Revista Brasileira de História da Educação

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Revista Brasileira de História da Educação
Revista Brasileira de
História da Educação
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Revista Brasileira de História da Educação
Publicação semestral da Sociedade Brasileira de História da Educação – SBHE
Revista
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Carvalho (PUC-SP); Ana Waleska Pollo Campos
Mendonça (PUC-Rio); Libânia Nacif Xavier (UFRJ).
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Sociedade Brasileira de História da
Educação – SBHE
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(SBHE), fundada em 28 de setembro de 1999, é uma
sociedade civil sem fins lucrativos, pessoa jurídica de
direito privado. Tem como objetivos congregar
profissionais brasileiros que realizam atividades de
pesquisa e/ou docência em História da Educação e
estimular estudos interdisciplinares, promovendo intercâmbios com entidades congêneres nacionais e
internacionais e especialistas de áreas afins. É filiada
à ISCHE (International Standing Conference for the
History of Education), a Associação Internacional de
História da Educação.
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Presidente: Marta Maria Chagas de Carvalho (PUC-SP)
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ISSN 1519-5902
julho/dezembro 2002 no 4
H
Revista Brasileira de
ISTÓRIA
da
EDUCAÇÃO
SBHE
Sociedade Brasileira de História da Educação
Dossiê “Negros e a Educação”
Revista Brasileira de História da Educação
ISSN 1519-5902
1º NÚMERO – 2001
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Revisão
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Diagramação e Composição
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Projeto Gráfico e Capa
Érica Bombardi
Impressão e Acabamento
Gráfica Paym
SUMÁRIO
EDITORIAL
7
ARTIGOS
Os livros escolares da Bibliothèque Bleue: arcaísmo ou modernidade?
Jean Hébrard
Laura Hansen e Maria Rita de Almeida Toledo (tradução)
Celso Suckow da Fonseca e a sua “História do ensino industrial no Brasil”
José Rodrigues
Sob(re) o silêncio das fontes... A trajetória de uma pesquisa em história da
educação e o tratamento das questões étnico-raciais
Eliane Peres
Cartas, procurações, escapulários e patuás: os múltiplos significados da escrita
entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira
Maria Cristina Cortez Wissenbach
Educação e escravidão: um desafio para a análise historiográfica
Marcus Vinícius Fonseca
A escola de Pretextato dos Passos e Silva: questões a respeito das práticas de
escolarização no mundo escravista
Adriana Maria Paulo da Silva
9
47
75
103
123
145
RESENHAS
AS LUZES DA EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS, RAÍZES HISTÓRICAS E PRÁTICA DAS AULAS
RÉGIAS NO RIO DE JANEIRO (1759-1834), Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso
Por Patrícia Cristina Fincatti Moreira
167
DICTADURA Y EDUCACIÓN, Carolina Kaufmann (dir.), Delfina Doval, Cristina Godoy,
Claudio Suasnábar
171
Por María del Carmen Fernández
NOTA DE LEITURA
Serie Clásicos de la Educación
Comas, Margarita. Escritos sobre ciencia, género y educación
Luzuriaga, Lorenzo. La escuela única
Natorp, Paul. Pedagogía social. Teoría de la educación de la voluntad sobre
la base de la comunidad
Por Kazumi Munakata
177
ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES
185
CONTENTS
187
Editorial
O número quatro da Revista Brasileira de História da Educação tem
um significado especial para sua Comissão Editorial.
Inicialmente vale notar que este número vem a público logo após o II
Congresso Brasileiro de História da Educação, ou seja, esta publicação
confirma a importância de ocupar seu espaço editorial e acadêmico no
mesmo momento em que a Sociedade Brasileira de História da Educação
se consolida. Esse processo legitima a Sociedade e a Revista ao mesmo
tempo. Ambas conseguem congregar um expressivo número de investigadores responsáveis pelo amadurecimento desse campo do conhecimento, no Brasil.
Este número também representa uma outra conquista. Foi possível
planejar e levar a efeito a demarcação de um “território plural de debates” no corpo de nossa publicação semestral. Isso diz respeito à
concretização do projeto de publicação de dossiês como uma “marca registrada” que se quer imprimir à Revista. Neste número apresentamos o
primeiro dossiê de uma série que terá continuidade número após número.
O dossiê Negros e a Educação dá início, com contribuições inovadoras, ao processo através do qual a Sociedade proporcionará a organização
de debates específicos entre pares habitualmente distantes em razão das
demandas do trabalho universitário mas que, a contar deste número, estarão próximos nas páginas da RBHE.
Outros dossiês já estão em andamento e a recepção de artigos para
avaliação cresce continuamente.
As traduções, os artigos aprovados, as eventuais republicações de
textos fundamentais relacionados tanto à memória da educação quanto à
historiografia da educação brasileira, somadas às resenhas e às notas de
leitura, compõem um perfil que, doravante, buscará obter as indexações
internacionais necessárias para que a rica produção brasileira chegue aos
interlocutores de outros países.
Comissão Editorial
Os livros escolares da
Bibliothèque Bleue1:
arcaísmo ou modernidade?
Jean Hébrard*
Tradução: Laura Hansen e
Maria Rita de Almeida Toledo**
O artigo analisa a produção e a circulação dos livros editados pelos impressores da
Champagne, destinados aos escolares ou aos leitores que “querem aprender sem mestre”,
entre os séculos XVII e XIX , na França. Analisa o itinerário das cartilhas, abecedários,
gramáticas e aritméticas editadas sob a fórmula editorial denominada de Bibliohéque Blue,
destacando os dispositivos editoriais mobilizados para atingir os diferentes mercados visados por essas edições, assim como as adaptações, modificações e conversões que textos
produzidos com outras destinações sofreram para serem convertidos em livros da
Bibliothéque Blue.
The article analysis the production and circulation of the books edited by the pressmen of
Champagne, designated to the scholars or readers that “wanted to learn without masters”,
in between the XVIIth and XIXth centuries in France. It analysis the itinerary of the
spellers, abecedary, grammars and arithmetic’s edited under the editorial formula
denominated Bibliothéque Blue, adopted by these editors, salienting the editorial devices
mobilized to reach the different markets aimed by these editions, as the adaptations,
modifications and conversions that the texts produced with others destinations, suffered
to be converted in books of the Bibliothéque Blue.
1
O tipo peculiar da Bibliothèque Bleue é comparável à literatura de cordel, podendo
ser o título traduzido por “livros escolares da literatura de cordel”. Optamos por
manter o nome original em francês (nota das tradutoras).
*
Jean Hébrard, École des Hautes Études em Sciences Sociales. Paris.
** Laura Hansen é formada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Atualmente é doutoranda do Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale
da Universidade Pars 7 – Denis Diderot.
Maria Rita de Almeida Toledo é professora doutora do programa de estudos pósgraduados em educação: história, política, sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
10
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Os impressores da Champagne, da primeira metade do século XVII,
adotam uma fórmula editorial da qual eles talvez não sejam os inventores, mas que graças a eles se impõe durante mais de dois séculos sob
a denominação de Bibliothèque Bleue2. Conhecem-se sobretudo os
almanaques, os livros farsescos ou os romances medievais. Todavia,
os Oudot ou os Garnier – para se restringir às duas principais dinastias
instaladas em Troyes – cedo tratam outros tipos de textos, como, por
exemplo, as obras pertencentes a tradição letrada3 e, ao contrário, os
opúsculos de vocação prática ou informativa4. Em todo o caso, os textos são preparados, mis en page e impressos segundo os cânones específicos que visam adaptá-los a um público maior, eventualmente mal
alfabetizado e com poder de compra módico. Eles são difundidos pelos vendedores ambulantes nas cidades rurais e atendem aos leitores
os mais variados5.
Entre os “livros práticos”, os instrumentos da devoção ordinária (horas, salmos, artes de morrer, vida de santos etc.) têm um lugar importante. Os livros de informação técnica (receitas de cozinha, de medicina, de
predição ou de magia, trato de animais, regras de jogos de sociedade6
2
3
4
5
6
Existem numerosos estudos sobre a Bibliothèque Bleue. Veja a bibliografia
estabelecida por Giovanni Dotoli e Paolo Carile, “Appendice bibliografica”,
Quaderni del seicento francese, vol. 4, La “Bibliothèque Bleue” nel seicento o
della letteratura per il popolo, Bari, Adriatica et Paris, Nizet, 1981.
Roger Chartier, Figures de la gueuserie, Paris, Montalba, 1982.
Dois domínios entre esses diferentes tratados práticos foram particularmente mais
estudados: os livros de receitas (La cuisiniere françois, textes présentés par JeanLouis Flandrin, Philip et Marie Hymen, Paris, Montalba, 1983) e os de secretários
(Roger Chartier, “Des ‘secrétaires’ pour le peuple”? Les modèles épistolaires de
l’Ancien Régime entre littérature de cour et livres de colportage”, La
Correspondance. Les Usages de la lettre au XIXe siècle, sous direction de Roger
Chartier, Paris, Fayard, 1991, pp. 159-207.
Roger Chartier, “Lectures populaires et stratégies éditoriales”, Histoire de l’
édition française, sob a direção de Roger Chartier e Henri-Jean Martin, Paris,
Promodis, t.1, Le livre conquérant. Du Moyen Âge au milieu du XVIIe siècle, 1982,
pp. 585-603. Ver também a coletânea de textos de Roger Chartier sobre esta questão organizados em Lectures et lecteurs dans la France d’Ancien Régime, Paris,
Le Seuil, 1987.
Os livros de jogos de sociedade referem-se aos jogos como os de carta, os de estratégia (xadrez, dama etc.), jogos de dados etc. (nota das tradutoras).
os livros escolares da bibliothèque bleue
11
etc.) não são menos numerosos. Encontram-se também, na produção de
Troyes, livros didáticos destinados aos escolares ou àqueles que querem
“aprender sem mestre”. É nesse aspecto ainda mal conhecido da atividade dos impressores da Champagne que se debruçará este artigo, ensaiando analisar a maneira pela qual a forma “livro de cordel” afeta os
textos específicos destinados à instrução.
As contagens efetuadas por Henri-Jean Martin7 permitem calcular
aproximadamente a parte do livro escolar da produção dos impressores
da Bibliothèque Bleue. Após ter comparado o catálogo Alfred Morin
(quer dizer, o repertório dos objetos conservados por um colecionador)
e o inventário pós-morte do fundo Garnier, em 1789 (quer dizer, o estoque do impressor), ele considera que, no fim do século XVIII, de 4% a
5% dos títulos impressos em Troyes, na forma de livros de cordel, são
livros escolares stricto sensu. O escore é considerável, mesmo que ele
esteja muito atrás dos romances de cavalaria (entre 8% e 13%) e continue inferior aos contos de fadas (entre 5% e 6%) ou os livros de vida de
santos (entre 5% e 8%). Pode-se tentar descobrir o que esses números
encobrem na realidade?
Abecedários aos milhares
Mesmo antes de examinar os tipos disponíveis, é possível imaginar
as razões que impulsionam os impressores de Troyes a fabricar livros de
uso escolar. Em uma França do Nordeste já bem alfabetizada no século
XVII, provida de uma importante rede de escolas paroquiais8, esse tipo
de obra, pela demanda que se pode esperar, representa um importante
tipo de renda. No mais, os livros enquadram-se perfeitamente no modelo dos impressos da Champagne: livros com poucas páginas, textos que
7
8
Henri-Jean Martin, “Culture écrite et culture orale, culture savante, et culture
populaire dans la France d’Ancien Régime”, Journal des savants, juillet-décembre
1975, pp. 225-285.
François Furet et Jacques Ozouf, Lire et écrire. L’alphabétisation des Français de
Calvin à Jules Ferry, 2 vols., Paris, Éd. de Minuit, 1977.
12
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
se repetem indefinidamente, grandes tiragens, larga difusão por meio
dos vendedores ambulantes. Entre os livros de uso escolar, o abecedário9
é aquele que, certamente, representa a maior promessa de venda. Com o
nome de Instruções cristãs – é assim que são chamados na França do
Leste –, ele é por excelência livro do escolar iniciante e, freqüentemente,
o único livro que ele possui. É verdade que ele oferece, em um mesmo
conjunto, os instrumentos da primeira alfabetização e os textos essenciais da liturgia católica.
As empresas de Troyes não têm o monopólio de sua produção. O
abecedário é, efetivamente, um dos produtos de base de todos os pequenos impressores, particularmente, o da província. Uma prensa e algumas fundições de caracteres10 são suficientes para imprimir um abecedário. É o investimento mínimo necessário para o trabalho da cidade na
qual vivem os minúsculos ateliês, que ainda são os mais numerosos no
século XVII. A enquete de 1700, sobre a situação da livraria francesa,
explorada por Claude Lannette-Claverie11, permite ver o lugar ocupado
por esses opúsculos nas produções dos impressores.
De fato, no começo do século XVIII, o Bureau de la librairie, que
acabara de ser organizado para controlar a produção, procura recensear
as impressões em curso. Na comunidade de Limoges, quatro em dez
editores têm abecedários sob a prensa, são os menores entre eles (Pierre
9
Sobre os abecedários na época Moderna, dispõem-se apenas de estudos parciais.
Para uma boa introdução sobre a questão, ver Dominique Julia, “Livres de classe
et usages pédagogiques”, Histoire de l’édition française. Sob direção de Roger
Chartier e Henri-Jean Martin, Paris, Promodis, t. 2, Le Livre triomphant (16601830), 1984, pp. 468-497. De ambos os lados, do período que nos interessa aqui,
pode-se consultar Danièle Alexandre-Bidon, “La lettre volée. Apprendre à lire à
l’enfant au Moyen Âge”, Annales E. S. C., juillet-août 1989, 4, pp. 953-992; Pierre
Aquilon, “De l’abéccédaire aux rudiments: les manuels élémentaires dans la
France de la Renaissance”, L’Enfance et les ouvrages d’éducation, vol. 1, Nantes,
1983, pp. 51-72; Segolène Le Men, Les Abéccédaires français illustrés du XIXe
siècle, Paris, Promodis, 1984.
10 Para um estudo dos tipos usados no período, consultar Emanuel Araújo, A construção do livro, cap. 5, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986 (nota das tradutoras).
11 Claude Lannette-Claverie, “La librairie française en 1700”, Revue française du
livre, janvier-juin 1972, pp. 3-43.
os livros escolares da bibliothèque bleue
13
Bardou, o grande impressor de Limoges, não faz parte do grupo e apenas se ocupa de clássicos para o colégio). Aqueles da Champagne são 8
em 27 impressores com suas formas ocupadas pelos abecedários. AnneClaude Quéry, de Sainte-Menehould, toma o cuidado de precisar que
ela, ordinariamente, só imprime o “Le trésor dévot,votos de Natal e os
ABCs para as crianças”. Como os seus confrades de Limousin, ela deve
consagrar o essencial de seu tempo para os trabalhos requeridos pela
cidade.
Ao contrário, os seis impressores propriamente de Troyes, que têm
em curso a produção de abecedários, são os especialistas da Bibliothèque
Bleue: Jean Adenet, Gabriel Briden, Jacques Febvre, Pierre Garnier,
Jacques Oudot e Jean Oudot, seu irmão. Os mais importantes entre eles
assinalam, aliás, a riqueza de seus catálogos nesse domínio. Febvre faz
“abecedários de diferentes formas”; Garnier, “alfabetos de uma folha,
uma folha e meia e de três folhas”; Jacques Oudot, “ABC de uma folha
e de grandes ABCs de três folhas”. Febvre toma cuidado em precisar
que ele distribui os seus na livraria parisiense Musier. Trata-se aqui de
todo um outro modelo de produção.
O exame dos inventários, realizado em 1722 na impressora dos
Oudot12, permite refinar a análise. A avaliação acontece, certamente,
depois da ascensão de Jean Oudot a mestre-impressor (1699-1745). Este
que, até então, trabalhava como operário com seu irmão Nicolas no ateliê de sua mãe, Anne Havard, viúva de Jacques II Oudot, encontra-se
em posição de aspirar à sucessão familiar, no momento da morte de seu
irmão. Como Nicolas tem filhos menores para os quais deveriam ser
preservados os direitos, fez-se necessário um inventário de partilha.
O detalhe das folhas impressas entrepostas em diferentes lugares da
casa permite avaliar a importância ocupada pelos abecedários e de imaginar o que poderiam ser as tiragens. Encontram-se efetivamente:
12
A. D. Aube, 2E 11/53 – minutes Jolly. Agradeço sinceramente Michel Turquois
pela ajuda que ele me forneceu na leitura desse documento e pela retificação que
ele fez da genealogia geralmente admitida dos Oudot. Sem ele, os acontecimentos
que se deram na ocasião desse inventário restariam um negócio obscuro.
14
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25 dúzias de alfabetos por sílabas
8 doze dúzias de abecedários, metade pergaminho
30 doze dúzias de ABC em papel
26 doze dúzias de ABC
8 dúzias de ABC
40 dúzias de ABC encapados com papel vermelho.
Perfazem mais de 10 mil exemplares aos quais seria necessário somar os alfabetos que se encontram, entre os outros títulos, num lote de
198 ramas e 4 mãos de folhas ainda não dobradas. A título de comparação, para os livros de salmos, uma das produções importantes da empresa, não se contam mais de 6 mil exemplares (mais de uma vintena de
ramas). Quanto aos livros de horas, fabricados também para as livrarias
de numerosas dioceses distantes, encontram-se apenas 1.500 exemplares no estoque. Uma das outras grandes tiragens, Le Miroir de la
confession, atinge apenas 2 mil exemplares. Isso indica a importância
da produção dos abecedários.
Essa abundância concerne, é verdade, um produto particularmente
de baixo preço. O abecedário vale, no impressor, 3 sols a dúzia, quando
é encadernado em pergaminho, e 2 sols e 6 deniers, quando é apenas
encadernado em papel. O silabário atinge 16 sols a dúzia. A título de
comparação, um livro de salmo ordinário é avaliado em 40 sols a dúzia,
o meio encadernado em pergaminho vale 19 sols e o um quarto, 10 sols.
No mesmo registro de preços que os abecedários, há as coletâneas de
cantigas de peregrinação (2 sols e 6 deniers a dúzia), as coletâneas de
preces (3 sols) ou Les miroirs de la confession (quase 4 sols). O romance de cavalaria é mais caro (entre 8 sols e 17 sols a dúzia, segundo o
número de folhas).
Entre o começo e o fim do século XVIII, a produção parece continuar estável para os editores de Troyes. No inventário Garnier de 1789,
analisado por Henri-Jean Martin, existem entre 12 mil e 15 mil
abecedários estocados nas lojas.
Uma tal produção não pode, evidentemente, destinar-se apenas às
escolas da Champagne. Os editores da Bibliothèque Bleue são, avant la
lettre, os atacadistas de livros escolares que produzem para atender seus
os livros escolares da bibliothèque bleue
15
confrades das grandes cidades e os alimentam regularmente com livros
elementares. Nessa direção, eles trabalham diferentemente dos editores
clássicos que parecem estar, na maior parte, ligados aos colégios das
vizinhanças e fazem, para seu uso e à medida de suas necessidades,
pequenas tiragens de textos latinos e gregos e de “folhas clássicas”13.
Em Troyes, Jacques Febvre, impressor e livreiro oficial do colégio, é o
único a praticar esse gênero de impressão como Barbou o faz em
Limoges14.
Essa primeira aproximação da edição escolar de Troyes parece chegar a conclusões que não surpreendem. O abecedário, barato e de fácil
produção, é um pólo importante da produção dos impressores da
Champagne. O abecedário situa os impressores ao lado de uma tradição
editorial que se apóia nas obras sem autoria, repostas ano após ano sem
a preocupação de inovar, em um domínio no qual a permanência e a
perenidade continuam os maiores critérios de uma qualidade que se
obtém sem grandes despesas. Como seus outros títulos, o abecedário
não está destinado somente ao uso local, mas permite prover os vendedores ambulantes, assim como os livreiros das grandes cidades que difundem produtos desse tipo.
Todavia, o abecedário não é a única obra escolar fabricada pelos
Garniers ou pelos Oudots. Encontram-se, efetivamente, nos catálogos
dos impressores da Champagne muitos outros títulos de opúsculos que
podem ser utilizados a fim de instruir as jovens crianças escolarizadas
nas diversas instituições que, nos séculos XVII e XVIII, compartilham
essa função. No entanto, é delicado consignar cada um desses títulos à
ordem escolar. As mesmas obras têm, com efeito, múltiplos usos, e a
13
Ver François de Dainville, “Livres de comptes et histoire de la culture”, L’éducation
des Jésuites, textos reunidos e apresentados por Marie-Madeleine Compère, Paris
Éd. de Minuit, 1978, pp. 279-307; ver também Dominique Julia, “Livres de classe
et usages pédagogiques”, op. cit. Sobre os impressores que trabalhavam para os
colégios, ver L. Desgraves, “Les impressions bordelaises de l’inventaire après décès
de Jacques Millanges”, Revue française d’histoire du livre, 14, 1977, pp. 21-72; e
P. Ducourtieux, Les Barbou imprimeurs Lyon-Limoges-Paris, Limoges, 1896.
14 Claude Lannette-Claverie, op. cit.
16
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
transmissão dos saberes elementares não implica obrigatoriamente a sua
escolarização. É então necessário, antes de ir além na exploração dos
diversos inventários da Bibliothèque Bleue hoje disponíveis, melhor
demilitar os limites de um gênero – o livro escolar – que na época Moderna não está desprovido de ambigüidades.
O mercado do livro escolar no tempo da
Bibliothèque Bleue
O tecido escolar do Antigo Regime é suficientemente diversificado15 para que a questão dos livros de classe utilizados nos diferentes
tipos de escolas permaneça difícil de esclarecer. Do lado da formação
dos clérigos, as coisas são simples. Os colégios, cujo funcionamento
didático16 começa ser mais bem conhecido, são estruturados segundo as
regras das ordens religiosas que os sustentam. Uma certa homogeneidade
15
Roger Chartier, Marie-Madeleine Compère et Dominique Julia, l’Éducation en
France du XVIe au XVIIIe siècle, Paris, SECES, 1976. Os trabalhos recentes não param de complicar o esquema tradicionalmente estabelecido que opõe as pequenas
escolas paroquiais e as escolas de caridade. As escolas controladas e financiadas
pelas autoridades comunais laicas são também numerosas e variadas. Elas empregam regentes de diferentes estatutos. Os regentes-escrivães do Languedoc foram
estudados por Dominique Blanc (“Les saisonniers de l’écriture. Régents de village
en Languedoc au XVIIIe siècle”, Annales E. S. C., juillet-août 1988, 4, pp. 867-895).
É necessário aproximá-los dos regentes-tabeliões que Pierre Gaspard estuda no principado de Neuchâtel no século XVIII e que são encontrados no Jura (sobre estes
últimos, ver Louis Borne, L’Instruction populaire en Franche-Comté avant 1792,
Besançon, Imprimerie de l’Est, 1949, t. I, pp. 35-136). Descobri, além de antigos
mestres de escrita e aritmética que abandonaram suas oficinas (é o caso particular, do
interior da região de Marselha, por causa da recusa dos échevins [magistrados municipais] dessa cidade de lhes expedir as cartas patentes para o estabelecimento de sua
corporação), os mestres de escrita da “confraria dos mestres-escrivães, gramáticos e
de escola” de Dijon, raro exemplo de corporação que aceita nos séculos XVII e
XVIII mestres-escola (A. C. Dijon, G39).
16 Marie-Madeleine Compère, Du Collège au Lycée (1500-1850), Paris, GallimardJulliard, 1985; assim como Marie-Madelaine Compère e Dominique Julia, Les
Collèges français, XVIIe – XVIIIe siècle. Répertoire, Paris, INRP et CNRS, 19841989 (2 vols.). Uma nova tradução dos regulamentos pedagógicos jesuítas foi
os livros escolares da bibliothèque bleue
17
preside, portanto, as escolhas efetuadas pelos responsáveis dos programas anuais, mesmo que a produção dos livros clássicos continue local.
As contas do livreiro Leroux de Rodez, que serve as famílias das quais
saem as crianças que freqüentam o colégio da cidade, sob o reinado de
Luís XIV, permitem que se faça uma idéia dos livros que essas utilizam17. No essencial são edições “clássicas” das humanidades latinas
(Cícero, Virgílio, Horácio, Ovídio etc.) acompanhadas dos manuais (gramáticas, dicionários, livros de retórica, e coletâneas de lugares-comuns)
que possibilitam a leitura e o uso daquelas obras.
A dispersão de títulos, devido à renovação dos programas, os fracos
efetivos dos colégios, a especificidade dos cursos colocados em cena
pelas diferentes congregações dedicadas ao ensino conduzem às cifras
insuficientes de tiragens para interessar verdadeiramente os impressores da Bibliothèque Bleue.
Em um só momento de sua história, os colégios do Antigo Regime
estiveram na origem de uma tentativa editorial mais ambiciosa do que
aquela que consistia em fabricar sob demanda as obras necessárias. Em
1776, o editor parisiense Nyon, que tem uma loja perto do colégio das
Quatre Nations, vê-se encarregado pelo Conde de Saint-Germain de
imprimir os manuais oficias que o abade Batteux redigiu para o conjunto das escolas militares francesas. Nyon pensa ter ali um mercado de
bons resultados18, sem contar com o particularismo das congregações
que dirigem essas escolas e que conseguem, na volta às aulas, utilizar
seus próprios livros. Os títulos, por volta de 50, que constituem a coleção, amontoam-se no depósito do editor e, após a Revolução, ainda são
liquidados pelos descendentes do editor para os chefes dos estabelecimentos que querem utilizar os livros como prêmios.
publicada na França: La Ratio studiorum: plan raisonné et institution des études
dans la compagnie de Jésus, apresentado por R. P. Adrien Demaustieres e Dominique
Julia, traduzido do latim por Léonine Albrieux e Dolorès Pralion-Julia, com comentários de Marie-Madeleine Compère, Paris, Belim, 1997.
17 François de Dainville, “Livres de comptes et histoire de la culture”, op. cit.,
pp. 281-282.
18 Dominique Julia, “Livres de classe et usages pédagogiques”, op. cit., pp. 493-495.
18
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Ao lado dos colégios, desenvolveram-se, ao longo do século XVIII19,
de maneira rápida, as pensões particulares (quer dizer, escolas dependentes da estrita iniciativa privada do mestre que decide abri-la). Nelas
são escolarizadas as crianças das burguesias urbanas e até aquelas da
nobreza menos abastada. A orientação desses estabelecimentos é influenciada pelo Iluminismo e aí se estuda mais o francês que o latim. Isso
implica outras obras diferentes daquelas utilizadas nos colégios: gramáticas francesas (e não mais latinas), livros de história da França ou de
geografia, livros de ciências etc. São livros complexos, freqüentemente
ilustrados com gravuras em talho-doce, portanto caros, que supõem cuidados com a qualidade ausente nas oficinas de Troyes. Eles são, em
geral, feitos em Paris ou em cidades grandes das províncias pelos editores generalistas ou que, por vezes, se especializaram em obras desse
tipo. Talvez as tiragens desses livros já fossem mais importantes que as
dos clássicos latinos e gregos. O fato de as congregações religiosas que
têm escolas para as meninas – aquelas das ursulinas em particular –
utilizarem o mesmo tipo de material20 deve, certamente, ter aumentado
um pouco as cifras de tiragem. Nenhum estudo permite, por enquanto,
conhecê-las com certeza.
Restam os celeiros de pequenas escolas rurais, de escolas paroquias
ou particulares e de escolas de caridade urbanas, e até aquelas minúsculas regências latinas que concernem aos efetivos de alunos muito mais
19
Philippe Marchand, “Un modèle éducatif original à la veille de la Révolution: les
maisons d’éducation particulière”, Revue d’histoire moderne et contemporaine, 1975,
22, pp. 549-567; Maurice Garden, “Écoles et maîtres: Lyon au XVIIIe siècle, Cahiers
d’histoire, 21, 1-2, 1976, pp. 133-156; Marcel Grandière, “L’Éducation en France à
la fin de l’Ancien Régime: les maisons d’éducation”, Revue d’histoire moderne et
contemporaine, 1986, 33, pp. 440-462.
20 Martine Sonnet, L’Éducation des filles au temps des Lumières, Paris, CERF,
1987. Ver também Isabelle Havelange, “La littérature destinée aux demoiselles,
1750-1830”, Le Magasin des enfants. La littérature pour la jeunesse (17501830), sob direção de Lise Andriès, Catalogue de l’exposition “Le Magasin des
enfants”, Ville de Montreuil, Bibliothèque Robert-Desnos, 1er décembre 1988 –
28 janvier 1989, Montreuil, Ville de Montreuil (Bibliothèque Robert-Desnos) et
Association Bicentenaire-Montreuil, 1988, pp. 9-40.
os livros escolares da bibliothèque bleue
19
expressivos. Fora das escolas de caridade de La Salle21 que, no século
XVIII, parecem desenvolver muito rapidamente suas próprias redes de
edição escolar (os livros são emprestados gratuitamente às crianças), os
regentes ou mestres dessas incontáveis classes mantêm o hábito de trabalhar com instrumentos heterogêneos levados por seus alunos. Heterogêneos, mas não heteróclitos. Com efeito, como tentamos demonstrar
em outras ocasiões22, a formação elementar que prevalece, na França,
na época Moderna, é herdeira das tradições bem estabelecidas e mantiveram desses diferentes modelos instrumentos específicos. Sua coabitação nas classes não é um sinal de incoerência pedagógica, mas o indício
de que as diferentes maneiras antigas de se trabalhar, há muito tempo
dissociadas, estão, entre os séculos XVII e XVIII, em processo de
amalgamento.
No fim do reinado de Luís XIV, a preparação para a comunhão e a
transmissão dos saberes elementares – ler, escrever, contar – tornaramse assim os objetivos mais ou menos explicitados da escolarização.
Esse programa já moderno resulta da confluência de três correntes distintas, de três tradições culturais. A primeira, certamente a mais antiga,
é proveniente da antiga formação dos clérigos que foi organizada na
Idade Média em torno dos monastérios, dos cursos episcopais ou das
capelas. A instrução era aí concebida como a transmissão da língua administrativa e litúrgica, o latim, que convinha aprender a ler e a escrever. É esse modelo que progressivamente se seculariza e se torna o
ponto de partida da educação familiar que precede a entrada na faculdade de artes ou, a partir do século XVI, no colégio. Quando as famílias
passam a não ter mais essa condição, as crianças são confiadas a insti-
21
Sobre a modalidade de funcionamento das escolas de caridade, ver J.B. de La Salle,
Oeuvres complètes, Paris et Rome, Éditions des Frères des écoles chrétiennes, 1994;
Yves Poutet, Le XVIIe siècle et les origines lasalliennes. Recherches sur la genèse
de l’oeuvre scolaire et religieuse de J. B. de la Salle (1651-1719), Rennes, Imprimeurs
reúnis, 2 vols., 1970; Yves Poutet, Genèse et caractéristiques de la pédagogie
lasallienne, Paris, Éditions Don Bosco, 1995.
22 Jean Hébrard, “A escolarização dos saberes elementares na época moderna”, Teoria & Educação, 2, 1990. Não retomaremos a bibliografia indicada nas notas deste
artigo dado o rápido resumo que aqui apresentamos.
20
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
tuições escolares provenientes das antigas escolas monásticas ou episcopais mantidas, desde o fim da Idade Média, pelos graduados das universidades. Essas escolas, geralmente municipais, transformam-se, no
século XVI, em regências latinas, particularmente quando elas não podem ser confiadas a uma congregação suscetível de transformá-las em
colégio. Ler, escrever, aprender os rudimentos do latim são os exercícios principais. Eles se fazem sobre o abecedário, os livros de salmos e
a gramática latina. A partir do século XVI, essa última é freqüentemente
o primeiro volume do Despautère, este, precisamente consagrado aos
rudimentos23.
A segunda corrente é proveniente de uma tradição totalmente diferente, é aquela que se constitui nas grandes empresas mercadoras dos
séculos XIII e XIV, na Itália ou na zona hanseática. Ali se aprende a
escrever na língua que se fala todos os dias. Inicia-se a arte da correspondência (que trata de transmitir as realizações do comércio ou das
informações sobre as probabilidades do mercado) e aquela da aritmética que permite manter os livros de contas. A difusão dessa cultura nas
camadas da burguesia mercante ou artesã das cidades – a partir do século XV na França – constitui um dos eixos importantes da transmissão
dos saberes elementares. Os escrivães e aritméticos24, que se instalam
quase sempre nas cidades mercantes, como secretários e contadores independentes, transformam-se progressivamente em mestres da escritura e da aritmética. Freqüentemente, organizados em corporações,
23
Jean Hébrard, “L’évolution de l’espace graphique d’un manuel scolaire: le
Despautère de 1512 à 1759”, Langue française, 59, septembre 1983, pp. 68-87;
Jean Hébrard, “Por uma bibliografia material das escritas ordinárias (França – séculos XIX e XX)”, Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, São Paulo,
Editora Autores Associados, jan-fev 2001.
24 Sobre o mestre de escrita e aritmética na França, na época Moderna, ver Christine
Métayer, La Corporation des maîtres – écrivains jurés de Paris sous l´Ancien
Régime, thèse pour la maîtrise dès arts, Quebec (p.Q.), Université Laval, 1989
(multigraphié), assim como “De l´école au Palais de Justice: l’itinéraire singulier
des maîtres-écrivains de Paris (XVIe – XVIIIe siècles)”, Annales E.S.C., 5, 1990,
pp.1.217-1.237. Ver também Jean Hébrard, “Des écritures exemplaires: l’art du
maître écrivain en France entre XVIe et XVIIIe siècle”, Mélanges de l’École
française de Rome, 107/2, 1995, pp. 473-523.
os livros escolares da bibliothèque bleue
21
propõem seus serviços a particulares. Crianças – são adolescentes já
escolarizados – mercadores, ou artesãos vêm procurar nas suas lojas os
saberes que lhes permitirão assumir a sucessão de seus pais: a arte de
escrever e aquela da ortografia graças a qual se pode manter uma correspondência profissional ou privada, aquela da aritmética e da manutenção das contas que permite não mais utilizar as comptes-faits (quer
dizer, as tabelas com os resultados parecidos com aqueles que Barème
publicou). Os instrumentos livrescos provenientes dessa tradição são,
de uma parte, a aritmética em língua vulgar cuja existência, na França, é
anterior àquela da imprensa e, de outra parte, os tratados da ortografia
que dizem – sem as complexidades da gramática – como convém escrever as palavras mais difíceis. A eles se juntam, por vezes, as “secretárias”, ou seja, as artes da correspondência já evocadas, que dão aos alunos
que já deixaram seus mestres os modelos para todas as ocasiões da vida
cotidiana ou profissional.
A terceira corrente é mais tardia, porém mais bem conhecida. Nascida com as Reformas, também mais protestante que católica, ela é certamente o ponto de partida de uma escolarização largamente popular
senão universal. Sua empresa é, com efeito, a “Ciência da Salvação”
que, a partir do século XV, parece – em razão do vigor e da vulgarização
das controvérsias teológicas – não poder mais se abster da escrita, única
garantia do rigor doutrinal, mesmo quando não concerne mais que a
profissão de fé ou as preces elementares. O sermão ou a catequese oral
dominical não são mais suficientes para assegurar a formação cristã. É
necessário, por uma aprendizagem eficaz da leitura, dar a cada um a
possibilidade de assegurar sua fé nos diferentes livretos que acompanham, desde então, os trabalhos e os dias do cristão: catecismo, artes de
confissão ou de comunhão, artes de morrer, horas, livros de salmos,
exercícios cristãos, ou coletâneas de preces e cantos, Évangiles du
dimanche ou Imitation de Jésus Christ. No meio protestante, apenas os
títulos mudam. Os diferentes opúsculos em uso, entre a proclamação e a
revogação do Edito de Nantes, mostram os mesmos registros. O Psautier
de Marot e a Bíblia – mas parece que esta jamais foi, pelo menos na
França, universalmente possuída – vieram coroar o edifício. Na intenção dessa formação cristã, desenvolvem-se, a partir do século XVI, as
22
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
pequenas escolas (paroquiais na França do Norte, mais freqüentemente
municipais naquelas do Sul) e, no final do século XVII, as escolas de
caridade.
Os instrumentos de base dessa escolarização são heteróclitos. A inspeção de todas as escolas de meninos do Reino organizada por Guizot,
em 183325 permite avaliar a situação escolar da França rural, antes que
resvale na modernidade. Ela permite imaginar o que deveriam ser as
pequenas escolas do século XVIII. Os livros usados em suas classes
foram recenseados com cuidado. A maior parte deles são obras vindas
diretamente do século anterior. Nas escolas mais pobres, utilizam-se em
geral os Évangiles ou Histoire Sainte (aquela do abade Fleury que, datada do século XVIII, tem sempre grande renome), um abecedário ou um
silabário, o catecismo da diocese. Para as escolas que recebem crianças
de famílias menos pobres, acrescentam-se uma gramática francesa (aquela do Lhomond) e, mais raramente, uma aritmética e, às vezes, uma
história da França (aquela de Le Ragois, por exemplo). Essas últimas
obras pertencem sobretudo à tradição das pensões particulares e só foram divulgadas tardiamente nas pequenas escolas no século XVIII, e
em algumas somente após a Revolução, e ainda mais nas cidades do que
no campo.
Vê-se assim que a panóplia de livros escolares em uso nos diferentes tipos de classe do século XVIII está longe de ser uniforme e que um
contínuo regular conduz os “usos” da diocese (isto é, o conjunto de
livros necessários à vida cristã) aos livros que teriam apenas um objetivo explicitamente didático. Examinar a relação dos editores de Troyes
com a escola e seus instrumentos supõe, portanto, que se amplie a investigação para além dos abecedários.
25
A. N., F17*80-160. Essa enquete está sendo examinada no Service d’histoire de
l’éducation, Paris, INRP/CNRS.
os livros escolares da bibliothèque bleue
23
Os impressores-livreiros de Troyes, editores de
gramáticas latinas
Em Troyes, em 1700, no momento da enquete organizada pelo abade
Bignon26, apenas Jacques Febvre imprime “clássicos”: fábulas de Fedro,
latinas e francesas, fábulas de La Fontaine, em latim e em francês (elas
são, freqüentemente, admitidas como traduções de Fedro e, então, destinadas aos alunos dos colégios), Cícero, Virgílio e Ovídio. Isso não o
impede de fazer também abecedários e livros de salmos para seu cliente
parisiense, o livreiro Musier. Seus confrades contentam-se, fora das produções tradicionais de Troyes, com os alfabetos e os livros de “usos”
para crianças (salmos, horas, catecismos da comunhão). Briden, no entanto, o impressor do bispado, não parece ser mais especializado do que
os outros nesse domínio. É o sinal de que a produção não é somente
destinada ao comércio local. A partilha dos papéis parece então clara.
Será mesmo verdade? No levantamento das “mercadorias encontradas na loja” do inventário realizado na empresa de Oudot, em 172227,
nota-se, além de livros de piedade, dos abecedários e dos de civilidade,
aos quais voltaremos, “4 Dispostaires encadernados em pele de carneiro e 3 outros também encadernados em pele de carneiro”. É necessário
ler aí sete exemplares da famosa gramática latina de Despautère28.
Como explicar a presença nesses lugares do livro de base das classes de
gramática dos colégios depois do começo do século XVI?
26
27
28
Claude Lannette-Claverie, op. cit.
A. D. Aube, 2E 11/53 – minutes Jolly.
Sobre a obra gramatical de Despautère, ver as páginas que lhe são consagradas em
Jean Claude Chevalier, Histoire de la syntaxe. Naissance de la notion de complément
dans la grammaire française (1530-1750), Geneve, Droz, 1868. Sobre a história da
tranformação em livro desse texto, ver Louis Desgraves “Contribution à la
bibliographie de J. D.”, Mémoires de la Société d’Histoire de Comines – Warneton,
7, 1977, pp. 385-403; e Jean Hébrard, “L’évolution de l’espace graphique d’un
manuel scolaire: le Despautère de 1512 à 1759”, op. cit.. Sobre o homem e suas ligações com o meio humanista, pode-se consultar Constant Matheeussen, “À propos
d’une lettre inconue de Despautère”, Lias, 4, 1977, pp. 1-11. Sobre os usos da gramática de Despautère nos colégios do século XVI, ver Liesel Franzheim, “Das
Gymnasium Tricoronatum und sein Lateinunterricht um die Mitte des 16.
24
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
As sete partes dessa obra (Rudimenta, Prima pars, Syntaxis, Ars
versificatoria, De figuris, Ars epistolica, Orthographia) foram
redigidas pelo gramático de Flandres, Van Pauteren, e impressa em
Anvers, Paris, Bergues ou Strasbourg, entre 1511 e 1519, em geral no
formato in-4o. Parece que Josse Bade tenha sido o principal editor dessa
coletânea que veio pôr fim ao reinado, há muito tempo sem partilha, de
Donat, ou da Doctrinale puerorum, de Alexandre de Villedieu. Depois
dele, Robert Estienne, em 1537, reúne esses diferentes livros em um
único in-fólio.
Não obstante, nesse meio tempo, um regente do colégio de Coqueret,
que se tornará o reitor do colégio de Tournon, Jean Pellison, decide
reduzir esse vasto conjunto em um “breviário”, em formato in-8o, que
não compreende mais que as quatro partes mais freqüentemente utilizadas nos colégios: a Prima pars, na qual se encontram as principais declinações e as conjugações, a Syntaxis, a Ars versificatoria e o De figuris,
isto é, o essencial do programa de gramática e de composição latina das
sucessivas classes do colégio. São os impressores de Lyon, em particular Sébastien Gryphe, que, entre 1530 e a primeira metade do século
XVII, permanecem especialistas desse modelo.
Uma nova versão nasce em Paris, em 1584, na empresa Buon, mas
rapidamente se encontrava nas lojas de Lyon. Dessa vez, é Gabriel
Dupréau, titular da cadeira de teologia do colégio de Navarre, que se
encarrega da adaptação e não deixa de dar uma versão francesa de cada
regra em versos latinos da versão inicial. Está aí a primeira aparição de
um uso deliberado das línguas vernáculas, o qual os editores ou
adaptadores não renunciarão.
A terceira adaptação, aquela que será precisamente copiada pelos
editores de Troyes, é a obra de Jean Behourt, de Rouen, que dirige o
Jahrhunderts”, Jahrbuch des Kölnischen Geschichtsverein, 48, 1977, pp. 139-150
que dá indicações para o espaço renano. O estudo mais surpreendente acaba de ser
publicado. Trata-se da edição e da análise minuciosa do caderno do estudante, da
primeira metade do século XVI, conservado na Biblioteca Histórica da Cidade de
Paris. Ver Jean-Claude Margolin, Jan Pendergrass, Marc Van der Poel, Images et
lieux de mémoire d’un étudiant du XVI siècle. Étude, transcription et commentaire
d’un cahier de latin d’un étudiant néerlandais, Paris, Édition de la Maisnie, 1991.
os livros escolares da bibliothèque bleue
25
colégio dos Bons-Enfants, entre 1586 e 1604, depois de ter dirigido uma
próspera pensão privada29. A primeira edição conservada de seu trabalho foi impressa em Rouen, na G. de La Haye, em 1620. O uso da língua
vulgar é nela generalizado. Um recorte muito minucioso do texto tende
a facilitar a sua memorização. Ele é dedicado – hábil precaução – aos
padres da Companhia de Jesus que mantêm na mesma cidade, desde
1593, o colégio Bourbon, principal e eficaz concorrente dos BonsEnfants. Os editores da Normandia (Caen e Rouen) como os de Lyon,
os que particularmente têm o hábito de imprimir para grande circulação, mantêm esses títulos por longo tempo em seus catálogos. A última
edição conservada na Biblioteca Nacional é datada de 1759.
Uma última versão do Despautère aparece no Charles Savreux, em
Paris, em 1663. O adaptador anônimo que se encarrega da revisão do
texto, modificou-o profundamente, redigindo em uma língua menos arcaica tudo o que achava muito “obscuro”. Ele escolheu imprimir, ao
mesmo tempo que o texto, as glosas habitualmente ensinadas aos alunos pelo regente no momento da praelectio. Além disso, ele faz a tradução, palavra por palavra, da frase latina e, por um engenhoso sistema de
letras localizadas sob a linha, dá a ordem na qual se deve reconstruir a
frase latina para encontrar a frase francesa correspondente. Esse modelo
será utilizado durante todo o século XVIII e generalizado em todas as
gramáticas pelo Du Marsais, a partir de 172230. É o sinal de uma inegável diminuição das capacidades dos alunos de ler o latim.
A presença de um Despautère na oficina de um dos grandes editores
de Troyes da Bibliothèque Bleue é particularmente interessante. Seguramente, ela não é suficiente para fazer dos Oudots livreiros especializados no fornecimento dos colégios (não se encontra na sua oficina
qualquer exemplar dos clássicos latinos ou gregos), mas ela é um sinal
de que o mercado das regências latinas e talvez aquele dos colégios não
29
Marie-Madeleine Compère et Dominique Julia, Les Collèges français, XVIe-XVIIIe
siècles, vol. 2, Répertoire France du Nord et de l’Ouest, Paris, INRP et CNRS,
1988, Notices Rouen, collège des Bons-Enfants et collège de Bourbon.
30 Jean Hébrard, “L’exercice de français est-il né en 1823?”, Études de linguistique
appliqué, 48, 1982, pp. 9-31.
26
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
sejam estranhos aos editores da Champagne. Existe na Biblioteca Nacional um exemplar de um Despautère impresso nos Oudots31 em 1666. É
a versão de Behourt que foi escolhida por Nicolas Oudot (um dos netos
do fundador da dinastia) quase meio século depois de sua primeira aparição. Encontra-se também, de um outro editor de Troyes, Jean Le Febvre,
uma edição mais tardia e simplificada da mesma série intitulada Le Petit
Behourt32. Ela data de 1710, mas é cópia idêntica de uma obra impressa
em Paris na oficina da viúva Thiboust et P. Esclassam, de 1674.
Dois exemplares não são suficientes para se ter uma certeza33. Eles
mostram, entretanto, que os editores de Troyes – mas também, certamente, os outros editores que trabalhavam para a venda ambulante –
não desconheceram um dos instrumentos mais típicos da formação latina, dado nos colégios (aquele de Troyes tinha uma excelente reputação)
ou nas instituições mais modestas, como as regências latinas. Essa que
foi uma das versões que ocupou o mercado mais tardiamente, mas também por muito tempo, reafirma-nos a idéia de que os Oudots puderam
ter algum interesse pela possibilidade que oferecia ainda o mercado do
latim escolar no século XVII e mesmo no século XVIII. Evidentemente
há aí uma pesquisa mais minuciosa a fazer.
Os impressores-livreiros de Troyes, editores de
aritméticas?
A segundo corrente constitutiva da cultura escolar moderna, aquela
proveniente da tradição mercante e dos mestres de escrita e aritmética,
31
Grammatica Joannis Despauterii... in commodiorem... usum redacta... Adjecta est...
gallica versuum Despauterii interpretatio per Gabrielem Prateolum necnon etiam
latinae linguae cum graeca collatio necnon quantitatis fusior... explicatio per
Joannem Behourt... Additur libellus de bello grammaticali, per puncta divisus, Trecis,
N. Oudot, 1666, 668 p. [B.N.X. 8.356].
32 Le Petit Behourt ou le Nouveau Despautère, contenant les fondemens de la langue
latine... divisé en trois parties, Troyes, Jean Le Febvre, 1710.
