MARX DE VOLTA? NA COMUNICAÇÃO?
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MARX DE VOLTA? NA COMUNICAÇÃO?
Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano Artigos Seção Livre Número 4. Junho 2014 © 2014 by UFF MARX DE VOLTA? NA COMUNICAÇÃO?1 MARX IS BACK? AND IN COMMUNICATION? Rafael GROHMANN2 Resumo: O artigo se propõe a pensar a atualidade do pensamento de Karl Marx e do materialismo histórico e como, a partir disso, podemos compreender problemas atuais do Campo da Comunicação. Com isso, procura pensar uma agenda a partir do paradigma materialista na comunicação, a partir de um olhar renovado para temas como classe social e trabalho, considerando as novas tecnologias e a midiatização, bem como suas implicações. Palavras-chave: Marx; Comunicação; Classe; Trabalho; Internet Abstract: The article aims to present the current of the tough of Karl Marx and historical materialism and how, from this, we can understand current problems of Communication field. Thus, we propose an agenda from the materialistic paradigm in communication, from a fresh look for themes such as social class and work, considering the new technologies and media coverage, as well as its implications. Keywords: Marx, Communication, Class, Work, Internet 1. Introdução 1 Trabalho apresentado no GP Teorias da Comunicação do XIII Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutorando e Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor dos cursos de Jornalismo e Rádio e TV do Complexo Educacional FMU-FIAM-FAAM e do curso de especialização em Mídias e Redes Sociais da Universidade Anhembi Morumbi. Integrante do Centro de Pesquisas em Comunicação e Trabalho (CPCT/ECA-USP). [email protected] 213 | P á g i n a Desde a crise econômica de 2008, parece haver um renovado interesse em Karl Marx e seu legado. Terry Eagleton (2012) e David Harvey (2013) são alguns dos autores a terem livros recentemente lançados no Brasil sobre o autor alemão, além de um dos últimos livros de Eric Hobsbawm (2011). Mas isso quer dizer que o marxismo continua atual, que “Marx está de volta”? E qual a relevância da concepção marxiana/ista para o campo da Comunicação e para a Teoria da Comunicação? Pretendemos, com este artigo, iniciar este debate, principalmente a partir de autores como Christian Fuchs (2011; 2012b), que pensa o autor a partir da Comunicação e dos estudos de Internet. 2. Marx de Volta? Antes de se entender a atualidade do pensamento marxiano, é preciso entender o materialismo histórico epistemologicamente. No materialismo histórico não é o sujeito ou o objeto o lugar de estudo, mas este se dá na relação entre sujeito e objeto, em um processo dialético. A importância não se encontra “no indivíduo (...), mas nas relações sociais; se constrói com base nas relações do homem com a natureza, pelo trabalho, e com outros homens” (Kuenzer, 2002, p. 34). O indivíduo, nessa acepção, não é um autômato, é um indivíduo porque é um ser social, um ser que só se constitui nas relações sociais. Marx parte dos indivíduos reais e ativos, mas não em uma concepção liberal, e sim considera o indivíduo como um “indivíduo social”, pois o homem nasce em uma sociedade, e é fruto de muitas condições sociais que ele não escolhe – e neste sentido, as condições criam o indivíduo, mas é este mesmo indivíduo social que possui a capacidade de transformar a realidade em que vive. Há uma dialética entre o ser singular e o “ser genérico”, considerando a universalidade do homem, que pertence a uma espécie, a um gênero, unido pela atividade vital, que assegura a vida desta espécie. Para Schaff (1967), a essência do homem está na coletividade e na unidade do homem com os homens. “O ponto de partida é o indivíduo, porém entende-se o indivíduo, desde o início, em relação a outros indivíduos, ou seja, socialmente” (Schaff, 1967, p. 89). Marx (2007) confirma esta visão, ao mostrar os princípios do materialismo histórico, como método de análise da vida em suas diversas esferas: econômica, política, social e cultural. “Os pressupostos de que 214 | P á g i n a partimos (...) são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (Marx, 2007, p. 86). Ou seja, o que está