Cadernos Nietzsche

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Cadernos Nietzsche
cadernos
Nietzsche
São Paulo – 2002
No 13
ISSN 1413-7755
Os artigos publicados nos
cadernos
Nietzsche
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Nietzsche
no 13 – São Paulo – 2002
ISSN 1413-7755
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Nietzsche – persegue o objetivo, há muito acalentado, de reunir os estudiosos brasileiros do pensamento de Nietzsche e, portanto, promover a discussão acerca de questões que dele emergem.
As atividades do GEN organizam-se em torno dos
Cadernos Nietzsche e dos Encontros Nietzsche, que têm
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Scarlett Marton
Sumário
O “giro retórico” de Nietzsche
Manuel Barrios Casares
7
“Lições sobre os filósofos pré-platônicos”
e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
37
Marcelo Lion Villela Souto
Odium fati:
Emil Cioran, a hiena pessimista
67
Por que não teoria do conhecimento?
Conhecer é criar
89
Paulo Jonas de Lima Piva
Gilvan Fogel
O “giro retórico” de Nietzsche
O “giro retórico”
de Nietzsche*
Manuel Barrios Casares**
Resumo: Por meio da influência do primeiro romantismo alemão e o lugar do pensamento de Nietzsche na história da metafísica, o autor conta
mostrar o papel fundamental da retórica na investigação do filósofo alemão sobre a linguagem, a ciência e a verdade. Longe de ser apenas um
interesse de seus trabalhos iniciais, a perspectiva nietzschiana da retórica
exerce, segundo o autor, influência em toda sua obra como apoio à crítica
contra a metafísica.
Palavras-chave: linguagem – metáfora – retórica – verdade
Foram pensadores franceses como Michel Foucault e Jacques
Derrida quem, desde finais dos anos sessenta, souberam destacar a
importância da reflexão nietzschiana sobre a linguagem no conjunto de sua produção filosófica1. Mas foi, sobretudo, a partir da década de setenta, em certa medida no encadeamento da denominada
“virada lingüística”, que a investigação especializada sobre Nietzsche
começou a mostrar de maneira crescente um interesse específico
por sua tese acerca da íntima imbricação entre palavra e pensamento.2 Hoje, em meio a um clima mais consolidado de reabilitação do
papel da retórica no discurso filosófico, esta via de aproximação da
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Tradução de Wilson Antonio Frezzatti Jr.
Professor da Universidad de Sevilha, Espanha.
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obra de Nietzsche oferece perspectivas inspiradoras e renovadoras
de leitura, que incitam a aprofundar tanto o conhecimento histórico-filológico dos escritos nietzschianos dedicados a tal temática
quanto o debate filosófico sobre sua significação e alcance. Nesse
sentido, conto apontar para algumas conexões que me parecem esclarecedoras entre dois aspectos da atual interpretação de Nietzsche,
nos quais a virtualidade de tal via de aproximação se prova de modo
particularmente frutífero. Um deles remete ao capítulo das influências do primeiro romantismo no pensamento nietzschiano de juventude. O outro, à discussão sobre o lugar ocupado por Nietzsche em
relação à história da metafísica. Como se sabe, tal discussão requer
– mais por exigência mesma do horizonte do pensar que nos é próprio do que por pura inércia acadêmica – o confronto com a interpretação heideggeriana de Nietzsche como o último dos metafísicos,
isto é, enquanto finalizador da marcha niilista da cultura ocidental.
Pois bem, a propósito deste segundo aspecto, cabe de antemão
sugerir o seguinte: que a concepção da natureza essencialmente retórica da linguagem, que podemos achar explicitamente formulada
em alguns textos juvenis de Nietzsche, convida a restabelecer o estrito ditame de Heidegger de modo similar ao da reivindicação –
feita por estudiosos como Ernesto Grassi – de uma tradição renascentista de humanismo retórico – cujo cume epigonal teria sido Vico
– apta a problematizar a equiparação heideggeriana do humanismo
com uma antropologia de índole metafísica, a qual considera o homem como um mero ente entre outros entes.3 De fato: sendo para
Grassi o específico daquele pensar humanista o primado da palavra
– entendida em seu caráter tropológico e em sua concreta historicidade –, isso impede de tomá-lo por uma mera antecipação do
modelo cartesiano de racionalidade, assim como, em geral, da “imagem do mundo” da metafísica moderna e sua idéia do conhecer
enquanto representação objetivante. Em paralelo a esta observação,
a advertência de que, desde o início, Nietzsche concebeu toda lin-
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guagem como um exercício retórico complica, ao menos, o tratamento heideggeriano dos grandes temas de sua filosofia da maturidade como teses metafísicas culminantes da onto-teologia moderna
por meio das quais se pretende determinar a essência do que é.