33 Uma enquete análoga poderia ser feita sobre as semelhanças entre as coletâneas de
lugar-comum utilizadas nos colégios, após o século XVI, e os Fleurs de bien dire,
impressos pelos editores de Troyes.
os livros escolares da bibliothèque bleue
27
também não deixou indiferentes os impressores de Troyes. Como duvidar se, seguindo Jean-Paul Oddos34, se faz das prensas de Lyon e,
mais particularmente, de Benoît Rigault (ativo entre 1555 e 1597) o
berço da Bibliothèque Bleue. É, efetivamente, esse impressor de Lyon
que recolhe, nos últimos anos do século XVI, uma linhagem de tratados
aritméticos em língua vulgar, nascida nos Países Baixos no decênio de
1500, e remanejada tanto em Lyon como em Paris, ao longo de todo o
século XVI.
Ora, essas aritméticas de mercadores se encontram nos fundos dos
impressores de Troyes, a partir da metade do século XVII, e é possível
reconstituir o caminho que as conduziu das prensas holandesas para as
prensas da Champagne.
Com efeito, Wouter Nijhoff e Maria Elizabeth Kronenberg35 assinalam na Nederlandsche Bibliographie van 1500 tot 1540 um pequeno
tratado anônimo de 48 fólios in-8o impresso em 1508 por Thomas van
der Noot, em Bruxelas, cujo longo título mostra seu conteúdo: Die
maniere om te leeren cyffren / na die rechte constenAlgorismi. / Int
gheheele ende int ghebroken / Tafel der multplicatien. A biblioteca universitária de Amsterdã conserva, por sua parte, uma versão impressa
por Willem Vosterman, em Amsterdã, por volta de 1510, de uma obra
quase idêntica intitulada Die maniere om te/ leeren cyfferen ende rekenen
metter pennen / end metten penningen na die gherechte / consten
Algorismi... Um Kalengier ende die maniere om te leeren cijfferen poderia ter sido impresso em Anvers por Jan Seversz em 1527 (assinalado
por Nijhoff et Kronenberg). Desde 1529, o tratado é traduzido para o
francês por um editor holandês. A biblioteca da Universidade de Harvard,
34
Jean-Paul Oddos, “Simples notes sur les origines de la Bibliothèque Bleue”,
Quaderni del seicento francese, vol. 4, La “Bibliothèque Bleue”nel seicento o della
letteratura per il popolo, Bari, Adriatica et Paris, Nizet, 1981, pp. 159-168.
35 A tentativa de genealogia sobre a qual nos debruçamos aqui apóia-se no repertório
de livros dos mercadores europeus elaborado sob a direção de Jochen Hoock et
Pierre Jeannin, Ars marcatoria: Handbücher und Traktate für den Gebrauch des
Kaufmanns, 1470-1820; eine analytische Bibliographie in 6 Bänden, Paderborn,
Verlag Ferdinand Schöningh, 1991, Band 1, 1470-1600: mit einer Einführung in
deutscher und französischer Sprache, 1991.
28
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
em Cambridge (Massachusetts), conserva um pequeno in-8o de 52 fólios
impresso em Anvers por Martin Lempereur para Willem Vosterman, em
1529, e intitulado: La Manière / pour apprendre à cyfrer, et compter par
/ plumes et gects selon la vraye science de / Algorime en nombre entier
et rompu36. É esse texto que é copiado e adaptado pelos impressores de
Lyon por volta de 1535. Encontra-se na Britsh Library La vraye / manière
pour apprendre a / Chiffrer & compter / par plu / me & gectz: selon
la science de / algorisme en nombre entier / & rompu: fort facile à
appren- / dre a toutes gens / tant pour / lart darismeticque que par /
les questions & exemples: / cy dedans insérés & corrigés, impresso por
Claude Veycellier em um formato in-12o, contando com 96 fólios. A
última versão holandesa (Die maniere omte leeren Cijfferen, Anvers,
Jan van Ghelen, 1569) parece ter registrado os adendos da edição francesa porque essa ganha uns 30 fólios em comparação às versões in-8o
anteriores.
Desde então, essa aritmética conhece dois destinos editoriais paralelos, certamente cruzados por vários momentos de sua história, um em
Lyon, outro em Paris. Em Lyon, reencontra-se o traço do pequeno tratado em três impressores da cidade. Cada deslocamento é ocasião para
um adendo ou uma mudança de título. Depois de Claude Veycellier,
Thibault Payen, um dos grandes impressores humanistas de Lyon dá,
em 1548, um in-8o de 80 fólios: L’Arimetique et Maniere de Apprendre
à Chiffrer & Compter, par la Plume et par les Getz ... très utile à toutes
gens, de nouveau reveve & Corrigée37. Benoit Rigaud, especializado
em pequenos formatos de grande circulação, imprime o texto, por sua
vez, em 1588 e em 1594, sob o título Aritmetique / Facile A Apprendre
/ A Chiffrer Et / Com- / pter par la plume & par les / Gects: tres-utile à
/ toutes gens. / Ensemble plusieurs excellentes sentences moralles, faictes
par quatrains, & ordre al – / phabetique: Auec la maniere / de taillerla
plume. / Nouuellement reueuë & corrigee. O formato reduziu-se ainda
36
Um exemplar incompleto encontra-se também na Biblioteca Nacional em Paris
(Imprimés, Rés. PV338).
37 Friedrich W. A. Murhard (Literatur der mathematischen Wissenschaften, Bd. 1,
Leipzig, 1797) aponta uma edição do mesmo impressor em 1555. Ela não parece
ter sido conservada.
os livros escolares da bibliothèque bleue
29
mais, uma vez que os 83 fólios são agora apresentados em in-16o. Pela
primeira vez em Lyon, e seguindo uma lição de uma edição parisiense
surgida nesse meio tempo na oficina de Jean Ruelle, é de se notar que a
Manière é explicitamente apresentada como um livro destinado à
escolarização das crianças ou dos adolescentes. Com efeito, os
“Quatrains”38 exaltados pelo título são no estilo daqueles que Mathurin
Cordier publicou alguns anos antes no seu Miroir de la jeunesse39. Eles
constituem, entre os séculos XVI e XVII, um dos modelos mais
freqüentemente utilizados pelos regentes para treinar as crianças na leitura e na escrita40. Eles lembram também os Quatrains de Pybrac editados pelos Oudots desde 173741. O pequeno tratado de afiar a pluma que
38
39
Estrofes ou pequenas poesias de quatro versos (nota das tradutoras).
Uma edição de Rouen do tipo Bibliothèque Bleue é apontada por Geneviève Bollème
na sua Bible Bleue. Anthologie d’une littérature “populaire”, Paris, Flammarion,
1975, sob o título Le Miroir de vertu et chemin de bien vivre, contenant plusieurs
belles histoires, par quatrains et distique moraux, le tout par Alphabet, da oficina
de Théodore Reinsart, em Rouen, em torno de 1587.
40 Os Quatrains de Cordier foram largamente utilizados nas classes de abecedários
dos colégios protestantes. Benoit Rigaud é, portanto, um dos primeiros impressores-livreiros de Lyon a se engajar do lado da Contra-Reforma. Ver Natalie Zemon
Davis, “Le monde de l’imprimerie humaniste: Lyon”, Histoire de l’éditon française,
sous la direction de Roger Chartier et Henri-Jean Martin, t. 1, Le livre conquérant.
Du Moyen-Âge au millieu du XVIIe siècle, Paris, Promodis, 1982, pp. 255-278.
Sobre os usos dessa aritmética nos meios protestantes de Lyon no século XVI,
Natalie-Z, Davis, Les Cultures du peuple. Rituels, savoirs, résistances au XVIe
siècle, Paris, Aubier, 1979, pp. 308-365.
41 LES/ QUATRAINS / DU SEIGNEUR/ De PYBRAC, / CONSEILLER DU ROY / en
son Conseil Privé. / Contenans preceptes & enseignemens / profitables pour tous
Chrétiens. / Avec les Quatrians du Président FAVRE. / Ensemble les Quaitrains de
la vanité du Monde. / Le tout reveü, corrigé, & augmenté des / Tablettes ou Quatrains
de la Vie et de / la Mort, par P. MATHIEU, Conseiller du Roy. / A TROYES, / Chez
la Veuve de JACQUES OUDOT & / JEAN OUDOT fils, Imprimeur-Libraire, / ruë
du Temple. 1737. / Avec Permission., conservada na Biblioteca Municipal de Troyes
[B.B.108]. Outras edições na forma de livro de cordel: de Jean Musier (em Troyes
e em Paris), de 1700, da viúva Nicolas Oudot, em Troyes e em Paris, s.d. Encontrase também menção desse Quatrains em um catálogo da viúva Jacques Oudot e no
da viúva Nicolas Oudot. Lembremos que os Quatrains de Pybrac foram publicados pela primeira vez com o título Cinquante quatrains, contenant préceptes et
enseignements utiles pour la vie de l’homme, composés à l’imitation de Phocolides,
Epicharmus et autres poëtes grecs, em 1574, por Jean de Tarnes, em Lyon (uma
edição no mesmo ano, em Paris).
30
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
acompanha remete-se sobretudo à cultura tradicional dos mestres de
escrita e aritmética. Pierre Rigaud reedita a versão da Aritmética proposta por Benoît em 1607 e 1613.
De Paris, quatro edições foram conservadas: duas dos Jean Ruelle,
de 1556 e de 1563; uma de Pierre Ménier, de 1585; e uma de Nicolas
Bonfons, de 1598. Todos estes são especialistas da impressão em língua
vulgar, destinada a um público maior. Jean Ruelle retoma a primeira
versão de Thibault Payen (Lyon), juntando-a com Plusieurs questions
par exemples pour faire la science plus facile & plus legiere a
comprendre. David Eugène Smith42 acredita ver nessa versão a mão do
aritmético Antoine Cathalan. Nada o permite confirmar. Tanto Paris como
Lyon, nesses anos, contam com numerosos aritméticos de grande talento, na sua maior parte antigos alunos ou continuadores de Nicolas
Chuquet43, de Lyon, que podem ter se engajado em um dos ateliês de
impressores, para remodelar incessantemente o texto holandês. Ruelle
parece ser, no mais, o primeiro a utilizar, em sua edição de 1563, o título
que será retomado pelos editores de Troyes (Instruction / De L’Arismetique Faci- / le à apprendrea chiffrer & compter / par laplume, & et
par les Gectz, tresuti- / le à toutes gens ...) e a ela juntar os Quatrains de
Pybrac e a maneira de afiar a pluma para fazer um manual em função
dos alunos dos mestres de escrita (Ensemble plusieurs / excellentes
sentences moralles, faictz / par quatrains & ordre alphabetique. / Avec
la maniere de tailler la plume. / Nouvellement reveu & corrigé). É verdade que esses últimos estão a ponto de obter as cartas patentes que os
instituirão, em 1570, em corporação.
42
David Eugene Smith, Rara Arithmetica. A catalogue of arithmetics writting before
the year MDCI with a description of those in the library of George Arthur Plimpton
of New York, New York, 1970.
43 Graham Fleg, Cynthia Hay, Barbara Moss, Nicolas Chuquet, Renaissance
Mathematician. A study with extensive translation of Chuquet’s mathematical
manuscript completed in 1484, Dordrecht, D. Reidel Publishing Company, 1985
pp. 291-330. Nicolas Chuquet, brilhante matemático, é um dos mestres escrivães
de Lyon, do fim do século XV, e com esse título ganha sua vida como seus confrades,
fazendo contabilidade e correspondências dos mercadores, e ensinando a caligrafia
e a aritmética (G. Fleg et al., op. cit., pp. 14-15).
os livros escolares da bibliothèque bleue
31
Ora, são bem estes os instrumentos dos mestres de escrita e aritmética (aritméticas, livros de ortografia e epistolários) que estão ainda presentes, dois séculos mais tarde, nos inventários dos editores de Troyes.
Assim, em 1722 nas oficinas dos Oudots44, podem-se encontrar 18 dúzias
de aritméticas, um lote de 163 dúzias de livretos nos quais estão misturados tratados de ortografia e Bâtiment des receptes (essa última obra
sendo uma coletânea de preparações meio medicinais, meio mágicas).
Aliás, os Secrétaires français e os Secrétaires à la mode estão ainda em
folhas não dobradas, no sótão.
Restringindo-se às aritméticas, que se trate da Instruction de Jean
Ruelle ou da Arithmétique facile de Benoît Rigaud, o modelo em que se
inspiram os editores de Troyes está disponível desde 1563, em Paris, e
desde de 1588, em Lyon. Foi necessário esperar até 1670, ou seja, um
século mais tarde, para que essa aritmética aparecesse nos catálogos da
Champagne, isto é, mais de 60 anos depois da aparição dos livros de
cordel. Pode-se concluir que esses livretos de aprendizagem da aritmética, tão populares nas cidades mercantes do fim do século XVI, foram
abandonados durante toda a primeira metade do século XVII, antes de
ser retomada pelos editores de Troyes, no formato da Bibliothèque Bleue?
Sabe-se hoje que, entre os produtos editoriais, qualquer que tenha sido
sua difusão, as obras escolares são freqüentemente as menos bem conservadas. Convém, portanto, ser prudente.
Efetivamente, uma vez instalado o título nos catálogos, são dois
tipos de aritmética que coabitam na Bibliothèque Bleue e isso ocorre
tanto nos catálogos dos Oudots quanto dos Garniers. Encontram-se
Instructions de l’arithmétique, diretamente plagiadas das obras de Lyon
ou de Paris, mas também Arithmétiques nouvelles que se diferenciam
muito e não parecem se inscrever na mesma tradição.
A primeira Instructions de l’arithmétique de Troyes preservada –
ela está hoje na Biblioteca Sainte-Geneviève em Paris45 – foi impressa
44
Inventaire après décès de Jacques Oudot, 17 juillet 1722, A. D. Aube, 2 E11/53
minutes Jolly.
45 Sobre a aritmética de Nicolas Oudot, ver J. Linet et D. Hillard, Bibliothèque SainteGeneviève, Paris, Catalogue des ouvrages imprimés au XVIe siècle. Sciences, techniques,
médecine, K. G. Saur, Paris, Munich, New York et Londres, 1980, notice n. 1.084.
32
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
por Nicolas III Oudot, em 1670. Uma Arithmétique nouvelle dans sa
véritable intelligence (Biblioteca do Arsenal) é proposta por Anne
Havard, viúva de Jacques Oudot, datada de 1725. Trata-se certamente
da mesma obra que é assinalada no inventário de 1722. O catálogo da
mesma Anne Havard oferece uma “Arithmétique à la plume et par pet.
in-8o” assim como uma “outra pequena aritmética” que poderiam ser as
copiadas da Instruction... de 1670 (ela é dividida em duas partes: aritmética algorítmica pela pena e aritmética abacista) e a Arithmétique
nouvelle, de 1725, efetivamente mais modesta. A viúva Nicolas Oudot,
instalada em Paris e ativa entre 1670 e 1718, propõe em seu catálogo
uma “pequena aritmética” e um “livro de aritmética, grande”.
Na oficina dos Garniers, alternam-se também dois tipos de obras:
uma Instruction de l’arithmétique que se encontra pela primeira vez no
ateliê de Pierre I Garnier em 1738 (Biblioteca Municipal de Troyes) e
uma Arithmétique nouvelle en sa perfection (Biblioteca Mazarine) que
só é encontrada em 1750, na casa de sua viúva, Élizabeth Guilleminot.
Essas duas obras se encontram com seus sucessores e seus colaterais até
a Revolução. A última Arithmétique en sa perfection importante encontra-se no catálogo da “Cidadã Garnier” que utiliza esse endereço de
1795 até o ano XII.
As Instructions de l’arithmétique são muito parecidas quer venham
de uma ou outra casa de edição. São pequenos in-16o relativamente compactos (80 fólios na versão dos Oudots, 119 páginas na dos Garniers)
que têm em comum a péssima qualidade científica, ainda degradada nas
edições mais tardias. Elas pertencem estritamente à tradição dos mestres de escrita e aritmética, como comprova a comparação que se pode
fazer com os cadernos manuscritos redigidos por seus alunos, que estão
hoje conservados no Museu Nacional de Educação de Rouen46. Elas são
efetivamente plagiadas das obras de Lyon ou de Paris já citadas. Entretanto, elas não guardaram, nem da tradição manuscrita, nem da tradição
impressa, a relativa boa composição dos textos. Compostas mani-
46
Serge Chassagne, “Comment apprenait-on l’arithmétique sous l’Ancien Régime?”,
Mélanges Lebrun, Rennes, Université de Rennes II, 1989.
os livros escolares da bibliothèque bleue
33
festadamente pelos operários que, seja por não dominarem essa ciência,
seja pelo pouco interesse de fazer o esforço de rever seu trabalho antes
de imprimi-lo, elas suscitam a questão – importante para um certo número de obras da Bibliothèque Bleue – do uso que podia ser feito desses
objetos. Tal qual nos chegaram, pode-se ter certeza de que eles não ajudavam quem desejasse aprender a contar. Deve-se propor a hipótese de
que elas pertencem (como as “Secretárias”) a um gênero muito específico da produção de Troyes que poderia ser situada do lado do exotismo
cultural? Uma aritmética errônea ou uma coletânea de cartas obedientes
a todos os critérios do epistolário precioso não trariam àqueles que as
compram e não sabem, aliás, nem contar, nem escrever, outras satisfações que não as utilitárias?47
As Arithmétiques nouvelles, quer venham das oficinas dos Oudots
ou dos Garniers são também aparentadas entre si, apesar das nuanças
que separam seus títulos respectivos. Essas “Pequenas aritméticas” são
in-8o de 24 páginas48 pelos Oudots e de 16 páginas pelos Garniers.
Simplificadas ao extremo em comparação às Instructions, desembaraçadas de todas as regras de origem medieval que pesavam nessas últimas, assim como do tratado do cálculo com fichas (ábacos), elas se
apresentam como verdadeiras obras escolares suscetíveis de serem os
suportes de aprendizagens sérias. Para além da explicação dos princípios da numeração de posição, propõem-se as técnicas das quatro operações e de suas provas respectivas, a regra de três e a regra da
companhia (cálculo proporcional que serve para redistribuir os ganhos
entre várias pessoas que entram na mesma operação comercial com
capitais diferentes). Não se esquece de ensinar o cálculo sobre os números complexos (limitados, porém, àqueles que entram em jogo nas
contas financeiras), fornecendo as tabelas das proporções das alíquotas
de 20, para a redução da livre em sols, e de 12, para a redução dos sols
47
Sobre essa hipótese do uso não funcional dos livros práticos da Bibliothèque Bleue,
ver Roger Chartier “Des ‘Secrétaires’pour le peuple? Les modèles épistolaires de
l’Ancien Régime entre littérature de cour et livres de colportage”, op. cit.
48 Na verdade, um caderno in-8o de 16 páginas seguido de um caderno in-4o de 8
páginas impressas sobre uma meia-folha.
34
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
em deniers. O fato de o livreto terminar com os modelos de cartas que
um filho pensionista ou, segundo as versões, que uma filha escreve a
seu pai deixa supor que esses textos podem ter sido destinados a alunos das pensões particulares ou pensões religiosas. O primeiro exemplar conservado desses tipos de opúsculos data de 1703 e foi impresso
em Annecy, por Humbert Fontane (Biblioteca Municipal de Grenoble).
Foi necessário esperar até 1725 para encontrar exemplares conservados impressos em Troyes49. Esse gênero de aritmética pertence, pois,
inteiramente ao século XVIII. Nós não temos ainda condição de
retraçar sua genealogia50. A produção aritmética dos séculos XVII e
XVIII é muito vasta e não permite aproximações fáceis como aquelas
dos séculos XV e XVI.
Uma hipótese é tentadora. É no primeiro decênio do século XVIII
que o conflito entre os mestres de escrita e aritmética e os Irmãos das
49
L’arithmetique / nouvelle / dans sa veritable intellegence / Où l’on peut en peu de
tems, & / même seul, apprendre à compter, / chiffrer, calculer sans Maître / & sans
jettons, toutes sortes de / sommes. / Mise dans une facilité toute parti- / culière,
dans cette dernière / Édition augmentée. / M. DCC.XXV. Um exemplar dessa edição está conservado na Biblioteca do Arsenal [8oS.13.069].
50 Dois tipos de títulos se encontram freqüentemente e designam, na verdade, o mesmo objeto: L’Arithmétique nouvelle dans sa véritable intelligence e L’Arithmétique
nouvelle dans sa véritable perfection, A primeira está com os numerosos editores
provinciais do livro escolar (Annecy, Humbert Fontane, 1703; Troyes, Jacques
Oudot, 1725; Épinal, Hubert Moralier, 1741; Toulouse, A. Navarre, s. d.). Em 1767,
aparece com Jean-Claude Hérissant, em Paris, uma edição reivindicada por um
autor, o senhor Valette, que certamente produziu acréscimos necessários para obter
uma nova permissão (um pequeno tratado epistolar). A segunda está, ela também,
com numerosos editores, mas parece ter sido mais produzida que a precedente pelos editores de Troyes, particularmente os Garniers (viúva Garnier, 1750, Citoyenne.
Garnier, s.d.; Jean Garnier, s.d.; J.-Ant. Garnier, s.d.; Viúva P. Garnier, s.d.). Esse
título continua a sua carreira depois da Revolução com numerosos editores das
províncias (Lyon, n., por volta de 1792; Chartres, viúva Deshayes, por volta de
1800; Épinal, Pellerin, s.d. Rouen, Bloquel, 1811; Caen, Chalopin, s.d.; Caen, A.
Hardel, s. d.) ou em Paris (P.D.R., an.-V). A partir de 1780, mas jamais com os
editores de Troyes, a assinatura do senhor Valette é lembrada e quase sempre completada com aquela de Clavet. Eu agradeço Pierre Jeannin (EHESS) que gentilmente me deixou consultar o seu repertório ainda não publicado para completar as
indicações dadas pelos principais catálogos.
os livros escolares da bibliothèque bleue
35
Escolas cristãs conhece seu apogeu51. Particularmente 1704 é o ano mais
rico do processo. A aparição das Arithmétiques nouvelles não seria um
dos elementos da batalha que leva a congregação a ir contra as corporações? Os Irmãos querem estender a alfabetização caritativa do “ler
somente” para o ler, escrever e contar e abrir as escolas congregacionistas
às crianças dos primeiros interessados na aquisição desses conhecimentos, os lojistas e os pequenos artesãos das grandes cidades. Não se poderiam confundir estes com os pobres a quem são, normalmente, destinadas
as escolas caritativas. Não é senão em 1787 que um tratado de aritmética propriamente de La Salle aparece52. Os editores da Bibliothèque Bleue
vêm preencher durante um momento a lacuna do dispositivo pedagógico dos Irmãos das Escolas cristãs?
A passagem das Instructions para as Arithmétiques nouvelles poderia assinalar uma etapa importante na evolução da escolarização das
aprendizagens aritméticas. As Instructions pertencem a uma cultura,
aquela dos mestres escrivães, que está em pleno declínio no começo do
século XVIII (a versão dos Garniers é claramente mais cheia de erros do
que a versão dos Oudots que data do século XVII). Os chefes de tipografia da Champagne não sabem ou não acham que vale a pena corrigir os
erros no momento em que as reimprimem. No entanto, essa mesma tradição, desembaraçada de seus arcaísmos, regenera-se nas Arithmétiques
nouvelles. Elas parecem destinadas às escolas de congregações ou às
pensões particulares do século XVIII para as quais os impressores de
Troyes não desdenham sua demanda, sinal de que esse mercado está em
expansão e que conta já com numerosos clientes potenciais.
A mesma demonstração poderia ser feita sobre os tratados de ortografia e sobre os epistolarios fragmentários que acompanham as arit-
51
Yves Poutet, op. cit., t. 2, pp. 77-107; e Georges Rigaut, Histoire générale de l’institut
des frères des écoles chrétiennes, t. 1, L’oeuvre pédagogique et religieuse de saint
Jean-Baptiste de la Salle, Paris, Plon, 1937.
52 Trata-se do Traité d’arithmétique à l’usage des pensionnaires et des écoliers des
Frères des écoles chrétiennes, publicado em 1787, em Rouen, pela viúva Laurent
Dumesnil. Sobre esse tratado, Rigaut, op. cit., t. 2, Les disciples de saint JeanBaptiste de la Salle dans la société du XVIIIe siècle, Paris, Plon, 1938, pp. 528-529.
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revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
méticas em outra época e nas formas que tomam as mutações que afetam cada um deles.
Os livreiros-impressores de Troyes à frente da
renovação da alfabetização do século XVIII?
Resta explorar a última corrente constitutiva da pedagogia elementar do século XVIII para ver o lugar que nela ocupam os impressores da
Bibliothèque Bleue. Trata-se da corrente, nascida das Reformas, que
reúne catecismo e alfabetização e que, na França, encontra seu resultado nas escolas de caridade do fim do século XVII.
Ao perseguir esse modelo, é necessário considerar a repartição geralmente feita nas análises de inventários ou de catálogos, entre livros
escolares e livros religiosos53. No inventário de 1722, entram, de fato,
no nosso corpus outros livros que não são os livros de salmos e de horas
já citados: as Instructions de la jeunesse, os catecismos, os Chemins du
ciel e as Pensées chrétiennes, os Exercices chrétiens, as Imitations, as
Figures de la Bible, as Vies de Jésus-Christ, assim como as vidas de
santos e o Enfant sage. Vê-se que as cifras de produção dos livros de
uso escolar devem ser aumentadas e constituem uma parte muito importante da edição de Troyes54.
53
Utilizamos aqui um critério simples. São consideradas obras escolares aquelas que
estão ainda em uso nas classes da primeira metade do século XIX, no momento da
enquete de Guizot, de 1833. Sabe-se que o material escolar não começa a se modernizar antes de 1830 e que a maior parte das obras das quais se servem os alunos do
começo da Monarquia de Júlio são as edições do século XVIII. Nosso inventário
não arrisca, aliás, de ser aumentado.
54 Retomam-se as contagens efetuadas por Henri-Jean Martin sobre o catálogo Morin
e sobre o inventário pós-morte dos Garniers, em 1789 (“Culture écrite et culture
orale, culture savante et culture populaire dans la France d’Ancien Régime”, Journal
des savants, 1975, pp. 245-248), deve-se adicionar, para se ter uma idéia da produção de uso escolar, as seguintes categorias: história santa e escrituras; instrução e
edificação religiosa; abecedários, silabários e ortografias; civilidade; aritmética;
modelos epistolares, conversações e jogos. Esta última categoria, muito extensa
para nós, é equilibrada pelo fato de não termos tomado nenhuma das entradas do
grupo “ficção”, por vezes utilizada nas classes e em particular aquilo que se trata
os livros escolares da bibliothèque bleue
37
Uma segunda revisão impõe-se logo. Na perspectiva pós-tridentina,
a aprendizagem da leitura estava no centro de um processo de
escolarização que raramente excedia o estado de uma alfabetização superficial. De todo modo, nas cidades do fim do século XVII – no momento em que a Contra-Reforma se exacerba na luta contra os protestantes, privados da proteção do Edito de Nantes –, entende-se que um
esforço didático deveria ser feito para atrair, com maior eficácia, as crianças dos pequenos artesãos e dos pequenos comerciantes para a escola, o
que quer dizer para a Igreja. A oferta de uma melhor instrução pode, ao
mesmo tempo, aumentar os efetivos escolares e melhorar a educação
cristã das crianças55.
Conhecem-se bem hoje os três principais modelos que serviram de
referência a essa mutação56: aquele de Jacques de Batencour57 que, no
quadro da comunidade dos padres de Saint-Nicolas-du-Chardonnet, em
Paris, tenta renovar, em 1650, o ensino dado nas pequenas escolas dessa
paróquia; aquele de Charles Demia que, em Lyon, entre 1664 e 1685,
inscreve seu esforço no quadro paroquial58; aquele outro de Jean-Baptiste
55
56
57
58
por contos ou romances de cavalaria. Enfim, esse tipo de reagrupamento nos permite dizer que dessa parte do catálogo Morin (1.389 edições, almanaques excluídos), 19,5% são livros de uso escolar (contra 28,1% para o religioso considerado
globalmente e 41,4% para o de ficção). Continuando, no inventário Garnier de
1789, a cifra aumenta ainda mais, pois ela se situa a 34,2% (contra 28,8% somente
para a ficção e 42,7% para o religioso).
Sobre a articulação entre a catequese e a oferta de instrução, o movimento vem ao
mesmo tempo da Itália do Norte (Xenio Toscani, “‘Scuole della dottrina
cristiana’come fattore di alfabetizzazione”, Società e stori, 26, 1984, pp.757-781) e
dos Países Baixos do Sul (Omer Henrivaux, “Les écoles dominicales de Mons et de
Valenciennes et les premiers catéchismes du diocèse de Cambrai”, Aux origines du
catéchisme en France, sous la direction de Pierre Colin, Elisabeth Germain, Jean
Joncheray et Marc Venard, Paris, Desclée, pp.144-159).
Dominique Julia, Marie-Madeleine Compère et Roger Chartier, op. cit., pp. 111-146.
L’Escole paroissiale ou la manière de bien Instruire les enfans dans les petites
escoles par un prestre d’une paroisse de Paris, Paris, Pierre Targa, 1654. Sobre a
atribuição deste texto a Jacques de Batencour, ver Yves Poutet, “L’auteur de l’Escole
paroissiale et quelques usages de son temps”, Bulletin de la Société des Bibliophiles
de Guyenne, 32o année, 77, janvier-juin 1963, pp. 27-50.
Charles Demia, Reglemens pour les écoles de la Ville et Diocèse de Lyon, Lyon,
chez André Olyer, s.d. (postérieur à 1685).
38
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
de la Salle que funda, em 1682, em Reims, a congregação dos Irmãos
das Escolas cristãs59. Sabe-se também que a obra de Jacques de Batencour,
L’Escole paroissiale (publicada por Pierre Targa, em Paris, em 1654)
certamente influenciou Demia e La Salle e tantos outros criadores de
obras de educação depois deles. As inovações de Batencour recaem sobre dois domínios chaves da pedagogia contra-reformada: a catequese e
a leitura.
Dominique Julia estudou as modificações trazidas por Batencour
no primeiro desses domínios60. Retenhamos simplesmente de sua análise o que ele assinala do uso bastante particular que é feito dos impressores do bairro da praça Maubert (perto do colégio da Sorbonne, em Paris)
para assentar uma melhor formação cristã nas escolas da paróquia. A
catequese é repartida em três tipos de lição: a catequese dominical, que
se faz sobre o catecismo da diocese de Paris e tem lugar tanto na escola
quanto na igreja; o “catecismo dos mistérios do ano”, que, nas festas
litúrgicas, permite iniciar as crianças no ritual particular que caracteriza
cada uma entre elas; o “catecismo do último quarto de hora”, que se dá
nos dias em que não haviam outros momentos de catecismo, no fim das
lições da tarde. As lições excepcionais que preparam as festas litúrgicas
são feitas sobre dois tipos de suporte: uma imagem (aquela do santo ou
do mistério concernido) que é mostrada e explicada; os “formulários de
instrução” nos quais é aprendida a lição. Esses livretos foram compostos por Batencour que, diz ele, os “fez imprimir para esse fim”. Cada
um deles é dividido em quatro partes que podem ser separadas e dadas
na classe, para grupos diferentes de crianças, segundo o seu grau de
avanço. Aprendidos durante a semana que precede a festa, eles são recitados para o mestre na véspera. Batencour previu que os formulários
fossem levados para as famílias para que as crianças pudessem mostrálos a seus pais “como devem fazer na celebração desta festa”. Para o
59
Frère Maurice-Auguste, “Conduite des Écoles chrétiennes. Édition comparée du
manuscrit dit de 1706 et du texte imprimé de 1720”, Cahier lasalliens, 24; e J. B. de
la Salle, Oeuvres complètes, op. cit.
60 Dominique Julia, “La leçon de catéchisme dans l‘Escole paroissiale de Jacques de
Batencour”, Aux origines du catéchisme en France, op. cit., pp. 160-187.
os livros escolares da bibliothèque bleue
39
impressor61, trata-se de uma folha dobrada in-4o ou in-8o, segundo o
caso, que não é nem costurada, nem encadernada e parece ter sido fabricada na medida das necessidades ou da inspiração de Batencour. É,
aliás, como as “folhas clássicas” destinadas aos alunos dos colégios, um
impresso de consumo rápido destinado a um uso escolar intensivo bem
diferente daquele do manual. A proximidade na qual se encontra SaintNicolas-du-Chardonnet do bairro dos gravuristas e dos impressores –
eles estão reunidos na rua Saint-Jacques e nas ruelas adjacentes – não é
talvez estranha a esse uso tão precoce do impresso na escolarização
elementar.
Ora, os impressores de Troyes mantêm relações muito estreitas com
esse bairro parisiense. É o caso de Nicolas III Oudot (1616-1692) que
trabalha para a livraria Raffié em Paris e, mais ainda, de seu filho Nicolas
IV que toma sua autorização na capital após ter aí se casado com Marie
Promé e que tem uma loja na rua da Vieille Boucherie, perto da ponte de
Saint-Michel, durante toda a segunda metade do século XVII62.
As ligações entre os impressores de Troyes – os Oudots, é claro,
mas também todos os outros – e as inovações pedagógicas nascidas na
comunidade de Saint-Nicolas-du-Chardonnet podem ainda ser mais aproximadas se se considera a aprendizagem da leitura. Partamos dessa vez
da produção da Champagne. Materialmente o ABC é um objeto de pequeno formato (in-16o ou in-8o que, raramente, ultrapassa dez centímetros de altura). Os exemplares do século XVIII foram, em geral,
reencadernados pelos colecionadores. Aqueles do século XIX, que provêm do depósito legal na Biblioteca Nacional e que são ainda aí conservados63, indicam o que esses livretos podem ter sido. Rapidamente cos-
61
Jacques de Batencour diz explicitamente, em Escole paroissiale, ter passado o comando a Pierre Targa que tem uma loja chamada Au Soleil d’Or, na rua SaintVictor bem próxima da igreja Saint-Nicolas-du-Chardonnet. Pierre Targa é também
o editor da Escole paroissiale.
62 Louis Morin, Les Oudot imprimeurs à Troyes, à Paris, à Sens et à Tours, Paris,
Leclerc, 1901; e Les Febvre imprimeurs et libraires à Troyes, à Bar-sur-Aube et à
Paris, Paris, Leclerc, 1901.
63 Biblioteca Nacional (X19.675). Este maço foi estudado por Ségolène Le Men em
Les Abécédaires illustrés au XIXe siècle, Paris, Promodis, 1984.
40
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turados, eles são protegidos por uma capa de cartão colado, de velhas
páginas de almanaques, pintada com uma tinta à água que mal cobre o
papel, de cor vermelha ou amarela. Para alguns, preferiu-se uma capa
de pergaminho. Eles não são, portanto, propriamente falando, os livros
de cordel, mas conservam todas suas características: impressos com tipos muito usados que pertencem, freqüentemente, a fundições heterogêneas, mal justificados, compostos em formas irregulares, todos têm
um frontispício (às vezes uma última página) feita de xilogravuras tradicionais da Bibliothèque Bleue (Instrumentos da paixão; O enterro de
Cristo; Apresentação no templo; ou ainda a Virgem com a criança do
Rafael etc.). Seu conteúdo é homogêneo. Na primeira parte, muito sucinta, encontram-se diferentes quadros de letras, sinais de pontuação,
de abreviações e de ligaduras (em romano e em itálico, em capitais e em
caixa baixa, o todo em dimensão decrescente) quase sempre acompanhadas de dez algarismos árabes, enfim, uma polícia de tipos de impressão. Segue-se então um quadro com as sílabas. Na segunda parte, a mais
importante em número de páginas, dispõem-se as preces essenciais (oração dominical, saudação angelical, símbolo dos apóstolos, benção e graças, confissão dos pecados), o texto da missa, os sete salmos da penitência, e as litanias dos santos e da Virgem. Assim, no Alphabet et
Instruction chrétienne da viúva Garnier (um in-8o de seis cadernos, não
paginados, sem data, conservados na Biblioteca Municipal de Troyes),
somente 6 das 96 páginas são consagradas ao aparelho didático. Todo o
resto da obra constitui, na realidade, o repertório mínimo de textos que
devem ter sido memorizados pelo catecúmeno fora do catecismo propriamente dito. Portanto, por detrás dessa aparente homogeneidade, escondem-se objetos muito diferentes.
Os abecedários de Troyes podem ser classificados a partir de uma
combinação de quatro oposições64. A primeira concerne à língua utiliza-
64
Eu completo as tipologias propostas por Dominique Julia, a partir de critérios essencialmente tipográficos (“Livres de classe et usages pedagógiques”, op. cit.); e
por Ségolène Le Men sobre a do emprego das ilustrações (op. cit.), introduzindo
uma nova oposição de tipo fonológico (distinção entre consoantes ordinárias e consoantes líquidas).
os livros escolares da bibliothèque bleue
41
da: encontram-se, com efeito, alfabetos latinos ou alfabetos franceses
(evidentemente são as preces que revelam uma ou outra língua). A segunda relaciona-se com a ausência ou a presença de uma separação intersilábica das palavras (essa separação é materializada por um traço ou
por um espaçamento, abarcando todo o livreto ou somente a sua primeira parte). A terceira oposição distingue os livretos compostos continuamente em um mesmo tipo daqueles que são feitos com tipos de dimensão
decrescente. A última, enfim, é mais propriamente didática e concerne
somente ao quadro de sílabas. Este coloca face a face os abecedários
que se contentam em compor cada consoante com cada vogal e aqueles
que acrescentam a esse quadro de sílabas de duas letras um quadro de
sílabas de três letras, constituído pelo conjunto consoante – consoante
líquida (como /r/ ou /l/ em francês) – vogal65.
Reconhecem-se por detrás de cada um desses critérios os grandes
debates pedagógicos do século XVII66. Deve-se aprender a ler começando pelo latim ou pelo francês? Convém soletrar cada letra e cada
sílaba? Devem-se variar os suportes gráficos de aprendizagem? Sobre
qual teoria das sílabas deve-se apoiar? Lembremos brevemente as escolhas feitas por Jacques de Batencour em Escole paroissiale. Elas são
muito tradicionais67. Contrariamente aos reformados e aos jansenistas
ou, mais tarde, à decisão que tomará J. B. de La Salle, ele recomenda
começar pelo latim. Ele deseja que a ordem letras – sílabas – palavras –
períodos seja rigorosamente respeitada e que a criança aprenda a soletrar antes de aprender a ler. Para isso, é necessário que as sílabas sejam
65
Assim, nos quadros do segundo tipo, a série / ta, te, ti, to, tu / é seguida da série /
tra, tre, tri, tro, tru/ ou ainda / pa, pe, pi, po, pu / é seguida da série / pla, ple, pli, plo,
plu /.
66 Esses debates são inseparáveis daqueles que, com os gramáticos, se desenvolvem
depois da primeira edição da Grammaire de Port-Royal (1660) e concerne, de uma
parte, à descrição fonológica das línguas e, de outra, ao estatuto da sílaba. Ver
Adrien Millet, Les Grammairiens et la phonétique ou l’enseignement des sons du
français depuis le XVIe siècle jusqu’à nos jours, Paris, Monnier, 1933; e Sylvain
Auroux et Louis-Jean Calvet, “De la phonétique à l’apprentissage de la lecture”, La
Linguistique, 9, 1973/1, pp. 71-88.
67 Escole paroissiale, op. cit., pp. 234-253.
42
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
separadas “pela largura de um teston de France”68. Ele recomenda variar os suportes a fim de que seja cada vez mais difícil ler a tipografia:
primeiro, um abecedário impresso em “letras comuns, grossas e bem
distintas”, em seguida textos impressos em “letras medíocres e legíveis”, depois “os livros em latim mal impressos como os salmos impressos em Rouen ou em Troyes”. No fim desse périplo, pode-se então
passar para o francês, mas começando novamente pelos grossos tipos.
O único avanço que admite Batencour concerne à teoria fonológica da
língua. Ele distingue, evidentemente, as vogais das consoantes, mas toma
cuidado de observar entre essas últimas a oposição entre 13 consoantes
“mudas” que, diz ele, “apenas soam com vogais” e 4 consoantes “líquidas que podem se juntar com uma vogal e uma consoante para formar
uma sílaba”. Essas quatro últimas são /l/, /r/, /m/ e /n/ que, em latim,
podem se encontrar nas composições como /ble/, /bre/, /prae/, /mne/, /
smi/ etc. Ele recomenda então alocar nos livros destinados aos alunos
duas pranchas de sílabas: uma de duas letras, e outra de três. Essa última
combina /a/, /e/, / i/, /o/ e /u/ com o conjunto /br/, /bl/, /cr/, /cl/, dr/, /fr/,
/fl/, /gr/, /gl/, /mn/, /pr/, /pl/, /st/, /sp/ e /tr/69.
Os abecedários impressos em Troyes efetuam escolhas entre as quatro alternativas descritas anteriormente. No entanto, todas as possibilidades não são exploradas. Somente três combinações parecem ter sido
retidas, que caracterizam três tipos de livretos. Os primeiros comportam
as preces em latim, sem separar as palavras em sílabas. Eles utilizam
abundantemente a diminuição do tipo. Eles têm, em geral, o título
Alphabet et Instruction chrétienne e não deixam de acrescentar a ele
“segundo o antigo uso da Igreja católica”70. Majoritários entre os exem-
68
Antiga moeda gravada com a efígie dos reis da França que circulou de 1513 até o
reinado de Luís XIII.
69 Escole paroissiale, op. cit., pp. 234-238. Convém destacar que o autor não dá status
específico para a letra /s/ alocada na frente de uma consoante (“Às vezes também o/
s/ se junta com um /p/, /t/, como /spi/, /sti/”, p. 236), enquanto não lhe falta um
lugar no seu quadro de sílabas de três letras. Ao contrário, ele abandona o /m/
líquido para utilizá-lo senão como consoante plena no /mn/.
70 Por exemplo, alphabet / et instruction chretienne / Pour les petits enfans, / Selon
l’ancien usage de l’Eglise / catholique. / A troyes / Chez la veuve Garnier, Imprim.
os livros escolares da bibliothèque bleue
43
plares conservados do século XVIII, eles passam sem obstáculos pela
Revolução. Pode-se considerar que eles são prioritariamente destinados
às pequenas escolas rurais.
Os segundos são também alfabetos latinos, mas as palavras são divididas em sílabas, e podem ou não aparecer com tipos de dimensão
decrescente. Eles têm em seu quadro de sílabas conjuntos de três letras
com líquida intercalada. Freqüentemente são denominados Premier
alphabet divisé par syllabe e, para um deles, editados por Mme Garnier
(sem data), a página de título precisa “Extrato da Escola paroquial71”,
fazendo, assim, referência direta ao modelo de Jacques de Batencour.
Lembremos ainda que a viúva Nicolas Oudot assinala a seus clientes,
em um de seus catálogos, que ela tem à sua disposição exemplares da
Escole paroissiale72. Infelizmente nenhum exemplar dessa edição de
/ Libraire, rue du Temple. Trata-se de um in-8o de seis cadernos paginados, sem
data (século XVIII), comportando uma xilogravura no frontispício (Circuncisão de
Cristo). A Biblioteca Municipal de Troyes possui dois exemplares (BB 167 e BB
837) que têm assinaturas e xilogravuras diferentes. Sempre dos Garniers, um exemplar (BB 882) distingue-se dos precedentes por uma cruz acompanhada dos atributos da paixão que serve de vinheta sob a página de título. Existem numerosos
exemplares dessas Instructions chrétiennes, com a cota X 19.675, na Biblioteca
Nacional (caixa 29).
71 Por exemplo, Premier / alphabet, / divise / par syllabes, / pour apprendre, avec
grande facilite, / les enfans a epeler. / Extrait de l’Ecole paroissiale. / A troyes, /
Chez Mme Garnier, Imprimeur- / Libraire, rue du Temple. Trata-se de um in-8o,
sem data (século XIX), com dois cadernos, não paginados, comportando duas
xilogravuras (uma da Virgem com o Menino [p. 2] e uma da Entrada em Jerusalém
[p.16]), recoberta, no lugar da capa, com uma folha de um canioneiro licencioso
pintado com vermelho. Ele está conservado na Biblioteca Nacional, cota X 19.675,
caixa 24, na companhia de numerosas edições muito próximas.
72 Alfred Morin, Catalogue descriptif de la Bibliothèque Bleue de Troyes (almanach
exclus), Genève, Libraire Droz, 1974, p. 103. Além da primeira edição feita por
Pierre Targa, em 1654, da qual dois exemplares somente foram conservados, encontram-se edições copiadas, ou abreviadas: Instruction méthodique pour l école
paroissiale dressée en faveur des petites écoles dédiée à M. le Chantre de Paris par
MIDB prête, de Trichard, em Paris, 1669 depois em 1685; sob o mesmo título, dos
G. Ch. Berton, em Paris, rue Saint-Victor (segundo Dominique Julia, op. cit.). O
sucesso do École paroissiale ao longo de 1660-1720 leva a crer na existência de um
número muito grande de edições.
44
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Troyes da maior reforma educativa do século XVII parece ter sido conservado.
Encontram-se, enfim, livros comportando as preces em francês, divididas em sílabas na sua primeira parte, depois impressas em palavras
inteiras em uma segunda parte. Eles utilizam a diminuição dos tipos.
Eles são denominados Nouvel alphabet français divisé par syllabes e
são endereçados freqüentemente, na sua página de título, à “juventude
cristã” ou às “escolas cristãs”73. Os exemplares conservados pertencem
todos ao século XIX, mas pode-se lançar a hipótese de que a introdução
desses objetos na produção de Troyes é mais antiga. As referências a
esses “alfabetos franceses” não são raras nos catálogos do século XVIII,
aqueles da viúva Nicolas Oudot, por exemplo74. Dessa vez, é JeanBaptiste de la Salle e suas “escolas cristãs” que se tornam as referências
implícitas dos impressores de Troyes. Assim, como se vê, os produtores
da Bibliothèque Bleue estão também presentes no coração do debate
pedagógico do século XVIII75.
Seria preciso recomeçar essa demonstração sobre os numerosos modelos de civilidade76 que os editores de Troyes colocam em seus catálo-
73
Um exemplo tardio: nouvel / alphabet / en français, / divise par syllabes, / pour
instruire les enfans avec facilite, / a l’usage des ecoles chretiennes. / troyes, / annerandre, imprimeur-libraire de l’eveche, / face a l’hotel de ville, Norst 5 et 7 / 1845.
Trata-se de um pequeno in-8o composto por 104 páginas com uma xilogravura (Cristo
na cruz) na página 2. Ele é recoberto por um cartão azul e pertence à coleção Louis
Morin. Outros exemplares com o mesmo endereço da Femme Garnier (século XIX)
com a cota X 19.675 da Biblioteca Nacional.
74 “Alphabet François, avec l’Ordinaire de la Messe, et autres prières en François”,
citado por Louis Morin, Catalogue, op. cit., p. 29.
75 Yves Poutet, “Les livres pédagogiques de Jean-Baptiste de La Salle”, Revue
française d’histoire du livre, 26, 1980, pp. 29-67.