em jogo no materialismo histórico é a concepção de sujeito, que se faz e refaz nas relações com outros sujeitos, dialogicamente (Bakhtin/Volochinov, 2010), nos planos “micro” e “macro” – ou seja, nas inter-relações entre o social e o individual. O indivíduo como sujeito social e que pode transformar a realidade em que vive é o central: “[...] por sermos criaturas batalhadoras, com anseios e linguagem, somos capazes de transformar nossas condições ao longo do processo conhecido como história. Ao fazer isso, acabamos, ao mesmo tempo, transformando a nós mesmos” (Eagleton, 2012, p. 70). O que interessa é, na relação entre consciência e vida prática, saber como se dá a produção de sentidos pelos sujeitos sociais a partir da vida material, compreendendo seus significados. Se com ‘ser social’ queremos dizer o tipo de coisa que fazemos, a consciência já se encontra aí envolvida. Não é como se a consciência existisse de um lado de um divisor de águas e nossas atividades sociais de outro. Não é possível votar, beijar, apertar mãos ou explorar o trabalho imigrante sem significados e intenções (Eagleton, 2012, p. 121). Eagleton (2012) nos lembra que não podemos compreender o mundo com lentes marxianas tendo em vista os mesmos problemas e o mesmo cenário do século XIX, pois um dos pilares do materialismo histórico é justamente compreender o dinamismo na sociedade e compreender o movimento. “Quem estuda Marx tem liberdade para escolher que ideias em sua obra parecem mais plausíveis. Apenas os marxistas fundamentalistas encaram essa obra como escritura sagrada, e hoje eles existem em menor número do que os fundamentalistas cristãos” (Eagleton, 2012, p. 46). A tradição marxista possui diferentes vertentes, com autores presentes no campo da Comunicação, tais como Theodor Adorno, Antonio Gramsci, Raymond Williams e Edward Thompson. Houve também algumas tentativas de reconstruir Marx e seu legado, como Habermas (1990) em “Para a Reconstrução do Materialismo Histórico”. No entanto, 215 | P á g i n a este autor acaba por deslocar os preceitos do materialismo histórico de acordo com a sua teoria da ação comunicativa. De acordo com Fígaro (2008, p. 40), “Habermas extrai da linguagem sua característica de arena social, pois como mediadora, representação e possibilidade de conhecer a realidade ela é lugar de embate ideológico, de pontos de vista, sobre a vida, a razão e a fé”, abandonando a contradição sistêmica analisada pela teoria marxista e autonomizando a questão comunicacional, esquecendo-se da própria econômica política A partir da década de 80, outras correntes também tentam compreender o marxismo no mundo atual. Um dos exemplos vem da sociologia norte-americana a partir da corrente conhecida como “marxismo analítico”. Esta corrente também pretendia “reconstruir o marxismo” mas tentando atualizar e trazer clareza “às formulações causais do marxismo clássico, de acordo com os procedimentos da filosofia analítica” (Perissinotto, 2010, p. 125) e negar qualquer especificidade metodológica do marxismo. Os principais autores – como Michael Burawoy, Erik Olin Wright, Jon Elster, John Roemer e Adam Przeworski, buscam entender problemas da emancipação humana e da exploração a partir de conceitos como ação coletiva, formação de classe e a conceituação das classes médias. “Os seus principais representantes continuam a sustentar um compromisso com a maleabilidade histórica das preferencias humanas, em função da formação social do indivíduo” (Perissinotto, 2010, p. 124). Há, ainda, dois conjuntos de autores que Therborn (2012a) classifica como pertencentes ao “neomarxismo”, mas que possuem suas ambivalências e tem sua ancoragem mais na filosofia política do que propriamente na sociologia: o esloveno Slavoj Žižek (2011) e os italianos Antonio Negri e Michael Hardt (2005). Ambos seguem a prática do marxismo ocidental no sentido de ler e usar Marx através das lentes de outras grandes tradições intelectuais europeia – sobretudo a psicanálise de Lacan, mas também um espectro filosófico cujo centro é Heidegger, no caso de Žižek, e a filosofia de Spinoza, no caso de Negri (...). Enquanto os best-sellers de Hardt e Negri, assim como