Cadernos Nietzsche
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cadernos Nietzsche São Paulo – 2002 No 13 ISSN 1413-7755 Os artigos publicados nos cadernos Nietzsche são indexados por Clase cadernos Nietzsche no 13 – São Paulo – 2002 ISSN 1413-7755 Editor / Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche Editor Responsável / Editor-in-Chief Scarlett Marton Editor Adjunto / Associated Editor Fernando de Moraes Barros Conselho Editorial / Editorial Advisors Ernildo Stein, Gerd Bornheim, Paulo Eduardo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho Comissão Editorial / Associate Editors André Luís Mota Itaparica, Clademir Luís Araldi, Ivo da Silva Júnior, Sandro Kobol Fornazari, Vânia Dutra de Azeredo, Wilson Antônio Frezzatti Júnior Endereço para correspondência / Editorial Offices cadernos Nietzsche Profa. Dra. Scarlett Marton A/C GEN – Grupo de Estudos Nietzsche Departamento de Filosofia – Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55-11-3818.3761 – Fax: 55-11-3031.2431 e-mail: [email protected] – Home page: www.fflch.usp.br/df/gen/gen.htm Endereço para aquisição / Administrative Offices Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Sala 1005 01060-970 – São Paulo – SP – Brasil Tel./FAX: 55-11-3814.5383 [email protected] www.discurso.com.br cadernos Nietzsche é uma publicação do GEN Apoio: Projeto gráfico e editoração / Graphics Editor: Logaria Brasil® Foto da capa / Front Cover: C. D. Friedrich – Der Wanderer über dem Nebelmeer, 1818 1.000 exemplares / 1.000 copies Fundado em 1996, o GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – persegue o objetivo, há muito acalentado, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamento de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acerca de questões que dele emergem. As atividades do GEN organizam-se em torno dos Cadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têm lugar em maio e setembro sempre em parceria com diferentes departamentos de filosofia do país. Procurando imprimir seriedade aos estudos nietzschianos no Brasil, o GEN acolhe quem tiver interesse, por razões profissionais ou não, pela filosofia de Nietzsche. Não exige taxa para a participação. Scarlett Marton GEN – Grupo de Estudos Nietzsche – was founded in 1996. Its aim is to gather Brazilian researchers on Nietzsche’s thinking, and therefore to promote the discussion about questions which arise from his thought. GEN’s activities are organized around its journal and its meetings, which occurr every May and September in different Brazilian departments of philosophy. GEN welcomes everyone with an interest in Nietzsche, whether professional or private. No fee for membership is required. Scarlett Marton Sumário O “giro retórico” de Nietzsche Manuel Barrios Casares 7 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo 37 Marcelo Lion Villela Souto Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista 67 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar 89 Paulo Jonas de Lima Piva Gilvan Fogel O “giro retórico” de Nietzsche O “giro retórico” de Nietzsche* Manuel Barrios Casares** Resumo: Por meio da influência do primeiro romantismo alemão e o lugar do pensamento de Nietzsche na história da metafísica, o autor conta mostrar o papel fundamental da retórica na investigação do filósofo alemão sobre a linguagem, a ciência e a verdade. Longe de ser apenas um interesse de seus trabalhos iniciais, a perspectiva nietzschiana da retórica exerce, segundo o autor, influência em toda sua obra como apoio à crítica contra a metafísica. Palavras-chave: linguagem – metáfora – retórica – verdade Foram pensadores franceses como Michel Foucault e Jacques Derrida quem, desde finais dos anos sessenta, souberam destacar a importância da reflexão nietzschiana sobre a linguagem no conjunto de sua produção filosófica1. Mas foi, sobretudo, a partir da década de setenta, em certa medida no encadeamento da denominada “virada lingüística”, que a investigação especializada sobre Nietzsche começou a mostrar de maneira crescente um interesse específico por sua tese acerca da íntima imbricação entre palavra e pensamento.2 Hoje, em meio a um clima mais consolidado de reabilitação do papel da retórica no discurso filosófico, esta via de aproximação da * ** Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr. Professor da Universidad de Sevilha, Espanha. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 7 Casares, M. B. obra de Nietzsche oferece perspectivas inspiradoras e renovadoras de leitura, que incitam a aprofundar tanto o conhecimento histórico-filológico dos escritos nietzschianos dedicados a tal temática quanto o debate filosófico sobre sua significação e alcance. Nesse sentido, conto apontar para algumas conexões que me parecem esclarecedoras entre dois aspectos da atual interpretação de Nietzsche, nos quais a virtualidade de tal via de aproximação se prova de modo particularmente frutífero. Um deles remete ao capítulo das influências do primeiro romantismo no pensamento nietzschiano de juventude. O outro, à discussão sobre o lugar ocupado por Nietzsche em relação à história da metafísica. Como se sabe, tal discussão requer – mais por exigência mesma do horizonte do pensar que nos é próprio do que por pura inércia acadêmica – o confronto com a interpretação heideggeriana de Nietzsche como o último dos metafísicos, isto é, enquanto finalizador da marcha niilista da cultura ocidental. Pois bem, a propósito deste segundo aspecto, cabe de antemão sugerir o seguinte: que a concepção da natureza essencialmente retórica da linguagem, que podemos achar explicitamente formulada em alguns textos juvenis de Nietzsche, convida a restabelecer o estrito ditame de Heidegger de modo similar ao da reivindicação – feita por estudiosos como Ernesto Grassi – de uma tradição renascentista de humanismo retórico – cujo cume epigonal teria sido Vico – apta a problematizar a equiparação heideggeriana do humanismo com uma antropologia de índole metafísica, a qual considera o homem como um mero ente entre outros entes.3 De fato: sendo para Grassi o específico daquele pensar humanista o primado da palavra – entendida em seu caráter tropológico e em sua concreta historicidade –, isso impede de tomá-lo por uma mera antecipação do modelo cartesiano de racionalidade, assim como, em geral, da “imagem do mundo” da metafísica moderna e sua idéia do conhecer enquanto representação objetivante. Em paralelo a esta observação, a advertência de que, desde o início, Nietzsche concebeu toda lin- 8 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche guagem como um exercício retórico complica, ao menos, o tratamento heideggeriano dos grandes temas de sua filosofia da maturidade como teses metafísicas culminantes da onto-teologia moderna por meio das quais se pretende determinar a essência do que é. Semelhante advertência sobre a característica pós-metafísica do estilo do pensar nietzschiano – baseada numa nova consciência filosófica do logos – supõe a consideração de que a dedicação do jovem Nietzsche ao tema das relações entre retórica e linguagem não foi puramente ocasional, mas que deixou uma marca duradoura em sua meditação ulterior acerca das relações entre metafísica e linguagem. Neste ponto deve-se precisar, portanto, uma opinião como a de Philippe Lacoue-Labarthe, quem, apesar de ter sido praticamente o primeiro a resenhar a sintonia das idéias expressadas por Nietzsche em seu Curso de retórica do inverno de 1872/73 e as de seu ensaio coetâneo, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral – habitualmente considerado, com razão, um importante indício do caminho posterior de seu pensamento –, sustenta a falta de continuidade daquele projeto filosófico na obra nietzschiana da maturidade. No mesmo número da revista Poétique em que traduziu, junto com Jean-Luc Nancy, uma seleção de textos de Nietzsche sobre a linguagem que incluía as primeiras seções do Curso, LacoueLabarthe publicou um artigo que, já no título – Le détour –, punha ênfase na idéia de que esse interesse do filósofo pela retórica havia resultado, sobretudo, num desvio episódico e que, a partir de 1875, ela havia deixado de ser para ele um instrumento privilegiado de análise.4 Entre os anos de 1872 e 1875 produziu-se, segundo LacoueLabarthe, uma mudança significativa no pensamento nietzschiano, que propiciou sua despedida da “metafísica de artista” exposta em O nascimento da tragédia. Isso teve lugar, fundamentalmente, na raiz da leitura de Nietzsche dos livros de Richard Volkmann – Die Rhetorik der Griechen und Römer in systematischer Uebersicht cadernos Nietzsche 13, 2002 | 9 Casares, M. B. dargestellt – e de Gustav Gerber – Die Sprache als Kunst –, bases preparatórias para as aulas do curso de Retórica ministrado na Universidade da Basiléia durante o semestre de inverno de 1872/73 (curso que contou unicamente com dois alunos). A tais leituras devese somar aquelas de obras como, por exemplo, A natureza dos cometas (1871) de J. C. F. Zöllner,5 em que se desenvolve uma teoria sobre a “origem da consciência científica” a partir de uma perspectiva psicofisiológica – afim, em tudo, com a Schopenhauer – e que serviu a Nietzsche para estender sua crítica ao valor “moral” da verdade atinente ao âmbito do conhecimento científico ao da arte, já que não haveria duas esferas separadas da linguagem (as quais corresponderiam à arte e à ciência), mas dois níveis – inconsciente e consciente – em que ela desdobraria suas funções. Mais do que uma reiteração do questionamento inicial acerca do valor puramente objetivo da visão científica do mundo, Lacoue-Labarthe vê, nessa aproximação de Nietzsche da retórica, um meio para liquidar os pressupostos de sua primeira teoria romântica da arte, o que parece confirmado pelo tom das anotações dessa mesma época para o projetado e nunca acabado Livro do filósofo. Menos convincente parece, por sua vez, sua opinião de que, uma vez cumprida tal tarefa, a retórica desaparece por completo do campo de observação da crítica nietzschiana da linguagem em favor de um tipo de análise mais naturalista – apoiada em argumentos fisiológicos. Como procuraremos mostrar, a óptica por ela proporcionada seguiu sendo a chave para o conjunto do debate nietzschiano com a metafísica e, em particular, para sua controvérsia com uma Filosofia da História de inspiração igualmente transcendente. Em primeiro lugar, deve-se dizer que o interesse específico de Nietzsche pela questão da linguagem remonta, no mínimo, aos anos de 1868. Inicialmente, manifesta-se em considerações dispersas, que antecipam suas idéias sobre o caráter figurativo de toda linguagem,6 e, depois, em fragmentos concisos de redação algo mais sis- 10 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche temática, como, por exemplo, sua introdução ao curso de gramática latina de 1869/70, em que, tal como reza o título – “Vom Ursprung der Sprache” –, procura-se abordar o problema da origem da linguagem (num estilo argumentativo que recorre igualmente as essas explicações “naturalistas” e que, de maneira tão ambígua, salpicam no resto de sua obra). E, como mostrou Claudia Crawford em seu estudo sobre os inícios da teoria nietzschiana da linguagem,7 A filosofia do inconsciente (Berlim, 1869) de Eduard von Hartmann representa, aqui, a principal fonte de inspiração das teses do jovem Nietzsche sobre a impossibilidade de se pensar à margem da linguagem e a sua condição de produto do instinto.8 Por meio de Hartmann, Nietzsche abre-se à influência das concepções de Schelling, de quem cita, à guisa de conclusão do escrito, este parágrafo extraído de sua Filosofia da mitologia: “Dado que sem linguagem não se pode conceber nenhuma consciência filosófica e nem sequer simplesmente a humana, não foi a consciência que presidiu a fundação da linguagem; e, no entanto, quanto mais adentramos em sua natureza, tanto mais nos asseguramos de que ela supera, com sua profundidade, todo tipo de produção consciente. Sucede com a linguagem o mesmo que com o ser orgânico: ao vê-lo, o imaginamos formar-se cegamente e, ao mesmo tempo, é-nos impossível negar a insondável intencionalidade de tal formação até nos menores detalhes.” 9 Em primeira instância, o jovem Nietzsche admite essas idéias acerca da linguagem sob um contexto ainda dominado pela doutrina schopenhaueriana do mundo como vontade e representação. As conseqüências de tal assunção dentro de um escrito como O nascimento da tragédia expressam-se, a ser assim, na forma de uma equívoca alternância entre fórmulas de caráter dualista e outras que anunciam a crise iminente da “metafísica de artista”. Nietzsche lê, então, a tese de Schelling acerca de um âmbito prévio à consciência cadernos Nietzsche 13, 2002 | 11 Casares, M. B. – em que a linguagem acha seu fundamento – ou a tese de Hartmann sobre um instinto inconsciente – criador da linguagem – em correlação com sua idéia do Uno-primordial; e ainda que tenda a conceber esse Uno-primordial como o fundo irracional da existência, em que a vontade dionisíaca de viver e o princípio apolíneo de individuação se vêem remetidos a uma enigmática raiz comum, em numerosas passagens, e com evidente inconsistência, termina por identificá-lo sem mais com a noção schopenhaueriana de Vontade, como se tratasse de um fundamento separado do mundo da aparência.10 Daí estabelecer-se, em O nascimento da tragédia, um hiato ontológico entre a arte da palavra, que comunica idéias e sensações somente na medida em que as traduz em outra esfera, e a arte da música, a qual, conforme aos ensinamentos de Schopenhauer, resulta ser expressão imediata e adequada do em-si do mundo.11 As conseqüências de tão drástica diferenciação para o primeiro diagnóstico nietzschiano da cultura de seu tempo resumem-se, como é sabido, por um lado, numa crítica acérrima à pobreza e à falta de transparência de toda linguagem racional, incapaz de apreender a vivacidade das coisas com os esquemas exangues da abstração conceitual, e, por outro, numa inquietante esperança no “renascimento do mito alemão” (GT/NT § 23). Sem dúvida, essa rígida contraposição entre a artificialidade da palavra e a imediatez da música – com suas seqüelas no terreno da crítica da cultura e seu paralelo em uma compreensão da história aderida ao modelo teológico do tempo corrupto redimido desde fora – constitui o autêntico e último lastro metafísico que, como o próprio Nietzsche haveria de reconhecer anos mais tarde no “Ensaio de autocrítica” de 1886, deforma seu primeiro livro com penosas “fórmulas schopenhauerianas e kantianas” (GT/NT, “Tentativa de autocrítica”, § 6), como, por exemplo, a distinção entre “coisa em si” e “fenômeno”. No entanto, na medida em que a consideração nietzschiana da retoricidade da linguagem vem precisamente questionar tal 12 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche chorismós, ela introduz, com isso, uma modificação em seu estabelecimento da relação crítica com a cultura do presente, que já é uma constante ao longo de sua obra. Por isso é que o mencionado desvio de Nietzsche pela questão da retórica me parece algo da ordem do decisório – e não meramente episódico – para o caminho de sua filosofia da maturidade. De fato, a tese básica exposta no Curso de retórica segundo a qual os tropos não são um simples acréscimo à linguagem, mas sua mais íntima natureza, e de que, por conseguinte, a retórica não é mais que um aperfeiçoamento dos artifícios já presentes na linguagem,12 comporta tanto uma objeção capital à pretensão metafísica de um dizer epistêmico completamente desligado do discurso persuasivo da dóxa – objeção esta que é típica da crítica genealógica – quanto uma antecipação dessa indistinção última entre filosofia e literatura – ou entre conceito e metáfora – que os textos nietzschianos irão, depois, praticar com lucidez. Dado que esta crítica à pretensão fundamentadora da metafísica não desemboca na mera substituição da epistême de um mundo verdadeiro pela fábula de um mundo aparente, mas, antes de tudo, no problema de sua indistinção, cabe supor que o progressivo desinteresse de Nietzsche pela retórica como disciplina obedece ao fato de que esta não representa, em definitivo, mais que um caso particular e derivado da artística potência figurativa implícita em toda linguagem. Nietzsche concentra, assim, seu interesse na dimensão da linguagem como uma “arte inconsciente”, informado do sentido tão limitado em que se deve conceber a retórica como algo a mais do que uma arte do ornamento discursivo e que, certamente, ele criticou desde as primeiras seções do Curso. É provável também que o desuso de uma terminologia que remeta ao terreno da retórica deva-se, afinal de contas, ao fato de que sua atenção ao problema da origem e da função da linguagem tenha sido suscitada como uma questão induzida a partir de preocupações preferencialmente gnosiológicas e, em úl- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 13 Casares, M. B. tima instância, da crítica da metafísica e da crítica da cultura. Mas que na obra tardia não encontremos ainda uma dedicação específica à retórica – do mesmo modo que tampouco achemos um emprego sistemático de um termo antes central, como, por exemplo, o de “metáfora” – não deve obscurecer o fato mais essencial de que, através da categoria hermenêutica de “interpretação”,13 Nietzsche assumiu as conseqüências do modo de entender a linguagem que expõe tanto no mencionado Curso de retórica quanto no ensaio Sobre verdade e mentira.14 Tal como se procurou indicar, foi a partir do distanciamento do jovem Nietzsche das teses de sua primeira “metafísica de artista” que Lacoue-Labarthe tratou de explicar o interesse presumidamente ocasional do filósofo alemão pela retórica, isto é, enquanto expressão de uma tendência anti-romântica. No entanto, ele próprio deveria admitir que a intenção de Nietzsche de se afastar do romantismo, através de uma concepção da linguagem que tenha uma de suas principais fontes de inspiração na obra de Gustav Gerber, religaria-o com tal tradição. Como se vê, aqui é possível descerrar um outro aspecto da recente investigação sobre Nietzsche, quer dizer, a influência do primeiro romantismo em seu pensamento – que foi mencionado no início como susceptível de esclarecimento à luz de suas reflexões sobre a linguagem. Convém, pois, começar a matizar a complexa relação de Nietzsche com a tradição romântica para além daquilo que as valiosas indicações de Lacoue-Labarthe puderam fazer. Nessa linha de trabalho, Anthonie Meijers soube salientar e precisar melhor a importância do conhecimento das teses de Gerber por parte do jovem Nietzsche, uma questão apenas tratada pela literatura secundária.15 Gerber foi um teórico da linguagem da segunda metade do século XIX, autor de uma obra situada na esteira da filosofia lingüística romântica – Die Sprache als Kunst – e cujo primeiro volume, surgido em 1871, Nietzsche empregou como fonte principal para as con- 14 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche siderações desenvolvidas nas notas preparatórias do Curso de retórica, citando-a em várias ocasiões. Sua afirmação de que a retórica é um prosseguimento consciente dessa forma de arte inconsciente que é a linguagem, ou a de que, devido a sua condição essencialmente artificial, não nos é dado apreender por meio dela a essência das coisas, mas somente nossa maneira de nos relacionarmos com elas, são idéias que provém, a ser assim, diretamente de Gerber. E mais: asseverações tais como a de que “todas as palavras são, desde o princípio, em si e em sua significação, tropos”,16 junto a numerosos exemplos e citações de apoio, possuem uma correspondência quase literal no texto de Gerber, que Meijers e Martin Stingelin se encarregaram de estabelecer com louvável esmero filológico.17 Meijers discute, além disso, a apreciação feita por LacoueLabarthe de que Nietzsche se limitou a tomar de outros autores a maior parte do conteúdo de suas anotações para o Curso de retórica (“purement et simplement recopié”). Também nesse caso, e em que pese o mérito de ser um dos primeiros a mencionar uma chave levada em pouca consideração para o conhecimento da filosofia de Nietzsche, Lacoue-Labarthe minimiza sua importância. Meijers sugere que isso se deve, em todo caso, à circunstância de que o estudioso francês tampouco atentou para a relevância da influência exercida pela obra de Friedrich Albert Lange – História do materialismo e crítica de sua significação no presente (1866) – nessa etapa do pensamento nietzschiano. Do contrário, ele teria sabido reconhecer até que ponto “Nietzsche encontrou na linguagem como arte um novo argumento em favor de uma posição teórico-gnosiológica na linha de Lange: o do caráter metafórico da linguagem, remetido por Gerber, além do mais, a um impulso artístico”.18 De fato, no próprio texto de Gerber esta concepção de linguagem aplica-se já a uma crítica da metafísica em geral e de alguns conceitos metafísicos em particular, como, por exemplo, o de “coisa em si” – em sintonia com as doutrinas de Lange. Não é, pois, em tal aspecto que Meijers cadernos Nietzsche 13, 2002 | 15 Casares, M. B. resume a originalidade de Nietzsche, mas em traços como o da maior ênfase posta nesse caráter basicamente metafórico de toda linguagem, isto é, que subverte a prioridade habitualmente concedida a sua função referencial diante do recurso intralingüístico das figuras do discurso – que, posteriormente, terminou por se desenvolver em seu escrito Sobre verdade e mentira. Se, portanto, ambos compartem a convicção da natureza trópica da palavra, Gerber reserva o termo “Metapher” para a tradução da sensação ao som enquanto Nietzsche, por seu turno, estende-o à transposição (Übertragung) prévia do estímulo nervoso à sensação.19 Em todo caso, não se pode negar uma especial penetração à maneira por meio da qual Nietzsche dispõe as preliminares de sua crítica à gramática metafísica baseado no argumento de que “não existe em absoluto uma ‘naturalidade’ não retórica da linguagem a que recorrer, sendo a linguagem como tal o resultado de artes puramente retóricas.”20 Esta crítica começa, como foi dito, desqualificando qualquer pretensão de apreender a verdadeira essência das coisas a partir de um exame da relação entre retórica e linguagem na terceira epígrafe do Curso de retórica. Nietzsche reivindica, de passagem, o valor da retórica enquanto arte e justamente em sua condição “artificiosa”, tal como depois irá fazer com essas “designações impróprias” que são os tropos – na medida em que não há significação própria alguma –, para afirmar na linha seguinte: “O que Aristóteles chama de Retórica, a capacidade de desentranhar e extrair o que em cada coisa é ativo e produz impressão, é, ao mesmo tempo, a essência da linguagem, a qual guarda a mesma relação – mínima – que a retórica com aquilo que é verdadeiro, com a essência das coisas; não pretende instruir, mas transmitir a outro uma emoção e uma apreensão subjetivas. O homem configurador da linguagem não apreende coisas ou fatos, mas estímulos: não reproduz sensações, mas simples cópias das mesmas. A sensação provocada por um estímulo nervoso não 16 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche alcança a coisa enquanto tal: essa sensação apresenta-se (dargestellt) ao exterior através de uma imagem. Mas, em todo caso, alguém se pergunta: como pode representar-se um ato anímico mediante uma imagem acústica? Para que a reprodução fosse absolutamente precisa, não deveria ser o próprio material de que se deve constituir a reprodução o mesmo que aquele em que trabalha a alma? Mas, dado que esse material é um elemento estranho – o som –, como poderia resultar nessas condições algo mais adequado que uma imagem?” 21 Com a idéia segundo a qual a imagem faz o estímulo percebido transpor uma esfera inteiramente distinta, Nietzsche avança um passo a mais em sua operação de desmontagem das ilusões lingüísticas da metafísica, exercida aqui mediante essa incipiente crítica ao modelo da verdade como adequatio. Na realidade, tal como Enrique Lynch examinou com perspicácia e com riqueza de detalhes naquele que continua sendo, até o momento, o estudo mais completo publicado em castelhano sobre a teoria nietzschiana da linguagem,22 Nietzsche recorre a uma representação do conhecimento como espelho, estruturalmente análoga, em princípio, àquela que é própria da gnosiologia moderna; no entanto, ele especifica que o que se reflete em tal espelho não é senão nossa imagem do mundo – e isso o distingue de toda confiança metafísica na possibilidade de acesso a um “mundo verdadeiro”–, ou seja, ele é consciente de que se trata sempre de uma representação derivada, em suma, de uma metáfora mesma, já que a imagem translada a uma esfera diferente e simboliza o representado por ela.23 Em conseqüência, conclui a passagem acima citada: “Não são as coisas que penetram na consciência, mas a maneira que nos relacionamos com elas, o pithanón. A plena essência das coisas não se apreende nunca. Nossas expressões verbais não esperam de nenhum modo que nossa percepção e experiência nos tenham subministrado um cadernos Nietzsche 13, 2002 | 17 Casares, M. B. conhecimento multifacetado, até certo ponto aceitável, das coisas: têm lugar imediatamente quando se sente o estímulo. No lugar das coisas, a sensação somente incorpora um signo. Esse é o primeiro ponto de vista: a linguagem é retórica, pois unicamente quer comunicar uma dóxa, não uma epistême.” 