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A CONTRIBUIÇÃO DA ARTE, COM ENFOQUE
NA ARGILA, COMO INSTRUMENTO
TERAPEUTICO: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Norma Flora Arruda Gayão
Orientadora: Mercia Melo
Resumo: Arte é uma forma de expressão milenar e universal que possibilita ao
ser humano uma integração e comunicação interior e exterior. A arteterapia
surge como formação profissional para amalgamar a arte e o processo
terapêutico, trabalhando psicologicamente e ludicamente. O processo de criação
envolve imaginar, idealizar, identificar, procurar, trabalhar, ver formas, cores,
texturas e até mesmo desejos, sonhos, símbolos e imagens, transformando e
transmutando material inerte, neste caso, a argila, dando assim, sentidos,
significados e vida. A argila é uma matéria plástica, úmida e de fácil manejo que
permite uma expressão tridimensional, a manipulação como uma brincadeira.
Nossa hipótese é que há sim, uma relação direta entre o criador e a criatura. E o
terapeuta, o psicólogo e/ou o arteterapeuta está propiciando um ambiente
acolhedor para este diálogo, para esta transmutação em descoberta, através da
sua individuação, ou seja, a realização de si mesmo, com o mundo externo e
conduzindo ao desenvolvimento, crescimento, fortalecimento interior e alívio
psíquico. O objetivo deste artigo é traçar um caminho entre a arte e o tratamento
clínico, mostrando que ambos podem ter a obra como mediadora dos processos
internos. Disponibilizamos uma base dialética entre intervenções terapêuticas e
artísticas.
Palavras-chave: Arteterapia, Argila, Expressão, Alívio Psíquico.
ABSTRACT: La arte es una forma del expresión mui antigua y universal que
permite a los seres humanos una integración de comunicación en el interior y el
exterior. La terapia del arte surgió como la formación profesional para
amalgamar la arte y el proceso de la terapia, trabajondo psicológico y en
broma. El proceso de creación consiste en imaginar, idealizar, identificar,
buscar, trabajar, ver formas, colores, texturas e incluso los deseos, sueños,
símbolos e imágenes, de transformación y la transmutación de material inerte, en
este caso, la arcilla, con lo cual, los sentidos, significados y la vida. La arcilla es
un plástico, húmedo y de fácil manejo que permite una expresión tridimensional,
manipulación como una broma. Nuestra hipótesis es que hay más bien una
relación directa entre creador y criatura. Y el terapeuta, psicólogo o terapeuta de
arte es proveer un ambiente acogedor para este diálogo, esta transmutación en el
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descubrimiento, a través de su individuación, es decir, la realización de sí mismo
con el mundo exterior y dirigir el desarrollo, el crecimiento , fuerza interior y el
alivio mental. El objetivo es trazar un camino entre el arte y el tratamiento
clínico, demostrando que ambos pueden tener que trabajar como mediador de los
procesos internos. Ofrecemos una dialéctica fundamental entre las
intervenciones artísticas y terapéuticas.
Palabras-clave: Terapia de Arte, Clay, Expresión, Ayuda psíquica.
INTRODUÇÃO
Desde o início da humanidade, a sociedade imprime no
homem
suas
marcas,
condicionando-o
fisicamente
e
psicologicamente. Isso produz o afastamento da pessoa de si
mesma, o seu envolvimento afetivo e o seu compromisso com a
autenticidade e espontaneidade, isto é, com o seu Self. Os
condicionamentos, a autocrítica, as convenções sociais e culturais, a
necessidade de aprovação e reprovação e a repressão são os
aprisionamentos nos quais o homem vive e as raízes de muitas
neuroses e doenças. Por isso trabalhar com os substratos psíquicos,
ou seja, com a subjetividade, tem sido uma necessidade, ou, mais
que isso, um imperativo de nosso tempo, acometido cada vez mais
por um adoecimento psíquico.
O homem busca a sua subjetividade, a realização de si
mesmo. No âmbito psicológico deseja ser autônomo e indivisível,
almeja tornar-se um ser pleno. Várias pesquisas e técnicas têm-se
colocado frente à questão, buscando promover o encontro do
homem consigo mesmo, engajados que está na descoberta ou no
afloramento dos conteúdos recalcados ou reprimidos que muitas
vezes estão guardados no seu inconsciente, necessitando ser
expressos.
A arte é uma forma de expressão e de linguagem humana.
A linguagem escrita nada mais é do que símbolos ou desenhos que
ao longo da história humana se foram desenvolvendo, e ainda
continua a fazê-lo, até chegar ao compartilhamento com todos os
seres, dando assim a possibilidade da comunicação e integração do
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Homem.
Ao mesmo tempo, essa comunicação é universal e
individual. Universal no sentido de usar símbolos comuns a todos. E
individual, porque nenhuma pessoa fala ou expressa seu modo de
ver de forma idêntica, ou seja, não há regras fixas ou leis para a
comunicação, esta é feita livremente, de acordo com o contexto e as
condições sócio-histórico-culturais de quem comunica. Existe uma
variedade de símbolos, imagens pictórias, danças, sons, para que o
ser humano na sua individualidade, possa escolher e criar a sua
própria maneira de falar ou expressar seus pensamentos,
conhecimentos, desejos, anseios, enfim, comunicar-se. Nessa
comunicação já existe a escolha, a forma e maneira de expressar-se.
A linguagem é processo criativo, conforme Ciornai (2004, p.66) “A
criatividade e a saúde são instâncias correlacionadas na existência
humana (...) como um processo de vida, como um processo de
expansão de consciência que conduz ao desenvolvimento, ao
crescimento e ao fortalecimento interior”.