os de Žižek, dão testemunho de criatividade e da atração das tradições marxistas, leitores mais voltados para a sociologia serão no mínimo céticos quanto à invocação da afirmação de Spinoza de que o ‘desejo profético é irresistível’ e 216 | P á g i n a de que ‘o profeta pode produzir seus próprios seguidores’ (Therborn, 2012a, p. 141/142). Este rol de autores citados acima serve apenas como um panorama ou um panode-fundo para a questão central: mesmo com correntes tão diversas, o que significa falar em Marx hoje? Na visão de Therborn (2012a), falar em Marx hoje é compreender as forças produtivas e as relações de produção em escala global e seus efeitos conflituosos sobre as relações sociais. Não se pode ter soluções prontas, nem perder a agudeza crítica. Na realidade contemporânea, uma (re)-leitura de Marx “deve partir das categorias de base da sociedade capitalista: valor, dinheiro, mercadoria, trabalho abstrato e fetichismo da mercadoria” (Frederico; Teixeira, 2008, p. 46). Ou, de acordo com Celso Frederico (2008b, p. 87), “[...] falar em Marx, hoje, é voltar ao mundo real, ao mundo do trabalho, da produção, das classes sociais e da história”. Os conceitos, então, de classes sociais, ideologia e trabalho são centrais para a perspectiva marxista. Termos que parecem “fora de moda”. A classe pode ter sido abolida retoricamente em muitos textos, mas uma quantidade impressionante de evidência empírica confirma que ela permanece como uma força essencial para modelar a maneira como vivemos hoje. É extremamente irônico que a ‘virada’ teórica pós-moderna, que impulsionou questões de identidade, consumo e diferença para o centro da atenção acadêmica, coincidiu quase exatamente com a revolução neoliberal em diretrizes sociais e econômicas. É fácil ‘pensar que a classe não importa’ se você permanece relativamente ‘não-afetado por privações e exclusões que ela causa’ (Murdock, 2009, p. 33). Ou como diz Eagleton (2012): não é “só porque os presidentes de empresa hoje podem usar tênis, ouvir Rage Against the Machine e implorar a seus empregados para os chamarem de ‘fofos” (Eagleton, 2012, p. 134) que a classe social foi varrida da Terra. Therborn (2012b), em artigo recente na revista New Left Review, se questiona se haverá um “século de classe média”, principalmente considerando o papel dos BRICs na reconfiguração da geopolítica contemporânea. “A personalidade social do novo 217 | P á g i n a século ainda está para ser determinada, mas o conceito de classe certamente será de vital importância” (Therborn, 2012b, p. 37). Há também os que proclamam o “fim das ideologias” e que as ideologias hoje não existem. Bakhtin/Volochinov (2010) já diziam que todo signo é ideológico, e não é possível haver ideologia sem os signos, considerando ideologia como um posicionamento no mundo. Logicamente, não podemos achar que todos os atos mundanos são ideológicos: “[...] presumo que Paul McCartney tenha comido nos últimos meses, o que não é particularmente ideológico” (Eagleton, 1997, p. 17). Para Eagleton, não podemos achar que tudo é ideologia, pois o conceito fica tão plástico a ponto de perder seu poder explicativo. O trabalho é outro conceito que também não acabou. Não estamos nem no mundo do “ócio criativo” (DeMasi, 2000) nem no universo onde o trabalho é só sistema e não “mundo-da-vida” (Lebenswelt), como em Habermas (1999). Então, como Marx enxerga o trabalho e qual a centralidade deste conceito na vida contemporânea? 3. A Centralidade do Trabalho Marx (2007) definiu trabalho como atividade humana. O homem age sobre a realidade, não a partir de forças divinas, e cria sobre esta realidade. “O trabalho humano transforma a realidade objetiva e faz dela, assim, a realidade humana, isto é, o resultado do trabalho humano” (Schaff, 1967, p. 76). A capacidade de trabalhar é constitutiva do ser humano, um produto especial de nossa espécie, uma atividade que altera o estado natural das coisas. Por isso, não podemos considerar o trabalho apenas do ponto de vista “técnico”, a partir das maneiras de trabalhar. Como diz Braverman (1981, p. 53), “nos seres humanos, diferentemente dos animais, não é inviolável a unidade entre a força motivadora do trabalho e o trabalho em si mesmo. A unidade de concepção e execução não pode ser dissolvida”. Trata-se de uma propriedade inalienável do indivíduo social, humano, como todas as funções de nosso corpo, por exemplo. Neste sentido, nunca podemos vender o nosso trabalho; o que vendemos é a força de trabalho por um tempo determinado. 