24 Neste ponto, a argumentação do Curso de retórica vem enredarse diretamente na tese acerca da origem metafórica dos conceitos exposta na única parte do Philosophenbuch que nos foi transmitida de forma mais ou menos completa, isto é, o escrito do ano de 1873, Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral. Aí, após descrever o processo mediante o qual a coisa se nos apresenta traduzida primeiro como estímulo nervoso, depois como imagem e, finalmente, como som articulado, concluindo, em virtude disso, que “não temos mais que metáforas das coisas, que não correspondem em absoluto às essencialidades originárias” (WL/VM § 1), Nietzsche explica como o conceito constitui unicamente mais um passo dentro de tal processo, um passo consistente na petrificação e na perda de força plástica e sensível de determinadas metáforas devido a seu uso – com o conseqüente esquecimento de tal condição. O conceito é, assim, o resíduo de uma metáfora que se esqueceu que é uma metáfora e que, por isso, crê na ilusão da transposição artística em que baseia sua captação do real. Somente graças a esse esquecimento do mundo primitivo de metáforas pode o homem, de resto, viver com certa tranqüilidade, segurança e conseqüência, quer dizer, acreditando que o mundo percebido por ele é uma verdade em si: “Custa-lhe já esforço reconhecer que o inseto ou o pássaro percebem um mundo totalmente distinto ao do homem, e que a questão de qual das duas percepções de mundo é mais correta resulta completamente sem sentido, já que para isso teria que se medir com o critério da exata percepção, isto é, com um critério não disponível. Assim, a percepção exata 18 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche – que seria a expressão adequada de um objeto no sujeito – parece-me um absurdo cheio de contradições: pois entre duas esferas absolutamente distintas como são o sujeito e o objeto não há nenhuma causalidade, nenhuma exatidão, nenhuma expressão, senão, no máximo, um comportamento estético, quero dizer, uma transposição indicativa, uma tradução balbuciante a uma linguagem completamente estranha. Para a qual se requer, em qualquer caso, uma esfera e uma força intermediárias que poetizem e inventem livremente. A palavra fenômeno encerra muitas seduções, pelo que a evito o máximo possível, já que não é verdade que a essência das coisas manifeste-se no mundo empírico.” 25 A significação das teses defendidas nesse ensaio foi motivo de amplo debate em numerosas ocasiões e, em data ainda não muito distante, serviu para enclausurar Nietzsche numa atitude irracionalista que, mediante uma “crítica total e, portanto, auto-referencial da razão”,26 desqualifica por inteiro o discurso da ciência para se refugiar uma vez mais no recurso esteticista de uma nova época da arte e do mito trágicos. Certamente, a aspiração – formulada nas páginas finais do ensaio – à libertação do impulso formativo de metáforas da sujeição cotidiana do intelecto ao férreo entrançamento dos conceitos pode, à primeira vista, parecer coincidente com aquelas passagens de O nascimento da tragédia em que se percebe, com maior nitidez, o seu vínculo com o programa romântico inicial de uma Nova Mitologia. Mas é justamente aqui que se deve precisar a autêntica inflexão que essas novas considerações sobre metáfora, retórica e linguagem provocaram no decurso de seu pensamento, e cujo exame contribui, além disso, para aclarar por que o nexo de Nietzsche com a Frühromantik não se circunscreve a essa paradoxal seqüela do projeto de uma “mitologia da razão” constitutiva de seu primeiro livro. O caso é que seu distanciamento posterior da apelação wagneriana ao mito se faz no espírito mesmo dessa “ilustração superior” pretendida pelo ideário do romantismo inicial. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 19 Casares, M. B. Nietzsche despede-se de algumas das principais hipotecas românticas tardias herdadas de seus grandes mestres de juventude – Schopenhauer e Wagner – graças, entre outros motivos, a uma reflexão sobre a índole artística de toda linguagem, que procede do contexto daquela primeira filosofia romântica. Nesse sentido, seu pensamento permanece aparentado com aqueles elementos da Frühromantik que retomam a então pouco considerada idéia viquiana de uma “sapienza poetica”, tal como esta se formula no segundo livro da Ciência nova (1744). Nessa obra, em conexão com uma teoria do mito, a linguagem poética é apresentada por Vico como a língua originária, do mesmo modo que a fantasia é entendida como a força produtora de cultura por antonomásia. Não obstante, o estatuto de “vera narratio” do mito também permaneceria, no Nietzsche da época, submetido à consideração extra-moral da verdade que se desprende de sua concepção da gênese tropológica da linguagem. Autores como Hamann, Herder, Jean Paul ou Friedrich Schlegel são, sem dúvida, de maneira direta ou indireta,27 referências importantes para o jovem Nietzsche, já que apelam a tal tipo de “lógica poética” com a pretensão de assaltar a rígida fortaleza dos conceitos, que se sente alheia e superior à esfera artística da fantasia e da imaginação, provando, pelo contrário, seu necessário remetimento a esta como sua condição de possibilidade. Mas Nietzsche, de sua parte, acentua aquilo que Hans Blumenberg destacou como distintivo do tratamento romântico do mito, isto é, seu ocaso em relação não tanto a uma base inquebrantável de descrição do mundo – o originário acontecer fundante –, mas quanto à sua tarefa inconclusa de redescrição e reinvenção do mesmo.28 Expoente também do intento sempre precariamente logrado de responder à radical estranheza e à falta de solo da existência, o mito deixa de ser pátria metafísica, lugar da verdade primigênia, pura e não-contaminada, para se converter em outro resultado do instinto que impulsiona à formação de metáforas (e, assim, em uma prefiguração do próprio 20 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche “trabalho no mito”29), com toda a contaminação de artifícios retóricos que, desde o princípio, estão presentes já na linguagem. Como observou Lacoue-Labarthe, uma das conseqüências mais diretas dessa concepção da retoricidade intransponível da linguagem é a liquidação dos fundamentos metafísicos de uma teoria da arte que localizava na tragédia o âmbito privilegiado de desvelamento da genuína essência do real. Em particular, a crise da vertente mais schopenhaueriana de O nascimento da tragédia, que traz à tona de maneira definitiva a tese, de marca igualmente wagneriana, da música como verdadeira linguagem, como língua originária – prévia, portanto, à poesia e como expressão direta da Vontade. A ponto de se poder dizer que, desse modo, mito e metáfora aparecem contrapostos nessa primeira inflexão do caminho do pensar nietzschiano, sendo esta, por certo, uma das razões pelas quais a obra ulterior dificilmente se deixa conter dentro das estreitas margens de um esteticismo fin de siècle. Aquilo que, a partir desse momento, faz a mediação de sua relação com as teses do primeiro romantismo é o aguçamento daquela crítica inicial ao conceito de coisa em si propiciada pela leitura de autores como Lange ou Spir.30 Se a atividade do intelecto que confere sentido e ordem ao mundo é produto de um impulso artístico do ser humano, não por isso cabe remetê-lo a um fundamento bem determinado do real, equiparável à Vontade schopenhaueriana. Não se trata, no limite, tão somente de que a coisa em si seja mera invenção de uma lógica desmemoriada, um acréscimo fantástico e ilusório ao fenômeno, mas de que o próprio fenômeno como tal já é “interpretação” – resultado de uma atividade metafórica em primeira instância e, em segunda, conceitual –, haja vista que falamos de “coisas” que nos afetam e, inclusive, de afecções ou sensações à custa de traduzir estímulos de diversas significações a um significado abreviado, mais constante e uniforme. Daí que, em consonância com a exegese de Gianni Vattimo, devemos considerar que os instintos aos quais tão freqüentemente alude Nietzsche cadernos Nietzsche 13, 2002 | 21 Casares, M. B. “não são eles mesmos senão produtos históricos.”31 Por esse mesmo motivo, o predomínio do “homem intuitivo” sobre o “homem racional”, descrito nas páginas finais do ensaio Sobre verdade e mentira, que já não pode fiar-se no remetimento daquele a “uma esfera situada acima e antes de toda aparência”,32 encontra-se próximo a dar passagem à proposta de uma frutífera convivência – mesmo que num conflito permanente – entre aquilo que, doravante, não se concebe senão como dois modos de proceder do intelecto, “esse mestre da ficção”. Essa proposta, titubeante ainda em meio às Considerações extemporâneas de 1874, e que depois se prolonga ao menos até o período de Humano, demasiado humano com a idéia das “duas cavidades cerebrais, uma para perceber a ciência, outra a não-ciência” (MAI/HHI § 251), mostra a cautela de Nietzsche frente a qualquer possível recaída na “mistificação”33 wagneriana. Se essa cautela se desvanece na obra tardia, em favor de uma assídua apelação à arte como modelo para a transvaloração dos valores, isso não obedece, a meu ver, a uma volta ao paradigma vitalista operante em O nascimento da tragédia e nas citadas Extemporâneas (do qual Nietzsche se afastou na mesma medida em que chegou a reconhecer que o desmascaramento da metafísica não pode ser concluído com uma atitude puramente negativa de rejeição, senão com uma “assunção” hermenêutica), mas a um desenvolvimento coerente do ficcionalismo gnosiológico: é a metaforicidade inerente a toda atividade cognoscitiva, inclusive a da ciência, que permite pensar um desdobramento superior da mesma, isto é, que não se limite a satisfazer as necessidades da segurança vital que a tecno-ciência é capaz de dispensar somente por si. Por tudo isso, cabe concluir, com Paul de Man, que o modelo retórico do tropo não somente constitui uma chave para a crítica da metafísica empreendida nos escritos nietzschianos da maturidade, mas que é, cabalmente, aquilo que impede de tomá-la por uma mera inversão do platonismo.34 Ao remeter o desmonte das ilusões lógi- 22 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche co-gramaticais da metafísica a essa crítica da linguagem, do conhecimento e da verdade, que desvela os componentes ficcionais da razão, compreende-se, de fato, por qual motivo Nietzsche não pode, a partir dos pressupostos mesmos de sua argumentação, chegar sem mais a uma metafísica invertida, senão a um estabelecimento muito mais denso e de alcance mais enriquecedor acerca do nexo entre dóxa e epistême: a própria “História de um erro” converte-se em algo que deixa de ser contemplado simplesmente como falsidade, na medida em que contribuiu para gerar “o que hoje chamamos o mundo” (MAI/HHI § 16), e que, precisamente por isso, descobre em seu seio a possibilidade de ativar efeitos de sentido imprevistos, orientando em uma direção nova e desconhecida aquela velha vontade de verdade cultivada ao longo de séculos de cristianismo. O caráter de vir-a-ser das verdades não destitui por completo o seu sentido objetivo, ainda que se obrigue a reconhecer, como parte integrante do mesmo, um horizonte histórico-cultural conformado previamente e uma dimensão última de inapreensibilidade – derivada da circunstância de que é somente através de uma estrutura já lingüisticamente articulada que captamos e compreendemos o real. A confluência entre esse aspecto da concepção nietzschiana de linguagem e o modo por meio do qual ela desenvolve sua relação com a Frühromantik vem, a ser assim, demonstrar que as reflexões já consignadas tanto no Curso de retórica quanto nos diferentes fragmentos do Philosophenbuch se orientam numa dissolução do “mundo verdadeiro”, com a conseqüente emancipação do mito de toda estrutura metafísica de base. Foi, em suma, esse “giro retórico” que permitiu a Nietzsche despedir-se definitivamente de sua “metafísica de artista” e empreender o caminho até uma crítica genealógica, apta a elaborar uma compreensão mais profunda e rica em matizes atinentes ao problema da superação do niilismo. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 23 Casares, M. B. Abstract: Through the influence of the early German Romanticism and the position of Nietzsche’s thought within the history of metaphysics, the author aims at showing the fundamental role of rhetoric in the philosopher’s investigation on language, science and truth. Far from being just a propensity of his early studies, Nietzsche’s rhetorical perspective exerts, in the author’s view, a great influence on his whole work as a support in the battle against metaphysics. Key-words: language – metaphor – rhetoric – truth notas Cf. Foucault 16 e sua contribuição no VII Colóquio Filosófico Internacional de Royaumont (4-8 julho de 1964) (Deleuze 11), as de Philippe Lacoue-Labarthe e Jacques Derrida nas atas do Colóquio Internacional de Cérisy-LaSalle (julho 1972) (Nietzsche aujourd’hui? 39) e também Derrida 12. Uma indicação interessante acerca do parentesco do projeto nietzschiano de análise da linguagem com as Investigações filosóficas de Wittgenstein encontra-se em Danto 10 p. 121ss. Cf. também Cacciari 6. 2 Junto a outros que serão mencionados com mais atenção ao longo de nosso artigo, cabe citar trabalhos como os de Goth 19, que demonstra um tratamento preferencialmente clássico da disciplina, de Simon 45 e, num estilo mais novo, os de Kofman 25 e Man 31. Cf. também Behler 2 e Böning 5. Publicações mais recentes são a monografia de Gasser 17, o volume organizado por Kopperschmidt e Schanze 26 e o livro de Kremer-Marietti 27, basicamente introdutório e com notórias ausências de literatura secundária. 3 Cf. Grassi 21, 22 e 20. De Grassi, pode-se ler também, sobre essa questão, Grassi 23. 1 24 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche 4 Cf. Lacoue-Labarthe 28, Lacoue-Labarte e Nancy 29. Formando parte de uma edição de escritos póstumos de Nietzsche da mesma época, destinados a uma obra que deveria chamar-se Philosophenbuch, existe em castelhano, sob o título de “Retórica y Lenguaje”, uma versão tanto dessa seleção de textos quanto das notas dos editores franceses (cf.. Nietzsche 34, p. 123-189). As sete primeiras seções do Curso aí recolhidas foram publicadas pela primeira vez por Crusius 9, p. 237-269, cuja obra aqui abreviamos por GOA. Consideramos o resto do texto reiterativo e com falta de interesse para sua inclusão aqui. Na edição crítica empreendida por Colli e Montinari (Nietzsche 36) (KGW), continuada depois por Wolfgang Müller-Lauter e Karl Pestalozzi, os trabalhos de Nietzsche sobre a retórica grega apareceram no quarto volume da segunda parte, em 1995, sob cuidados de Fritz Bornmann e Mario Carpitella. Após a redação deste artigo, original de 1997, Luis Enrique de Santiago Guervós publicou em castelhano uma recomendável versão desses escritos sobre retórica (Cf. Nietzsche 35). Todas as outras obras de Nietzsche são citadas pela edição de estudo (abreviada aqui KSA, Nietzsche 37), baseada na KGW, com exceção de todos os escritos juvenis, as lições da Basiléia e os textos de caráter filológico. 5 Cf. Schlechta e Anders 44, especialmente pp. 122-127. 6 Em um texto de 1868, em que Nietzsche fala da “raiz originária da música e da poesia” (Nietzsche 38, p. 351), ele parece querer explicar o mecanismo da linguagem a partir de sua função primordial como expressão rítmica de uma sonoridade que figura e simboliza os sentimentos. Essa sonoridade prévia e inconsciente, que é imanente ao complexo volitivo do corpo, é simbolizada tanto no gesto quanto no som (cf. KSA VII, 3 [19]). Música e poesia derivam, portanto, ambas dessa musicalidade básica presente já no surgimento da linguagem. Nietzsche matiza assim, desde o cadernos Nietzsche 13, 2002 | 25 Casares, M. B. começo, a tese romântico-wagneriana da música como língua originária, ainda que em O nascimento da tragédia ganhe terreno uma separação forte entre música e palavra, que depois resultou diluída pela idéia de que a imagem sonora sempre supõe a transferência da sua dimensão inexprimível de estímulos e afetos a outra esfera distinta, de significação. Nesse sentido, música e palavra guardam ambas o mistério de uma sonoridade anterior a toda linguagem, no fundo, intraduzível. 26 | 7 Cf. Crawford 8, cap. X. 8 Nessa introdução, Nietzsche escreveu: “A linguagem não é nem um produto consciente individual nem coletivo. O pensamento consciente só é possível através da linguagem [...] A linguagem resulta demasiada complexa para haver sido elaborada por um único indivíduo; possui demasiada unidade para haver sido pela massa, é um organismo completo. Portanto, deve-se considerar a linguagem como um produto do instinto” (Philologica, Band III, in GOA XIX p. 385). 9 Cf. ibid., p. 387. Cf. Schelling 43, vol. VI, p. 54. 10 Sobre essas ambigüidades, tratei-as mais extensamente em meu estudo Voluntad de lo trágico, especialmente nos caps. VI e VII (cf. Casares 7), sugerindo que a paixão de Nietzsche pelo mundo terreno, contraditório, aparente, é uma paixão anterior e mais funda que qualquer pathos metafísico da verdade, o que anuncia, desde o princípio, sua discrepância com Schopenhauer. 11 Cf. GT/NT § 6: “a música mesma, em sua completa soberania, não necessita nem da imagem nem do conceito”; GT/NT § 21: “E enquanto a música nos constrange desse modo a ver mais, e de um modo mais íntimo do que ordinário [...]” Que coisa análoga poderia oferecer o poeta das palavras, que se esforça por alcançar aquela ampliação in- cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche terior do mundo visível da cena e de sua iluminação interna com um mecanismo muito mais imperfeito, por um caminho indireto, a partir da palavra e do conceito? [...]: a música é a autêntica Idéia do mundo, o drama é tão somente um reflexo dessa Idéia, uma isolada sombra da mesma.” 12 Cf. GOA XVIII, p. 249-250 13 Cf. Figl 15. Sobre essa mesma problemática, mas centrada no pensamento do jovem Nietzsche, cf. Figl 14. 14 Tomemos, por exemplo, Para além de bem e mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro (1886), o livro que, dito pelo próprio Nietzsche em Ecce homo, inaugura a parte de sua tarefa “que diz não”, “a transvaloração dos valores”, e que “é, em todo o essencial, uma crítica da modernidade” (EH/ EH, Para além de bem e mal, §2). Lá, na seção primeira, intitulada “Dos preconceitos dos filósofos”, encontramos uma crítica sistemática contra a base lingüística de tais preconceitos. Assim, no aforismo 16, discutindo o caráter de “certeza imediata” do “eu penso”, Nietzsche afirma que “deveríamos nos liberar, por fim, da sedução das palavras”. Retoma, então, a questão no aforismo seguinte para argumentar a propósito da “superstição dos lógicos” que consiste em “dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado ‘penso’”, que “se raciocina aqui segundo uma rotina gramatical”. Depois, o aforismo 19 faz da vontade “algo que somente como palavra forma unidade”, ou seja, uma “unidade verbal” que só o é pelo “preconceito popular que se assenhoreou da sempre exígua cautela dos filósofos”. No aforismo 20 diz: “Justamente aí onde existe um parentesco lingüístico resulta de todo ponto impossível evitar que, em virtude da filosofia comum da gramática – ou seja, em virtude do domínio e da direção inconscientes exercidos por funções gramaticais idênticas –, tudo se ache disposto de antemão para um desenvolvimento e sucessão homogêneos cadernos Nietzsche 13, 2002 | 27 Casares, M. B. dos sistemas filosóficos: igualmente parece estar fechado o caminho para certas possibilidades distintas de interpretação do mundo”. Por último, no aforismo 21, com argumento e termos importados diretamente do ensaio Sobre verdade e mentira, lemos: “Nós somos os únicos que inventamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e sempre que introduzimos ficticiamente e misturamos esse mundo de signos, como se fora um ‘em si’ nas coisas, continuamos atuando de igual maneira que temos atuado sempre, a saber, de maneira mitológica”. 15 28 | Cf. Meijers 32 16 Cf. GOA XVIII, p. 249. Gerber 18, p. 333: “Alle Wörter sind Lautbilder und sind in Bezug auf ihre Bedeutung an sich und von Anfang an Tropen”. 17 Cf. Meijers e Stingelin 33. Apesar de Meijers e Stingelin estabelecerem também uma concordância entre passagens da obra de Gerber e o ensaio Sobre verdade e mentira, aqui a correspondência literal não é tão direta, citando praticamente exemplos que Nietzsche tomou igualmente para o Curso de retórica. Isso parece estar em consonância com a sugestão, feita pelos editores franceses – e que Meijers retoma com cautela (cf. p. 384) – de que as anotações para o Curso foram redigidas anteriormente ao ensaio, concretamente durante o semestre do inverno de 1872, e não em 1874, como supunha a edição Kröner. 18 Cf. Meijers 32, p. 390. Cf. também Vaihinger 47, p. 771790; Schlechta e Anders 44, p. 50-59; Salaquarda 41; Stack 46 e Ansell-Pearson 1. De minha parte, precisei alguns pontos acerca do alcance e limites dessa influência da História do materialismo (Iserlohn, Baldecker, 1866) de Lange sobre o jovem Nietzsche em Vontade do trágico p. 146-61. cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche WL/VM § 1: “A ‘coisa em si’ (isso seria justamente a verdade pura, sem conseqüências) também é completamente inapreensível para o criador da linguagem e em absoluto merece seus esforços. Ele designa tão somente as relações das coisas com os homens e, para expressá-las, recorre às metáforas mais audazes. - Um estímulo nervoso transferido em primeiro lugar a uma imagem!: primeira metáfora. A imagem transformada de novo em um som articulado!: segunda metáfora. E, em cada caso, um salto completo de esferas, até outra totalmente distinta e nova”. Para uma relação das coincidências e distinções entre Nietzsche e Gerber, cf. Meijers 32, p. 381-387. 20 GOA XVIII, p. 249 21 ibid. p. 249 22 Cf. Lynch 30, pp. 264-270. 23 Em um fragmento póstumo da época, datado entre o verão de 1872 e início de 1873, escreve Nietzsche: “O imitar contrapõe-se ao conhecer enquanto este não quer fazer valer nenhuma transposição, mas fixar a impressão sem metáforas e sem conseqüências. A tal fim, a impressão resulta petrificada: presa e delimitada por conceitos, depois morta, esfolada, mumificada e conservada em forma de conceito. No entanto, não existem expressões ‘apropriadas’ nem conhecimento apropriado sem metáforas. Contudo, subsiste a ilusão sobre o particular, ou seja, a fé em uma verdade da impressão sensorial. As metáforas mais habituais, as usuais, valem agora como verdades e como medida para as mais raras. [...] Conhecer não é mais do que trabalhar nas metáforas prediletas, ou seja, um imitar não percebido já como tal” (KSA VII, 19 [228]). 24 GOA XVIII, p. 249 25 WL/VM § 1. Em paralelo com tudo isso, a famosa definição: “Que é, portanto, a verdade? Um exército em movi19 cadernos Nietzsche 13, 2002 | 29 Casares, M. B. mento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em uma palavra, uma soma de relações humanas que, elevadas, extrapoladas e adornadas poética e retoricamente, após longo uso por um povo, resultam firmes, canônicas e vinculativas: as verdades são ilusões daquilo que se esqueceu o que é, metáforas gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e que agora já não são consideradas moedas, mas metal.” 26 Cf. Habermas 24, p. 219. 27 Nietzsche toma de Gerber, para seu Curso de retórica, esta ilustrativa citação de Vorschule der Aesthetik de Jean Paul: “Assim como na língua escrita os hieróglifos precederam o alfabeto, na linguagem oral a metáfora – enquanto aquilo que designa relações e não objetos – constitui a palavra mais antiga, que não precisou mais do que perder paulatinamente sua cor para se converter na própria expressão. A espiritualização e a corporificação constituíam uma unidade, porque o eu e o mundo todavia se confundiam. Por isso, do ponto de vista das relações espirituais, toda língua é um dicionário de metáforas extintas” (Paul 40 p. 179). Cf. GOA XVIII, p. 264-265. 28 Cf. Blumenberg 4, p. 15. 29 “Ainda quando, para fazer literariamente compreensíveis certas correlações, distingo entre o mito e a sua recepção, não quero, no entanto, dar espaço com isso à presunção de que o ‘mito’ seja uma primária formação arcaica, em relação à qual tudo o que vem depois deve se denominar ‘recepção’. Inclusive os mais primitivos mitologemas a que podemos aquiescer são já produtos do trabalho no mito” (Blumenberg 3, p. 133). 30 A influência de Afrikan Spir sobre Nietzsche data de 1869, ano de publicação de sua Indagação sobre a certeza no conhecimento da realidade, e é documentada, sobretudo, a partir de 1873, ano em que apareceu sua obra fundamen- 30 | cadernos Nietzsche 13, 2002 O “giro retórico” de Nietzsche tal, Pensamento e realidade. Ensaio de renovação da filosofia crítica. Da escassa bibliografia a respeito, cabe destacar o trabalho de D’Iorio 13, assim como o de Sánchez 42. 31 Cf. Vattimo, “Nietzsche et la philosophie comme exercice ontologique”, in Deleuze 11 p. 209. Nessa linha, insiste Vattimo 48, p. 31: “Interpretar, por exemplo, darwinianamente o além-do-homem e todas as noções de luta presentes no conceito de vontade de potência significa, de fato, retornar ao teorema fundamentalmente metafísico e ‘moral’ da unidade originária do ser, desta vez entendida como ‘a vida’ com suas exigências de conservação e desenvolvimento [...] desde um único principio [...] o instinto de conservação, concebido como aquele que rege a história, mas que não tem, por sua vez, história: com as características do ser metafísico”. 32 Cf. GT/NT § 6. Era esta justamente a esfera simbolizada em O nascimento da tragédia pela música e aquela que a linguagem, “enquanto órgão e símbolo das aparências”, nunca podia aquiescer. 33 Nota do Tradutor: No texto original, Barrios faz um jogo com a palavra “mistificação” que se perde em português. A palavra utilizada é “mixtificación”, que remete a “mistificar” (mistificar) e a “mixtura” (mistura). Devemos lembrar que uma das principais críticas que Nietzsche lança contra Wagner é a sua falta de estilo, a ausência de uma característica forte, ou seja, a mistura de estilo e de características. 34 Cf. Man 31, p. 132: “Portanto, podemos afirmar legitimamente que a chave para a crítica nietzschiana da metafísica – que, talvez por erro, foi descrita como mera inversão da metafísica ou de Platão, radica no modelo retórico do tropo ou, se se prefere chamá-lo dessa maneira, na literatura, enquanto linguagem que de modo mais explícito se funda na retórica”. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 31 Casares, M. 