76 Sobre os Civilités da Bibliothèque Bleue, ver Roger Chartier, Lectures et lecteurs
dans la France d’Ancien Régime, op. cit., pp. 45-86; e “Civilité”, Handbuch
politisch-sozialer Grundbegriffe in Frankreich (1680-1820), sob a direção de Rolf
Reichardt et Eberhard Schmitt, Munich, R. Oldenburg Verlag, 1986, pp. 7-50. Ver
também Yves Poutet, “Les livres pédagogiques de Jean-Baptiste de La Salle”, op.
cit. Encontra-se uma lista de edições de Civilité de Jean-Baptiste de La Salle no n. 19
dos Cahiers lasalliens, assim como no Frère Albert-Valetin, Édition critique des
“Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne”, Paris, Ligel, 1956. Lem-
os livros escolares da bibliothèque bleue
45
gos (estão no inventário de 1722). Encontram-se sob os títulos Civilité
honnête ou Civilité puérile et honnête77 livretos compósitos que associam o abecedário e o tratado de ortografia, a aritmética e os preceitos
de moral de Pybrac, assim como, obviamente, as regras de conduta social ou religiosa, características desse gênero de obra. Tudo é impresso
com os famosos caracteres de civilidade – últimos vestígios de um tipo
de gótico cursivo na França – e com as licenças do século XVIII. Também são impressos em Troyes as Règles de la bienséance et de la civilité
chrétienne de J. B. de La Salle que oferece o mesmo texto do pequeno
livro que o fundador das Escolas cristãs havia escrito para a sua instituição. É verdade que estamos agora no começo do século XIX na impressora da viúva André que acumula as funções de impressora do
“Monsenhor Bispo” e dos “Irmãos das Escolas cristãs”. Entretanto, devese lembrar que entre o Primeiro Império e a Monarquia de Julho, esses
últimos estão nos postos avançados da inovação pedagógica e que seu
método (o “método simultâneo”) será o preferido de Guizot em vez do
método das escolas mútuas, apoiado por homens politicamente muito
próximos do ministro, quando for necessário modernizar o ensino público78.
Conclusão
Vê-se assim que os livreiros-impressores de Troyes nunca se contentaram em produzir obras escolares marcadas por seu arcaísmo para
os circuitos de venda ambulante. Muito pelo contrário, estiveram aten-
bremos que a primeira edição desta civilité é feita em Troyes, em 1703, por um
impressor, François Godard, que tem também loja em Reims, mas ele não é um
produtor habitual dos livros de cordel. A primeira edição do tipo Bibliothèque Bleue
parece ser aquela da viúva de Nicolas Oudot, em 1716.
77 Catalogue, Louis Morin, pp. 67-74. Vinte e quatro edições são recenseadas e existem muitas outras em diversas coleções.
78 Christian Nique, La Petite Doctrine pédagogique de la monarchie de Juillet (18301840), thèse pour le doctorat d’État, Strasbourg, Université Louis Pasteur, 1987, 2
vols.
46
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
tos aos sucessivos debates pedagógicos, adaptaram, sem cessar, sua produção aos avanços da escolarização e tentaram mesmo explorar a possibilidade de trabalhar para instituições que estavam em fase de
crescimento, como as pensões particulares ou as escolas de caridade. Se
eles abandonam esse mercado no século XIX, apesar dos esforços da
viúva André, de Anner e André ou ainda dos últimos Baudot, não é em
razão de suas más escolhas editoriais. Continuam, ao contrário, a se
interessar pelas proposições da Sociedade pelo Ensino Elementar como
por aquelas dos Irmãos das Escolas cristãs – as duas forças de proposições mais importantes do período. Na verdade, suas prensas não lhes
permitem mais assegurar para a edição em geral e, particularmente, para
a edição escolar, a produção de qualidade e de baixo custo que se esperava nesse começo do século XIX. Para servir a escola pública nascente
e oferecer obras em ritmo de milhões de exemplares a cada ano, como
exige o Ministro da Instrução Pública, necessita-se de outros meios técnicos e outros meios financeiros de que os últimos impressores de Troyes
não dispunham. O tempo dos Oudots ou dos Garniers acabou. É o dos
Hachettes que começa.
Celso Suckow da Fonseca e a sua
“História do ensino industrial no
Brasil” *
José Rodrigues **
O presente ensaio pretende analisar o pensamento pedagógico de Celso Suckow da Fonseca esboçado em sua obra clássica História do ensino industrial no Brasil, publicada
originariamente entre 1961 e 1962.
HISTÓRIA DO ENSINO INDUSTRIAL; BRASIL; CELSO SUCKOW DA FONSECA.
This essay aims at analysing Celso Suckow da Fonseca’s pedagogical thought presented
in this classical work História do ensino industrial no Brasil, originally published between
1961 and 1962.
HISTORY OF INDUSTRIAL TRAINING; BRAZIL; CELSO SUCKOW DA FONSECA.
*
**
Talvez caiba esclarecer que o presente ensaio, salvo alguns pequenos acréscimos e
atualizações, foi redigido originariamente, em 1990, como monografia para a disciplina história da educação no curso de mestrado em educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, ministrada pelo professor Luís Antônio
Cunha, a quem agradeço pelas sugestões e críticas, sem obviamente responsabilizálo pelo produto final. Agradeço também ao professor Dermeval Saviani pelo incentivo a finalmente divulgar este trabalho.
Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, doutor
em educação pela Universidade Estadual de Campinas ([email protected]).
48
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
1. Introdução
A História do ensino industrial no Brasil de Celso Suckow da Fonseca é, sem dúvida, um clássico da historiografia educacional brasileira,
principalmente no campo da formação profissional. Constitui-se em
passagem obrigatória a todos aqueles que buscam entender a organização e evolução do ensino técnico brasileiro. Contudo, se, por um lado, a
obra é muito citada em textos de história da educação, por outro lado,
não existem trabalhos que busquem analisar a obra em si1.
O presente ensaio pretende prover subsídios para a identificação do
pensamento pedagógico de Celso Suckow da Fonseca esboçado no texto e em suas entrelinhas. Para o leitor ter mais claro sobre que bases se
dá a análise das concepções de Celso Suckow da Fonseca, optamos por
apresentar um breve panorama da evolução do ensino industrial brasileiro baseado – exclusivamente – na leitura de sua obra, salvo algumas
notas explicativas do contexto e de indicações de leitura complementar
atualizadas. Foi nosso interesse, portanto, que o próprio panorama já
remeta o leitor a algumas das posições mais gerais do pensamento de
Suckow da Fonseca. Em seguida, procedemos a apresentação do seu
pensamento pedagógico propriamente dito, explicitando os procedimentos de análise.
2. Celso Suckow da Fonseca e sua obra
Celso Suckow da Fonseca nasceu em 27 de julho de 1905, no Rio de
Janeiro, e morreu em Detroit, nos Estados Unidos, em 26 de outubro de
1966, onde estava em viagem profissional a convite da Ford Foundation.
Formou-se em Engenharia, em 1927, pela então Escola Politécnica do
Rio de Janeiro, fez o Curso Superior de Locomoções do Centro Ferroviá-
1
Apenas recentemente, em 1999, veio a lume o verbete Celso Suckow da Fonseca,
de autoria de Maria Ciavatta Franco e Rebeca Gontijo (1999), inscrito no Dicionário de Educadores no Brasil.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
49
rio de Ensino e Seleção Profissional (CFESP), em 1939. Nesse mesmo
ano concluiu o curso da Escola Superior de Guerra (ESG), no qual se
deteve sobre a formação profissional. Nos Estados Unidos, formou-se
em Administração de Escolas Técnicas, no State College da Pensilvânia
(Franco; Gontijo, 1999, p. 134).
Celso Suckow da Fonseca integra uma geração de engenheiros-educadores, dentre os quais se destacam Francisco Montojos, João Lüderitz,
Ítalo Bologna2 e Roberto Mange, que fundiram suas atuações às estradas de ferro, às indústrias e às escolas técnico-profissionais (Franco;
Gontijo, 1999, p. 135).
Em que pese a atuação em diversos espaços institucionais, notadamente a Estrada de Ferro Central do Brasil, onde instalou dez escolas
profissionais, a trajetória desse engenheiro-educador está intimamente
ligada à história da Escola Técnica Nacional/Federal (ETN/ETF).
Com efeito, desde 1967, a então Escola Técnica Federal recebeu o
nome daquele engenheiro-educador que dirigiu essa escola por quatro
mandatos, só interrompidos pelo seu falecimento. A partir de 1978, a
antiga ETF denomina-se Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso
Suckow da Fonseca”.
A obra História do ensino industrial no Brasil foi editada originariamente pela Escola Técnica Nacional. A obra, dividida em dois volumes,
teve seu primeiro volume publicado em 1961 e o segundo em 1962.
A edição sobre a qual trabalhamos foi publicada, em 1986, pelo
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI). Essa edição, em
cinco volumes, veio a lume por ocasião do I Congresso Mundial de
Formação Profissional, ocorrido no Rio de Janeiro.
A obra de Celso Suckow da Fonseca, portanto, está dividida em
cinco volumes, e o primeiro aborda o ensino desde a época do descobrimento até as iniciativas da República, passando por uma pequena retomada histórica das origens e funcionamento das Corporações de Ofício
na Europa Medieval.
2
Ver também o verbete Ítalo Bologna, de autoria de Gaudêncio Frigotto e José
Rodrigues, na nova edição do Dicionário de Educadores no Brasil (no prelo).
50
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
No segundo volume, o autor aborda as conseqüências da Lei Orgânica do Ensino Industrial de 1942; as iniciativas do Exército e da Marinha, no que diz respeito ao ensino técnico-profissional e à questão das
estradas de ferro. O autor dá relevo à atuação do Centro Ferroviário de
Ensino e Seleção Profissional – CFESP3.
Já no terceiro volume é abordada a criação do SENAI, a atuação da
Comissão Brasileiro-Americana de Educação Industrial (CBAI), a formação do professorado e a evolução da filosofia do ensino industrial.
Ainda nesse volume, o autor aborda diretamente “A evolução da filosofia do ensino industrial”.
Os últimos dois volumes tratam das iniciativas sobre o ensino industrial adstritas às Unidades da Federação.
Aspecto relevante da obra de Celso Suckow da Fonseca é a farta
documentação nela reproduzida. Possivelmente, muitos desses documentos (e seus respectivos conteúdos) se perderiam se o autor não os
tivesse resgatado da sanha dos cupins da memória nacional.
3. Panorama geral do ensino industrial no Brasil4
3.1. Brasil Colônia
Nos tempos do Brasil Colônia – Terra de Santa Cruz –, a sociedade
nascente era baseada na figura de um chefe inconteste: o proprietário de
terras. Desse patriarca emanava um poder quase ilimitado. Com o passar do tempo, esse poder se disseminou por toda a sua família, passando
a constituir-se, assim, na camada mais alta da sociedade rural. Imediatamente abaixo dessa camada, vinham os artífices, os mecânicos, os tecelões. Abaixo desses encontravam-se os indígenas e mais tarde os escravos.
3
4
Esse é o tema central da dissertação de mestrado de Marluce Medeiros (1987),
apresentada ao IESAE/FGV e publicada pelo SENAI.
As referências relativas à obra História do ensino industrial no Brasil (Fonseca,
1986) serão apresentadas apenas por um número em algarismos romanos, que designarão o volume da obra, seguido de outro na forma hindu-arábica, referentes à
página. Assim, a indicação II: 13 refere-se ao segundo volume, página 13.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
51
Aqueles que empregavam as mãos para viver “gozavam de certas
prerrogativas sociais”, talvez dadas pela extrema e direta necessidade
desses pelas classes dominantes (I: 14). É importante lembrar que até
então técnicas, tais como tecer, esculpir, trabalhar o ferro, não eram praticadas, ainda, pelos escravos5.
A reprodução desses profissionais, ou seja, a formação de novos artífices, através da transmissão de conhecimentos técnicos acerca do manejo de ferramentas, dava-se nas próprias fazendas, “nas rudimentares oficinas situadas ao lado das casas-grandes” de maneira assistemática (I: 15).
Com a acumulação de riquezas por parte dos “senhores rurais” e do
ensino das profissões manuais aos escravos, a condição daqueles que
delas sobreviviam decai muito. Aí estaria a raiz do “abastardamento”
das profissões industriais.
Os jesuítas – “iniciadores dos processos de educação no Brasil” (I:
16) – também difundiram o ensino de ofícios manuais6. Não por uma
crença no valor dessa educação, mas sim “meramente” por necessidades materiais, tais como a construção de capelas e a confecção de instrumentos, como anzóis e facas. Aliás, Suckow da Fonseca considera
Mateus Nogueira – “ferreiro de Jesus Cristo” – fundador da metalurgia
paulista (I: 19). Os ensinamentos dos jesuítas não se limitaram aos aspectos de transformação da matéria, mas se estenderam também à agricultura. Cabe ressaltar que:
o ensino elementar das mais necessárias profissões manuais, feito pelos padres da Companhia de Jesus, fôra determinado pelas circunstâncias e não
tivera caráter sistematizado, nem obedecera a nenhum plano. Tudo conforme a exigência do momento, tudo de acôrdo com as necessidades imediatas
[I: 21]7.
5
6
7
Para o autor, a transferência do trabalho manual/artesanal aos escravos é fundamental para a formação de uma concepção negativa sobre o trabalho. Nosella (1993)
endossa tal perspectiva.
Um importante registro desse trabalho é a obra de Serafim Leite (1953).
Já se pode notar claramente a importância que o autor atribui ao ensino sistematizado das profissões industriais.
52
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Com a descoberta do ouro no fim do século XVII, vários engenhos
começaram a cessar suas atividades e vilas nasciam da noite para o dia.
Vila Rica, Mariana, São João Del Rei, são exemplos notórios. Se, por
um lado, o ouro produziu profissões ligadas à lavra do metal e à sua
fundição, por outro lado, produziu o êxodo para o interior daqueles que
exerciam as chamadas “profissões mecânicas”. Assim, para deter tal
movimento, foram baixadas Cartas Régias (1703, 1706) que proibiam a
ida de “homens de ofício” para as minas8.
Até a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, todas as atividades propriamente industriais eram proibidas e, portanto, o desenvolvimento dos ofícios ligados a esse tipo de atividade estava fadado a não
prosperar.
Logo que D. João VI permitiu o estabelecimento de indústrias no
Brasil, foi criado o Colégio das Fábricas, que se constituiu no primeiro
estabelecimento que o poder público instalou no país a fim de atender à
“educação dos artistas e aprendizes” (I: 102). Na verdade, o Colégio das
Fábricas era mais do que uma escola de aprendizes artífices, era também um local de abrigo aos artesãos vindos de Portugal.
A transferência da Corte para o Brasil produziu diversos reflexos no
ensino industrial. O Exército criou uma Companhia de Artífices9, fomentou a indústria de armamentos e conseqüentemente os ofícios ligados a essa indústria.
Também na esfera da lapidação de pedras preciosas, D. João VI
incentivou o ensino daquela arte, mandando vir de Portugal dois mestres que deveriam tomar dois aprendizes para ensinar-lhes o ofício.
Mas os sonhos de D. João VI não se limitavam às relações de mestre-aprendiz, ele desejava a instalação de cursos que tratassem do ensino de ciências, das belas-artes e da sua aplicação à indústria.
8
9
Com relação à posição social daqueles que se ocupavam dos ofícios ligados à fundição do ouro, o autor dá um grande destaque. Segundo ele, esses ofícios eram uns
dos poucos socialmente valorizados. Celso Suckow da Fonseca aborda, dentre outros, os ofícios ligados à construção naval, que começaram em meados do século
XVIII e se estendem até hoje.
Essa Companhia, muito tempo depois, se desenvolveu no Arsenal de Guerra do
Rio de Janeiro. A atual Escola de Arsenal de Marinha está em processo de reorganização.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
53
Logo, como faltavam pessoas habilitadas para conduzir tais atividades, conseguiu uma “pléiade de artistas” e um “punhado de homens de
ofício”. Tal grupo ficou conhecido como Missão Artística Francesa de
1816. No entanto, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que deveria ter sido posta para funcionar sob a orientação dos franceses, jamais
ocupou o lugar de centro de ensino de ofícios.
Em 1818, D. João VI incorporou à Coroa o Seminário São Joaquim,
no Rio de Janeiro, a fim de servir de quartel para o Corpo de Artífices
Engenheiros que funcionaria também como formador de novos artífices. Nesse Corpo:
não se fazia restrição quanto ao estado social dos jovens a instruir. Não se
dizia que aquela espécie de ensino era para pobres, órfãos ou abandonados.
Antes pelo contrário, desejavam-se os rapazes de boa educação [I: 113].
No entanto, igualmente não ocorreria na Bahia, no Seminário dos
Órfãos, que passaria a ser um marco na mudança da filosofia do ensino
industrial. Com efeito, a partir daí seriam abertos inúmeros estabelecimentos destinados a recolher “marginalizados” e dar-lhes ensino profissional (I: 114).
Assim, para Suckow da Fonseca, o reinado de D. João VI serve de
marco positivo na história do ensino industrial, dadas as ações de fomento à indústria e direta e indiretamente ao desenvolvimento do ensino de ofícios. Além disso, também foi um marco positivo pela instalação
do Seminário dos Órfãos, em 1819.
3.2. Brasil Império
Com a Constituição de 1824 – outorgada por D. Pedro I –, chegaram ao fim as Corporações de Ofício que “se não foi [de existência]
brilhante, nem influiu nos nossos destinos, teve, entretanto, bastante
duração” (I: 54).
A Constituição de 1824, se, por um lado, não abraçou, como queriam
os legisladores, a idéia de um ensino industrial voltado aos negros, por
outro lado, deixou vago o lugar ocupado pelas corporações, no tocante
ao ensino dos ofícios.
54
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Em 1830, pela primeira vez foi apresentado ao Congresso um projeto que instituiria o ensino profissional no país, em todo distrito com
mais de 100 residências. No entanto, o projeto nunca foi aprovado. Segundo Suckow da Fonseca, tal idéia seria “romântica”, haja vista a perspectiva de o país passar de um número zero de escolas desse tipo até
aquele necessário para cobrir todos os distritos com “cem fogos”, que,
aliás, não seria nada pequeno.
Em 1834, com o Ato Adicional, ganha força de lei as idéias
descentralizadoras (federalistas). Com isso, tornou-se difícil a implementação de uma política nacional de educação, uma vez que ao governo
central só cabia o ensino superior.
É interessante notar o modo como se enxergava o ensino superior.
Imperavam à época os cursos de medicina, direito e engenharia, que,
embora fossem cursos estritamente profissionais, eram apreciados pela
cultura geral que propiciavam. O autor mostra que tal mentalidade levou muitos estudantes a sacrificarem o aprofundamento profissional em
prol do “conhecimento geral da cultura humana ou ao ideal de um trabalho literário” (I: 141).
No governo de D. Pedro II, deu-se mais um passo ao “abastardamento” do ensino profissional:
O ensino necessário à indústria tinha sido, inicialmente, destinado aos
silvícolas, depois fôra aplicado aos escravos, em seguida aos órfãos e aos mendigos. Passaria, em breve, a atender, também, a outros desgraçados [I: 147].
O indignado comentário de Celso Suckow da Fonseca é utilizado
para introduzir a informação de que o imperador fundara, em 1854, o
Imperial Instituto dos Meninos Cegos, e de que dois anos mais tarde
fundaria o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, ambos com a finalidade
de dar profissão àqueles que abrigavam10.
10
Tipografia e encadernação seriam ensinadas aos cegos, enquanto aos surdos-mudos caberia a aprendizagem de sapataria, encadernação, pautação e douração. Atualmente esses institutos são respectivamente denominados Instituto Benjamin Constant
e Instituto Nacional de Educação de Surdos.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
55
Tal passagem parece deixar claro o quanto Suckow da Fonseca lutou pela dignificação do ensino profissional. Para ele não bastava a expansão quantitativa desse tipo de ensino, mas era fundamental que o
ensino industrial passasse a ser encarado como educação e não como
apanágio ou castigo.
O autor dá destaque também à atuação de Rui Barbosa em defesa do
ensino industrial. Com projeto apresentado em 1882 à Câmara, Rui
Barbosa pretendia reformar o ensino secundário e superior. No referido
projeto aparecia “misturado” ao secundário o ensino industrial. No entanto, tal projeto não previa a indispensável “parte prática”, mas apenas
aulas teóricas (exceção feita aos cursos de relojoaria e instrumentos de
precisão). Esses cursos seriam ministrados pelo, então, Liceu Imperial
D. Pedro II (atual Colégio Pedro II).
Rui Barbosa lutou também pela implantação da Escola Normal Nacional de Arte Aplicada, que deveria ficar entregue à direção de um
profissional contratado no exterior.
Apesar de outras vozes se levantarem em favor daquele deputado,
como, por exemplo, Tarqüínio de Souza (em sua obra O ensino técnico
no Brasil, de 1886), as propostas de Rui Barbosa jamais foram postas
em prática (I: 157).
D. Pedro II, em sua última Fala do Trono (3 de maio de 1889), pediu
à Assembléia Geral Legislativa a criação de escolas técnicas.
3.3. Brasil República
A 17 de dezembro de 1906, recebeu o Senado um documento proveniente de um Congresso de Instrução, que se realizou à época, sugerindo várias atitudes governamentais em benefício do ensino industrial.
Na opinião de Suckow da Fonseca, tal congresso defendeu idéias avançadas, pois chegava a propor a criação de escolas superiores industriais,
agrícolas e comerciais, distribuídas por todo o país (I: 171).
Pela primeira vez na história do país, em 1906, um presidente –
Afonso Pena – fazia referência ao ensino industrial em sua plataforma
de governo, no entanto, sem muito entusiasmo.
56
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Também em 1906, o engenheiro José Joaquim da Silva Freire criou,
na Estrada de Ferro Central do Brasil, a Escola Prática de Aprendizes
das Oficinas do Engenho de Dentro. O presidente da República, por sua
vez, sancionou um decreto que colocou nas atribuições do Ministério da
Infra-estrutura (agricultura, comércio e indústria) a responsabilidade da
instrução profissional.
Por ocasião da proclamação do regime republicano, existiam 636
estabelecimentos industriais e até 1909 implantaram-se mais 3.362. Isso
mostra, para Celso Suckow da Fonseca, que o desenvolvimento da indústria demandava o ensino profissional. “Urgia ao Govêrno, tomar providências” (I: 74).
Surgiu em cena então, pelo falecimento, em 14 de dezembro de 1909,
de Afonso Pena, o presidente Nilo Peçanha – “fundador do ensino profissional no Brasil”.
Nilo Peçanha já tivera fundado (1906) no Estado do Rio de Janeiro,
enquanto fora presidente daquele Estado, quatro escolas profissionais11.
Três meses depois de assumir a Presidência da República, Nilo
Peçanha tomou uma atitude que o colocaria definitivamente na história
do ensino industrial no Brasil. O decreto n. 7.566, de 23 de setembro de
1909, estabeleceu uma Escola de Aprendizes Artífices, destinada ao
ensino profissional, em cada uma das capitais estaduais12.
Para Celso Suckow da Fonseca, um único aspecto negativo marcava o decreto n. 7.566. Através dele, o presidente da república endossou
aquelas práticas/concepções seculares de destinar o ensino industrial
àqueles “desfavorecidos pela fortuna”. No entanto, Fonseca silencia a
respeito de que esse ensino, supostamente, promoveria o afastamento
desses “desafortunados” da “escola do vício e do crime” – a “ociosidade” (I: 177).
11
As escolas situavam-se em Campos, Petrópolis, Niterói e Paraíba do Sul, e as três
primeiras eram responsáveis pelo ensino de ofícios e a última destinada ao ensino
agrícola.
12 Cabe perguntar como foi possível – do ponto de vista legal – tal ato, haja vista que
a organização republicana de então vedava ao governo central a implantação de
escolas nos estados.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
57
Apesar de as Escolas de Aprendizes Artífices terem se mostrado
pouco eficientes, marcaram época no Brasil, uma vez que:
representaram uma sementeira fecunda que, germinando, desabrocharia, mais
tarde, sob a forma das modernas escolas industriais e técnicas do Ministério
da Educação [I: 182].
Segundo Fonseca, o curto governo de Nilo Peçanha não desarticulou as Escolas de Aprendizes Artífices, porque seu sucessor deu continuidade a sua obra, pressionado por “fatores econômicos”, pelo Senado,
pela Câmara e pela opinião pública13.
A 15 de novembro de 1914, assumiu a presidência o dr. Venceslau
Brás Pereira Gomes, que endossaria as palavras de Nilo Peçanha inscritas no decreto n. 7.566:
A criminalidade aumenta; a vagabundagem campeia; o alcoolismo ceifa, cada
vez mais, [...] porque, em regra, não tendo as pobres vítimas um caráter bem
formado e nem preparo para superar as dificuldades da existência, [...] se
atiram à embriaguez e ao crime [Manifesto de Venceslau Brás apud Fonseca,
I: 187].
E qual seria a solução? O próprio Venceslau Brás a dá:
Dê-se, porém, outra feição às escolas [...], tendo-se em vista que a escola não
é sòmente um centro de instrução, mas também de educação e para êsse fim
o trabalho manual é a mais segura base; instalem-se escolas industriais [...]
que os cursos se povoarão de alunos e uma outra era se abrirá para o nosso
País [idem, ibidem].
Sintomaticamente, Celso Suckow da Fonseca deixa de lado tais passagens, não se contrapõe a tal visão da relação entre trabalho e formação humana.
13
O marechal Hermes da Fonseca substituiu Nilo Peçanha em 15 de novembro de 1910.
58
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Em seguida, o autor cita vários debates na Câmara em busca da
melhoria do ensino profissional, fundamentalmente no tocante às verbas àquele ramo de ensino. Mas a situação do país era grave, já que
eclodira a Primeira Guerra Mundial. Esse fato simultaneamente atrapalhou e contribuiu para o desenvolvimento do ensino industrial no Brasil, pois, submetido a um estrangulamento externo, isto é, impossibilitado
de importar bens industriais, forçou/propiciou o crescimento da indústria nacional14. Com efeito, no período de 1915 a 1919 foram criadas
5.936 empresas de caráter industrial. Em cinco anos, a indústria avançou mais do que nos 24 primeiros anos da República (I: 190).
Como esse surto industrial se baseara, fundamentalmente, em pequenas oficinas, o autor afirma que isso teria acarretado uma demanda, não
só de mais braços qualificados, mas também e sobretudo de uma melhor
qualificação. Nesse ponto, Celso Suckow da Fonseca menciona um aspecto importante no que diz respeito à complexificação do processo produtivo e a sua relação com qualificação profissional – ponto fundamental
para a discussão atual acerca da relação entre trabalho e educação.
Quanto menor o número de artífices de uma oficina, tanto maior a necessidade
têm eles de conhecimentos profissionais, por precisarem executar uma variedade maior de problemas de ordem técnica, ao contrário do que se dá em grandes
fábricas, onde a aparelhagem mecânica e a produção em série, com conseqüente emprêgo de homens em determinadas tarefas sòmente, permite uma menor
soma de conhecimentos especializados para cada um dêles [I: 191].
Assim, várias inovações/alterações foram realizadas no âmbito do
ensino industrial, principalmente nas Escolas de Aprendizes Artífices15.
Desde a criação dessas escolas, o governo federal vinha tendo dificuldades com a falta de professores e mestres. Para Fonseca a questão
docente seria o ponto mais vulnerável da organização escolar à época.
14
15
Para uma análise aprofundada dessa dinâmica, ver Maria da Conceição Tavares (1977).
São algumas dessas alterações: o caráter obrigatório do curso primário para todos os
alunos; a redução da idade de ingresso para 10 anos; a obrigatoriedade de concurso
(provas e títulos) para o provimento dos cargos de professores e diretores; abertura
de cursos noturnos; a regulamentação mais precisa das caixas de mutualidade.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
59
Diante disso, o governo central encetou discussões com a prefeitura
do Rio de Janeiro para que a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau
Brás, fundada em 1917, controlada pelo governo municipal, passasse
ao âmbito federal. Com efeito, a Escola passou à esfera do Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio, em 191916.
Apesar de todos os esforços, as Escolas de Aprendizes Artífices não
iam bem. Assim, em 1920, o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio nomeou uma comissão de técnicos especializados para estudar o
funcionamento das Escolas e propor mudanças no ensino profissional.
Tal comissão ficou conhecida como Serviço de Remodelação do Ensino
Profissional Técnico, ou simplesmente, Comissão Lüderitz, já que foi
chefiada pelo engenheiro João Lüderitz, diretor do Instituto Parobé. A
Comissão, na verdade, foi composta por administradores e mestres do
Parobé, sediado no Rio Grande do Sul, pois era considerado o único
instituto de ensino profissional a apresentar bons resultados.
A Comissão Lüderitz propôs mudanças na estrutura das escolas e
nos currículos, introduziu o conceito de “industrialização das escolas”17;
traduziu e produziu livros-texto sobre literatura técnica, que até então
não existiam em língua portuguesa no Brasil.
Tais propostas foram reunidas no Projeto de Regulamentação do
Ensino Profissional Técnico e apresentado ao governo central em 1923.
De fato, o Projeto nunca foi aprovado, muito embora algumas de suas
proposições tenham sido incorporadas paulatinamente.
Com uma “visão profética”, segundo Celso Suckow da Fonseca, o deputado federal Fidélis Reis propôs, em 1922, um projeto de lei que tornaria
obrigatório o ensino profissional em todo o país. Para o autor, esse projeto
foi importante porque apontava para uma ruptura na concepção do ensino
profissional como ensino destinado aos “desvalidos”18.
16
Mais tarde, em 1937, tal escola foi demolida e em seu lugar foi construída, em 1942,
o atual Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca”.
17 Atualmente, a idéia de transformar as escolas profissionais em unidades produtivas é conhecida por “escola-produção”.
18 De certa maneira, o projeto Fidélis Reis guarda similitudes com a lei n. 5.692/71, já
que ambas preconizavam a profissionalização compulsória. É claro que distinções
existem; a lei de 1971 estabeleceu que o ensino médio (denominado 2o grau)
60
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Decorridos cinco anos de debates, o projeto Fidélis Reis foi sancionado – sem seu aspecto mais polêmico, a profissionalização compulsória.
No entanto, tal lei jamais foi executada, possivelmente pela falta de recursos para sua aplicação, já que era prevista a implantação de cursos profissionais e a fundação de escolas industriais em todo o território nacional19.
O deputado Graco Cardoso também antecipou outra lei – a “Lei”
Orgânica do Ensino Industrial, “aprovada” 25 anos mais tarde – ao propor um projeto que remodelava o ensino industrial no Brasil. Também
esse projeto não foi aprovado20.
Com a Revolução de 30, o Brasil começou deixar de ser um país
“essencialmente agrícola” e lançava as bases para se construir como
nação industrial21.
Com o governo provisório, instalou-se o Ministério da Educação e
Saúde Pública, passando à sua alçada as Escolas de Aprendizes Artífices. O então Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico é
substituído pela Inspetoria do Ensino Profissional Técnico, órgão ligado ao Ministério da Educação e Saúde Pública e não mais ao Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio, passando a ser dirigido pelo engenheiro Francisco Montojos. Em 1934, novamente o órgão muda de denominação, passando a ser designado Superintendência do Ensino
Profissional. Outra mudança ocorre em 1937. O ministro Gustavo
Capanema22 reforma o Ministério da Educação e Saúde Pública e, com
isso, extingue a Superintendência do Ensino Profissional, ou melhor,
19
20
21
22
fosse compulsoriamente profissionalizante, dando ênfase ao preparo de profissionais intelectuais, enquanto o projeto Fidélis Reis não tinha esse objetivo.
O motivo alegado para a não aplicação da lei – falta de verbas – constitui-se em
outro ponto de convergência com a lei n. 5.692/71.
Cunha (1981), diferentemente do restante da literatura, utiliza a palavra “Lei” (entre aspas) para realçar que essa legislação foi na verdade produzida como decretolei, portanto, sem discussão no Congresso Nacional. Na bibliografia geral sobre
educação, a palavra “lei” aparece grafada sem aspas, até mesmo em História do
ensino industrial no Brasil.
Sobre o papel estratégico da Confederação Nacional da Indústria nesse processo,
ver Rodrigues (1998a).
Para uma análise da obra de Gustavo Capanema, ver Schwartzman, Bomeny, Costa (2000).
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
61
transforma-a em Divisão do Ensino Industrial, órgão da Divisão Nacional da Educação. O engenheiro Francisco Montojos continuou à frente
do “novo” órgão.
As Escolas de Aprendizes Artífices passaram a ser denominadas Liceus; é extinta a Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, tornando-se, também, Liceu.
A Constituição de 1937 revela uma preocupação para com o ensino industrial, através do artigo 129. O artigo assegurava que o ensino
industrial/profissional era o primeiro dever do Estado, no que tange à
Educação. Celso Suckow da Fonseca lamenta, no entanto, a referência
ao ensino profissional tomado ainda como ensino “destinado às classes menos favorecidas” (I: 231), tal qual o decreto seminal de Nilo
Peçanha.
Após várias tentativas, o governo federal baixou o decreto-lei n.
408, de 22 de janeiro de 1942, criando o então Serviço Nacional de
Aprendizagem dos Industriários – SENAI – que certamente contribuiu
para mudar os rumos da instrução profissional no Brasil.
No entanto, o aspecto preponderante na mudança dos rumos da formação profissional foi a já referida “Lei” Orgânica do Ensino Industrial, na verdade, mais um decreto-lei da ditadura Vargas.
Com a Lei Orgânica do Ensino Industrial, que Celso Suckow da
Fonseca “não pode deixar de admirar a minuciosidade, a justeza com
que são definidas as bases pedagógicas do problema” (II: 9), estabeleceu-se as bases da organização e de regime do ensino industrial (entendido como o ensino destinado à preparação profissional dos trabalhadores
da indústria, dos transportes, das comunicações e da pesca, cf. II: 10).
Assim, o ensino industrial deixou de pertencer ao grau primário,
passando a equivaler, em certo sentido, ao nível médio, embora só permitisse ingresso ao nível superior em carreiras correlatas.
Para Fonseca, essa (parcial) equivalência, “abria-se, alargava-se o
horizonte”, passando a haver assim, uma “verdadeira democratização
do ensino” (II: 10). Na visão de Fonseca, o ensino profissional não era
mais destinado aos “desfavorecidos da fortuna”, uma nova filosofia passava a imperar: “o país havia atingido o apogeu de sua legislação de
ensino” (II: 18).
62
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Em 1946 e 1947, findo o Estado Novo – de caráter centralizador –,
a Lei Orgânica do Ensino Industrial foi alterada. Chocavam-se dois pontos de vista. Um que propugnava a unificação do sistema escolar, e outro que passava aos estados a responsabilidade da educação, inclusive a
administração das escolas técnicas e industriais da rede federal. O país
ingressou, assim, no debate da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, só concluído em 1961. Em razão de a História do Ensino
Industrial no Brasil ter tido sua edição original em 1961, o autor não
registra o final do embate entre aqueles dois pontos de vista23.
Voltando ao curso das mudanças, em 1953, surgiu a Lei de Equivalência, que veio ampliar as conquistas anteriores. Tal lei permitiu o ingresso ao ensino superior – em qualquer curso – de alunos egressos do
segundo ciclo dos ensinos secundário, industrial, comercial ou agrícola.
Segundo Fonseca, a Lei de Equivalência “era a coroação das idéias democráticas da educação: igual oportunidade para todos” (II: 43).
Como a Lei Orgânica não se adequava ao espírito da Constituição
de 1946, o governo instituiu, em 1955, uma comissão para estudar formas de flexibilizá-la.
Em 1959, o presidente Juscelino Kubitschek reformou o ensino industrial em todo o país. Faltava ainda, porém, a regulamentação que
veio a 16 de outubro de 1959, através do decreto n. 47.038 – Regulamento do Ensino Industrial. O aspecto principal dessa regulamentação
era a descentralização das Escolas Técnicas Federais – resolvendo o
conflito referido anteriormente.
Daí por diante as escolas industriais da rede federal do Ministério da
Educação não mais conformariam um sistema (ou rede) de ensino, pois
passaram a gozar de autonomia didática, financeira, administrativa e
técnica, com personalidade jurídica própria (II: 52).
Entretanto, o governo federal não perderia totalmente seu controle
sobre as escolas. A Diretoria do Ensino Industrial ainda era competente
para propor ao governo a distribuição dos fundos necessários ao funcio-
23
Para Otaíza Romanelli (1978, p.181), no entanto, a estrutura tradicional do ensino foi
mantida, e o sistema de ensino continuou a ser organizado pela legislação anterior.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
63
namento das escolas, assim como ainda detinha a prerrogativa de instituir as diretrizes gerais dos currículos e preparar o material pedagógico.
Em 1961, o presidente Jânio Quadros, em seu governo relâmpago,
resolveu caminhar na direção da fusão dos ensinos profissional e
propedêutico, atuando em dois movimentos simultâneos. Por um lado,
criava ginásios industriais dentro dos ginásios secundários, com o que fazia
o ensino industrial invadir a área do secundário, e, ao mesmo tempo, trazia
os egressos dos cursos clássicos ou científicos para o âmbito da ação das
escolas técnicas [II: 63-64].
Por outro lado, tentou levar egressos de outros cursos secundários para
os industriais, dispensando-lhes das disciplinas não-técnicas, ingressando, assim, na 3ª série dos cursos técnicos.
Era também pensamento de Jânio Quadros instituir a concepção de
“escola-produção” no âmbito das escolas federais de ensino industrial.
Mas três dias depois de baixar o decreto n. 51.225, de 22 de agosto de
1961, que tratava da implantação da escola-produção, Jânio Quadros
renunciou. Estava prevista também a criação da Fundação Universidade Nacional do Trabalho, que congregaria as escolas de engenharia, administração e escolas técnicas (II: 64).
4. O pensamento pedagógico de Celso Suckow da
Fonseca
O objetivo deste trabalho não é o de enquadrar ou rotular o pensamento pedagógico de Suckow da Fonseca, esboçado em sua obra, mas
sim o de reunir elementos que possam revelar os traços principais de
sua concepção de ensino profissional, buscando tornar claro aquilo que
está enunciado implicitamente nas linhas da História do ensino industrial no Brasil. Talvez fosse melhor falar em concepções, já que o autor
não buscou construir um sistema em que traçasse, ainda que em esboço, uma concepção estruturada de educação, ou mesmo de ensino
industrial.
64
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Outro aspecto que cabe lembrar é que não se deve cobrar de um
autor a imutabilidade de suas próprias posições. Aliás, é também cobrar
demais a onisciência sobre uma obra, mesmo que seja a sua própria.
Talvez, o domínio mais completo possível sobre uma obra jamais seja
realizado pelo próprio autor, já que ele é sempre prisioneiro de sua própria história.
Celso Suckow da Fonseca levou cerca de dez anos, entre pesquisas
e redação, para concluir sua obra. Portanto, era natural que o autor mudasse algumas de suas posições iniciais.
Um outro risco que corremos é o de imputar posições ao autor, que
de fato (?), não as poderia ter, ou que simplesmente não possuía.
Como não é possível confrontar nossas análises com o olhar de
Suckow da Fonseca sobre si mesmo, resta-nos o debate científico pelo
qual pretendemos depurar os equívocos mais grosseiros, buscando, com
isso, uma aproximação mais acurada da realidade – mutável e inesgotável.
4.1. As categorias de aproximação
Após leitura do item Panorama geral do ensino industrial no Brasil, devem ter ficado claras ao leitor, pelo próprio recorte adotado, algumas das posições do autor a respeito do ensino técnico-profissional.
Para efetivar uma análise um pouco mais detalhada, procurou-se
categorizar, sem aprisionar, o pensamento de Celso Suckow da Fonseca.
As categorias de análise foram reunidas em quatro grupos, todos
relativos à educação: filosofia, trabalho, organização e ensino. O primeiro grupo – filosofia – refere-se àquelas temáticas que apresentam a
característica de abordar a educação em sua forma mais geral e
abrangente. O grupo denominado trabalho é aquele que busca englobar
as questões relativas às relações entre trabalho e educação. O terceiro
grupo – organização – procura dar conta das discussões acerca da forma pela qual o ensino, em particular, o industrial, deveria organizar-se.
Finalmente, o grupo ensino visa captar aquelas categorias que se relacionam mais diretamente com a prática escolar.
Podem-se, didaticamente, apresentar de modo sistemático, então,
os temas de análise da seguinte forma: Filosofia – democratização da
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
65
educação; ajustamento social; profissionalização de jovens; ensino geral e ensino profissional. Trabalho – economia-educação; organização
do trabalho-saber; polivalência da força de trabalho. Organização – escola unitária; centralização e descentralização; escola-produção. Ensino – vocação; currículos; orientação educacional; relação teoria-prática.
Os grupos não se apresentam estanques, nem definitivos, tampouco
essas categorias são, necessariamente, mutuamente excludentes. Na
verdade, muitas das questões abordadas por uma categoria também foram – ou poderiam ter sido – abordadas no âmbito de outras. Apesar
dessas “imprecisões”, a grade de análise mostrou-se suficiente para se
construir um quadro geral do pensamento pedagógico de Celso Suckow
da Fonseca.
A seguir, portanto, discutiremos algumas das categorias, buscando
explicitar os respectivos significados, cruzando-as entre si e revelando
como elas se articulam no pensamento do autor de a História do ensino
industrial no Brasil.
4.2. Aproximando-se da concepção pedagógica
Para Celso Suckow da Fonseca, certamente a educação é um direito
de todos. Em várias passagens, o autor mostra que é necessário generalizar a educação a todas as camadas da população. Esse aspecto de seu
pensamento fica claro quando ele defende a República diante da Monarquia, no que diz respeito à democratização da educação: “A República [...] abriria novos horizontes e indicaria outros rumos à educação
nacional, democratizando-a” (I: 159).
Mais adiante, critica explicitamente a forma pela qual a Monarquia
tratava a educação e a cultura: “O Império caracterizava-se por uma
apresentação especial da cultura, sob a forma aristocrática, pois que visava a formação de elites e abandonava a educação da grande massa
popular” (I: 159).
No entanto, para Celso Suckow da Fonseca, não bastava estender a
educação à “massa popular”, era preciso que todos tivessem “iguais
oportunidades” para atingir o ponto mais elevado da hierarquia educacional – o nível superior. É o que ele nos deixa claro nas passagens que
66
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
comentam os passos dados na direção da equivalência dos diferentes
ramos de ensino, a partir da Lei Orgânica do Ensino Industrial:
O rapaz que começasse em uma escola industrial poderia chegar a ser um
engenheiro, um arquiteto, ou um químico. Ato de profundo alcance social,
verdadeira democratização do ensino. Antes, só as classes mais abastadas,
aquelas que geralmente se inscreviam nas escolas secundárias, tinham direito a aspirar aos estudos superiores [II: 10] [grifos meus].
Mais adiante, comentando novamente uma lei de equivalência, o
autor assume o ideal liberal de educação, ao afirmar que aquela lei “era
o coração das idéias democrática da educação: igual oportunidade para
todos” (II: 43).
Pelas passagens destacadas, e por outras não apresentadas, podemos concluir que – para o autor – à democratização da educação é suficiente estender a escola a todos e instituir a equivalência – na verdade,
formal – entre os diversos ramos de ensino.
Provavelmente, tal raciocínio também estava apoiado na idéia liberal de que os mais “aptos” e “capazes” poderiam e deveriam chegar ao
ápice da pirâmide escolar/social. Essa visão de que os homens possuem
aptidões e “dons” inatos está presente claramente na obra de Suckow da
Fonseca, como fica ratificado pela passagem abaixo, ao comentar a implantação de exames psicotécnicos no CFESP, para a seleção de alunos:
“Até então não se procuravam os mais aptos, os mais indicados, aquêles
que por suas tendências inatas teriam maior garantia de sucesso no exercício de uma profissão” (II: 227).
Essa opinião – que se baseava na certeza de que, ao se estender a
educação a todos, os mais aptos escalariam a pirâmide social – estava
fortemente alicerçada na defesa de um sistema escolar unitário24. Celso
Suckow da Fonseca era ardorosamente contrário à segmentação do sistema educacional. Tal posição fica clara na defesa incondicional das leis
24
Para uma ótima discussão sobre os conceitos de escola única e unitária, além de um
panorama mundial sobre a construção dos sistemas nacionais de ensino, ver Machado, 1989b.
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
67
que trataram da equivalência entre os ramos de ensino (propedêutico e
profissional), conforme as passagens anteriores.
A defesa da escola unitária – entendida como um fator de unidade
nacional –, permeada por uma boa dose de dramaticidade e romantismo, fica transparente no excerto abaixo:
Só por milagre essa falta de orientação única dos ensinos elementar e secundários não levou o Brasil à fragmentação, pois que são eles os elementos
mais fortes na formação da unidade espiritual de um povo [I:140].
Nesse ponto cabe ressaltar a existência de uma tensão no pensamento de Suckow da Fonseca, no que diz respeito à questão centralização x
descentralização da rede de ensino.
Em 1834, sofreu o ensino no Brasil novas injunções da prática política. [...]
Firmava-se a vitória das idéias descentralizadoras [...] e pelas quais passavam à competência das Províncias os ensinos primário e secundário [...] Tornava-se, assim, difícil uma política nacional da educação [I: 139].
Mais adiante ratifica a defesa da centralização, fruto da política anteriormente apresentada, comparando os saldos da centralização do ensino superior e a descentralização dos ensinos primário e secundário:
Com a passagem do ensino primário e do secundário para a alçada das Províncias sucedera o inevitável: à falta de diretrizes gerais e de condições econômicas uniformes, a eficiência fôra pequena; em vários casos, o ensino
primário limitara-se, apenas, a ministrar leitura, escrita e contas. Enquanto
isto, o ensino superior dilatara-se em quantidade e qualidade, formando uma
nata de letrados, doutores e bacharéis [I:159-160] [grifo meu].
Como fica claro nessas passagens descritas, Celso Suckow da Fonseca via claramente vantagens na centralização da rede escolar. Devemos deixar claro que tais passagens estão no volume 1 da obra, provavelmente, o primeiro a ser concluído.
No entanto, outras passagens – volume 2 – mostram, no mínimo, uma
aceitação, e até mesmo uma defesa da descentralização da rede de ensino:
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Descentralização apresentada como um imperativo do conhecimento elementar do processo de ensinar, que pede autonomia de métodos, e como exigência da imensa extensão territorial do país, que sugere administrações locais,
seguindo o exemplo da solução política que deu ao Brasil uma organização
federativa [II: 33] [grifos nossos].
Mais adiante ratifica esse ponto de vista, afirmando:
Com a autonomia descentralizava-se a administração, com que ficava muito
facilitada a aquisição de materiais [...], contrato de professores [...]. A vantagem que isto representava para o normal funcionamento de cada um delas [das
escolas], sòmente pode ser avaliada por quem quotidianamente acompanha o
desenvolvimento das múltiplas e complexas atividades escolares [II: 55-56].
Somente um “milagre” salvou o Brasil de uma “fragmentação”, dada
a falta de “orientação única” para o ensino, afirmou Fonseca. Descentralização é um “imperativo elementar” análogo à “solução política” da
organização federativa do país. Assim, o autor, apoiando-se sempre no
conceito de nação, advoga ora a centralização, ora a descentralização,
mesmo que em caráter unicamente administrativo. Sabe-se que medidas administrativas (redução de verbas, proibição de concursos, alteração nos critérios de provimento dos cargos de chefia) podem ser eficazes
mecanismos de privilegiar, ou desmontar, determinadas políticas encaminhadas por estados ou municípios. Sem dúvida, Celso Suckow da
Fonseca conhecia cotidianamente os aspectos burocrático-administrativos da gestão escolar.
