliza apenas no
plano do conhecimento teórico, mas também
no da sensibilidade, da ação e da
comunicação.
O conceito de identidade largamente
utilizado pelas ciências humanas, sobretudo a
partir da década de sessenta, passa a ser utilizado
no domínio dos estudos literários a partir do
momento em que as literaturas emergentes
recusam a classificação de literaturas periféricas e
reivindicam um estatuto autônomo no interior do
campo instituído, como assevera Bernd (2002).
Para essa autora, o conceito de identidade não
pode afastar-se do de alteridade: a identidade que
nega o outro, permanece no mesmo, e a exclusão
do outro leva à visão especular, que é redutora,
uma vez que só se é possível conceber o ser dentro
das relações que o ligam ao outro.
Bernd (2002, p.18) afirma ainda que a
busca da identidade possa funcionar de duas
diferentes maneiras:
a) como sistema de vasos estanques […] que
origina cristalizações discursivas que condenam à
morte a “literariedade” dos textos, pois a
inquietação da linguagem é a própria essência do
literário; ou
b) como processo [...] em permanente movimento
de construção/desconstrução, criando espaços
dialógicos e interagindo na trama discursiva sem
paralizá-la.Nesta última acepção, concebido
como continuidade, como síntese inacabada, o
conceito de identidade se sustenta logicamente e
se revela extremamente útil para iluminar a
leitura de textos que, produzidos em situações de
cruzamento e de domínio cultural, procuram
reencontrar ou redefinir seu território.
A reflexão sobre esses conceitos é
fundamental para a compreensão da literatura
produzida no bojo das sociedades modernas.
Frequentemente definidas como sociedades de
mudança constante, rápida e permanente, mas
sobretudo, de uma forma altamente reflexiva,
essas sociedades são caracterizadas por diferentes
divisões sociais que produzem uma variedade de
identidades. Segundo Stuart (1999, p. 22), se “tais
sociedades não se desintegram totalmente não é
porque elas são unificadas, mas porque seus
diferentes elementos e identidades podem, sob
certas
circunstâncias,
ser
conjuntamente
articulados.”
Em consonância com essa concepção, as
identidades
estáveis
do
passado
são
desarticuladas, todavia, outras articulações são
2 IDENTIDADE
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permitidas como a criação de novas
identidades e a produção de novos sujeitos.
3 MESTIÇAGEM
O termo mestiçagem tem sido
recorrente nos estudos contemporâneos da
literatura. É comum constatar em muitas
obras literárias o cruzamento - de linguagens,
de meios de expressão - que gera novos
sentidos nessa confrontação e diálogo e não
na fusão. Esse cruzamento, confrontação e
diálogo, são apresentados por Laplantine e
Nouss (2002) como elementos fundamentais
da mestiçagem.
Assim, mestiçagem na poesia e na
música brasileira são aqueles cruzamentos
produtores de sentidos novos que os poetas
buscam para suas obras, ainda que partam de
uma obra já consagrada, num processo de
revisitação ou de paródia, como ocorre nas
obras analisadas neste artigo. Esses
cruzamentos, conforme postula Cattani
(2006), opõe-se aos paradigmas no novo, do
original, que marcaram a arte moderna,
juntamente com os princípios de pureza e de
unidade de cada forma de expressão, uma vez
que os poetas vêm cada vez mais assumindo
os princípios da “impureza”, da diversidade,
da justaposição de opostos dentro de uma
mesma obra. No entanto, esses cruzamentos
não levam à fusão de opostos, pois a
mestiçagem contradiz precisamente essa
ocorrência, visto que segundo os seus
princípios, os componentes mantêm sua
integridade gerando constantemente novos e
complexos sentidos.
Nesse contexto Laplantine e Nouss
(2002, p. 10) asseveram:
Mesmo se o sincretismo procede à abolição
das diferenças pela associação e enxerto, e
não por subtracção e ablação como o
purismo, é a mesma violência da redução à
unidade que está em curso o mesmo
processo de integração num todo
homogêneo e indiferenciado. O múltiplo
acha-se vencido, pois é absorvido no uno.