Semelhante advertência sobre a característica pós-metafísica do
estilo do pensar nietzschiano – baseada numa nova consciência
filosófica do logos – supõe a consideração de que a dedicação do
jovem Nietzsche ao tema das relações entre retórica e linguagem
não foi puramente ocasional, mas que deixou uma marca duradoura em sua meditação ulterior acerca das relações entre metafísica e
linguagem. Neste ponto deve-se precisar, portanto, uma opinião
como a de Philippe Lacoue-Labarthe, quem, apesar de ter sido praticamente o primeiro a resenhar a sintonia das idéias expressadas
por Nietzsche em seu Curso de retórica do inverno de 1872/73 e as
de seu ensaio coetâneo, Sobre verdade e mentira no sentido extramoral – habitualmente considerado, com razão, um importante indício do caminho posterior de seu pensamento –, sustenta a falta de
continuidade daquele projeto filosófico na obra nietzschiana da
maturidade. No mesmo número da revista Poétique em que traduziu, junto com Jean-Luc Nancy, uma seleção de textos de Nietzsche
sobre a linguagem que incluía as primeiras seções do Curso, LacoueLabarthe publicou um artigo que, já no título – Le détour –, punha
ênfase na idéia de que esse interesse do filósofo pela retórica havia
resultado, sobretudo, num desvio episódico e que, a partir de 1875,
ela havia deixado de ser para ele um instrumento privilegiado de
análise.4
Entre os anos de 1872 e 1875 produziu-se, segundo LacoueLabarthe, uma mudança significativa no pensamento nietzschiano,
que propiciou sua despedida da “metafísica de artista” exposta em
O nascimento da tragédia. Isso teve lugar, fundamentalmente, na
raiz da leitura de Nietzsche dos livros de Richard Volkmann – Die
Rhetorik der Griechen und Römer in systematischer Uebersicht
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dargestellt – e de Gustav Gerber – Die Sprache als Kunst –, bases
preparatórias para as aulas do curso de Retórica ministrado na Universidade da Basiléia durante o semestre de inverno de 1872/73
(curso que contou unicamente com dois alunos). A tais leituras devese somar aquelas de obras como, por exemplo, A natureza dos cometas (1871) de J. C. F. Zöllner,5 em que se desenvolve uma teoria
sobre a “origem da consciência científica” a partir de uma perspectiva psicofisiológica – afim, em tudo, com a Schopenhauer – e que
serviu a Nietzsche para estender sua crítica ao valor “moral” da
verdade atinente ao âmbito do conhecimento científico ao da arte,
já que não haveria duas esferas separadas da linguagem (as quais
corresponderiam à arte e à ciência), mas dois níveis – inconsciente
e consciente – em que ela desdobraria suas funções. Mais do que
uma reiteração do questionamento inicial acerca do valor puramente objetivo da visão científica do mundo, Lacoue-Labarthe vê, nessa
aproximação de Nietzsche da retórica, um meio para liquidar os
pressupostos de sua primeira teoria romântica da arte, o que parece confirmado pelo tom das anotações dessa mesma época para o
projetado e nunca acabado Livro do filósofo. Menos convincente
parece, por sua vez, sua opinião de que, uma vez cumprida tal tarefa, a retórica desaparece por completo do campo de observação da
crítica nietzschiana da linguagem em favor de um tipo de análise
mais naturalista – apoiada em argumentos fisiológicos. Como procuraremos mostrar, a óptica por ela proporcionada seguiu sendo a
chave para o conjunto do debate nietzschiano com a metafísica e,
em particular, para sua controvérsia com uma Filosofia da História
de inspiração igualmente transcendente.