Não se deve pensar, no entanto, que tal tensão se mostra como uma
ruptura no pensamento liberal, muito pelo contrário. É o que aponta a
passagem, continuação daquela imediatamente anterior, em que o autor
defende a articulação dos processos unificação-diferenciação:
A tese da descentralização defendia o ponto de vista da unidade no objetivo e
variedade nos métodos para alcançá-lo. Dêsse princípio concluíam seus defensores que a unidade do sistema educacional brasileiro deveria ser
conseguida pelas variedades estaduais obedecendo elas à equivalência e não
à uniformidade pedagógica. A unidade na variedade [II: 33].
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
69
Como foi mostrado, a democratização da educação é uma idéia (e
um ideal) central no pensamento de Celso Suckow da Fonseca, incluída
aí a perspectiva de generalização do ensino industrial e não da escola
“acadêmica”, assim como a suposição da existência de “dons” inatos.
Pode-se entender que os ideais de democratização da educação se
materializariam numa escola – unitária – que abrangesse a instrução de
todas as classes sociais – “classes cultas” e “trabalhadores” (III: 203).
Suckow da Fonseca não preconiza a extinção imediata dos diversos
ramos de ensino, em benefício do ensino profissional, mas entende que
o sistema educacional deveria caminhar para um fusão entre os dois
ramos: “vislumbrar-se, embora ao longe, uma época em que o primeiro
ciclo das duas espécies de ensino [secundário e industrial] será uniforme e incluirá a aprendizagem em oficinas-ambiente” (III: 202).
A idéia de uma superioridade do ensino industrial sobre o ensino
acadêmico está presente em toda a obra de Celso Suckow da Fonseca.
Com efeito, a História do ensino industrial no Brasil tenta mostrar a
marcha inelutável do ensino industrial sobre o ensino acadêmico. Ao
fim dessa jornada, o ensino profissional:
atingiria o mais alto escalão do prestígio social, pois partira de um grau situado
abaixo do primário e se colocava, afinal, no nível universitário. Séculos haviam
sido necessários ao ensino industrial para atingir aquela culminância [II: 84].
Fonseca não defende, no entanto, a implantação de um ensino de
“mera instrução de ofício”. A sua indicação é por um ensino que se
coloque no âmbito muito maior, no campo da “formação humana, social e econômica”. Para o autor, essa concepção de formação humana se
mostra necessária diante da “crise social que assoberba o mundo e que
já aflige o Brasil” (III: 203):
Dando ao pessoal da indústria não sòmente instrução profissional, mas educação no sentido mais geral do têrmo, faz com que lhe seja possível subir ao
nível das classes mais cultas e nelas penetrar, diminuindo, assim, razões de
queixas e atritos. Por outro lado, permitindo aos elementos dessas outras
classes seguirem os mesmos currículos e executarem trabalhos idênticos,
70
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
que antes só eram feitos pelos futuros trabalhadores, facilita a compreensão
dos problemas da vida proletária por parte da camada situada em plano econômico mais alto, uma vez que lhe é dado sentir, com mais realismo, as
dificuldades daqueles que lutam pela subsistência [III: 203-204].
Reduzindo, assim, a luta de classes a “queixas e atritos” por parte
dos trabalhadores, Celso Suckow da Fonseca fecha o volume 3 de sua
obra, apresentando a sua fórmula ideal da conciliação das classes:
Olhado por êsse prisma, o ensino industrial assume um aspecto que recomenda aos olhos dos governos verdadeiramente democratas, pois sua expansão será decisiva no equilíbrio social da nação [III: 204].
Mas essa defesa do ensino industrial parece estar calcada na compreensão de que existe uma relação direta entre instrução e desenvolvimento econômico. Ou seja, o autor entende que, se o país não é desenvolvido, é porque lhe faltam trabalhadores preparados para encaminhar
o processo de industrialização. Como todo pensamento que segue nessa
direção, Celso Suckow da Fonseca acaba, por vezes, a indicar, que, dado
um certo nível de desenvolvimento econômico, teria o Estado o dever de
suprir a indústria com mão-de-obra tecnicamente capacitada:
O desenvolvimento da indústria indicava a necessidade do estabelecimento do
ensino do ensino profissional. Urgia, ao Govêrno, tomar providências [I: 174].
A intenção de ligar diretamente a educação à questão do trabalho
industrial/produtivo traz conseqüências à concepção de instrução profissional preconizada. Como já colocado anteriormente, Suckow da Fonseca não defende uma profissionalização estreita. Assim, de que “tipo”
então seria esse ensino industrial unitário?
Um aspecto bastante abordado pelo autor, que parece estar bem delineado em seu pensamento, é a necessidade de formar trabalhadores
que possam atuar em vários setores/postos de trabalho na produção. Tal
capacidade de rotação é conhecida por polivalência da força de trabalho
(cf. Frigotto, 1991).
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
71
Fazendo referência à estrutura do Instituto Parobé, que, como foi
dito, era a única escola industrial que “apresentava resultados animadores”, Fonseca indica o processo que ele denominava “desespecialização”
(ver III: 192):
Outra característica que diferençava profundamente o ensino na Parobé daquele ministrado nas escolas federais, era a que se relacionava com a maneira de fazer o aluno percorrer as diferentes oficinas. [...] no Instituto Parobé
[...] o jovem freqüentava um grupo de oficinas correspondente a uma mesma
família de ofícios [...] especializando-se sòmente no quinto [I: 202].
Nessa passagem, no entanto, não fica clara a intenção de tal rotatividade. Não se percebe se o núcleo central da preocupação de formar
um trabalhador menos restrito estaria voltado – prioritariamente – para
o educando, ou se a intenção era beneficiar o sistema produtivo.
Apreciando a Lei Orgânica do Ensino Industrial, Celso Suckow da
Fonseca afirma que essa:
procurava defender uma fácil adaptação profissional ao trabalho futuro, evitando, durante o período de formação nas escolas, uma excessiva especialização. Assim, em seus cursos industriais faria com que os alunos aprendessem
não só uma técnica, mas grupos de ofícios afins, de maneira a poderem, com
maior facilidade, encontrar ocupação na nossa indústria [II: 14].
Daí podemos atribuir uma certa preocupação com o “futuro”, já que
a polivalência facilitaria o encontro de uma nova “ocupação na nossa
indústria” por parte dos egressos das escolas industriais.
No entanto, condizente com outras posturas aqui expostas, não encontramos passagens que revelassem uma preocupação com uma formação humana mais abrangente como sinônimo de instrumentalização
na luta dos trabalhadores contra a visão unilateral de homem.
A preocupação de Suckow da Fonseca mostra-se mais imediata,
menos ligada ao trabalho do que ao emprego. Tal afirmação pode ser
ratificada pela leitura da seguinte passagem:
72
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
As escolas [...] passavam a ser encaradas como formadoras de elementos
capazes de desempenhar qualquer função na indústria, sem limitações quanto a especializações. Visaram, pois, muito mais ao interêsse do jovem aprendiz, em virtude das maiores facilidades de conseguir trabalho, do que
propriamente à indústria, que se via sem profissionais peritos preparados
especialmente para as várias técnicas de que necessitava [III: 193].
Como se pôde perceber, as várias passagens apresentadas mostram
que o autor não desprezava, nem um pouco – apesar da citação anterior –
os interesses da indústria. Essa posição fica ratificada pela leitura de mais
um excerto de História do ensino industrial no Brasil, referindo-se criticamente às escolas da prefeitura do Distrito Federal (Rio de Janeiro),
modificadas pela Reforma Anísio Teixeira (1934), onde:
já não se procurava mais ensinar uma profissão, mas facilitar a escolha de
um ofício, que era encarado mais pelos seus fundamentos técnicos e
educativos, do que pelos seus fins comerciais [III: 197-198].
Com efeito, Celso Suckow da Fonseca, apesar de suas preocupações democráticas, não poderia concordar com uma formação tão desinteressada. Para ele o ensino industrial tem como objetivo fundamental
a “formação de elementos para a indústria” e não a busca pela liberdade
no trabalho. Para Anísio Teixeira, segundo o próprio Fonseca, o que
valia naquele tipo de educação era a “iniciativa pessoal dos alunos, a
sua capacidade criativa e inventiva”, além de uma “capacidade e interesse pela experimentação científica, e hábitos de saúde, leitura e trabalho”, com os quais Suckow da Fonseca parece não concordar, haja vista
o objetivo do ensino industrial – “ministrar o ensino mais prático e destinado à preparação para a indústria” (III: 198).
Assim, apesar de toda defesa do trabalho e do ensino industrial,
Suckow da Fonseca permanece adstrito à concepção burguesa de trabalho e formação humana. Para o pensamento burguês, mesmo que democrático, o Capital é encarado como demiurgo do Trabalho.
Assim, se uma relativa capacidade de polivalência irá beneficiar os
trabalhadores (seja lá de que maneira for) é porque – obviamente – o
celso suckow da fonseca e a sua “história do ensino industrial no brasil”
73
Capital já o fora inicialmente. Em outras palavras, a condição de
beneficiamento do Trabalho é o beneficiamento do Capital. Esperar uma
posição diferente dessa é imputar a Suckow da Fonseca posições que
não são suas, pois não pertencem ao quadro mais geral do pensamento
burguês com o qual ele nunca rompeu25.
A análise aqui desenvolvida buscou mostrar que Celso Suckow da
Fonseca, se, por um lado, defendia uma formação profissional mais ampla, por outro lado, sempre propugnava essa formação numa perspectiva funcional ao Capital.
Sua visão de ensino industrial estava muito adstrita ao conceito (atual)
de polivalência da força de trabalho, não alcançando a concepção de
educação politécnica26. A perspectiva de formação profissional polivalente, se, por um lado, pode ser favorável à classe trabalhadora, por
outro lado, integra uma estratégia mais geral de diminuir a porosidade
das relações de produção, de diminuição do valor da força de trabalho e,
portanto, de aumento da produtividade.
Cabe por fim sublinhar, mais uma vez, a relevância do papel de
Celso Suckow da Fonseca através de sua História do ensino industrial
no Brasil, tanto pelo trabalho historiográfico, quanto pela sua defesa
intransigente do valor do ensino industrial e, portanto, do trabalho como
princípio educativo.
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25
26
Para uma análise do pensamento pedagógico industrial, ver Rodrigues (1998a).
Para uma análise da concepção de educação politécnica, ver Rodrigues (1998b).
74
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
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Sob(re) o silêncio das fontes...
A trajetória de uma pesquisa em história da
educação e o tratamento das questões étnico-raciais
Eliane Peres*
Descrevo, neste trabalho, o processo de pesquisa sobre os cursos noturnos da Biblioteca
Pública Pelotense (BPP), dando ênfase à questão da presença dos negros nesses cursos.
Analiso a trajetória social e profissional de alguns alunos negros da “escola da Biblioteca”. Discuto, também, a partir dessa experiência de pesquisa, a questão dos limites e das
possibilidades das fontes para a história da educação no que diz respeito ao tratamento da
problemática étnico-racial.
QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS; HISTORIOGRAFIA; FONTES HISTORIOGRÁFICAS;
CURSOS NOTURNOS; BIBLIOTECA PÚBLICA PELOTENSE.
The paper describes a research process on night classes at Biblioteca Pública Pelotense
(BPP) emphasizing the question of black people’s attendance to these courses. Social and
professional careers of some black students of “The Library School” are analyzed.
Grounded on the research experience, the problem of limits and possibilities of sources a
History of Education concerned with racial-ethnical issues is also discussed.
RACIAL-ETHNICAL ISSUES; HISTORIOGRAPHY; HISTORIOGRAPHICAL SOURCES;
NIGHT CLASSES; BIBLIOTECA PÚBLICA PELOTENSE.
*
Eliane Peres é licenciada em pedagogia pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL,1989), mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS, 1993) e doutora em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG, 2000), com estágio de pesquisa na Universidade de Lisboa (Portugal, 1999).
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas (RS) e
pesquisadora do CEIHE (Centro de Estudos e Investigações em História da Educação
– FaE/UFPel). Desenvolve pesquisas sobre a história da escola, da pedagogia e da
profissão docente.
76
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
1. Considerações iniciais
Realizei, entre 1993 e 1995, uma pesquisa denominada “Templo de
Luz”: os cursos noturnos masculinos de instrução primária da Biblioteca Pública Pelotense – 1875-19151. O objetivo principal do estudo foi o
resgate histórico da experiência dos cursos noturnos de instrução primária criados em 1877 na Biblioteca Pública Pelotense (BPP). Algumas
questões centrais foram sendo definidas ao longo da investigação: por que
os cursos noturnos de instrução primária, durante 38 anos (1877-1915),
foram freqüentados apenas por homens? Como e por que as mulheres
foram excluídas? Se houve, porém, um processo de exclusão das mulheres, outro segmento social foi incluído no projeto dos cursos noturnos: os
negros. Eu considerava, no início da pesquisa, que a presença dos negros
– porque era uma exceção à época – teria maior “visibilidade” nos jornais
e documentos pesquisados. No entanto, há um silêncio nas fontes sobre
a presença desse segmento da população nos cursos noturnos. Foi preciso trilhar um longo caminho até descobrir que alunos negros freqüentaram as aulas da BPP. Depois, foi preciso outra empreitada para descobrir
se freqüentavam na condição de escravos – o que seria ainda mais inusitado – ou se apenas aos livres e aos libertos2 estava garantido esse aces1
2
Pesquisa desenvolvida no programa de pós-graduação em educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) entre 1993 e 1995 e apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre em educação sob a orientação da professora doutora Guacira Lopes Louro. O título do trabalho não foi escolhido ao acaso.
Ele está diretamente relacionado à história da Biblioteca de Pelotas e à visão de seus
idealizadores, que entendiam que era preciso iluminar o povo e elevar a cidade no
plano intelectual, idéias explicitadas nas palavras de Antonio Joaquim Dias, um dos
idealizadores da BPP: “o progresso intelectual de qualquer localidade deve estar em
relação com seu progresso material” (Correio Mercantil, 10/11/1875). Nesse sentido,
a expressão Templo de Luz é carregada de significados. Essa era uma das principais e
recorrentes denominações da BPP – além de outras, como santuário, Pórtico Ático,
augusto santuário das letras, templo da ciência, farol brilhante, templo do saber, benemérita instituição, instituição de caridade espiritual. O recorte temporal da pesquisa
(1875-1915) foi feito, considerando a criação da BPP (1875) e o ano que marca a reorganização dos cursos noturnos com o ingresso das mulheres (1915). A análise que se
fez, portanto, é do período em que a “escola” foi exclusivamente masculina.
Livre era o indivíduo que nunca tinha sido escravo, ao passo que o liberto era
aquele que, tendo sido escravo, fora alforriado.
sob(re) o silêncio das fontes...
77
so. É necessário considerar que a realidade brasileira em 1877 era a de
uma sociedade escravocrata – logo, racista –, em que os negros, mesmo
os livres e libertos, constituíam um grupo social marginalizado, discriminado e vivendo sob o jugo do preconceito. Com isso, outras questões colocaram-se como desafio de pesquisa: como os homens negros tiveram
acesso aos cursos noturnos da BPP? E por que os homens brancos da elite
se propuseram a oferecer aulas noturnas na Biblioteca aos negros, ainda
durante o período da escravidão? A questão de pesquisa complexificouse ao longo do processo de investigação, uma vez que constatei que esses cursos foram projetados e criados por um grupo da elite pelotense e
destinados aos “filhos do trabalho” (Diário de Pelotas, 23/11/1879).
Então, outros questionamentos surgiram: por que homens da elite
pelotense se preocuparam com a instrução dos homens das classes populares a ponto de criar os cursos noturnos? Que idéias e projetos estavam
implícitos (ou explícitos) nessa iniciativa? A análise dessa história, em
função das principais questões de pesquisa, foi então pautada por três
categorias: gênero, classe social e grupo étnico. Examinar aqueles atores
sociais – homens das classes populares e da elite, negros e brancos, nacionais e estrangeiros –, considerando essas características sociais e culturais de forma articulada, para compreender a dinâmica dos cursos
noturnos, foi a tarefa empreendida durante todo o processo de pesquisa.
Os cursos noturnos da BPP iniciaram suas atividades no dia 1o de
fevereiro de 1877 e os últimos registros nos livros de matrículas datam
de 1940. No entanto, em alguns documentos da BPP, há menção das
aulas até 1956. Portanto, se tomarmos essa data como limite, a história
dos cursos noturnos seria uma história de, pelo menos, 79 anos. Trata-se
de um largo período de que ficaram registros em apenas 3 livros de
matrículas, algumas fotos das décadas de 1940 e 1950, poucos relatórios manuscritos, uma carta de um professor (relatórios e carta “perdidos” em pastas com outros tantos documentos de natureza diversa)3,
duas carteiras usadas nas salas de aula dos cursos, hoje mantidas no
Museu da Biblioteca, e muitas notícias nos jornais da época. Evidente3
O material manuscrito referente aos cursos noturnos está atualmente guardado no
Museu da BPP (Pastas 642 e 155).
78
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
mente, os últimos anos de existência desses cursos ainda estão registrados, também, na memória de ex-alunos e ex-funcionários da BPP4.
Sendo assim, esta foi uma pesquisa exaustiva, que se iniciou no
contato com os 3 livros de matrícula dos cursos, principal registro da
existência das aulas na Biblioteca. Os livros indicam apenas nome, idade, nacionalidade, profissão e filiação dos alunos, além de observações
que, na sua maioria, registram: “expulso por indisciplina”. A curiosidade e as interrogações surgidas com o manuseio e leitura dos livros de
matrícula tornaram necessário percorrer cuidadosamente os jornais do
período compreendido entre 1875 e 1915, para, entrecruzando dados,
comparando fontes, cruzando notícias, “recompor” a história dos cursos noturnos e chegar, então, a uma das questões fundamentais do trabalho: os negros freqüentaram ou não as aulas da BPP ainda antes do final
do período escravista? Era preciso, portanto, “conhecer” alguns alunos
dos cursos noturnos. A princípio essa parecia uma tarefa impossível.
Como dar voz, rosto, identidade, pertencimento, aos alunos?
Inicialmente, um pouco sem saber no que isso resultaria e tendo
como critério trimestres anuais, recolhi 1.522 nomes nos livros de matrículas (anotados manualmente) nos anos compreendidos pela pesquisa. A questão que se colocava era: como descobrir se esses alunos atuavam em outros espaços sociais, políticos e culturais da vida pelotense?
Como saber quem eram eles efetivamente, além de saber nome, idade,
profissão e nacionalidade? O objetivo principal era conhecer mais e
melhor os alunos, principais atores dessa história, e conseqüentemente
ampliar a compreensão de quem efetivamente procurou e se instruiu
nos cursos noturnos entre 1877 e 1915, incluindo aí o pertencimento
étnico-racial dos alunos.
Não havendo indícios de como realizar essa tarefa, ocorreu-me a
possibilidade de cruzar os dados disponíveis dos alunos com os de participantes em associações populares, especialmente as carnavalescas,
dramáticas, abolicionistas, entidades de classe e, também, a imprensa
4
Como delimitei o período da pesquisa entre 1875 (criação da BPP) e 1915 (final da
etapa exclusivamente masculina dos cursos), apenas lancei mão das fontes que
diziam respeito a essa periodização.
sob(re) o silêncio das fontes...
79
produzida por negros5. Essas instituições eram bastante comuns e importantes em Pelotas, no final do século XIX e início do século XX, congregavam grande número de trabalhadores, e algumas eram compostas
especificamente de negros, como o caso do Clube Carnavalesco Nagô.
Pode-se dizer, em relação às entidades carnavalescas pelotenses –
especialmente aquelas como o Clube Carnavalesco Nagô –, que tinham
um caráter irreverente e buscavam, pelo Carnaval, protestar contra a
condição dos negros e, ao mesmo tempo, divulgar suas culturas. A imprensa produzida pelos negros, em Pelotas, foi, também, uma das mais
importantes do Rio Grande do Sul e quiçá do Brasil – especialmente o
jornal A Alvorada. Isso me instigou, também, a descobrir e analisar se
algumas das lideranças ou dos participantes das mais diversas entidades
que se destacaram nas causas populares em Pelotas haviam freqüentado
a “escola da Biblioteca”. Se a participação nas aulas dos cursos noturnos teve influência ou não sobre as idéias e as atividades desses homens, é difícil afirmar, nem foi esta a minha pretensão com o estudo.
Mas é certo que o domínio do código escrito foi uma das condições
básicas para a atuação, o engajamento e a luta de alguns alunos em
entidades e movimentos populares. Em relação aos alunos negros, foi
isso que procurei mostrar na pesquisa.
Os jornais locais do período possibilitaram o levantamento de dados sobre as diversas associações, suas diretorias e associados. Além
dos nomes dos alunos da “escola da Biblioteca”, coletei mais 400 nomes das diversas associações, ligas e clubes e, cruzando os dados (de
forma bem artesanal, listando os nomes em conjunto e classificando-os
por ordem ascendente), encontrei alguns alunos como atuantes em associações de classes e carnavalescas (selecionava e “perseguia” os nomes que “conferiam”: das aulas da BPP e das associações).
Ao fazer esse levantamento, tive a possibilidade, também, de perceber, em certa medida, os espaços sociais em que circulavam, viviam e
5
Os nomes dos participantes das associações, todos homens, foram retirados das
seguintes agremiações: Classes Laboriosas, Clube Beneficente Harmonia dos Artistas, Liga Operária, Recreio dos Artistas, União Humanitária, Clube Carnavalesco Nagô, Clube Satélites de Momo, Clube Sectários de Momo, Sociedade Dramática
Filhos da Thalia, Associação Abolicionista, diretoria e redatores do jornal A Alvorada (imprensa negra).
80
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
lutavam as classes populares pelotenses e os espaços nos quais essa
participação lhes era restrita, senão vedada (especialmente aos negros).
Evidenciaram-se, assim, fortemente, as delimitações de classe social e
os limites impostos pelo pertencimento étnico-racial na sociedade
pelotense. Esse procedimento metodológico, de cruzar alguns nomes de
alunos com as diretorias de associações e entidades pelotenses, teve,
obviamente, limites, pois abrangeu com um número restrito de sujeitos,
relativamente ao contexto das classes populares pelotenses e dos grupos negros. Entretanto, como o objetivo não era fazer generalizações,
foi extremamente válido e foi a única possibilidade de afirmar a presença dos negros nesses cursos.
Antes de passar à apresentação de como lidei, na época da pesquisa,
com as questões conceituais e apresentar alguns resultados da investigação em relação à presença dos negros na “escola da Biblioteca”, gostaria de fazer uma distinção, esclarecer algo em relação à pesquisa
histórica e contribuir com o debate da relação negros x educação x pesquisas acadêmicas em História da Educação. Temos, por um lado, um
conjunto de estudos que partem das questões étnico-raciais: estudos que
abordam, por exemplo, a criação de escolas, de instituições educacionais e assistenciais, de centros culturais por e para grupos negros, campanhas de alfabetização e escolarização voltados para a população negra,
ações educativas, culturais e políticas dos negros etc.; ou seja, é uma
análise de dentro, no sentido de que a presença da população negra é
incontestável e, em termos de pesquisa histórica, a problemática está
colocada a priori. Por outro lado, temos a pesquisa histórica lato sensu
(na falta de um termo melhor!); isto é, a pesquisa que toma os mais
variados objetos e temas para análise. Nesse caso, é preciso, cada vez
mais, criar uma cultura acadêmica que trabalhe com a pluralidade, com
a diversidade, ou seja, concretamente, que incorpore as questões étnicoraciais (e outras diferenças!) nos estudos, por exemplo, da história da
escola, da profissão docente, das políticas públicas, da educação de adultos, da educação infantil, do ensino noturno, da universidade etc. Ambas
as perspectivas isoladas não são suficientes. Se, por um lado, é preciso
fomentar a pesquisa histórica no campo da relação entre negro e educação, por outro, é preciso problematizar os lugares-comuns e incorporar
sob(re) o silêncio das fontes...
81
essa questão nas “pesquisas nossas de cada dia”. Nesse caso, então, será
necessário reinventar o trabalho com as fontes historiográficas.
2. A questão conceitual: raça, etnia, grupo étnico ou
grupo étnico-racial? Uma difícil e polêmica definição
Pretendia efetivamente, em minha pesquisa, “visualizar” os alunos
dos cursos noturnos da BPP. Tinha a intenção de problematizar essa
“clientela” para além de meramente afirmar que eram homens trabalhadores ou dizer genericamente que os cursos eram para a classe trabalhadora. Mais do que afirmar que eram homens das classes populares,
queria nomeá-los, incluí-los em seus grupos sociais, culturais e políticos e analisar espaços de vivências e os projetos pessoais, profissionais,
políticos e culturais desses sujeitos. Ou seja, queria resgatar-lhes seu
pertencimento concreto. Para isso, saber de sua condição étnico-racial
era fundamental. Aceitei o desafio da busca e da análise e incluí a dimensão étnico-racial (que poderia ter simplesmente deixado “esquecida”!) e a questão da presença ou ausência dos negros nas aulas da BPP.
Tratar da questão étnica teve como motivação duas razões principais: primeiro, porque desconfiava de que uma sociedade como a
pelotense, com um alto índice de população negra com organizações e
participação efetiva na vida social, econômica e cultural, com um acirrado debate sobre escravidão/abolição, marcadamente dividida entre
escravocratas e abolicionistas, com forte influência positivista e maçônica (os maçons foram um dos principais grupos fundadores da BPP),
não desconsideraria a questão da educação da população negra. Considerava que seria uma possibilidade ímpar para “revelar” a presença da
comunidade negra em experiências formais de escolarização e ajudaria
a desmistificar a idéia corrente e generalizada de que os negros não
sabiam ler e escrever, não estudavam ou não freqüentavam escolas no
século XIX. Segundo, porque desde então (1995) se proclamava já a
necessidade desta articulação: educação x diferenças étnico-raciais. Os/
as pesquisadores/as que vêm se dedicando ao estudo das experiências
educativas dos grupos negros no Brasil argumentam que a história desse segmento da população tem sido pouco considerada. Regina Pahim
82
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Pinto (1992) denunciava que, na verdade, o tema “não conseguiu sensibilizar pesquisadores da área de Educação, que raramente incluem a
dimensão raça/cor em suas investigações” (p. 44). Regina Pahim Pinto
(1992) chama atenção para o fato de que a história da educação também
negligenciou essa perspectiva de análise. Afirma a autora:
A História da Educação, por sua vez, também vem ignorando sistematicamente as iniciativas de grupos negros no campo da educação, tais como a
criação de escolas, centros culturais, seu engajamento em campanhas de alfabetização visando a população negra, ou mesmo suas propostas de uma
pedagogia que leve em conta a pluralidade étnica do alunado [p. 47].
A investigação que originou este trabalho foi, portanto, uma tentativa de, ao resgatar a experiência dos cursos noturnos da BPP, compreender, também, o significado da participação dos negros em tais cursos,
num momento histórico da sociedade brasileira em que esses indivíduos sofriam toda espécie de discriminação, sendo o não-acesso à escolarização uma de suas manifestações mais explícitas.
Convém explicitar, do ponto de vista conceitual, a opção pelo termo
grupo étnico ou grupo étnico-racial, uma vez que, na área de educação,
o termo raça era mais comumente usado – na época em que a pesquisa
foi realizada –, sobretudo quando o objetivo era referir-se aos negros.
Os poucos trabalhos que tomavam por objeto as experiências educativas
dos grupos negros usavam, sem uma maior preocupação conceitual,
expressões diversas: ora grupo étnico, ora raça e, por vezes, cor de
pele. Sem pretender esgotar esta complexa e difícil questão – e não sem
problematizá-la – optei pelo conceito de grupo étnico. Por ocasião da
pesquisa (1993-1995), avancei na direção que indico adiante.
Num primeiro aspecto, pode-se dizer que a opção foi também política, pois qualquer teoria ou trabalho empírico que não levar em consideração a linguagem “não saberá perceber os poderosos papéis que os
símbolos, as metáforas, e os conceitos jogam na definição da personalidade e da história humana” (Joan Scott, 1990, p. 11).
Além disso, não se trata apenas de uma mudança de terminologia,
mas sim de conceitos que diferem entre si. Com a contribuição da antro-
sob(re) o silêncio das fontes...
83
pologia, é possível concluir que raça está relacionada a uma visão
evolucionista e biológica. Segundo Verena Stolcke (1991), raça como
categoria antropológica foi condenada e em seu lugar foi proposta a
expressão grupo étnico e o termo etnicidade. Segundo a autora, raça foi
associada ao reino da natureza, “em contraste com a ‘etnicidade’ compreendida como identidade cultural” (p. 107). Manuela Carneiro da
Cunha (1987), ao discutir os critérios de identidade étnica, também
apresenta essa mesma idéia. Diz a autora que, durante longo tempo, a
definição de grupo étnico esteve inscrita na biologia. Um grupo étnico,
afirma Cunha, era um grupo identificável somaticamente. “Com este
critério, raríssimos e apenas transitórios seriam quaisquer grupos étnicos” (pp. 113-114), uma vez que, “a não ser em casos de completo isolamento geográfico, não existe população alguma que se reproduza
biologicamente, sem miscigenação com grupos com os quais está em
contato” (p. 113). Outro antropólogo, Dennis Werner (1992), também
demonstra o caráter arbitrário das divisões dos grupos humanos tendo
como critérios diferenças físicas ou genéticas. Segundo esse autor, não
se trata de negá-las, mas de perceber que é possível escolher qualquer
traço – cor da pele, tipo de cabelos e olhos, tipo sangüíneo, a predisposição para determinadas doenças – para classificar os grupos humanos
em raças; daí seu caráter arbitrário. Mais problemáticas que as classificações são as formulações simbólicas feitas tomando os critérios físicos
e geográficos, como, por exemplo, atribuir incapacidade aos negros
africanos e superioridade aos brancos europeus – pensamento comum
no imaginário brasileiro do século XIX.
Stolcke (1991) demonstra como o uso da expressão grupo étnico
e do termo etnicidade é recente, ao contrário do uso do termo raça, de
origem mais antiga. A autora atribui tal substituição ao reconhecimento,
por parte dos estudiosos, de que, em termos estritamente biológicos,
não existem raças entre os seres humanos. O termo etnicidade/grupo
étnico ganhou mais força, segundo a autora, no pós-guerra, numa tentativa de refutar as doutrinas nazistas. Stolcke afirma que: “A intenção era
enfatizar que os grupos humanos eram um fenômeno histórico e cultural, e não categorias de pessoas biologicamente determinadas exibindo
traços hereditários comuns em termos morais e intelectuais” (p. 106).
84
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Regina Pahim Pinto, no texto “A escola e a questão da pluralidade
étnica” (1985), também chama atenção para o uso incorreto do termo
raça e suas limitações como fator explicativo das diferenças humanas.
Considerando todas essas observações, grupo étnico foi empregado
na pesquisa com o intuito de transcender os aspectos biológicos e designar grupos de pessoas identificadas histórica e culturalmente. O critério
da cultura, segundo Cunha (1987), foi tomado por um grande número de
antropólogos que se ocuparam das relações étnicas. Assim, grupo étnico
é definido como grupo que compartilha valores, formas e expressões culturais. A autora chama a atenção, porém, para a necessidade de, ao adotar
o critério de cultura como fator de identificação de grupos étnicos, observar duas questões: a primeira delas é não tomar a existência da cultura
como característica primária, quando se trata de conseqüência da organização de um grupo étnico. A segunda é não supor que a cultura partilhada
por um grupo étnico seja, obrigatoriamente, a cultura ancestral (p. 115).
Isso significa não tomar a cultura como algo estático, homogêneo,
reificado, cristalizado, mas entendê-la na sua dinamicidade e variabilidade. Afirma a mesma autora que “os traços culturais poderão variar no tempo e no espaço sem que isso afete a identidade do grupo”, já que a cultura
é algo “essencialmente dinâmico e perpetuamente reelaborado” (p. 116).
Por fim, vale salientar que grupo étnico supõe uma auto-identificação e uma identificação da própria sociedade. Nesse sentido,
grupos étnicos distinguem-se de outros grupos, por exemplo, de grupos religiosos, na medida em que entendem-se a si mesmos e são percebidos pelos
outros como contínuos ao longo da história, provindos de uma mesma ascendência e idênticos malgrado separação geográfica. Entendem-se também a si
mesmos como portadores de uma cultura e tradições que os distinguem de
outros [Cunha, 1987, p. 117].
Nessa perspectiva, o conceito de grupo étnico impôs-se como fundamental na análise dos cursos noturnos. É preciso considerar que as
aulas da BPP eram freqüentadas por brancos e negros, que se auto-identificavam e eram identificados como pertencentes a grupos diversos,
fosse pela língua, pelo lugar de origem, por necessidades econômicas,
sob(re) o silêncio das fontes...
85
como, ainda, pela discriminação e opressão a que estavam sujeitos em
razão da cor da pele.
3. Alguns resultados da pesquisa: a presença dos negros
nos cursos noturnos de instrução primária da BPP
Pela sua intensa atividade industrial e comercial, a cidade de Pelotas,
no século XIX, concentrou grande número de escravos e trabalhadores
nacionais livres. Para Pelotas deslocaram-se, ainda, grandes contingentes de imigrantes de várias nacionalidades. Embora boa parcela dessa
população estivesse ligada às atividades da zona rural, especialmente à
indústria do charque e de seus derivados, outra parte desses indivíduos
concentrou-se na zona urbana. Havia, ainda, os que trabalhavam temporariamente nas charqueadas e, durante a entressafra, viviam e trabalhavam na cidade (a safra do charque era de novembro a abril, durante
os meses de mais calor, quando o boi engordava e a carne secava mais
facilmente). Na cidade, os negros escravos, livres e libertos, com os
brancos pobres, ocupavam-se das atividades domésticas e da produção
de bens e de serviços. Os imigrantes pobres também viviam dessas atividades, além de muitos deles atuarem no comércio. Isso significa que
havia uma “clientela em potencial” para um projeto como o das aulas
noturnas da BPP que, na visão das elites, além da instrução, deveria
preocupar-se em oferecer também educação moral.
Os cursos noturnos de instrução primária, projetados desde 1875
como uma das atividades da BPP, iniciaram suas atividades em 1877 –
mais precisamente no dia 1o de fevereiro daquele ano – registrando um
número considerável de alunos matriculados. No total foram 77 meninos e homens matriculados para a primeira e a segunda aula. Destes, 42
eram nacionais e 35 estrangeiros; 33 eram menores e 44, adultos, com
idades variando entre 9 e 48 anos. Se havia tais diferenças de idade e
nacionalidade, o que havia de comum entre os alunos? Como grupo
social, a condição de classe e o gênero, ou seja, o que os “igualava” era
o fato de serem todos do gênero masculino e pertencentes às classes
populares, trabalhadores, futuros trabalhadores ou desempregados. Assim, os Livros de Matrículas registram profissões ligadas especifica-
86
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
mente aos trabalhos manuais e aos trabalhos domésticos. Os alunos eram,
na sua grande maioria, criados, artistas6, marceneiros, carpinteiros, sapateiros, alfaiates, caixeiros, chapeleiros e ferreiros. Era comum que
muitas destas atividades fossem desempenhadas por crianças, a partir
de 7 ou 8 anos de idade.
Em maio de 1877, quando as aulas noturnas já aconteciam havia
quatro meses, o Correio Mercantil registrava o caráter masculino dos
cursos com as seguintes palavras: “Ainda não está completa a matrícula
dos freqüentadores efetivos e aceitam-se gratuitamente todos os homens
ou meninos livres” (Correio Mercantil, 17/5/1877).
Nesse pequeno aviso, explicita-se a exclusão de dois segmentos sociais: as mulheres e os escravos. A fração da elite pelotense, à testa do
projeto, em que pese seu vanguardismo, não se propunha a romper com
todos os padrões vigentes na sociedade. Os negros podiam freqüentar as
aulas, desde que livres ou libertos. No entanto, a presença deles nas aulas
da Biblioteca pode ser considerada um avanço para a época, uma vez que
o fato de ser negro era motivo suficiente para que o indivíduo sofresse
toda espécie de rejeição e preconceito. Em uma sociedade escravocrata e
discriminatória, em que a imagem do negro era associada somente a aspectos negativos, como inferioridade, incapacidade, indolência, vícios,
imoralidade, barbarismo, violência..., abrir-lhes as portas de uma instituição como a BPP, criada e mantida pela elite, parece surpreendente. Mas
justamente porque o objetivo era manter a ordem, disciplinar, incutir preceitos de moralidade e civilidade, palavras constantemente utilizadas
pelos dirigentes e professores dos cursos noturnos, é que as aulas não
podiam, na visão destes, prescindir da presença dos negros.
Após a notícia do Correio Mercantil de maio de 1877, há pouco
referida, em várias outras notícias, relatórios, avisos e chamadas de abertura das matrículas, a condição masculina dos alunos foi claramente
exposta, como se até então essa condição não tivesse sido assumida.
Vejam-se os exemplos a seguir:
6
O indivíduo que se ocupava de algum tipo de trabalho manual, artesanal, era chamado, na época, de artista.
sob(re) o silêncio das fontes...
87
A manutenção dos cursos noturnos da BPP, para a freqüência de crianças e
adultos do sexo masculino, seria suficiente para recomendar esta instituição
ao apreço de todo o Brasil... [Relatório de mês de fevereiro de 1882. Elaborado pelo diretor do mês, J. J. Cezar, grifo meu].
No início do século XX, isso é referido de forma mais contundente. O jornal Correio Mercantil publicou, em 1904, a seguinte nota:
Só poderão freqüentar o curso noturno os rapazes e adultos que não puderem freqüentar as aulas públicas, como os empregados de fábricas, serventes
de casas de família, e outros que se acharem nestas condições.
A matrícula no curso noturno é feita com a maior facilidade, bastando os
patrões se dirigirem à Biblioteca onde lhes serão fornecidas todas as explicações que carecem [20/1/1904, grifos meus].
O tutelamento por parte dos patrões é um aspecto que sobressai nessa notícia do Correio Mercantil. Os Livros de Matrículas registram, em
vários anos, “figuras ilustres” da sociedade pelotense que se “responsabilizavam” por alguns alunos, principalmente os menores. O aluno que
fosse matriculado nas aulas da Biblioteca sob a responsabilidade de uma
pessoa “bem nascida” tinha um status diferente no grupo, já que sua
figura era sempre associada à de seu “protetor”. Isso aumentava a responsabilidade do aluno em relação ao seu próprio comportamento e ao
processo de aprendizagem: ele tinha o dever de ser um bom aluno em
todos os aspectos.
Esse tutelamento estava, em grande parte, associado ao fato de que
a elite considerava as classes populares incapazes, além de naturalmente inclinadas para o mal, para a desordem, enfim, para o mundano. As
classes populares eram, no Brasil do século XIX, segundo Sidney
Chalhoub (1986), sinônimo de classes perigosas, com tendências à ociosidade e aos vícios. Em relação aos alunos menores da BPP, havia um
sentimento de que estes necessitavam de uma “proteção” especial, além
de exemplos e referências “civilizadoras”, posto que também à infância
pobre se associavam sentimentos negativos. Essa proteção e esse exemplo civilizador só poderiam vir da elite, que se considerava hierarquica-
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revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
mente superior e melhor. Segundo Margareth Rago (1987), na representação imaginária que os dominantes faziam da infância, esta era percebida como “superfície chata e plana, facilmente moldável, mas por outro lado, como ser dotado de características e vícios latentes que deveriam
ser corrigidos por técnicas pedagógicas para constituir-se em sujeito
produtivo da nação” (p. 122).
Esse imaginário da infância pobre como grupo dotado de vícios e
defeitos propiciava à elite pelotense experimentar uma certa rejeição
em relação aos alunos menores. Eles eram constantemente desqualificados, principalmente porque muitos não se adequavam facilmente às
normas de disciplinamento prescritas. Estava presente – estreitamente
associada à condição de classe dos menores-alunos – a idéia de infância
perversa, ou, para usar uma expressão de Philippe Ariès (1981), que
revela a visão da elite em relação aos menores, a infância e a juventude
eram consideradas idades da imperfeição.
Outro fator a ser considerado é que os cursos noturnos foram
projetados não exclusivamente, mas principalmente, para os trabalhadores pelotenses. E era sobretudo na condição de trabalhadores que crianças do sexo masculino podiam freqüentar as aulas, visto que o trabalho
infanto-juvenil era uma realidade em Pelotas. Para ser aceito no curso, a
condição de trabalhadores sobrepunha-se à faixa etária, ou seja, ao fato
de serem crianças. Tratava-se de indivíduos das classes populares, já
inseridos no mercado de trabalho e vivenciando relações de trabalho
concretas. Era como trabalhadores, e não como crianças, que estes sujeitos tinham acesso aos cursos. Ser trabalhador, porém, era antes uma
justificativa que uma exigência.
A exploração da mão-de-obra infantil em Pelotas no século XIX
favorecia, naturalmente, os proprietários, uma vez que as crianças eram
aprendizes de ofícios e não recebiam salários ou, quando isso acontecia,
estes eram insignificantes7. Era também relativamente comum que, nes7
Em 2/4/1955, Rodolpho Xavier (líder negro e operário, ex-aluno da BPP), comentando em A Alvorada sua própria trajetória profissional, que incluiu, entre outras
atividades manuais, a de pedreiro, escreveu sobre a situação dos aprendizes de
ofício no século XIX: “Nessa época [década de 80 do século XIX] encontramos as
diárias de meio patacão a quatro patacas aos ajudantes de pedreiro (de um cruzeiro
a um cruzeiro e 28 centavos por dia) e os aprendizes de 400 a 600 réis, estes
sob(re) o silêncio das fontes...
89
te período, crianças trabalhassem apenas em troca de moradia e comida,
principalmente em serviços domésticos. O trabalho para essas crianças
era pesado e as exigências muitas, pois a elite mantinha um estilo de
vida com muitos “rituais”8, o que exigia um trabalho minucioso por
parte dos “criados”. Além disso, essa elite habitava amplos casarões,
aumentando significativamente o trabalho doméstico.
Desde as primeiras décadas do século XIX, há referências a crianças negras prestadoras desse tipo de serviço. August de Saint-Hilaire
(1974), nos relatos de viagem ao Rio Grande do Sul no século XIX,
descreveu, ao visitar a residência de um charqueador pelotense, as condições de trabalho de um pequeno negro de 10 ou 12 anos. O autor
registrou as seguintes palavras: “não conheço nenhuma criatura mais
infeliz que essa criança, jamais sorri e em tempo algum brinca!” (p. 28).
Saint-Hilaire escreveu ainda que “não é a única casa que usa esse
impiedoso sistema: ele é freqüente em outras” (p. 28).
Nesse sentido a realidade e a presença de crianças na “escola da
Biblioteca” merecem maiores considerações. Pelo registro nos Livros
de Matrículas das profissões dos alunos – de artistas ou de serviços
domésticos, em grande número –, das idades e dos nomes dos homens
que se responsabilizavam por esses alunos menores, suponho que esta
fosse a realidade de um número significativo de crianças que freqüentavam as aulas da BPP. Não há dúvida de que havia menores aprendizes
de ofícios e crianças que se ocupavam dos serviços domésticos; traba-
8
na categoria de meio-oficiais. Não se tinha horários, trabalhava-se desde o amanhecer até a boca da noite, fora dos descansos das refeições, nos dias maiores, eram
12 horas de trabalho e ninguém se queixava e não tinha para quem apelar”. Nessa
mesma matéria, Xavier diz que iniciou no ofício de pedreiro em 1888, com 14 anos
de idade, e, segundo ele, antes disso já havia aprendido o ofício de vassoureiro,
colchoeiro e maleiro em 1886 e 1887. Essa trajetória é um indício da situação das
crianças aprendizes de ofício em Pelotas no século XIX.
Um interessante detalhamento dos “rituais” da elite pelotense no século XIX, que
tornavam complexos serviços simples como servir refeições, colocar uma mesa
para o jantar, aparece no segundo volume de Um castelo no Pampa: Pedra da
Memória (Mercado Aberto, 1994), obra literária de Luiz Antonio de Assis Brasil.
Há uma passagem em que a Condessa prepara uma moça para servi-la como copeira.
As exigências e rituais são tantos que a moça é obrigada, até mesmo, a aprender
francês. Pelotas foi chamada, no século XIX, de Atenas rio-grandense.
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revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
lho, porém, com a hipótese de que algumas dessas crianças eram negros
nascidos depois da Lei do Ventre Livre (1871), que viviam sob o
tutelamento de alguma família de posses, desempenhando trabalhos no
âmbito doméstico. É o que depreendo dos Livros de Matrículas e de
notícias como esta: “Faleceu o aluno Francisco Detroyat, de 8 anos de
idade, sendo o seu encarregado o Sr. Hypólito Detroyat nosso companheiro de diretoria” (Do relatório do mês de fevereiro de 1882. Diário
de Pelotas, 12/4/1882, grifo meu).
A denominação “encarregado” sugere que Hypólito Detroyat, membro da diretoria da BPP, não era pai do menino, pois dificilmente a morte de um filho de alguém na posição de Hypólito seria noticiada dessa
forma. O uso, por parte dos escravos e ex-escravos, do sobrenome dos
senhores, foi uma prática corriqueira, não apenas no Brasil, mas em
todos os países americanos – fato assaz testemunhado tanto pela
historiografia como pela literatura e a memória remanescente da escravidão. Acrescente-se a isso o fato de que as crianças nascidas após a Lei
do Ventre Livre, filhas de escravas, ficavam sob responsabilidade dos
senhores dos seus pais. Esses senhores deveriam sustentá-las até que
atingissem a maioridade, podendo, em contrapartida, usufruir plenamente
da sua força de trabalho. A exploração do trabalho infantil de crianças
nascidas legalmente livres que daí decorria é óbvia. Outro aspecto a ser
considerado – constatado por Agostinho M. Dalla Vecchia (1994) em
seu trabalho com descendentes de escravos na região meridional do Rio
Grande do Sul – era a existência, relativamente comum, dos chamados
“filhos de criação”, crianças entregues para serem criadas em famílias
de condições socioeconômicas favoráveis. Esses “filhos de criação”, na
realidade, desempenhavam as tarefas domésticas, sem receber qualquer
remuneração pelos serviços, e viviam, segundo o autor, em regime de
servidão. Todos esses fatos somados sugerem a possibilidade de existirem alunos menores que subsistiam numa ou noutra dessas condições
de dependência e subordinação.
Dada essa realidade dos trabalhadores-crianças, a “escola da Biblioteca”, que nasceu originalmente para ser uma escola de adultos, tornouse escola para menores e adultos. Se o objetivo primordial era atender
trabalhadores, era impossível delimitar a faixa etária.
sob(re) o silêncio das fontes...