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Com esse enfoque, o presente artigo pretende apontar para as motivações que promoveram as modificações estilísticas e argumentativas ocorridas nestes textos. Palavras-chaves: filósofos pré-platônicos – estilo – verdade No inverno de 1869/70, como professor de filologia clássica, Friedrich Nietzsche anuncia a sua intenção de ministrar cursos a respeito dos filósofos gregos anteriores a Platão. Os manuscritos utilizados como base para esses cursos (“Lições sobre os filósofos préplatônicos”) haveriam de ser suficientemente elaborados somente * ** O texto Die Vorplatonischen Philosophen não faz parte da edição em 15 volumes, organizada por G. Colli e M. Montinari. Utilizamos, pois, em nosso trabalho, a edição francesa Les philosophes preplatoniciens (apresentação e notas: Paolo D’Iorio; tradução Nathalie Fernand. Paris, Editions de L’eclat, 1994). Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 37 Villela Souto, M. L. dois anos mais tarde. Estas “Lições”, que contém o germe da interpretação nietzschiana no que se refere aos primeiros filósofos gregos, representam o momento do desenvolvimento inicial de sua argumentação a esse respeito. Em tais manuscritos são encontradas informações precisas acerca das fontes utilizadas por Nietzsche em suas pesquisas filológicas e filosóficas, sendo que os fragmentos analisados aparecem, na maior parte das vezes, no original em grego, seguidos da tradução e extensamente comentados; a eles, numerosos dados biográficos são acrescentados. Além das análises derivadas imediatamente dos textos dos próprios filósofos pré-platônicos, Nietzsche estabelece diversos paralelos com a literatura científica e filosófica de seu tempo. As correntes de interpretação às quais ele se filia e defende – assim como aquelas com as quais ele rivaliza – são citadas explicitamente. As análises filológicas dos textos são, enfim, complementadas por discussões de cunho teórico-especulativo, o que permite avaliar as principais preocupações observadas no momento da elaboração de tal projeto filosófico. O texto dessas “Lições”, contudo, não permaneceu intacto e nos anos que se seguiram à sua elaboração, diversas tentativas de remodelação podem ser confirmadas.1 Preparando-se para levar a termo a publicação efetiva de um livro sobre o pensamento e a vida dos primeiros pensadores gregos, Nietzsche impõe-se a tarefa de reestruturar seus manuscritos. Esse projeto deu origem a um novo texto, escrito sob uma nova orientação e respondendo a outras exigências. Intitulado A filosofia na época trágica dos gregos, este ensaio de reformulação corresponde ao manuscrito que foi enviado a Bayreuth em 1873, destinado a ser lido por Richard Wagner. Apesar da relativa proximidade entre o texto das “Lições” e o de A filosofia na época trágica dos gregos, é possível encontrar, sob diversos aspectos, significativas diferenças entre os dois. Nas “Lições”, trata-se de organizar um inventário, da maneira mais completa possível, de todas as passagens relativas aos filósofos pré- 38 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo platônicos, tanto no que se refere aos dados biográficos quanto no que tange especificamente ao pensamento e às doutrinas defendidas por cada um desses pensadores. O cuidado com a descrição pormenorizada das diversas doutrinas revela-se indispensável, em se tratando de um texto que servia de base para a realização de cursos universitários. Por esse mesmo motivo, fora necessário realizar um inventário extenso envolvendo os mais diversos comentadores, isto é, filósofos, filólogos e homens da ciência que participavam das principais disputas acerca dos assuntos tratados. Em A filosofia na época trágica dos gregos, no entanto, a sua preocupação parece mudar e, com efeito, é possível ver explicitamente expostas as características do estilo de interpretação e escrita próprios a Nietzsche – havia, agora, a intenção de dar uma identidade ao futuro livro. Os pensadores já não são tratados com a mesma objetividade, eles se aproximam evidenciando sua personalidade, tornando-se como que personagens entre os quais se traça uma trama, uma espécie de diálogo trágico estabelecido no momento inaugural do pensamento filosófico. As diferenças, contudo, não são apenas de ordem estilística e pode-se mesmo encontrar rupturas cruciais no âmbito das teses defendidas nos dois manuscritos. No primeiro dos três textos que compõem o prefácio à edição francesa de Les philosophes preplatoniciens: “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique”, Paolo D’Iorio comenta as diversas reconstruções sofridas por esse projeto de confecção de uma obra acerca da leitura dos filósofos gregos anteriores a Platão. O seu comentário parte da tese segundo a qual o manuscrito original das “Lições” teria sido escrito com o intuito de exaltar a ultrapassagem da era mítica e das crenças envolvidas pelo pensamento mítico entre os gregos. Sendo assim, o projeto de formação e consolidação do pensamento científico seria a tônica fundamental das “Lições”. Os filósofos pré-platônicos seriam vistos como responsáveis por essa revolução e como os fundadores dessa nova maneira de pensar. Na sucessão desses filósofos, Paolo cadernos Nietzsche 13, 2002 | 39 Villela Souto, M. L. D’Iorio visa a encontrar sinais de um progressivo desenvolvimento do pensamento científico. A argumentação nesse sentido se vê reforçada pela referência aos paralelos traçados por Nietzsche entre o pensamento dos antigos e o das modernas teorias científicas e filosóficas. Através de tal remissão, D’Iorio acredita poder encontrar no pensamento nietzscheano, tal como este foi elaborado nas “Lições”, um elogio à cientificidade e à progressiva racionalização no pensamento dos antigos. Referindo-se a este texto, ele sentencia: “Todo o conjunto do pensamento filosófico grego é avaliado em função da capacidade das doutrinas antigas serem reutilizadas pelas ciências modernas”.2 D’Iorio também se refere ao diálogo, traçado nas “Lições”, entre Kant e os eleatas. É dito explicitamente por Nietzsche que somente a partir de Kant pode-se perceber seriamente o problema de Parmênides e Zenão.3 Inversamente, é possível deduzir, através de seus argumentos, que diversos problemas fundamentais para o desenvolvimento da filosofia transcendental já se encontram indicados por estes filósofos gregos. Os eleatas – já se poderia adivinhar – são especialmente enfocados em relação a Kant e aos neo-kantianos por terem sido percebidos como os primeiros porta-vozes da primazia do pensamento conceitual sobre a evidência da experiência imediata. E, além desta relação explorada nas “Lições”, também é enfocada a construção de uma ponte ligando Schopenhauer a Anaximandro, Heráclito e Empédocles. A referência a Anaximandro é clara: ao interpretá-lo como o introdutor da cisão radical entre o mundo metafísico do ser e o mundo físico do vir-a-ser, Nietzsche o descreve como aquele filósofo que, pela primeira vez, pôde expor propriamente o problema do valor da existência; a partir daí é estabelecida imediatamente a sua ligação com o pessimismo schopenhaueriano. Em relação a Heráclito, a herança se mostra na representação dos 40 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo traços de sua personalidade. Através de sua descrição como homem solitário, orgulhoso por possuir a verdade que escapa aos outros, poder-se-ia, pois, antecipar a imagem do gênio tal como esta é esboçada por Schopenhauer: “Heráclito representa a imagem do gênio schopenhaueriano e do músico visionário wagneriano que, atravessando com o olhar sua profunda interioridade, entra diretamente em contato com a essência metafísica do mundo”.4 Finalmente, Nietzsche diz ser Empédocles o pensador mais estreitamente vinculado a Schopenhauer. A doutrina da filia kai neikos (amor – que une; e ódio – que separa) é vista como uma antecipação da vontade de vida schopenhaueriana. As principais características semelhantes encontradas entre esses filósofos são: o repúdio à religiosidade por devoção ao racionalismo, a ética da compaixão e a crença no valor alegórico do mito e da religião. Enfim, Empédocles assemelhar-se-ia a Schopenhauer sobretudo por se localizar na fronteira entre o mito e a ciência, entre a magia e as luzes. De acordo com Paolo D’Iorio, estabelece-se nas “Lições” uma linha estrutural que atravessa o pensamento dos filósofos préplatônicos conferindo, a ser assim, unidade ao seu conjunto. E, segundo a direção que essa linha aponta, os elementos míticos vão sendo progressivamente desvalorizados na medida em que o pensamento passa a se consolidar a partir de redes conceituais de cunho científico-filosófico. A cada pensador é, pois, estabelecida uma tarefa específica dentro desse enorme “projeto” de submissão do pensamento a uma forma científica. Reproduzindo sinteticamente as descrições encontradas nos textos de Nietzsche, vemos que: Tales inauguraria uma visão científica do mundo ao propor uma explicação de tudo que existe pela metamorfose de uma única substância originária: a água; Anaximandro, de sua parte, continuaria o proces- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 41 Villela Souto, M. L. so de abstração ao indicar a água como algo gerado a partir de uma alternância entre calor e frio; a contribuição de Heráclito, por sua vez, seria a de negar toda a permanência ao mesmo tempo em que afirma a existência de leis fixas que regulam os movimentos; Anaxímenes, através de suas doutrinas sobre a rarefação e condensação do ar, mostrar-nos-ia pela primeira vez uma teoria sobre a evolução da matéria originária; Anaxágoras, de seu lado, terminaria por explicar essa evolução a partir do movimento circular gerado pelo Nous; Empédocles, seguindo esse mesmo trilho, trataria de atribuir elementos psíquicos – filia kai neikos – a todo o movimento e à produção de formas; e, por fim, Demócrito e Leucipo deveriam ser vistos como representantes do último estágio da “desantropomorfização” e “cientifização” do pensamento ao explicarem a existência e o movimento por meio de uma força posta no coração da natureza: os átomos e o vazio.5 Sob tal perspectiva, caberia mesmo a Demócrito a tarefa de realizar a definitiva ultrapassagem do estado mítico no pensamento e chegar, pois, à concepção da representação científica da natureza – não por acaso, o seu sistema é louvado como o mais coerente em todo o pensamento antigo. Numa palavra: o materialismo atomista criaria, pela primeira vez, uma imagem unificada e coerente do mundo empírico, capaz de ser diretamente utilizada pela ciência. Seguindo esses mesmos argumentos, D’Iorio termina por sustentar que as “Lições” são destinadas a encontrar definitivamente uma linhagem de evolução entre os pré-platônicos, a qual se determina pela possibilidade de uma doutrina ser utilizada pela ciência moderna. E, uma vez admitida essa conclusão, é posta a pergunta: “Como conciliar uma epopéia que celebra a ultrapassagem do mito por meio da ciência, com a metafísica de artista tal como Nietzsche havia formulado em O nascimento da tragédia?”6 42 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo Ora, segundo o comentador, para que fosse possível conciliar esses dois modos de pensamento heterogêneos e pôr termo a essa cisão, foi preciso que Nietzsche reformulasse seus manuscritos originais. Sendo assim, suas primeiras apreciações sobre os filósofos préplatônicos teriam sido reescritas de tal modo que fosse possível tornálas condizentes com as concepções expostas em O nascimento da tragédia. A principal motivação dessa conciliação seria seu proveito em relação à reforma cultural wagneriana e, para que o texto das “Lições” pudesse servir aos interesses da comunidade de Bayreuth, foi preciso que ele sofresse diversas adaptações: “(...) Nietzsche havia reescrito seu texto em função do seu destinatário.” 7 A fim de corroborar essa tese, D’Iorio comenta as diferenças entre as “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: Nietzsche teria suprimido paulatinamente, durante as reconstruções do seu trabalho, as referências ao pensamento científico e filosófico contemporâneos; teria feito diversas modificações acentuando o caráter artístico e intuitivo dos pensadores gregos; e, além disso, teria eliminado as citações em grego, as construções filológicas e as remissões à literatura critica. Enfim, D’Iorio pretende transmitir-nos a idéia de que, temendo a reprovação de seu mestre Wagner, Nietzsche sentiu-se forçado a remodelar pontos capitais na confecção de seu primeiro manuscrito. Ensaio de resposta Quanto às relações estabelecidas entre as teorias filosóficas e científicas modernas e as doutrinas dos filósofos pré-platônicos não há o que condenar. Da mesma maneira, os dados utilizados e as suas referências não serão aqui questionados, mas apenas estas sínteses generalizadoras que causam espanto. Será preciso investigar se a reformulação nos primeiros manuscritos de Nietzsche havia sido cadernos Nietzsche 13, 2002 | 43 Villela Souto, M. L. elaborada com o único intuito de servir aos ideais da reforma cultural wagneriana. De outra forma, será questionado se o texto das “Lições” pode ser efetivamente considerado como “uma epopéia que celebra a ultrapassagem do mito por meio da ciência.” Nesse sentido, será preciso verificar se é possível, dentro do contexto das “Lições”, estabelecer um critério de avaliação destes filósofos que se determine unicamente pela capacidade de suas doutrinas serem “reutilizadas pelas ciências modernas”. Como já foi visto, está fora de questão o fato de que os dois livros destinavam-se a diferentes propósitos: as “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” são uma compilação de anotações feitas para serem usadas em cursos universitários e é, portanto, natural que contenham um grande número de dados e informações. A um texto elaborado com esta finalidade é indispensável o estabelecimento de diversas relações com o pensamento de sua época e a explicitação precisa das fontes utilizadas em suas argumentações e conclusões. Trata-se, a ser assim, de um texto no qual os principais argumentos e teses propriamente nietzschianos encontram-se dispersos em meio a numerosos dados, considerações e apontamentos derivados de outros comentadores envolvidos nas discussões que estabeleciam seu interesse direto no momento. Sua principal virtude deve ser, portanto, a de nos proporcionar o contato com estas informações sobre as suas principais fontes e influências no que concerne à interpretação dos pré-platônicos. Já o texto de A filosofia na época trágica dos gregos é, desde o início, elaborado tendo em vista a sua publicação efetiva. Suas preocupações devem, pois, ser outras: o cuidado com a unidade estilística é patente, a exposição dos argumentos é apresentada com mais veemência, diversas remissões à literatura crítica são, de fato, suprimidas. É possível, no entanto, derivar disso uma intenção distinta daquela que foi apresentada por Paolo D’Iorio e, antes de rele- 44 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo gar esse livro a um ingênuo intento de agradar o mestre, talvez deva ser útil dar a palavra ao próprio Nietzsche. No segundo prefácio feito para A filosofia na época trágica dos gregos, o filósofo expõe as intenções desta obra: “Esta tentativa de contar a história dos filósofos gregos mais antigos distingue-se de outras tentativas semelhantes pela sua concisão. Esta foi conseguida pelo fato de que, em cada filósofo, mencionou-se apenas um número muito limitado das suas teorias, em virtude, portanto, de não apresentar uma imagem completa. Mas escolheram-se as doutrinas em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo, ao passo que uma enumeração completa de todas as teses que nos foram transmitidas, como é de costume nos manuais, só leva a uma coisa: ao total emudecimento do que é pessoal. É por isso que esses relatos são tão aborrecidos: pois em sistemas que foram refutados só nos pode interessar a personalidade, uma vez que é a única realidade eternamente irrefutável. Com três anedotas é possível fornecer a imagem de um homem; vou tentar extrair três anedotas de cada sistema e não me ocupo do resto” (PHG/FT, segundo prefácio). Neste texto, Nietzsche louva exatamente sua capacidade de concisão e, com efeito, não é sua pretensão estabelecer um tratado exaustivo que “dê conta” de todos os fatos conhecidos acerca desses filósofos e de todas as minúcias de suas doutrinas. Nietzsche recusa-se abertamente a estender seus comentários, tal como é o costume entre seus contemporâneos, e estabelece como sua meta, ao contrário, trazer para perto esses filósofos, aproximá-los de si e aproximar-se deles, num duplo movimento. O intento de Nietzsche nesse momento é reter o que entende como sendo uma caracterização da personalidade desses filósofos, a valorização dos seus traços de caráter, da sua individualidade, através dessas descrições; pretende, enfim, traçar um esboço das peculiaridades de suas vidas e cadernos Nietzsche 13, 2002 | 45 Villela Souto, M. L. doutrinas. Em duas ou três anedotas será narrada a vida desses sábios ilustres, que serão, assim, descritos como existências únicas, que funcionam como modelos de todo o pensamento filosófico posterior. Os filósofos pré-platônicos são, no limite, vistos como exemplos de comportamentos de exceção, de modos de vida realizados e, por isso, irrefutáveis. Cada um deles é descrito como a encarnação de uma das formas efetivas do pensamento filosófico, de um modo próprio de criar questionamentos. Originando questões e soluções eternas, seus conceitos e suas problematizações ultrapassam a singularidade de quem os produziu. À medida que avançam, percorrendo o caminho do humano, vão iluminando outras trilhas e sendo iluminados por novas luzes. A intenção, revelada pelo próprio Nietzsche, de recriar uma imagem sucinta dessas personagens ilustres do cenário filosófico, parece vincular-se mais estreitamente aos seus textos e ser mais frutífera do que uma tentativa de “esconder” deliberadamente determinadas remissões a teorias científicas e filosóficas dos seus contemporâneos.8 Da mesma forma, a hipótese de que o texto deveria ter sido modificado com o intuito de servir como respaldo para a reforma cultural wagneriana parece pouco plausível. De fato, seria muito estranho, para alguém que almeja a aprovação de Wagner, iniciar o texto caracterizando-o como inimigo da filosofia. No início do primeiro parágrafo de A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche escreve: “Existem inimigos da filosofia, e é bom escutá-los, sobretudo quando desaconselham a metafísica às cabeças doentes dos Alemães e lhes pregam a purificação pela física, como Goethe, ou a cura pela música, como Richard Wagner. Os médicos do povo rejeitam a filosofia; e quem quiser justificá-la terá de demonstrar para que é que os povos sãos precisam e precisaram da filosofia.” (PGH/FT §1) 46 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo Se este primeiro parágrafo não contém o sentido de uma radical ruptura com os ideais de Bayreuth, ao menos a profunda diferença em relação às intenções de Wagner já está posta desde o início. Wagner e Goethe são caracterizados como médicos do povo, através da música no caso de Wagner e da física no caso de Goethe, sendo que esses “doutores” propõem a cura do povo alemão, que se encontraria fundamentalmente doente. E, com vistas ao restabelecimento da saúde de tal povo, ambos desestimulam o desenvolvimento do pensamento filosófico. Nietzsche concorda, pois, com a validade desse diagnóstico feito para o povo alemão, concorda também que aos povos doentes é desaconselhável a presença da filosofia, já que ela não serviria como remédio para restaurar uma saúde perdida. Tanto aos povos quanto aos indivíduos doentes, a filosofia sempre se mostrou, se não prejudicial, ao menos inútil para a restituição da saúde: “Se alguma vez um povo se desmembrou e ficou ligado aos seus elementos singulares com uma tensão frouxa, a filosofia nunca religou intimamente esses indivíduos ao todo. Sempre que alguém se dispôs a afastar-se e a constituir à sua volta uma barreira de auto-suficiência, a filosofia esteve sempre pronta para o isolar ainda mais e o destruir através de seu isolamento” (PHG/FT § 1). No entanto, o fato de não ser recomendável para a restituição de uma saúde debilitada não implica necessariamente que a filosofia seja em si algo inútil e sua prática reprovável. A filosofia só pode ser reconduzida ao seu valor caso se mostre o motivo pelo qual determinados povos sãos precisavam dela. Nietzsche justificaria a filosofia mostrando que, para uma civilização fundamentalmente sadia, sua prática é um impulso ao crescimento da diversidade de formas de vida, de formas superiores de vida, e que favorece, com isso, o surgimento de “grandes homens”. Apenas aqueles que são, como cadernos Nietzsche 13, 2002 | 47 Villela Souto, M. L. Wagner, médicos do povo, denunciam os perigos e a inutilidade da filosofia, pois voltam todas as suas forças, sua arte e seu engenho para a cura de um povo doente. É natural, portanto, o seu resguardo diante desse modo de pensamento fundamentalmente desagregador: “Se alguma vez ela se mostrou útil, salutar e preventiva foi para os povos sãos. Aos doentes tornou ainda mais doentes” (PHG/FT §1). O repúdio à filosofia que se manifesta em Wagner é percebido – mesmo em A filosofia na época trágica dos gregos – como sintoma de coragem e honestidade: “A filosofia não tem direitos; por isso o homem moderno, se pelo menos fosse corajoso e consciencioso, teria de repudiá-la e bani-la...”(PHG/FT §2). Entretanto, neste texto, entre o ideal de cura do povo alemão e a tarefa de valorização da filosofia, Nietzsche toma claramente o partido da filosofia e responde: “Tende antes uma civilização, e então ficareis sabendo vós também o que a filosofia quer e pode”.(PHG/FT § 2) Caberá a Nietzsche executar, então, justamente a tarefa de revalorização do papel da filosofia e do filósofo, mesmo que em detrimento da civilização, isto é, mesmo às custas de mostrar a completa impossibilidade de se erguer um ideal civilizatório sobre um povo doente: “A tarefa que o filósofo tem que realizar no âmbito de uma civilização autêntica e possuidora de uma grande unidade de estilo não se advinha a partir da nossa condição e da nossa experiência, porque não temos tal civilização. Pelo contrário, só uma civilização como a grega pode responder a pergunta relativa à tarefa do filósofo, só ela pode, como eu dizia, justificar a filosofia em geral, porque só ela sabe e pode provar por que razão e como o filósofo não é um viajante qualquer, acidental e surge disperso aqui e ali. (...) Os gregos justificaram o filósofo, porque este, junto deles, não é nenhum cometa” (PHG/FT § 1). Como estamos longe do contexto de O nascimento da tragédia, onde Nietzsche se encontrava junto ao seu “sublime precursor de luta” 48 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo tal como dois médicos do povo! Estavam os dois, naquele momento, desejosos de encontrar um remédio que restituísse a saúde do povo alemão, uma esperança que pudesse consolá-los diante da situação algo desesperadora que enfrentavam. A solução apresentada por Nietzsche naquela obra foi a de apostar em um renascimento da época áurea da civilização grega a partir da música; apostar, portanto, em Wagner, como redentor da cultura alemã: “Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em um iminente renascimento da antiguidade grega; pois só nela encontramos nossa esperança de uma renovação e purificação do espírito alemão através do fogo mágico da música. Que outra coisa saberíamos nomear que, na desolação e exaustão da cultura atual, pudesse despertar alguma expectativa consoladora para o futuro?” (GT/NT § 20) Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche parece tomar distância desta postura mantida e defendida em O nascimento da tragédia. Não se procura mais um remédio para uma civilização decadente. De “sublime precursor de luta” à “médico do povo” há uma enorme distância, sendo que a luta de Wagner parece não mais seduzir Nietzsche. É possível que seja mais rico relacionar as mudanças sofridas pelo primeiro manuscrito, não a um propósito conciliador em relação aos ideais de Wagner, mas a uma tensão própria, talvez inconciliável, pela qual passava o espírito nietzschiano. Não há como negar que, nas “Lições”, Nietzsche destaca a coesão do conjunto do pensamento dos pré-platônicos – freqüentemente aparecem considerações explícitas sobre os laços de estreita necessidade que mantém ligados estes pensadores.9 Também é salientado o fato desses filósofos, em conjunto, terem realizado a ultrapassagem do mito.10 Contudo, é característico do texto das “Lições” a tensão entre a avaliação destes sistemas filosóficos através de uma linha progressiva estabelecida pela ciência e a intenção de pôr em destaque cadernos Nietzsche 13, 2002 | 49 Villela Souto, M. L. os valores defendidos por cada pensador, suas características pessoais e suas doutrinas. À exposição do conjunto dos pré-platônicos enquanto aqueles que ousaram ultrapassar as crenças que envolviam o pensamento mítico, Nietzsche adiciona outros tipos de afirmações, que destacam a exclusividade do pensamento de cada um desses filósofos e a suprema inventividade que os caracteriza. Já se encontra, nas “Lições”, a intenção declarada de destacar a criação de diversos modos de filosofar completamente originais e é posta em relevo a variedade de tipos filosóficos efetivos oriundos da civilização helênica. Em determinadas passagens, Nietzsche pretende revalorizar justamente essa diversidade por meio de uma descrição de cada personalidade e doutrina: “Para conhecer os gregos, o fato de que alguns deles tivessem chegado a uma reflexão consciente sobre eles mesmos é extremamente precioso. Mas sua personalidade, seus atos, são talvez mais importantes que essa reflexão consciente. Os gregos criaram os ‘tipos filosóficos’; que se pense em uma comunidade de indivíduos tão diversos como aquela de Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Demócrito, Protágoras e Sócrates. Esta inventividade diferencia os gregos de todos os outros povos: habitualmente um povo não produz mais que um tipo filosófico destinado a durar”.11 Este poder criador