Em primeiro lugar, deve-se dizer que o interesse específico de
Nietzsche pela questão da linguagem remonta, no mínimo, aos anos
de 1868. Inicialmente, manifesta-se em considerações dispersas,
que antecipam suas idéias sobre o caráter figurativo de toda linguagem,6 e, depois, em fragmentos concisos de redação algo mais sis-
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temática, como, por exemplo, sua introdução ao curso de gramática
latina de 1869/70, em que, tal como reza o título – “Vom Ursprung
der Sprache” –, procura-se abordar o problema da origem da linguagem (num estilo argumentativo que recorre igualmente as essas
explicações “naturalistas” e que, de maneira tão ambígua, salpicam
no resto de sua obra). E, como mostrou Claudia Crawford em seu
estudo sobre os inícios da teoria nietzschiana da linguagem,7 A filosofia do inconsciente (Berlim, 1869) de Eduard von Hartmann representa, aqui, a principal fonte de inspiração das teses do jovem
Nietzsche sobre a impossibilidade de se pensar à margem da linguagem e a sua condição de produto do instinto.8 Por meio de
Hartmann, Nietzsche abre-se à influência das concepções de
Schelling, de quem cita, à guisa de conclusão do escrito, este parágrafo extraído de sua Filosofia da mitologia:
“Dado que sem linguagem não se pode conceber nenhuma consciência filosófica e nem sequer simplesmente a humana, não foi a consciência que presidiu a fundação da linguagem; e, no entanto, quanto mais
adentramos em sua natureza, tanto mais nos asseguramos de que ela
supera, com sua profundidade, todo tipo de produção consciente. Sucede
com a linguagem o mesmo que com o ser orgânico: ao vê-lo, o imaginamos formar-se cegamente e, ao mesmo tempo, é-nos impossível negar a
insondável intencionalidade de tal formação até nos menores detalhes.” 9
Em primeira instância, o jovem Nietzsche admite essas idéias
acerca da linguagem sob um contexto ainda dominado pela doutrina schopenhaueriana do mundo como vontade e representação. As
conseqüências de tal assunção dentro de um escrito como O nascimento da tragédia expressam-se, a ser assim, na forma de uma equívoca alternância entre fórmulas de caráter dualista e outras que
anunciam a crise iminente da “metafísica de artista”. Nietzsche lê,
então, a tese de Schelling acerca de um âmbito prévio à consciência
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– em que a linguagem acha seu fundamento – ou a tese de Hartmann
sobre um instinto inconsciente – criador da linguagem – em correlação com sua idéia do Uno-primordial; e ainda que tenda a conceber esse Uno-primordial como o fundo irracional da existência, em
que a vontade dionisíaca de viver e o princípio apolíneo de individuação se vêem remetidos a uma enigmática raiz comum, em numerosas passagens, e com evidente inconsistência, termina por
identificá-lo sem mais com a noção schopenhaueriana de Vontade,
como se tratasse de um fundamento separado do mundo da aparência.10 Daí estabelecer-se, em O nascimento da tragédia, um hiato ontológico entre a arte da palavra, que comunica idéias e sensações somente na medida em que as traduz em outra esfera, e a arte
da música, a qual, conforme aos ensinamentos de Schopenhauer,
resulta ser expressão imediata e adequada do em-si do mundo.11
As conseqüências de tão drástica diferenciação para o primeiro
diagnóstico nietzschiano da cultura de seu tempo resumem-se, como
é sabido, por um lado, numa crítica acérrima à pobreza e à falta de
transparência de toda linguagem racional, incapaz de apreender a
vivacidade das coisas com os esquemas exangues da abstração
conceitual, e, por outro, numa inquietante esperança no “renascimento do mito alemão” (GT/NT § 23). Sem dúvida, essa rígida
contraposição entre a artificialidade da palavra e a imediatez da
música – com suas seqüelas no terreno da crítica da cultura e seu
paralelo em uma compreensão da história aderida ao modelo teológico do tempo corrupto redimido desde fora – constitui o autêntico e último lastro metafísico que, como o próprio Nietzsche haveria de reconhecer anos mais tarde no “Ensaio de autocrítica” de
1886, deforma seu primeiro livro com penosas “fórmulas
schopenhauerianas e kantianas” (GT/NT, “Tentativa de autocrítica”,
§ 6), como, por exemplo, a distinção entre “coisa em si” e “fenômeno”. No entanto, na medida em que a consideração nietzschiana
da retoricidade da linguagem vem precisamente questionar tal
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chorismós, ela introduz, com isso, uma modificação em seu estabelecimento da relação crítica com a cultura do presente, que já é
uma constante ao longo de sua obra. Por isso é que o mencionado
desvio de Nietzsche pela questão da retórica me parece algo da ordem do decisório – e não meramente episódico – para o caminho
de sua filosofia da maturidade.