Desse modo, a criatividade é algo inerente ao ser humano,
embora no dia a dia não nos apercebamos do quanto somos
criativos, como diz Kneller (1965, apud Ciornai, 2004): “A
criatividade parece envolver certas capacidades mentais. Essas abrangem
a capacidade de mudar a maneira pela qual cada pessoa aborda um
problema, de produzir idéias relevantes e ao mesmo tempo inusitadas, de
ver além da situação imediata e de redefinir o problema ou algum aspecto
dele.”
Podemos ainda citar Ostrower, (1977, p. 142-3 apud Ciornai,
2004, p. 69) nas suas observações sobre os processos criativos, que
ele descreve como “processos construtivos globais”. Sobre esses
processos nos diz o autor:
Envolvem a personalidade toda [...]. Criar é tanto
estruturar quanto comunicar-se, é integrar
significados e transmiti-los. Ao criar procuramos
atingir uma realidade mais profunda do
conhecimento
das
coisas.
Ganhamos
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concomitantemente um sentimento de estruturação
interior maior; sentimos que estamos nos
desenvolvendo em algo essencial para nosso ser.
Ao mesmo tempo em que a comunicação e a criatividade
nos dão uma amplitude infinita de expressão, muitas vezes não
sabemos como externalizar os sentimentos ou simplesmente, não
encontramos palavras para falar algo vivido, desejado ou sentido.
Pode ocorrer também a dificuldade de expressar sensações ou
sentimentos que são indefinidos, que não percebemos com clareza e
nitidez.
É aqui que incluímos a arte como uma forma de ajuda num
processo terapêutico, possibilitando novas formas de expressão.
Como bem diz Ciornai (2004, p. 66): “Por termos a capacidade de
nos expressar por meio de diversas linguagens expressivas”, ou
seja, por termos criatividade, “frequentemente sensações,
sentimentos e visões são muito mais bem expressos em imagens,
cores, movimentos ou sons”.
As linguagens artísticas, sejam elas quais forem, podem ser
uma forma adequada para nos comunicarmos, não só com os outros
seres humanos, mas também conosco, como forma de diálogo
interior e de expansão de consciência. O ser humano através dos
anos vem dando expressão a emoções, frustrações, traumas, enfim,
às funções psíquicas por várias formas, e uma delas é a arte.
Quando o Homem não exprime suas emoções, sufocando as
vivências desagradáveis ou traumáticas pode transformá-las em
sintomas físicos e/ou psíquicos. Em ambos, a arte pode ser um
veículo de acesso aos conteúdos inconscientes, propiciando a
transmissão de um saber sobre o sujeito.
A arteterapia é um processo criativo que alivia esses
conteúdos reprimidos, sejam eles inconscientes ou conscientes,
transmutando e transformando o ser humano, promovendo uma
integração e um encontro consigo mesmo, amenizando, assim, o
sofrimento psíquico. A arte pode ajudar no tratamento psicológico
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clínico, dando ao profissional, ferramentas possíveis para auxiliar o
indivíduo na reestruturação, ressignificação e numa nova visão
criativa da vida. As imagens configuradas de forma espontânea e
livre são uma porta aberta para um mundo interno da subjetividade.
A arte, seja ela literária, pintura, escultura, dança, teatro e outras
formas dão a oportunidade ao indivíduo de dar vida à sua história de
vida.
Este trabalho originou-se da curiosidade, intuição e
vivência da experiência do trabalho com arte como processo
terapêutico. Seu objetivo é traçar um caminho entre a arte e o
tratamento clínico, mostrando que ambos podem ajudar à
subjetivação, autoconhecimento e ressignificação. Assim sendo, a
partir da matéria prima da argila, tendo a obra como mediadora dos
processos internos, nos lançamos para alcançar esse objetivo.
Partimos da hipótese de que a transformação da matéria, a argila,
tem influência na conscientização e nas mudanças do sujeito sobre
situações e conteúdos que causam sofrimento psíquico. Neste
enfoque, o trabalho com argila na arteterapia será considerado um
processo criativo, um instrumento que facilitará a cada indivíduo
expressar-se melhor, sentir-se produtivo e criativo, através da
liberação de seu potencial expressivo, o que é básico na prevenção,
promoção e preservação da saúde.
Para a realização deste trabalho levantou-se uma pesquisa
bibliográfica de apoio específica sobre o tema. Tudo se desenvolveu
dentro de uma base dialética com procedimentos mistos coletandose dados bibliográficos e resultados de experimentos com várias
pessoas em diversos espaços, desde terapêuticos até em oficinas nas
instituições terapêuticas.
ARTETERAPIA – HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO
Harvey, em seu livro Cerámica Creativa, fala da utilização
e descoberta da argila desde o Período Paleolítico Superior (1200010000 a.C.). Nessa época utilizavam-se desenhos e formas para
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representar, significar, organizar e apoderar-se do habitat em que se
vivia. A arte tinha uma função simbólica no campo psíquico,
aspecto que iremos encontrar também posteriormente.
A própria História da Arte participa dessa trajetória vivida
no âmbito psicológico. A arte e sua história enfatizam a
subjetividade e o valor singular de cada expressão, seja ela artística
(para a arte) ou significante no campo das vivências (para a
psicologia), tal como nos afirma Gombrich (1999, p.78): “É
impossível entender esses estranhos começos se não procurarmos penetrar
na mente dos povos primitivos e descobrir qual é o gênero de experiência
que os faz pensar em imagens como algo poderoso para ser usado e não
como algo bonito para contemplar”.