Diante desse caráter eminentemente
diversificado e em constante evolução da
mestiçagem, Laplantine e Nouss consideram
Freitas, S.S.R.
desencorajador o ato de tentar defini-la, posto ser
sua única regra a ausência de regras. “Cada
mestiçagem é única, particular e traça o seu
próprio futuro. O resultado do encontro mantémse desconhecido [...]” (LAPLANTINE & NOUSS,
2002, p. 10).
A mestiçagem ocorre tanto nos vários
elementos que compõem cada obra quanto nas
várias fissuras reais ou imaginárias que permitem
a pluralidade de sentidos. Desse modo, as obras
assim concebidas interpelam e desafiam o leitor a
perceber a coexistência de diferentes elementos
lingüísticos e culturais dentro de um único espaço
literário de representação, configurando uma
sintonia entre o campo literário e as constantes
mudanças
socioeconômicas
e
políticas
promovidas atualmente pela globalização.
No mundo globalizado, a economia passa a
abolir simbolicamente as fronteiras entre os
territórios gerando novas configurações de centros
e de margens. Na esfera literária, isso leva muitos
autores a criarem novos mundos a partir de
produções já existentes, buscando extrair delas
outros significados, determinando o encontro e a
troca entre elas, sem que uma se torne a outra, ou
que esta seja reabsorvida pela primeira. Afinal, o
“pensamento da mestiçagem é um pensamento da
mediação e da participação em pelo menos dois
universos”, asseguram Laplantine e Nouss (2002,
p.80).
Outrossim, esses autores configuram o
tempo da mestiçagem como tempo presente,
porque sendo continuamente renovado acaba por
assegurar a permanência das criações e dos
encontros. “É também em si mesmo um tempo
mestiço visto que comporta a junção do passado e
do futuro, tensão em que se constitui.” (Idem,
2002, p. 115). Daí ser possível abranger na
análise, a seguir, obras de tempos distintos como o
poema Canção do Exílio, de Gonçalves Dias,
assentada no Romantismo, a obra homônima do
poeta modernista Murilo Mendes, e ainda a
composição Pátria Minha de Vinícius de Moraes,
nas quais cada componente conserva a sua
identidade e definição, ao mesmo tempo em que
se abre ao outro.
4 ANÁLISE
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Dentre os vários exemplos de
mestiçagem na poesia esta análise deter-se-á
no poema Canção do Exílio, de Murilo
Mendes, no qual o poeta claramente converte
a obra homônima, de Gonçalves Dias, em
uma paródia, embora o tema do exílio tenha
uma conotação diferente por tratar de um
exílio em seu próprio país. No que tange à
presença da mestiçagem na música ressalta-se
aqui a composição Pátria Minha de Vinícius
de Moraes, justamente por também dialogar
com o poema gonçalvino.
4.1 A Canção do Exílio, de Gonçalves Dias
O poema de Gonçalves Dias,
composto, em 1843, quando o poeta se
encontrava em Coimbra realizando seus
estudos
universitários,
apresenta
o
nacionalismo e também o sentimento de
saudade entre outras características marcantes
do Romantismo brasileiro, período literário no
qual foi escrito. O nacionalismo impresso na
canção, bem ao gosto da sensibilidade
brasileira, associado à idealização da natureza
e da pátria marca o ápice da proposta
romântica de construção de uma identidade
nacional. Embora a questão da identidade já
fosse recorrente aos artistas do Brasil desde o
período colonial, é no romantismo que ela
passa a ser amplamente discutida, sendo
retomada e aprofundada depois, por ocasião
do centenário da Independência, quando um
grupo de artistas e intelectuais começa a
“engendrar um projeto de Independência
Cultural contra o atraso herdado do passado
colonial, propondo um redescobrimento do
Brasil, agora pelos próprios brasileiros”.