não só distingue estes pensadores de todos os outros povos como também de toda a filosofia posterior a Platão. Este, por sua vez, é descrito como o “primeiro grande caráter misto”, pois tanto sua personalidade quanto suas doutrinas revelam-se um amálgama de elementos socráticos, pitagóricos e heraclíticos. Após Platão, o pensamento filosófico revela-se um amálgama heterogêneo de extratos de doutrinas anteriores, que permanecem como que presas externamente umas às outras e dispostas conforme as peculiaridades do pensador. Essa mescla de várias doutrinas apre- 50 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo sentadas em conjunto já não pode servir para a criação de uma concepção original, sendo que os filósofos posteriores a Platão não são mais reconhecidos por Nietzsche como inventores, ou seja, não representam mais o acréscimo de um novo tipo no cenário filosófico: “(...) falta aos filósofos, desde Platão, algo de essencial (...)” (PHG/FT § 2). E diz ainda: “Sua doutrina das idéias(...) não pode em absoluto ser qualificada de concepção original. O homem, ele mesmo reuniu em si traços de Heráclito, (...) de Pitágoras, (...) e de Sócrates. Todos os filósofos posteriores são filósofos mistos como ele.”12 Desde o primeiro parágrafo das “Lições” é expressa, pois, a intenção de deixar que cada filósofo defenda a sua própria doutrina. Uma avaliação acerca de seus pensamentos só pode vir deles próprios e a avaliação em função de sua capacidade de serem reutilizados pelas ciências modernas parece, neste momento, ser posta de lado: “A filosofia grega é usualmente encarada a partir da seguinte questão: até que ponto os gregos, em relação aos filósofos modernos, compreenderam e fizeram progredir os problemas filosóficos? Nós queremos colocar uma outra questão: o que nós aprendemos, através dos gregos, da história de sua filosofia?”13 Nietzsche, ao que parece, pretende extrair dos próprios pensadores gregos a justificação da necessidade de suas doutrinas. Não se trata de perguntar em que os filósofos gregos, tomados em conjunto, fizeram prosperar e contribuíram para o desenvolvimento da filosofia moderna. Inversamente, ele se dirige aos gregos com a seguinte questão: até que ponto nós, filósofos modernos, conseguimos aprender dos gregos sobre a história de sua filosofia? Indica, com cadernos Nietzsche 13, 2002 | 51 Villela Souto, M. L. isso, a sua intenção de dar a palavra aos antigos. Serão eles próprios que poderão responder a respeito de quanto vale seu pensamento. Nietzsche pretende revalorizar o pensamento dos antigos, os juízos emitidos e os valores exaltados: “O julgamento dos filósofos antigos sobre a vida é mais rico de significados”.14 Pretender que os sistemas filosóficos dos antigos possam ser julgados em função de sua capacidade de serem reutilizados pelas ciências modernas seria justamente dar a palavra aos modernos e, mais uma vez, fechar os ouvidos para o que os gregos falam sobre si. Hierarquizar as doutrinas desses pensadores em função das ciências modernas seria tornar a valorizar os juízos modernos contra aqueles que são postos pelos próprios filósofos – que, por sua vez, são o objeto da questão. É lançada, então, uma suspeita sobre a capacidade da interpretação moderna de alcançar a verdade acerca do pensamento dos antigos. Ora, é possível que não se tenha aprendido suficientemente a partir da boca dos próprios filósofos. Muito se fala sobre eles, mas não se consegue ouvir o que eles próprios têm a dizer. Nós, filósofos modernos, não compreendemos o que vem a ser a sua filosofia, não compreendemos sequer o que vem a ser a filosofia, estamos, desta forma, longe de poder decidir sobre quais são os problemas filosóficos, quer dizer, sobre o que a filosofia deve levar em conta ou deixar de lado. Ou, pior ainda: é possível antecipar o veredicto de que estejamos valorizando e supervalorizando justamente aquilo que degrada, que denigre a imagem do homem perante a si mesmo, enfim, o que o torna baixo. A radicalização dessa suspeita sobre a capacidade de interpretação dos modernos, que é levantada já nas “Lições”, dará o tom da abordagem que será feita em A filosofia na época trágica dos gregos. A maneira como os filósofos serão descritos nesta obra parece indicar a descrença no critério de verdade posto a partir da filosofia de Platão. Através da tentativa de recriação de seus “tipos”, Nietzsche mostra que sua intenção efetiva, tal como se encontra nos prefácios, 52 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo foi a de reconstruir a história de modelos de vida irredutíveis e impossíveis de serem colocados em uma linhagem de evolução. Sua tarefa, naquele momento, consistia exatamente na tentativa “de deixar soar de novo a polifonia da alma grega” (PHG/FT, primeiro prefácio). Em Humano, demasiado humano, livro que surge como uma declaração de guerra aos ideais de Bayreuth, Nietzsche reforça algumas afirmações expostas já em A filosofia na época trágica dos gregos. É possível destacar, dentre elas, a recusa a qualquer possibilidade de se encontrar entre os gregos uma linhagem de evolução contínua e progressiva, um curso natural: “Não posso me convencer de que a história dos gregos tenha tomado aquele curso natural que é tão celebrado nela. Eles tinham talentos demasiado múltiplos para serem gradativos daquela maneira passo a passo da tartaruga na competição com Aquiles: e é isso que se denomina desenvolvimento natural” (MAI/HHI, § 261). Pode-se igualmente perceber que Nietzsche foi, aos poucos, distanciando-se da concepção de uma linha gradativa que envolveria o pensamento atinente aos filósofos pré-platônicos. O filósofo se aproximará, cada vez mais, de um segundo viés de explicação, que ressalta o caráter exclusivo de suas doutrinas e distingue cada um deles como o portador de uma verdade. Que exige, para a sua defesa, a grande disposição para a luta: “Encontravam essa luz em seu conhecimento, naquilo que cada um deles denominava sua verdade. (...) Esses filósofos tinham uma robusta crença em si e na sua verdade e com ela derrubavam todos os seus vizinhos e predecessores: cada um deles era um combativo e violento tirano” (ibid.). cadernos Nietzsche 13, 2002 | 53 Villela Souto, M. L. Está aí, pois, exposto o caráter agonístico da verdade entre os gregos, sendo que a certeza de sua posse faz com que cada um deles se torne guerreiro por ela. A verdade que cada filósofo possui e defende através de sua própria existência não se confunde com a verdade que os julga indistintamente, isto é, de acordo com os padrões estabelecidos a partir da filosofia de Platão e radicalizados pela moderna forma do pensamento científico – a respeito da qual Nietzsche levantará severas suspeitas. Paolo D’iorio, talvez expressando um momento do discurso nietzschiano em que não havia uma diferenciação precisa entre esses dois tipos de verdades, confunde duas formas distintas de juízos sobre a verdade, na seguinte afirmação: “Para Nietzsche, os filósofos da Grécia antiga eram indivíduos de exceção que souberam passar do mito à ciência, que souberam viver para a verdade, para a sua verdade mesmo ao preço de isolamento e conflito com a comunidade”.15 Supõe-se, pois, que haja uma correspondência de sentidos entre viver para a verdade, com o significado específico de ultrapassagem do mito à ciência, e viver para a sua verdade, quer dizer, a verdade que cada um desses pensadores trazia consigo, a verdade da qual cada um deles era a encarnação. As mudanças nos manuscritos originais parecem apontar, em boa medida, para essa progressiva descrença acerca da exclusividade do critério que define o que vem a ser verdade. A verdade platônica, tal como até agora havia sido balizada pela opinião comum da tradição filosófica, passa pouco a pouco a ser posta em xeque. Expondo-se ao lado dela outros juízos possíveis, conduzidos por outros critérios igualmente possíveis, abre-se espaço para o questionamento acerca da superioridade incondicional de seu valor. 54 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo Os juízos verdadeiros, tal como a tradição filosófica admite, são aqueles capazes de proporcionar um conhecimento seguro acerca do objeto tratado e devem, por conseqüência, ter validade universal. Sobre um certo objeto, somente uma determinada espécie de juízos correspondem a sua verdade, todos os demais são eliminados como erros, falsidades ou crenças enganosas. A exigência de um critério seguro que permita a determinação precisa da verdade dos juízos emitidos é um procedimento inquestionável no âmbito do pensamento filosófico. Convém lembrar, a esse propósito, uma passagem de Para além de bem e mal onde Nietzsche revela a crença que está envolvida na gênese da verdade e como ela é sintoma de uma forma específica de valorar: “‘Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo? Ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem sonha com ela é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria – não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do Deus oculto, da ‘coisa em si.’ – nisso e em nada mais deve estar a causa’. – Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os procedimentos lógicos; é a partir dessa sua ‘crença’ que eles procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de ‘verdade’” (JGB/BM §2). Será preciso admitir, sob tal ângulo de visão, que é por deferência a certos valores de cunho moral que a tradição filosófica, na esteira de Platão, postulou, como o critério decisivo para a verificação da autenticidade de um conhecimento, a completa dissipação de toda cadernos Nietzsche 13, 2002 | 55 Villela Souto, M. L. ilusão. A completa exclusão de conhecimentos que possam ser adquiridos através do engano e da mentira surge em proveito de um tipo de juízo que pretende poder afirmar a sua própria validade incondicional. Por meio dessa “crença”, que se pretende universalmente válida, são defendidos certos tipos de valores e, por meio destes, é postulada uma determinada norma comum para o comportamento humano em geral. É possível, todavia, que, paralelamente a esses “juízos verdadeiros”, existam outros tipos mais ricos de significados sobre a vida e que estes, por sua vez, possam proporcionar o florescimento de novas maneiras de existir e novas manifestações possíveis das forças vitais. Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche compara essas duas maneiras distintas de julgar: “O juízo desses filósofos (pré-platônicos) sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais significativo do que um juízo moderno, porque tinham diante de si a vida numa plenitude exuberante e porque neles o sentimento do pensador não se enreda, como em nós na cisão do desejo da liberdade, da beleza e da grandeza da vida e do impulso à verdade, que só pergunta: o que é que a vida vale?” (PHG/FT §1). É mesmo possível supor que, em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche caminha em direção ao aprofundamento da investigação acerca dos impulsos que promovem o desenvolvimento de todo tipo de conhecimento e interpretação. Houve, sim, diversas modificações nos manuscritos, mas estas parecem apontar antes para o aprofundamento de uma questão que passará a ocupar posição fundamental no pensamento de Nietzsche: a radicalização do questionamento sobre o valor da vontade de verdade, a sua origem posta como um problema moral. Conforme se encontra no já mencionado Para além de bem e mal: 56 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo “De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem dessa vontade (de verdade) – até afinal parar completamente ante uma questão mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade” (JGB/BM §1). A vontade de verdade é levada, pela radicalização de seus próprios métodos, a lançar suspeitas acerca de seu próprio valor. Ora, cabe lembrar que, no mesmo ano em que fora escrito A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche produz Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Nietzsche faz, já neste texto, duras críticas à noção de verdade, dizendo tratar-se de “um batalhão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente (...) ilusões, das quais se esqueceu que o são” (WL/VM §1). Neste momento, a verdade já aparece completamente destituída de seu valor incondicional e é exposta, no limite, como uma forma específica de ilusão. À luz disso, não é descabido supor que justamente o progressivo aguçamento dessa descrença no valor absoluto da verdade conduz a reformulação em seus manuscritos. O abandono da necessidade de se pensar de acordo com os padrões exigidos por uma verdade que se define por absoluta contraposição à ilusão, à invenção de metáforas e à sedução o faz seguir um caminho diferente em A filosofia na época trágica dos gregos. Para que seja possível corroborar essa hipótese interpretativa, no entanto, convém analisar os comentários feitos por D’Iorio a respeito das mudanças sofridas nos textos nietzschianos que tratam especificamente sobre o pensamento de Heráclito de Éfeso. Na descrição de Heráclito, tal como surge nas “Lições”, D’Iorio assinala a importância dos comentários em que Nietzsche se remete diretamente ao pensamento científico de sua época. E, por meio dessas remissões, a intenção de Nietzsche, tal como foi detectada por D’Iorio, seria a cadernos Nietzsche 13, 2002 | 57 Villela Souto, M. L. de demonstrar a impossibilidade da permanência absoluta de qualquer ente no tempo: “Nas “Lições” sobre os pré-platônicos, Nietzsche ilustra o panta rei heraclítico com a ajuda da psicologia da percepção temporal do famoso naturalista Karl vom Baer. (...) Isto demonstra que não existe permanência absoluta. Nossa percepção da permanência de uma coisa e a medida na qual nós a percebemos depende somente de nossa vitalidade e do nosso ritmo cardíaco. (...) Em todo caso, a percepção de absoluta imobilidade da parte de um ser vivo não implicaria a estagnação do movimento cósmico. Mesmo o sistema solar não preservará sua configuração atual: ele está destinado a se extinguir quando as reservas de luz e calor forem esgotadas. Nietzsche transpõe à escala cósmica a idéia do absoluto devir, citando a teoria de Hermann Hemholtz (...)”.16 Na descrição que é feita em A filosofia na época trágica dos gregos, D’Iorio comenta a mudança na atitude de Nietzsche perante o pensamento de Heráclito. Nesse livro, em vez de remeter a concepção heraclítica da temporalidade às mesmas teorias científicas que faziam parte das “Lições”, Nietzsche faz um paralelo com Schopenhauer, de tal modo que fosse possível fornecer uma referência capaz de ser mais facilmente reconhecida por Wagner: “Em A filosofia na época trágica dos gregos, ao contrário, a concepção da temporalidade em Heráclito é traduzida em termos metafísicos e comparada àquela de Schopenhauer, segundo a qual tudo que existe no espaço, no tempo e na causalidade possui apenas uma existência relativa. Esta referência, que poderia ser mais familiar a Wagner, é, entretanto, inexata no que concerne a Heráclito, porque se a seguirmos rigorosamente, a concepção de Schopenhauer conduz não à negação da permanência, mas à negação do devir.”17 58 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo É possível, todavia, encontrar uma outra explicação para as mudanças na atitude interpretativa de Nietzsche com respeito ao filósofo Heráclito. Pode-se admitir que justamente o abandono de uma “crença metafísica” – a crença na “verdade” – estaria norteando os comentários nietzschianos e o novo tipo de abordagem que surge através deles. Talvez não fosse exatamente a intenção de Nietzsche, no momento da elaboração de A filosofia na época trágica dos gregos, realizar a definitiva demonstração da inexistência da permanência absoluta. A prova definitiva da verdade ou da falsidade acerca dessa doutrina não parece motivá-lo especialmente. Importa cada vez menos o grau de veracidade que possa ser demonstrado nesses sistemas – que nunca é absoluta, exceto para o seu autor. O que passará a constituir sua principal fonte de interesse será a tentativa de recriação de uma imagem dos pensadores envolvidos e esta apontará, em última instância, para a necessidade que os levou a advogar em favor de suas doutrinas, em função da defesa de determinados valores expressos através delas: “Ora, os sistemas filosóficos só são inteiramente verdadeiros para os seus criadores: os filósofos posteriores consideram-nos normalmente um erro enorme (...) Quem, em contrapartida, se alegra com grandes homens também tem sua alegria em tais sistemas, pois, mesmo que sejam inteiramente errôneos, não deixam de ter um ponto completamente irrefutável, uma disposição pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do filósofo: assim como a partir de uma planta se podem tirar conclusões sobre o solo” (PHG/FT, primeiro prefácio). Como um botânico, em sua pesquisa sobre o solo, interessa a Nietzsche, cada vez mais profundamente, a remissão às raízes morais da doutrina heraclítica do vir-a-ser, a perscrutação de seu subsolo moral. Na descrição de Heráclito, feita no texto de A filosofia na época trágica dos gregos, o que está fundamentalmente em jogo é a cadernos Nietzsche 13, 2002 | 59 Villela Souto, M. L. necessidade da justificação do vir-a-ser, daí a profunda importância da remissão a Schopenhauer. Pouco a pouco a questão sobre a verdade ou a falsidade de sua doutrina vai cedendo lugar a esta outra: por que foi necessário justificar a mudança, tratá-la como sintoma de justiça, expressão desta e, através disso, contrapor-se a Anaximandro, para quem a existência do mutável era proveniente de um crime posto na origem? É por isso, sobretudo, que a filosofia de Anaximandro surge com tamanha ênfase nas reformulações dos seus escritos.18 As mudanças nos manuscritos parecem caminhar para a intensificação da busca pelos substratos morais que motivaram a afirmação da necessidade das doutrinas desses filósofos. Em vez de perceber essas reformulações como uma tentativa de conciliação com relação a Wagner, será necessário entendê-las como uma indicação do caminho percorrido por Nietzsche em seus vários experimentos com a linguagem e o pensamento, um desenvolvimento de sua capacidade de lançar suspeitas cada vez mais abrangentes e cada vez mais específicas, um aperfeiçoamento contínuo em sua capacidade de “ver além do ângulo” (cf. EH/EH, Por que sou tão sábio, § 1). A sua maneira de escrever sobre os filósofos pré-platônicos é, pois, modificada em função das descobertas e invenções que marcam suas interpretações. Desatendendo a verdade enquanto adequação integral ao objeto estudado ou prova definitiva da validade de determinado juízo, abre-se então o espaço para novas possibilidades interpretativas. As experiências com o pensamento podem, enfim, ser aprimoradas. Através delas, podem aparecer novas formas de verdades, novos ângulos e enfoques interpretativos. Essas mudanças nos manuscritos acentuam, de fato, uma característica que já estava presente em sua versão original, a descrição da personalidade dos filósofos como tentativa de aproximação e recriação de seus tipos. Em Humano, demasiado humano, obra escrita cerca de cinco anos após a confecção desses manuscritos, Nietzsche retoma o seu pensamento sobre os pré-platônicos acen- 60 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo tuando justamente a experiência de interpretação como reconstrução de uma imagem do filósofo que fora perdida, uma reconstituição do seu tipo: “Mesmo dos tipos mais antigos a maioria foi mal transmitida pela tradição; todos os filósofos, de Tales a Demócrito me parecem extremamente difíceis de reconhecer; mas quem é capaz de recriar essas figuras move-se entre imagens do mais poderoso e puro dos tipos. Essa aptidão é, sem dúvida, rara falta até mesmo aos gregos posteriores que se ocuparam da filosofia mais antiga (...)” (MAI/HHI § 261, grifo nosso). Para colaborar com a tentativa de recriação dos tipos filosóficos gregos, de reconstituição de suas imagens, Nietzsche faz apelo a elementos importados de diversas manifestações artísticas. Cria, então, para ilustrá-los, uma linguagem pictórica, refere-se a elementos da escultura e do teatro: “Vemos (...) como em uma oficina de escultor, tais tipos” (ibid.). Seria ainda possível ler A filosofia na época trágica dos gregos como uma tentativa de recriação de personagens dentro do cenário filosófico, uma experiência de expô-los em um contexto teatral. O próprio título do livro estabelece uma comparação entre estes filósofos gregos e a tragédia. O texto, por meio dessa leitura, já apontaria para o entendimento da verdade enquanto experimentação com o pensamento, para a exploração de novas possibilidades de lidar com a filosofia. Nota-se isso na própria forma do livro e em seu estilo deliberadamente teatral. É, de certa forma, o que restou depois que a vontade de verdade, cumprindo seu último dever, realizou seu destino, lançando-se ao fundo. Poderiam ser apontadas, no livro em questão, diversas tentativas de recriação das ações desses filósofos como personagens em uma peça. Assim, por exemplo: cadernos Nietzsche 13, 2002 | 61 Villela Souto, M. L. “Tales: impelido pela imaginação, ‘salta de possibilidade em possibilidade, (...) chega a apanhar certezas em vôo’; Anaximandro: ‘vivia como escrevia, falava de maneira tão solene como se vestia, levantava a mão e pousava o pé como se esta vida fosse uma tragédia na qual tivesse sido predestinado a fazer o papel de herói’; Heráclito: ‘a face de Herácli-to transforma-se aos nossos olhos, apaga-se o brilho orgulhoso dos seus olhos, traça-se no seu rosto uma ruga profunda de renúncia dolorosa e de impotência’; Parmênides: ‘parece feito de gelo e não de fogo, e irradia à sua volta uma luz fria que queima (...) dele se apoderou o calafrio da abstração.’” E o cenário também é preparado: “‘Enquanto na figura de Tales o tipo universal do filósofo só sobressai como de entre o nevoeiro, a imagem do seu grande sucessor já nos fala muito mais distintamente;’ ‘Anaximandro deteve-se ante as sombras profundas que cobriam como fantasmas gigantescos o cume de uma tal concepção de mundo’; ‘No meio dessa noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um relâmpago divino’”. (PHG/FT §3, 4§, 5§, 6§ e §9) Tal como estas descrições foram enumeradas, é possível retirar diversos outros exemplos dessa forma de reconstituir a imagem desses filósofos fazendo apelo à recriação dramática dessas personagens. E, à guisa de conclusão, vale trazer à tona o comentário de Sarah Kofman que, em seu livro Nietzsche et la scène philosophique, sugere uma concepção que se aproveita exatamente desta característica do livro de Nietzsche. É, então, descrita uma cena que se passa entre Nietzsche, Heráclito, Empédocles e Demócrito. Nesta cena, Kofman interpreta a personagem Nietzsche e nos fala através dele. Que se dê, pois, a última palavra ao filósofo: 62 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo “Fazer-me arqueólogo e ainda escultor para tentar arrancar o segredo desses exercícios do grande artista que esculpiu esta bela estátua da qual só nos restam fragmentos, de tal sorte que ‘o que foi realmente produzido, permaneceu para sempre segredo de ateliê’. Pintor, arqueólogo, escultor? Pela escrita. Fazer reviver como em um quadro, os primeiros filósofos evitando-se pegar como modelo Gomperz e seus enjoativos resumos da vida dos pensadores gregos, como se uma vida pudesse ser resumida. Pintar não mais consistirá em contar ‘tudo’, a supor que isso seja possível. Ser ‘breve’, esta será minha regra: não existe pintura sem seleção, sem o uso de um crivo, de uma câmara obscura que peneire o ‘real’. Querer tudo contar ou ver tudo aquilo que é, isto faz parte de uma outra categoria de espíritos que não a minha, os espíritos ‘anti-artísticos’. Pintar tendo como modelo Diógenes Laercio, dando nova vida aos filósofos do passado com a ajuda de uma ou duas anedotas bem escolhidas. Hegel me desaprovaria, ele que reprova Diógenes por contar ‘anedotas maldosas’, que estima toda anedota como maldosa, pois não passa de palavrório inessencial. A anedota, ao contrário, não é o equivalente de um ‘toque’ que sublinha o essencial, mas a beleza, a única coisa irrefutável, a única que permanece quando a verdade do sistema desapareceu?”19 Abstract: We hope to bring out a comparative reading of two texts in which Nietzsche specifically expounds the pre-platonic philosophers: Lessons on pre-platonic philosophers and Philosophy in Greek tragic age. In the light of this approach, the article aims at pointing out the motivations that gave rise to stylistic and argumentative modifications within these texts. Keywords: pre-platonic philosophers – style – truth cadernos Nietzsche 13, 2002 | 63 Villela Souto, M. L. notas Sobre as diversas fazes de elaboração de seu trabalho, ver D’Iorio 1, “Les manuscrits”, p. 75: “A primeira redação completa é o texto das “Lições” que nós propomos aqui. A segunda redação corresponde ao primeiro ensaio de remanejamento (incompleto) [...] A terceira redação (ainda incompleta, onde faltam as figuras de Empédocles, de Leucipo e de Demócrito, dos pitagóricos e de Sócrates) corresponde ao manuscrito enviado a Bayreuth (...) a partir do qual foi estabelecido o texto que é habitualmente publicado sob o título de A filosofia na época trágica dos gregos. Em outro, um compêndio de planos e rascunhos [...] precedentes, que acompanham e seguem as três redações sucessivas”. 2 D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique”, p. 45. 3 Nietzsche 7, p. 83. 4 D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique”, p. 23. 5 Ibid. p. 28. 6 Ibid., p. 14. Que se leia também: “Com exceção de breves notas sobre Empédocles, o grande afresco traçado nas “Lições” dificilmente poderia ser conciliável com O nascimento da tragédia. O livro gêmeo arriscava vir a ser um perigoso adversário da metafísica da arte e da reforma cultural wagneriana: a força mítica coesiva da arte não entrava em acordo com o espírito analítico e desagregador da filosofia” (ibid., p. 34). 7 Ibid., p. 34. Também a esse respeito: “Nos cadernos que vão do verão de 1872 à primavera de 1873, Nietzsche tenta modificar sua moldura original de modo a fazê-la servir à causa de Bayreuth” (ibid., p.34). 