Gombrich (Ibidem) usa o verbo no presente “qual é o
gênero de experiência que os faz”, porque ainda hoje encontramos
arte ou sinais artísticos em algumas tribos ou povos “primitivos”,
nos chamados países de primeiro mundo. Há tradições, rituais e
superstições nos quais são utilizadas imagens ou objetos em argila,
por exemplo, em panelas de barro “virgem” em alguns rituais ou
cerimônias no Candomblé. O fato na Inglaterra, no dia cinco de
novembro de cada ano realizar-se uma celebração com fogos de
artifícios, onde se dá a queima da efígie de Guy Fawkes, um
conspirador que, em 1605, quis explodir as Casas do Parlamento é
um sinal da importância dada, até hoje, aos símbolos de arte.
De acordo com Gombrich, “não acho que seja realmente
difícil recuperar esses sentimentos [da arte do passado do homem
primitivo]. Tudo o que precisamos é ser profundamente honestos
conosco e examinar se em nosso íntimo não se conserva até hoje
algo de “primitivo”. Em vez de começarmos pela Era Glacial,
comecemos por nós mesmos” (Idem, p. 40).
É surpreendente encontrar num historiador uma visão com
conteúdos tão sensíveis, pois esta afirmativa nos reporta à teoria do
Inconsciente Coletivo e dos Arquétipos de Carl Gustav Jung, onde
este afirma que “do mesmo modo que o corpo humano apresenta
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uma anatomia comum, sempre a mesma, apesar de todas as
diferenças raciais, assim também a psique possui um substrato
comum”. (Silveira, 1997, p. 64). Jung chamou este substrato de
Inconsciente Coletivo, uma espécie de herança comum que
transcende todas as diferenças de cultura, raça e de atitudes. São
disposições latentes para reações idênticas. Conforme Nise da
Silveira (1997, p. 64-65):
Assim, o inconsciente coletivo é simplesmente a
expressão psíquica da identidade da estrutura
cerebral, independente de todas as diferenças raciais.
Deste modo pode ser explicada a analogia, que vai
mesmo até a identidade, entre vários temas míticos e
símbolos, e a possibilidade de compreensão entre os
homens em geral. As múltiplas linhas de
desenvolvimento psíquico partem de um tronco
comum cujas raízes se perdem muito longe, num
passado remoto.
Desde tempos longínquos, o Homem faz uso de expressões
como danças, pinturas, esculturas, formas, cantos e outras em rituais
de cura, poder e comunicação. Através de vários recursos
expressivos, dá vida e sentido aos acontecimentos do mundo em
que vive. “O uso terapêutico das artes remonta, sem dúvida, às
civilizações mais antigas” (Cionai, 2004, p.21)
Contudo, só com a crise da modernidade e após a Primeira
Guerra Mundial é que surge a arteterapia como profissão. Para
entendermos esse processo podemos contextualizar. A Era
Moderna, da indústria, razão e ciência, onde o Homem dá primazia
ao estético, esconde a expressão dos sentimentos, para dar vez ao
conhecimento, pela razão e raciocínio lógico em prol do
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. O culto às fabricas
(produção em massa), aos movimentos sindicais e às grandes
ideologias foram as marcas da expressão do homem nesse período
No século XIX, surge a “crise da ciência e da verdade”.
Após a Primeira Guerra Mundial, novos movimentos surgem na
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tentativa de buscar outros caminhos e idéias para a compreensão do
ser humano Concomitantemente Freud, Jung e outros surgem dando
importância à subjetividade, introduzindo conceitos novos como o
inconsciente, imagens oníricas e pictórias, ou seja, imagens de
sonhos e pinturas, fazendo parte da psique do ser humano e
buscando novas formas de tratamento.
Iniciam-se movimentos artísticos e novos pensamentos,
todos dando ênfase à subjetividade, às formas de expressão e a
criatividade. O Expressionismo foi um desses que em vez de buscar
a percepção acurada e naturalista da realidade, dá vasão às emoções
e à subjetividade. O Dadaísmo vem na contramão da lógica social
burguesa, dando formas à busca da criança interior. No Cubismo
temos uma nova visão, através de ângulos diversos. No Surrealismo
a tentativa de encontrar o imaginário, a percepção particular da
realidade.
Todos esses movimentos trazem uma nova visão e
perspectivas para a compreensão do ser humano no mundo. Essa
efervescência cultural contamina o pensamento dos educadores que
buscavam um novo processo para o desenvolvimento da criança em
sua totalidade. Surge, assim, a arte-educação através de Margareth
Naumburg (1966, apud Cionai, 2004) educadora, psicóloga e artista,
que tinha a convicção de que a expressão livre na arte é uma forma
simbólica de linguagem nas crianças, e pensa que assim sendo, esta
deve ser uma experiência básica no campo da educação, e deve,
ainda, fortalecer-se cada vez mais nesse âmbito. Ela diz ainda, que
esta expressão espontânea na arte poderia ser básica também no
tratamento psicoterápico.
A partir desse pensamento surge, por volta da década de
1950, a Arteterapia. Margareth Naumburg ficou conhecida como a
mãe da Arteterapia, ampliando a expressão através da arte também
para outras áreas. Dentre tantas definições de Arteterapia
escolhemos a de Joya Eliezer: “A arteterapia é um método
terapêutico que utiliza a linguagem artística como meio de
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comunicação e expressão nos procedimentos de diagnóstico
(avaliação) e/ou tratamento. É indicada para pessoas de todas as
idades, tendo atividades específicas para cada faixa etária” (Eliezer,
2004, p.16).