(ALVES, 2008, p. 98). O modernismo que se
origina desse projeto apresenta um
nacionalismo por vezes radical. Por volta dos
anos sessenta essa questão da identidade volta
a ser discutida pela corrente musical
tropicalista e ainda está presente nos dias de
hoje. É possível perceber sua manifestação,
por exemplo, no fragmento abaixo da canção
de Lenine (1999), na qual os diferentes
elementos de identidade são conjuntamente
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articulados de modo a expressar a mestiçagem, tão
imbricada na cultura brasileira:
Jack Soul Brasileiro
E que o som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue
E o país do swing
É o país da contradição
Eu canto pro rei da levada
Na lei da embolada
Na língua da percussão
A dança, a muganga, o dengo
A ginga do mamulengo
É o charme dessa nação
A presença de elementos culturais diversos
- como o “mamulengo”, espécie de fantoche
comum na Grécia Antiga, a “percussão”,
instrumento de batuque cuja origem é atribuída
aos negros africanos e o pandeiro, instrumento
proveniente da Arábia, - segundo a própria letra,
constitui o “charme dessa nação”, afinal o eu lírico se define brasileiro e tal fato já justifica que
a sua música perpasse com naturalidade por todas
as culturas, num exemplo privilegiado de
mestiçagem.
Quanto ao sentimento de saudade presente
tanto na “Canção do Exílio” gonçalvina, quanto na
obra de Murilo Mendes, Laplantine e Nouss
(2002, p. 108) retratam-no como um “sentimento
mestiço que significa sofrer do prazer passado e,
ao mesmo tempo, ter prazer no sofrimento de
hoje”.
A Canção do Exílio, poema romântico
amplamente parodiado, sobretudo pelos poetas
modernistas, tornou-se uma espécie de símbolo da
nacionalidade brasileira. Maior evidência disso é a
presença de seus versos citados no Hino Nacional
Brasileiro,
em
mais
uma
relação
de
intertextualidade tipicamente mestiça, como
podemos verificar nos versos: “Nossos bosques
têm mais vida / Nossa vida em teu seio mais
amores”.
4.2 Canção do Exílio, de Murilo Mendes
Murilo Mendes foi um dos poetas
modernistas que também converteu a Canção do
Exílio gonçalvina em uma evidente paródia,
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embora no poema de Murilo a questão do
exílio e, por conseguinte, a da saudade sejam
observadas sob uma ótica diferente, posto que
trate de um exílio em sua própria terra e a
saudade refere-se ao sentimento de perda das
coisas naturais do Brasil. O poema é uma
espécie de protesto contra a colonização
cultural do seu país. Assim, elementos de
outras culturas se integram para compor uma
tradução da sua pátria atual tão diferente da
pátria outrora idealizada por Gonçalves Dias.
Já nos primeiros versos o poema
apresenta as “macieiras da Califórnia / onde
cantam
os
gaturamos
de
Veneza”,
simbolizando a invasão da cultura norteamericana e européia em território brasileiro,
quando em vez de sabiás quem canta agora
são os pássaros multicoloridos vindos de
outro país. Nos versos seguintes, Murilo
refere-se, mormente ao poeta Cruz e Souza,
filho de escravos negros e também à poesia
simbolista
aos
quais
acusa
pelo
distanciamento que mantinham da realidade
brasileira: “os poetas da minha terra / são
pretos que vivem em torres de ametista”.
Nos versos “os sargentos do exército /
são monistas e cubistas” surgem termos
referentes à doutrina filosófica apregoada por
Haeckel e ao movimento artístico liderado por
Picasso, cujos pressupostos bastante distintos,
sugerem oposição de ideias. Enquanto o
monismo propõe que o conjunto das coisas
pode ser reduzido à unidade, quer seja do
ponto de vista da substância, quer seja do
ponto de vista das leis pelas quais o universo
se ordena, o cubismo se realiza na
decomposição geométrica das formas
naturais, como de se fossem contemplados
simultaneamente por todos os ângulos ou,
ainda, na colagem dos objetos. A técnica de
colagem consiste em construir uma obra a
partir de diferentes materiais. Essa técnica é
destacada por Laplantine e Nouss como
exemplo de mestiçagem formal nas artes
modernas. Para eles, a colagem perpetra a
mestiçagem na produção da obra e não apenas
na reprodução: “A lógica é da iconografia
cubista: quebrar as formas e justapor os
fragmentos com vista a uma composição nova
Freitas, S.S.R.
que
conserve
os
traços
da
fissura.”
(LAPLANTINE & NOUSS, 2008, p. 109).
