Universidade de São Paulo, São Pau

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Universidade de São Paulo, São Pau
Fórum Nacional de Professores de Jornalismo
Escola Superior de Propaganda e Marketing
São Paulo (SP), 26 e 27 de abril de 2013
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Sugestões para desespecializar uma disciplina
de jornalismo especializado1
Marcos ZIBORDI2
(Universidade de São Paulo, São Paulo, SP)
Resumo
O objetivo deste artigo é relatar a experiência deste pesquisador enquanto docente
ministrando, em 2012, da disciplina “Jornalismo Especializado”, na graduação do
Centro Universitário FMU-FIAM-FAAM, em São Paulo, capital. Serão arrolados os
temas das aulas, os exercícios práticos e a bibliografia que pareceu pertinente, composta
de obras teóricas, jornalísticas e literárias – tais referências e a proposta de reescrita das
resenhas produzidas pelos alunos visavam, conforme explica uma das autoras
escolhidas para compor a bibliografia, extrapolar a “herança positivista” rumo ao
“diálogo dos afetos” (MEDINA, 2008).
Palavras-chave
Jornalismo; ensino; especialização.
Especialização é violência?
Durante boa parte do conto “Na colônia penal”, do escritor Franz Kafka (1996),
o antagonista, vivido por um explorador, então numa ilha, ouve, incrédulo, a
detalhadíssima explicação do oficial responsável pela execução dos condenados, que
são mutilados numa engenhoca mecânica durante horas, até a morte. Amarrados à
máquina, os condenados desconhecem suas sentenças, que são inscritas lentamente na
pele, até estraçalhar o corpo todo. A incredulidade do explorador é provocada pelo
elogio apaixonado da máquina por parte do oficial, insensível ao absurdo que descreve
com volúpia. O oficial é um especialista sádico, reprodutor de violência e cheio de
argumentos racionais para agir e justificar a existência da máquina de execução.
Lembrei do assombro do explorador diante do oficial do conto quando, no início
de 2012, a coordenação do curso de jornalismo do Centro Universitário FMU-FIAMFAAM ofereceu a este então recém-contratado a possibilidade de ministrar a disciplina
“Jornalismo especializado”. Quase recusei imediatamente, pois tudo parecia prever a
postura do oficial kafkiano, que só conhece e atua no campo restrito de sua atividade
profissional.
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Trabalho apresentado no GP Projetos Pedagógicos e Metodologias de Ensino, do 6º Encontro Paulista
de Professores de Jornalismo, realizado na ESPM-SP, em 26 e 27 de abril de 2013.
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Jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
[email protected]
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Quando à disciplina, era possível abordar a cada semana uma editoria específica,
como esporte, economia, cultura, ainda mais porque minha outra atividade profissional
estava ligada à crítica de conteúdo do portal UOL, que me obrigava a estar diariamente
informado sobre mais de 20 áreas de cobertura em quatro grandes sites de informação
na internet, Terra, Globo e iG, além do próprio UOL.
Porém, bem menos por esses motivos, aceitei ser professor de “Jornalismo
especializado”. Por quê? Respondo de duas maneiras: a começar pelo nome da
disciplina, nada obrigava à abordagem de uma editoria por semana; nem, por outro lado,
excluía a possibilidade do olhar crítico para a formação de jornalistas especializados.
Investi nisso.
Prática especializada sobre tema desespecializante
Quando, em 2012, ministrei a disciplina para alunos do terceiro ano de
jornalismo, com média de 15 encontros por semestre, o conteúdo era apresentado
através dos antônimos contrapostos neste intertítulo, ou seja, haveria aulas com
exposição teórica tradicional sobre temas de interesse direto para a prática profissional,
como produção de resenha e infográfico, portanto aulas de “especialização”, e outras
para mexer com as certezas dos futuros jornalistas, como o apego a dados numéricos,
que engessa corações e mentes, portanto aulas de “desespecialização”.
Intercalei, sistematicamente, as aulas teóricas aos exercícios práticos, esperando
que a contraposição de abordagens aumentasse o interesse e os contrapontos entre os
conteúdos. Também procurei não repetir estratégias pedagógicas, alternando leituras,
discussões, exibição de imagens e atendimento individual aos alunos para correção das
resenhas, base para posteriores comentários gerais, com toda a turma.