No Brasil, a arteterapia é ainda recente, tudo surgido por
volta da década de 1960, ganhando destaque com o trabalho de Nise
da Silveira. Em outros países existe há mais de cem anos como
profissão e a sua utilização como instrumento de cura é milenar.
PSICÓLOGO E/OU ARTETERAPEUTA
É necessário que o psicólogo tenha tido experiência em
atelier artístico e possua criatividade para trabalhar com arte.
Segundo Liebmann (2000, p. 17), “se não vivenciou essa
experiência por si mesmo, não será capaz de ajudar aos outros
quando estiverem bloqueados”. Deve ter domínio sobre os materiais
a serem usados, auxiliando o criador, por exemplo, em nuances e
formações de cores, escora para manter a argila na forma que quer
dá, enfim, deve saber ajudar tecnicamente na formação da expressão
almejada pelo cliente.
Alguns psicólogos que gostam e trabalham com arte em
seus consultórios têm formação em arteterapia, terapia ocupacional
ou especialização em artes plásticas. Acreditamos que a arteterapia
é mais específica e indicada como Liebmann (2000, p. 18) cita:
A arteterapia usa a arte como meio de expressão
pessoal para comunicar sentimentos, em vez de ter
como objetivo produtos finais esteticamente
agradáveis a serem julgados segundo padrões
externos. Esse meio de expressão é acessível a todos,
não apenas aos que têm talento artístico.
Outro ponto importante para que o psicólogo possa utilizar
a arte como ferramenta é ilustrado por Margareth Naumburg, para
quem “o arteterapeuta deve esperar que o próprio cliente atribua
significado às imagens simbólicas que produziu” (1966, apud
Ciornai, 2004, p. 26), evitando, assim, a interpretação particular do
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terapeuta ou de alguns livros que atribuem significado a desenhos.
A arte é singular, subjetiva e individual, não cabendo
“interpretoses”.
Podemos realçar, também, a questão do próprio cliente,
que deve ter claro o significado do que seja criatividade e arte,
entendendo o processo não como uma capacidade que está fora,
além ou acima do humano, mas ao contrário como algo inerente à
própria condição humana, compreendendo que a criatividade e os
múltiplos atos de criação que dela resultam devem ser apropriados,
interiorizados ou internalizados como um comportamento natural da
humanidade, no sentido de serem próprios do Homem.
Segundo Ostrower (2000 no artigo: Por que criar? do
Jornal de São Paulo) “o Homem é um ser criador naturalmente,
espontaneamente, e não excepcionalmente”. A criatividade é um
potencial que se origina na sensibilidade. Cada ser humano é único,
tendo maneiras diferentes de manifestar suas potencialidades, tanto
em grau como em áreas diferentes, mas cada ato criador é
apresentado como um ato materializado e específico. Ambos os
termos se referem ao material que vai ser (ou é) transformado pelo
Homem. Pois a criação envolve a transformação de determinadas
matérias como tinta, argila, lápis e outros materiais. O Homem
transforma qualquer matéria, com determinadas qualidades e
possibilidades, em formas relacionandas com o novo. Esta é a
essência do criar. Nas formas criadas, cada pergunta encerra uma
resposta em que o Homem fala sobre si, sobre sua vida, sobre seus
valores de viver. Como diz Ostrower (Ibdem), “as s formas criadas
“são processos produtivos onde o homem se descobre e onde ele
próprio se articula à medida que passa a dar formas ao mundo”.
Kramer (1971, apud Ciornai, 2004, p.28), atribui à
arteterapia uma função básica que é vista no poder da arte de
contribuir para o desenvolvimento de uma organização psíquica
capaz de funcionar sob pressão sem fragmentar-se ou recorrer a
medidas defensivas nefastas. Segundo o mesmo autor, “assim
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concebida, a arteterapia torna-se um componente essencial do
contexto terapêutico e uma forma de terapia, que complementa ou
apoia a psicoterapia”.
É necessário compreender que todos os processos criativos
representam tentativas de reestruturação, experimentação e controle
das energias psíquicas fragmentadas e desestruturadas
possibilitando uma reorganização ou organização destas.
SETTING TERAPÊUTICO
O Setting terapêutico é o espaço físico onde se dá a
arteterapia. Esse espaço deve ser acolhedor e dependendo do
enfoque de cada técnica da arteterapia, proporcionar um ambiente
adequado à execução das atividades específicas para cada área. As
artes plásticas, por exemplo, que enfocam a compreensão das
imagens pictórias da realidade interna e externa, devem dispor de
materiais como: tintas, pinceis, lápis de cor, cavalete, argila e
outros; o teatro ou dramatização, auxiliada ou não por outras
pessoas ou mesmo através de bonecos, fantoches, têm no seu
processo o desenvolvimento das relações sociais; a dança
proporciona um conhecimento não só corporal como também
espacial, ampliando a consciência do eu; e a música tem um
entendimento mais cognitivo, integrando toda a expressão a nível
verbal que pode enfocar aspectos internos como também um
contato mais amplo e profundo entre o eu; a melodia, impunsiona e
faz vibrar o ser humano.
O Homem tem o impulso de criar, vai à procura do
material e dos métodos de desenvolver o trabalho. Nisto, há a
execução, uma integração entre criador e criatura, num processo de
transmutação interna e externa. Como descreve Silveira (1997, p.