218 | P á g i n a O trabalhou mudou: não é o mesmo de Chaplin, em Tempos Modernos. De lá para cá, houve reestruturações produtivas, flexibilizando o discurso das organizações e endurecendo o trabalho. Estamos em um momento do capitalismo, o qual Boltanski e Chiapello (2009) chamam de “novo espírito do capitalismo”, em que são requeridas habilidades comunicativas para o mundo do trabalho. Compreender as mudanças no mundo do trabalho e suas conexões com o capitalismo faz parte de um programa materialista. Castells (2010, p. 59) explica: “a criatividade, a autonomia e a capacidade de ‘autoprogramação’ não seriam produtivas se não pudessem se combinar com o trabalho em rede”. Neste “novo espírito do capitalismo”, as redes representam um ingrediente constitutivo das atividades produtivas. Pois então, “a razão fundamental da necessidade estrutural de flexibilidade e autonomia é a transformação da organização do processo de produção” (Castells, 2010, p. 59). Trata-se de um mundo marcado pelo “imperativo da flexibilidade”, que é um discurso que circula pelas diversas esferas da sociedade. Um exemplo pode ser visto nesta peça publicitária da marca Halls, de 2013, intitulada “Halls Contrata”: “enquanto centenas de milhões vão trabalhar transpirando em seus ternos e gravatas, você agradece por ter escolhido a profissão certa. O dia em que a vida te dá um tapa nas costas e fala: ‘você mandou bem’. Hoje você é livre. Hoje, todos os trabalhadores te invejam (...). Trabalhos irados e temporários”. O trabalho, então, é visto a partir da “ética da aventura” (Holanda, 2006), relacionado ao lazer, à liberdade e a satisfação individual. A percepção do trabalho como um “jogo” ajuda a justificar trabalhos precários ou não remunerados em nome do “jogo”, o que Küklich (2005) chama de playbour ou playbor (play + labor). O sociólogo Richard Florida escreveu em 2002 o livro “A Ascensão da Classe Criativa”, em que afirma que os trabalhadores estão “inovando” na maneira de trabalhar e nos seus objetivos, procurando uma “hipermobilidade horizontal” do mercado de trabalho, “escritórios sem colarinho”, colocando a “criatividade” como característica básica desta nova “classe”3. “Todos os membros da classe criativa (...) compartilham o mesmo éthos criativo, que valoriza a criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito” (Florida, 2011, p. 8). 3 Cabe indagar o que seria uma “classe” e o que faz a “criatividade” constituir uma classe. Este tema não é central no presente artigo, mas integrará futuras investigações. 219 | P á g i n a O campo semântico da expressão “classe criativa” é o mesmo de expressões como “economia criativa” e “indústria criativa”, e pode se relacionar ao campo do empreendedorismo, por exemplo. No caso de Florida, ele centra os profissionais “criativos” no campo de um “conhecimento especializado”. Ele coloca no centro desta “classe” profissionais como cientistas, engenheiros, poetas, artistas, professores universitários, personalidades culturais, designers e arquitetos. A esta expressão podemos associar “trabalhadores do conhecimento”, ou knowledge workers. Sua conceituação está ligada ao panorama apresentado por Daniel Bell (1973) de que há um crescimento de uma sociedade dependente mais da distribuição de informação, e, por isso, seria uma sociedade “pós-industrial”, demandando, então, mais profissionais que trabalhassem com a informação. “A definição mais ampla de trabalho do conhecimento inclui todos os trabalhadores envolvidos na cadeia de produção e distribuição de produtos de conhecimento” (McKercher; Mosco, 2007, p. XI). No entanto, o que seria “criatividade” ou “conhecimento” fica em um plano vago. O que parece estar em jogo é a legitimação de determinados tipos de trabalho como considerados legitimamente criativos ou que envolvessem conhecimento em detrimento