Começamos com aula sobre resenha; consistia na exposição teórica dos tópicos
mais importantes e na discussão de exemplos da imprensa. A ideia era preparar os
alunos para o reconhecimento e a produção de textos opinativos, em especial sobre o
conto de Kafka, a ser comentado e reescrito duas vezes.
Mas qual o motivo de reelaborar as produções, ao invés de pedir várias delas ou
diversos tipos de texto ao longo do semestre? Trata-se de uma opção qualitativa; o olhar
atento e reiterado do professor e do aluno, depois dos alunos, sobre as resenhas. É
surpreendente o quanto tal diálogo aberto afina percepções, opiniões, construções.
Também são muito produtivas as conversas coletivas, pois nestas, mesmo os mais
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retraídos, atentamente participam ouvindo os opinantes. A primeira versão das resenhas
foi corrigida um mês depois do início das aulas.
Entre outros resultados, gratificante destacar que os alunos perceberam o
seguinte: produzir opinião pode ser mais complexo do que reportar, pelo menos no
sentido do repertório exigido e da técnica de um texto que não tem modelo como o lide
– pelo contrário, deve evidenciar a autoria, a postura do narrador diante do mundo, a
começar pelo estilo.
Intercalações entre tópicos e referências
Sem a pretensão de ministrar mapas a conhecedores da matéria, nem limitar as
referências às que arrolarei em seguida, gostaria de indicar como concatenei temas e
bibliografias com o duplo objetivo de contribuir na formação técnica e alertar para os
perigos da especialização cega.
Após a primeira aula, sobre resenha, a segunda discutia o falseamento das
pesquisas de opinião, com base no artigo de Pierre Bourdieu intitulado “A opinião
pública não existe”, em que o autor anota passagens muito propícias ao debate, como
esta:
A sondagem de opinião, no contexto atual, é um
instrumento de ação política; sua função mais importante
consiste talvez em impor a ilusão de que existe uma
opinião pública como pura adição de opiniões individuais;
em impor a ideia de que, por exemplo, numa sala como
esta, existe uma opinião pública, algo que seria como que
a média das opiniões ou a opinião média. (1985, p. 137).
Parte da aula era ocupada com a discussão do artigo citado acima; na outra, as
páginas recortadas e coladas na lousa com fita adesiva de um jornal impresso de grande
circulação, edição do dia, serviam para ir demarcando, com caneta que destaca texto, a
predominância dos recursos quantitativos como números, referências a pesquisas,
levantamentos, indicadores, gráficos, tabelas, porcentagens, etc.
Após essa tentativa de implosão, ou pelo menos abalo, de um dos pilares do
edifício racional, a certeza numérica, na aula seguinte tratamos de subjetividade.
Sentados em círculo, lemos e comentamos a grande-reportagem publicada pela revista
Realidade em 1967, com o título afirmativo de “Existe preconceito de cor no Brasil”
(KALILI e MATTOS, p. 34-55). Destaquei o resultado da vivência em campo de dois
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repórteres, um branco e um negro, que percorrem seis capitais brasileiras escancarando
o racismo cotidiano. Eles fazem o que se poderia chamar de “testes”, indo a escolas,
hotéis, boates, imobiliárias, restaurantes e outros locais em que simulam situações
capazes de flagrar o que todos sabem e insistem em esconder, o preconceito contra os
negros – no centro de São Paulo, por exemplo, o repórter negro finge passar mal e
demora bem mais tempo para ser socorrido do que o repórter branco, quando este,
minutos depois, dissimula seu estado de saúde. Em outra situação, num hotel, o pior
quarto é destinado ao repórter negro. Na reportagem, essas e outras estratégicas dizem
muito mais do que qualquer levantamento quantitativo, de fidelidade pouco provável
quanto ao espinhoso tema do racismo, provavelmente porque, conforme Bourdieu,
ocorre “uma defasagem considerável entre as opiniões que as pessoas produzem numa
situação artificial, como a da pesquisa, e a que elas produzem numa situação mais
próxima das situações da vida cotidiana” (1985, p. 147).