De fato, a tese básica exposta no Curso de retórica segundo a
qual os tropos não são um simples acréscimo à linguagem, mas sua
mais íntima natureza, e de que, por conseguinte, a retórica não é
mais que um aperfeiçoamento dos artifícios já presentes na linguagem,12 comporta tanto uma objeção capital à pretensão metafísica
de um dizer epistêmico completamente desligado do discurso persuasivo da dóxa – objeção esta que é típica da crítica genealógica –
quanto uma antecipação dessa indistinção última entre filosofia e
literatura – ou entre conceito e metáfora – que os textos nietzschianos
irão, depois, praticar com lucidez. Dado que esta crítica à pretensão fundamentadora da metafísica não desemboca na mera substituição da epistême de um mundo verdadeiro pela fábula de um
mundo aparente, mas, antes de tudo, no problema de sua
indistinção, cabe supor que o progressivo desinteresse de Nietzsche
pela retórica como disciplina obedece ao fato de que esta não representa, em definitivo, mais que um caso particular e derivado da
artística potência figurativa implícita em toda linguagem. Nietzsche
concentra, assim, seu interesse na dimensão da linguagem como
uma “arte inconsciente”, informado do sentido tão limitado em que
se deve conceber a retórica como algo a mais do que uma arte do
ornamento discursivo e que, certamente, ele criticou desde as primeiras seções do Curso. É provável também que o desuso de uma
terminologia que remeta ao terreno da retórica deva-se, afinal de
contas, ao fato de que sua atenção ao problema da origem e da função da linguagem tenha sido suscitada como uma questão induzida
a partir de preocupações preferencialmente gnosiológicas e, em úl-
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tima instância, da crítica da metafísica e da crítica da cultura. Mas
que na obra tardia não encontremos ainda uma dedicação específica à retórica – do mesmo modo que tampouco achemos um emprego sistemático de um termo antes central, como, por exemplo, o de
“metáfora” – não deve obscurecer o fato mais essencial de que,
através da categoria hermenêutica de “interpretação”,13 Nietzsche
assumiu as conseqüências do modo de entender a linguagem que
expõe tanto no mencionado Curso de retórica quanto no ensaio Sobre verdade e mentira.14
Tal como se procurou indicar, foi a partir do distanciamento do
jovem Nietzsche das teses de sua primeira “metafísica de artista”
que Lacoue-Labarthe tratou de explicar o interesse presumidamente ocasional do filósofo alemão pela retórica, isto é, enquanto expressão de uma tendência anti-romântica. No entanto, ele próprio
deveria admitir que a intenção de Nietzsche de se afastar do romantismo, através de uma concepção da linguagem que tenha uma
de suas principais fontes de inspiração na obra de Gustav Gerber,
religaria-o com tal tradição. Como se vê, aqui é possível descerrar
um outro aspecto da recente investigação sobre Nietzsche, quer dizer, a influência do primeiro romantismo em seu pensamento – que
foi mencionado no início como susceptível de esclarecimento à luz
de suas reflexões sobre a linguagem.