de outros, criando uma hierarquia para os “melhores” e os “piores” trabalhos. O que se coloca em disputa então é a oposição entre “trabalho manual” e “trabalho intelectual”, como se fosse possível trabalhar sem o intelecto: uma falsa oposição entre “as partes de cima”, positivadas, em detrimento das “mãos”. Mesmo o trabalho mais braçal envolve operações intelectuais, e o trabalho de um escritor, por exemplo, envolve o trabalho manual ao escrever em um caderno ou digitar no teclado do computador. Como diz Schwartz (2011, p. 28), Quem hoje poderia sustentar que o trabalho ‘manual’ não mobiliza, por meio do corpo, como suporte de uma história pessoal, a síntese de microapreciações, de microescolhas, de microjulgamentos? E quem, ao frequentar hoje as atividades de serviço, poderia negar que um ‘pensamento’, uma operação intelectual, não é fecunda, não é eficaz, visto que tal operação faz parte de um corpo para o qual viver em seu meio de trabalho é valor ou saúde? 220 | P á g i n a Apesar de oferecer uma análise social “adocicada”, Richard Florida (2011) reconhece as ambivalências desta “classe criativa” e afirma que quem pertence a ela trabalha mais do que a classe trabalhadora “tradicional”. “A questão não é tanto o excesso do trabalho, mas a sensação de que estamos sempre apressados e de que não temos tempo suficiente (...). O trabalho criativo consome mais tempo e é estressante, e cada vez mais pessoas sentem isso” (Florida, 2011, p. 150-151). Do mesmo modo que Marx (2011) já dizia que muitos outros já haviam falado de “classe” antes dele, e que o seu diferencial era, justamente, a “luta de classes”, o conceito de trabalho também é apropriado em diversas tradições teóricas, sendo que o diferencial de se ler o trabalho à luz de Marx é considerar a dialética do trabalho, como sofrimento e prazer, nas dimensões “micro” e “macro”, da lente microscópia às relações estruturais da sociedade, dimensionando o lugar dos sujeitos sociais e da exploração. “A produção e a exploração da mais-valia é, de acordo com Marx, o coração da estruturação de classe e do capitalismo” (Fuchs, 2011, p. 141). Mas, se o trabalho tem caráter central, como podemos entender a relação do trabalho com a Comunicação e compreender o campo comunicacional a partir de Marx? 4. Marx e a Comunicação Para a perspectiva materialista, conforme Rüdiger (2011, p. 80), “[...] o trabalho representa (...) o fundamento da interação simbólica. A comunicação, em última instância, é a mediação primária do trabalho”, e a produção e o trabalho são fatores de desenvolvimento da linguagem e da comunicação. Portanto, a comunicação, nesta visão, é, não apenas uma mediação da práxis, mas um “meio de socialização da consciência gerada pelas condições históricas que determinam essa práxis” (Rüdiger, 2011, p. 78). A comunicação é produção de sentido, que se dá na relação, e não na mera transmissão de informações. Trata-se, então de um “processo que estabelece uma compreensão praticamente mediada entre os homens” (Rüdiger, 2011, p 88). A partir disso, os processos comunicativos devem ser vistos, não como atividades isoladas, mas constitutivos de realidades históricas e relacionados à estrutura de poder e ao modo de produção da sociedade contemporânea. 221 | P á g i n a Além disso, não existe trabalho sem comunicação, o que faz McKercher e Mosco (2008) considerarem o trabalho como um “ponto cego” dos estudos de comunicação.. Como afirma Williams (2011), os meios de comunicação são, eles próprios, meios de produção. A comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social, constituindo-se assim em elementos indispensáveis tanto para as forças produtivas quanto para as relações sociais de produção (Williams, 2011, p. 69) Portanto, o trabalho não somente tem um caráter comunicativo, e, portanto, linguageiro e próprio da atividade humana (Engels, 1975), mas comunicação também pode ser, ela mesma, trabalho. Fuchs e Sevignani (2013) alertam para não considerarmos comunicação e trabalho como sendo categorias independentes, mas colocá-las como entrelaçadas na vida social. Para Fuchs e Mosco (2012, p. 130), “uma teoria marxista da comunicação vê a comunicação