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Assim, tendo adultos e crianças-trabalhadoras – alguns deles tidos
na conta de incorrigíveis – como alunos, os cursos noturnos priorizaram
uma instrução que estivesse associada à educação moral. “Não é bastante instruir. É necessário educar. Educar para o trabalho, educar para o
bem e para o útil. Instrução e educação constituem elementos essenciais
ao progresso das nações e à felicidade dos povos”, defendeu o Correio
Mercantil em 11/1/1884. O projeto de aliar a educação – entendida como
moralização do povo – à instrução – compreendida como acesso a alguns conhecimentos eruditos – foi levado a efeito nas aulas da BPP, principalmente porque uma parcela da elite pelotense assumiu como seu papel
social oferecer instrução e educação para as classes populares.
O trabalho dos professores da BPP era enaltecido especialmente pelo
tipo de clientela que os cursos atendiam: homens adultos e menores das
classes populares, negros e brancos, nacionais e estrangeiros. Essa
multiplicidade de homens fazia dos cursos da Biblioteca um espaço de
convivência e de relações, às vezes tensas, permeadas por disputas, por
rivalidades, tanto dos alunos em relação aos professores – o que sempre
acabava em suspensões e expulsões – como dos professores para com
os alunos e, ainda, entre os próprios alunos. Tal realidade é sugerida
especialmente pela carta que o professor Bento José Taveira escreveu
para a diretoria da Biblioteca, em 1881, em que refere o mal-entendido
que havia entre alunos de idades e cores diferentes (Carta manuscrita,
1881). A carta manuscrita é única. Nela o professor Bento José Taveira
registrou algumas das divergências que havia entre menores e adultos,
sendo também esta a única referência explícita das rivalidades entre
negros e brancos nas aulas:
[...] Assim temos por esta forma contínua e sucessivamente de lidar sempre
com os mais incapazes, os refratários e os novos admitidos: com tais elementos e ainda o mal-entendido [...] que os alunos de maior idade têm de se
emparelharem com os pequenos e uns com outros de cores diversas, não é
provável que se possa jamais conseguir satisfatoriamente uma criteriosa demonstração pública como é nosso espírito [Carta manuscrita, 1881, grifo meu].
Descobrir que os negros freqüentavam as aulas noturnas da BPP não
foi, conforme afirmei, nada fácil. Assim como há, na fase inicial dos
92
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
cursos noturnos, um silêncio sobre a ausência das mulheres – já que o
caráter masculino dos cursos só se explicita quando as aulas já estão em
pleno andamento –, há um imenso silêncio sobre a presença ou a ausência dos negros nas aulas. Ao contrário do gênero, que se colocava pela
obviedade dos nomes nas listas de matrículas, o fato de os alunos serem
negros ou brancos não está registrado em lugar algum. Ao “conhecer”
alguns alunos negros, entre eles Rodolpho Ignácio Xavier, aluno em
1883, com 10 anos, Boaventura Ignácio Xavier e seus filhos Pedro,
Boaventura e Mathias, que estudaram na escola na década de 80 do século
XIX e nos primeiros anos do século XX, e os irmãos Juvenal e Durval
Moreno Penny, alunos em 1899, é que foi possível concluir que os negros
podiam efetivamente matricular-se como alunos dos cursos noturnos.
Esses alunos se destacaram em Pelotas na luta pelas causas negras. Os
irmãos Penny fundaram, em 1907, o jornal A Alvorada, que tinha como
principal objetivo “a defesa de todo aquele que fosse atingido pelo preconceito de cor dentro ou fora do país” (A Alvorada, 5/5/1956). Rodolpho
Ignácio Xavier, um dos mais importantes líderes sindicais do início do
século XX, foi um dos principais redatores do jornal por longos anos.
O Clube Carnavalesco Nagô foi, também, um indicador da presença
dos negros nas aulas da Biblioteca. Entidade de prestígio no Carnaval
pelotense, era formado apenas de negros, que usavam as ruas da cidade
durante o período carnavalesco para protestar quanto à condição de vida
dos negros na sociedade. Membros da diretoria na década de 1880, como
Alfredo Teixeira de Moraes e José Maria dos Santos, foram alunos das
primeiras turmas dos cursos noturnos da BPP (Correio Mercantil, 23/1/
1884 e 29/08/1886).
A reprodução no Correio Mercantil, em 1884, da fala de um negro,
pai-de-santo, o Pai Domingo di Cancela, é surpreendente e inusitada. O
Correio Mercantil reservava espaço para as manifestações do Clube
Carnavalesco Nagô. Ainda não dominando o código oral e escrito da
cultura branca, os negros expressavam-se misturando sua língua materna, o Iorubá, e o Português. No dia 6/2/1884, o Pai Domingo di Cancela,
ao referir-se ao desfile do Clube Carnavalesco Nagô, mencionou a participação dos negros na “escola da Biblioteca”: “[...] Povo ziperotense
zipera, nosso oj está negro severizado, já prendeu na icolla de briotheca,
sob(re) o silêncio das fontes...
93
protanto abre o io comnosco; nosso vai faze turumbanda ni cabeça de
sumce” (grifo meu).
A manifestação do Pai Domingo indica que o domínio da leitura,
escrita e oralidade na língua portuguesa se tornou importante para esse
segmento da população. Marco A. Mello (1994), analisando o episódio,
argumenta que o que houve “foi um processo longo e penoso [...] no
qual os negros dessacralizaram a escrita, forjando um projeto de intervenção social notável que combinava parte de suas tradições tribais com
o domínio de um novo código lingüístico – o dos brancos [...]” (p. 90).
Os fatos mencionados mostram explicitamente a presença dos negros nas aulas noturnas. Mais do que isso, a questão foi compreender se
os homens negros romperam com a discriminação e o preconceito para
freqüentarem a BPP na condição de alunos, ou se justamente a discriminação e o preconceito fizeram dos negros alunos dos cursos.
É necessário considerar que a Biblioteca era uma instituição que
concentrava alguns abolicionistas pelotenses9 e como tal era “foco” de
disseminação dessas idéias. Não só cedia seu espaço para reuniões e
manifestações abolicionistas, como também arrecadava fundos, entre
seus associados, para comprar cartas de alforria de escravos. O jornal
Correio Mercantil registrou, em 5/12/1876, uma dessas situações em
que um sócio da BPP propunha uma campanha para arrecadar a quantia
de 50$000 réis para alforriar uma escrava de nome Genuína, de 70 anos,
cuja venda estava anunciada nos jornais locais. O Correio Mercantil
inicialmente elogiava a iniciativa, afirmando que isso demonstrava que
a diretoria da Biblioteca sabia compreender perfeitamente os dois grandes pensamentos da época: instrução e liberdade, para a seguir publicar os termos da proposta:
Com o fim de praticar um ato de caridade, resolvi implorar um óbolo para
livrar das garras do cativeiro a infeliz Genuína de 70 anos [...]
Na qualidade de membro da Biblioteca faço um apelo aos meus distintíssimos
consócios, aqueles que trabalham em prol da sublime causa da instrução para
que me auxiliem neste propósito.
9
Entre estes abolicionistas, estava Piratinino de Almeida, um dos fundadores e presidente do Clube Abolicionista pelotense, e Francisco de Paula Pires, secretário do
mesmo Clube.
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Com este procedimento mostrarão que os conhecimentos difundidos pela
instituição que sustentam, esclarecendo a inteligência, guiam o coração à
prática das mais nobres virtudes.
O homem amante do adiantamento intelectual não pode ser indiferente à
sorte dos seus semelhantes, jungidos ao despótico carro da escravidão.
Em nome da humanidade, do progresso, da civilização, em nome da liberdade – luz puríssima e esplêndida que dirige o homem à senda dos mais arrojados cometimentos – peço o óbolo da caridade em favor da infeliz Genuína.
Salas da BPP, 2 de dezembro de 1876.
Felicíssimo Paulo de Freitas [grifo meu].
Se, por um lado, o abolicionismo era um ideal recorrente entre alguns membros da diretoria, o que talvez explique a presença dos negros
nas aulas noturnas, por outro, é necessário considerar que os negros
estigmatizados pela escravidão eram associados à “raça degenerada”
que precisava ser controlada e constantemente vigiada, especialmente
no período pós-abolicionista. As mesmas características negativas atribuídas às classes populares de um modo geral, no século XIX, eram
ainda mais acentuadas quando, associada a uma condição social
desprivilegiada, havia condição de ser negro.
Os atributos negativos endereçados aos negros estão explícitos nesta matéria do jornal Correio Mercantil, dois anos após a abolição da
escravidão em Pelotas:
[...] Grande parte deles [os libertos], homens ou mulheres, deixaram a casa de
seus senhores para aglomerarem-se nos cortiços e nos centros de perdição.
As mulheres cedendo aos impulsos enervantes da raça, entregaram-se em
grande número à prostituição, como meio fácil de granjearem a subsistência,
pouco se lhes importando os princípios civilizadores e adiantados do agrupamento social em que vivem hoje.
[...] É preciso sem demora atenuar, se não se puder de todo extinguir, as
tendências do liberto para a inatividade e para a prostituição, tendências
com que ele entra para a comunhão social porque não as deixa na senzala ou
no eito [Correio Mercantil, 18/2/1886, grifos meus].
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Na matéria transcrita, as tendências de inatividade e prostituição
eram apresentadas como características naturais dos negros. Se as desigualdades de gênero se explicavam pelas diferenças biológicas e eram
instituídas e legitimadas pelas práticas sociais e pelos discursos médico,
jurídico, educacional, as desigualdades dos grupos étnicos não eram
vistas de forma diferente. A inferioridade atribuída aos negros estava
assentada, também, nas diferenças físicas. Ser negro ou ser branco, na
sociedade pelotense, era ser detentor de determinadas capacidades ou
incapacidades sociais, morais e intelectuais. Fortemente ancoradas em
um pressuposto essencialista, as diferenças físicas explicavam as desigualdades dos grupos étnicos. No imaginário social, estava presente a
idéia de que era inerente, próprio dos indivíduos negros, um comportamento selvagem, bárbaro, anti-social. Célia M. Azevedo (1987) constatou em seu estudo que, do ponto de vista intelectual, os negros eram
representados como grupos de baixo nível mental. Veja-se que em Pelotas
essas idéias também estavam fortemente presentes:
[...] Tratando-se de pessoas nas condições dos pretos libertos, que não podem ter aspiração à carreira literária ou científica, é claro que o sistema de
educação a adotar-se é muito simples e muito fácil.
[...] Instrução primária acompanhada de princípios morais e religiosos [...]
[Menezes, 1869, Material do Clube Abolicionista de Pelotas].
Muitos seriam os exemplos ilustrativos que estão registrados nos
periódicos pelotenses a respeito das características dos negros. Visando
argumentar que os negros foram aceitos como alunos nos cursos noturnos (antes da Abolição apenas os livres e libertos) porque era necessário, na visão das elites, prepará-los para as novas relações de trabalho e
para sua inserção na vida em sociedade como indivíduos livres, é preciso conhecer, ainda, outras idéias sobre os negros, vigentes na vida
pelotense. O Correio Mercantil apresentava os ex-escravos como grupos “completamente atrasados, alheios a todas as formas de existência
social, sem profissão determinada, sem princípio de vida livre, [...] entes desamparados” (16/11/1883). Na mesma matéria do jornal, a conclusão sobre as possibilidades de reverter esse quadro:
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Abram-se escolas por toda a parte; convidem-se os libertos a virem tomar
assento nos bancos do estudo e do saber; dê-se-lhes a doutrina moral, o
conhecimento necessário dos seus deveres de homem perante a sociedade
em que vivem; mostrem-se-lhes as vantagens do trabalho, da ocupação séria e honesta, em uma palavra, habilite-se à economia social, à aplicação das
suas forças ativas, a fim de que à liberdade se sigam imediatamente a paz, a
ordem e a felicidade desejáveis [grifos meus].
No entanto, se o intuito das elites que fundaram a Biblioteca Pública
Pelotense e com ela propuseram aulas noturnas para as classes populares (incluindo os negros livres e libertos) era disciplinar, normatizar e
prescrever normas, padrões e comportamentos, os homens que freqüentaram essa escola não se sujeitaram passivamente a esse projeto. As
condições de classe e de grupo étnico dos alunos forjaram diferentes
formas de luta.
As últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX
marcaram um momento significativo de organização dos trabalhadores
pelotenses. Organizados em clubes, associações, sindicatos, eles lutaram contra as condições de vida e de trabalho a que estavam submetidos. Havia solidariedade de classe, percebida, entre outras coisas, pelo
número de associações de amparo, de auxílio mútuo, de assistência e de
categorias profissionais específicas que os próprios trabalhadores organizavam. Os negros, por sua vez, imprimiram formas específicas de luta,
tanto contra os estereótipos de classe e grupo étnico a si atribuídos quanto
para conquistarem espaço na sociedade pelotense e melhorar sua condição de vida duplamente marginalizada. Na forma de clubes carnavalescos, irmandades, batuques, os negros tiveram uma ampla participação
na vida local. Marco A. Mello (1994) afirma que em Pelotas, entre os
negros escravizados e libertos, muitas foram as formas de “manifestação da chamada cultura de resistência” (p. 53). O autor dedica especial
atenção às expressões da religiosidade e às formas de lazer dos negros
pelotenses nas últimas décadas do século XIX e conclui que, entre outras coisas, essas manifestações religiosas e culturais tinham o intuito
de manter a identidade étnica dos negros.
Alguns alunos dos cursos noturnos participaram dessa realidade
como líderes operários ou dos movimentos negros do início do século
sob(re) o silêncio das fontes...
97
XX. Uns estiveram à frente de associações de classe ou entidades culturais – como Classes Laboriosas, Grêmio dos Tipógrafos, Clube Beneficente Harmonia dos Artistas, Sociedade Dramática Filhos da Thalia –;
outros, participaram como membros de entidades negras – especialmente
o Clube Carnavalesco Nagô e o jornal A Alvorada10. Se foi possível
visualizar essa realidade é porque a dominação não se impôs de forma
absoluta.
Foi o caso, já mencionado, dos negros Rodolpho Ignácio Xavier e
dos irmãos Juvenal Moreno Penny e Durval Moreno Penny. Alunos dos
cursos noturnos na década de 80 do século XIX, os irmãos Penny fundaram, em 1907, o jornal A Alvorada11, do qual Rodolpho Ignácio Xavier
se tornou um dos mais importantes redatores. A história do jornal A
Alvorada confunde-se com a própria trajetória dos irmãos Penny e de
Xavier12. O semanário registrou em 5/5/1948, no seu 41o aniversário:
[...] Durante trinta e oito anos Juvenal Penny manteve inabalável a direção
deste semanário, auxiliado por seu digno irmão e nosso amigo Dr. Durval
Penny e uma plêiade de colaboradores espontâneos e abnegados como
Rodolpho Xavier, o mais antigo e cuja pena nunca se desviou do caminho
retilíneo de uma conduta elogiável, abordando assuntos de interesse coletivo
e combatendo os espesinhadores e inteligências tacanhas e arrogantes.
Muito tempo depois, e mesmo sem a liderança dos irmãos Penny, as
referências sobre os objetivos pelos quais o jornal fora criado continuaram sendo motivo de matéria a cada aniversário do periódico – 5 de
maio. Tais finalidades expressavam-se com as seguintes palavras: “o
10
Dos alunos cujos dados obtive, todos participavam destas associações de classe,
culturais ou carnavalescas, ocupando cargos nas diretorias.
11 O Museu da BPP guarda exemplares do jornal A Alvorada de 1946 até 1957. Esses
jornais foram todos consultados e é a partir desse material que faço as considerações a seguir.
12 Juvenal Moreno Penny manteve-se como proprietário do jornal A Alvorada até
1946, portanto durante 39 anos. Seu irmão Durval Moreno Penny, diretor do jornal,
afastou-se antes dessa data para estudar medicina. A partir de 1946, o semanário
passa a ser de propriedade de um grupo liderado por Rubens Lima, além de Carlos
Torres e Armando Vargas.
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revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
porta voz de uma raça e o defensor dos oprimidos” (A Alvorada, 5/5/
1948). Rodolpho Xavier, em matéria publicada, expressou que o jornal
esteve, desde seu início, “lutando [...] pela emancipação dos descendentes da África heróica e distante” (A Alvorada, 5/5/1955); “na defesa da
instrução, da unidade racial e do progresso e interesses da terra pelotense”
(A Alvorada, 5/5/1957).
Os irmãos Penny foram figuras que alcançaram projeção na sociedade pelotense. Juvenal Penny, além de proprietário do jornal, era também comerciante, dono da fábrica de fogos “São Veríssimo” (A Alvorada,
13/1/1951). Depois que o jornal deixou de ser de sua propriedade, era
comum que elogiosas matérias sobre seu desempenho à frente desse
semanário fossem publicadas. Em 1952, uma breve descrição da trajetória do jornalista foi referida. Segundo essa matéria, na época da fundação do jornal, Juvenal Penny trabalhava durante o dia como tipógrafo
do jornal federalista A Reforma e durante a noite compunha o jornal A
Alvorada, que era impresso em oficinas de outros periódicos, uma vez
que não possuía oficina própria (A Alvorada, 5/5/1952 e 5/5/1957). A
trajetória de Juvenal Penny indica que ele foi um homem extremamente
engajado e comprometido com as lutas de seu tempo.
Durval Moreno Penny trabalhou como diretor do jornal, abandonando o semanário para estudar medicina. Segundo A Alvorada, “lutador desde sua mocidade, entregue ao estudo, conseguiu pela força de vontade,
perdendo horas de descanso, formar-se por correspondência, em medicina” (A Alvorada, 4/4/1953)13. Durval era proprietário de uma farmácia,
onde “dava consultas” e era chamado de “médico dos pobres” (A Alvorada, 4/4/1953). Lutou pela causa dos negros, não apenas através do jornal,
como também participando da diretoria do Instituto São Benedito – para
meninas negras. No embate político, esteve à frente da campanha do negro Monteiro Lopes para deputado federal (idem).
Na trajetória desses ex-alunos da “escola da Biblioteca”, Rodolpho
Ignácio Xavier ocupou um lugar de destaque, encabeçando o movimento negro e operário pelotense. Antes de tornar-se redator de A Alvorada,
13
Segundo A Alvorada de 5/5/1948, Durval M. Penny formou-se em medicina pelo
Instituto Nacional de Ciência em 30/4/1914.
sob(re) o silêncio das fontes...
99
em 1907, desempenhou várias atividades profissionais, todas ligadas ao
trabalho manual. Em rápida “autobiografia”, escrita e publicada no jornal nos dias 2/4 e 10/4/1955, Xavier diz que aprendeu os ofícios de
vassoureiro, colchoeiro, maleiro em 1886 e 1887, acabando por trabalhar como ajudante de pedreiro a partir de 1888, então com 14 anos de
idade. Em 1891, segundo ele, aprendeu o ofício de chapeleiro, isso porque “quando sempre terminadas uma ou duas ou três construções, ficava-se sem trabalho” (A Alvorada, 2/3/1955). O autor, antes de concluir a
matéria, indica: “em 90 [1890], antes de irmos aprender o ofício de
chapeleiro, andamos vendendo carnes e miúdos numa carroça indo buscálos nas charqueadas do ‘Passo dos Negros’ ou nas charqueadas da ‘Costa’ por comprá-los mais barato” (idem).
Como redator de A Alvorada desde a sua fundação em 1907, Xavier
escrevia matérias semanais no jornal sobre os mais diversos assuntos.
Abordava freqüentemente a situação social, econômica e política mundial, nacional e local, estabelecendo relações entre os problemas do Brasil
e de outros países, como Estados Unidos, França, ex-URSS e os países
da América do Sul. Ocupou-se, por várias vezes, do problema do alto
custo de vida, dos salários e das condições de moradia, de alimentação,
dos serviços básicos como fornecimento de luz, água, saneamento e
transporte coletivo para a classe trabalhadora. As leis trabalhistas, o
cooperativismo e o sindicalismo foram temas tratados reiteradamente
por Rodolpho Ignácio Xavier, que lutou, à frente do jornal A Alvorada e
da União Operária, pela obtenção das oito horas diárias de trabalho.
João B. Marçal (1985, p. 115) registrou a presença de Rodolpho Ignácio
Xavier na diretoria da União Operária como 1o secretário, em 1908.
Suas matérias no jornal foram, também, espaço de denúncia da
situação dos negros no Brasil e em Pelotas. Várias matérias tratavam,
ainda na década de 1940 e 1950, do “preconceito de cor” que havia
entre os pelotenses. Xavier relatou situações em que os negros – e na
maioria dos casos experiências vivenciadas por ele próprio – eram impedidos de entrar em vários locais de lazer na cidade. Em uma dessas
matérias, intitulada “O estribilho é sempre o mesmo” (A Alvorada, 4/2/
1951), o autor relembrou casos de preconceito racial de que fora vítima
desde a adolescência em lugares como no “baile dos brancos” no chamado “Jardim Scotto, no Teatro Guarani, no cine Capitólio, no Café
100
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Lamego”. O redator também fazia questão de enaltecer “figuras ilustres
da raça” como em matérias, por exemplo, sobre José do Patrocínio (A
Alvorada, 17/5/1952) e sobre o deputado negro Carlos da Silva Santos
(A Alvorada, 24/2/1951).
Um pouco da história desses três ex-alunos da “escola da Biblioteca” indica que, se no cotidiano das aulas foram submetidos a um processo de disciplinamento, esse espaço ao mesmo tempo contribuiu
significativamente subsidiando alguns homens das classes populares com
um dos instrumentais necessários e fundamentais na luta social: a leitura e a escrita.
4. Considerações finais
Conforme afirmei no início deste trabalho, considerava que a presença dos negros teria maior “visibilidade” nas fontes pesquisadas. Como
mostrei, foi preciso “trilhar” um longo caminho até descobrir que alunos negros freqüentaram as aulas. E depois foi preciso outra empreitada
para descobrir se freqüentavam na condição de escravos ou se apenas
aos livres e aos libertos estava garantido esse acesso.
Com relação à presença desse grupo, surgiu uma aparente contradição: de um lado, um sentimento de caridade que se expressava pela adesão ao abolicionismo e que, na BPP, se concretizava em campanhas
realizadas entre alguns dos seus sócios para a compra de escravos e posterior manumissão; de outro lado, uma rejeição aos indivíduos desse grupo étnico, expressa em matérias nos periódicos locais e no próprio
material que circulava entre os membros do Clube Abolicionista. Assim –
sem pretender encontrar uma causa única e absoluta para explicar a presença dos negros na Biblioteca –, um certo paternalismo racista, que procurava libertar, ajudar e proteger os negros por considerá-los inferiores e,
por isso, incapazes de fazerem-no por si mesmos, e que via na educação
e, mais especificamente, na escolarização elementar a possibilidade de
integrá-los à vida social, pode ser considerado o principal fator que possibilitou a “abertura” da escola a esse grupo.
Finalmente, é óbvio concluir, em relação aos cursos noturnos da
BPP, que as classes populares passaram, paulatinamente, a valorizar o
sob(re) o silêncio das fontes...
101
processo de escolarização. Isso ocorreu, principalmente, em razão da
ampliação do comércio, da urbanização, de uma incipiente industrialização e das oportunidades crescentes nos serviços públicos e privados.
Nessa “nova” realidade da vida urbana pelotense, o processo de leitura,
escrita e cálculo obteve maior valorização e significou, concretamente,
a chance de novas oportunidades de trabalho. Há que considerar também que alguns homens que passaram pelos bancos escolares da Biblioteca, ao se apropriarem da leitura e da escrita, fizeram delas ferramentas
importantes na luta por uma sociedade mais igualitária e menos opressora e hierarquizada. Com isso, é possível dizer que, se o projeto da
“escola da Biblioteca” tinha entre seus objetivos formar e conformar os
homens para a aceitação das relações e das condições capitalistas de
trabalho, na prática, provocou também o oposto. Os líderes negros e
operários foram um exemplo dessa realidade.
Para concluir e retomar a discussão da questão do silêncio das fontes da história da educação em relação ao pertencimento étnico-racial
dos sujeitos, é necessário dizer que, se chegamos a um consenso de que
a problematização negro x educação é fundamental no campo da pesquisa educacional, em geral, e histórica, em especial, urge, mais do que
ampliar o conceito de fontes, reinventar formas e estratégias de tratamento dessas fontes; ousar e criar; operar com uma boa dose de sensibilidade e intuição, de persistência e paciência. Uma história da presença/
ausência das comunidades negras em processos de educação/
escolarização remete-nos e possibilita-nos fazer e pensar uma outra história da educação no contexto brasileiro.
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Jornais e documentos consultados
Local de consulta: Museu da Biblioteca Pública Pelotense
A Alvorada
A Discussão
A Reforma
Correio Mercantil
Diário de Pelotas
Diário Popular
Echo do Sul
Jornal do Comércio
Onze de Junho
Opinião Pública
Pervigil
Progresso Literário
Radical
Anais da BPP
Atas da BPP
Carta Manuscrita – Prof. Bento José
Taveira, 1881
Livros de Matrículas dos Cursos Noturnos
Relatório manuscritos – 1884-1904
Cartas, procurações, escapulários
e patuás:
os múltiplos significados da escrita entre escravos e
forros na sociedade oitocentista brasileira
Maria Cristina Cortez Wissenbach*
Tendo como ponto de partida a apresentação de cartas escritas por escravos em São Paulo
na segunda metade do século XIX, a intenção do artigo é refletir sobre algumas questões
decorrentes de sua interpretação histórica: entre outras, a consideração de escravos alfabetizados e a averiguação das condições históricas que propiciaram tal aprendizado, a
socialização das práticas de escrita em direção a grupos mais amplos, o sentido mágico
das palavras escritas e sua aproximação à oralidade predominante na sociedade da época.
Pretende-se, além disso, sublinhar a relevância da dimensão histórica do passado escravista
nas discussões sobre a questão da educação na organização social das populações negras
no pós-Abolição.
ESCRAVIDÃO; PROCESSOS DE ALFABETIZAÇÃO; IDENTIDADES ÉTNICAS; CARTAS DE ESCRAVOS; SOCIABILIDADES URBANAS.
This article aims to present and discuss letters written by slaves in the XIX century, found
between judicial documents of São Paulo. How the slaves are introduced into the world of
the alphabet; in which historical conditions they learned to write and to read; how this
apprenticeship had enlarged into a wider group of slaves and freedman that worked and
lived in the cities; the magic sense of the words and letters of freedom, the frontiers between
the oral and write culture are some of the questions brought with the main theme. This
article is also a contribution to the discussion of the meanings of formal and informal
education between the black populations in the Brazilian society after the Abolition in 1888.
SLAVERY; LITERACY OF SLAVES; ETHNICS IDENTITIES; LETTERS WRITTEN BY
SLAVERS; URBAN SOCIABILITY.
*
Historiadora, doutora pela Universidade de São Paulo, pesquisadora responsável
pelo Núcleo de Projetos Históricos do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa
em História da Educação – e professora do programa de estudos pós-graduados em
educação, linha de pesquisa História da Educação, na Universidade São Francisco.
104
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão no Brasil
conheceu mudanças significativas e, em seus novos rumos, alguns
enfoques interpretativos têm se mostrado particularmente produtivos,
especialmente aqueles que, partindo da consideração do escravo como
agente histórico, romperam com as visões tradicionais que insistiam na
reificação do cativo e também em sua vitimização1. Marcados por um
esforço empírico redobrado capaz de documentar a vida escrava em sua
complexidade, foram estudos que lançaram mão de tipos diferenciados
de fontes, sobretudo inventários e testamentos, processos criminais, autos
cíveis e registros paroquiais, ampliando os horizontes da pesquisa histórica e reinterpretando aspectos da organização social e cultural não só
dos escravos como também dos grupos egressos da escravidão. Para o
estudo da escravidão, os efeitos desses esforços foram substantivos, pois
multiplicaram as possibilidades de serem superados pressupostos
historiográficos que vinham se tornando inquestionáveis, quase entraves epistemológicos – entre outros, a crença na anomia das estruturas
familiares e sociais existentes entre escravos e libertos; a idéia da
despersonalização subjacente à extrema violência do regime; a ênfase
no desenraizamento a que haviam sido sujeitos os africanos na diáspora
e, conseqüentemente a assertiva do vazio cultural deixado pelas rupturas inerentes à escravização.
Sem dúvida, na busca das fontes da escravidão, os pesquisadores
tiveram que lidar com uma série de dificuldades, decorrentes não só da
escassez de documentos sobre o tema da vida escrava, mas também,
principalmente, daquelas causadas por uma incompatibilidade intrínseca entre as fontes oficiais e a história dos despossuídos ou dos dominados que se procurava resgatar2. Em linhas gerais, foi preciso reconstituir
1
2
Vários ensaios críticos discutem as tendências da historiografia brasileira sobre a
escravidão, especialmente a partir dos anos de 1980, listando os principais títulos
da nova produção. Destaco, entre outros artigos, o de Stuart Schwartz (2001, pp.
21-88). Para uma bibliografia mais ampla (incluindo as produções recentes sobre o
tema na América Latina e Caribe), ver Horácio Gutiérrez e John M. Monteiro (orgs.)
(1990).
Um dos textos inaugurais que sublinhou a urgência de pesquisas nos arquivos da
escravidão brasileira foi o de R. Slenes, escrito em 1983, instigantemente intitulado
cartas, procurações, escapulários e patuás
105
a vida social e cultural das populações de africanos e afro-descendentes
a partir da leitura de documentos comprometidos com a visão de mundo
das classes dominantes; lançar mão de testemunhos que foram produzidos no esteio do controle social, da disciplina e da repressão montadas
contra setores sociais vistos como perigosos, indisciplinados e marginais. Foi necessário também contornar a frieza de informações despersonalizadas ou puramente quantitativas, filtrar os testemunhos, ler nas
entrelinhas e abstrair, no máximo do possível, os preconceitos, as visões
preestabelecidas, as situações de constrangimentos, nas quais réus, escravos e forros se colocavam diante de juízes, policiais e escrivães para
serem julgados.
Nos anais da história da escravidão brasileira e das populações de
afro-descendentes, foram raros ou raríssimos os depoimentos diretos
deixados por esses setores sociais. Mas, mesmo excepcionais, quando
localizados, exerceram um papel significativo nas revisões historiográficas que vimos discutindo. Como exemplo característico, pode-se
lembrar o documento que o historiador norte-americano Stuart Schwartz
encontrou no acervo do Arquivo Público da Bahia (Schwartz, 1977, pp.
79-81; Schwartz, 2001, pp. 119-121). Datado de finais do século XVIII,
conhecido como o Tratado de Paz dos escravos rebelados do engenho
Santana, de Ilhéus, o texto mantém até hoje a capacidade de surpreender, sobretudo quando informa as exigências que os escravos impuseram ao senhor para retornar ao trabalho. Nesse documento, encontram-se
explicitados não só detalhes das condições do trabalho escravo e da
vida dos plantéis nos engenhos baianos do século XVIII, como também
demonstrada a capacidade dos escravos em reinterpretar a escravidão
em seus próprios termos: o conhecimento e o controle do tempo de trabalho nos engenhos de açúcar, a organização das tarefas e o número de
trabalhadores necessários para cada uma delas, a divisão sexual e étnica
de determinados encargos, o interesse em manter a posse das ferramentas, a necessidade de dias de repouso, a preferência em serem supervisio-
“O que Rui Barbosa não queimou – novas fontes para o estudo da escravidão no
século XIX”, Estudos Econômicos, IPE/USP, vol. 13, n. 1, pp. 117-149.
106
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
nados por feitores de sua escolha. Também expressaram a consciência
dos direitos que tinham: sobretudo, o reconhecimento de roças de subsistência e de outras atividades realizadas de maneira autônoma (entre
outras, a pesca, o plantio de arroz e o corte de madeira), o direito a
ganhos próprios obtidos com a venda de seus produtos no mercado de
Salvador. Na interpretação de Schwartz, muitas das reivindicações apresentavam-se como decorrência de direitos costumeiros, práticas acordadas entre senhores e escravos para a manutenção da sobrevivência
dos plantéis e para viabilizar a dominação escravista. Ainda segundo o
historiador, entre as reivindicações feitas destacava-se ainda aquela que
era a prova mais clara da humanidade dos cativos: o direito ao lazer. No
artigo final, exigiam explicitamente: “Poderemos brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos, sem que nada nos impeça e nem
seja preciso licença”.
Apesar da polêmica instaurada pela publicação e interpretação desse
documento e dos argumentos apresentados por alguns historiadores sobre o perigo de sua generalização em direção a uma concepção abrandada da escravidão brasileira (Gorender, 1991, pp. 5-18; Gorender, 1983,
pp. 7-39), ou mesmo sobre o caráter excepcional do tratado3, o impacto
fez-se sentir, alterando algumas das mais arraigadas interpretações sobre
a história dos escravos no Brasil. Sem querer exagerar seus efeitos, mas
considerando as múltiplas facetas do viver escravo que o documento apresentava e impondo a lógica da reciprocidade para a compreensão das
3
Sobre a questão da excepcionalidade de determinadas fontes históricas, a sua
representatividade principalmente num contexto de escassez de testemunhos, ver
as colocações feitas, no âmbito da história da educação, por Dominique Julia (2001).
Vale a pena registrar suas considerações a respeito de biografias tidas a princípio
como atípicas: “Mas se tal percurso pode ser interessante pela sua própria estranheza, não podemos evidentemente atribuir-lhe uma representatividade que não possui. Se é verdade, no entanto, que os documentos não são abundantes para os períodos
antigos, é certo que os historiadores os procuram com a tenacidade demonstrada
por Armando Petrucci na Itália, reconstituindo, a partir da análise paleográfica do
registro de contas de uma salsicharia do bairro do Tratevere, em Roma, as práticas
de escrita utilizadas nos meios da Cidade Eterna no século XVI [...] Como repetia
incansavelmente Armando Momigliano, as fontes podem ser encontradas se temos
a tenacidade de ir procurá-las” [p. 19].
cartas, procurações, escapulários e patuás
107
relações de dominação, provocou ao menos o reconhecimento da capacidade dos escravos de terem sua própria visão da escravidão e a existência
de largos espaços de uma vida cultural, econômica e social autônoma.
Numa outra escala, e de forma um pouco mais esparsa ou diluída, a
documentação judiciária (processos criminais e inventários, sobretudo),
além de constituir uma das principais fontes da nova historiografia social,
guarda igualmente, aqui e ali, registros diretos de aspectos da vida daqueles que foram enredados pelas malhas da justiça. No caso da sociedade
escravista, indiciando réus escravos e forros, ouvindo testemunhas de
igual condição, nos processos encontram-se transcritos fragmentos de
linguajares, percepções e visões de mundo particulares. Por vezes, isso
transparece em trechos de diálogos que as autoridades judiciárias preferiram manter literalmente, para captar as motivações dos crimes ou informações adicionais que, de outra forma, poderiam passar despercebidas:
Respondeu – Quem anda fugido deve andar aprecatado. Que explicasse o
seu dito. – Um indivíduo que anda fugido está sujeito a onças e a Capitão-doMato e por isso e para não ser presa fácil deles comprara a garrucha. [AESP,
A Justiça versus Apolinário, escravo de Francisco Nogueira, 1872]4.
Por outras vezes, anotando as trocas de ameaças e a violência que
cadenciavam o dia-a-dia dos habitantes livres e escravos e seus encontros pelos arredores da cidade de São Paulo, na segunda metade do século XIX:
– Se João da Várzea viesse com garõas era um escravo a menos que Nhô
Gole tinha! [AESP, Justiça versus Bento de Oliveira Valente, 1860];
4
Grande parte dos autos citados neste artigo foram utilizados no texto de minha
autoria, publicado em 1998: Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos,
vivências ladinas – escravos e forros em São Paulo (1850-1880), São Paulo, HUCITEC;
História Social / USP, 1998. Vale lembrar que, neste artigo, a grafia dos documentos foi relativamente modernizada para facilitar sua leitura; essa é uma observação
importante sobretudo no que diz respeito à transcrição e interpretação das cartas,
objeto do estudo. Mas em dois dos documentos mais significativos a grafia foi
mantida à guisa de apresentação.
108
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
– Deixe estar o meu compadre Vieira, que se anoitecê hoje não há de amanhacê
amanhã [AESP, Justiça versus Inocencio, escravo de Prudente Padilha, 1863].
Além desses casos, em circunstâncias um pouco diferenciadas, aos
autos judiciários foram anexadas pequenas peças escritas utilizadas,
geralmente, como evidências dos crimes — curtos bilhetes (alguns endereçados pelos réus presos às autoridades policiais); listas de objetos
(feitas com a intenção de assegurar posses, especialmente quando seu
autor se encontrava foragido); rezas e preces colocadas no interior de
escapulários e amuletos, que homens e mulheres portavam como elementos de proteção; e, finalmente, cartas escritas de próprio punho
por escravos e que, transformadas em peças incriminatórias, nunca
foram endereçadas5. Peças que formam uma série de papéis manuscritos que, em seu teor mais geral, aproximam-se de outras formas de
escrituras ordinárias, tal como vem sendo caracterizados as práticas e
os usos da escrita em suas dimensões ordinárias e cotidianas (Albert,
1993; Fabre, 1993).
Em 1868, foi essa a origem das cartas anexadas a um processo criminal, da comarca de São Paulo, escritas pelo pedreiro Claro Antônio
dos Santos, escravo de ganho, pertencente ao cônego Fidélis Alves de
Moraes, a mando da africana Theodora Dias da Cunha, escrava do cônego Terra, ambos residentes na cidade de São Paulo, e que constituem,
5
Noticiando uma pesquisa sobre a linguagem falada dos bandeirantes, afirma Silvio
de Almeida Toledo Neto a importância das fontes cartoriais: “Muita gente caracteriza a linguagem dos cartórios como cheia de fórmulas, incapaz de refletir o dia-adia [...] Mas é possível encontrar em muitos casos não apenas o texto feito pelo
escrivão, mas também bilhetes, recibos ou, mais raramente, diários de quem estava
numa armação ou foi listado numa partilha de bens. [...] A importância desse tipo
de registro, feito com mãos inábeis, como a gente costuma dizer, é muito grande.
Esses rabiscos apressados testemunham o conhecimento do português e um contato, ainda que limitado, com a cultura escrita. Nos inventários constam, também,
ainda que raramente, livros impressos: hagiografias (biografias de santos), cartilhas,
obras devocionais, às vezes registradas com o título em latim errado”. Entrevista
concedida a Reinaldo José Lopes, “A língua dos bandeirantes – pesquisadores descobrem traços do português dos séculos 17 e 18 na fala de habitantes das regiões
percorridas pelas expedições paulistas”. Suplemento Mais!, Folha de S. Paulo, 10/
3/2002.
cartas, procurações, escapulários e patuás
109
aqui, objeto de interpretação. Na apresentação desse material, o objetivo é chamar a atenção sobre a importância da fonte criminal para o
estudo do significado das práticas de escrita entre escravos e forros na
sociedade escravista brasileira. Discutindo aspectos relevantes na sua
interpretação, a intenção é também refletir, de maneira preliminar, sobre
a existência de escravos alfabetizados, sublinhando as situações históricas que provocaram tal aprendizado, especialmente no século XIX brasileiro; destacar ainda a importância da averiguação desses usos e práticas
no contexto da sociedade escravista como fulcro para se pensar a problemática e o significado da educação entre as populações negras no
pós-Abolição.
Antes de tudo, no entanto, um aspecto deve estar sempre presente
na abordagem do tema: o sentido e a simbologia quase mágicos que a
habilidade de escrever, ou ainda a simples posse de “papel e de caneta
de pena”, assumiu entre escravos e libertos no processo de afirmação de
sua identidade social. Nesse sentido, é pertinente lembrar que, no Brasil
colonial e imperial, numa sociedade com baixos índices de letramento e
entre frações sociais no geral analfabetas ou semi-alfabetizadas, além
de a compra da alforria ser o grande objetivo da maioria dos escravos, a
“carta” – como era familiarmente conhecida por eles –, transformava-se
em materialidade da liberdade desejada e obtida, constituindo-se, de
fato, no único documento capaz de distinguir os forros dos escravos.
Tratava-se de comprovação que deveria acompanhar os libertos em sua
vida diária, até mesmo para protegê-los de serem confundidos pelas
patrulhas policiais com escravos fugidos. Sentido mágico das palavras
escritas, a carta de alforria aproximava-se aos escapulários e aos amuletos
que os afro-brasileiros traziam consigo, no interior dos quais guardavam orações dedicadas a santos católicos e trechos dos livros sagrados
dos muçulmanos.
Assim, considerar processos de letramento em seus múltiplos significados entre escravos e forros é uma vez mais penetrar no campo das
evidências inesperadas que a pesquisa histórica teima em nos oferecer.
Sobre o assunto e nas histórias de vida que recolheu, aludindo aos processos voluntários de aprendizado entre crianças de diferentes estratos
sociais, Zeila Demartini (2001) observou que muitas delas haviam sido
110
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
introduzidas no mundo da leitura por suas babás, geralmente ex-escravas, ou ainda por filhos de escravos, companheiros das crianças brancas
em seus jogos infantis. Dessa maneira, à informação da existência de
escravos alfabetizados, acrescenta-se, segundo ela, um elemento a mais
não imaginado pela literatura sobre a história da educação: “que os negros, pobres, pudessem estar introduzindo crianças brancas e ricas no
mundo da leitura”. Ou, como observa a autora em outro trecho, ao manifestar sua surpresa diante do fato de que:
[...] a vontade de aprender a ler da criança branca estivesse ligada às relações
de amizade com crianças negras e o papel de alfabetizadores que muitos
negros desempenharam em várias famílias, sem que lhes tivessem sido reconhecida esta função [Demartini, 2001, p. 138].
A pesquisa aos processos criminais em que se viram envolvidos escravos e forros em São Paulo na segunda metade do século XIX oferece
elementos para se refletir sobre diversos aspectos relativos à difusão da
escrita entre escravos. Inicialmente mostra a relação desta prática com
as condições peculiares em que se dava a organização do trabalho escravo
nas cidades, à rede de sociabilidades que se fazia aí presente. Remete
também às condições históricas existentes na época, particularmente
aos processos que marcaram a sociedade brasileira da segunda metade
do século XIX, como a projeção da legislação emancipacionista e a intervenção crescente do poder público no âmbito das relações entre escravos e senhores, o movimento abolicionista nas cidades e o advento
da estrada de ferro.
Tomando como ponto de partida as condições que propiciaram a
alfabetização de escravos e de forros, tal como referida na documentação, dois aspectos chamam de imediato a atenção: em primeiro lugar, a
presença de hábitos de escrita e de leitura difundidos principalmente
entre plantéis pertencentes às ordens religiosas e ao clero; em segundo,
sua associação a situações singulares do trabalho urbano, mas, principalmente, a trabalhadores que exerciam atividades autônomas. No primeiro caso, tal como vem sendo colocado pela historiografia que
examinou a questão da escravidão no contexto das ordens religiosas e
cartas, procurações, escapulários e patuás
111
do clero secular6, seria esta uma das regalias de que gozavam os cativos
assenhorados pelos homens da Igreja, refletindo o fato de que entre eles
existiria uma relativa preocupação quanto às condições de vida dos
plantéis, à promoção de atividades de adestramento profissional, à insistência na organização familiar e educação religiosa7. Na segunda circunstância, o domínio da escrita estaria ligado não só às regalias, como
também às exigências decorrentes do desempenho autônomo de escravos que, com seus ofícios especializados, eram obrigados a participar
de um mercado de trabalho competitivo e agenciar por conta própria
seus serviços. Assim, os processo criminais associam ao escravo de ganho, tipo de trabalhador caracteristicamente urbano, não só a habilidade
em ler e escrever, a posse de papel, lápis e canetas, como também uma
certa destreza em contabilizar e administrar ganhos monetários. É o caso,
por exemplo, de Pedro, africano de múltiplas habilidades, escravo do
arcediago Fidélis Alves de Moraes que, em 1858, diante da suspeita da
origem ilegal de seus pecúlios, listava de memória as obras em que havia trabalhado e os correspondentes ganhos que havia adquirido:
Respondeu que desde que veio para essa cidade há seis anos não pára e tem
estado ocupado em diferentes obras em que ganhou dinheiro, sendo na de
Taborda 237 mil-réis, na de Derdeis 19 mil e 400, na do Dr. Anacleto 98 mil
e 800, na casa do falecido Bierrenback 185 mil e 550, na casa de Joaquim
6
7
Ver, por exemplo, o significativo trabalho de Luiz Gonzaga Piratininga Jr., Dietário
dos escravos de São Bento, São Paulo, HUCITEC; Prefeitura de São Caetano do Sul,
1991, no qual o autor, descendente dos antigos escravos de São Bento, realiza a
genealogia de várias das famílias originárias de ex-escravos dos beneditinos.
Além dos documentos aqui analisados, outros processos mencionam escravos alfabetizados entre os plantéis pertencentes ao mosteiro de São Bento, ao convento
do Carmo, bem como ao clero secular. São escravos que, na cidade, se empregam
tanto nas obras da construção civil, como em funções ligadas aos negócios das
fazendas rurais que os beneditinos, principalmente, ainda possuíam nas adjacências
da cidade. É lícito lembrar que as condições relativamente diferenciadas de vida e
de trabalho que os escravos da Igreja vivenciavam não necessariamente abrandavam a situação do ser escravo e os antagonismos com seus senhores. Um dos processos consultados envolveu escravos do convento do Carmo, acusados de assassinar
o prior, em 1859, crime que agitou a pequena e aparentemente pacata cidade
escravista que foi São Paulo durante séculos.
112
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Elias 34 mil e 540, de Sales 785 mil e 600, na de Guilherme Castanho da
Silva 23 mil e 600, que soma 786 mil e 30, tendo mais a acrescentar que na
obra de Pires 17 mil e 280, na casa do Dr. Pinto 39 mil e 40 e na obra de
Joaquim Tamanca 90 mil e 720 [...] [AESP, Justiça versus Pedro, escravo do
Reverendo Archediago Fidélis José de Moraes, 1858].
Mais do que isso, segundo ainda a documentação, a capacidade da
escrita estava imbricada a vivências relativamente independentes. A alfabetização, implicando a aquisição e o uso de um código até então
prerrogativa dos brancos, adequava-se a valores e necessidades dos cativos e às circunstâncias do ser escravo e transformava-se em elemento
de afirmação social, não só nas relações com a sociedade mais ampla,
mas também naquelas estabelecidas intragrupos sociais; no contexto
dos relacionamentos existentes entre os dominados e como forma de
afirmar as hierarquias existentes entre eles. Era, aliás, segundo as informações trazidas pelos autos, habilidade a ser exibida com bastante orgulho entre parceiros, homens e mulheres, escravos e forros, da mesma
maneira que faziam questão de ostentar suas armas, suas posses monetárias, o usufruto de condições de relativa autonomia, tais como morar
só, agenciar seus trabalhos, ter suas amantes, gozar da liberdade de ir e
vir. Como decorrência ainda desse atrelamento à autonomia, a escrita
aparece como instrumento capaz de legitimar posses, numa sociedade
que, de fato, não reconhecia legalmente as propriedades dos escravos,
até pelo menos a lei de 1871. Antes de fugir, o escravo Claro fez questão
de deixar seus bens detalhados e avaliados em seus valores correspondentes, depositados com um parceiro, escolhido por ele para ser seu
procurador:
Em São Paulo, no dia 21 de fevereiro de 1867:
1 colete de seda preta com uma gravata
9$000
1 dito xale de lã branco
7$000
1 dita calça de seda preta
12$000
1 dita calça de casimira preta
22$000
1 dita calça de brim
9$000
cartas, procurações, escapulários e patuás
113
1 dito paletó de lã
6$000
1 dita camisa de lã vermelha
5$000
4 camisas de morim fino
24$000
2 camisas de baeta
33$000
mais um dito estojo de navalha
3$000
mais um chapéu de cabeça
3$000
Passo esta procuração para o Senhor Francisco Benedito de Assis, pela ordem minha. Claro Antônio dos Santos [AESP, A Justiça versus Claro e Pedro,
escravos do cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes, 1868-1872].