O poema segue apresentando situações que
levam o eu-lírico a sentir-se exilado dentro do seu
próprio país, que se mostra excludente, pois é
oneroso para seu povo usufruir das flores “mais
bonitas” e das “frutas mais gostosas” porque
“custam cem mil-réis a dúzia”. O advento das
transformações tecnológicas possibilita que uma
réplica da Gioconda italiana, emoldurada em um
quadro, testemunhe as desavenças comuns no
cotidiano familiar brasileiro, em: “Os sururus em
família têm por/ testemunha a Gioconda”. Por fim,
os últimos versos evidenciam ainda mais a
tradução da ideia de exílio e saudade gonçalvinos,
no entanto, a falta que o eu-lírico sente é
especialmente de coisas genuinamente brasileiras
como a carambola e até o sabiá que também perde
a sua identidade nacional.
4.3 A música Pátria Minha, de Vinícius de
Moraes
Na esfera musical brasileira a mestiçagem
pode ser ricamente ilustrada, uma vez que as
produções nacionais são marcadas pela mistura de
elementos composicionais oriundos dos vários
povos que constituem essa nação. Nesse
particular, ressalta-se aqui a composição de
Vinícius de Moraes, Pátria Minha, cuja própria
concepção musical denominada Bossa-Nova
reflete amplamente a questão da mestiçagem.
Segundo Brito (1960 apud Campos, 2008 p. 22) o
movimento bossanovista “procura integrar
melodia, harmonia, ritmo, e contraponto na
realização da obra, de maneira a não se permitir a
prevalência de qualquer deles sobre os demais”.
No que concerne aos aspectos relativos à letra,
novamente encontramos o tema do exílio e amor à
pátria reforçando as questões de identidade
nacional já mencionada e ainda de mestiçagem por
apresentar um dialogismo intertextual com outros
poemas que tratam dessa temática.
A mestiçagem é notória já na forma do
poema que incorpora elementos do gênero
narrativo. Além disso, algumas estrofes são
fragmentadas, de modo que aparece a quebra do
verso que pode ocasionar a leitores desatentos
uma ligeira confusão. Por exemplo, na primeira
estrofe o poeta fala sobre a “[...] íntima / Doçura e
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vontade de chorar [...]”, mas coloca a palavra
“íntima” no primeiro verso.
Vinícius exerceu cargos diplomáticos
em Los Angeles, na Califórnia e no Uruguai e
enquanto esteve longe do Brasil descreveu na
canção “Pátria Minha” a saudade que sentira
da sua pátria com a mesma paixão que
devotava às mulheres. Aliás, esse é um traço
característico em sua obra que aparece várias
vezes no poema quando o poeta personifica a
terra amada como uma mulher a qual deseja
“beijar os olhos”, “miná-la, de passar-lhe as
mãos pelos cabelos...”.
No entanto, Vinicius, bem como
Murilo Mendes também verte um olhar crítico
sobre a sua pátria não se limitando a idolatrála cegamente, como o fez Gonçalves Dias, o
que é verificável na terceira estrofe:
Vontade de mudar as cores do vestido
(auriverdes!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem
sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!
Nesses versos, o poeta aborda uma
triste questão da realidade social existente no
Brasil, que é o problema da pobreza. Na
segunda estrofe Vinícius afirma não saber o
que é a sua pátria, fato que pode ser entendido
como referência às diversas culturas que a
compõe. Todavia, ainda que seja difícil
compreendê-la, na distância em que se
encontra, só as lágrimas aliviam a amargura
dessa incompreensão e da saudade.
O poeta rememora, na sexta estrofe,
uma de suas estadas na Nova Inglaterra
(EUA) quando observava o céu e visualizava
duas estrelas que ficam próximas da
constelação do Cruzeiro do Sul, esperando ver
surgir a imagem da Cruz do Sul que o
remeteria à terra amada, porém o dia
amanhece logo em seguida. Essa imagem do
Cruzeiro do Sul é emblemática no que tange à
questão da identidade nacional, visto que ela
se encontra na Bandeira brasileira e no escudo
do exército nacional.