nas relações com o capitalismo (...), incluindo o desenvolvimento de forças e relações de produção, mercantilização e produção de mais-valia, divisões e estruturas de classe”. No entanto, há de se considerar não só o “macro” dessa relação, mas o “micro” da atividade cotidiana, dos sujeitos. Portanto, deste ponto de vista, poderíamos considerar a Economia Política da Comunicação (macro) e a tradição dos Estudos Culturais britânicos (micro) como complementares para uma teoria marxista da comunicação. Um dos desafios de trazer Marx no século XXI para a Comunicação é entender que que a luta de classes é central para a sociedade atual, mas que não podemos classificar todos os atos possíveis como “luta de classes”, senão o conceito perde seu próprio poder explicativo. Como diz Eagleton (2012, p. 30), Marx declara no Manifesto Comunista que “a história de toda a sociedade existente anteriormente é a história da luta de classes”. Claro que não se deve interpretá-lo ao pé da letra. Se o fato de eu escovar os dentes na quarta-feira passada conta como parte da história, é difícil considerar tal ato como uma questão de luta de classes. Executar determinado arremesso no críquete ou ter obsessão patológica por pinguins não é fundamentalmente relevante para a luta de classes. 222 | P á g i n a Isto não quer dizer que a luta de classes tenha sumido, pelo contrário. Bakhtin/Volochinov (2010) já diziam que o signo expressa a luta de classes e o próprio jornalismo revela esta questão. Na revista Veja do dia 10 de julho de 2013, há a seguinte enquete: “você concorda que quem recebe dinheiro do governo federal poderia ter o direito de se declarar impedido de votar por óbvio conflito de interesses?”. Por que seria “óbvio” o conflito de interesses destas pessoas e “não-óbvio” os conflitos de interesse das empresas de comunicação, por exemplo? O repúdio aristocrático em relação ao “pobre” faz parte dos discursos do jornalismo e também dos discursos da sociedade – eles não são entidades isoladas. Portanto, o que nos cabe, aqui, definir, por ora, é uma agenda de pesquisa em comunicação, tendo em conta os princípios de Marx. Por exemplo: um conceito importante é compreender, na comunicação, a questão da circulação de mercadorias e também a circulação dos discursos – como vimos no parágrafo acima. A concepção marxiana de circulação é melhor explicada neste excerto. a fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozinhada, comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne crua, servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conseguinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas também subjetiva. Logo, a produção cria o consumidor (Marx, 1973, p. 220). Se a produção cria o consumidor, temos um “circuito” de produção e consumo. Conforme Muniz Sodré (2009, p. 104), “o consumo não pode mais ser entendido como simples momento finalístico da racionalidade produtiva, e sim como um verdadeiro sistema que relaciona o sujeito não apenas a bens e valor de uso, mas ao mundo enquanto totalidade”. Neste circuito, “o consumo realiza o objetivo da produção e propõe novas finalidades para a produção; portanto, de certa forma, o consumo produz a produção” (Frederico, 2008a, p. 83). O consumo não é o final, a produção não é o início. É um circuito, ou seja, as mercadorias estão em circulação, como os discursos, como a comunicação: “produção” e “consumo” não são categorias estanques e não podem ser entendidas separadamente, 223 | P á g i n a unilateralmente, como fazem outras teorias, pois as “coisas” mudam de posição. Exemplo: “para se produzir esta mesa a minha frente foram necessários o consumo de matérias primas (madeira, ferro, etc.) e o consumo de algumas horas de trabalho” (Frederico, 2008b, p. 159). Não há, portanto, aqui, a “vitória” e a “felicidade” do consumidor final, que, agora poderia escolher tudo o que quisesse, e a produção estaria a serviço do “consumidor individual”. Para Marx, mesmo com a ênfase na circulação, há o primado da produção: “é ela que cria o material do consumo, o modo pelo qual o produto será consumido, e é o impulso que cria novas necessidades nas pessoas” (Frederico, 2008b, p. 