Entre os sentidos que venho apontando, o mais significativo é que,
embora qualidade individual exercida por poucos (ou por raríssimos
escravos), a arte da escrita ligava-se direta ou indiretamente às sociabilidades existentes no mundo das cidades, entretidas entre escravos, forros, negros nascidos livres, brancos pobres – em uma sociedade e num
tempo, como diz Fabre, em que “uns lêem, outros escutam, ou simplesmente vêem, mas todos aproximam-se bem ou mal da escrita, todos
percebem-na e experimentam sua presença” (Fabre, 1985, p. 233). Assim, podendo aparecer ora atrelada a comportamentos solidários, ora
transvestida em mercadoria passível de ser comprada e vendida, a arte
da escrita e da leitura de alguma forma espraiava-se em direção a grupos mais amplos.
Em outras palavras, nas condições da escravidão urbana, em que se
intensificavam as trocas e os contatos entre os setores despossuídos da
sociedade, homens e mulheres de diversas procedências, ofícios e condições, o código da escrita poderia ser ampliado para além dos segmentos alfabetizados. Foi desta maneira que se apresentou, num primeiro
contato ocorrido nas ruas de São Paulo, a figura do pedreiro Claro na
visão atenta de Theodora:
Respondeu que uma vez vindo de um armazém, na Rua de São Gonçalo, em
uma casa dos fundos dos Remédios, a qual estava sendo assoalhada por Claro viu que ele escrevia e por isso dando seis vinténs, a respondente pediu-lhe
que ele escrevesse uma carta para o filho e marido da respondente e que
114
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ainda escreveu mais outras [...] [AESP, A Justiça versus Claro e Pedro, escravos do cônego Fidélis Alves Sigmaringa de Moraes, 1868-1872].
Ou em outro trecho de seu interrogatório, ao ser perguntada de onde
conhecia o escravo, respondia:
De o ver reparando tábuas no terreiro da casa dele no remédio com um papel
na mão na ocasião em que a respondente passava pela rua para ir fazer compras. Perguntada se costumava ir a casa do Cônego Fidélis. Respondeu que
costumava ir até a pouco só. Fazer o que? Respondeu que com papel para lhe
ensinar a como ler e escrever. Quantas cartas mandou escrever por Claro?
Respondeu que cinco, tendo dado seis vinténs para o correio [...] [AESP, idem].
No caso da africana, escrava doméstica, a escrita aparece em seu
sentido mais corriqueiro e trivial: esperava que, por meio das cartas, se
concretizasse a possibilidade de localizar e entrar em contato com seu
marido e seu filho, dos quais havia sido apartada já algum tempo, exigindo-lhes parceria na busca e na realização de seus objetivos maiores –
reunir a família, juntar o pecúlio necessário para a compra da liberdade
e, finalmente, voltar à terra natal, a África. Anexadas aos autos criminais como prova da possível participação da africana num roubo praticado na casa em que morava com o seu senhor, as sete cartas de autoria
de Claro/Theodora tiveram diferentes destinatários e a maior parte delas seria endereçada ao marido, cujo destino ela tão-somente intuía.
Acompanhar o texto da primeira delas, mantendo-se um pouco a sua
grafia, ajuda a esclarecer o sentido geral de todas as demais:
Meu Marido Snr° Luis
Muito heide estimar que esta va achar voçé esteije com saude que meu deseijo
voçe me mande contar para hande voçé esta morando. Quem me arematou
foi um moçó muito rico de campinas o homem chama Marciano quina eu fis
uma pormeça em comgo voçé não esta lembrado da pormeça que voçé que
eu fis voçé não esta lembrado que voçé pai vendeu voçé para se lembra da
pormeça que me avisou de noite eu estava dormindo. Rainha tem companheiro de fase pormeça e não compir e agora ella esta persa no lmal e poriço
cartas, procurações, escapulários e patuás
115
facillital com santos e poriço voçé veija que a rainha e maior do mundo e esta
persa no mal e não pode se salvar porque São Bendicto perdeu ella no mar
não pode se çalvar e poriço eu não facilito com santos eu espero hinda compir
ainda que esteja com cabelos bracos [...] [AESP, idem]
Tanto a história de Theodora quanto o conteúdo central das cartas remetem-se a situações e a vivências relativamente comuns entre as populações escravas daquela época, sobretudo as urbanas. Proveniente da
África, a escrava foi inicialmente destinada a uma propriedade rural
escravista, no interior de São Paulo, sendo depois separada do marido
(também africano) e do filho e vendidos isoladamente a diferentes proprietários. Trazida para a cidade de São Paulo, passou a juntar esforços,
argumentos e dinheiro necessários para obter sua alforria. Diante das dificuldades que encontra – sobretudo frente às insignificantes quantias que
consegue arrecadar, pedindo esmolas ou vendendo água aos soldados a
três vinténs –, visualiza, na reunião da família e no convencimento de seu
senhor, as únicas chances de realizar suas intenções. Os argumentos utilizados em suas comunicações são, em sua maioria, morais e religiosos –
reclama ao marido a parceria no cumprimento de uma promessa; exige
igualmente do senhor a responsabilidade na mesma. No conjunto das cartas, é também bastante significativa aquela que foi enviada ao senhor:
Meu Senhor,
Eu tive hum avizo de noute vinha eme falava dizendo que compriçe a promeça
que promiti de vortar para minha terra esta conga que fala comigo dis que
ceu morendo a qui nao comprarei pormeça que nem eu enxú. Vnce nao cupri
d’esta prorça por meu pai foi compado deu ser vidia porque deos não quer
que se aparte coga de preto de agola meu sinhor Vnce e responsado de ajuntar cem eu iso querede me fora quero Vnce de lisensa para eu tira ismola nos
domingo pª hirdando pª sinhor eu ja tenho 4 milreis e vnce ja ten 9 mil reis na
sua mão
iscrava de Vnce – Tiodora [AESP, idem].
Único destinatário que de fato a leu – a carta enviada ao senhor
guarda, sintomaticamente, uma estrutura diversa das demais. Sem preâm-
116
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bulos, nela predominam o sentido exato do conteúdo, as cobranças de
Theodora, em exigências que são acompanhadas por argumentos religiosos claramente utilizados para sensibilizá-lo. Entre eles, aquela contida
numa frase marcante que revela, acima de tudo, a solidez das uniões
familiares dos africanos, mesmo diante das intempéries impostas pela
escravidão. Dirigindo-se ao senhor, evoca sua responsabilidade:
por que meu pai foi culpado de eu ser vendida, porque Deus não quer se
aparte Conga de negro de Angola [AESP, idem].
Supondo terem sido escritas por um mesmo escriba (mais provavelmente por dois, uma vez que as cartas apresentam diferenças de grafia),
excluindo a que foi endereçada ao senhor, o texto das demais cartas
oferece repetições e características peculiares. Em quase todas elas, os
trechos iniciais e finais apresentam saudações que se repetem, imaginadas possivelmente por quem escreve (Claro) ou intuídas pela própria
escrava – como atributos próprios à natureza de correspondências. São,
no entanto, curtas formalidades que introduzem, numa seqüência imediata, a afirmação das intenções da escrava:
Muito heide estimar que esta va achar voce esteije com saude que meu deseijo
voçe me mande contar para hande voçé esta morando [...]
Muito estimo a sua saude como pra mim desejo noto bem para vance me faça
o favor de ajuntar [aquele dinheiro]
Eu heide estimar que esta [...] gozando a sua felicidade como para mim desejo
noto bem para mi fazer o favor de vir [falar comigo sem falta] [AESP, idem].
Algumas variações são apresentadas quando se trata de outros destinatários, que não os pertencentes ao círculo intimo da escrava; por
exemplo, na carta ao irmão do senhor de seu marido os dizeres são mais
formais e o movimento da escrita mais lento:
Eu heide estimar que esta va achar o V. S. com muita felicidade com para
mim desejo noto bem que v. s. me faça o favor de mi mandar esta carta [...]
[AESP, idem].
cartas, procurações, escapulários e patuás
117
Além desses detalhes relativos ao conteúdo e à forma da correspondência de Theodora, o que se observa em geral é uma escrita que denota
nítidas características de oralidade, supostamente decorrente do fato de terem sido ditadas. No geral curtas, quase pequenos bilhetes, guardam um
ritmo todo particular, na quase ausência de pontuações gráficas, na
inexistência de pausas, no uso de elementos de ligação (por exemplo, a expressão “no mais”) e, principalmente, na rapidez em que a seqüência de assuntos vai sendo articulada, como se tratasse de associação livre de idéias:
Meu marido Luís, São Paulo
Muito hei de estimar que Vancê esteja com saúde eu estou aqui na cidade eu
vos escrevo para Vancê se lembra daquela promessa que nos fizemos eu hei
de procurar por você mando muita lembrança para você ajuntar um dinheiro
lá se puder vir falar comigo venha senão puder me manda a resposta e dinheiro vá juntando lá mesmo se caso eu me arranjar por aqui mando propio
lá. Dessa vossa mulher Teodora escrava do cônego terra que fui vendida na
vacaria [AESP, idem].
Em outro trecho, a escrava reitera, dessa forma rápida, livre e, sobretudo, contundente, as exigências ao marido, revelando ao final uma
certa desesperança:
[...] para me fazer o favor de vir [...] falar comigo sem falta me falta 198
mireis para a minha liberdade no mais me mande a resposta desta para o
senhor domiciano na cidade de sorocaba sem falta no mais eu estou pagando
como uma escrava deste padre malvado no mais a Deus a Deus ate um dia
que Deus me ajude com sua graça divina misericórdia no mais sou a sua
mulher teodora da cunha dias [AESP, idem].
Na feição de uma escrita que se aproxima de maneira acentuada à
oralidade, é de se considerar a imagem de uma negra, relativamente
idosa (levando-se em conta as concepções da época e os desgastes físicos inerentes às idades da escravidão) e contadora de histórias, atributo
que transparece especialmente quando narra seus sonhos, ou quando
evoca as obrigações religiosas feitas com o marido:
118
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Eu tive um aviso de noite vinha eme falava dizendo que cumprisse a promessa que prometi de voltar para minha terra esta conga que fala comigo diz que
se eu morrendo aqui não cumprirei promessa que nem eu enxú [...]
[...] Rainha tem companheiro de fazer promessa e não cumpriu e agora ela
está presa no mal e por isso facilita com santos e por isso você veja que a
rainha é maior do mundo e esta presa no mal e não pode se salvar porque São
Benedito perdeu ela no mar [AESP, idem].
Nos termos de uma interpretação mais profunda das cartas, é necessário ter em mente outras ordens de questões. A primeira delas é
relativa à referência étnica presente nas observações feitas pela escrava, levando-se em conta não só sua procedência, como a menção indireta à travessia marítima e aos santos afro-brasileiros, ou seja, a
elementos que lembram as raízes culturais de um passado que não se
apresentava tão distante, nas lembranças e nas expectativas de
Theodora. Embora conteúdo de difícil explicitação nas trajetórias biográficas dos escravos brasileiros, a relação entre identidade étnica,
vivência da escravidão e elementos culturais retidos e revividos pelos
africanos e seus descendentes no Brasil devem estar sempre pontuados, mesmo que resultem, por falta de evidências, em simples conjecturas. E isso exatamente porque aparecem, direta ou indiretamente,
como conteúdos de auto-identificação8. Em sua qualificação, ao ser
interrogada pelas autoridades policiais e judiciárias, Theodora faz
questão de afirmar sua africanidade:
Respondeu chamar-se Theodora, ignora sua idade que representa ser 50 a 60
anos, casada com Luís que se acha vendido em Campinas, filha de Balanger
carpinteiro, ignora o nome da mãe, ambos da Costa, Conga, natural da Costa,
escrava do ofendido, cozinheira, não sabe ler nem escrever [AESP, idem].
8
Entre os estudos que investigam a questão da etnicidade africana no Brasil, destacam-se aqueles que sublinham a importância das nações diaspóricas e o poder de
aglutinação que identidades como a dos nagôs, malês, iorubás e bantos tiveram
entre os escravos do Brasil, no século XIX. Matory (1998); Slenes (1995); Soares
(2000); Oliveira (1997).
cartas, procurações, escapulários e patuás
119
A segunda ordem de questões diz respeito às fronteiras entre oralidade
e escrita. Na perspectiva dos novos estudos, bem como na produção
sobre história da cultura e da leitura, a tendência é que sejam diluídas,
cada vez mais, as distâncias entre cultura oral e cultura escrita, entre a
literatura erudita e o universo de tradições populares, fronteiras estas
que, no geral, haviam sido maximizadas pelas vertentes mais tradicionais da etnologia e da antropologia9. À luz dessa linha de interpretação,
expressões da cultura escrita que circulavam entre escravos e livres pobres, habitantes da cidade, devem ser entendidas em suas intersecções a
outros aspectos da sociabilidade urbana, entre eles a maneira pela qual
as notícias se espalhavam entre essas populações, os hábitos de leitura
em voz alta, o diz-que-diz, o ouvir falar, as novidades que iam e vinham
das cidades em direção às fazendas do interior e vice-versa, propagadas
nos novos ritmos trazidos pela estrada de ferro. Fazendo ampliar a percepção dos direitos que tinham na época, essas dimensões devem ser
compreendidas inseridas numa conjuntura particularmente agitada,
marcada pelas leis emancipacionistas (das quais os escravos tomavam
rapidamente conhecimento), pelo aumento das agitações da escravaria
(em revoltas que tendiam a se espalhar, sobretudo nas últimas décadas
da escravidão) e pelo crescente comprometimento de largas parcelas da
sociedade urbana com o movimento abolicionista (Machado, 1994). Se,
nos tempos do Brasil colonial e no Império, a relação entre cultura oral
e cultura escrita era mediatizada pelos bandos e pregões lidos nas praças públicas, a partir da segunda metade do século XIX, as informações
espalhavam-se através das linhas de trem e da imprensa que ampliava o
conhecimento e a interpretação das notícias. São aspectos que devem
estar referidos nos esforços de historicizar hábitos de leitura e de escrita
entre escravos e escravas, crioulos e africanos que viveram nessa época.
Nessa direção, dilui-se cada vez mais a idéia de escravos apartados
do contexto político e dos movimentos que resultaram a derrocada final
do regime da escravidão. A reintegração dos escravos à história, como
9
Ver além do estudo de Albert, anteriormente citado, a produção sobre a literatura
de cordel em Portugal e no Brasil. Entre outros estudos: Abreu (1999, 2000;
Galvão, 2001).
120
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agentes, o reconhecimento dos níveis de consciência e de atuação que
tiveram e nos quais agiram, o pressuposto de que, em certo sentido, eles
eram senhores de si, implica ao final uma revisão profunda dos chamados efeitos negativos ou maléficos da escravidão – e que vinham se
convertendo em limitações à interpretação, sobretudo quando observados à luz dos comportamentos dos ex-escravos na vivência da liberdade. Na ótica da história social dos inícios do século XX, mais
especificamente no que diz respeito à história da educação10, o que deve
ser ressaltado é que a Abolição, mesmo significando um corte profundo
com a situação pregressa não significou a ruptura total com as experiências vividas nos limites e nas possibilidades do ser escravo. A idéia de
ruptura que por tanto tempo impregnou os estudos sobre a modernidade,
numa sociedade formada exclusivamente por homens livres, cidadãos
em potencial, trazia implícito o anseio em escamotear escravos e forros
como grupos socialmente ativos, transformando-os em seres destituídos de experiências historicamente constituídas. No sentido oposto, as
evidências documentais sugerem que a busca em reorganizar famílias e
parentelas, a procura por territórios sociais onde preexistiam coletividades de forros, e principalmente o pertencimento a associações culturais,
educacionais e religiosas, demarcaram linhas de continuidade entre
vivências concebidas, no geral, opostas. É claro que a idéia da liberdade
e os meios de concretizá-la passavam necessariamente por aquilo a que
haviam sido impedidos como escravos, mas era referenciada também
por aprendizados sociais anteriormente adquiridos.
10
Sobre a questão dos processos de escolarização e alfabetização das populações
negras, especificamente na cidade de São Paulo ver, entre outros: Demartini (1989).
Sobre as direções historiográficas no tratamento do tema, ver Regina Pahim Pinto.
“A educação do negro – uma revisão da bibliografia”. Cadernos de Pesquisa, Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n. 62, pp. 3-34, 1987.
cartas, procurações, escapulários e patuás
121
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Educação e escravidão:
um desafio para a análise historiográfica
Marcus Vinícius Fonseca*
Neste artigo realizamos uma análise teórica que detecta uma certa tensão entre educação
e escravidão na produção historiográfica. Ao tratar dessa tensão, procuramos defender a
idéia de que o processo de formação do trabalhador escravo pode ser entendido como
uma prática educativa. Em uma dimensão mais geral, realizamos um esforço para aproximar as discussões relativas à história da escravidão com a história da educação, tentando
compor uma perspectiva analítica que possa contribuir para se ampliar a compreensão do
processo de organização da sociedade escravista.
HISTÓRIA; ESCRAVIDÃO; EDUCAÇÃO; TRABALHO; CRIANÇA ESCRAVA.
This paper is a work of abstracts analysis that reveal a tense between the education and
the slavery in the history production. It defense the idea that formation process of the
slave worker it may be understanding how a education pratic.The debate approximate the
analysis about slavery history whit education history introducing an analytic perspective
that permit to extend the comprehension of slave society.
HISTORY; SLAVERY; EDUCATION; WORK; CHILD SLAVE.
*
Mestre em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e professor de filosofia da educação na Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC).
124
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Introdução
Este artigo tem como objetivo estabelecer uma problematização do
processo de formação dos trabalhadores escravos a partir da idéia de
educação. Para tal, procuramos estabelecer uma relação entre escravidão e educação, tentando demonstrar que é possível integrar a dimensão
educacional aos modelos explicativos relativos à sociedade escravista.
Nessa perspectiva, a argumentação percorre duas dimensões específicas: primeiro, procura realizar uma crítica a alguns estudos referentes à escravidão; segundo, busca empreender a análise de um conceito
de educação que possa dar alguma inteligibilidade ao processo de formação dos trabalhadores escravos. Do ponto de vista da crítica aos estudos atinentes à escravidão, tenta demonstrar que a educação pode ser
incorporada aos enfoques que desde o início da década de 1980 vêm
criando novas formas de entendimento da escravidão no Brasil.
No que se refere ao conceito de educação, a argumentação visa investigar a possibilidade de aplicação do conceito de educação tradicional, cunhado pelo historiador Justino Magalhães (1996) em sua análise
acerca da sociedade portuguesa entre os séculos XVI e XIX. É através
desse conceito que buscaremos estabelecer algumas possibilidades de
compreensão da formação dos trabalhadores escravos como um processo que pode ser interpretado como uma prática educacional.
É preciso destacar que se pretende aqui estabelecer uma aproximação de forma bastante inicial entre escravidão e educação. Trata-se de
reflexões provisórias e preliminares que necessitam de um desenvolvimento mais rigoroso e, sobretudo, que sejam submetidas a confirmações empíricas1. No entanto, esse caráter preliminar não invalida a
1
A reflexão que aqui desenvolvemos é teórica, mas é proveniente de duas pesquisas
que trataram da relação entre educação e escravidão: a primeira, uma dissertação
de mestrado – defendida junto no programa de pós-graduação da Faculdade de
Educação da UFMG –, em que foi analisada uma política pública voltada para a
educação dos negros durante a abolição da escravidão no Brasil; a segunda, uma
pesquisa realizada no concurso “Os negros e a educação”, promovido pela ANPED e
Ação Educativa, na qual se identifica o processo de abolição da escravidão como o
educação e escravidão
125
tentativa de aproximar esses dois campos, pois reuni-los poderá representar a articulação de dois conceitos fundamentais para compreender
os mecanismos de dominação que se encontram na base do processo de
construção da sociedade brasileira.
Apontamentos para o estabelecimento de uma
relação entre escravidão e educação
Não é comum falar de educação quando se trata de escravos. Em um
certo sentido, isso se justifica por uma tradição de entendimento tipicamente moderna que tende a associar a educação ao processo de escolarização. As práticas educativas voltadas para a formação dos trabalhadores escravos em nada se assemelhavam à escolarização, mas a educação
não é prerrogativa da escola. Antes de o modelo escolar tornar-se espaço
privilegiado da atividade educacional, outras formas de educação foram
responsáveis pela incorporação das novas gerações às diversas formas de
organização das sociedades. Justino Magalhães, abordando essa questão
de uma perspectiva histórica centrada na longa duração, afirma que,
“como ponto de partida, uma cronologia do fenômeno escolar, desenvolvida na longa duração e centrada nas sociedades ocidentais, não deixará
de compreender as seguintes fases: uma educação sem escola; uma educação pela escola; uma educação fora da escola. É nos dois últimos séculos que se observa uma expansão e uma universalização dos processos
escolares, no entanto, desde os finais da Idade Média que o modelo escolar se vem firmando como principal meio de informação e formação das
novas gerações” (Magalhães, 1996, p. 10).
Ao fazer referência à educação dos escravos, devemos ter em mente
as práticas educacionais que eram anteriores ao modelo escolar e que
não possuíam qualquer semelhança com as práticas generalizadas a partir do processo de escolarização.
período em que a educação moderna começou a ser aplicada em relação aos negros
no Brasil. Os dois trabalhos trataram do processo de abolição da escravidão, e possibilitaram perceber que a educação não era algo alheio à sociedade escravista.
126
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Quanto aos escravos, é preciso deixar bem claro que trataremos das
crianças nascidas como escravas no Brasil. Entendemos que a concepção de educação que tentaremos relacionar à escravidão diz respeito
somente às crianças que nasceram escravas e foram socializadas a partir
dessa condição. No que se refere aos negros que foram escravizados e
trazidos da África, acreditamos que se faz necessária uma análise específica quanto ao seu processo de incorporação à sociedade escravista,
pois esta se diferenciava do processo através do qual se dava a socialização da criança que havia nascido como escrava no Brasil. Parte dessa
diferença atribuímos ao fato de que as crianças nascidas como escravas
deveriam ser socializadas a partir da sua própria condição de elemento
servil. Elas não haviam conhecido a liberdade, tampouco um outro modelo de organização social. Os que foram trazidos da África eram na
verdade ressocializados, e esse processo se dava em conflito com todas
as referências que traziam de um mundo onde haviam nascido como
seres livres2.
Nesse sentido, as crianças escravas eram indivíduos que, como qualquer outro, em qualquer tempo e lugar, nasciam em um mundo que lhes
era completamente estranho. A educação era o instrumento que permitia
um reconhecimento deste mundo tal como se encontrava organizado,
ou, como afirma Hannah Arendt, na sua caracterização do fenômeno
educacional: “a educação está entre as atividades mais elementares e
necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos
seres humanos” (Arendt, 1972, p. 234). Esses seres humanos devem ser
incorporados à sociedade e, independentemente da forma como esta esteja organizada, essa incorporação se dá através da educação, que, conforme destaca a autora, é uma atividade elementar no processo de
organização de qualquer sociedade.
Assim, de forma semelhante a qualquer criança, nascida em qualquer
tempo e lugar, a que nascia como escrava chegava a uma sociedade que
lhe era absolutamente estranha: desconhecia a sua organização, suas re2
Para uma análise acerca do processo de incorporação dos africanos à sociedade
escravista, ver Mattoso (1982).
educação e escravidão
127
gras e não tinha conhecimento da sua condição de um ser humano reduzido juridicamente à condição de objeto e que poderia ser utilizado como
instrumento de trabalho por alguém que ela deveria chamar de senhor.
A criança escrava, para o pleno cumprimento das obrigações inerentes à sua condição, deveria ser preparada para tomar parte das injustas relações sociais que caracterizavam o mundo escravista, e acreditamos que essa preparação ocorria através de procedimentos que podem
ser entendidos como educacionais3.
A formação do trabalhador escravo: adestramento,
violência ou educação?
O processo responsável pela incorporação das crianças escravas à
sociedade tem sido muitas vezes desconsiderado pelos estudos que se
voltam para o entendimento do escravismo no Brasil. Quando não é
desconsiderado, geralmente é mal compreendido, resultando em abordagens que tendem a tratar a questão do processo de formação dos escravos com base em procedimentos típicos da relação estímulo-resposta.
Esse tipo de abordagem pode ser caracterizado pelo estudo de José
Roberto Goes e Manolo Florentino sobre as crianças escravas: “Por volta
dos 12 anos, o adestramento que as tornava adultos estava se concluindo. Nesta idade os meninos e as meninas começavam a trazer a profissão por sobrenome: Chico Roça, João Pastor, Ana Mucama” (Goes &
Florentino, 1999, p. 184, grifo meu).
A maneira como estes autores registram a inserção da criança escrava no mundo dos adultos restringe a possibilidade de caracterizá-lo
como uma atividade educacional. Isso ocorre porque afirmar que o pro3
Pode-se dizer que o índice de natalidade não era o elemento central do processo de
reposição de mão-de-obra na sociedade escravista, pois o tráfico de escravos africanos foi, até por volta de 1850, o elemento responsável pela introdução de novos
escravos na sociedade brasileira. No entanto, tal fato não torna sem importância a
questão relativa à educação da criança escrava e pode até mesmo ajudar a compreender aspectos econômicos do escravismo, como o problema apontado por Mattoso
(1982) a respeito do elevado preço de um escravo nascido no Brasil.
128
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cesso de aprendizagem das crianças escravas estava reduzido a um adestramento, significa qualificá-lo como algo que, pode-se dizer, se resume ao condicionamento de habilidades manuais que devem ser exercitadas docilmente4.
No entanto, era impossível que alguém viesse a se tornar Chico Roça,
João Pastor ou Ana Mucama, por mero adestramento. As habilidades
que passavam a ser incorporadas ao próprio nome dessas crianças não
podiam ser aprendidas exclusivamente por condicionamento, e, embora
fosse o trabalho um aspecto central do aprendizado, não era a única
coisa que lhes cabia dominar para desempenharem a função social imposta pelo mundo escravista5.
Os escravos, mesmo reduzidos juridicamente à condição de objetos, não deixavam de ser seres humanos. Na inserção gradativa desses
seres humanos no cotidiano da sociedade escravista, havia estratégias
que objetivavam sua preparação para travar um conjunto de relações
sociais da qual, em parte, dependia a própria estabilidade do escravismo.
Essas estratégias não podem ser reduzidas a um adestramento, devem
ser entendidas a partir de um conceito mais amplo de educação, ou seja,
comportando ritos e finalidades – relativamente controladas6 – que pro4
5
6
Goes & Florentino chegam a intuir uma pedagogia utilizada em relação à criança
escrava, mas, o conceito de pedagogia senhorial por eles utilizado não ganha
contornos definidos, tornando-se ainda mais obscuro quando afirmam que “o adestramento da criança também se fazia pelo suplício” (Goes & Florentino, 1999,
p. 185). Nesse sentido, o conceito de pedagogia centrado na ação dos senhores
termina por representar a educação como um adestramento.
O termo adestramento é uma representação conceitual freqüentemente utilizada para
caracterizar o treinamento de animais, mas não é algo estranho aos debates educacionais: “Em educação, o termo tem sido utilizado para designar o ato ou o efeito da
habituação de alguém fazer docilmente e regularmente um programa preciso e prescrito. Com esse sentido, a formação de habilidades esteve, durante muito tempo,
vinculada à idéia de desenvolvimento da destreza manual, da agilidade e da capacidade de se submeter a uma dada disciplina” (Fidalgo & Machado, 2000, p. 15).
Ao falarmos de ritos educacionais relativamente controlados, referimo-nos não só
aos senhores, mas também à comunidade escrava. No entanto, a análise desenvolvida neste artigo estará mais voltada para o entendimento de aspectos atissente à
relação da criança escrava com o mundo dos senhores, pois este é um dos focos
privilegiados da história da escravidão no Brasil. Mas isso não quer dizer que os
senhores eram os únicos a tomar parte na educação da criança escrava, eram apenas
educação e escravidão
129
curavam garantir uma função específica para o trabalhador cativo na
organização e no funcionamento da sociedade escravista.
Pode-se dizer que é algo estranho acreditar que o escravo não percorria todo um processo de aprendizado sobre a sua condição, ou seja, o
doloroso processo que buscava criar um indivíduo com características
bastante específicas.
Ignorar os processos educacionais que perpassavam este movimento de construção social do trabalhador escravo implica a crença no adestramento como sua única instância formativa e o estabelecimento da
violência física como instrumento privilegiado para subjugá-lo como
cativo. A noção de adestramento está intimamente ligada à excessiva
valorização que a violência adquiriu nos modelos explicativos acerca
da sociedade escravista. Sidney Chalhoub, em análise acerca da produção teórica relativa à escravidão, qualifica estas interpretações de teoria
do escravo-coisa:
Além da demonstração da violência cotidiana das relações escravistas, esses
estudos concluíram que as condições extremamente duras da vida sob o cativeiro haviam destituído os negros das habilidades necessárias para serem
bem sucedidos na vida em liberdade. A escravidão teria destruído os hábitos
de vida familiar dos negros, os teria tornado incapazes de se disciplinarem
para o trabalho, sendo-lhes estranhas a idéia de acumulação de riqueza. Houve
mesmo quem afirmasse que o homem formado dentro desse sistema social (a
escravidão) apresentava um rudimentar desenvolvimento mental. Essas afirmações a respeito dos negros se fundamentavam naquilo que poderíamos
chamar de teoria do escravo-coisa [Chalhoub, 1989, p. 38].
Essa posição apresentada por Chalhoub (1989) visa criticar as interpretações que negam qualquer dimensão subjetiva na existência dos negros escravizados, conferindo-lhes uma incapacidade de pensar o mundo
a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos
pelos senhores, fazendo dos escravos um mero reflexo da escravidão.
alguns dos sujeitos de um complexo processo educacional que, possivelmente, tinha na própria comunidade escrava um dos seus principais agentes.
130
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A teoria do escravo-coisa é uma perspectiva teórica que surgiu em
reação às posições defendidas por Gilberto Freyre em relação à escravidão. Gilberto Freyre, em seu famoso livro Casa-grande e senzala, apresentou uma visão romântica da escravidão, minimizando os conflitos
raciais e praticamente retirando a violência do contexto da relação entre
senhores e escravos. Rejeitando as teses de Gilberto Freyre, vários estudos voltaram-se para o mundo escravista, colocando em destaque a violência como um elemento imperativo naquela organização social,
trazendo, de forma implícita, a idéia de que a violência física era o elemento responsável pela formação dos escravos.
Um dos principais partidários dessa tese e do movimento de reação
às idéias de Gilberto Freyre foi Jacob Gorender. Coube também a ele a
reação contra o posicionamento inovador defendido, a partir dos anos
de 1980, por autores como Sidney Chalhoub e Kátia Mattoso. Em seu
livro A escravidão reabilitada (1991), Jacob Gorender não poupa críticas às novas abordagens que a violência recebe nas interpretações acerca da sociedade escravista. Numa análise criteriosa da produção sobre a
história da escravidão realizada a partir dos anos de 1980, cujo marco
por ele estabelecido é o livro de Kátia Mattoso, Ser escravo no Brasil
(1982), caracteriza dessa forma as novas abordagens:
Mas, se a historiografia brasileira pretensamente nova quis recuperar a subjetividade autônoma do escravo, não o fez para destacar as reações antisistêmicas, como os levantes, quilombos, atentados e fugas. Ao contrário,
subiram ao primeiro plano as estratégias cotidianas e suaves de acomodação
do escravo ao sistema escravocrata. Recuperou-se a subjetividade do escravo para fazê-lo agente voluntário da reconciliação com a escravidão
[Gorender, 1991].
Para Gorender, o esforço de recuperar a subjetividade do “escravo
comum” em seu cotidiano, e não necessariamente do escravo que deixou marcas flagrantes de sua rebeldia, não representa uma reinterpretação
do agir político, mas um retorno a Gilberto Freyre e uma reabilitação da
escravidão como uma instituição em que senhores e escravos coexistiram sem conflitos.
educação e escravidão
131
Igualar o posicionamento dessa nova perspectiva da historiografia
da escravidão com a posição de Gilberto Freyre é um equívoco e um
exagero. Trata-se de um equívoco porque não se pretende minimizar os
conflitos, pois o que historiadores como Chalhoub tem demonstrado é
que os escravos estavam longe de aceitarem a escravidão, mas, a reação
destes não se dava necessariamente através da organização de revoltas,
ocorria sim em todos espaços onde os negros escravizados estavam presentes e, por vezes, utilizando as próprias possibilidades encontradas
dentro da sociedade escravista. Não se trata da desqualificação dos movimentos quilombolas e nem de outros movimentos, como a Revolta
dos Malês, e sim da demonstração de que o escravo, no seu cotidiano e
a partir das mais diversas possibilidades, reagia às condições difíceis
que lhe impunha o mundo escravista.
Quanto ao exagero, podemos dizer que estamos longe de encontrar
qualquer semelhança entre os níveis de resistência que essa historiografia
apresenta e a visão construída por Freyre. Ao recuperar a subjetividade
do “escravo comum”, percebe-se que revolta e rebeldia não foram prerrogativas de alguns poucos escravos que tiveram a possibilidade de construir movimentos “organizados”, mas uma constante e que pode ser
encontrada em vários escravos, mesmo naqueles que não nos seriam
úteis para alimentar o heroísmo, como mito que povoa o nosso imaginário e a própria narrativa histórica. Essa idéia pode ser entendida de forma clara na passagem em que Chalhoub contrapõe a figura de Zumbi
dos Palmares e a da princesa Isabel:
Algumas pessoas ficarão decepcionadas com as opções desses escravos que
lutaram pela liberdade, certamente de modo resoluto, mas sem terem se tornado abertamente rebeldes como Zumbi. Essa é uma decepção que precisamos aceitar e pensar sobre ela. Pois para cada Zumbi existiram com certeza
um sem número de escravos que, longe de estarem passivos ou conformados
com sua situação, procuraram mudar sua condição de acordo com estratégias
mais ou menos previstas na sociedade a qual viviam. Mais do que isso, pressionaram pela mudança, em benefício de aspectos institucionais daquela sociedade [...] na verdade, combater no campo de possibilidades largamente
mapeados pelos adversários é exatamente o que fazem ao insistirem em Zumbi
132
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e na rebeldia negra. A inversão de mitos resulta antes de tudo em mitos invertidos, e estes repetem os originais em aspectos essenciais. Assim, o fato é
que, com princesa ou com Zumbi, as opções de luta pela liberdade de uma
massa enorme de negros ficam arrogantemente condenados à sarjeta da história [Chalhoub, 1989, p. 40].
O que é aqui colocado em destaque é o fato de que a resistência negra
contra a escravidão esteve no horizonte da ação dos escravos em todo o
cotidiano da sociedade escravista e que essas ações não são menos significativas que a rebeldia declarada, como no caso de Zumbi. Eleger a ação
de escravos que se rebelaram como Zumbi e desqualificar a ação dos escravos que mantiveram seu descontentamento no limite de possibilidades
colocadas pela sociedade escravista é desqualificar a grande maioria dos
escravos que viveram durante a escravidão e privilegiar formas de resistências que, sem dúvida, foram importantes, mas que talvez não foram as
mais utilizadas pela maioria dos cativos que viveram no Brasil.
Nada do que apresentamos anteriormente pode ser comparado à visão romântica construída por Gilberto Freyre. Portanto, trata-se de um
exagero a afirmação de que investigar as estratégias dos escravos com
base no cotidiano é uma reabilitação da escravidão.
Esse debate tem implicações para a abordagem da escravidão a partir da educação, pois é inegável a presença da violência como mecanismo de coerção sobre os escravos, mas sua visão como elemento presente
no cotidiano da sociedade escravista deve ser relativizada, abrindo espaço para análises que possibilitem um entendimento maior dos processos sociais que envolviam a relação entre senhores e escravos, até mesmo
do ponto de vista educacional.
Para uma caracterização do processo de relativização da violência,
podemos tomar como ponto de partida a própria obra apontada por Jacob
Gorender como um marco de mudança nas análises sobre a escravidão
no Brasil, ou seja, o livro Ser escravo no Brasil, de Kátia Mattoso:
Os castigos corporais também servem para manter a ordem através do exemplo. Mas sua aplicação não fazia parte absolutamente da vida diária do escravo. Ninguém nega tenha havido senhores ou senhoras sádicos. Contudo, de
educação e escravidão
133
modo geral, nem o senhor nem o feitor passeiam entre os escravos, chicote
na mão, para repreender qualquer pecadilho. Os meios utilizados para assegurar a obediência no trabalho e a humildade nas relações com senhores
são mais sutis. O senhor procura fazer os escravos ligarem-se a ele por laços
afetivos, tenta, em primeiro lugar, inspirar-lhe consideração e quando o trabalho é bem feito termina por gerar um respeito mútuo. O chicote, o tronco,
a máscara de ferro, ou o pelourinho, são o último recurso dos senhores incapazes de manter a disciplina. São utilizados somente em caso de inadaptação
do escravo à sua condição [Mattoso, 1982, p. 117, grifo meu].
Todos esses procedimentos que buscavam fazer com que a violência
ficasse de fora da relação direta entre senhor e escravo consistem em um
conjunto de elementos manipulados pelos senhores e que, desde a infância da criança escrava, objetivava sua preparação para adequá-la às relações que permeariam sua existência na condição de trabalhador cativo.
Segundo o estudo de Chalhoub (1990), mesmo quando a violência
emergia como um ato do senhor dirigido a corrigir o escravo, ela não
surgia aleatoriamente. Fazia-se necessário um motivo que fosse, perante o escravo, reconhecido como justo. Caso fosse a violência exercida
de forma exagerada ou injustificada, poderia representar um perigo para
senhores e feitores que se encontravam, na maioria das vezes, em menor número diante do plantel de trabalhadores escravos.
Essa noção de castigo por motivo justo é demonstrada pelo autor
pela análise de uma série de processos judiciais envolvendo escravos
que foram acusados de cometer delitos que os levaram perante a Justiça.
“Eles (os escravos) aprenderam a fazer valer certos direitos que, mesmo
se compreendidos de maneira flexível, eram conquistas suas que precisavam ser respeitadas para que seu cativeiro tivesse continuidade: suas
relações afetivas tinham de ser consideradas de alguma forma; os castigos precisavam ser moderados e aplicados por motivos justos” (grifo
meu). E ainda,
Manoel Moçambique deu uma facada no caxeiro da casa de negócios de seu
senhor porque este lhe havia castigado sem motivo justo. O caxeiro achava
que o negro havia se demorado na rua vadiando ao ir buscar água; o escravo,
134
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contudo, explicou que qualquer pequena demora no seu serviço fora devida a
ter de esperar que o Inspetor do Chafariz abrisse as torneiras. Consumada a
agressão, Manoel Moçambique saiu com destino a Polícia [Chalhoub, 1990,
pp. 59-177, grifo meu].
O escravo envolvido nessa querela judicial revelou que tinha a noção precisa da ligação entre castigo e justiça, e também que possuía
exata dimensão do seu ato, pois dirigiu-se à polícia após ter cometido a
agressão. Fora essa história, Chalhoub (1990) coloca em destaque várias outras cujo teor era o mesmo: escravos que cometeram atos de violência por terem sido submetidos a castigos entendidos por eles como
injustos.
Aqui a violência se encontra no mesmo lugar que a colocou Kátia
Mattoso: não se tratava de um recurso a ser utilizado aleatoriamente no
processo de disciplina e correção do escravo.
Explorando uma outra dimensão da relação entre senhores e escravos,
Marilene Rosa N. da Silva (1988) também interpreta de forma diferente
o problema da violência na sociedade escravista. De acordo com essa
autora – em estudo sobre os escravos de ganho no Rio de Janeiro –, a
relação entre senhores e escravos era permeada de acordos e negociações
que implicavam a própria estabilidade do escravismo.
No Brasil como em qualquer outra parte da América, quer seja nos campos
ou nas cidades, sempre existiram acordos não revelados [...] Esta afirmação
pode ser facilmente comprovada pelo simples exame de participação quantitativa da população escrava no Brasil, em comparação com a branca, livre
dominante. Percebe-se que, além do tempo histórico inegável das revoltas,
existiu um tempo de longa duração das normalidades. O escravo enfrentava
o sistema muitas vezes com as armas oferecidas pelo próprio sistema – o
corpo-mole, o boicote. Relativamente poucos assassinaram seus senhores,
ou participaram de rebeliões, enquanto a maioria, por estratégia, invenção ou
sorte, ia vivendo. Acreditamos que seria impossível manter o sistema apenas
pela repressão; não haveria feitores bastantes para controlar um número tão
grande de escravos. Era através de acordos implícitos nas relações que se
mantinha o sistema [Silva, 1988, p. 112].
educação e escravidão
135
Na perspectiva apontada por essa autora, os acordos eram elementos essenciais para a manutenção do sistema escravista. Era através deles que a violência ficava em segundo plano, pois, como mecanismo de
coerção, a violência não era algo que o escravo atrairia gratuitamente
sobre si. É algo bastante razoável acreditar que o escravo procurava de
todas as formas se esquivar da correção por meio da violência física. No
entanto, não se tratava de instrumento que oferecia garantias aos senhores, e, por mais sádicos que esses pudessem ser, usar a violência física
constantemente poderia representar perigos e estimular revoltas entre
os próprios escravos. Dessa forma, para não ter que se servir freqüentemente da violência, os acordos entravam em cena, e tanto senhores
como escravos aceitavam tal fato em nome de uma certa “estabilidade”
no domínio das relações sociais travadas no mundo escravista. É o que
Marilene Rosa N. da Silva (1988) demonstra em relação aos chamados
escravos de ganho, que, em troca do pagamento de uma diária ao senhor, adquiriam uma certa liberdade de movimentação na cidade.
Entretanto, não é somente em relação ao escravo de ganho, como
um trabalhador ligado ao mundo urbano, que se verifica a possibilidade
da existência de acordos. O mesmo fato é registrado em relação ao espaço rural, onde existiram casos de escravos que possuíam concessão dos
senhores para cultivar pequenas partes de terras como forma de complemento para sua alimentação, ou da realização de um pecúlio através da
comercialização do excedente (Cardoso, 1988).
Em ambos os casos, há um acordo implícito em que os escravos,
com a concessão dos senhores, servem-se de prerrogativas que não estariam necessariamente embutidas naquilo que caracterizava a relação
de dominação na sociedade escravista. Se os escravos de ganho adquiriam liberdade de movimentação, ou se os escravos que plantavam nas
terras dos senhores adquiriam direito de utilização ou comercialização
do que era por eles produzido, era através de acordos que se chegava a
tal condição. Nesses acordos as duas partes faziam concessões visando
a interesses concretos: no caso dos senhores, segurança e produtividade; no caso dos escravos, a melhoria da sua existência como trabalhador
cativo e a ampliação de sua margem de liberdade.
A partir do momento que a historiografia começa a considerar essas
possibilidades de entendimento, em que são admitidos acordos e a violên-
136
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
cia passa a ser relativizada na relação entre senhores e escravos, somos
levados a construir uma visão bem mais complexa do mundo escravista.
Para dar conta dessa complexidade, é necessário incorporar a educação no entendimento dessas relações. Isso porque, primeiro, não há
sociedade, por mais cruel e injusta que seja, que não utilize práticas
educacionais; segundo, é difícil pensar que os trabalhadores cativos
adentravam as relações que caracterizavam o mundo escravista sem um
período de preparação que, em última instância, visava tornar a escravidão uma instituição legítima perante os próprios escravos.
O processo de inserção dos negros escravizados nas duras relações
propiciadas pela escravidão era realizado por procedimentos que tinham
como objetivo prepará-los para ser, ao mesmo tempo, submissos e produtivos. Acreditamos que esses procedimentos podem ser entendidos
como estratégias educacionais que buscavam introduzir nos escravos as
habilidades necessárias à sua atuação como trabalhador e a naturalização das relações entre dominador e dominado.
Nesse sentido, as práticas educativas podem ser tomadas como parte do processo de dominação dos escravos. Admitir essa possibilidade
não implica tornar a escravidão mais amena, tampouco representa uma
abordagem que vá distender os mecanismos de dominação que eram
utilizados em relação aos escravos. Muito pelo contrário, acreditamos
que abordar o mundo escravista a partir da educação significa a possibilidade de compreensão dessa dominação de uma forma mais ampla e a
utilização de uma idéia que é chave no entendimento de qualquer forma
de organização social, pois é preciso sempre lembrar que não há sociedade que não utilize práticas educativas que respondam por sua organização e seu funcionamento.
O conceito de educação tradicional e a formação
do trabalhador escravo
Com base na problematização que até aqui realizamos acerca da
sociedade escravista, podemos destacar alguns elementos que foram tratados anteriormente e que permitem explicitar um conceito de educação
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137
que seja capaz de revestir de sentido o processo de formação do trabalhador escravo: primeiro, trata-se de algo absolutamente inadequado
entender a inserção das crianças escravas no mundo dos adultos como
um simples adestramento; segundo, a violência, como elemento responsável pelo processo de formação do escravo necessita ser relativizada;
por fim, a educação, como atividade básica de qualquer forma de organização social, deve ser utilizada no entendimento das relações que caracterizavam o mundo escravista, reunindo os diversos procedimentos
através do qual o escravo era educado, ou seja, não procede privilegiar
apenas um elemento em detrimento dos demais. Os escravos eram educados por um conjunto de procedimentos que apontam para a existência
de um modelo educacional com características bastante específicas.
Gostaríamos mais uma vez de afirmar que aqui não responderemos
a essa necessidade de estabelecer uma relação categórica entre escravidão e educação. Isso ocorre porque uma abordagem que se proponha a
enfrentar essa questão – nos seus mais diversos aspectos, inclusive as
especificidades regionais da escravidão no Brasil – exige procedimentos de análise que estão além daqueles que utilizamos na elaboração
desta reflexão que, como colocamos anteriormente, é ainda inicial. Aqui
nos limitamos a problematizar a produção teórica a respeito do processo
de formação dos escravos, tentando estabelecer algumas possibilidades
que permitam entendê-lo como uma atividade educacional.
Investigar o processo de formação dos trabalhadores escravos, levando em conta a questão educacional, é algo importante para que esta
possa ser tomada como parte dos instrumentos de análise utilizados na
compreensão da sociedade escravista, possibilitando uma visão de conjunto da forma como se articulavam as práticas de dominação e
subalternização dos negros escravizados nessa sociedade.
Para conseguirmos uma aproximação com essas práticas, é necessário tratar conceitualmente a questão. Precisamos nos servir de uma concepção educacional que possa dar alguma inteligibilidade ao processo
de formação dos trabalhadores escravos.
Nesse sentido, podemos nos aproximar do conceito de educação
tradicional utilizado por Justino Magalhães (1996). Segundo esse autor, as práticas educativas que antecederam às modernas concepções
educacionais caracterizavam-se por sua ligação com o mundo privado:
138
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Esses processos educativos decorrem em espaços familiares, nas oficinas e
locais de trabalho, nas praças e lugares públicos, nas festas, nos jogos, nos
actos de culto e sob uma acção pedagógica, ora mais, ora menos organizada
e formal. Deste modo os pais, ou quem os substitui, os eclesiásticos, os mestres da corporação, os responsáveis pelos destinos da comunidade, os órgãos
do poder, não deixam de desempenhar importantes funções educativas [Magalhães, 1996, p. 10].