139), o artista não domina o ímpeto da inspiração que dele se
apodera:
Obedece e executa, sentindo que sua obra é maior
que ele e, por esse motivo, possui uma força que lhe
é impossível comandar. [...] E também o artista
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sentir-se-á ativo ou passivo em graus diferentes
quanto ao modo como se realiza em si próprio o
processo criador. Muitos artistas têm dado o
depoimento da maneira como experienciam o
processo criador. Picasso diz: “Quando eu começo
uma pintura, há alguém que trabalha comigo. No fim,
tenho a impressão de que estive trabalhando sozinho,
sem colaborador.
Deste processo, então, surge a obra, a arte que é vida e toda
a experiência do criador está junto, em sua vivência de criação.
MATÉRIA-PRIMA: ARGILA
Para adentrar-se neste universo, faz-se necessário um
percurso, desde a composição da argila até o processo da utilização
deste material. Nos livros de Cerámica a Mano de Woody (1986) e
Manual del Alfarero de Clack (1984), a natureza das argilas deriva
da decomposição de rochas feldspáticas que, pela ação da erosão
através de milhares de anos, desagregam-se da alumina e sílica. A
combinação de oxigênio com esses elementos produz o dióxido de
silício e o óxido de alumínio, que reagem quimicamente com a
água, constituindo a argila.
É um material que se encontra abundantemente na
natureza, onde geralmente aparece junto com impurezas – raízes,
pedras e outros materiais – é o que se chama de argila bruta, que,
antes de ser utilizada, necessita de uma purificação prévia.
As argilas apresentam variações de cores – vermelhas,
brancas, amareladas, verdosas, azuis e negras – e têm na sua
composição minerais como ferro, cobalto, cobre e outros. Devido à
variedade das dimensões das partículas que formam a argila, esta
varia em textura e plasticidade. Quanto menores as partículas, mais
plástica a argila.
É difícil encontrar uma argila pura que se ajuste às
exigências da modelagem, sendo necessário mesclar diferentes tipos
deste material com um outro mineral, adequado a uma melhor
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textura, plasticidade, maturação e contração. Uma argila bem
dosada contém: 40% de argila “gorda” que é muito lisa e
escorregadia ao toque, porém maleável depois de seca; 60% de
argila “magra”, que é rugosa ao toque e contém areia; e, por sobre
estes 100%, acrescentam-se de 10 a 15% de areia de construção
peneirada. A junção destes dois tipos de argilas com a areia forma o
que se chama de “argila plástica”, é a que permite ser moldada com
facilidade e que conserva a forma que lhe é dada.
A venda dos olhos na modelagem como instrumento
facilitador para uma experiência interior
Quem não brincou na infância com barro ou argila? A
argila é uma matéria plástica, úmida e de fácil manejo que permite
uma expressão tridimensional, possibilitando trabalharmos sem a
preocupação de técnicas quaisquer como noções de perspectivas,
luminosidade, refinamentos e práticas de movimentos. Permite a
manipulação como uma brincadeira, puxar, rasgar, furar, torcer,
imprimir texturas e produzir outras formas. Devido à sua
plasticidade, tem a capacidade de transformar e re-transformar, ou
seja, o indivíduo que trabalha com a argila pode fazêr-la voltar à
forma anterior sem nenhum constrangimento de erro.
Quem trabalha com a argila faz surgir imagens, conteúdos,
que Jung (apud Silveira, 1997) chamou de arquétipos, “matrizes
arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam
forma” (p. 68). Ainda segundo Jung, “seja qual for sua origem o
arquétipo funciona como um nódulo de concentração de energia
psíquica. Quando essa energia, [comportamento – sensação] em
estado potencial, se atualiza, toma forma, então teremos a imagem
arquetípica. Não podemos nomear essa imagem modelada de
arquétipo, pois esse é unicamente uma virtualidade” (p. 69).
Esse fenômeno de formação de imagens interiores e como
se transformam através da energia psíquica, ninguém sabe como se
dá. Conforme Silveira (1997, p. 69) “a prova da transformação de
energia psíquica em imagens nos é dada todas as noites nos nossos
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próprios sonhos, quando personagens conhecidas ou estranhas
surgem das profundezas para desempenhar comédias ou dramas em
cenários mais ou menos fantásticos”.
Nos sonhos não conseguimos bloquear totalmente as
imagens, não temos plena consciência, nem nosso pré-consciente,
ego e superego, estão totalmente aptos para nos podar ou peneirar
os conteúdos. Não temos nossa autocrítica nem o olhar do outro
agindo com plenitude.
Levando em conta essas colocações, propõe-se a vendagem
dos olhos do indivíduo que vai trabalhar com a argila, preservandoo da autocrítica, da intervenção do olhar do e para o outro, e, por
fim, afastá-lo dos valores convencionais, pois, como observa Aniela
Jaffé no seu livro O Mito do Significado Na Obra de C. G. Jung, “a
liberdade e a prisão acompanham e condicionam a história da
evolução do homem” (1983, p. 93).
Através da venda nos olhos, levamos o indivíduo a
despertar o contato com o seu eu interior. Jaffé continua: “devido à
sua iluminação racional, à sua tecnologia e conhecimento, o homem
civilizado é muito mais livre do que o chamado primitivo, que
permaneceu cativo, mas também salvaguardado, pela natureza e
pelo inconsciente” (Ibidem, p. 93).