Nota-se que o Hino Nacional
Brasileiro também é bastante parodiado ou
citado em muitas composições poéticas ou
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não, comprovando o que foi dito até sobre a
escrita ser mestiça no domínio literário.
No
poema em estudo, versos do hino apresentam-se
ora intentando acentuar um momento saudosista
do poeta, como na sétima estrofe, “[...] pátria
minha / ‘Amada, idolatrada, salve, salve! ’”; ora
visando rechaçar o que canta o próprio hino, nas
estrofes nove, dez e doze, como podemos
constatar a seguir:
Pátria minha...A minha pátria não é florão, nem
ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio
secular
Que bebe nuvem, como terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!
[...]
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a ilha
Brasil, talvez.
Nesses versos, são expressas, ainda,
características relativas à aspectos geográficos da
sua pátria que possui caminhos desolados e “terra
sedenta”, provavelmente numa alusão ao sertão
nordestino e a vida castigada do seu povo. Em
contapartida, a terra querida tem “uma quentura,
um querer bem”, ou seja, uma cordialidade que
faz com que seja amada apesar dos seus
problemas.
Num bom exemplo de mestiçagem
lingüística, a frase em latim que marcou o
movimento da Inconfidência mineira “Libertas
quae sera tamen” aparece numa bem humorada
tradução do poeta para “Liberta que serás
também” sugerindo que quem liberta recebe a
liberdade em troca. Quando na verdade, a tradução
correta seria “Liberdade ainda que tardia”, uma
vez que o movimento ao qual faz referência visava
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a Independência do Brasil e a criação de um
Estado Republicano.
Finalmente, a última estrofe apresenta
um lugar de cruzamento, para onde
convergem
elementos
culturais
completamente díspares formando um texto
rico e mestiço. Nos dois primeiros versos da
última estrofe do poema Vinícius de Moraes
revisita a peça Shakespeare Romeu e Julieta
quando, num dado momento, o casal
enamorado refere-se aos pássaros cotovia e
rouxinol como símbolos do dia e da noite
respectivamente.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudade de quem te ama...
Vinícius de Moraes.”
Porém, neste caso, é preciso que seja
um rouxinol do dia para que possa pedir ao
sabiá - novamente a recorrência ao pássaro
gonçalvino que simboliza a terra querida para enviar um “avigrama” à sua pátria
falando da sua saudade e do seu amor. A
criação da palavra avigrama, um telegrama
levado por uma ave, já implica uma
mestiçagem do termo ave com telegrama. Por
fim, conclui o poema como quem finda uma
carta, remetendo suas sudações e assinando,
associando mais uma vez outro gênero textual
ao gênero poético.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As várias transformações advindas da
era da modernidade desviaram as pessoas de
suas tradições e de seus sentimentos de
pertencimento a uma cultura. O que fez com
que o homem pós-moderno, despertencido e
desraizado, cativo de um modelo fragmentado
de percepção e inserção na vida, se sentisse
em crise com sua própria identidade. Fato que
impôs na arte e na literatura o estabelecimento
constante de vínculos físicos e simbólicos
com tudo com o qual o homem se
relacionasse, possibilitando o encontro de
elementos culturais, históricos, lingüísticos,
Freitas, S.S.R.
entre outros, sem que houvesse perdas das suas
integridades num processo de mestiçagem.
À luz dessas considerações foi apresentada
uma breve análise dos poemas Canção do Exílio,
de Murilo Mendes, inspirado na obra homônima
de Gonçalves Dias e, ainda da composição
musical Pátria Minha de Vinicius de Moraes que
trazem em seu bojo questões concernentes à
cultura, identidade e mestiçagem.
Foram
constatados também diversos elementos de
mestiçagem e pontos de identidade na canção
contemporânea de Lenine, Jack Soul Brasileiro.
Essas obras operam encontros entre si e
conduzem a reflexões sobre identidade, sobre
raízes e sobre lugares, sobre cultura, que levam ao
assunto principal deste trabalho, que é a questão
da mestiçagem.
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é? Como se faz? 3. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
Recebido em abril de 2010 e aprovado em maio de 2010.
Vivências. Vol.6, N.9: p.50-57, Maio/2010
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