Com a emergência das modernas concepções educacionais – cuja
marca se encontra na escolarização –, o espaço privado não deixa de ser
educativo, mas seu campo de ação “tende por conseqüência a reduzir-se
com a progressiva escolarização dos saberes, práticas, competências e
estratégias de socialização e por outro lado com maior intelectualização
das atitudes e ações do quotidiano” (idem, ibidem).
Esses aspectos colocados em destaque por Justino Magalhães a respeito da educação tradicional e sua ênfase no espaço privado podem
revestir de sentido o processo de educação dos escravos. No entanto,
esse conceito não pode ser usado indiscriminadamente em relação aos
escravos, tampouco em relação ao Brasil durante a Colônia e o Império.
É preciso submetê-lo a uma certa crítica e situá-lo de acordo com as
principais características que davam forma à sociedade brasileira.
Assim, para tornar o conceito válido, é preciso, em primeiro lugar, levar
em consideração o fato de que os escravos eram parte de um grupo com
características muito peculiares, como, por exemplo, no que diz respeito à
composição da família, a relação com o mundo do trabalho e ao próprio
espaço privado, onde praticamente encerrava toda sua existência. Grande
parte da vida dos escravos transcorria no espaço privado, em um cotidiano
em que se movimentavam entre o mundo do trabalho e uma rígida hierarquia social na qual ocupavam o nível mais baixo de inferioridade.
Mas esse mundo cotidiano e privado no qual o escravo praticamente encerrava toda sua existência, não é, de forma alguma, aquele que
caracteriza a sociedade portuguesa a qual se refere Justino Magalhães.
No contexto do mundo europeu, o público e privado eram, desde o início da era moderna, esferas que se encontravam imbricadas, mas que
comportavam um certo grau de distinção que permitia uma separação.
educação e escravidão
139
No Brasil Colônia, essa imbricação entre as duas esferas era muito
maior e de difícil separação7. Essa separação só começou a se delinear
com maior nitidez a partir do século XIX, com a constituição de um
espaço público, pois, como salienta Laura de Mello e Souza (1997), o
público e o privado são conceitos polares que guardam um alto grau de
interdependência, a ponto da inexistência de um implicar o atrofiamento
do outro: “No decorrer do século XIX, muita coisa mudaria, e certamente o espaço da privacidade iria se ampliar, melhor definindo, contudo, os seus contornos. A vinda da família real seria, sem dúvida, um
ponto de inflexão. Mas nunca uma ruptura, como, aliás, também não o
seria a independência de 1822 [...] no século XIX, a escravidão continuaria qualificando a vida privada brasileira” (Souza, 1997, p. 444).
Portanto, o público e o privado são, no Brasil do século XIX, espaços
que vão sendo gradativamente construídos através de uma separação que
os tornava cada vez mais diferenciados. Essa separação foi demarcada
pela constituição de um poder público que foi progressivamente assumindo tarefas que até então estavam vinculadas ao mundo privado.
No entanto, o que caracterizaria a vida privada brasileira ainda no
século XIX, é, segundo Souza (1997), exatamente a escravidão. É no
mundo privado que livres e escravos estavam em permanente contato e
é nele que desde o nascimento as crianças escravas eram socializadas. É
nesse espaço altamente hierarquizado que as crianças escravas absorviam as competências que tornavam a sua presença suportável, ou seja,
uma habilidade para o trabalho, o que iria conferir uma certa distinção
social aos seus senhores.
É difícil imaginar que a educação dos escravos não se dava sob essa
primazia do privado, pois tal espaço era permeado de exigências e essas
7
Analisando a forma como frei Vicente caracteriza a Colônia no século XVII,
Fernando Novais (1997) chega à seguinte conclusão: “Ora, escrevendo na terceira
década do século XVII, esse incrível frei Vicente do Salvador já nos aponta suas
características essenciais: em primeiro lugar, a profunda imbricação das duas esferas de existência, aqui na Colônia, e isto, que já não seria pouco ainda não é tudo.
Pois, em segundo lugar, o arguto cronista deixa claro que os níveis do público e do
privado, para além de inextricavelmente ligados, apresentam-se da mesma forma
curiosamente invertidos. Pois, como terá de imediato notado o atento leitor, a inversão é também uma forma de articulação” (Novais, 1997, p. 14).
140
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
lhes eram gradativamente transmitidas com o objetivo de torná-los eficientes para o trabalho e tão submissos quanto possível, para que não
viessem a representar uma ameaça à vida dos senhores. No mundo
escravista, as ameaças não vinham necessariamente das ruas, mas encontravam-se estabelecidas no próprio lar, onde dominador e dominado
eram expostos a uma intensa convivência. Isso obrigava os senhores a
serem cuidadosos no tratamento dos escravos. Parte desse cuidado implicava o direcionamento de sua criação, tornando-os, através dos mais
variados ritos, integrados ao espaço privado, onde a coexistência era
absolutamente necessária.
A maneira pela qual se buscava a formação desse trabalhador tinha
na convivência um aspecto central. Essa convivência não deve ser entendida somente no sentido de “viver junto”. Em um mundo hierarquizado, era ela mesma revestida de um sentido pedagógico que buscava
transmitir à criança os conteúdos necessários à sua condição de escrava.
Esse processo de transmissão dos conteúdos pode ser representado
por aquilo que Justino Magalhães vincula diretamente à educação tradicional: uma transmissão por impregnação. “Mais que pela aprendizagem, é partilhando gradualmente tarefas e responsabilidades com os
adultos que as gerações novas se iniciam aos diversos papéis e desempenhos que a vida proporciona” (Magalhães, 1996, p. 10).
O processo de aprendizagem na educação tradicional operava-se
numa linha de continuidade com o mundo privado, tendo na impregnação proporcionada pelas vivências do cotidiano seu principal mecanismo de transmissão dos conteúdos de uma geração para outra. Nessa
perspectiva, entendemos que era na convivência com os senhores e, sobretudo, com os escravos adultos que a criança tomava conhecimento
de sua condição e todas as implicações que isso representava.
Os estudos que têm procurado desvendar o cotidiano da sociedade
escravista detectam alguns procedimentos que apontam para a idéia de
impregnação como uma maneira de formar o escravo. Entre esses estudos destacam-se aqueles que têm o seu foco sobre a criança escrava.
Maria Lúcia Mott et al. (1988), em “A escravidão e a criança negra”, afirma que, mesmo antes dos 5 anos, o pequeno escravo estava
entregue aos trabalhos com a turma de escravos adultos e esses iam
educação e escravidão
141
progressivamente o orientando no domínio das tarefas: “muitas vezes,
desde pequenas as crias eram obrigadas a acompanhar suas mães ao
campo e com elas compartilhavam várias atividades agrícolas: tiravam
ervas daninhas, semeavam, apanhavam frutos, cuidavam dos animais
domésticos” (Mott et al., 1988, p. 21).
No exercício dessas tarefas, o que estava em jogo não era a produtividade, como um atributo que era exigido a qualquer escravo adulto,
mas a aprendizagem das tarefas que competiam a sua condição de escrava e que, possivelmente, acompanhariam por quase toda vida.
José Roberto Goes e Manolo Florentino (1999), que qualificaram o
processo de formação da criança escrava como adestramento, apontam
aspectos que vão na mesma direção do estudo que anteriormente citamos: “alguns haviam começado cedo. O pequeno Gastão, por exemplo,
aos quatro anos já desempenhava tarefas domésticas leves nas fazendas
de José Araújo Rangel. Gastão nem bem se pusera de pé e já tinha um
senhor. Manoel, aos oito anos, já pastoreava o gado da fazenda Guaximba,
pertencente à baronesa de Macaé” (Goes & Florentino, 1999, p. 184).
Essas crianças aprendiam essas tarefas na convivência com os demais escravos do plantel. Era sobretudo no convívio com escravos adultos que a criança absorvia as habilidades necessárias ao exercício do seu
papel de escrava.
Embora as citações que destacamos registrem esse aprendizado tendo apenas como finalidade o trabalho, é difícil acreditar que nessa atividade se esgotava o aprendizado das crianças escravas. Provavelmente, a
primeira etapa do seu aprendizado era compreender a diferença que as
separava das pessoas livres. É difícil imaginar que esse aprendizado se
dava fora do mundo do trabalho, mas, mesmo que as duas coisas lhes
fossem transmitidas conjuntamente, talvez uma carga maior de intensidade fosse empregada na comunicação de sua condição de escrava.
Kátia Mattoso (1988), em estudo a respeito dos filhos das escravas,
estabelece algumas considerações que caminham nessa direção:
Mas a vida dos folguedos infantis é curta. É nos seus sete para oito anos que a
criança se dá conta de sua condição inferior em relação principalmente às
crianças brancas. As exigências dos senhores tornam-se precisas, indiscutíveis
142
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
[...] Ainda novo, o filho da escrava é olhado como escravo em redução, somente diferente do escravo adulto que mais tarde será, pelo tamanho e pela força.
É-lhe agora necessário adquirir todos os saberes, conhecer todas as artimanhas
que vão lhe permitir, o mais rápido possível, tornar-se aquele escravo útil que
dele se espera ser. Assim, o curto período na vida da criança que vai dos três
aos sete para oito anos é um período de iniciação aos comportamentos sociais
no seu relacionamento com a sociedade dos senhores, mas também no seu
relacionamento com a comunidade escrava [Mattoso, 1988, pp. 43-52].
Essa comunicação da sua condição e das competências que lhes eram
afins se realizava na convivência com senhores e escravos. Ambos tinham algo a ensinar à criança acerca da sua condição e quanto à maneira mais conveniente de se movimentar na sociedade hierarquizada,
minimizando os riscos inerentes ao seu cativeiro. Esse aprendizado se
fazia por uma impregnação proporcionada pelas relações travadas no
cotidiano. Aquilo que não fosse absorvido por esse processo era transmitido através do chicote que, como instrumento disciplinar, definia
com precisão o que deveria ser aprendido como habilidade e o lugar
exato ocupado pelo escravo na organização da sociedade.
Portanto, acreditamos que a partir da educação tradicional, como
um processo que transcorria em meio ao cotidiano do mundo privado,
onde os ritos e os ofícios voltados para o trabalho ganham uma dimensão pedagógica, é possível visualizar de uma forma coerente a formação das crianças que nasciam escravas e que deveriam rapidamente
aprender como lidar com essa escravidão que as deixava expostas aos
mais variados perigos.
Considerações finais
O processo de formação dos trabalhadores escravos parece passível
de uma abordagem educacional. Esta deve levar em conta as práticas
educacionais que são anteriores ao modelo escolar e avaliar em que
medida foram elas adaptadas aos cativos.
Nesse sentido o conceito de educação tradicional, tal como foi utilizado por Justino Magalhães para o entendimento da sociedade portu-
educação e escravidão
143
guesa, parece ser bastante coerente para a compreensão do processo de
formação do trabalhador escravo no Brasil. Esta coerência se evidencia
pela ênfase no espaço privado e pelo sentido pedagógico que empresta à
convivência, que é erigida à categoria de método de transmissão de conteúdos de uma geração à outra.
Tendo como referência os novos estudos que buscam compreender
o cotidiano da sociedade escravista, particularmente aqueles que se voltam para as crianças, podemos dizer que tanto o espaço privado como o
sentido pedagógico da convivência eram aspectos muito presentes na
vida das crianças escravas.
Esses aspectos nos levam a crer que a relação entre educação e escravidão deve merecer uma atenção maior por parte dos estudos que se
voltam para o escravismo. Através da educação, o processo de formação dos escravos pode ser evidenciado de maneira ampla, congregando
no seu interior as mais diversas formas de subalternização que foram
empregadas em relação a esses trabalhadores e os aspectos que foram
vitais para a organização e manutenção da própria sociedade escravista.
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A escola de Pretextato dos Passos e
Silva:
questões a respeito das práticas de
escolarização no mundo escravista*
Adriana Maria Paulo da Silva**
O presente trabalho procurar discutir a utilização de discursos estereotipados a respeito
da trajetória histórica da população afro-descendente no país – em geral, considerada
vítima do tráfico intercontinental e da escravidão –, partindo do pressuposto de que, para
a primeira metade do século XIX e antes, faz-se necessário considerar a enorme presença
de escravistas não-brancos atuando na sociedade brasileira e legitimando, por conseguinte, a própria instituição da escravidão.
HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO; RACISMO; HISTÓRIA DO
BRASIL; IMPÉRIO DO BRASIL.
The present work tries to make a discussion about the false analysis related to the historical
trajectory of afro-Brazilians in the country – in a general view considered as victims of
inter continental slave traffic, starting from the assumption that before the 19th Century
the existence of “not white” slaves completely integrated in a Brazilian society reforce
the slave institution.
SLAVE HISTORY; EDUCATION HISTORY; RACISM; HISTORY OF BRAZIL; BRAZILIAN
EMPIRE.
*
O presente texto faz uma síntese e rediscute algumas questões dos capítulos III, IV e
da Conclusão do livro Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos retos e pardos na Corte (Brasília, Editora Plano, 2000). A autora é particularmente grata aos pareceristas da Revista Brasileira de História da Educação pelas
sugestões por eles propostas para a publicação deste artigo.
** Doutoranda em história pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e mestre
em educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mails: [email protected] e [email protected].
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– Escuta aqui, ó crioulo... O que foi? Você andou dizendo por aí que aqui no Brasil
existe racismo.
– E não existe?
– Isso é negrice sua. E eu que sempre te considerei um negro de alma branca. É,
não adianta. Negro quando não faz na entrada...
– Mas aqui existe racismo.
– Existe nada. Vocês têm toda a liberdade, têm tudo que gostam. Têm carnaval,
têm futebol, têm melancia... E emprego é o que não falta. Lá em casa por exemplo,
estão precisando de empregada. Para ser lixeiro, para abrir buraco, ninguém se
habilita. Agora, para uma cachacinha e um baile estão sempre prontos. Raça de
safados. E ainda se queixam!
– Eu insisto, aqui tem racismo.
– Então prova, beiçola. Prova. Eu alguma vez te virei a cara? Naquela vez que te
encontrei conversando com a minha irmã, não te pedi com toda a educação que
não aparecesse mais na nossa rua? Hein, tição? Quem apanhou de toda a família
foi a minha irmã. Vai dizer que nós temos preconceito contra branco?
– Não, mas...
– Eu expliquei lá em casa que você não fez por mal, que não tinha confundido a
menina com alguma empregadona de cabelo ruim, não, que foi só um engano
porque negro é burro mesmo. Fui teu amigão. Isso é racismo?
– Eu sei, mas...
– Onde é que está o racismo, então? Fala, Macaco.
– É que outro dia eu quis entrar de sócio em um clube e não me deixaram.
– Bom, mas péra um pouquinho. Aí também já é demais. Vocês não têm o clube de
vocês? Vão querer entrar nos nossos também?
– Mas isso é racismo.
– Racismo coisa nenhuma! Racismo é quando a gente faz diferença entre as pessoas por causa da cor da pele, como nos Estados Unidos. É uma coisa completamente diferente. Nós estamos falando do criouléu começar a freqüentar clube de
branco, assim sem mais nem menos. Nadar na mesma piscina e tudo.
– Sim, mas...
– Não senhor. Eu, por acaso, quero entrar no clube de vocês? Deus me livre.
– Pois é, mas...
– Não, tem paciência. Eu não faço diferença entre negro e branco, para mim é tudo
igual. Agora, eles lá e eu aqui. Quer dizer, há um limite. Pois então.
a escola de pretextato dos passos e silva
147
– O...
– Você precisa aprender qual é o seu lugar, só isso...
– Mas...
– E digo mais. É por isso que não existe racismo no Brasil. Porque aqui o negro
conhece o lugar dele.
– É, mas...
– E enquanto o negro conhece o lugar dele, nunca vai haver racismo no Brasil.
Está entendendo? Nunca. Aqui existe o diálogo.
– Sim, mas...
– E agora chega, você está ficando impertinente. Bate um samba aí que é isso que
tu faz bem.
Vítimas, discriminados, injustiçados, marginalizados, marginais, violentados, violentos, ignorantes, ignorados, pobres, explorados, abandonados, excluídos, serviçais, incultos, ingratos, descontrolados, impertinentes, lascivos, domesticáveis, animalizados, alcoolizados, recalcados,
preguiçosos, burros, feios, carnavalizados, analfabetos, brutos, primitivos, sujos...
Seria cansativa a tarefa de elencar os inúmeros estereótipos imagéticos que identificam os indivíduos fenotipicamente considerados
“negros” ou “afro-descendentes” no Brasil. As várias formas de discriminação, de todos os tipos, ancoram-se na assertividade, na repetitividade
e no acriticismo deste tipo de fala arrogante que se julga apta a dizer,
economizando palavras, o que o “outro” é. Sua eficácia reside, justamente, nessa economia e nessa repetitividade que tendem, até mesmo, a
promover a subjetivação desses atributos por parte daqueles aos quais
se dirigem (Albuquerque Jr., 1999, pp. 15-21).
Recebi o texto anterior pela internet e, confesso, fiquei chocada por
ter reconhecido ser bastante provável que ele foi, esteja ou estará sendo
travado aqui e ali, agora, ontem ou amanhã. Seu autor, seja lá quem for,
reatualizou uma série de imagens e conceitos radicados na construção
daquilo que somos como pessoas negras ou não.
Eu mesma, ao reproduzi-lo aqui, também o estou atualizando. Sei disso. Entretanto, meu intuito, para além do incontrolável desejo de criticar a
existência deste tipo de prática discursiva e desta forma de atribuição de
148
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sentidos, é tentar propor que, talvez, nós sejamos (inclusive aqueles que
se dizem contrários a textos, práticas e discursos desse tipo) os responsáveis pela manutenção deste terrível lugar social destinado aos “negros”
no nosso presente, e não no nosso passado, notadamente, escravista.
O passado, “lá onde ele aconteceu” é impossível de ser tocado, reproduzido, trazido intacto até nós. Do nosso passado só temos vestígios
e eles são tudo o que temos. Tais vestígios não contam, por eles mesmos, uma história. Antes disso, eles só fazem sentido a partir de uma
determinada arrumação que sustente aquilo que nós, que lidamos com
eles, queremos contar e dependem de uma série de questões: da nossa
formação, das nossas posições (sempre) políticas, dos nossos projetos
de vida, das pressões às quais estamos submetidos, dos autores com os
quais trabalhamos, dos tipos de vestígios que temos disponíveis, enfim,
das nossas próprias histórias (De Certau, s/d., pp. 31-66).
Somos nós, historiadores, que decidimos, dentro das limitações impostas ao nosso ofício, o que vamos construir, ressaltar (e eternizar) e,
na mesma medida, querendo ou não, o que vamos omitir (e jogar no esquecimento). Cabe ao historiador, nas sociedades ocidentais, produzir
tanto uma parte da nossa memória (que também é produzida pela linguagem, pelas imagens, pelas práticas sociais, pelos gestos comuns, pelos espaços públicos etc.), quanto os nossos “esquecimentos”. Toda nova
história construída, por mais abrangente e engajada que seja, pretende
criar uma nova memória a respeito de um determinado tempo ou evento,
em contraposição às memórias anteriores que deles se tinham. Ou então,
serve para fazer as pessoas lembrarem de tempos ou eventos que as sociedades, grupos ou indivíduos “preferiam” ter esquecido. E, à medida
que uma nova história consegue se afirmar, as histórias anteriormente
consagradas ou mais antigas (que outrora foram firmes também) tendem
a cair no esquecimento. Da mesma forma, enquanto houver pessoas lembrando de coisas que outras queriam ver esquecidas, estas coisas continuarão sendo lembradas (Burke, 2000, pp. 67-90). Isso é válido para as
nossas análises historiográficas e para os nossos próprios trabalhos.
O objetivo das páginas a seguir não será inverter a direção do discurso da estereotipia. Não se tratará aqui de mostrar o quanto tais discursos
são mentirosos e o quanto os discriminados são os portadores de uma
a escola de pretextato dos passos e silva
149
verdade que necessita ser revelada com vistas à superação da discriminação da qual são vítimas. Isso porque, conforme penso, subjetivar a
vitimização implica, por um lado, reforçar e reatualizar esse tipo de discurso. E, por outro lado, implica pressupor que exista “fora de nós” uma
fala exterior, uma ação da qual não participamos, que nos oprima, nos
explore ou nos subjulgue. Diferentemente disso creio ser justamente por
estarmos imersos e sermos co-partícipes das relações de poder que atravessam todas as nossas práticas que podemos lutar contra as estereotipias
ou reforçá-las. Podemos ou não ocupar os lugares sociais que construímos e que nos constroem (Albuquerque Jr., 1999, p. 21).
Há tempos apontei algumas possibilidades para a construção de uma
história a respeito das práticas de escolarização formal de uma parcela
significativa da população afro-descendente e da legislação educacional,
na Corte Imperial, da primeira metade do século XIX. O presente trabalho pretende reapresentar algumas das várias questões para as quais ainda não encontrei respostas, problematizar algumas conclusões que talvez
tenham sido construídas de forma estereotipada e apresentar outras inquietações decorrentes da minha caminhada até aqui.
A escola do professor Pretextato dos Passos e Silva:
questões
Tratou-se de uma escola primária particular, desvinculada do aprendizado de ofícios específicos e urbana (na freguesia de Sacramento),
destinada a atender meninos “pretos e pardos” – cuja maioria dos pais
não possuía sobrenome e nem assinatura própria –, criada em 1853 por
um certo professor que se autodesignou “preto”. Ele requereu, em 1856,
ao então inspetor geral da Instrução Primária e Secundária da Corte
(Eusébio de Queirós), algumas concessões para a continuidade do funcionamento dessa escola1.
1
Sobre o requerimento de Pretextato: ANRJ: IE 1.397. Arranjo Boullier. Série Educação. Gabinete do Ministro. Ministério do Império. Requerimentos sobre instrução em ordem alfabética (1850-1890). Documentação avulsa.
150
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Pretextato dos Passos e Silva pediu ao inspetor sua dispensa das
provas de capacidade (um exame oral e um escrito), na época, uma exigência legal para o exercício do magistério.
Eusébio de Queirós, a quem eu acompanhava (ou perseguia) na documentação analisada recusando vários pedidos deste tipo2 – inclusive
aos professores da Sociedade Amante da Instrução da Corte –, não só
aconselhou ao Ministro do Império (Couto Ferraz) a deferir este pedido,
como também fez uma breve defesa a respeito da necessidade de existirem escolas destinadas àquele tipo de público3.
A rigor, de acordo com o decreto n. 1.331-A, de 17 de fevereiro de
18544, que sancionou o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte – cujo principal objetivo foi sistematizar o
controle do Estado sobre os professores em geral e, especificamente,
sobre os alunos das escolas públicas –, para que Pretextato abrisse formalmente uma escola ou continuasse a exercer o magistério, deveria:
ter a prévia autorização do inspetor geral; ser maior de 25 anos; declarar
atestados de capacidade profissional e moralidade; submeter-se ao exame profissional diante das autoridades da Inspetoria e declarar qual havia sido o seu meio de vida nos últimos cinco anos anteriores ao pedido
de autorização. Além dessas exigências, deveria ainda apresentar um
programa de estudos da sua escola; um projeto de regulamento interno
do seu estabelecimento; a descrição da situação física da casa onde lecionaria; uma listagem contendo os nomes e as habilitações dos professores já contratados ou a serem contratados pelo requerente5.
Para obtenção do deferimento, o professor montou um dossiê no
qual apresentou dois abaixo-assinados dos pais dos seus alunos em defesa da continuidade do funcionamento da sua escola; um atestado de
2
3
4
5
ANRJ: IE 4 2. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário [e primário].
Ministério do Império. 2ª seção. Instrução Pública no Município da Corte. Lançamento do Expediente. Rel.29, p. 9. n. 552. Documentação encadernada, pp. 17-19.
ANRJ: IE 4 4. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário [e primário].
Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios do Inspetor Geral. 1º semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, t. 17, parte 2ª, 12ª seção, 1854, pp. 63-64. A
respeito dessa legislação, consultar o excelente trabalho de Martinez (1996).
COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, t. 17, parte 2ª, seção 12ª, 1854, pp.63-64.
a escola de pretextato dos passos e silva
151
um vizinho seu; um abaixo-assinado de pessoas que o conheciam; um
atestado do inspetor de seu quarteirão enviado ao subdelegado da freguesia de Sacramento e um documento, escrito de próprio punho, ao
inspetor. Nesse documento redigiu uma súplica emocionada na qual fez
questão de ressaltar a imensa timidez (e quase covardia) que o impedia
de prestar os referidos exames feitos em presença das autoridades da
Inspetoria. Vale dizer que vários outros professores que pleitearam a
mesma concessão também argumentaram serem muito tímidos. A diferença, repito, foi que Eusébio de Queirós indeferiu todos os pedidos
presentes na documentação analisada, a exceção desse. Comecemos pelo
fim do texto do professor:
[...] e como o suplicante, Exmo. Senhor, se bem que não ignora estas matérias
[Leitura, Doutrina, as quatro principais operações da aritmética e Escrita pelo
método de Ventura]; contudo é assaz acanhado, para em público responder com
prontidão, todas as perguntas de um exame; e esta é a razão porque vem perante V. Exa. implorar a graça de o dispensar deste ato, que não recusaria se não
conhecesse a sua falta de coragem e de desenvolvimento momentâneo [...]6.
Entretanto, no arrazoado que antecede a sua súplica, também diferentemente de todos os outros professores e professoras da Corte que
tentaram algo semelhante, Pretextato fez uma crítica contundente ao
racismo das escolas da Corte, nas quais os meninos “pretos e pardos”,
ou eram impedidos de freqüentar ou, em freqüentando, não recebiam
“uma ampla instrução” porque eram pessoal e emocionalmente coagidos. E em razão de ele também ser “preto”, os pais daqueles meninos
imploram-lhe para que desse aulas aos seus filhos e ele o fez. Vejamos.
Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro de Estado, Inspetor Geral da Instrução Primária
e Secundária da Corte
6
ANRJ: IE 13 97 – Arranjo Boullier. Série Educação. Gabinete do Ministro. Ministério do Império. Requerimentos sobre instrução pública em ordem alfabética (18501890). Documentação avulsa. Este foi o documento principal ao qual todos os outros
(os abaixo-assinados, o atestado) foram anexados e cujo conjunto nomeei de
“dossiê”.
152
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Diz Pretextato dos Passos e Silva, que tendo sido convocado por diferentes
pais de famílias para que o suplicante abrisse em sua casa uma pequena escola de instrução primária, admitindo seus filhos da cor preta, e parda; visto
que em algumas escolas ou colégios, os pais dos alunos de cor branca não
querem que seus filhos ombriem com os da cor preta, e bastante se extimulhão;
por esta causa os professores repugnam admitir os meninos pretos, e alguns
destes que admitem, na aula não são bem acolhidos; e por isso não recebem
uma ampla instrução, por estarem coagidos; o que não acontece na aula escola do suplicante, por este ser também preto.
Por isso, anuindo o suplicante a estes pedidos, dos diferentes pais e mães dos
meninos da dita cor, deliberou abrir em sua casa, na Rua da Alfândega n.
313, a sua Escola de Primeiras Letras e nela tem aceitado estes ditos meninos, a fim de lhes instruir as matérias que o suplicante sabe, as quais são,
Leitura, Doutrina, as quatro principais operações da aritmética e Escrita, pelo
método de Ventura [...].
Eusébio de Queirós, ao aconselhar o deferimento da súplica do professor ao Ministro do Império, omitiu justamente as especificidades do
quesito cor, tanto com relação ao professor, quanto aos seus alunos.
Ilmo. Exmo. Sr.
Pretextato dos Passos Silva, diretor de uma escola de Instrução Primária destinada para meninos de cor, pede no requerimento junto dispensa das provas
de capacidade para continuar a dirigir seu estabelecimento.
O Conselho Diretor à vista dos documentos que junta o suplicante ao seu
requerimento, e atendendo a conveniência de haver mais estabelecimentos
em que possam receber instrução os meninos a que se refere o suplicante,
julga que se lhe poderia conceder a dispensa que requer.
Deus Guarde Vossa Excelência.
Ilmo. Exmo. Sr. Conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império.
Eusébio de Queirós Coutinho Mattoso Câmara7.
7
ANRJ: IE 4 4. Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário (e Primário).
Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios do Inspetor geral. 1o semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.
a escola de pretextato dos passos e silva
153
Durante a primeira metade do XIX – época na qual a experiência de
Pretextato se desenrolou –, as “cores”, além de uma caracterização racial,
indicavam também os lugares sociais (incluindo a nacionalidade) dos indivíduos por elas designados. Dessa forma, de acordo com um dos trabalhos no qual me baseei, o qualificativo “pardo” podia designar uma
“condição mais geral de não-branco” nascido livre, brasileiro ou não; e
os qualificativos “crioulo” e “preto” tendiam a designar os escravos ou
libertos brasileiros e africanos, respectivamente (Castro, 1995, pp. 33-35).
Com base nessas considerações, qual seria o sentido de uma escola,
politicamente criada como uma alternativa ao racismo de então,
vivenciado por “pretos”, “pardos”, “crioulos” e “cabras”, que restringiu
seu público apenas aos dois primeiros? Quem seriam os pais daqueles
alunos (que não cometeram crimes e nem deixaram bens na Corte)?
Seriam ingênuos ou libertos? Quem foi Pretextato? Onde aqueles meninos teriam estudado antes de tornarem-se alunos de Pretextato? Com
quem Pretextato havia aprendido?
Eusébio de Queirós, além de silenciar a respeito da cor de Pretextato
(algo fundamental para o argumento em prol do funcionamento da sua
escola), chamou indistintamente os meninos “pretos” e “pardos” de
“meninos de cor”. Se o leitor ou a leitora quiserem voltar ao texto, perceberão que Eusébio de Queirós nada falou a respeito da cor de Pretextato.
Aliás, esclarecendo um pouco o percurso da pesquisa, vale dizer que o
primeiro documento com o qual me deparei foi o deferimento de Eusébio
de Queirós e, daquele momento até o dia em que encontrei o dossiê do
professor Pretextato, confesso, não pensei que se tratasse de um professor “preto”. Foi Pretextato quem especificou, quem detalhou a sua cor e
as cores dos seus alunos.
Será que, para Eusébio de Queirós, aquelas distinções não faziam
nenhum sentido ou ele usou um eufemismo? Por que motivos ele, um
governante absolutamente comprometido com a manutenção da escravidão, teria concedido àquele professor – sem que o mesmo cumprisse
com quase nenhuma das exigências legais requeridas para o exercício
do magistério – o deferimento do seu pedido?
Encontrei na documentação da polícia da Corte, em 1853, um negociante chamado José Gonçalves de Carvalho Júnior, pedindo autoriza-
154
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
ção ao governo imperial, por intermédio da polícia, para que pudesse
receber: “[...] recomendado de Benguela, um pequeno de cor preta, menor de idade, de nome Guilherme da Costa Teixeira, filho legítimo de
Guilherme Teixeira”, o qual iria “educar-se num colégio da Corte por
ordem de seu pai, sendo o dito menor nascido de ventre livre”8. O ministro da Justiça, Souza Ramos, autorizou a entrada do menor.
Considerando a crítica de Pretextato ao racismo de então, vivenciado
especificamente pelos alunos de cor preta, onde, na Corte imperial, esse
menino estudaria naquela época?
O texto introdutório ao pedido de autorização acima descrito assim
disse: “sabendo que pela repartição da Polícia são obrigados a assinar
termo de reexportação os indivíduos pretos e pardos que da Costa da
África” quisessem aportar na Corte etc.
É claro que pode ser apenas uma coincidência o fato de no mesmo
ano da criação da escola de Pretextato ter chegado à Corte, para estudar,
um jovem africano que, do ponto de vista da designação racial/social,
enquadrava-se perfeitamente no público-alvo do professor preto. Contudo pode também não ser coincidência.
Poderíamos estar diante de uma das inúmeras formas que os traficantes de gente arrumaram para burlarem a lei que pôs fim ao tráfico de
escravos em 1850, ou não.
A escola de Pretextato funcionou legalmente, no mínimo até 1873,
quando foi despejado da casa onde lecionava9. Um ano antes foi listado,
com outros donos de estabelecimentos particulares da Corte – aqueles
que eram reconhecidos pelas autoridades públicas da Corte e, creio que,
8
9
ANRJ: IJ 6 216. Série Justiça. Requerimentos da Polícia. Ofícios com anexos (1853).
Para o ano de 1872, encontrei a escola do professor Pretextato listada em meio aos
estabelecimentos particulares de instrução primária masculina da freguesia de Sacramento nos “Ofícios das delegacias em resposta a circular de 8 de janeiro de
1872”, pp. 26-27, os quais compõem o Apêndice ao Relatório da Inspetoria Geral
da Instrução Primária e Secundária da Corte que, por sua vez, é parte integrante do
Relatório do Ministério do Império (RMI), Ministro João Alfredo Corrêa Oliveira,
Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1872. E para o ano de 1873, encontrei o
professor sendo despejado do prédio que ocupava em razão da falta de pagamento
de dois meses de aluguel à Santa Casa de Misericórdia. Cf. ANRJ: Juízo da 3ª Vara
Cível. Processo 8080 – caixa 1037.
a escola de pretextato dos passos e silva
155
eram uma minoria –, no relatório do ministro do Império. Nesse registro
sua escola contava com 15 alunos: 14 nacionais e um estrangeiro10. Também nesta documentação, nenhuma menção foi feita à sua cor ou às
especificidades étnicas de seus alunos11. Levando-se em consideração
uma possível manutenção da especificidade do público ao qual Pretextato
destinou seu magistério décadas antes, seria aquele estrangeiro um
africaninho, ou não? Quantos meninos passaram por Pretextato? Quantos
outros Pretextatos atuavam na Corte da década de 50 ou antes? Quem
poderia pagá-lo, se é que ele cobrava, por seu magistério? Como funcionaria aquela escola e outras daquele tipo?
Com relação a possíveis informações sobre a história pessoal de
Pretextato, bem como sobre as histórias dos pais dos seus alunos, por
enquanto, nada mais consegui. Pretextato, conforme afirmei, nada apresentou à Inspetoria sobre o seu passado, estado civil e meio de vida
anteriormente ao magistério. Ele não deixou bens na Corte e, até agora,
continuo sem outras pistas a seu respeito.
Sobre os pais dos seus alunos, eles perfizeram um total de 15 pessoas que aparentemente estavam representando, cada uma, uma família.
Ou seja, não me parece que casais tenham assinado o abaixo-assinado,
mas apenas um dos pais das crianças.
Dessas 15 pessoas, 11 eram homens e nenhum deles deixou bens na
Corte e nem cometeu nenhum delito (o que dificulta encontrá-los na
documentação disponível no Arquivo Nacional). Dentre os homens, 5
tiveram suas assinaturas feitas a rogo de e todas as mulheres o tiveram.
Ou seja, rogaram (pediram) a outras pessoas que sabiam ler e escrever
que assinassem seus nomes. Dos que assinaram, e que supostamente
saberiam ler e escrever, 4 possuíam uma letra sofrível, o que poderia
indicar que pouco praticavam a escrita. Dois homens e duas mulheres
não possuíam sobrenomes e apenas um homem, além de assinar firmemente seu sobrenome no abaixo-assinado, ainda declarou morar na Rua
10
RMI, “Apêndice ao Relatório da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte”, op. cit., p. 26.
11 Nesta listagem, os padrões de especificação dos alunos foram a idade (maiores ou
menores de 7, 14 ou 21 anos); a nacionalidade (brasileiros ou estrangeiros) e a
crença religiosa (católicos ou “acatólicos”). RMI, Apêndice op. cit, pp.3-63.
156
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
do Sabão, n. 22. Caso houvesse mais informações sobre essas famílias,
seria possível articulá-las aos recentes estudos sobre a família escrava
(e liberta), os quais têm demonstrado, para as regiões de plantations do
Sudeste, principalmente, a regularidade, a longevidade das uniões familiares e a importância da presença paterna nos laços familiares estabelecidos entre cativos e seus descendentes (Slenes, 1999; Castro, 1995;
Florentino & Góes, 1997).
A escola dos meninos pretos e pardos, o empenho dos seus pais e do
seu professor e a aceitação silenciadora de Eusébio sugeriram-me a possibilidade de o decreto n. 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, ter tentado criar – para além de uma instância centralizadora da instrução pública
primária e secundária no município da Corte e de uma série de mecanismos de controle do trabalho docente –, interdições ao ingresso, nas escolas públicas, daquele público para o qual Pretextato lecionava.
O artigo 64 desse decreto determinou que os pais, tutores, curadores
ou protetores de meninos maiores de 7 anos eram obrigados a lhes proporcionar o aprendizado das primeiras letras, sob pena de multa, fosse
em escolas públicas, privadas ou no ambiente doméstico.
Vale a pena fazer uma breve digressão neste ponto, para o fato de
que, enquanto fazia esta pesquisa, encontrava, principalmente nas fontes governamentais, queixas freqüentes por parte das autoridades da Corte
a respeito do “desleixo” das famílias pobres em não cumprirem a lei da
obrigatoriedade, em não cuidarem que seus filhos freqüentassem as escolas e permanecessem nelas. Pois bem, em um dos abaixo-assinados
dos pais dos meninos de cor preta, datado de janeiro de 1855, creio que
justamente essa legislação foi utilizada como um segundo argumento
em prol da continuidade do funcionamento da escola:
Nós abaixo-assinados vendo que os meninos de cor preta pouco ou nenhum
adiantamento obtém nas atuais aulas, instamos e pedimos ao ilustríssimo
senhor Pretextato dos Passos e Silva, a fim de que o mesmo senhor se incumbisse de ensinar nossos filhos contentando-nos com que eles soubessem ler
alguma coisa desembaraçado, escrever quanto se pudesse ler, fazer as quatro
espécies de conta, e alguma coisa de gramática. O dito senhor, anuindo ao
nosso pedido, abriu em sua casa uma escola para a qual entraram nossos
a escola de pretextato dos passos e silva
157
filhos e alguns tinham de entrar neste ano. Por cujo motivo nós lhe estamos
muito obrigados e muito satisfeitos com o seu ensino, moralidade e bom
comportamento. Todos nós fazemos votos para que o mesmo senhor continue a dirigir a dita escola, porque só assim nossos filhos saberão alguma
coisa, ainda que não seja com perfeição, ao menos melhor do que até agora.
E por ser tudo isso verdade, nos assinamos [grifos meus]12.
E no artigo 69 daquele regulamento apareceu explicitamente, pela
primeira vez, na legislação educacional da Corte, o tipo de aluno que
poderia ser matriculado e freqüentador das escolas públicas.
O texto da lei aponta para a possibilidade de haver, à época, duas
formas de freqüência às escolas públicas: havia os matriculados e os
freqüentadores.
No artigo 69: “Não serão admitidos à matrícula, nem poderão freqüentar as escolas”, a presença dos advérbios de negação “não e “nem”
indicam que podia haver duas situações: crianças matriculadas e crianças que apenas freqüentavam as escolas. Nesse sentido, o que a lei fez
foi determinar que as crianças, para estarem em qualquer uma destas
situações (de freqüentadoras ou de matriculadas) deveriam ser livres (o
que não era uma novidade à época), não portadoras de doenças contagiosas e estarem (esta foi a novidade) vacinadas.
Naquela época, basicamente três doenças assolavam o Império: a
tuberculose – para a qual não havia vacina –; a febre amarela – para a
qual também não havia vacina e que atacava, principalmente, a população branca imigrante; e a varíola – cuja vacinação fora introduzida no
Império em 1804 e que atacava, principalmente, os negros e seus descendentes.
Estudos recentes já apontaram a resistência da população em geral à
vacinação antivariólica e as origens culturais dessa resistência em meio
à população negra e seus descendentes.
Tratando-se então de possibilidades, se aos escravos já não era possível freqüentar as escolas públicas de primeiras letras, para os libertos
sadios – também teoricamente obrigados a providenciarem a escola12
RMI: Ministro João Alfredo Corrêa de Oliveira, op. cit.
158
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
rização de suas crianças – a obrigatoriedade da vacinação pode ter criado mais uma interdição cultural àquele acesso. Talvez tenham ido procurar outras escolas, as privadas, populares e silenciadas, como a de
Pretextato.
Com relação à posição de Eusébio – angolano; filho de um alto
funcionário da coroa portuguesa tanto em Angola quanto no Brasil; exaluno da Faculdade de Direito de Olinda e membro da sua primeira
turma; ex-juiz do crime da freguesia de Sacramento na Corte; ex-chefe
de polícia da Corte; ex-ministro da Justiça e um dos artífices da lei
antitráfico (Sisson, 1999, pp. 25-31) –, admito vê-la com uma certa desconfiança, no mínimo, porque, conforme aprendi com Mattos (Mattos,
1990), Eusébio, Couto Ferraz e Rodrigues Torres compuseram a chamada “trindade Saquarema”. Além disso, a seu respeito, obtive uma
pista com Holloway que, ao descrever as ações de Eusébio como Chefe
de Polícia, em 1839, quando tinha apenas 26 anos, considerou-o quase
um filósofo do bom policiamento:
Assim como as épocas de maior ventura para as nações são as que menos
campo oferecem ao historiador, assim também quanto mais feliz tem sido a
polícia preventiva tanto menor é o número de fatos que ela pode referir
[Holloway, 1997, p. 171].
Enquanto Holloway interpretou o texto anterior como uma demonstração do quanto a polícia carioca, após 1831, passou a ocupar-se com a
prevenção criminal, eu o considerei uma pista acerca da atuação de
Eusébio (e quem sabe, posteriormente, dos Saquaremas) na condução
da administração e controle públicos, com base na qual procurou, talvez
deliberadamente, não apenas assegurar a implementação da hegemonia
Saquarema, mas também construir uma história. Não creio ter sido vã
sua menção ao ofício do historiador. Encarei essa assertiva como um
princípio político fundamental da sua ação.
Quando eu chamo atenção para os cargos que Eusébio exerceu, não
estou querendo, com isso, sustentar que sua presença no aparelho de
Estado seja significativa por si mesma. Afinal, os Luzias também ocuparam cargos no Estado, e no entanto, como bem demonstrou Mattos,
a escola de pretextato dos passos e silva
159
foram os Saquaremas que, efetivamente, conseguiram imprimir uma
direção à política imperial, estando dentro e fora do Estado (Mattos,
1990, pp. 155-157).
O que me chama atenção nessa assertiva de Eusébio é justamente o
fato de ela expressar uma determinada concepção de como deveria ocorrer a orientação dos registros criminais da Corte. O chefe de polícia
demonstrou preocupar-se não com o presente, mas com a forma como a
representação daquele presente serviria para a construção de um futuro.
Preocupou-se com interpretação que as gerações futuras fariam do devir,
sugerindo que aquele presente deveria se encarregar de moldá-lo, pelo
menos quanto à eficácia da sua polícia.
Na medida em que encarei essa assertiva como um princípio de direção política, creio que ele a levou consigo ao Ministério, à Inspetoria
de Instrução e a todos os lugares por onde tenha passado.
Com Mattos aprendi que, quando da abolição do tráfico, coube à
direção Saquarema, da qual um dos expoentes era Eusébio, encarregar-se de apresentá-lo não como o resultado das indiscutíveis e intoleráveis pressões britânicas sofridas pelo Império à época, mas sim como
um fruto “da honra e da soberania nacionais” (Mattos, 1990, p. 165).
Para exercerem uma dominação e imprimirem uma direção ao Império que procuravam consolidar – consolidando e expandindo seus interesses como classe senhorial –, os Saquaremas necessitaram, também,
construir uma história. E a Corte, como palco privilegiado desse processo, guarda os gritos e os silêncios tanto da história que se pretendeu construir quanto da história que se pretendeu ocultar. Talvez o
próprio Eusébio seja, ele mesmo, um indivíduo de fronteira: nas relações das elites africanas, brasileiras e portuguesas, nas relações entre
o poder e o vulgo, entre livres e escravos, entre a história contada e
história vivida.
Creio ser possível pensar as experiências de letramento vivenciadas
pelos homens e mulheres submetidos ao cativeiro e seus descendentes
ainda como algo especial, sem dúvidas. No caso de Pretextato, sua
intencionalidade política, às vezes captável aos olhos do historiador
contemporâneo e às vezes fugidia, pode ser compreendida em razão de
ele também ter transitado nas fronteiras de vários tipos de experiências
160
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
culturais: de classe, de raça, de estatuto jurídico, de nacionalidade, de
religião13. O fato de seu pedido ter sido excepcionalmente deferido indica que ele conseguiu, no mínimo, acionar em que seu favor as práticas
clientelistas características da sociedade imperial. Mas qual terá sido o
sentido da sua luta contra o racismo? Lutar contra o racismo teria significado lutar contra a escravidão?
Propondo um outro olhar...
No caso da atuação de Pretextato na Inspetoria, considerei-a, na época
em que fiz a dissertação, estratégica. Ou seja, ele provavelmente teria
utilizado em seu favor alguns dos estereótipos que identificavam os indivíduos “pretos” na sociedade escravista para conseguir sensibilizar as
autoridades educacionais da Corte e conseguir o deferimento para a continuidade da sua escola, sem que necessitasse prestar os exigidos exames profissionais. Nesse sentido ele, inteligente, crítico, esperto e
engajado, teria agido daquela forma para burlar as duras regras da sociedade escravista a qual o oprimia e aos seus alunos.
Olhei para Pretextato com muita alegria e construí uma argumentação razoável para sustentar o argumento anteriormente descrito, tendo,
até mesmo, apresentado outros exemplos de práticas semelhantes – a partir de outros trabalhos (Villalta, 1998; Chalhoub, 1990; Carvalho, 1998;
Wissenbach, 1998) – de uso político das letras, cuja intencionalidade seria
potencialmente transformadora de uma dada situação ou uma dada realidade, por parte de escravos, ex-escravos e seus descendentes.
13
Quando pensei esta questão, considerei-a um insight meu. Entretanto, conversando
com o professor Marcus Carvalho (UFPE), ele chamou minha atenção para o fato de
que Kenneth M. Stramp, em 1956, havia proposto claramente essa possibilidade para
a sociedade escravista norte-americana. Tendo em vista que o trabalho de Stramp foi
a grande obra de referência sobre a escravidão norte-americana até o aparecimento
de “Roll, Jordan Roll” de Eugene Genovese (publicado no Brasil pela Paz e Terra e
CNPq, em 1988, com o título A terra prometida: o mundo que os escravos criaram),
suponho que essa perspectiva me deva ter sido ensinada em algum momento destes
anos de formação e que somente há pouco tempo necessitei “acioná-la”. Cf. Stamp,
1956. Ver especialmente o capítulo VIII: “Between two cultures”.
a escola de pretextato dos passos e silva
161
Entretanto, numa tentativa de autocrítica, fico me perguntando por
que será que não ressaltei, carregando nas tintas, o fato de que não só
aquele professor, mas também vários outros, utilizaram o mesmo argumento da timidez e não foram bem-sucedidos? Por que será que não me
perguntei se esse argumento poderia, talvez, na época, corresponder mais
aos estereótipos referentes ao mal falado ofício do magistério que aos
negros, pretos ou pardos? Teria eu incorrido no outro extremo do discurso
da estereotipia e teria tentado “revelar” a “verdadeira intencionalidade” da
experiência de Pretextato, a saber, a liberdade; como se esta fosse, necessariamente, a única coisa que um “preto” (vitimado por não tê-la) pudesse
querer numa sociedade que escravizava os seus, a meu ver, iguais?