1 64 | cadernos Nietzsche 13, 2002 “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo Cf. ibid., p. 39: “Ele (Nietzsche) simplesmente suprimira algumas referências à ciência e à filosofia contemporâneas e dotara estas figuras antigas de um caráter mais artístico e mais intuitivo. Ele queria, como em O nascimento da tragédia, o reconhecimento e a aprovação do mestre.” 9 “Todos esses homens são talhados numa só rocha: seu pensamento e seu caráter são unidos por uma estreita necessidade” (Nietzsche 7, p. 82). 10 “Estes primeiros filósofos tiveram que descobrir o caminho que levava do mito às leis da natureza, da imagem ao conceito, da religião à ciência” (Ibid., p. 84). 11 Ibid., p. 82. 12 Ibid, p. 84. 13 Ibid., p. 81. 14 Ibid., p. 82. 15 D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique”, p. 13. 16 Ibid., p. 32 . 17 Ibid., p. 32. 18 Nas “Lições”, Nietzsche inicia o capítulo sobre Heráclito através de uma biografia do filósofo de Éfeso; em PHG/ FT, o pensador alemão parte de uma contraposição direta com o pensamento de Anaximandro. 19 Kofman 2, pp. 18-19. 8 cadernos Nietzsche 13, 2002 | 65 Villela Souto, M. L. referências bibliográficas 1. D’IORIO, Paolo. “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique” e “Les manuscrits”; in Les philosophes préplatoniciens; Paris, Editions de L’eclat, 1994. 2. KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la scène philosophique. Paris, Union Générale d’Éditions, 1979 3. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992. 4. _______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 5. _______. A filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa, Edições 70, 1995. 6. _______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Cia das Letras, 2000. 7. _______. Les philosophes preplatoniciens. Apresentação e notas: Paolo D’Iorio; tradução Nathalie Fernand. Paris, Editions de L’eclat, 1994. 8. _______. Kritische Studienausgabe: Sämtliche Werke em 15 Vols. Ed. Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter, 1980. 66 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista Odium fati Emil Cioran, a hiena pessimista* Paulo Jonas de Lima Piva ** Resumo: Nascido na Romênia em 1911, Cioran passou a maior parte de sua ociosa e entediada existência em Paris, lapidando com ironia e com um fino desespero um pensamento iconoclástico, autofágico e nadificante. Morreu em 1995, deixando um pessimismo original expresso em contundentes fragmentos e aforismos. Nosso objetivo é tratar de alguns pontos dessa filosofia fulminante, dessa filosofia do odium fati, na qual sem Deus tudo é Nada, e Deus, Nada supremo, tendo provocativamente como pano de fundo a sua perspectiva mais antípoda: o amor fati nietzschiano. Palavras-chave: ceticismo – ateísmo – pessimismo – niilismo – amor fati – odium fati “A vida é doce”. Lobão Debruçar-se sobre a obra de Emil Cioran é iniciar uma irreversível e temerária expedição pelo Nada. Façamos isso imaginando uma hiena, o animal desconfiado, perigoso e arredio das floresComunicação apresentada no IV Encontro Interno de Pesquisa em Filosofia realizado na Universidade Estadual de Campinas, nos dias 28, 29 e 30 de novembro de 2000, e no VI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, no período de 22 a 26 de outubro de 2001. ** Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da FAPESP. * cadernos Nietzsche 13, 2002 | 67 Piva, P. J. de L. tas e das inóspitas savanas. Atenhamo-nos atenciosamente às suas principais características: trata-se de um animal carnívoro, de uma fera muito astuta e veloz, que perambula pelas selvas com sutileza, nas pontas dos dedos, sem se fazer notar; seus hábitos são noturnos, e é um predador que se alimenta de filhotes e das sobras das presas dos predadores maiores, quase sempre disputadas com os abutres; em última instância, é um animal que sobrevive dos destroços de carcaças abandonadas; ademais, ela é também moradora de tocas e de cavernas, e tem a curiosa mania de, em todo crepúsculo, dirigir a sua mandíbula atroz para o sol declinante e emitir uma espécie de latido ou de uivo; já em meio à alcatéia, emite um som que mais se parece com uma risada, com uma sarcástica, fulminante e melancólica gargalhada. A imagem, mais exatamente a metáfora, é às vezes muito mais esclarecedora e precisa do que a mais rigorosa e complexa das definições racionalistas. Sendo assim, transportemos essa hiena ao reino embevecedor das metáforas, ao lugar no qual nada é cartesianamente claro e distinto. Nesse universo, imaginemos essa hiena fora da sua realidade e do seu habitat; imaginemos uma hiena filosofante, uma hiena especuladora, entediada, bocejante e com uma insônia irremediável, confortavelmente acomodada em uma cadeira de balanço, no cume de um despenhadeiro, com fones de ouvido, ouvindo Bach, rodeada de prostitutas e de ruínas, declamando com sarcasmo ao vazio do mundo, ao Nada do ser, no pôrdo-sol da razão, o seu pessimismo humano e, sobretudo, o seu pessimismo cósmico. Permitamo-nos esse delírio por um instante. Tal delírio, ao mesmo tempo corrosivo, extravagante e até divertido – zaratustriano num certo sentido –, sintetiza e expressa com perfeição o pensamento de Emil Cioran. Cioran é considerado por alguns críticos o escritor da língua francesa mais importante deste século, ao lado de Paul Valéry. Mas ele é antes de tudo um filósofo, um pensador que dedicou todo o 68 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista seu (mal) estar no mundo ao exame dos temas mais essenciais ao homem – à “investigação voluntária dos aspectos mais detestados e infames da existência” (KSA XIII, 16 [32]), diria Nietzsche –, isto é, às questões metafísicas (Deus, o Mal, o efêmero, o sentido da vida, a morte). Anti-sistemático e lacônico, é situado na tradição que vai dos moralistas franceses a Wittgenstein, passando por Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Curiosamente, Cioran foi fascinado pela figura da hiena, pela sugestiva simbologia subjacente a esse animal. Prostitutas, marionetes, loucos, bêbados, santos e porteiros são outras imagens recorrentes em sua obra, mas não com a mesma força e com o mesmo papel estratégico da hiena. Duas seriam as justificativas da sua obsessão pelo animal: a primeira delas, por ser Cioran um cultivador da ironia e do riso demolidores; a segunda, por ser um obcecado pelo pior, ou seja, por ser um colecionador de ruínas filosóficas, em especial, das carcaças metafísicas, religiosas, estéticas e morais da tradição, deixadas em grande parte por Nietzsche, com a sua boa nova “Deus está morto!” (Cf. Za/ZA, Prólogo, § 2). Em História e utopia, por exemplo, uma reunião de ensaios filosóficos e políticos publicada em 1960, num momento em que a revolução e o socialismo eram a esperança de quase toda a intelectualidade mundial, Cioran escreve, na contramão dos “bem-pensantes”, e para o nosso assombro, o seguinte: “Um mundo sem tiranos seria tão enfadonho quanto um jardim zoológico sem hienas” (Cioran 8, p.66). Oito anos antes, em Silogismos da amargura, a hiena aparece em duas passagens muito instigantes. Na primeira delas, como uma metáfora da nossa selvageria astuciosa e predatória em relação ao “próximo”. Para Cioran, somos todos hipócritas, todos predadores dissimulados, somos todos carniceiros uns dos outros; cada ato generoso, cada atitude de desprendimento, cada sorriso simpático seria um engodo, uma sofisticada armadilha; enfim, como escreve Cioran, “todo ato lisonjeia a hiena que existe em cadernos Nietzsche 13, 2002 | 69 Piva, P. J. de L. nós” (Cioran 7, p. 52). Na segunda passagem de Silogismos da amargura em que a imagem da hiena é evocada, Cioran enfatiza que, além de animais traiçoeiros e mesquinhos, somos também animais assolados por uma dupla desgraça: somos todos dotados de razão e, desde os espermatozóides, estamos quimicamente ligados à palavra: estas seriam as causas fundamentais da maior parte dos nossos infortúnios. Ser dotado de razão significa viver à mercê da nossa imaginação; esta, por sua vez, seria alimentada por uma vontade de verdade, no fundo, por uma vontade de ilusão e de felicidade. Por outro lado, ser uma “raça de tagarelas, de espermatozóides verbosos” (ibid., p. 17), como afirma Cioran, significa obscurecer o mundo com mantos verbais. Em outras palavras, sobretudo em filosofia, o homem, valendo-se da sua imaginação, da vontade subjacente a ela, e da palavra, revela-se um animal delirante – somos “formados na escola dos veleidosos” (ibid., p. 11) –, e, o que é pior, um animal delirante, metafísico, dogmático e intolerante, um ser que não tem consciência do seu próprio temperamento fantasioso e do seu próprio dogmatismo, de modo que é essa imaginação e essa vontade que fazem os homens criarem deuses, messias, paraísos, utopias, absolutos e universais; é esse lado imaginativo e desejoso da razão que faz a humanidade engendrar sistemas metafísicos, ideologias políticas e religiões, e entregar-se a eles de modo passional e insensato, dando origem ao fanatismo, o qual vem fazendo da história um palco de terríveis carnificinas. Nesse sentido, no caso da filosofia em particular, Cioran resume a história de todas as correntes filosóficas, de todos os grandes sistemas, à história dos devaneios idiossincráticos de solitários rancorosos: “A história das idéias é a história do rancor dos solitários” (ibid., p. 12), sentencia. Ou seja, no entender devaneador, idiossincrático e rancoroso de Cioran – ele não se excetua –, o mundo supra-sensível de Platão, a mônada leibniziana, o espírito absoluto de Hegel, a filosofia kantiana com os seus diversos juízos, a 70 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista vontade de potência de Nietzsche, além da iconoclastia do seu próprio pensamento, nada mais seriam do que meras fábulas particulares, sofisticados delírios pessoais, construções verbais enfeitiçadoras e inanes, confissões autobiográficas, enfim, garrulices parciais e desprovidas de objetividade. Filosofia, portanto, seria eufemismo de mera opinião, de simples doxa, eufemismo de desabafo, de explosão (cf. Cioran 9, p. 123). De onde se segue que, na perspectiva cioraniana, a filosofia deve ser entendida como um gênero literário específico, como fraseologia prolixa, o que faz dos tão propalados e idolatrados sistemas da tradição reflexiva pequenos universos inverossímeis, idiossincráticos e vaniloqüentes. Se quisermos ousar um pouco mais, os discursos filosóficos em torno da Verdade, do Bem e do Belo foram até hoje, aos olhos de Cioran, complexas e extravagantes articulações de jargões herméticos e de pretensões descomedidas, em suma, o mais monumental e vergonhoso blablablá. Em última análise, os grandes sistemas filosóficos seriam tão estapafúrdios e oníricos quanto a metáfora (zaratustriana) da hiena filosofante que utilizamos no início. E por que tudo isso? Porque a nossa razão é megalomaníaca, tem sede de absoluto, de totalidade, de universalidade, de objetividade, de transcendência, no fundo, tem uma necessidade visceral de encantamento e ilusão. Sem a idéia do absoluto e sem a idéia de um fundamento e de uma transcendência, o homem se desespera. Dito de outro modo, sem a idéia de que há verdades absolutas na filosofia e na moral, sem a idéia de um Deus, de um ponto de Arquimedes ou de um outro mundo, o ser humano depara-se com a tentação do suicídio. Portanto, é para não dar cabo das suas vidas que os seres humanos inventam deuses, solos e verdades. E é para continuarem vivos que eles crêem às cegas. Em contrapartida, é contra essa embriaguez, é contra esse entorpecimento desesperado, temerário e megalomaníaco oriundo de um híbrido de razão e de fé que se confundem, que Cioran invoca o ceticismo: “O ceticismo derrama demasiado tarde cadernos Nietzsche 13, 2002 | 71 Piva, P. J. de L. suas bençãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal” (Cioran 7, p. 80). E como corolário da suspensão cética do juízo temos o silêncio. Sendo a metafísica uma engenharia de sons e de símbolos que deturpa, falsifica e recria o mundo, um jogo de palavras ocas capaz de entorpecer e de viciar almas sensíveis e delicadas, Cioran propõe: “Não há salvação possível fora da imitação do silêncio” (ibid., p. 17). Calar-se, capitular-se à afasia, é, portanto, um antídoto eficaz contra os descontroles da imaginação, a atitude mais sensata de um filósofo ao término aporético de cada investigação. Por aproximar-se muito do silêncio, o uivo é outra possibilidade de desprendimento do Logos oracular aventada por Cioran: “Se tivesse que renunciar a meu diletantismo, me especializaria no uivo” (ibid., p. 48). Todavia, embora sejamos “animais metafísicos pela podridão que abrigamos dentro de nós” (Cioran 6, p. 139), embora nossa loquacidade seja pré-natal (cf. Cioran 7, p. 17), que o filósofo tenha a lamentável “mania verbal” e que toda palavra seja sempre uma palavra a mais, Cioran sugere aos aniquiladores de galimatias e aos desiludidos com os discursos que se aproximem do uivo e do mutismo expressando-se por meio de textos lacônicos inspirados no telegrama, no epigrama e no epitáfio (cf. Cioran 7, p. 14). Para finalizar a ocorrência da imagem da hiena na obra de Cioran – ele ainda define nossa alma como “hiena patética” (Cioran 6, p. 36) –, lemos em um dos seus fragmentos póstumos, carregado de ironia, o seguinte: “Eu estou maravilhosamente apto a imaginar o desespero das hienas” (Cioran 10, p. 28). Imaginemos por um instante o que viria a ser o desespero de um animal que parece viver gargalhando. O desespero na gargalhada, a gargalhada no desespero: puro paradoxo, o que no caso de Cioran não é nenhum problema. Ele é considerado por alguns o “mestre do paradoxo”, além de “arauto do pessimismo”, de “niilista radical”, de “pensador da amargura”, de “dândi da misantropia”, de “místico sem 72 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista objeto”, de “místico enraivecido”, de “gnóstico”, de “moralista rigoroso”, entre outros epítetos. A essas classificações poderíamos acrescentar mais uma: Cioran foi uma hiena pessimista, ou seja, ele filosofou como uma hiena. Mas o que significa filosofar como uma hiena? Filosofar como uma hiena significa levar a investigação e a análise metafísica às últimas conseqüências. E quando levamos a razão às últimas conseqüências, quando utilizamos de maneira radical e impiedosa a nossa razão no plano especulativo, no âmbito da metafísica particularmente, quando empregamos de modo corajoso, ousado e persistente a nossa reflexão, não sobra nada sobre nada. Pensar como uma hiena significa, portanto, intensificar o poder corrosivo, desmistificador e desmitificador do pensamento em relação a todas aquelas certezas e verdades que fomos obrigados a aceitar e a propagar desde a manjedoura. Quando filosofamos assim, aquilo que nos parecia inexpugnável, revela-se uma frágil ficção. Nossas verdades até então sagradas evaporam-se no ar, caem cadáveres sobre os nossos pés. E este filósofo-hiena alimenta-se desses despojos, nutre-se da carcaça das fábulas metafísicas e religiosas que antes eram para nós as verdades inabaláveis e redentoras oferecidas pela fé. A ironia desenganada de nossa hiena pessimista destrói todos os fundamentos, e com eles desmorona toda uma cosmovisão na qual tudo era harmônico, lógico, simples, enfim, encantado. Chegamos, portanto, ao Nada. “Só há iniciação ao nada”, escreve Cioran, “e ao ridículo de estar vivo” (Cioran 6, p. 20). E o que é o Nada de acordo com Cioran? Significa, metafisicamente falando, a ausência de um fundamento absoluto e universal na ontologia, na epistemologia, na moral, na estética e nos seus desdobramentos. Trocando em miúdos, o ateísmo de Cioran inviabiliza a velha garantia do mundo das essências. Lemos em Silogismos da amargura: “Por necessidade de recolhimento, livrei-me de Deus, desembaracei-me do último chato” (Cioran 7, p. 50); lemos também: “Fora da matéria, tudo é música: cadernos Nietzsche 13, 2002 | 73 Piva, P. J. de L. Deus mesmo não passa de uma alucinação sonora”(ibid., p. 59); e mais: “Os diletantes não querem saber de Deus; os loucos e os bêbados, esses especialistas da divindade, fazem dela o objeto de suas ruminações”(ibid., p. 63); por fim: “Se acreditasse em Deus, minha fatuidade não teria limites: passearia nu pelas ruas...” (ibid., p. 59). Em Breviário de decomposição, livro publicado em 1949, Cioran refere-se a Deus como “causa inútil, absoluto sem-sentido, modelo dos bobos, passatempo de solitários, ouropel ou fantasma conforme divirta nosso espírito ou freqüente nossas febres” (Cioran 6, p. 138). O pessimismo de Cioran é, sem dúvida nenhuma, uma das conseqüências possíveis do ateísmo, e vale ressaltar, a mais temerária delas. Deus não existe, e agora? Se eliminamos a idéia de Deus da visão tradicional de mundo, daquela cosmovisão baseada na religião, tudo perde o sentido, tudo fica sem significado, sentimo-nos órfãos na galáxia, produtos do acaso; junto com a idéia de Deus desmantela-se a idéia de uma moral absoluta e universal, revela-se absurda a idéia de uma alma espiritual, e desaparece a esperança numa eternidade post-mortem. Com o ateísmo, adquirimos consciência da nossa insignificância no universo, do quanto a nossa vida é curta e precária. Não há mais um Deus para nos recompensar, para nos punir, nos vigiar, ou para nos proteger. Resta apenas o indivíduo na sua solitária singularidade, a sua consciência e uma relativa e limitada liberdade. Quando se perde a fé nesses antigos dogmas, temos a lucidez – “A lucidez é o nada”, declara Cioran (cf. Jakob 13, p. 5) –, melhor dizendo, a “clarividência, liberdade diante do delírio ou da loucura” (Brum, 1, p. 8); somos arremessados ao Vazio e ao Nada, por conseguinte, a vida perde a sua estabilidade. A respeito desta situação, por assim dizer, karamazoviana, de que sem Deus tudo é permitido, implicação desesperadora num primeiro instante, Cioran escreve: “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo” (Cioran 7, p. 49). 74 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista O que Cioran quer dizer com “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada supremo”? No fundo, ele quer dizer o seguinte: os deuses nunca existiram, sempre foram mitos que o homem considerou como reais; em outros termos, sempre foram Nadas reverenciados pelos quais os povos historicamente mataram e morreram. Por outro lado, como vimos, a cosmovisão tradicional sempre teve na fé em Deus o seu alicerce vital. Uma vez evaporado este alicerce, tudo vem abaixo, ou seja, Tudo vira Nada. Dito de outro modo, no que concerne a Deus, “se o idolatramos, é o Ser; se o repudiamos, é o Nada” (Cioran 6, p. 138). O que fazer diante disso, como viver em meio aos destroços de Deus? Ou melhor: é possível viver em meio aos destroços de Deus, em meio ao Nada consciente de si? Uma filosofia assim não seria um convite ao suicídio?1 Por incrível que pareça, Cioran sobreviveu ao seu pessimismo, não se curvou em face do insuportável ônus do Nada consciente de si. Não se matou; ao contrário, morreu com 84 anos, em 1995, em Paris, de mal de Alzheimer. Nasceu curiosamente na Romênia, na Transilvânia, em 1911. Seu pai era padre ortodoxo, sua mãe era uma incrédula, de quem herdou o gosto por Bach. A propósito, declara Cioran a respeito de Bach: “Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus” (Cioran 7, p. 73). Cioran formou-se em filosofia em Bucareste, estudou na Alemanha de 1933 a 1935 – período suficiente para simpatizar-se com o nazismo e em seguida decepcionar-se com a mesma intensidade –, depois foi para a França escrever uma tese sobre Nietzsche. Durante três anos viveu com a sua bolsa de estudos sem nada produzir. Totalmente avesso ao trabalho, cultivava o valor aristocrático do ócio. Em virtude disso, leu muito. Aliás, foi um aristocrata em quase todos os sentidos, mesmo não tendo um franco no bolso. Durante vários anos, almoçou e jantou no restaurante universitário da Sorbonne, a preço subsidiado, até ser jubilado da universidade por ter excedido-se no seu tempo de vida acadêmica. Viveu quase miseravelmente morando cadernos Nietzsche 13, 2002 | 75 Piva, P. J. de L. em apartamentos precários e ganhando um dinheiro aqui e outro acolá com biscates. Mas o ponto de partida, o fator determinante da sua filosofia desencantada e sarcástica é a insônia, como nos mostra sua correspondência com o filósofo espanhol Fernando Savater: “Meu estado de saúde, afortunadamente mau, é em grande parte responsável pela direção, pela cor dos meus pensamentos. Comecei a ser ‘eu’ graças à insônia, a essa catástrofe a que devo tudo e que marcou profundamente a minha juventude” (Cioran 11, p. 17). Cioran contava então com 20 anos. Tornou-se imprestável. Como não dormia, não conseguia dar aula. Foi um fracasso como professor de filosofia de um liceu. Passava a madrugada toda perambulando pela cidade conversando com guardas-noturnos ou se relacionando com prostitutas. E este é outro dado importante: por experiência, Cioran via nos prostíbulos uma fonte rica de sabedoria. O método da sua filosofia (se é que tem um) é o de fazer das suas idéias suas prostitutas, fazer da filosofia uma libertinagem do espírito.2 Segundo ele, “só o bordel é compatível com a metafísica” (Cioran 6, p. 164), logo, devemos nos relacionar com todas as idéias, com todas as teses e doutrinas sem nos apegarmos a nenhuma. Cioran chega a asseverar que “um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do sorriso e da destruição” (Cioran 7, p. 16). O pensar então deve ser um grande experimento. Fazer da filosofia uma promiscuidade, fazer das nossas idéias putas, significa proteger-se do dogmatismo e, conseqüentemente, do fanatismo. O pensador deve estar aberto a todas as experiências reflexivas possíveis, deve ser um libertino da razão. Em outras palavras, a filosofia pensada deste modo nos torna imunes à sedução perniciosa dos dogmas e das verdades absolutas, seria o “método” mais lúcido e mais inofensivo de se fazer metafísica, como nos mostra Cioran no texto “Filosofia e prostituição”, de Breviário de decomposição: “O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, 76 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta” (Cioran 6, p. 86). Mas voltemos à insônia. O fato de não dormir fez de Cioran uma personalidade exaurida e deprimida. Esse estado fisiológico levou-o a ter uma percepção do tempo bastante diferente da concepção do tempo daquele que dorme. O insone cioraniano enxerga o tempo como algo eternamente contínuo, enquanto aquele que dorme vive a cada manhã a ilusão de um novo dia, a ilusão de que o tempo é descontínuo, que acaba e recomeça. É dessa época o primeiro livro de Cioran. Ele contava na ocasião com 22 anos. O nome do livro: Nos cumes do desespero. A insônia era tão terrível, tão insuportável, que ele pensou em se matar imediatamente após publicá-lo. O livro seria uma espécie de testamento pessimista. Entretanto, o livro foi publicado – e premiado na Romênia, diga-se de passagem – e ele não se suicidou. Certa feita, não agüentando mais a insônia e a depressão, Cioran desabafou à sua mãe: “Mãe, não agüento mais!”. Sua mãe então disse-lhe impassível: “Se eu soubesse teria feito um aborto” (Jakob 13, p. 4). Esse é outro momento de extrema importância do pensamento de Cioran: além da insônia terlhe dado a consciência da continuidade ininterrupta e do vazio do tempo, a afirmação lúcida de sua mãe revelou-lhe outros dois aspectos fundamentais da existência: o acaso e a gratuidade. Sua vida carecia de destino e de necessidade. Se ele existisse ou não, as coisas continuariam existindo do mesmo jeito. Dito de outro modo, somos totalmente insignificantes em face do universo, todos prescindíveis do ponto de vista da matéria. A propósito, sobre a vida, Cioran faz vários julgamentos. Em Breviário de decomposição, por exemplo, Cioran desabafa: “Merda de existência miserável!” (Cioran 6, p. 163). Em Silogismos da amargura, por sua vez, Cioran é implacável em várias passagens. Numa delas, sentencia: “Mais que um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte, nem mesmo a poesia conseguem corrigir” (Cioran 7, p. 20). Em cadernos Nietzsche 13, 2002 | 77 Piva, P. J. de L. outra passagem, Cioran define: “A ‘vida’ é uma ocupação de inseto” (Cioran 7, p. 55). Em outra, lemos: “Alguém emprega continuamente a palavra ‘vida’? Saiba que é um doente” (ibid., p. 33). Para finalizar, detona um dos seus mais aniquiladores aforismos: “A vida, esse mau gosto da matéria” (ibid., p. 56). Para um iconoclasta melancólico feito Cioran, que pulveriza tudo com ironia e deboche, que não encontra na vida nenhum sentido, nenhum valor – “Repetir-se mil vezes por dia: ‘Nada tem valor neste mundo’, encontrar-se eternamente no mesmo ponto e rodopiar tolamente como um pião...” (Cioran 6, p. 96) –, e que acha que não vale a pena viver, o suicídio parece ser o seu destino lógico e inevitável. Sendo assim, por que então não se matou? Cioran tem várias justificativas para a recusa do suicídio e para a sua permanência na vida. Ele declara, por exemplo, que quem não tem nenhuma razão para viver, do mesmo modo não teria nenhuma para morrer (Cioran 7, p. 56). Todavia, poderíamos retrucá-lo com o seguinte argumento: ora, Cioran, não ter nenhuma razão para viver não seria uma boa razão para se suicidar? Outra justificativa de Cioran poderia ser a seguinte: suicidar-se é um ato de fé (cf. Savater 18, p. 152), é uma postura que deriva de um assentimento a uma tese pessimista que se julga verdadeira. Como ele é um cético na medida em que duvida do seu próprio pessimismo e do seu próprio ceticismo, como ele ri de si mesmo e destrói o seu próprio pensamento, ele jamais se mataria por acreditar que a vida não tem sentido. E se um dia ele mudasse de idéia, e se descobrisse enganado e passasse a ver um sentido em tudo? Cioran sugere também que um pessimista pode se acostumar com o absurdo e se resignar em face do Nada, abandonando assim a idéia de se matar. Outro fator que poderíamos acrescentar às justificativas de Cioran é a resistência natural do nosso instinto de conservação à sedução da forca, do brilho da navalha ou do apertar do gatilho. Esse instinto de conservação manifesta-se, por exemplo, na fé: 78 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista “‘Quando faço a barba’, me dizia um semilouco, ‘quem, senão Deus, me impede de cortar a garganta?’ – a fé seria apenas, afinal da contas, um artifício do instinto de conservação. Biologia por toda parte...” (Cioran 7, p. 89). Por último, Cioran sugere que o riso – segundo ele, “reservado aos iniciados” (ibid., p. 79) – permitiria ao pessimista manter-se em sua incoerência. Ao invés do suicídio, o pessimista cioraniano parece optar por uma paradoxal e estridente gargalhada perante o Nada; ao invés do drama e do choramingar de outros pessimismos, o pessimista cioraniano decide pelo humor e pela banalização, os quais rejeitariam a morte voluntária sem afirmar de maneira apaixonada e trágica a vida. Em outras palavras, Cioran, ao modo da hiena, ou seja, em meio a carcaças, uivos e gargalhadas, reduz a existência de um modo geral a uma trágica piada. A propósito, José Thomaz Brum observa: “Pessimismo cósmico, fatalismo e niilismo banham sua obra exigente e severa, onde o riso é contraponto para uma lucidez implacável” (Brum 1, p. 9). Trata-se, no fundo, de um odium fati incompleto, de um odium fati que não se realiza plenamente em virtude das objeções céticas e cínicas do filósofo. Portanto, o ceticismo, o hábito de existir, a resignação, a resistência do instinto de conservação, e a negação debochada e cínica da vida fariam desse pessimista um “veterano da dor”, um “aposentado do suicídio” (Cioran 7, p. 91). No entender de Cioran, o suicídio deveria ser mesmo uma decisão dos otimistas (ibid., p. 56), ou, mais precisamente, uma opção daqueles otimistas frustrados com as promessas do seu próprio otimismo, uma atitude daqueles otimistas que choram viúvos diante do fracasso dos seus projetos humanistas e do remorso de terem protagonizado catástrofes. Hitler, por exemplo, teria tentado salvar a civilização pela barbárie (cf. ibid., p. 42). De qualquer forma, a questão permanece: como um pessimista assim tão radical consegue sobreviver ao seu pessimismo? Como uma pessoa que não crê em nada, que duvida o tempo todo até de si mesmo, um indivíduo sem ilusões nem cadernos Nietzsche 13, 2002 | 79 Piva, P. J. de L. esperanças, que passa os seus dias a escrever fragmentos, a ler romances, a ouvir Bach e a se entediar, como pode alguém assim continuar vivendo? A essa questão, Cioran responde o seguinte: “O pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma vítima do ‘sentido’ da vida” (Cioran 7, p. 16). O que ele quer dizer, em outras palavras, é que a vida de um niilista incoerente, isto é, que a vida de um pessimista que não se mata, deve ser movida por pequenas razões cotidianas. Cioran afirma ainda que, para tentar se adaptar à vida, é preciso mudar constantemente de desespero (cf. ibid., p. 86). Por ser um grande desiludido com a filosofia – “Afastei-me da filosofia no momento em que para mim se tornou impossível descobrir em Kant alguma fraqueza humana (...)” (Cioran 6, p. 54) –, com a razão – “As análises da insônia desfazem as certezas” (ibid., p. 164) – e com o homem – este, um fracasso já com Adão (cf. Cioran 7, p. 82) –, Cioran nunca teve nenhuma pretensão de ser coerente. Aliás, como foi aludido, Cioran é um especialista em paradoxos. Ao contrário do que parece, Cioran não visou a induzir ninguém ao suicídio. Por outro lado, evidentemente, Cioran também não instigou ninguém a amar a vida. O que ele diz é que as ilusões são o fundamento de uma vida suportável (cf. Jakob 13, p. 5). Quanto mais ilusões, quanto mais esperanças e mitos existirem na vida de um homem, mais suportável será para ele existir. Nesse sentido, destruir as fábulas que a nossa vontade de ilusão e de felicidade introduz nas coisas e nos fenômenos, é um empreendimento camicase. Se Cioran, que leu muito os místicos e os escritos budistas, pudesse prever as conseqüências do seu modo tão radical e tão corrosivo de pensar, certamente nunca teria questionado a sua primeira ilusão. Seria bem melhor assim. O próprio Cioran várias vezes se lamenta de ter uma ilusão consciente, isto é, de ter uma ilusão que tem a consciência de que é uma ilusão – o seu pessimismo talvez: “Espírito positivo corrompido, o Destruidor acredita ingenua- 80 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista mente que vale a pena demolir verdades. É um técnico às avessas, um pedante do vandalismo, um evangelista extraviado” (Cioran 7, p. 51). Enfim, Cioran sugere que os iludidos que não são cônscios de suas ilusões são seres abençoados; é o caso dos que têm esperanças: “Quando me lembro que os indivíduos são apenas gotas de saliva que a vida cospe, e que a vida mesma não vale muito mais em comparação com a matéria, dirijo-me ao primeiro bar que encontro com a intenção de nunca mais sair dele. E, no entanto, nem sequer mil garrafas me dariam o gosto da Utopia, dessa crença em que algo ainda é possível” (ibid., p. 86). E aqui retomemos pela última vez a metáfora da hiena do início das nossas reflexões. Com tudo o que foi dito, ela pode agora ser melhor entendida. Recordemos: uma hiena filosofante, insone, entediada e bocejante, no topo de um despenhadeiro, numa cadeira de balanço, com fones de ouvido, ouvindo Bach, rodeada de prostitutas e de destroços, uivando em silêncio, com sarcasmo, ao vazio do mundo, ao Nada do ser, no pôr-do-sol da razão, o seu pessimismo humano e, sobretudo, o seu pessimismo cósmico. Imaginemos agora esse filósofo que reduz o amor ao encontro de duas salivas (cf. Cioran 6, p. 15) e que considera a humanidade uma tragicomédia cujo destino está atrelado ao futuro do cianureto (cf. Cioran 7, p. 85), frente a frente com uma filosofia tão afirmativa quanto a desenvolvida por Nietzsche na sua maturidade.3 Foi Nietzsche, segundo Susan Sontag, quem “formulou quase toda a posição de Cioran um século atrás” (Sontag 19, p. 83). De fato, Cioran foi um grande entusiasta de Nietzsche na juventude, porém, a “idolatria da força” fomentada pelo filósofo alemão com as hipóteses da vontade de potência, do eterno retorno e com a proposta da transvaloração dos valores e do além-do-homem decepcionou-o visceralmente. A respeito dessa desilusão determinante, Cioran relata: cadernos Nietzsche 13, 2002 | 81 Piva, P. J. de L. “Quando se é jovem, pratica-se a filosofia menos para buscar nela uma visão que um estimulante; perseguem-se as idéias, adivinha-se o delírio que as produziu, sonha-se em imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz no malabarismo das alturas; em um pensador ama o saltimbanco; em Nietzsche amávamos Zaratustra, suas poses, suas palhaçadas místicas, verdadeira feira de cumes... Sua idolatria da força é menos um sinal de esnobismo evolucionista que uma tensão interior projetada para fora, uma embriaguez que interpreta e aceita o devir. Disso tinha que resultar uma imagem falsa da vida e da história. (...) Como Nietzsche, acreditávamos na perenidade de nossos transes; graças à maturidade de nosso cinismo, fomos ainda mais longe que ele. A idéia do além-do-homem nos parece, hoje, uma mera elucubração; naquela época, nos parecia tão exata como um dado experimental. Assim se eclipsou o ídolo de nossa juventude” (Cioran 7, p. 29). Assim sendo, se a hiena do odium fati se deparasse na sua “mais solitária solidão” com o demônio de A gaia ciência anunciando-lhe “o mais pesado dos pesos”, ou seja, o irremediável eterno retorno do mesmo,4 ou, então, com o próprio Nietzsche de Ecce homo dando a sua “fórmula para a grandeza no homem”, o amor fati,5 ela certamente gargalharia dos dois à maneira dos deicidas ressentidos com o Absoluto, e, do alto do seu cinismo, com um semblante irônico de que a vida é doce, indagaria-os: “há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo?” (Cioran 6, p. 67). Ao cotejar as filosofias de Nietzsche e de Schopenhauer em O pessimismo e suas vontades, José Thomaz Brum, tradutor e amigo de Cioran, distingue duas modalidades de pessimismo. Valendo-se do próprio Nietzsche, Brum refere-se a um “pessimismo clássico”, de procedência pré-socrática, e a um “pessimismo romântico” (cf. Brum 4, p. 74). Em linhas gerais, o primeiro seria o “pessimismo dos fortes”, isto é, “um pessimismo trágico que aceita a existência e a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento”.6 Trata- 82 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista se da filosofia nietzschiana propriamente dita. Por outro lado, teríamos um pessimismo fundamentado no horror às dores e ao efêmero da vida, na compaixão, na negação da vontade e na fuga do mundo, ou seja, o pessimismo de Schopenhauer. Enquanto a perspectiva trágica de Nietzsche consiste num “dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção” (KSA XIII, 16 [32]), numa celebração permanente e alegre dos encantos e dos dissabores do vir-a-ser, em suma, numa afirmação vigorosa da vontade e numa radical adesão ao viver, o pessimismo schopenhaueriano advoga “a negação do querer-viver” (cf. Brum 4, p. 49), ou seja, a fuga do ordinário (cf. ibid., p. 89) e a busca de alívio, de consolo e de redenção sobretudo na arte (cf. ibid., p. 87). Em vista disso, como poderíamos classificar o pessimismo de Cioran? Nem romântico tampouco trágico. Nada de cantilenas compassivas ou subterfúgios estéticos, como em Schopenhauer, tampouco reverências à vontade, propostas de transvalorações, juras piegas de amor à fugacidade, e defesas incondicionais da vida, como em Nietzsche. O pessimismo de Cioran parece ter um perfil próprio. O seu odium fati é antes de tudo uma declaração de descontentamento visceral e de nojo irremediável em relação a tudo o que existe e acontece, é o desabafo veemente daquele que nega radicalmente a vida por se ressentir com os seus golpes e por não suportar a sua condição ínfima em meio à insignificância cósmica. Não ser mais do que se é, deteriorar-se no absurdo, conviver com a futilidade de tudo, ser asfixiado pela vagareza enfadonha e implacável do tempo, ser ruminado pela certeza indubitável da morte: tudo isso é pungente demais para a hiena pessimista. No seu entender, a superação do niilismo é farsa, ilusão, promessa religiosa. E mesmo que essa superação fosse exeqüível, a insignificância da existência permaneceria inexpugnável. Lucidez e alegria são, portanto, inconciliáveis (cf. Rosset 17, p. 101). Não há nada na vida que valha um retumbante Sim, não há nada na matéria e no tempo que mereça cadernos Nietzsche 13, 2002 | 83 Piva, P. J. de L. ser amado Assim sendo, a causa da existência torna-se efetivamente indefensável (cf. ibid., p. 102). O pessimista cioraniano encontrarse-á então diante de um impasse pendular: passará seus dias oscilando entre a apatia e o suicídio (cf. ibid., p. 99), entre a resignação provocada pelo hábito e a tentação da morte voluntária. Como não possui compromisso com a coerência, ele poderá renunciar ao seu ceticismo e se matar. No entanto, caso seja vencido pela suspensão cética do juízo e pelo costume de existir, o pessimista cioraniano sobreviverá chafurdado no mais mordaz dos cinismos. E é nessa direção que o pessimismo de Cioran deve ser entendido, como um pessimismo cínico, ou seja, como uma perspectiva arrasadora constituída por um desdém rancoroso, por uma melancólica ironia e por um riso misantrópico, amoral, banalizador e autofágico, os quais reduzem a razão, o homem e a vida a uma grotesca e nadificante anedota. Trata-se, portanto, de um pessimismo sem evasivas, consolos e hipóteses criadoras de sentido. A filosofia de Cioran é, em suma, um pessimismo sem auto-ajuda7. Abstract: Born in Romania in 1911, Cioran spent the most part of his tedious and indolent life in Paris, ironically and hopelessly shaping an iconoclastic and autophagous thought. He died in 1995 leaving an original pessimism, well expressed in several fragments and aphorisms. Having Nietzsche’s amor fati as its backdrop, the article aims at dealing with some aspects of this fulminating philosophy, this odium fati philosophy, in which without God everything turns to Nothing, and God, on the other hand, turns out to be the supreme Nothing. Key words: skepticism – atheism – pessimism – nihilism – amor fati – odium fati 84 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista notas 1 A essência das reflexões de Cioran aproxima-se muito da idéia de Albert Camus, em O mito de Sísifo, de que “só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia” (Camus 5, p. 23). Contudo, a solução dada por Camus a essa questão é antagônica à de Cioran. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, arremata Camus em tom quase imperativo (id., ibid., p. 145). 2 Denis Diderot, talvez o principal pensador ateu da Ilustração francesa, tinha já no século XVIII esta mesma concepção de filosofar. Em O sobrinho de Rameau (1761), sua obra-prima, lemos: “Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear no Palais-Royal, às cinco horas da tarde. Sempre solitário, sou visto sonhando no banco de Argenson. Entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais completa libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira idéia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas de Foy, nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã de ar estouvado, fisionomia risonha, olho vivo, nariz arrebitado, deixando esta por outra, assediando todas e não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras.” (Diderot 12, p. 41). 3 Charles Andler dividiu a obra multifacetada de Nietzsche em três períodos, sendo o último o “Período da Reconstrução”, a fase da maturidade, na qual a afirmação da vida é o valor supremo (cf. Brum 3, p. 11). 4 A esse respeito, lê-se: “– E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda mais uma vez e ainda inúme- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 85 Piva, P. J. de L. ras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’ – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? –“ (FW/GC § 341). 5 “Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati: não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo (...), mas amálo...” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 10). 6 Cf. Brum 4 7 A propósito de Cioran, Franco Volpi ressalta que sua obra “destila, por todas as páginas, um concentrado de pessimismo que envenena de morte todos os ideais, esperanças e impulsos metafísicos da filosofia, ou seja, todas as tentativas de dar à existência algum sentido e segurança, em face do abismo de absurdo que a todo instante a ameaça. As reflexões de Cioran empurram-nos até o ponto de nos sentir nus perante um destino também nu” (Volpi 20, p. 104). 86 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista referências bibliográficas 1. BRUM, J. T. “A sabedoria da desilusão”. In: CIORAN, E. Exercícios de admiração. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988. 2. _______. “Apresentação”. In: CIORAN, E. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. 3. _______. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre, L&PM, 1986. 4. _______. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. 5. CAMUS, A. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução de Mauro Gama. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989. 6. CIORAN, E. Breviário de decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. 7. _______. Silogismos da amargura. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1991. 8. _______. História e utopia. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1994. 9. _______. Exercícios de admiração. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 2001. 10. _______. Cahiers (1957-1972). Paris, Gallimard, 1997. 11. _______. “Carta-prefácio”. In: SAVATER, F. Ensayo sobre Cioran. Madri, Editorial Espasa-Calpe, 1992. 12. DIDEROT, D. “O sobrinho de Rameau”. In: Textos escolhidos. Tradução de Marilena Chauí e J. Guinsburg. Col. “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1979. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 87 Piva, P. J. de L. 13. JAKOB, M. “A insônia da razão” (entrevista). Tradução de Leda. T. Motta. In: “Mais!”, Folha de São Paulo, 12 de fevereiro de 1995. 14. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução de Rubens R. Torres Filho. Col. “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1978. 15. _______. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986. 16. _______. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo, Brasiliense, 1987. 17. ROSSET, C. “Post-scriptum: le mécontentement de Cioran”. In: La force majeure. Paris, Les éditions de minuit, 1983. 18. SAVATER, F. Ensayo sobre Cioran. Madri, Editorial Espasa-Calpe, 1992. 19. SONTAG, S. “‘Pensar contra si próprio’: reflexões sobre Cioran”. In: A vontade radical. Tradução de J. R. Martins Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. 20. VOLPI, F. O niilismo. Tradução de Aldo Vannucchi. São Paulo, Edições Loyola, 1999. 88 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar Gilvan Fogel* Resumo: Partindo de um fragmento póstumo de Nietzsche, o autor explica por que o filósofo alemão nega a teoria do conhecimento enquanto disciplina em proveito de uma nova noção de conhecimento. Para isso, ele assinala, de um lado, a imbricação entre a concepção tradicional de conhecimento e os pressupostos cartesianos; e recorre, de outro, ao esclarecimento de conceitos como perspectiva e afeto, presentes, para Nietzsche, em todo ato de conhecimento. Palavras-chave: conhecimento – perspectiva – afetos I Uma anotação de Nietzsche, de 1887, sob o título “Reforma de Princípios”, anuncia cinco tópicos. Um deles, o quarto, diz: “Em lugar da teoria do conhecimento uma doutrina perspectivista dos afetos (à qual pertence uma hierarquia dos afetos: os afetos transfigurados: seu ordenamento superior, sua espiritualidade)” (KSA XII, 9[8]). * Gilvan Vogel é professor do Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). cadernos Nietzsche 13, 2002 | 89 Fogel, G. Queremos entender esta proposta de Nietzsche. Para tanto, é preciso começar perguntando: e por que não teoria do conhecimento? O que é – Nietzsche diria: o que quer a teoria do conhecimento? Na história da filosofia, desde a Grécia clássica, o conhecimento sempre se configurou com um dos problemas maiores. Discutido, porém, de maneira inseparável da pergunta pelo real, ou seja, constituindo-se num modo ou numa via de acesso para a compreensão da realidade do real. Mas com a característica de um problema à parte, independente e, sobretudo, com a efígie de propedêutica e de organon, isso somente se dá na modernidade, no desdobramento de uma certa compreensão/interpretação de Descartes e, principalmente, de Kant. É nesta rota histórica que o conhecimento, já no século XIX, será tematizado sob a sigla “teoria do conhecimento” (ou ainda epistemologia, criteriologia, gnosiologia) e tal tematização se fará a partir dos pressupostos desta era moderna. O ponto de partida decisivo é a separação e oposição alma e corpo (homem e mundo, ativo e passivo, vivo e morto, sujeito e objeto), que traz consigo uma aporia: como pode o sujeito atingir, captar, apreender o objeto? Sujeito e objeto, homem e mundo, alma e corpo são substâncias, isto é, cada qual se define como um estrato autônomo, um algo sub- e pré-existente e, então, pergunta-se: como o dentro capta o fora? É possível o conhecimento, o saber? Como? Em que medida? Sob quais condições? Surge assim o chamado “problema da ponte”, quer dizer, da passagem, da mediação ou da intermediação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido, entre homem e mundo, entre alma e corpo. O conhecimento passa a ser uma terceira substância, uma terceira “coisa”, a saber, uma propriedade, um poder ou uma faculdade do sujeito, da “alma”, responsável por estabelecer a mediação. Ele torna-se uma espécie de hífen para conectar sujeito e objeto, homem e mundo. O conhecimento torna-se assim meio e instrumento e forja-se um campo específico de investigação, cunha-se um 90 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar “objeto novo”, que, portanto, reclama uma nova disciplina – a teoria do conhecimento. Neste contexto, conhecimento e representação são inseparáveis. Conhecer é representar, ou seja, conhecimento é a representação de algo ou, ainda, a representação que um sujeito pensante (o homem) faz ou tem de um objeto formal ou materialmente dado, à medida que este sujeito se volta, retorna sobre si e a partir desta volta sobre si re-apresenta o dado sob a própria forma do sujeito – esta re-apresentação constitui propriamente o objeto. No âmbito desta formulação, impõe-se a necessidade de definir os três termos, a saber, representação, sujeito e objeto. A grande questão, no entanto, geradora de tudo o mais, é a pressuposição desta compreensão, segundo a qual a realidade, toda realidade possível, já se faz e precisa se fazer como ou a partir da estrutura sujeito “versus” objeto. Isto é uma evidência, um óbvio e, por isso, inquestionável. Este tipo de evidência cria sempre uma escuridão, uma cegueira no pleno meio-dia da evidência... A teoria do conhecimento está a serviço da realização do ideal moderno de verdade, ou seja, está empenhada em fazer cumprir a certeza como critério de verdade, como medida de realidade. Para tanto, ela define que, antes de conhecer, é preciso certificar-se, assegurar-se que se conhece (isto é, atinge-se, capta-se, apreende-se ou representa-se o objeto) e que se conhece bem, isto é, que o conteúdo do conhecimento, de algum modo, real ou transcendentalmente, corresponde à natureza ou ao modo de ser do objeto conhecido. A teoria do conhecimento, assim, vendo o conhecimento como meio e instrumento (organon), reivindica para si o direito de propedêutica, tal como a lógica se auto-denominou propedêutica e organon para pensar – para pensar bem ou corretamente: antes de pensar é preciso aprender a pensar corretamente. Impõe-se previamente estudar as regras para o bom pensar, tal como se o modo de pensar existisse ou pré-existisse antes e fora do pensar isso ou aquilo, as- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 91 Fogel, G. sim ou assim outro. Teoria do conhecimento, tal como lógica, converte-se num aspecto da metodologia, ou seja, da doutrina do método ou do caminho do prévio asseguramento e controle do conhecimento, da verdade e do real. Sim, impera o tipo “desconfiado”, que, meio empolado, se diz cético e crítico... De passagem, lembremos uma observação de cunho psicológico, de Dostoievski, segundo a qual os tipos mais desconfiados são o anão e o corcunda. Seria teoria do conhecimento coisa de corcunda e de anão?!... Nietzsche fala que a filosofia “reduzida à teoria do conhecimento é um resto de filosofia, movida por desconfiança e covardia, quando não escárnio e compaixão consigo mesma – uma filosofia no último suspiro, um fim, uma agonia – como poderia tal filosofia mandar”? (JGB/ BM § 204). É neste contexto de incerteza e de desconfiança, mas que no fundo é obsessão por certeza, controle e auto-asseguramento, que se faz oportuna a pergunta de Hegel: “Por que não, ao contrário, tratar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança e preocupar-se com o fato de que o medo de errar já é o próprio erro?”1. É, portanto, no espírito desta aguda observação de Hegel, que precisamos começar a articular a compreensão da proposta de Nietzsche de ver o problema do conhecimento no âmbito de uma doutrina perspectivística dos afetos – é, pois, desconfiado com a desconfiança fomentadora da teoria do conhecimento e, sobretudo, cuidando que o medo de errar já é o próprio erro... Sim, não preocupação com conhecimento e verdade, mas medo de errar – isto norteia a teoria do conhecimento. O desdobramento do problema do conhecimento, tendo como fios condutores a teoria do conhecimento e a moderna formulação de base do problema (S x O), conduz ao estudo detalhado dos processos e dos mecanismos bio-psicológicos e neurofisiológicos (o cérebro) do sujeito cognoscente, o que passa a responder pelas possibilidades e pela natureza do conhecimento. Este, que já é visto como 92 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar intermediário e instrumento, passa a ser compreendido e determinado como uma espécie de epifenômeno de funções cerebrais, melhor, bio-psico-neurológicas. É o que hoje se faz com o nome de neurociência cognitiva. Por esta via, explicar-se-á sensações, recepções do fora ou externo pelo dentro ou interno, estímulos, enzimas, ácidos, sinapses, correntes e fluxos eletroquímicos – enfim, sempre ainda a mecânica e o mecanismo da representação, do conhecimento, que, assim, continua visto como intermediário e instrumento. A questão, a saber, o conhecimento nele mesmo, continua desviada e falsificada. A neuro-ciência cognitiva e, por extensão, as chamadas filosofias da mente são a versão pós-moderna da moderna teoria do conhecimento – o conhecimento estaria localizado em alguma área do cérebro, que estaria sendo rigorosamente mapeada. E o cérebro seria um dado primário – o real !! O pós (pós-moderno), como também o neo, aqui e quase sempre, é tão-só indicação de arcaísmo – arcaísmo e solecismo... Por que não teoria do conhecimento? Porque o problema, de cara, ab origo, está mal encaminhado, já desviado do verdadeiro problema e, portanto, com esta formulação ou a partir desta précompreensão não resta nenhuma esperança. Kant, com surpreendente humor, diria: perguntando deste modo, é como se um ordenhasse o bode e outro aparasse com a peneira...!!2 II Sim, “introduzir uma desconfiança na desconfiança e cuidar que o medo de errar já é o próprio erro”, pois se parte de uma outra evidência, a saber, o afeto é o elemento, o medium – o absoluto. Isto é o mesmo que dizer: o começo (princípio, fundamento) é afeto. Quando se diz: afeto é o elemento não se está pensando com elemento, por exemplo, a parte que entra na composição de algo ou cadernos Nietzsche 13, 2002 | 93 Fogel, G. cada parte, cada indivíduo de um ajuntamento de partes, mas o âmbito, o ambiente, o clima ou o