160). Portanto, as relações entre os processos comunicacionais e as práticas de consumo podem ser exploradas neste âmbito. Um autor que tem se destacado em pensar a importância de Marx na Comunicação é Christian Fuchs, atualmente professor de mídias sociais da Universidade de Westminster, em Londres. Em seus livros, como “Foundations of Critical Media and Information Studies” (2011) e “Internet and Society” (2008), ele tenta mostrar como podemos construir uma teoria crítica da comunicação e estudar as redes sociais a partir desta perspectiva, marcada por autores, como ele mesmo diz, “apologéticos” e “não-críticos”. Inclusive, ele lançará neste ano um livro chamado “Digital Labour and Karl Marx”, algo que pode parecer impossível, pois há quem, ao pensar em Marx, logo se lembre do cheiro de naftalina. Para Fuchs (2011; 2012b), falar em Marx na comunicação hoje é entender a importância da tecnologia, da mídia e do conhecimento nas sociedades contemporâneas, mas, ao mesmo tempo, compreender o processo de pauperização causado pelo capitalismo neoliberal e um renovado interesse na categoria de classe. Com isso, podemos entender que um bom ponto de partida é estudar os processos de midiatização à luz dos processos capitalistas. Neste processo, o ciberespaço pode ser visto como um processo contraditório, pois como toda tecnologia, ou como todo dispositivo, já pressupõe um modo hegemônico de se usar, a partir de determinados pressupostos. Isto é, as tecnologias, com diz Laymert Garcia dos Santos (2011), têm política, e podem ser vistas como terrenos de dominação, contestação e lutas. As lutas e as classes não desaparecem com a internet. As tecnologias não se movem sozinhas, deslocadas da sociedade. Ana Lúcia Enne (2011), por exemplo, mostra as estratégias discursivas de distinção dos grupos na “luta por classificação” nas comunidades do Orkut. Estudar, como vimos como se dão as lutas de classe e as relações de exploração na internet, 224 | P á g i n a marcada pela explosão de narrativas, é também um importante ponto de pesquisa para a agenda marxista em comunicação. Fuchs (2012b) elenca outros pontos de pesquisa nesta “agenda”, tais como: a) qual o exato papel da internet no capitalismo e como este papel pode ser teorizado e empiricamente analisado? b) Quais as formas de “mercadorização” que nós encontramos na internet e como elas funcionam? c) Quais diferentes formas de criação de mais-valia há na internet, como funcionam e o que os usuários acham delas? d) qual o papel da internet na luta de classes e qual o potencial, as realidades e os limites das lutas para uma Internet alternativa? Na Internet, o usuário, tão proclamado como vitorioso – o chamado produser ou prosumidor é também uma mercadoria (Smythe, 2006). Um target a ser vendido aos anunciantes e colocado como publicidade “autêntica” e “feito para você” nas páginas das redes sociais. “Vocês, os membros da audiência, contribuem com o seu tempo de trabalho não remunerado e, em troca, você recebe o material do programa e a propaganda explícitas” (Smythe, 2006, apud Fuchs, 2012a, p. 15). Terranova (2013) alerta para a questão do “trabalho livre” (free labor), o que Abigail De Kosnik (2013) vai aplicar até às comunidades de fã na internet. A exploração deste trabalho livre, visto como “não-trabalho”, é o que sustenta, na visão da autora, muita vezes, a própria internet. “O trabalho livre é o momento em que esse consumo da cultura se transforma em atividades produtivas, que são prazerosamente abraçadas e, ao mesmo tempo, muitas vezes, vergonhosamente exploradas” (Terranova, 2013, p. 37). Com as redes sociais, o usuário é um duplo objeto de commoditização: ele é, “por si só uma mercadoria, e através desta mercantilização sua consciência torna-se permanentemente exposta à lógica da mercadoria enquanto ele está on-line sob a forma de publicidade” (Fuchs, 2012a, p. 16). Ou seja, quanto mais tempo o usuário ficar on-line, mais tempo de publicidade, sendo que ele não só recebe publicidade, mas é material para o target, a partir de seus dados pessoais, interesses e conversas. Para Fuchs (2013), devemos considerar a cultura de participação na web como uma