No ano seguinte do decreto n. 1.331-A, os professores particulares
da Corte devem ter passado por um susto que, talvez, Pretextato tivesse,
até por vias particulares – algo tão comum na sociedade imperial – querido evitar. De acordo com o registro do Relatório do ministro do Império, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, dos 77 professores chamados a
realizarem o exame de habilitação profissional, apenas 31 foram aprovados. A respeito daquele resultado, o ministro comentou que: “[...] de
per si só demonstra a todas as luzes da evidência o quanto a especulação
tinha invadido o ensino e quanto se abusava da boa-fé dos pais de família, a custa do seu dinheiro e, o que é mais grave, viciando-se a inteligência de seus filhos”14.
Ainda em 1856, Eusébio de Queirós assumira a Inspetoria da Instrução e, conforme a direção do projeto Saquarema de consolidação imperial, do qual foi um dos artífices, creio que tenha atuado até mesmo para
dar continuidade ao processo de reabilitação do magistério e, conseqüentemente, de convencimento social acerca dos benefícios da escolarização
primária submetida ao controle governamental. Esta tentativa indica o
quanto o magistério era, pelo menos na visão governamental, uma profissão socialmente desprestigiada. Caberia ao governo, convencido desse
desprestígio em meio à população em geral, redimir publicamente aqueles
profissionais para que seu projeto lograsse o sucesso almejado.
14
RMI: Ministro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1856, p. 61.
162
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
Não basta porém decretar a instrução primária [e gratuita] como uma
necessidade social e proclamá-la como primeiro elemento de civilização e
progresso: é mister também que o legislador, para não tentar uma obra impossível e consagrar um princípio estéril, eleve e reabilite perante o público
aqueles a quem encarrega o ensino da mocidade, inspirando-lhes a consciência de sua importante missão e o sentimento da própria dignidade [...]15
Tenho a impressão de ter limitado, reduzido Pretextato apenas à sua
condição mais geral de “preto” sem procurar vê-lo, conforme deveria,
como um professor da Corte. Teria eu sucumbido, sem querer, à tese de
Bernardo Pereira de Vasconcelos que, nos idos de 1826, sustentou que,
do ponto de vista jurídico, “a presunção é que um homem de cor preta é
sempre escravo” (apud Carvalho, 1998, p. 248)?
Retomando o início deste texto e, neste momento, limitando-me a
pensar apenas nos estudos sobre o século XIX e sobre o escravismo
brasileiro, estou convencida de que é preciso evitar os anacronismos e
os excessos militantes no trato da trajetória histórica da população afrodescendente no país.
Enquanto vigeu a escravidão, isto é inegável, homens e mulheres
africanos ou afro-descendentes foram escravizados e, como escravos,
estiveram submetidos aos limites da violência que esse tipo de relação
de produção, na modernidade, foi capaz de forjar. Entretanto, isso não
significa que todos os não-brancos foram escravos e que todos eles lutaram deliberadamente, desde tempos remotos, pela liberdade ou pelo fim
da escravidão como instituição.
A historiografia recente sobre escravidão tem demonstrado, para
a primeira metade do XIX e para o período colonial, o quanto a propriedade escrava era pulverizada, em diversas regiões do Brasil, entre
pobres e ricos, brancos e não-brancos e o quanto essa pulverização foi
fundamental para a manutenção da legitimidade da escravidão. Ou
seja, diferente do estereótipo do “senhor de engenho” ou do “barão do
café” – homens brancos, muito ricos e donos de algumas dezenas (às
15
Relatório do Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte, Eusébio
de Queirós Coutinho Mattoso Câmara. Anexo ao RMI, 1856, op. cit. p. 5.
a escola de pretextato dos passos e silva
163
vezes, centenas) de escravos –, a trajetória escravista brasileira, pelos
campos e cidades, contou, em quase todas as regiões, com a presença
de senhores e senhoras donos de um ou dois escravos. Gente de todo
tipo, brancos ricos, brancos pobres, pretos, pardos e cabras nascidos
livres ou libertos, inclusive escravos, puderam (quiseram e lutaram
por isso) ser donos de gente até a primeira metade do XIX (Barickman,
1999, pp. 30-31; Castro, 1995).
Particularmente, o trabalho de Barickman, a respeito da impressionante presença de senhores não-brancos no Recôncavo baiano – que
correspondiam a mais de um terço dos senhores das duas freguesias que
o censo analisou, pertencentes a uma região considerada um dos principais centros escravistas do Brasil e das Américas nesse período –, é bastante esclarecedor. Esse autor argumentou, muito convincentemente, que
nem a “brancura” definia exclusivamente o senhorio e muito menos a
“pretura” definia exclusivamente a escravidão. Além disso, brindou-nos
com a tradução de um trecho da rara “biografia” – publicada em Detroit,
nos idos de 1854 – de um certo Mahommah G. Baquaqua, um ex-escravo africano que trabalhou no Brasil, no auge da escravidão, segundo o
qual, no dizer de Barickman:
“‘A posse de escravos, gera-se do poder. Quem tiver os meios para comprar seu semelhante com o metal mesquinho pode se tornar um senhor de
escravos, independentemente de sua cor, seu credo ou sua pátria... o homem de cor (colored man) escravizaria seu semelhante com a mesma rapidez que o branco, se tivesse o poder’. Ao fazer esses comentários,
Baquaqua valeu-se das suas próprias experiências; pois, na África, foi reduzido à escravidão não por europeus, mas sim por seus conterrâneos africanos. Ainda na África, passou pelas mãos de mais de um senhor africano.
Depois, enquanto esteve no Rio de Janeiro, ‘um homem de cor’ tentou
comprá-lo, mas, por um motivo ou outro, não chegou a fechar o negócio”
[Barickman, 1999, p. 34].
Embora seja desconfortante essa argumentação, ela é necessária.
Necessária não para negar o racismo ao qual estamos submetidos e que,
em larga medida, recriamos; tampouco para fazer reviver os tristes ven-
164
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
tos teóricos decorrentes da tese da “democracia racial”. Também não se
trata de insistir no cinismo das argumentações que sustentam serem os
negros mais racistas que os brancos ou vice-versa.
Trata-se, sim, de tentar romper com esses discursos que, por um
lado, culpabilizam e, por outro, vitimam brancos e não-brancos, respectivamente, por todas as mazelas historicamente construídas ao longo de
quase 500 anos de escravidão no Brasil, cuja força da tradição é tão
grande que parece impedir uma atuação enérgica para superação das
graves desigualdades que atravessam todas as nossas práticas, dentre
elas nossas reflexões teóricas.
Contrariamente às imagens produzidas pela maior parte da historiografia da educação, notadamente republicana, o caso de Pretextato, a
continuidade do estudo de outras escolas ou práticas de escolarização
semelhantes à dele, anteriormente aos anos de 1970 – quando, em tese,
por conta da emergência da problemática da abolição do trabalho servil
a temática da educação popular tomou fôlego –, podem nos ajudar a
repensar a idéia, algo difundida, de um Império de iletrados, dominado
unicamente por brancos cruéis e governantes deliberadamente obtusos,
que relegaram ao analfabetismo e à miséria os “coitados” dos escravos e
seus descendentes – cujos ancestrais foram inocentemente arrancados
da sua terra natal – que, se tivessem tido as oportunidades que lhes são
devidas, teriam feito deste país um torrão feliz e livre das desigualdades.
Com base nesse tipo de argumento, creio, a nossa jovem República criou
sua própria história e insiste (com poucas resistências) em perpetuá-la.
Fontes e bibliografia
Manuscritos citados no texto
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ):
IE 4 2 – Arranjo Boullier. Série educação. Ensino Secundário (e primário). Ministério do Império – 2ª seção. Instrução Pública no Município da
Corte. Lançamento do Expediente. Documentação encadernada.
IE 4 4 – Arranjo Boullier. Série Educação. Ensino Secundário (e primário).
Ministério do Império. Instrução Primária e Secundária da Corte. Ofícios
do Inspetor Geral. 1º semestre de 1856 – lata 789. Documentação avulsa.
a escola de pretextato dos passos e silva
165
IE 13 97 – Arranjo Boullier. Série Educação. Gabinete do Ministro. Ministério do Império. Requerimentos sobre instrução pública em ordem
alfabética (1850-1890). Documentação avulsa.
IJ 6 216 – Série Justiça. Ministério da Justiça. Ofícios da Polícia (1853).
Juízo do Direito da 3ª Vara Cível. Processo n. 8.080 – caixa 1.037.
Fontes impressas citadas no texto
(RMI) Relatórios do Ministro do Império de 1856 e 1872
Relatórios do Inspetor Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte
de 1855-1856.
Artigos e livros citados no texto
ALBUQUERQUE, Jr. (1999). A invenção do Nordeste e outras artes. Recife, FJN:
Ed. Massangana; São Paulo: Cortez. Prêmio Nelson Chaves de 1996 na
área de História.
BARICKMAN, B. J. (1999). “As cores do escravismo: escravistas ‘pretos’, ‘pardos’ e ‘cabras’ no Recôncavo baiano, 1835”. População e família, São Paulo, n. 2, pp.7-59.
BURKE, Peter (2000). Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
CARVALHO, Marcus J. M. de (1998). Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo
no Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE.
CASTRO, Hebe Maria Mattos de (1995). Das cores do silêncio: os significados
da liberdade no sudeste escravista- Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional.
CASTRO, Hebe Maria Mattos de & SCHNOOR, Eduardo (orgs.) (1995). Resgate –
uma janela para o oitocentos. Rio de Janeiro: Topbooks.
CHALHOUB, Sidney (1990). Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras.
. (1999).Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial.
2. ed. São Paulo: Cia. das Letras.
COLEÇÃO DE LEIS
seção 12ª.
DO IMPÉRIO DO
BRASIL (1854). Rio de Janeiro, t. 17, parte 2ª,
166
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
DE CERTAU, Michael (s/d.). A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
GENOVESE, Eugene (1988). A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro, Brasília: Paz e Terra, CNPq.
HOLLOWAY, Thomas H. (1997). Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas.
MARTINEZ, Alessandra Frota (1996). Educar e instruir. A instrução popular na
corte imperial (1870-1889). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.
MATTOS, Ilmar Rohloff de (1990). O tempo Saquarema. A formação do Estado
Imperial. 2. ed. São Paulo: Hucitec.
PAULO DA SILVA, Adriana Maria (2000). Aprender com perfeição e sem coação:
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SISSON, S. (1999). A Galeria dos brasileiros ilustres. 2 vols. Brasília: Senado
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SLENES, Robert W. (1999). Na senzala uma flor: esperanças e recordações da
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VILLALTA, Luiz Carlos (1998).“O que se fala e o que se lê: língua, instrução e
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Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Cia.
das Letras, pp. 331-386.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez (1998). Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec.
Resenhas
As luzes da educação: fundamentos, raízes
históricas e prática das aulas régias no Rio de
Janeiro (1759-1834)
autora
Tereza Maria
Rolo Fachada Levy Cardoso
cidade
Rio de Janeiro
universidade UFRJ
ano
1998
outro
Tese de doutorado
Lançando luz sobre a educação brasileira
Um rico e importante relato do processo de implantação e do funcionamento do sistema de aulas régias entre 1759 e 1834 no Rio de
Janeiro. Essa é uma boa definição para a obra As luzes da educação:
fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de
Janeiro (1759-1834), tese de doutorado defendida por Tereza Cardoso,
em 1998, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A autora produz uma importante referência para a compreensão
de seu objeto de estudo, desenvolvendo um quadro contextual amplo
(abrangendo os séculos XVI, XVII e XVIII) e fundamental para entender as relações existentes entre o cenário europeu da época – a
Revolução Científica que ganhava força, as novas teorias filosóficas
sobre a sociedade e o progresso científico-tecnológico – e os acontecimentos em Portugal. A partir disso, é possível saber que a expulsão
dos jesuítas e as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal
estão intimamente relacionadas às revoluções ocorridas na ciência,
na filosofia, na cultura e na mentalidade européias, inserindo-se num
cenário que evidenciava o abandono e crítica da tradição escolástica,
o desejo de domínio sobre a natureza, a crença no progresso inexorável
e benéfico e a proliferação dos ideais do despotismo esclarecido. A
educação passava a ser aclamada por todos os entusiastas da nova
ordem por seu potencial de equalizar e redimir a sociedade, sendo
encarada como um instrumento de formação dos cidadãos deste Esta-
168
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
do moderno em gestação e de desenvolvimento nacional em todos
os sentidos.
Nesse contexto, Portugal foi a nação pioneira no tocante às reformas que apontavam para a instituição de uma Monarquia nos moldes
do despotismo esclarecido, e a ordem dos jesuítas, com sua ratio
studiorum calcada na tradição escolástica e seu poder sobre a população indígena brasileira, passou a ser vista como um obstáculo à
reestruturação do Estado português. Diante disso, foi primeiro decretada a Lei do Diretório – que obrigava o ensino da língua portuguesa
aos indígenas e laicizava as missões – e posteriormente a expulsão de
todos os jesuítas. Rompia-se assim com a tradição para dar lugar ao
novo projeto político, conforme exigia o movimento da Ilustração.
Ao debruçar-se sobre as reformas efetuadas – mais especificamente a Reforma dos Estudos Menores, de 1759, e dos Estudos Maiores, de 1772 –, Tereza Fachada tem o cuidado de recuperar uma
significativa produção historiográfica a respeito do tema, passando
por diversos autores e suas interpretações acerca dos fatores que
motivaram a Reforma, as quais responsabilizam ora a economia,
ora a luta contra a Igreja, ora o Iluminismo ora o projeto político.
Diante desse quadro, porém, a autora limita-se a concluir que a Reforma deve ser compreendida no contexto da implantação do despotismo esclarecido, o que talvez revele sua opção por produzir antes
um relato minucioso do período em questão do que uma ampla e
profunda reflexão sobre a motivação e o significado da instituição
do sistema de aulas régias.
Com a Reforma dos Estudos Menores (que correspondem ao
ensino atual em seus níveis fundamental e médio), efetivada através
do Alvará de 28 de junho de 1759, expressavam-se definitivamente
as principais intenções da Coroa Portuguesa: criar um sistema de
ensino público e utilizá-lo como lhe conviesse. Sinal disso é que a
legislação a respeito do que deveria ser ensinado era extremamente
rígida e detalhada, o que soa paradoxal frente às condições objetivas
precárias encontradas à época, tanto em Portugal quanto nas colônias. Isso, aliás, torna-se claro durante o relato dos percalços encontrados pelo diretor geral de estudos, Tomás de Almeida, que se vê
obrigado, ante o descaso do rei D. José, a improvisar decisões e
soluções. Além disso, Almeida foi obrigado a tolerar o boicote do
Marquês de Pombal às suas iniciativas, já que era um dos únicos
resenhas
que não temiam o ministro. Esse conflito culmina com a vitória de
Pombal e a extinção do cargo de Tomás de Almeida, em 1771, o que
encerra a primeira fase da Reforma. A avaliação dessa fase de implantação pode ser resumida em uma única palavra: falta. Falta de
professores, de materiais, de verbas, de salários. No Brasil, a situação era ainda mais penosa, pois a ele haviam sido destinados apenas
5% de todas as aulas régias oferecidas pelo governo e, além disso,
até 1765 não havia sido nomeado um só professor público, o que
deixava a educação a cargo da iniciativa privada da elite.
A certeza do fracasso da primeira fase lança as bases para a
Reforma dos Estudos Maiores (correspondentes ao atual ensino superior), trazendo novas preocupações: o emprego de princípios
pedagógicos que contemplassem os novos valores científicos a desenvolver na Universidade de Coimbra; o financiamento de todos
os aspectos do novo sistema educacional através de um novo imposto denominado Subsídio Literário e a implantação efetiva e
massiva das aulas régias.
O relato do desenrolar da Reforma leva à percepção de que,
apesar das boas intenções da Coroa Portuguesa – principalmente de
D. João VI, monarca interessado e informado sobre o estado em que
se encontrava a educação de seu reino –, o contraste com as condições objetivas era gritante, e muito pouco era feito em termos concretos. A situação dos professores era especialmente difícil, pois
eram vítimas de enormes exigências e de um profundo descaso.
Ao analisar a implantação do sistema de Aulas Régias no Rio
de Janeiro, Tereza Fachada traça um perfil da vida cultural da cidade e mostra as profundas mudanças que a chegada da Corte Portuguesa em 1808 operou nesse sentido. A educação brasileira, aqui
entendida como instrumento de formação de quadros administrativos, de difusão da cultura e de realização do ideal de felicidade pública, também sofreu o impacto do governo de D. João VI e posteriormente dos imperadores, influenciados que eram pelo pensamento
liberal. Assim, cursos superiores foram criados, a discussão sobre a
necessidade de um Tratado sobre educação foi fomentada e as intenções de universalização e ampliação da oferta escolar eram as
melhores possíveis, mas nada disso acarretou qualquer melhora no
cenário educacional do país. Isso ocorreu porque um dos traços fundamentais da elite agrária brasileira da época era a adoção de um
169
170
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
discurso liberal aparente e superficial, que nunca serviu efetivamente
para regular qualquer prática, refletindo a contradição entre as influências iluministas vindas da Metrópole e o desejo de manutenção
da ordem colonial.
O último capítulo da obra, dedicado à descrição detalhada das
peculiaridades da estrutura de funcionamento do sistema de aulas
régias na cidade do Rio de Janeiro, é marcado pela profusão de documentos oficiais, relatos e exemplos. Isso tudo revela a profunda
pesquisa da autora sobre a realidade das condições do sistema educacional brasileiro e o cotidiano escolar que as aulas régias encerravam. Nesse capítulo percebem-se algumas características marcantes
do sistema, tais como a rígida fiscalização exercida pelo Estado e a
desvalorização da figura do professor, alvo de vigilância constante
e pago com baixos salários.
Além disso, outra marca do texto de Tereza Fachada é a primazia da descrição dos fatos sobre a crítica deles. Talvez isso seja uma
influência do referencial teórico utilizado – a vertente da história
política, que adota a política como articuladora da sociedade –, pois
tanto a afirmação de que a educação era parte de uma estratégia de
manutenção do poder da Coroa e constituía uma importante arma
de controle quanto a explicitação do caráter excludente da política
educacional pombalina são pontos mencionados de forma recorrente, porém rápida.
Tal fato, contudo, não diminui em nada a extrema importância
da obra no rol dos estudos sobre a educação brasileira no cenário
das reformas pombalinas. Isso ocorre porque o leitor tem diante de
si uma clara e precisa articulação entre o contexto da Revolução
Científica e do Iluminismo, a administração pombalina e o projeto
desta para a educação, seguida de um profundo mergulho na realidade educacional gerada de fato por este período de profundas transformações. Evidencia-se, portanto, que na educação brasileira, a
enorme distância existente entre ideais e realizações não é algo novo.
Patrícia Cristina Fincatti Moreira
Aluna do curso de pedagogia da
UNICAMP. Bolsista de iniciação
científica – CNPq.
resenhas
171
Dictadura y Educación
autores
cidade
editora
ano
páginas
Carolina Kaufmann (dir.),
Delfina Doval, Cristina
Godoy, Claudio Suasnábar
Madrid
Miño y Dávila Editores
2001
221
El libro que comentamos constituye un aporte significativo para
el campo de producción de conocimientos relativos a las ciencias
de la educación en general y en particular al área histórico-educativa.
Da cuenta de una investigación sólida y rigurosa basada en el análisis
de fuentes documentales pertenecientes al período investigado. En
este sentido, los capítulos que componen este tomo corresponden a
áreas problemáticas que se estudian en el Proyecto TIPHREA
(Tendencias ideológico/pedagógicas en la historia reciente de la
educación argentina), investigación inscripta en el Programa de
Historia y Prospectiva de la Facultad de Ciencias de la Educación de
la Universidad Nacional de Entre Ríos.
El libro se centra en las memorias históricas universitarias que
caracterizaron al ámbito pedagógico en el período seleccionado. Estas
memorias que parecen inmovilizadas no son ajenas a las escasas
investigaciones acerca de la historia educacional reciente en la Argentina, en especial aquellas dedicadas a profundizar el proyecto
educativo de la dictadura. Este tema es objeto de análisis en el capítulo I del libro Silencios inviables.¿Investigar en la historia educacional reciente? de Carolina Kaufmann. Dado que la dictadura y las
consecuencias del terrorismo de Estado en la Argentina han sido
poco investigadas por los medios académicos disciplinares históricos y pedagógicos (a diferencia de otras áreas del conocimiento como
la ciencia política, la economía, el derecho, la filosofía etc.), la autora se pregunta acerca de los motivos que han dificultado y que
172
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
dificultan la producción historiográfica al respecto, entendiendo que
la misma, además de sintetizar un compromiso ético, contribuye a
desentrañar el “entramado de la desmemoria”. En el texto se abordan
tanto los obstáculos que condicionan la producción científica, como
los vacíos o “silencios inviables” relacionados con la historia educacional reciente. Con respecto a los primeros, no sólo responden a
aspectos epistemológicos, sino que también comprenden aspectos
políticos: la cultura del miedo como herencia de la dictadura, las
trabas burocrático-administrativas que restringen el acceso a las
fuentes documentales, los grupos vinculados al pasado autoritario y
“reciclados” en las instituciones democráticas, las estrategias
editoriales, la ausencia de una red de investigadores dedicados al
estudio de la historia educacional reciente. Entre los segundos cabe
mencionar: las políticas educativas implementadas por las gestiones
ministeriales nacionales y provinciales, el funcionamiento de las
“comisiones asesoras” en esos mismos ámbitos, los procesos de
depuración ideológica en las instituciones educativas, las características de los estudios pedagógicos promovidos por el gobierno
autoritario, las relaciones entre los grupos de poder y los grupos
académicos, la historia de la cotidianeidad escolar, los ámbitos de
resistencia, los actos de control ideológico y su impacto en el presente.
En el Capítulo II “Memorias públicas e historia: un diálogo en
claroscuro”, Cristina Godoy realiza un análisis de la “historia de la
memoria”. Se trata de un ensayo crítico que profundiza en los olvidos,
omisiones y silencios presentes en el campo historiográfico. Para la
autora, la ausencia de una “política de la memoria” compromete el
traspaso generacional, la efectividad de la justicia y la estabilidad
democrática, es decir, compromete al presente y también al futuro.
Las relaciones entre memoria y justicia y entre memoria y miedo
son especialmente abordadas. El miedo genera una desestructuración
de las identidades tanto individuales como colectivas que afecta a
las nuevas generaciones. Para que el futuro sea posible es
imprescindible el imperativo de justicia y ello requiere una historia
de las memorias. El diálogo entre memoria y justicia no puede ser
obturado, ya que como recuerda la autora “en estos años de democracia, los argentinos hemos aprendido que el opuesto de memoria
no es el olvido sino la justicia” (p. 76).
resenhas
En general los textos que estudian la política educativa implementada por la dictadura tienden a enfatizar aquello que nos fue negado, prohibido, suprimido, excluido, censurado. Pero simultáneamente
con esa operación de vaciamiento el régimen militar apeló a la
construcción de una propuesta pedagógica oficial orgánica que se
instaló en todos los niveles del sistema educativo. “Las ‘Comisiones
Asesoras’ en Dictadura. FCE, UNER, Argentina” es el título del Capítulo III. Su autora, Carolina Kaufmann, aborda el proceso de
militarización sufrido por la enseñanza pública, en particular en el
ámbito universitario. El modelo educativo que se generó articuló los
valores militares tradicionales (orden, disciplina, jerarquía etc.) y los
valores confesionales. Kaufmann analiza la política universitaria aplicada en la Universidad Nacional de Entre Ríos, específicamente en la
Facultad de Ciencias de la Educación. En esa institución la dictadura
implementó las mismas medidas que en el resto del ámbito educativo:
censura, silenciamiento, uniformización del pensamiento, destrucción
del patrimonio cultural, sanciones, expulsiones etc. Pero la originalidad de este texto radica en que se profundiza en actos institucionales
y responsabilidades individuales y colectivas, particularmente en los
“grupos académicos” que conformaron la comisión Asesora que
contribuyó a poner en marcha un “nuevo ordenamiento” en la biblioteca. En los hechos esto significaba retirar, trasladar y dar de baja
textos y distintos materiales de estudio, previo estudio de la Comisión.
La autora entiende que para lograrse el pretendido “reordenamiento”
académico-institucional se requería, por un lado, de funcionarios que
coincidieran con los postulados ideológicos de la dictadura, y, por el
otro, una actitud corporativa interna a los efectos de establecer
lealtades entre ellos. Esta comisión, ejerciendo un poder inquisitorial,
elaboró “listas” bibliográficas de las cuales quedaron excluidos y
fueron trasladados textos, revistas, separatas, informes etc. Este capítulo da cuenta de una sólida investigación acerca de cómo la dictadura
necesitó de grupos académicos que oficiaran de soporte ideológico
(en la medida que adherían a valores vinculados al perennialismo
pedagógico, integrismo moral y religioso y autoritarismo) que
asumieran tareas de control, supervisión y ejecución de una política
académica militarizada.
Delfina Doval es la autora del capítulo IV, “Una escuela de
pensamiento. Universidad y dictadura: un estilo de vida misional” y
173
174
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
se centra en el análisis de los temas educativos publicados en el período seleccionado por la revista Mikael (órgano de difusión y
discusión académica del Seminario Arquidiocesano de la ciudad de
Paraná, Entre Ríos) y sus vínculos con los grupos académicos
constituidos en la Facultad de Ciencias de la Educación de la
Universidad Nacional de Entre Ríos. Es importante recordar que en
el período de aparición de la revista, estuvo a cargo de la Arquidiócesis
de Paraná Monseñor Tortolo quien a la vez era vicario general
castrense de las Fuerzas Armadas de la Nación. La autora analiza los
artículos que responden a una visión integrista y cuyo corpus ideológico se construye en la superposición de catolicidad y nacionalidad;
esto es en una identidad entre confesión religiosa y ciudadanía,
fundante del “ser nacional” argentino. La intención de Mikael fue
aportar en la tarea de clarificación en el campo de la cultura y en la
definición de un estilo universitario similar al eclesiástico y al militar. Su finalidad fue la evangelización cultural, por cuanto entendía
que se estaba frente a una cultura materialista y atea, a través de la
transmisión de verdades filosófico-teológicas. La revista no sólo se
difundió sino también fue recomendada por distintas cátedras de la
Facultad de Ciencias de la Educación. A su vez, algunos docentes
que se desempeñaron en la institución fueron los autores de algunos
de sus artículos. Estos grupos académicos conformaron, a juicio de
la autora, una verdadera escuela de pensamiento que remedó prácticas
preconciliares y totalitarias en la convicción de que sólo su pensamiento era válido y verdadero. En palabras de la autora “esta escuela
de pensamiento produjo un juego de espejos deformantes, que
recogían la opacidad de quienes sólo aspiraban ver el reflejo de los
divulgadores canónicos, de los maestros de la verdadera sabiduría,
que debían acallar el disenso y postrar la universidad argentina ante
el altar de la Pedagogía de la Renuncia para contribuir a la
Reorganización Nacional” (p. 142).
La transición a la democracia recibió, entre otras muchas
herencias, espacios académicos conformados durante la dictadura.
Uno de ellos fue el Instituto Rosario de Investigaciones en Ciencias
de la Educación (IRICE) dependiente del Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) y de la Universidad
Nacional de Rosario. Carolina Kaufmann ha investigado acerca del
funcionamiento de los grupos de investigación nucleados en el insti-
resenhas
tuto, presentando así una síntesis en el capítulo V “La Siberia rosarina.
IRICE-CONICET-UNR, Argentina (1977-1983)”. El IRICE se creó en el
año 1977, con el objetivo de desarrollar investigaciones en ciencias
de la educación, instrumentar programas de recursos humanos y
promover la transferencia de conocimientos pedagógicos. La autora
muestra cómo esa institución ilustra aspectos de la política económica
(las características de la entrega de subsidios para su funcionamiento
por parte del CONICET y el papel que jugaron fundaciones y centros
en tanto administradores, demostrando el desvío de fondos públicos
a la esfera privada) como de política educativa de la época. El IRICE
se constituyó como un “centro especializado en investigación
didáctica” con un “enfoque central y unificador”, cuyo corpus teórico correspondió al modelo matético desarrollado por el Prof. Ricardo
Bruera y que orientó todos los proyectos de investigación y todas las
publicaciones. Una de ellas, el Boletín Informativo, en algunos casos fue indicado como bibliografía obligatoria en cátedras del Departamento de Pedagogía de la Facultad de Humanidades y Artes,
UNR. El ámbito de aplicación de los resultados de las investigaciones
realizadas en el instituto fue el Colegio Rosario, que se convirtió en
un verdadero “laboratorio didáctico”. Kaufmann señala que el IRICE
llevó adelante una política de becas acorde con el objetivo de formar
recursos humanos o de “reclutamiento de personal”. Con la misma
intención se abrió el curso de posgrado en ciencias de la educación y
la carrera de doctorado en ciencias de la educación. Cabe recordar
que en la puesta en marcha y consolidación del IRICE jugó un papel
fundamental el profesor Bruera, quien, además de un “teórico de la
educación”, fue el primer ministro de Educación de la dictadura y
docente de la UNR. Una vez caído el régimen de facto, el IRICE
continuó monopolizado por Bruera y su equipo de investigadores.
Este capítulo cuenta con un anexo documental que muestra cómo y
quiénes conformaron los equipos y cuáles fueron la temáticas
investigadas y los proyectos, quiénes los dirigían, quiénes fueron
los doctorandos y los directores de tesis.
Por último, el capítulo VI “REVISTA PERSPECTIVA UNIVERSITARIA.
Voces disidentes en dictadura”, de Claudio Suasnábar, tiene por objetivo analizar los contenidos de esa revista que nucleó a un grupo de
docentes e investigadores universitarios, en la medida en que constituyó una publicación político-cultural donde se manifestó parte de
175
176
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
la disidencia intelectual durante la dictadura. La revista, que tomó
como eje los problemas de la universidad, reflejó, por un lado, una
diversidad de posturas y, por el otro, la convicción de que un modelo
de universidad siempre está en íntima relación con un modelo de
país. El autor señala que si bien entiende que esta publicación atravesó
por tres etapas, en el presente capítulo se centrará en la primera y en
la segunda. La primera, desde su creación en 1976 hasta 1979, incluyó
la caracterización de las primeras medidas de la dictadura en materia
universitaria. Los artículos se ocuparon del éxodo de técnicos y
profesionales, de la falta de una política de desarrollo científico etc.
A pesar del control y la censura impuesta, desde la revista se realizaron
señalamientos críticos a la política universitaria oficial, crítica que
no tardaría en convertirse en denuncia, no sólo de temas universitarios, sino que progresivamente fue incorporando cuestiones relativas a la política nacional. La sección dedicada a entrevistas permitió
dar la palabra a políticos e intelectuales que en esos momentos no
tenían otro espacio de expresión. La segunda etapa, que se extendió
hasta 1982, profundizó los rasgos anteriores, adoptando una actitud
de abierta oposición al régimen militar. En síntesis, se trató de una
publicación que en un momento histórico donde imperaba la censura y la cultura del miedo, intentó articular diferentes manifestaciones
de desacuerdo o disidencia político-cultural.
El tomo I de Dictadura y educación, bajo la dirección de Carolina Kaufmann, representa un significativo esfuerzo para esclarecer
el proyecto educativo universitario llevado adelante en uno de los
períodos más dolorosos de nuestra historia. Además constituye un
aporte valioso en la reconstrucción y recuperación de la memoria
histórica colectiva, enfrentando olvidos, anudando eslabones, renunciando al silencio. Porque, como señala Eugene Enríquez, “Cuando
una sociedad quiere olvidar sus ‘agujeros negros’, sus fallas, sus
traiciones, corre el riesgo de dar de nuevo nacimiento a lo ‘infame’
que yace en ella y de repetir sus errores y sus crímenes”.
María del Carmen Fernández
Docente en la Facultad de Humanidades y Artes
de Rosario (UNR). Magister en Educación en Facultad
de Ciencias de la Educación de Paraná (UNER). Argentina.
Nota de Leitura
Serie Clásicos de la Educación
Comas, Margarita. Escritos sobre
ciencia, género y educación. Madrid:
Biblioteca Nueva, 2001.
Luzuriaga, Lorenzo. La escuela única.
Madrid: Biblioteca Nueva, 2001.
Natorp, Paul. Pedagogía social. Teoría
de la educación de la voluntad sobre
la base de la comunidad. Madrid: Biblioteca Nueva, 2001.
Em 8 de outubro de 2001, Antonio Viñao Frago (Universidad de
Murcia) enviou um carta aos associados da entidade que preside, a
Sociedad Española de Historia de la Educación (SEDHE), comunicando o lançamento de um empreendimento editorial que:
não apenas pretende facilitar a leitura de obras de diíficil acesso,
mas também oferecer estudos introdutórios renovados a cargo de
especialistas, os quais recolhem as investigações mais importantes
dos últimos anos sobre os autores selecionados, assim como estudos sobre a sua recepção no mundo da fala espanhola
Tratava-se do lançamento da “Serie Clásicos de la Educación”,
dirigida por Agustín Escolano Benito (Universidad de Valladolid) e
Gabriela Ossenbach Sauter (Universidad Nacional de Educación a Distancia), contando com um alentado Conselho Assessor (do qual participam pesquisadores da Espanha, do México, da Colômbia, da
Argentina e de Portugal) e com a colaboração da própria SEDHE. Na
orelha esquerda dos volumes dessa série, um texto, infelizmente anônimo, anuncia:
Cada tempo, e o nosso também, decide que autores e que textos
têm de ser resgatados ou requalificados como clássicos. Esta série
178
revista brasileira de história da educação n° 4 jul./dez. 2002
de Clásicos de la Educación nasce para facilitar a leitura dos livros
que nos ajudarão a entender quem somos e onde temos chegado.
Mediante o diálogo com eles, os professores e pedagogos da nossa
época intalar-se-ão criticamente na tradição de uma cultura educativa
ainda viva, da qual não é possível nem razoável prescindir.
A série, por sua vez, faz parte da coleção “Memoria y Crítica de la
Educación”, também dirigida por Agustín Escolano Benito, e constitui um louvável esforço da editora espanhola Biblioteca Nueva, sediada
em Madri. A nós outros, da fala portuguesa com sotaque brasileiro, só
nos resta saudar a iniciativa, não sem uma pontada de inveja, já que os
volumes que compunham uma coleção semelhante, brasileira, a “Atualidades Pedagógicas”, são hoje itens encontráveis apenas nas bibliotecas e nas lojas de livros usados, constituindo acervo que pouca
gente freqüenta, à exceção de alguns obstinados pesquisadores –
entre eles Maria Rita de Almeida Toledo, autora da magistral tese de
doutorado intitulada Coleção Atualidades Pedagógicas: do projeto
político ao projeto editorial (1931-1981), defendida em 2001.
O primeiro lote da “Serie Clásicos de la Educación” é formado por
três obras. A primeira é uma coletânea denominada Escritos sobre
ciencia, género y educación, de Margarita Comas, com edição e introdução de José Mariano Bernal Martínez (Universidad de Murcia) e
Francesca Comas Rubí (Universitat de les Illes Balears). A segunda é
La escuela única, de Lorenzo Luzuriaga, para cuja edição e estudo
introdutório concorreu Herminio Barreiro Rodríguez (Universidad de
Santiago de Compostela). A terceira obra é Pedagogía social, de Paul
Natorp, com edição e introdução de Conrad Vilanou Torrano
(Universidad de Barcelona). Segundo o informe, acima mencionado, de
Viñao Frago, os próximos títulos a ser lançados serão: El descubrimiento de la infancia, de Maria Montessori; Sobre Educación, de José
María Blanco White; Experiencia y educación, de John Dewey;
Memorias de un educador. Escritos sobre o sistema preventivo, de
Don Bosco; e La revolución en la escuela, de Rodolfo Llopis.
Entre os três títulos que inauguram a série, a autora da primeira
obra, Margarita Comas (1892-1973), talvez seja a menos conhecida do
nota de leitura
público brasileiro. A sua biobibliografia, no entanto, revela uma personalidade e uma obra cujo interesse não se restringe às fronteiras
espanholas. Uma das primeiras mulheres na Espanha a obter, em 1928,
o título de doutor em Ciências Naturais, foi também a primeira mulher
a lecionar na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Autónoma
de Barcelona. Esse pioneirismo não poderia deixar de transparecer em
seus escritos, em que faz defesa fervorosa da coeducação dos sexos,
à época um verdadeiro tabu não apenas naquele país de forte tradição
católica ultramontana, mas também em outras partes do mundo. Outro
conjunto de textos que completa a coletânea refere-se às reflexões e
propostas da autora a respeito do ensino das ciências. Para ela, pensar sobre esse ensino é, antes de tudo, indagar quais seus objetivos,
que, acredita, devem visar à formação dos homens:
Há uma porção de facetas da alma humana que um bom ensino
científico, melhor que nenhum outro, pode cultivar na escola, tais
são, por exemplo, o espírito de observação, a serenidade, o domínio de si mesmo, o costume de buscar as causas das coisas, a
ordem, a cautela nas afirmações, a admiração pela natureza, a modéstia, a tolerância etc. [Comas, 2001, p. 210].
Bem se vê que há aqui um fértil material para os historiadores
das disciplinas escolares para decifrar o enigma da composição dos
conteúdos desse curioso saber escolar, que recolhe temas da física,
da química, da biologia, da nutrição, da saúde e da higiene, da ecologia etc., sem se confundir com a mera vulgarização de nenhuma dessas ciências.
A segunda obra, do célebre educador espanhol Lorenzo Luzuriaga
(1889-1959), constitui um enérgico libelo em favor da chamada “escola
única” – termo que adotou após ter hesitado por outras denominações
(“escola unitária nacional”, “escola em unidade”, “escola unificada”),
conforme esclarecem Herminio Barreiro Rodríguez, em sua utilíssima
“Introdução”, e o próprio autor no início do seu texto (pp. 45-46). A
escola única, segundo Luzuriaga, é o coroamento das aspirações proclamadas pelo “movimento de educação popular iniciado no século
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XVIII”, que se efetiva seja como “escola pública”, seja como “educação nacional”, “isto é, a educação acima das classes, a do povo em
sua totalidade”. Esse movimento:
encontra sua plena realização no século XX, que estabelece definitivamente a escola pública, gratuita, obrigatória e nacional em todo
o mundo civilizado [...]. A escola única aspira a facilitar a fusão de
todas as classes sociais, de todas as forças políticas, de todas as
confissões religiosas em uma unidade espiritual superior, a alma
nacional, que inspire a todos e a cada um de seus membros
[Luzuriaga, 2001, pp. 51-52].
A obra de Paul (ou Pablo, como está grafado na capa e na página
de rosto) Natorp (1854-1924) difere das anteriores em pelo menos dois
aspectos: o autor não é espanhol, mas alemão, e o seu texto representa um esforço de constituir o campo pedagógico pela via especulativa
(no sentido empregado pelo idealismo alemão). Situando-se na tradição kantiana e neokantiana, o empreendimento desse continuador de
Pestalozzi consiste em formular a idéia da educação como formação
(Bildung) do homem visando à comunidade humana, somente na qual
e pela qual “o homem se faz homem” (p. 169) – daí o caráter necessariamente social da sua pedagogia:
O conceito da pedagogia social significa, portanto, o reconhecimento fundado em princípios de que a educação do indivíduo, em
toda direção essencial, está condicionada socialmente, assim como,
por outro lado, uma conformação humana da vida social está fundamentalmente condicionada por uma educação adequada dos indivíduos que vão tomar parte nela. Conforme a isso é também
preciso que se determine o problema último e mais compreensivo
da cultura para os particulares e para todos os particulares. As
condições sociais da cultura, portanto, e as condições culturais da
vida social: tal é o tema desta ciência [Natorp, 2001, p. 178, grifos
do autor].
nota de leitura
Talvez, ao ler as análises e as propostas desses autores, o leitor
de hoje seja tomado por um sentimento de estranhamento e decepção.
Ao que escreveu Margarita Comas – admitem Bernal Martínez e Comas Rubí, que a apresentam –,
de uma perspectiva de análise feminista, poderiam surgir algumas
objeções [...] Por um lado, com sua formação em Ciências, mais
que romper com o modelo educativo masculino, o que conseguiu
Margarita Comas foi integrar-se nele, poder-se-ia dizer que “chegou ao mesmo nível intelectual de alguns homens”. Por outro lado,
[...] Margarita dedicou-se ao ensino [...] Dir-se-ia, pois, que escolheu o caminho profissional socialmente melhor aceito para uma
mulher [Comas, 2001, p. 20].
Luzuriaga, por sua vez, ao propor a “escola única”, parece desconsiderar a profunda divisão social que marca a sociedade contemporânea, burguesa, a mesma coisa acontecendo com Natorp, cuja idéia de
educação não prescinde da religião, embora secularizada, reduzida aos
limites da própria humanidade. Em suma, esses autores partilham da
profunda ilusão burguesa de universalidade, em que sucumbem as mais
belas almas e intenções. Mas com um pouco mais de atenção não é impossível perceber certas nuanças na noite escura da ideologia.
Lorenzo Luzuriaga, em 1922, fundou a Revista de Pedagogía, em
torno da qual gravitam importantes educadores espanhóis, entre os
quais Margarita Comas. É essa geração que assiste à proclamação da
Segunda República na Espanha, em 1931, e se lança às reformas educacionais que acredita ser as exigidas pelos novos tempos. Se Luzuriaga
imagina uma escola única capaz de superar a divisão social, não é
porque foi tomado por um romântico sonho (burguês) de conciliação
de classes, mas por acreditar que essa República só poderia prosperar
se possibilitasse a emancipação dos trabalhadores. Diz ele:
O movimento pedagógico de nosso tempo não é apenas produto
da maior intervenção do Estado, mas que teve também como motor a tendência cultural ascendente das classes trabalhadoras. Es-
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tas não quiseram ficar relegadas nos confins da educação elementar, e tem pedido cada vez mais facilidades para sair desta. [...] E
esse é o sentido da aspiração socialista em todas as partes. A
educação não patrimônio de uma única classe social, mas aberta e
possibilitada a todas, de modo especial à classe trabalhadora. Mas
isso não no sentido um tanto abstrato da educação nacional, universal, mas no mais concreto, da educação social [Luzuriaga, 2001,
pp. 52-53].
Não por acaso a expressão “educação social” remete à “pedagogia social” de Natorp. Como assinala Conrad Vilanou Torrano, que
apresenta a obra de Natorp,
a Pedagogia Social entrou na Espanha por meio do núcleo de
intelectuais (Fernando de los Ríos, María de Maetzu, García
Morente, Lorenzo Luzuriaga) que, seguindo os passos de Ortega
y Gasset, marcharam à Alemanha para estudar filosofia e pedagogia em Marburgo, onde lecionavam precisamente Cohen e Natorp
[Natorp, 2001, pp. 52-53].
Desse grupo de educadores, Fernando de los Ríos é autor de O
sentido humanista do socialismo, inspirado em Natorp. A propósito
deste, sugere Vilanou Torrano:
Talvez não seja exagerado detectar na filosofia de Natorp algumas
notas daquele socialismo utópico de primeira hora, ainda mais se
considerarmos o seu desejo de constituir verdadeiras comunidades de trabalho presididas por uma vontade humana definitivamente harmonizada. Em todo caso, o socialismo da escola de
Marburgo se aproxima das teses social-democratas [...] [Natorp,
2001, pp. 42-43].
Na Espanha, as propostas assentadas nesse desejo de emancipação foram esmagadas pelo regime franquista que se consolidou após
a Guerra Civil (1936-1939). Margarita Comas e Lorenzo Luzuriaga tive-
nota de leitura
183
ram de abandonar o país e ambos morreram no exílio: ela, na Inglaterra;
ele, na Argentina.
Hoje, talvez seja difícil concordar com as propostas desses três
autores, que parecem pecar por profunda ingenuidade, que as faz
presas fáceis da ideologia dominante. Mas o desejo e a vontade que
os alimentam ainda ecoam nesses tempos tão céticos e cínicos. Não
cabe, então, aprovar ou refutar-lhes as teses; o tempo destas já passou. Mas é possível pensar com eles, ou a partir deles, das suas
inquietações, seus sonhos, suas utopias. Por isso, a eles se aplicam
os comentários de Merleau-Ponty (1962) no “Prefácio” de Sinais:
A história do pensamento não pronuncia sumariamente: isto é verdadeiro, aquilo é falso. Como qualquer história, tem decisões surdas: liberta ou embalsama certas doutrinas, transforma-as em
“mensagens” ou em peças de museu. Existem outras, pelo contrário, que mantém em atividade, [...] porque continuam falando para
lá dos enunciados, das proposições, intermediários a que estamos
vinculados se queremos ir mais além. São esses os clássicos [p. 18].
Não por acaso a série de que esses livros fazem parte denominase “Serie Clásicos de la Educación”. Diz Ítalo Calvino (2001): “Um
clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para
dizer” (p. 11).
Kazumi Munakata
Programa de estudos pós-graduados em educação:
história, política, sociedade, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Referências bibliográficas
CALVINO, Ítalo (2001). Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia
das Letras.
MERLEAU-PONTY (1962). Sinais. Lisboa: Minotauro.
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CONTENTS
EDITORIAL
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ARTICLES
The books of Bibliothèque Blue: archaism or modernity?
Jean Hébrard
Laura Hansen and Maria Rita de Almeida Toledo (Translation)
Celso Suckow da Fonseca’s “História do ensino industrial no Brasil”
José Rodrigues
Limits ans possibilities of historiographical sources... The trajectory of a
research in history of education and racial-ethnical issues
Eliane Peres
Letters, proxies, talismans and “patuás”. The meanings of literacy between
slaves and freemen in the brazilian 19th century
Maria Cristina Cortez Wissenbach
Education and slavery: a challenge for history
Marcus Vinícius Fonseca
9
47
75
103
123
The Pretextato dos Passos e Silva’s school: literacies practices in the slavery world 145
Adriana Maria Paulo da Silva
BOOKS REVIEW
AS LUZES DA EDUCAÇÃO: FUNDAMENTOS, RAÍZES HISTÓRICAS E PRÁTICA DAS AULAS
RIO DE JANEIRO (1759-1834), Tereza Maria Rolo Fachada Levy Cardoso
By Patrícia Cristina Fincatti Moreira
RÉGIAS NO
167
DICTADURA Y EDUCACIÓN, Carolina Kaufmann (dir.), Delfina Doval, Cristina Godoy,
Claudio Suasnábar
171
By María del Carmen Fernández
READING NOTES
Serie Clásicos de la Educación
Comas, Margarita. Escritos sobre ciencia, género y educación
Luzuriaga, Lorenzo. La escuela única
Natorp, Paul. Pedagogía social. Teoría de la educación de la voluntad sobre
la base de la comunidad
By Kazumi Munakata
177
GUIDES TO THE COLLABORATORS
185
CONTENTS
187