A consciência do homem civilizado se desenvolveu ao
longo de sua história, possibilitando a comunicação e a liberdade de
criação. No entanto, a alta valorização da consciência racional e a
primazia do ter em detrimento ao ser, lesaram nossa relação afetiva
e emocional, sendo a gênese de muitas das nossas neuroses e
doenças. Por isso, a experimentação e a valorização do substrato
psíquico são fundamentais ao ser humano. É essencial para a
formação da subjetividade do homem a consciência individual, ou
seja, a personalidade consciente, que é a única capaz de nos
possibilitar a ir contra os movimentos de massificação de uma
sociedade cada vez mais capitalista. Cremos ser esse o significado
social da busca da subjetividade.
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Cabe ao sujeito, portanto, escolher o caminho a seguir: a
liberdade com responsabilidade ou o aprisionamento. Refletamos
sobre o que diz Chopra (1994) sobre a visão que cada um deve
escolher: “a escolha é sua. Você pode escolher ver a rosa fenecer e
morrer ou pode preferir ver a rosa como uma onda de vida que jamais
termina, pois no ano que vem novas rosas nascerão da semente desta”
(Chopra, p.54).
Silveira (1992) citando Jung considera os produtos da
função imaginativa do inconsciente como “auto-retratos do que está
acontecendo no espaço interno da psique, sem quaisquer disfarces
ou véus, pois é peculiaridade essencial da psique configurar
imagens de suas atividades por um processo inerente à sua natureza.
A energia psíquica se faz imagem, transforma-se em imagem”
(Chopra, p.85).
Se é difícil um entendimento imediato do que as imagens
nos dizem, isso não significa que elas estão mascarando conteúdos
reprimidos, e sim, porque estão sendo representadas por uma outra
linguagem: a simbólica, cuja significação desconhecemos ou
esquecemos. Essa incompreensão se dá porque às vezes,
consideramos a linguagem racional, como a única e legítima.
“Pintar [ou modelar] aquilo que vemos diante de nós é uma arte
diferente de pintar [ou modelar] o que vemos dentro de nós” nos diz
Jung (1978, apud, Silveira, 1992) que completa:
O que importa é o indivíduo dar forma, mesmo que
rudimentar, ao inexprimível pela palavra: imagens
carregadas de energia, desejos e impulsos. Somente
sob a forma de imagens a libido poderá ser
apreendida viva, e não esfiapada pelo repuxamento
das tentativas de interpretações racionais.
Imagem e significação são idênticas para Jung. Quando a
imagem se configura, também a significação torna-se clara. De fato,
as imagens arquetípicas não necessitam de interpretação: elas
retratam sua própria significação. Diz ainda Jung:
As imagens simbólicas, com suas múltiplas faces,
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
exprimem os processos psíquicos de modo mais
precioso e muito mais claramente que o mais claro
dos conceitos. O símbolo não só transmite a
visualização dos processos psíquicos, mas também, e
isso é importante, a re-experiência desses processos
(1978, apud, Silveira, 1992, p. 87).
O psicólogo ou arteterapeuta tem a função de facilitar ao
indivíduo a compreensão da busca da subjetividade, o que “significa
cada um tornar-se o indivíduo que realmente é em seu resumo
original” (Silveira, 1992, p. 87).
A argila conforme Oaklander (1980, p. 85), “promove a
manifestação ativa de um dos processos internos mais primários.
Proporciona a oportunidade de fluidez entre material e manipulador
como nenhum outro. É fácil tornar-se uno com a argila. Ela oferece
tanto experiência tátil quanto cinestésica”. Sua expressão é, como
diz C. G. Jung em suas Memórias, Sonhos e Reflexões (Jaffé, 1975,
p. 158):
Na medida em que conseguia traduzir as emoções em
imagens, isto é, ao encontrar as imagens que se
ocultavam nas emoções, eu readquiria a paz interior.
Se tivesse permanecido no plano da emoção,
possivelmente eu teria sido dilacerado pelos
conteúdos do inconsciente. Ou, talvez, se os tivesse
reprimido, seria fatalmente vítima de uma neurose e
os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do
mesmo modo. Minha experiência ensinou-me o
quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico, tornar
consciente as imagens que residem por detrás das
emoções.
Argila e indivíduo unem-se num só momento na busca da
transformação da matéria e do homem. A venda nos olhos o destitui
da maioria das intervenções externas e lhe é dada ao mesmo a
oportunidade de reencontrar ou encontrar os seus tesouros internos,
possibilitando desenterrá-los, através do processo de fantasia e
descoberta de seu trabalho na sessão. Isso dá à argila forças
curadoras da imagem arquetípica que ativarão a energia do processo
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
terapêutico, entrelaçando o criador e, a criatura e por que não dizer,
o terapeuta.
O analisado é levado a tomar parte ativa no processo
e a reconhecer-se concretamente na transformação
que vê acontecer em relação ao Objeto Material [a
argila] que ele e o analista manuseiam na sessão.
Assim, a experiência de totalidade se constela nas
mãos que tocam o objeto material (Gouvêa, 1989, p.
51).
Nessa conjectura entre a argila e o sujeito (cliente)
encontraremos a troca do calor das mãos com o frescor da umidade
da argila, na qual surge a alquimia, dando a origem às imagens
cheias de libido vividas e por viver. Segundo Gouvêa (Ibid, p. 57):
“a inércia psíquica é ultrapassada quando se dá o encontro no
trabalho com o barro”. Neste sentido, afloram os investimentos
libidinais quando se trabalha com a argila: “Na medida em que o
calor e o úmido diminuem, e quando um se apaga e outro se acaba,
surge o belo equilíbrio sob as imagens formais nas quais analista e
analisando buscarão achar esboços de secretas metáforas”(Ibidem,
p. 57)
O criador vê-se diante da sua criação e, como bem diz
Gouvêa (Ibidem, p. 57), “o barro se enrola no imaginário do
analisando, penetra no reino da pedra que há em seu interior (o Ego)
ajudando-o a sonhar seus devaneios, os mais íntimos. E quando se
ergue no objeto externo e o analisando se põe a manuseá-lo, a
esculpi-lo, é a ele mesmo (analisando) que dá forma”.