ideologia, quase como um imperativo, pintando de “cor-de-rosa” um mundo de liberdade e autenticidade, sem ver exploração ou controle. Esta questão da (falta de) privacidade nas redes sociais em um mundo onde não se enxerga onde está o controle, que está por toda a parte (Deleuze, 1992) é atual e envolve 225 | P á g i n a desdobramentos políticos e econômicos. A notícia “Ministro da Defesa diz que não usa e-mail para assuntos importantes” (UOL, 10/07/2013, 16h52) diz: ao reconhecer as falhas na segurança cibernética no Brasil, o ministro da Defesa, Celso Amorim, disse nesta quarta-feira (10), em audiência no Senado, que não usa e-mail quando tem algo importante a dizer. Amorim afirmou que o problema principal no país hoje é a necessidade de ter ferramentas desenvolvidas por empresas brasileiras para garantir que nenhuma informação será enviada para o exterior. "O problema principal que nos temos é realmente, e acho que está adequadamente diagnosticado, é de desenvolvermos ferramentas nacionais com brasileiros para nos defendermos." (MINISTRO da Defesa diz que não usa e-mail para assuntos importantes, UOL, acesso em: 11 jul. 2013). Isto é, se é de interesse nacional que o Brasil se “defenda” da vigilância de outros países nas redes socais e se faz urgente a criação de ferramentas nacionais, estudar as questões de privacidade e de uma Economia Política da Internet se faz necessário. Entretanto, estas questões ficam incompletas se não considerarmos qual a importância do trabalho digital hoje, e como podemos estuda-lo em uma perspectiva que leve em conta as questões de exploração e precarização (Grohmann, 2013)? “Nos países superdesenvolvidos, o ‘fim da fábrica’ expôs a obsolescência da ‘velha’ classe trabalhadora, mas também produziu uma geração de trabalhadores que foram repetidamente tratados como consumidores ativos de commodities.” (Terranova, 2013, p. 37). Terranova (2013) cunha o termo “escravos da rede” (netslaves) para compreender a exploração do trabalho digital atualmente. Para ela, os escravos da rede não são somente uma forma típica de trabalho na internet, mas deve-se considerar a relação complexa com o trabalho nas sociedades capitalistas tardias. Nas empresas mais conhecidas e valorizadas, o trabalho é visto como uma breve experiência e que, nem sempre, se parece com trabalho. É preciso, então, uma reação contra a glamourização do trabalho digital, cuja formação discursiva silencia a degradação e a precarização do trabalho, além do aumento implacável dos ritmos de trabalho. Portanto, esta agenda propõe alguns pontos, não de forma definitiva ou conclusiva, para arejar os estudos a partir do paradigma materialista no campo da comunicação. Considerações Finais 226 | P á g i n a Ressaltamos a importância de revisitar e de renovar os clássicos a partir de outras leituras ou abordagens do ponto de vista empírico. Ao revisitar, não estamos retrocedendo, sendo ultrapassados, mas procurando novas formas de avançar a partir desta perspectiva. É preciso, nos estudos de comunicação, compreender dialeticamente a realidade, a partir da dinâmica e das contradições da vida social, na relação metodológica e teórica entre o “micro” e o “macro”, considerando os sujeitos como seres sociais, relacionando seus discursos e práticas à sociedade onde se vive. Nesta “sociedade em vias de midiatização” (Fausto Neto; Sgorla, 2013), faz-se necessário compreender, à luz da comunicação, as reformulações do mundo do trabalho e da classe social, por exemplo, em relação às novas tecnologias, para observar mudanças e permanências. Só pensando em “interatividade” ou “liberdade”, construímos um “mundo corde-rosa” e não olhamos atentamente à realidade. Conceitos como “exploração”, “classe” e “trabalho” nunca pareceram tão urgentes para a compreensão das novas tecnologias. Referências BAKHTIN, Mikhail/ VOLOCHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010. BELL, Daniel. O Advento da Sociedade Pós-Industrial. São Paulo: Cultriz, 1973. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista: a degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. CASTELLS, Manuel. 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