pathos em que algo se dá, acontece, a saber, o envolvimento ou ambiência em que este algo se encontra – mais, que ele é, quando se diz, por exemplo, que a água é o elemento do peixe. Digo também que é o seu meio, seu medium e com isso não se pensa com meio o intermediário (como acima, na primeira seção, quando assim se falava do conhecimento na perspectiva da teoria do conhecimento), o ponto central eqüidistante, a metade ou a porção entre (intermediária) um e outro termo, mas algo como o meio ambiente, a circunstância, tal como se está no meio da multidão, no meio da borrasca e da tormenta, isto é, totalmente envolto e tomado por borrasca, por tormenta ou por multidão, de tal modo que estas se fazem, cada vez, sim, o elemento! É, portanto, neste sentido de elemento e de medium que afeto se faz o ab-soluto, quer dizer, o que não tem referência alguma para fora (antes ou depois, aquém ou além) do próprio afeto: ele é lugar e hora de vida, de existência, das coisas que aparecem ou se dão na vida, na existência. Portanto, começo, origem, fundamento. Formulando melhor: por afeto cabe entender todo e cada verbo constitutivo do existir, do viver. Verbo, isto é, todo e qualquer modo de ser possível do homem, modo este que abre um campo de relacionamentos e, a partir da ação ou da atividade que é este campo, se instaura, vem a ser um âmbito, um domínio possível de realidade, por exemplo, pensar, escrever, pintar, caçar, guerrear, jogar... A isso se pode também denominar força, isto é, irrupção de força, que é um campo de relacionamento ou de instauração de uma realidade possível. Foi dito: o afeto abre um campo de relacionamentos e este é ação, atividade. Em questão está a ação ou a atividade de auto-exposição deste afeto, ou seja, a ação de o afeto fazer-se este afeto ou vir a ser o que é aparecendo como isto, como aquilo. Auto-exposição diz: expor-se, aparecer ou vir a ser desde si mesmo. Este desde 94 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar si mesmo é a denominação própria de vida (Psyché) e o que decide por esta auto-exposição é o caráter de súbito, de abrupto ou de imediato do afeto. Afeto, a força ou o modo de ser em que se está e que se é, é como a subtaneidade, a i-mediatidade do salto. Assim se configura também o círculo. Por isso, origem, começo – Ur-sprung. O afeto, a força, que é ação, é abissal – por isso vida, a saber, movimento desde si próprio ou auto-exposição. Afeto diz ainda e, sobretudo, ser tocado, ser tomado por. É o que também denominamos experiência. Dizer que afeto é começo, é igualmente dizer que origem (salto, Ur-sprung) é entendida a partir de experiência, como experiência. Experiência, empeiria, fala do movimento, da atividade do ser tocado, tomado pelo afeto que perfaz, isto é, que é esta própria experiência. É assim, nesta estruturação, que vai se fazendo a exposição, a auto-exposição ou, o que é a mesma coisa, aparição, concretização. A noção de experiência anda rigorosamente junto com a noção de começo, de origem, perfazendo uma e a mesma compreensão – um e o mesmo fenômeno. Isto justamente porque começo, origem, se define como e a partir de experiência. Ao se falar de começo como súbito, imediato, o que se está falando é que, a rigor, no ou num começo (pois o começo é sempre um começo) não se entra, mas nele abruptamente se cai, mesmo se de-cai, isto é, nele nos vemos súbita ou abruptamente caídos, jogados e, por isso, tomados, atravessados, perpassados – quer dizer: afetados. Este atravessar, perpassar é que propriamente dá o caráter de pathos, de afecção, ou seja, de ser tocado e tomado por... Enfim, o que também se denomina experiência. Começo, por um lado, tem ou é a mesma estruturação de experiência e, por outro, é sempre e necessariamente uma experiência determinada e é justamente esta determinada experiência que define, que dá a determinação ou o modo de ser do que aparece e se mostra – quer dizer: disso que é e há. A determinação (em alemão, Be-stimmung, en-tonação) é justamente cadernos Nietzsche 13, 2002 | 95 Fogel, G. a cor, o tônus, o tom – mais e melhor, a coloração, a entonação que atravessa, quer dizer, percorre, perdura, performa e assim perfaz isto que é e há, tornando isto tal como há e é. Sim, o é é o tom, a entonação, isto é, o afeto, a afecção. “Experiência, empeiria, é uma palavra que em grego, como em latim, vive da raiz per. Os vocábulos, como as plantas, vivem de suas raízes. Nas línguas germânicas existe igualmente per em forma de fahr. Por isso, experiência se diz Erfahrung. ...per é atravessar; em grego, peiro ...”3 Assim, perfazendo, performando, perdurando, experiência (Erfahrung) é, de algum modo, a viagem – erfahren é viajar. Mas sobretudo a viagem verbo e não substantivo, ou seja, trata-se de ser ou estar em viagem, a caminho. Por exemplo, A fenomenologia do espírito, de Hegel, enquanto “Ciência da experiência (Erfahrung) da consciência”, é o saber que é a viagem da consciência, isto é, é o ser e estar em viagem, o a caminho da consciência para a consciência que, assim, define, determina o movimento de realização de realidade enquanto e como curso e percurso desta origem, deste caminho, deste método – enfim, desta estória (acontecer, suceder). Experiência é portanto isto: a, uma viagem. A viagem que se é. A viagem que é, que são as coisas, cada coisa. É assim, como viagem, que experiência é também envio, destino e destinação, remetimento, relacionamento – estória. Experiência (afeto), portanto, se faz e se dá como uma viagem (fahr), que é uma travessia (per), ou seja, em viagem, a caminho ser atravessado, trespassado, perpassado. Nesta viagem, por ela e desde ela, mostra-se, revela-se ou faz-se visível tudo quanto é e há. Daí que experiência (afeto) e perspectiva dizem o mesmo. Elas se implicam e se complicam! Tudo quanto é e há, é e há à medida que já é a articulação de um afeto, isto é, de um modo de ser, que também pode, talvez precise se denominar perspectiva, uma vez que é neste ou desde este afeto que o que há e é mostra-se, aparece, faz-se visível (perspectiva = perspicere) ou vem à determinação (entonação, 96 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar coloração!). Perspectiva (perspicere) fala, portanto, do elemento, do medium como lugar e hora de instauração ou a instância do fazer-se visível – ser-aparecer. Uma “doutrina perspectivista dos afetos” é uma doutrina que articula uma compreensão de realidade, da dinâmica de realização de realidade, enquanto e como perspectiva-afeto ou afeto-perspectiva. Trata-se de uma doutrina do real enquanto e como movimento de experiência ou a compreensão de realização de realidade como sendo o mesmo que realização/concretização de experiência. Experiência (afeto) é determinação à medida justamente que é o que faz com que a coisa (tudo quanto há e é) insista e persista em seu ser, na sua presença e isto, de novo, à medida que é um insistente e persistente (repetitivo e incoativo) atravessar. Ou seja: a experiência, o humor, per-fazendo, per-correndo, per-passando, per-durando e, assim, levando o que é e há à perfeição (per-facção)4. A realidade, toda e qualquer possível realidade, é o movimento, a dinâmica de transfiguração, isto é, de alteração ou diferenciação do afeto, do humor – da experiência. É ela que é o mesmo que se altera, que se diferencia (se transfigura)5, perfazendo assim o múltiplo, a multiplicidade – tudo quanto há e é. É ela, portanto, o logos, quer dizer, o sentido, a força instauradora de todo real. E isto na e como a estruturação de afeto (perspectiva), que, por se fazer desde e como salto (súbito, i-mediato, círculo!), se revela como transcendência – e nada subjetiva. Os verbos que conjugam o viver, o existir, são experiências, afetos e, por sua vez, cada um é diferenciação e alteração (transfiguração) de si mesmo. Ou seja, cada um repete a estrutura de experiência ou perspectiva enquanto tal. Daí sua(s) transfiguração(ões) na tessitura, no urdimento do real. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 97 Fogel, G. III A este modo de ser arcaico, que é ser no elemento-afeto (experiência), pode-se também denominar interesse. Vida, existência é sempre já interesse, ou seja, é ou dá-se sempre já interessadamente. Num sentido bem preciso, interesse quer dizer: ser sempre já no âmbito ou desde dentro (“inter”) de um determinado modo de ser (“esse”); quer dizer: desde dentro de um afeto que, viu-se, modulase como força, perspectiva, experiência – enfim, a ou uma determinação. A expressão “sempre já”, escandida pela repetição, aponta para a dimensão de súbito, de imediato ou de salto, justamente a dimensão que abre, instaura medium, elemento, no âmbito do qual sempre já se é ou se está – círculo. Os modos de ser, os verbos que perfazem o existir definem os interesses, são os interesses. Com isso, está-se dizendo que a vida é inserção. Inserção ou história – na verdade, estória (acontecer, suceder). O homem não consegue, não pode pôr-se fora ou atrás de si mesmo para apreender-se ou representarse “oniabarcantemente” de fora, ou seja, antes de afeto (interesse), o que significa dizer: o homem não consegue pôr-se antes ou fora do próprio homem, para assim apreender, captar o começo do homem. Ser histórico, ser inserção quer dizer que o homem não começa, isto é, não há o primeiro homem, pois ele sempre já começou, sempre já se deu ou aconteceu. Então o homem, este ou aquele homem, não pré- ou sub-existe ao afeto, ao interesse. Assim sendo, o homem, quer dizer, este ou aquele, não tem afeto(s), ele não é algo algum, nenhum eu, nenhuma pessoa, nenhuma alma, espírito, consciência, enfim, nada constituído (sujeito) e que seja tocado ou tomado, ou que assim constituído se abra para ser tocado ou tomado por algum afeto, por algum interesse, que venha a somar-se ou a agregar-se a ele. Antes e paradoxalmente, é porque sempre já foi tocado e tomado por afeto-interesse é que o homem vem a ser, pode vir a ser este, aquele ou aque- 98 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar le outro sujeito definido, constituído. Mas, ora, está-se falando de homem e vem irremediavelmente a pergunta: afinal, que homem? Quem é tocado ou tomado, isto é, afetado? Não há quem, isto é, sujeito pré- ou sub-existente, mas tão-só um modo de ser (o homem) que pode e mesmo sempre já veio a ser tocado ou tomado (afetado) por um tal ou tal interesse e que, uma vez tomado, é usado pela ação do afeto que, então, o faz vir a ser o que ele é. Isto na ação, historicamente, isto é, na estória (acontecer, suceder) de auto-exposição do afeto-interesse. Este modo de ser, que se define como poder ser tocado por afeto, não é, portanto, nenhum algo, material ou imaterial, pré- ou sub-existente, mas, segundo uma cunhagem precisa, “a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”6. Este estranho estrato – a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade – é a definição de homem, do vivente que é ou tem “logos” e, então, a forma ou a determinação de toda realidade possível, à medida que se configura como lugar e hora de todo e qualquer afeto-interesse, ou seja, de tudo quanto é e há, uma vez que é o afeto (experiência) que define a textura, a constituição ou determinação ontológica. O salto, decidindo pela forma afeto-interesse, define uma amarração, uma co-implicação (“síntese”!), que é relação. Não relação compreendida a partir de seus termos ou pólos, que seriam, na mútua, recíproca ou simultânea e dialética referência, anteriores (portanto, fora!) à própria relação e os autores ou a causa da relação. Ao contrário, o salto decide por relação como o atamento que se instaura, que sempre já se instaurou no salto e desde o salto (por causa dele, então, em razão ou por causa de nada! Graças a nada!) e que funda e possibilita isso que a distração ou o senso comum denomina termos ou pólos de uma relação. O salto, o súbito, abrindo e instaurando círculo, põe ou instaura relação, a relação arcaicooriginária, cuja insistente retomada desenha a linha, os contornos, cadernos Nietzsche 13, 2002 | 99 Fogel, G. as configurações todas do real, ou seja, determina toda realidade possível. Nesta articulação ou na vigência deste modo de ser, que se define como inserção-história (a relação arcaico-originária), a estrutura sujeito x objeto não é boa medida para medir o real, quer dizer, não é oportuna para falar de realidade enquanto afeto-interesse ou inserção e história. Por isso, não é boa medida para se falar responsavelmente de conhecimento. O próprio conhecimento se determinará como um afeto, como um verbo possível, e, assim sendo, tal como se fosse um terceiro termo ou uma faculdade ad hoc, ele não mediará ou intermediará nada interno (homem) com algo externo (mundo, ‘coisas’). Sujeito e (+) objeto, homem e (+) mundo, dentro e (+) fora são epígonos e isto porque o e (o “+”), o conectivo, que está à busca de explicação e justificativa para um elo de ligação, um nexo (a síntese) é o que não há como terceiro termo, o que é supérfluo, uma vez que tal ligação ou amarração sempre já aconteceu, sempre já se deu. Ou seja, a síntese sempre já foi! É ela o acontecimento arcaico, a relação originária ou o um que sempre já se deu. Tanto Deus (Descartes), quanto esquematismo transcendental (Kant) são supérfluos – expedientes inoportunos para solucionar um pseudo-problema. Jogado, inserido no afeto-interesse-história, o homem é, melhor, vem a ser – se faz! – tal como personagem num enredo. O enredo, a estória, é o elemento. A tal ponto o elemento – ou seja, o começo, a fundação, a inauguração – que é preciso dizer: não há personagem sem enredo, quer dizer, não há o personagem do drama, da obra não escrita. Faltou tudo, faltou o enredo, a ação, a estória, que é o tecido, a textura, a substância do personagem, isto é, do homem e de todo e qualquer real possível. Ao abrir-se de uma narrativa, de uma estória – imagine-se o Quixote, Hamlet, Raskolnikov, Riobaldo – o personagem é tão-só um grafema ou um fonema, tinta preta sobre papel branco e, enquanto tal, somente uma insinuação e uma 100 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar promessa. Melhor formulado: a promessa de um enredo, de uma estória faz do personagem também uma insinuação e uma promessa – a possibilidade de ser, de vir a ser o poder-ser que ele é. Portanto, a possibilidade de uma possibilidade, a saber, a sua própria. Sim, vem a ser o que tu és. No desdobrar-se da ação, no entretecerse, no urdimento ou na teia do enredo, da estória, que é o suceder ou acontecer deste poder-ser, o personagem vai surgindo, vai irrompendo, fazendo-se carne, ganhando vísceras, miolo, tutano, determinação, evidenciando ou fazendo visível um modo de ser possível, qual seja, o seu e só o seu próprio. Ele não é sujeito ou causa da ação, mas, ao contrário, ele é obra de ação, de atividade de obra fazendo-se obra. Diz o Quixote, com toda propriedade: “Que cada uno es hijo de sus obras”. Isto é: obra de obra. Por falar em Quixote, curas e barbeiros – todos aqueles que estão fora da Cavalaria Andante, o senso comum! – acreditam que personagem, por exemplo, o próprio Quixote, é obra da fantasia, da imaginação do autor, de Cervantes, que, sim, seria um sujeito e preexistiria à obra. O Quixote seria invenção, projeção, podem dizer ainda produção ou criação da mente (pois é assim que entendem criação: como “invenção”, projeção da mente!), do cérebro do autor, de Cervantes, e, como tal, efeito da causa-Cervantes. Mas isso é senso comum – perspectiva de curas e de barbeiros! O Autor não pré- ou sub-existe à obra. Ao contrário, ele é obra da obra. Cervantes, o escritor, vem a ser Cervantes, a saber, o escritor, à medida e só à medida que escreve, que se deixa tomar pela possibilidade-Quixote e se deixa fazer pelo fazer-se do Quixote. É o escrever que faz de Cervantes escritor e, por isso, com todo rigor, fora, antes ou depois do escrever ele não tem o direito de dizer: “eu escrevo!”. O eu é tardio, epígono. É o que resta, o que sobra, o que se cristaliza ou se coisi-fica no escrever, desde o escrever. É assim que, na obra e desde obra, fazem-se o autor e o personagem – Cervantes e o Quixote: “Que cada uno es hijo de sus obras”! cadernos Nietzsche 13, 2002 | 101 Fogel, G. O escrever, o verbo, que perfaz a possibilidade de ser à medida que é um afeto-interesse, usa Cervantes, o qual se deixa usar e, então, fazem-se autor e obra, isto é, Cervantes (o escritor) e Quixote. É só a perspectiva do de fora, do sujeito, que diz: “Ele, Cervantes, escreve”, quer dizer, ele é o sujeito, a causa do escrever, que portanto preexiste ao escrever. Isso, já se disse, é a visão de curas e de barbeiros, que sempre pensam: “eu escrevo”, como se escrever fosse um atributo e um ato deliberado (posso ou não posso, quero ou não quero escrever!) de um sujeito, que seria escritor antes de escrever e mesmo absolutamente sem escrever. É claro que há isto, este sujeito, mas tal sujeito só é verdadeiro quando redijo uma petição ao INSS ou preencho um formulário na repartição pública, por exemplo, para o CNPq. Mas quando está em questão identidade, próprio, destino, história (estória!), enfim, vida como obra e obra de obra, a medida passa a ser outra e aí ouve-se o veredicto de artista, de quem fala a partir da experiência – Cervantes: “Para mí sola nació don Quijote, y yo para él; él supo obrar, y yo escribir; solos los dos somos para en uno”. Portanto, dentro e fora, constituinte e constituído, causa e efeito, autor e obra, sujeito e objeto – nada disso é boa medida para medir o real, o qual se faz e se determina desde e como afeto, que é, em última instância, a textura, a consistência da vida. Nada disso pois é modo de ser fundador do autêntico, do genuíno conhecer. IV E como se faz então o conhecer no horizonte de uma doutrina perspectivista dos afetos? No discurso Do ler e do escrever, na primeira parte de Assim falava Zaratustra, lê-se: “De tudo que se escreve, amo (isto é, gosto, quero) somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Es- 102 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar creve com sangue e experimentarás que sangue é espírito. Não é fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores preguiçosos”. Cabe entender, na citação, “escrever” com a mesma intensidade, com a mesma gravidade, tal como acima se falou do escrever para Cervantes. Escrever, na citação, não fala, portanto, do ato de preencher um formulário para a CAPES, mas é verbo, um verbo do ou no existir-viver, então, uma possibilidade de ser do real e, por isso, em questão está a feitura e a liberação de um próprio, de uma identidade, a conquista de liberdade – portanto, questão de vida e de morte na dinâmica do vir-a-ser ou do fazer-se deste escrever. Em lugar de “escrever”, posso e preciso ler-entender qualquer outro verbo, contanto que realmente verbo do ou no existir-viver, por exemplo, pintar (com sangue), arar (com sangue), jogar (com sangue), guerrear (com sangue), pensar (com sangue), etc... Ao invés de dizer “escrever com sangue”, pode-se dizer: escreve com força, escreve com vida. Mas vida é afeto, interesse. “Sangue” diz o mesmo que afeto, isto é, o mesmo do que acima formulamos como força, perspectiva, experiência, interesse. O texto, então, diz: escreve desde o real interesse, ou seja, desde dentro de um modo próprio de ser – ou ainda: escreve realmente tocado e tomado (afetado) e experimentarás, quer dizer, evidenciar-se-á ou fazerse-á visível que sangue, isto é, afeto (interesse), é espírito, ou seja, a vida, a força ou o poder de evidenciação e persuasão de todo escrever, de todo aparecer e fazer-se visível. Enfim, tal escrever revelase como uma autêntica perspectiva (perspicere), autêntico poder de realização. É, portanto, “sangue” (afeto) que evidencia, que é a evidência ou o poder de iluminação do que aparece e se faz visível como isso, como aquilo. Ele é a determinação – “Be-stimmung”. Mas, na citação, a frase que realmente nos interessa é a seguinte: “Não é fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores preguiçosos”. Como entender o sangue alheio, isto é, como conhecer o outro? Seria esta a mesma pergunta que aquela: como o sujeito cadernos Nietzsche 13, 2002 | 103 Fogel, G. pode atingir, apreender o objeto? Estaríamos, de novo, frente ao problema da “ponte”? Não. Não é isto que está em questão, uma vez que o fundo de ressonância, a estruturação é outra, a saber, vida (começo, origem, fundamento) desde e como afeto, ou seja, na configuração do súbito (imediato), salto, círculo, relação originária. Aí sujeito x objeto não é a medida, não diz a relação. Mas vejamos. “Compreender o sangue estranho” quer dizer: entrar no horizonte, na dimensão, isto é, na força ou no interesse realizador (= perspectiva) do outro. Ou seja, entrar no movimento de realização de realidade (= afeto), a partir do qual o outro fala, o qual o outro é, ao dizer e ver o que diz e vê, tal qual vê e diz. Por “entrar” entenda-se o ser tocado e tomado por, isto é, subitamente, passar a fazer parte ou participar de uma experiência. Entrar no sangue estranho é, sim, crescer com o outro, con-crescer com o movimento de realização do outro. É então co-fazer a realização de realidade que o outro faz e é, melhor, pela qual o outro é feito e per-feito. Em suma, é co-fazer e assim con-crescer com a própria coisa, que aparece como outro, como transcendência. O sangue estranho, dizendo afeto-experiência-perspectiva, diz a própria coisa, a saber, o sangue estranho é sempre a determinação da coisa estranha, do outro – a alteridade enquanto tal. Conhecer, assim, é realmente co-nascer. E é preciso, impõe-se, por respeito à coisa, para poder colocarse nela mesma e falar desde ela mesma – para tanto, impõe-se entrar nela, participar dela, que é o modo, o único modo como vai-se concrescer, co-fazer – co-nascer. E isso, diz o texto, “não é fácil”. E não é fácil, porque não é mediatizado, intermediado, ou seja, não é nada “demonstrado”, se se entende por demonstração o processo formal de, pela via de uma cadeia de pressuposições e de conclusões, coerentes ou sintaticamente consistentes, derivar ou deduzir a “passagem” e com ela também a própria coisa. Não é fácil porque não tem, no caso, o expediente facilitador da mediação ou intermediação lógico-dedutiva – silogística. Não há “prova” e “garantia” 104 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar objetivas. “Então, é subjetivo!” – retruca e refuta o espírito objetivo. Não. Objetivo-subjetivo, já se viu, não é critério, não é medida, quando o que está em questão é a natureza súbita e então circular do afeto, isto é, da experiência, isto é, de toda e qualquer realidade possível. Compreender, experimentar e assim entrar no sentido do sangue estranho, participar dele e desde ele e graças a ele ver e falar – isso não é fácil! Não é fácil, mas é o que é preciso, o que se impõe. Afinal, como se entra no sangue estranho, como se passa a se participar dele? Enfim, como se entra na própria coisa, na própria transcendência? A transcendência o é do afeto, da experiência e quem (!) decide isso é o súbito, o salto – quer dizer, “ninguém”, nada. O caminho é o salto. No sangue estranho, na coisa, só se entra através do salto. No salto, através dele, dá-se a transposição súbita para o outro, para o sangue estranho. Por esta via, entra-se na própria coisa, participa-se dela, ou seja, entra-se no seu sentido (força, afeto, interesse) e assim a compreendemos. Este salto, porém, não acontece sem esforço, sem prévia ocupação ou sem pré-ocupação. Por isso, diz ainda Zaratustra, quer dizer, esta compreensão de experiência (afeto) e salto: “Odeio os leitores preguiçosos”, ou seja, estes que não estão empenhados no esforço, na necessidade da conquista do salto ou da transposição para o sangue estranho – para a própria coisa. V A preparação para o salto dá-se por uma espécie de prévia ocupação ou de uma pré-ocupação com a coisa, com o sangue estranho. Esta preocupação se caracteriza como o esforço, o empenho, mesmo a “boa vontade” para com a coisa, ou seja, uma certa disposição preliminar de consentimento e de assentimento. A este con- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 105 Fogel, G. sentimento ou assentimento, que é uma obediência, pode-se também denominar escuta. Portanto, a transposição súbita é preparada por todo um tempo de escuta, isto é, por todo um tempo de prévia doação e entrega a isso para que é preciso se passar, se transpor – enfim, se saltar. É isso, a saber, este esforço de escuta, de espera e de entrega prévias, que o leitor preguiçoso não tem, não é. É justamente sua indiferença, sua apatia ou desinteresse, o não estar e não ser assim previamente empenhado que caracteriza a sua preguiça. A rigor, ele não quer ler o sangue estranho, não quer entrar na coisa. Dizia-se: O salto se dá desde a escuta. É-se tentado dizer: ele cresce, ele se funda em escuta. Alguém objetará: “então, não há nem súbito e nem salto!” O fato é que o salto reclama que, para saltar, de algum modo, já se esteja na compreensão ou na précompreensão disso para dentro de que se quer ou se precisa saltar, para assim vir a compreender e a conhecer. Isto é paradoxal – contraditório. Mas justamente neste contraditório ou paradoxal está a afirmação do salto, quer dizer, do círculo que somos e do abissal da coisa, de toda coisa. Isto está anunciado no fragmento 18, de Heráclito, que diz: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”,7 isto é, se de algum modo já não se está nisso para o qual se impõe saltar, o salto jamais se dará e a “coisa” permanece “indescobrível”, inacessível. Mas que “de algum modo” é este? O homem, sendo ou vivendo no e desde o salto – a irrupção súbita, o “Ur-sprung” – já é sempre todos os afetos. Entende-se, enquanto possibilidade, ele já é todos os possíveis modos de ser de vida ou todas as possibilidades (verbos, afetos) da existência, uma vez que é homem, isto é, que vive, que existe. Assim sendo, quando se fala de súbita transposição (passagem, transferência) para o sangue estranho, para o afeto que o outro é, não estamos diante da aporia cartesiana da passagem de um sujeito para um objeto, pois o que está em questão não são duas 106 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar substâncias autônomas (a res cogitans e (+) a res extensa), mas, saltando para outro afeto, salta-se sempre para uma possibilidade própria, ou seja, tão-só passa-se para um modo de ser que já é nosso, de cada um. Por isso e só por isso pode-se passar. Um passar que é sempre ultra-passar, trans-cender, o que se é ou aquilo em que se está em direção a uma possibilidade própria – isto é, passagem ou ultrapassagem de um afeto para outro. Isto define a estória (o acontecer ou suceder) das transfigurações dos afetos. Esta passagem ou transposição, enquanto salto da ultrapassagem, é a conquista de uma possibilidade própria, que perfaz o crescimento, ou seja, a intensificação e a clarificação de vida no traçado de um destino, de uma destinação. É nesta dinâmica, que é a do jogo da passagem, da autosuperação ou da estória, que o homem realiza o imperativo da vida, cunhado por Píndaro, sob a forma: “Vem a ser o que tu és”. Ou seja, estória, acontecer ou suceder, de afeto – de interesse ou de experiência. Esta transposição, melhor, esta (pré)disposição para o salto é ela mesma um afeto, a saber, o afeto que é o próprio conhecer, que, por seu lado, cada vez realiza-se diferentemente, ou seja, cada vez este conhecer se realiza como o afeto ou a coisa em questão – isto é, o afeto ou a coisa da hora! Há tantos conhecimentos, tantos modos de conhecer, quantos os interesses, os afetos ou os possíveis verbos do existir. E isto não é subjetivismo ou relativismo, uma vez que não é esta a constituição, a textura de afeto, de interesse. Mas há um conhecimento exemplar, que não é o conhecimento, tal como, por exemplo, se auto-proclama o conhecimento conceitual-representativo ou lógico-categorial, mas que é sempre um conhecimento, a saber, aquele que se põe na própria coisa, à altura da própria coisa e desde ela vê e fala, quer dizer, aquele que se transporta ou se transfere para o sangue estranho, para o afeto que é a coisa em questão, que a performa, enquanto e como sua determinação (Bestimmung), sua essência. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 107 Fogel, G. O conhecimento conceitual ou lógico-categorial-representativo é tão-somente um modo possível de conhecer, que tem ou é um interesse próprio, o qual se revela teleologicamente na civilização técnica ou na tecno-ciência. É aí que este conhecimento exibe maximamente o interesse que ele é, qual seja, o ideal ou o programa de tudo programar, isto é, de planificação, controle e autoasseguramento totais. Identifica-se inteiramente com o ideal de cálculo, onde “cálculo” não diz somente numeração e quantificação, mas, sobretudo, através da numeração e da quantificação, cálculo fala da atitude que está empenhada no estabelecimento antecipado de todas as condições prévias para o exercício do controle e do autoasseguramento, quer dizer, cálculo fala do triunfo do esforço pelo cumprimento do projeto cartesiano de verdade e igualmente de realidade como certeza. Este conhecimento possível – a total objetificação na representação subjetiva – domina como o conhecimento e justamente isso se constitui na sua presunção, na sua arrogância, na sua hybris maior – se é que se possa falar de hybris maior ou menor... VI Recapitulando, a teoria do conhecimento erra, primeiro, porque supõe a estrutura sujeito versus objeto como um índice elementar de toda realidade. É este seu ponto de partida. A partir daí, impõe-se resolver o problema da ponte, isto é, da passagem, da apreensão ou da captação de um fora, o objeto em sentido lato (isto é, o que quer que, formal ou materialmente, apareça fora do sujeito), por um dentro, o sujeito, em sentido estrito, ou seja, o cogito, que representa. Num segundo momento, a teoria do conhecimento erra, porque, seguindo o fio condutor desta formulação, escamoteia o real problema do conhecimento, à medida que passa a compreendê-lo e 108 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar determiná-lo como meio, como elemento de ligação, o nexo que faria a conexão ou a junção (síntese!) com o real ou o objeto, supostamente separado do sujeito cognoscente. Assim, o conhecimento aparece como meio ou, o que é a mesma coisa, instrumento. Na seqüência, a teoria do conhecimento tende a se voltar exclusivamente para a determinação e explicitação dos processos bio-psíquicos e neuro-fisiológicos (veja-se, hoje, a chamada neuro-ciência cognitiva) do sujeito cognoscente, do cérebro, ou seja, passa a ser doutrina(s) a respeito do funcionamento dos mecanismos do conhecimento. Vistos, porém, desde uma doutrina perspectivista dos afetos, estes processos, mecanismos do conhecimento, melhor, do sujeito cognoscente, absolutamente não interessam, pois resultam da falsificação na colocação do problema (ordenha e apara com a peneira!). Isso, a saber, tais processos e mecanismos, configura-se como estranho e externo ao conhecimento, ou seja, não vai ao encontro de seu modo de ser próprio, que, em última instância faz coincidir conhecer e viver, conhecimento e vida. E por vida entende-se a dinâmica de vir a ser, o jogo de auto-superação ou de alteração (diversificação ou diferenciação) desde si mesmo. Este jogo de alteração, quer dizer, de vir a ser outro, que marca transformação ou transfiguração, o movimento vida, se define como criação. E isto se dá à medida que vida, enquanto dinâmica e jogo de interesse-afeto, se revela como sendo necessariamente apropriação. Apropriação no uso que faz daquilo que vem ao encontro no interesse e como interesse, que se revela ou que se faz visível desde a perspectiva que tal interesse é. O interesse ou perspectiva já é sempre também apropriação. E apropriação quer dizer: trazer para junto de um próprio e, assim, cunhar uma identidade. O próprio é sempre o interesse, a força que realiza, que faz visível isto que aparece e se faz. Próprio, interesse, afeto e perspectiva dizem, em diferentes níveis ou configurações da compreensão, o mesmo, ou seja, diferentemente apontam para o mesmo fenômeno. Sendo atividade de próprio ou apro- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 109 Fogel, G. priação, impõe-se que vida seja compreendida desde e como interpretação. Inter-esse (apropriação) já é sempre inter-pretação, isto é, o que quer que seja e apareça (que se faz visível na perspectiva, no per-spicere) o é e se faz sempre já desde a relação arcaica que é todo e qualquer interesse, todo e qualquer afeto, que sempre já se interpôs. É irrevogável que conhecer, isto é, transpôr-se para a dimensão própria da coisa (= afeto), seja atividade de interesse, que este seja ou se dê como apropriação e que esta seja o fazer-se ou concretizarse de interpretação (isto é, a própria ação de interesse ou afeto, que sempre já se interpôs na e como relação originária), o que caracteriza uma dinâmica de alteração (diferenciação ou diversificação) ou um jogo de insistente auto-superação, cujo outro nome é vida, enquanto e como criação ou estória (suceder, acontecer) – isto é, atividade de auto-transcender-se, auto-ultra-passar-se, auto-superar-se. Assim sendo, impõe-se não entender conhecimento nos termos propostos pela teoria do conhecimento, mas ver-se no conhecimento, na ação de conhecer, um modo de ser possível, então necessário, do homem e que, por isso, coincide com o próprio modo de ser do fundamento, a saber, vida, que é criação. Por este caminho, o problema do conhecimento coincide, por um lado, com o próprio problema da realidade do real e, por outro, identifica-se com a própria filosofia, ou seja, com o esforço de coincidir com o próprio real – amor à verdade! Enquanto modo de ser fundamental de vida, o conhecimento pode e precisa ser ele mesmo determinado como uma afecção (isto é, nele e por ele mesmo um interesse possível) – um verbo da existência, cuja determinação é ser trans-posição para a dimensão da coisa (real) nela mesma. A “coisa nela mesma”, note-se, não é nenhum algo subjetivo, objetivo ou intersubjetivo, mas igualmente um afeto ou um interesse e este, por sua vez, dado sua constituição súbita ou imediata (salto, círculo), é transcendência. 110 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar Só por esta via é possível dizer o que é o conhecimento, uma vez que por esta via ele é incorporado à própria estrutura de todo real (ou seja, a vida) e ele passa a se revelar como realização plena de estória, isto é, no suceder, no acontecer, na estrutura ou no jogo de herdar (receber) e de transmitir (legar). Justamente esta estrutura de herdar e de transmitir – a estória, que perfaz todo movimento de realização de toda realidade possível – é descrita como criação, ou seja, a interpretação desde e como a articulação de incorporação, apropriação, que é liberação de um próprio e assim e por isso concretização de liberdade. Vida como o jogo de inocência no e do desejo.8 A partir desta compreensão, mecanismos do conhecimento, formas ou estruturas neuro-fisiológicas ou bio-genéticas – toda a atual neuro-ciência cognitiva – se revelam como questões externas, marginais, desinteressantes... Isto não vai ao encontro do problema em sua essência ou modo próprio de ser, mas o falsifica. Encobreo, escamoteia-o com subterfúgios. É preciso ficar claro que, visto desde e como criação, o conhecimento igualmente não se faz a partir do domínio e do controle de uma certa metodologia, de uma certa doutrina metodológica, compreendida esta como um processo de universalização do acesso a toda e qualquer coisa, a toda e qualquer verdade, por todo e qualquer um – diz-se: universal e objetivamente. Ter-se-ia assim método, melhor, lógica e metodologia, cada qual, como uma espécie de instrumento para o exercício da democracia do/no saber e do/no conhecer... Seria preciso dominar certas estratégias, certos princípios, antes e mais precisamente, certas regras e tudo se revelaria igualmente para todo e qualquer um que dispusesse de um tal aparato-metodológico para a investigação, para a pesquisa... Mas, não. Conhecimento como e desde afeto, à medida que este é o princípio fundamental de todo real possível (isto é, real é afeto), exige sobretudo simpatia. Simpatia ou, como vimos, consangüinidade – “Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espíri- cadernos Nietzsche 13, 2002 | 111 Fogel, G. to...” O que enfatizamos, porém, foi a seqüência da passagem, que diz: “não é fácil compreender sangue estranho”, pois não é fácil escutar e, então, obedecer ou participar da experiência, desde a qual cresce e se faz o que aparece, há e é. E, no entanto, é isso e somente isso que é preciso, que se impõe – por amor à verdade! Para tanto é preciso disposição, pré-disposição – disposição ou pré-disposição de esforço. Esforço para co-fazer e assim con-crescer, ou seja, irromper, nascer para o realmente concreto, a saber, o fazer-se, o auto-fazer-se de experiência como gênese do real. Por isso, diz o texto ainda, “odeio os leitores/conhecedores preguiçosos”. Preguiça diz inércia, isto é, apatia, inapetência, indiferença em relação a este necessário esforço de transposição – para participação. Aqui, sem dúvida, a preguiça se revela a mãe de todos os vícios. O maior é o da coisa, do dado. Todo pensamento, todo saber que parte do dado e do feito e que visa ou aspira ao feito e ao dado, que quer o feito e o dado – a informação! – é preguiçoso. O demônio de Deus, dizem, é o sétimo dia... Foi subentendendo conhecimento e verdade no sentido de adequação e esta como ajustamento ou molde com o dado e o feito – a constatação, a veri-ficação –, então, vendo conhecimento e verdade como preguiça, que Nietzsche escreveu a seguinte anotação: “Vontade de verdade como impotência da vontade de criação”.9 E em outra parte: “A verdade é asquerosa, repugnante. Temos a arte – assim, não sucumbimos na verdade”.10 O real, as coisas não são. Ou melhor: são à medida e somente à medida que se fazem, à medida que se revelam um por-fazer. Enfim, como nobre, como aristocrático esforço de conquista e de reconquista de seus percursos. É assim, isto é, conquistando e reconquistando, que se faz verdadeiramente estória – assim dá-se genuinamente o jogo de herdar e de legar. Conquista-se e reconquista-se o que se herda, para que assim se torne verdadeiramente nossa herança. Este esforço de participação no sangue-experiência estranho caracteriza maiusculamente o conhecimento, pois é este o esforço, 112 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar melhor, o exercício que essencialmente marca o homem, a vida, onde e quando ela se realiza plenamente – isto é, quando ela vem a ser ela mesma. Este esforço culmina no salto, na trans-posição (transporte ou trans-ferência) para a força, para o “sangue”, que é o princípio ou propriamente a realidade de toda e qualquer “coisa”. Isto não se trata de fácil tarefa, mas de máximo empenho previamente movido e promovido por consangüinidade (a participação que, no salto ou desde círculo, sempre já se deu) e que só se dá para aquele que está neste esforço de conquistar e vir a ser isto que já é – vem a ser o que tu és, é o chamamento, o apelo que é atendido e cumprido. Neste esforço, na destinação do cumprimento desta tarefa (transposição, transferência) está aquele que se empenha por corresponder ao chamado, para assim continuar estória, vida – a força do devir. Nisso e por isso o conhecimento foi caracterizado ele próprio como um afeto – justo o afeto ou a força (o verbo) de transporte ou de transmigração para a força, o sangue. Em outros termos: o esforço ou o exercício de dizer a dinâmica da experiência de experiência ou a fala da gênese de gênese, o que constitui pensamento e conhecimento em suas “horas” maiores ou plenas. Assim, enquanto e como participação vital e esta compreendida na estrutura da criação, que por sua vez precisa ser o jogo da estória (de acontecer, suceder, dar-se e fazer-se de real) – ou seja, a real dinâmica de herdar e de transmitir, de receber e de legar ou entregar – assim, se conhecer não é controle metodológico, inventário, domínio e manipulação de regras, de “conceitos”, também não é, por outro lado, ajuntar, acumular, inventariar e capitalizar informações – dados. Conhecer como criação, isto é, como produção de estória ou pura e simplesmente como estória, é sobretudo não mais precisar de dados, de informações, de “cultura” e de “pesquisa”. Tal conhecer começa quando já se perdeu, já se desaprendeu isso – o que significa, claro, que também isso foi usado e apropriado como ponto de partida. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 113 Fogel, G. Desaprender o dado e o feito para assim, desde um saber “coisa” nenhuma, desde um “ter” coisa alguma, encontrar o lugar, o tempo de realização da aprendizagem do aprender – instância e hora da poética de todo e qualquer real possível. Este conhecer é exercício, então atividade e estória de aprender a aprender. É esta uma outra formulação, um outro nome para dizer que é preciso desaprender-perder-esquecer o dado e o feito para poder vir a ser partícipe da força de transformação, de transfiguração – da criação, da estória. Não acumulação, não conservação, mas ex-posição e na exposição uso e gasto e no gasto e no uso transformação, transfiguração, procriação, poética. É esta a lei da superabundância, do transbordamento vital. Numa tal experiência de criação, a preocupação, o importante, portanto aquilo que pesa e que decide, não é guardar; a meta não é conservar e acumular, mas, enquanto e como auto-exposição, continuar, isto é, promover à medida que procria. E é assim que é guardada, resguardada – conservada! – a vida, encarnada nisso que aqui e agora se “conhece”. Este conhecer, porque não é norteado pela conservação e pelo acúmulo, é perda – aquiescimento na perda, no abandono. Digamos: ele esquece. Esquece, no tempo certo, o que é para esquecer, perder – a saber, o dado – e que é o caminho para poder, no tempo certo, retomar e recordar o que é preciso, no tempo certo, recordar e retomar, ou seja, o caminho do por-fazer. Este conhecer é a celebração de uma memória fundadora, orientadora, originária. Tal memória o é de “coisa” nenhuma, de nenhum dado, por isso não atávica. Ao contrário, é memória ou lembrança de coisa nenhuma, de nenhum dado ou feito, mas tão-só de um modo de ser, que se revela como insistente precisar se fazer. Memória, recordação de caminho, de caminhar – o método. É assim que este conhecer, constituindo-se no próprio ritmo ou cadência da participação vital, da criação, esquece e recorda – no tempo certo ele larga, abandona, 114 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar perde e, no tempo certo, readquire (redime-se!), retoma, revitalizase. Assim ele é devir, estória de kairós – o tempo da decisão, hora e ritmo da vida. Desde a participação e na escuta que é esta participação, portanto, no crescimento de corpo e de vida, este conhecer sabe o quão e quando, no tempo certo, esquecer (perder, desaprender) e o quão e quando, no tempo certo, lembrar (recordar, retomar). Assim ele se faz medida de satisfação, do fazer o suficiente – a alegria do pouco, do limite, do necessário. Com isso e assim ele é, ele está sempre satisfeito. O cumprimento deste “saber” determina o ritmo do devir, a estória, o dar-se e acontecer do conhecer como o movimento ou o devir de interpretação (incorporação, apropriação). De onde vem este “saber”, este conhecer desta medida e do jogo desta medida? Sim, do que se chama participação vital – escuta e obediência a isso –, mas que pode e precisa também ser denominado kairós ou o tempo da decisão, do mando e da obediência, que é o tempo da sabedoria de perda, de despedida e de recordação, de reencontro. Na vida, enquanto jogo de lembrança e de esquecimento, é kairós que determina o quão e o quando de esquecimento e de lembrança. É ele portanto a medida. Enquanto escuta ou participação vital, este kairós é um instinto, isto é, a evidência, o impor-se de um “sentimento” – portanto, nada “objetivo”, mas também nada “subjetivo”, por tratar-se da constituição de afeto, que, no salto e desde o salto (círculo), é transcendência. VII Concluindo: “Quem escreve com sangue não quer ser lido, mas aprendido de cor” (Za/ZA , Do ler e do escrever). cadernos Nietzsche 13, 2002 | 115 Fogel, G. Abstract: Starting from a posthumous fragment, the author tries to explain the reasons why Nietzsche denies the theory of knowledge as a discipline to the profit of a new notion of knowledge. In order to fulfill this task, he underlines the imbrication between the traditional conception of knowledge and the Cartesian presuppositions, and then resorts to the elucidation of concepts like perspective and affect, which exist, in Nietzsche’s view, in all act of knowledge. Keywords: knowledge – perspective – affects notas Hegel. Phänomenologie des Geistes, p. 64. Kant, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft, A 58; B 82/3. 3 Cf. Ortega y Gasset, “La idea de principio en Leibniz”, pp. 203-208. 4 “Entelécheia” – cf. Leibniz, Monadologia, § 18. 5 Cf. KSA XII, 9[8], fragmento citado no início do texto. 6 Cf. Kierkegaard, Conceito de angústia, cap. I § 5. 7 Carneiro Leão, Os pensadores originários. 8 Cf. Za/ZA, Do conhecimento imaculado. 9 KSA XII, 9 (60). 10 KSA XIII, 16 (40). 1 2 116 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar referências bibliográficas 1. CARNEIRO LEÃO, E. (org). Os pensadores originários. Petrópolis, Vozes, 1993. 2. HEGEL. G. W. Phänomenologie des Geistes. Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1988. 3. KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1992. 4. KIERKEGAARD, S., Conceito de Angústia. São Paulo, Hemus, 1968. 5. LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Paris, Delagrave, 1925. 6. NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes. Berlim/Nova York, Water de Gruyter, 1988. 6. ORTEGA Y GASSET, J. “La Idea de Principio en Leibniz”. In: Revista de Occidente, Madri, 1967, Vol. 1, pp. 203-208. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 117 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Convenção para a citação das obras de Nietzsche Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais. I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche: I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche: GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia) DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner em Bayreuth) cadernos Nietzsche 13, 2002 | 119 Convenção para a citação das obras de Nietzsche MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)) VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças) WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) M/A – Morgenröte (Aurora) IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina) FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência) Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra) JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal) GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral) WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner) GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos) NW/NW – Nietzsche contra Wagner I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição: AC/AC – Der Antichrist (O anticristo) EH/EH – Ecce homo DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso) II. Siglas dos escritos inéditos inacabados: GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia) DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico) BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) 120 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Convenção para a citação das obras de Nietzsche CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos) PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos) WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral) Edições: Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./ DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986. Forma de citação: Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/ CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo, indicará o aforismo. Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano, conforme o caso, indicará a parte do texto. Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 121 Convenção para a citação das obras de Nietzsche 122 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Contents Nietzsche’s “rhetorical turn” Manuel Barrios Casares 7 “Lessons on the pre-platonic philosophers” and Philosophy in Greek Tragic Age: a comparative essay 37 Marcelo Lion Villela Souto Odium fati: Emil Cioran, the pessimistic hyena 67 Why not theory of knowledge? Knowing is creating 89 Paulo Jonas de Lima Piva Gilvan Fogel cadernos Nietzsche 13, 2002 | 123 Convenção para a citação das obras de Nietzsche 124 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Convenção para a citação das obras de Nietzsche INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES 1. Os trabalhos enviados para publicação devem ser inéditos, conter no máximo 55.000 caracteres (incluindo espaços) e obedecer às normas técnicas da ABNT (NB 61 e NB 65) adaptadas para textos filosóficos. 2. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100 palavras, em português e inglês (abstract), palavras-chave em português e inglês e referências bibliográficas, de que devem constar apenas as obras citadas. Os títulos dessas obras devem ser ordenados alfabeticamente pelo sobrenome do autor e numerados em ordem crescente, obedecendo às normas de referência bibliográfica da ABNT (NBR 6023). 3. Reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças. Os relatores de parecer permanecerão em sigilo. Só serão considerados para apreciação os artigos que seguirem a convenção da citação das obras de Nietzsche aqui adotada. NOTES TO CONTRIBUTORS 1. Articles are considered on the assumption that they have not been published wholly or in part else-where. Contributions should not normally exceed 55.000 characters (including spaces). 2. A summary abstract of up to 100 words should be attached to the article. A bibliographical list of cited references beginning with the author’s last name, initials, followed by the year of publication in parentheses, should be headed ‘References’ and placed on a separate sheet in alphabetical order. 3. All articles will be strictly refereed, but only those with strictily followed the convention rules here adopted for the Nietzsche’s works. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 125 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão nietzschiana. Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrompeu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir ídolos, Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade destes cadernos. Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano. Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto ao Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam difundir ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de autores estrangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e mestrandos ou mesmo graduandos. Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular. 126 | cadernos Nietzsche 13, 2002 Convenção para a citação das obras de Nietzsche Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly every May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporay readings of Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated students on Nietzsche’s philosophy. Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internationally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal has already made its mark as a forum for innovative work by both new and established scholars. Contributors to the journal have included Wolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel Haar, and Richard Rorty. Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a current circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent free of charge to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical subjects and particularly on Nietzsche’s thought. cadernos Nietzsche 13, 2002 | 127
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