Esse processo deve dá-se num estudo de uma série de
imagens, possibilitando verificar e acompanhar o desdobramento do
sujeito dentro de seus processos intrapsíquicos. Nice da Silveira,
com o seu trabalho no Museu do Inconsciente, experienciou que
trabalhos em série feitos com pacientes, tal como os sonhos, se
examinados, descortinam a repetição de motivos e a existência de
uma continuidade no fluxo de imagens do inconsciente. A tarefa do
terapeuta será estabelecer conexões entre as imagens que emergem
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
do inconsciente situando-as dentro do contexto histórico, social e
cultural vivido pelo indivíduo ou analisando.
A argila por si só não é curativa, mas representa a
possibilidade, no processo criativo, de integrar e materializar muitas
vezes os conflitos psíquicos para a compreensão e integração desses
conteúdos à consciência, levando a conjugar imagem e ação num
processo de auto-organização e desenvolvimento, a que Jung
chamou de processo de individuação:
Com a mão que guia o cragon ou o pincel, com o pé
que executa os passos de dança, com a vista e o
ouvido, com a palavra e com o pensamento: é um
impulso obscuro que decide, em última análise,
quanto à configuração que deve surgir; é um a priori
inconsciente que nos leva a criar formas... A imagem
e a significação são idênticas e, à medida que a
primeira assume contornos definidos, a segunda se
torna mais clara (Jung, 1988, p. 65).
Dentre as várias abordagens psicoterapêuticas que
trabalham com arte destacamos a psicologia junguiana. Jung
trabalhou com símbolos na tentativa de penetrar no íntimo de seus
pacientes e no dele próprio. Pois Jung experimentava suas
descobertas, hipóteses e questionamentos.
Muitas das suas
respostas vieram através da própria prática e, como ele mesmo
dizia: “Na análise propriamente dita, é a personalidade inteira que é
chamada à arena, tanto a do médico quanto a do paciente” (Jaffé,
1975, p. 122).
O que importa ao indivíduo é dar forma, mesmo que
primária, ou seja, inexprimível através de palavras, “As imagens
estão cheias de energia, desejos e impulsos e somente sob a forma
de imagem, seja ela qual for, a libido poderá ser apreendida viva, e
não esfiapada pelo repuxamento das tentativas de interpretações
racionais (Silveira, 1992, p. 86).
O indivíduo terá a possibilidade de ressignificar esses
aprisionamentos que fazem parte do seu cotidiano, com a vendagem
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
dos olhos, enquanto instrumento facilitador que destitui o olhar do
outro e ajuda o sujeito neste estado emocional, levando-o a uma
expressão mais autêntica, encaminhando-o para uma experiência
interna, tendo a imagem como objeto desta emoção ou sentimento,
sem “sofrer” a inferência do outro e das convenções.
A TÉCNICA
Mergulhar nesse universo da argila com os olhos vendados
é entrar no oceano da entrega a um processo criador e revelador de
expressões internas. Para tal, o ambiente deverá ser o mais propício
possível para o desenvolvimento do trabalho terapêutico, um espaço
amplo e claro, com ventilação natural, de fácil limpeza, contendo
um lavatório. O indivíduo deverá estar bem acomodado e o trabalho
a ser manipulado, em uma sólida superfície.
A disposição da argila poderá ser desde um tubo compacto
até uma simples porção de forma indefinida. É mais prática a
utilização, até para acondicionamento, de um tubo de barro
compacto de aproximadamente vinte e cinco centímetros de altura
por dez centímetros de diâmetro, entendendo-se que esta dimensão
propicia ao indivíduo a facilidade de expressão, por ser uma
quantidade razoável de argila para manipulação (cerca de 2,5 kg).
Para melhor integração do sujeito com o processo de autointeriorização, faz-se uso de um equipamento de som, para suprir
qualquer ruído externo que porventura possa interferir na dinâmica
proposta.
Estando o indivíduo ciente de que será posta uma venda
nos olhos, inicia-se o processo: coloca-se uma música suave e o
arteterapeuta auxilia o indivíduo a pôr a venda nos olhos,
começando por um relaxamento, pois a própria venda traz
ansiedade acerca do que virá.
Em meio ao processo o sujeito é convidado a entrar em
contato com a sua respiração, com o seu ritmo, com o seu interior.
Como mostram Sara Païn e Gladys Jarreau, em seu livro Teoria e
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
Técnica da Arteterapia (1996), a primeira imagem de identificação
do ser humano é com ele mesmo. No início o sujeito é o seu corpo,
ou seja, o Eu corporal, esse instrumento que comanda para alcançar
um objeto.
Estando para finalizar o relaxamento, o indivíduo é posto
em contato com a argila, que até então estava coberta, sendo ele
conduzido a partir de então, a um processo de criação, onde ao
mesmo tempo o sujeito é um eu - proprietário do corpo, enquanto
comanda os movimentos e um eu autor, enquanto criador da
transformação da matéria-prima em obra.