No segundo semestre de 2012, quando pela segunda vez fui professor da
disciplina, troquei a reportagem desta aula pela de Joel Silveira, a clássica “1943: eram
assim os grã-finos em São Paulo” (2003, p. 7) É uma vigilância pessoal: procuro trocar
alguns textos a cada vez que realizo o mesmo curso.
Então, retomando: começamos com a contraposição de duas maneiras de captar
e narrar o mundo, racional e subjetivamente. Na aula seguinte, um pouco de arte. Exibi
imagens de uma obra em que razão e a emoção estruturam o equilíbrio estético, o
romance visual O mez da grippe, de Valêncio Xavier (1998), montado a partir de textos
em diversas tipologias, recortes de jornais, fotografias, cartões-postais, documentos
oficiais, entrevistas e outras fontes sobre a gripe espanhola que matou muita gente em
Curitiba no início do século 20. O recado era: tensionando razão e emoção, literatura
funciona como instigante ferramenta para conhecer o mundo; acessa um tipo de
conhecimento tão vital quanto preservar a fauna e a flora (MORIN, 2012).
A mesma obra literária convinha à discussão posterior, especializada, em que se
procurava discernir as características literárias e jornalísticas de O mez da grippe. O
chamado “jornalismo literário” pressupõe certa clareza em relação aos dois conceitos e
este era o principal objetivo da aula.
Chegava a hora, então, de discutir a relação entre jornalismo e ciência. Os dois
textos de referência eram Ciência e Jornalismo, de Cremilda Medina (2008) e um
capítulo de Edgar Morin (2000). Em comum, detonam os ranços de um pensamento que
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ainda acredita em objetividade e distanciamento, separação entre sujeito e objeto,
compartimentação do conhecimento como sinônimo de eficácia científica, orientação
quantitativa, etc.
A obra de Cremilda Medina aponta do ponto de vista histórico e filosófico
precursores do pensamento positivista, como Descartes e Comte, e as crises de tais
paradigmas, além de possibilidades dialógicas verificáveis em exemplos jornalísticos da
própria autora. Como mero aprendiz de feiticeiro, procurei, ou pelo menos pensei ter
procurado instigar os alunos à “observação-experiência” como “ferramenta que amplia a
técnica burocrática da coleta de informações e dá margem à autoria solidária, rigorosa e
criativa” (MEDINA, 2008, p. 95). No semestre seguinte, no qual haveria a disciplina de
livro-reportagem, deveria fazer diferença ter tido contato com noções como “importa,
mais do que fórmulas, um repertório rico de formas. Na intimidade do processo de
pesquisa se ilumina o caminho a ser palmilhado pelo jornalista-narrador” (p. 80).
A outra referência teórica da aula, o quarto capítulo de A inteligência da
complexidade, de Edgar Morin (MOIGNE, 2000, p. 197), sumaria e contrapõe o
“paradigma da simplificação” às noções de complexidade que, conforme desenvolvida
através da obra do autor, obviamente não é assunto para ser mutilado em poucas horas,
daí ser importante observar que o texto escolhido funciona bem em sala de aula para
uma apresentação sintética: começa pelos paradigmas da ciência clássica, aborda seus
três pilares (ordem, separabilidade e razão absoluta) e como eles foram ultrapassados
por avanços às vezes no interior da própria ciência mais dura, como a física
(termodinâmica); cita filósofos importantes para o avanço do pensamento complexo,
aponta o que chama de falsa racionalidade e indica princípios.
Aí era hora, novamente, de um pouco mais de prática textual: fazíamos a nova
rodada de correção e discussão das resenhas; claro, a segunda versão, sempre melhor,
injetava ânimo para reescrever. O método, o mesmo: atendimento individual e discussão
coletiva da produção, duas semanas para a atividade.
Partíamos então para outra aventura especializada, aulas sobre crítica de mídia,
começando com exemplos nacionais pioneiros e concluindo o ciclo de discussões com o
relato do trabalho de análise de conteúdo do UOL, evitando citar dados e procedimentos
que ferissem o contrato de sigilo que eu matinha com o portal.
Apresentado em sua faceta de crítico da mídia da segunda metade do século 19,
quando a expressão “mídia” nem existia, Ângelo Agostini (2000, 2005) produziu na
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capital paulista, entre 1864 e 1867, os primeiros jornais ilustrados da cidade,
publicações ácidas e implacáveis contra a imprensa, a cultura, os costumes, a religião e
outros provincianismos. A aula consistia na projeção de imagens dos dois jornais de
Agostini em São Paulo, Diabo Coxo e Cabrião.
A aula seguinte era reservada a outro severo crítico da imprensa, Lima Barreto,
que inaugura o gênero na literatura brasileira. E inaugura tão decisivamente que o seu
Recordações do escrivão Isaías Caminha atiçou a raiva de inúmeras personalidades que
viraram personagens do romance. Não poderia ser diferente, pois o livro tem passagens
assim:
A Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que,
se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos
velozes cruzadores e formidáveis couraçados, só poderia
dar plena expansão à sua atividade se se fizesse jornalista.
Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista
moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma
coragem de salteador; conhecimentos elementares do
instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma
adivinhação, um faro para achar a presa e uma
insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a
prova... E assim dominam tudo, aterram, fazem que todas
as manifestações de nossa vida coletiva dependam do
assentimento e da sua aprovação... Todos nós temos que
nos submeter a eles, adulá-los, chamá-los gênios, embora
intimamente os sintamos ignorantes, parvos, imorais e
bestas... Só se é geômetra com o seu placet, só se é calista
com a sua confirmação e se o sol nasce é porque eles
afirmam tal coisa... E como eles aproveitam esse poder
que lhes dá a fatal estupidez das multidões! Fazem de
imbecis gênios, de gênios imbecis; trabalham para a
seleção das mediocridades. (BARRETO, 1997, p. 115).
Essas aulas preparavam o caminho para a apresentação de uma metodologia
contemporânea de aferição da produção jornalística, a desenvolvida pelo UOL para
medir furos, atrasos e balizar correções. Para o monitoramento, utilizam programas de
computador e tabelas eletrônicas para cálculos. É especializadíssimo. Como referência
teórica, indiquei artigo científico que relaciona os princípios de Otto Groth
(periodicidade, universalidade, atualidade, publicidade) ao jornalismo na internet
(FIDALGO, 2004).
O último tópico deste bloco especializado era concepção e edição de infografia.
Colaborei em diversas obras didáticas da editora Moderna fazendo pesquisa e texto para
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infográficos, mas a abordagem não era só técnica; procurava também indicar aos alunos
outras possibilidades profissionais – muitas vezes, o curso de jornalismo fica reduzido à
reportagem e quem não opta por ser repórter passa a graduação angustiado, pensando
estar no curso errado. A infografia é um dos inúmeros campos de atuação do
profissional formado em jornalismo e em áreas afins. Na aula, eu mostrava o processo
de pesquisa, produções próprias (rascunhos, versões intermediárias, provas finais) e
comentava o perfil profissional do infografista, alguém que obrigatoriamente trabalhará
em equipe, com especialistas em pesquisa de imagem, designers, desenhistas, editores
de área.
O curso chegava ao final. Realizamos outra rodada de correção individual e
discussões coletivas das resenhas e partimos para o encerramento desespecializante. Os
tópicos eram pauta e entrevista. Para abrir a discussão que, no fundo, dizia respeito
novamente a estratégias para fugir das coerções, havia uma aula com exibição,
especialmente de capas, da chamada imprensa alternativa brasileira (KUCINSKI, 2003).
Tentei demonstrar que durante o período repressor houve libertação da linguagem
jornalística em amplo espectro, das longas entrevistas coletivas do Pasquim (BRAGA,
1991) ao ativismo político peculiar de uma publicação como Versus (BARROS FILHO
e MENDES, 2007).
Na penúltima aula, sobre pauta, insisti em que muito do processo jornalístico
começa errado por desconsiderar as discussões preliminares em reuniões nas quais,
pretensamente, a pauta deveria ser discutida. Ela pode semear a futura grandereportagem ou ser a primeira refém da burocracia, do pouco tempo e da má vontade.