Enfatizamos os seguintes pontos para a continuação do
processo:




Olhar tátil através da sua visão interior;
Afastamento ou distanciamento dos pensamentos racionais;
Modelagem da argila: amassar, retirar, furar, etc.;
Pausa de descanso, seguida de uma conscientização da
respiração;
 Manuseio da peça, sentindo-a em sua forma total;
 Continuação do processo de moldagem;
 Apropriação e a retenção; uma palavra para o que se está
„vendo‟ e sentindo;
 Ênfase nos retoques para a finalização do trabalho;
 Promoção da busca das sensações do momento, deixando-se
o indivíduo sentir todo processo.
 Cobertura da peça, de maneira que o indivíduo não a veja;
 Tempo para lavar as mãos, tomar água, etc.;
 Colocação à disposição de papel e lápis;
 Pedido de que o indivíduo diga a palavra escolhida;
 Descobrimento da peça;
O trabalho expressivo com a argila com os olhos vendados
está concluído. Ele permitiu que os possíveis desejos internos, os
afetos, as emoções e os tesouros enterrados no sujeito viessem à
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
tona, dando uma forma concreta ao conteúdo latente no seu
subconsciente. Na peça ficam as marcas do estado afetivo, expresso
pelo cognitivo. A própria expressão modelada fala de uma realidade
que ultrapassa a linguagem verbal. Ela fala de conteúdos que foram
reproduzidos, de elementos significativos traduzidos em função da
necessidade interna do indivíduo. Pelo simples fato de existir como
objeto, dá ao seu criador uma provável diretriz no caminho de
construção da subjetividade.
Para concluir o trabalho entregamos um questionário
contendo as seguintes questões:
1. Como se sentiu ao modelar?
2. Como se sente vendo sua obra?
3. Qual é o título?
4. Que mensagem ela transmite ou que você lhe dá?
O questionário é mais um recurso no sentido de estimular o
sujeito a associar livremente, conjugando sentimento e significação
ao trabalho que produziu. Como o terapeuta não lê a peça modelada
conforme seus próprios juízos, ele tem na fala do sujeito pistas dos
conteúdos inconscientes que estão compostos na argila trabalhada.
Desse modo, arte e palavra, obra e criador podem
encontrar-se. É esta, a possibilidade do sujeito se defrontar com o
non sense que pulsionalmente suas mãos arquitetaram, mas que
aponta para a realidade psíquica vivida. Ao falar sobre o que fez e
como se sente, pode-se dar às vivências do sujeito um novo sentido,
que por vezes ele próprio nem previa atribuir. Não é raro que ao
falar do seu trabalho, venham à consciência sentimentos e
lembranças até então recalcadas. Enquanto ser de linguagem, o
achar-se e o perder-se nas palavras são condições de sua existência.
Neste trabalho, o sujeito conta ainda com sua arte, produção sua,
que lhe serve como espelho ou mola para que se aproprie dos
sentimentos que vivencia e dos conteúdos subjetivos subjacentes à
sua consciência.
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta perspectiva junguiana Nise da Silveira implantou
nos centros psiquiátricos a pintura, a modelagem e outras
atividades, todos eles constituindo espaço que proporcionavam
condições para a expressão das vivências dos pacientes que
frequentavam os núcleos de atividades. Verificou ela que essas
atividades tinham em si mesmas qualidades terapêuticas, pois
davam forma a emoções tumultuadas, despotencializando-as e
objetivando forças autocurativas que se moviam em direção à
consciência, isto é, à realidade. Dessa forma surgiu o Museu da
Imagem do Inconsciente, no Rio de Janeiro, tendo como objetivo a
compreensão do processo psicótico e o valor do trabalho terapêutico
que ameniza o sofrimento psíquico.
A partir do estudo realizado, concluímos que a tarefa do
terapeuta/arteterapeuta será estabelecer conexões entre as imagens
(peças de argila) e a situação emocional do indivíduo. Essa forma
de expressão é importante para o alívio do sofrimento psíquico,
esteja o indivíduo mergulhado em problemas sérios ou apenas
almejando explorar a si mesmo e a seus sentimentos. Em ambos os
casos, usar-se-á como instrumento a arte objeto principal do
trabalho com a arteterapia. Assim sendo, o trabalho elaborado traz
uma percepção baseada no cognitivo-simbólico do sujeito levandoo a descobrir-se por meio de insights e favorecendo seu autocrescimento psíquico.
A criação estimula a observação e o desenvolvimento de
uma relação mais íntima e afetiva consigo mesmo, com outras
pessoas e com os diversos materiais, proporcionando uma visão
diferente e transformadora, não só da matéria-prima (argila), mas
das situações que a vida pode proporcionar. Ao vivenciar o
processo artístico, o indivíduo descortina um amalgamamento
consigo mesmo, com a vida e com o mundo, conscientizando-se de
que é criador de sua subjetividade, do seu autoconhecimento e
criatividade.
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COM TEXTO, Ano VIII, no 1
Precisamos, para a nossa saúde psíquica, entrar em contato
com nossas imagens inconscientes, estejam elas presentes nos
sonhos, na imaginação ou na nossa expressão artística. Como
afirma Nice da Silveira, que trouxe a proposta de Jung para o Brasil,
as imagens e significação são coisas idênticas. Quando o criador
cria a sua obra, ela se configura tornando a significação clara, ou
seja, a imagem simbólica formada tem suas várias faces,
expressando os processos psíquicos de maneira mais clara e precisa
muito mais do que conceitos ou palavras. Essa simbologia não só
diz e mostra os processos psíquicos, como também é importante
pela ressignificação desta vivência.
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