Não quer dizer que ela sirva somente para direcionar o trabalho; porém, é fundamental
para dar direção e sentido, inclusive facilitando desvios de rota cuja necessidade ficará
clara justamente porque sabíamos o que procurávamos.
Essas provocações eram reforçadas pelo conto “Abraçado ao meu rancor”, do
escritor e jornalista João Antonio, um libelo contra a maneira programada de ser
jornalista. Imaginem que ele ironiza as campanhas de apelo turístico na capital paulista
num texto escrito durante a ditadura, a mesma ladainha que hoje em dia prega o
“turismo de negócios” em São Paulo. E, mesmo rancoroso, lamentando a cidade e o
jornalismo de outrora, João Antonio escreve belíssimas páginas de amor ao jornalismo,
como bem sabe sua mãe, resignada enfim com a profissão do filho, que não permite
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dois amores. É difícil não ser tocado, ou mesmo ofendido, com a maneira como o
narrador debulha a profissão:
Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai
empurrando a coisa com a barriga, meio pesadão. Sem
qualquer alegria, garra ou crença, cutucado pela
necessidade da sobrevivência. Apenas. O pior, se existe
um, é que esta ocupação sovina e instável acaba como que
atraindo azares, vícios, mortificações e levantando desejos
de destruição, pespegando sentimentos culposos. A
bebida, algum esbórnia, outros empurrões que se tenta dar
nessa consciência só fazem afundar mais o poço.
(ANTONIO, 2001, p. 75)
Aproveitando o estado emocional sensibilizado dessa penúltima aula, a última,
sobre entrevista, apontava novamente para a necessidade desautomatização: perceber o
gesto, sentir, ouvir e, efetivamente, dialogar: “O que não se pode negar é que existe na
entrevista a possibilidade de um diálogo, do plurálogo” (MEDINA, 2001, p. 18).
A entrevista é talvez o procedimento jornalístico mais complexo que existe. Ela
coloca seres humanos, em tese únicos, numa relação para questionamentos e respostas;
o grau de imprevisibilidade é enorme, e mesmo as necessárias pesquisas e anotações
prévias, não garantem nada:
Um entrevistado cujo universo de pensamento, emoções e
comportamento não se submete à linearidade de um
questionário rígido, proposto pelo entrevistador, renderá
mais se a conversação for, já no momento de captação,
livre, solta. Para representá-la em um texto, sempre
haveria a opção de ‘reordená-la a fórceps e, muitas vezes,
se procede assim. Haverá, no entanto, entrevistas que
imploram uma estrutura-mosaico, ao sabor de um diálogo
fluente, desarmado, que já aconteceu. O leitor entra na
coerência interna do entrevistado, não precisa, neste caso,
do didatismo escolástico do jornalista. (MEDINA, 2001,
p. 67)
Preparação para o mercado, por incrível que pareça
Durante o curso, os alunos empolgados se mostravam, ao mesmo tempo, mais
preocupados na medida em que eram apresentados a produções criativas: pensavam não
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haver espaço na imprensa para isso. Mas não se tratava de um discurso nostálgico como
o conto de João Antonio, lamentando a profissão e a cidade que não existem mais. Não.
Ocorre que a pregação de um sacerdócio textual é gravíssima, sobretudo, porque
não tem respaldo nos fatos, conforme costumamos exigir enquanto distintivo ético e
profissional. Quem faz bíblia dos manuais de redação talvez desconheça o fato de que a
maior parte do que se publica, por exemplo de material impresso, é dominado por
revistas, cujo texto, de saída, deve ser menos previsível. Conferir nas bancas e constatar
facilmente: a maior parte do que se escreve exige um pouco mais do que o lide. Da Veja
a publicações customizadas que recebemos constrangidos no sinal de trânsito, percebese em diversos graus a presença de escritos tão autorais que descambam até para o mais
duvidoso bom gosto, encontrável em catálogos de cosméticos.
Inesperado, contraditório e tão real, decisivo e menos pretensioso do que pode
parecer, de certa forma a experiência docente que relatei procura cumprir a promessa da
propaganda: “preparar para o mercado”. Quero acreditar que não tenha sido só isso, mas
também foi.
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BRAGA, José Luiz. O Pasquim e os anos 70: mais pra êpa que pra ôba. Brasília:
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