Convém, pois, começar a matizar a complexa relação de
Nietzsche com a tradição romântica para além daquilo que as valiosas indicações de Lacoue-Labarthe puderam fazer. Nessa linha de
trabalho, Anthonie Meijers soube salientar e precisar melhor a importância do conhecimento das teses de Gerber por parte do jovem
Nietzsche, uma questão apenas tratada pela literatura secundária.15
Gerber foi um teórico da linguagem da segunda metade do século
XIX, autor de uma obra situada na esteira da filosofia lingüística
romântica – Die Sprache als Kunst – e cujo primeiro volume, surgido em 1871, Nietzsche empregou como fonte principal para as con-
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siderações desenvolvidas nas notas preparatórias do Curso de retórica, citando-a em várias ocasiões. Sua afirmação de que a retórica é
um prosseguimento consciente dessa forma de arte inconsciente que
é a linguagem, ou a de que, devido a sua condição essencialmente
artificial, não nos é dado apreender por meio dela a essência das
coisas, mas somente nossa maneira de nos relacionarmos com elas,
são idéias que provém, a ser assim, diretamente de Gerber. E mais:
asseverações tais como a de que “todas as palavras são, desde o
princípio, em si e em sua significação, tropos”,16 junto a numerosos
exemplos e citações de apoio, possuem uma correspondência quase
literal no texto de Gerber, que Meijers e Martin Stingelin se encarregaram de estabelecer com louvável esmero filológico.17
Meijers discute, além disso, a apreciação feita por LacoueLabarthe de que Nietzsche se limitou a tomar de outros autores a
maior parte do conteúdo de suas anotações para o Curso de retórica
(“purement et simplement recopié”). Também nesse caso, e em que
pese o mérito de ser um dos primeiros a mencionar uma chave levada em pouca consideração para o conhecimento da filosofia de
Nietzsche, Lacoue-Labarthe minimiza sua importância. Meijers sugere que isso se deve, em todo caso, à circunstância de que o estudioso francês tampouco atentou para a relevância da influência
exercida pela obra de Friedrich Albert Lange – História do materialismo e crítica de sua significação no presente (1866) – nessa etapa
do pensamento nietzschiano. Do contrário, ele teria sabido reconhecer até que ponto “Nietzsche encontrou na linguagem como arte
um novo argumento em favor de uma posição teórico-gnosiológica
na linha de Lange: o do caráter metafórico da linguagem, remetido
por Gerber, além do mais, a um impulso artístico”.18 De fato, no
próprio texto de Gerber esta concepção de linguagem aplica-se já a
uma crítica da metafísica em geral e de alguns conceitos metafísicos
em particular, como, por exemplo, o de “coisa em si” – em sintonia
com as doutrinas de Lange. Não é, pois, em tal aspecto que Meijers
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resume a originalidade de Nietzsche, mas em traços como o da maior
ênfase posta nesse caráter basicamente metafórico de toda linguagem, isto é, que subverte a prioridade habitualmente concedida a
sua função referencial diante do recurso intralingüístico das figuras
do discurso – que, posteriormente, terminou por se desenvolver em
seu escrito Sobre verdade e mentira. Se, portanto, ambos compartem
a convicção da natureza trópica da palavra, Gerber reserva o termo
“Metapher” para a tradução da sensação ao som enquanto Nietzsche,
por seu turno, estende-o à transposição (Übertragung) prévia do
estímulo nervoso à sensação.19
Em todo caso, não se pode negar uma especial penetração à
maneira por meio da qual Nietzsche dispõe as preliminares de sua
crítica à gramática metafísica baseado no argumento de que “não
existe em absoluto uma ‘naturalidade’ não retórica da linguagem a
que recorrer, sendo a linguagem como tal o resultado de artes puramente retóricas.”20 Esta crítica começa, como foi dito, desqualificando qualquer pretensão de apreender a verdadeira essência das
coisas a partir de um exame da relação entre retórica e linguagem
na terceira epígrafe do Curso de retórica. Nietzsche reivindica, de
passagem, o valor da retórica enquanto arte e justamente em sua
condição “artificiosa”, tal como depois irá fazer com essas “designações impróprias” que são os tropos – na medida em que não há
significação própria alguma –, para afirmar na linha seguinte:
“O que Aristóteles chama de Retórica, a capacidade de desentranhar
e extrair o que em cada coisa é ativo e produz impressão, é, ao mesmo
tempo, a essência da linguagem, a qual guarda a mesma relação – mínima – que a retórica com aquilo que é verdadeiro, com a essência das
coisas; não pretende instruir, mas transmitir a outro uma emoção e uma
apreensão subjetivas. O homem configurador da linguagem não apreende coisas ou fatos, mas estímulos: não reproduz sensações, mas simples
cópias das mesmas. A sensação provocada por um estímulo nervoso não
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alcança a coisa enquanto tal: essa sensação apresenta-se (dargestellt)
ao exterior através de uma imagem. Mas, em todo caso, alguém se pergunta: como pode representar-se um ato anímico mediante uma imagem acústica? Para que a reprodução fosse absolutamente precisa, não
deveria ser o próprio material de que se deve constituir a reprodução o
mesmo que aquele em que trabalha a alma? Mas, dado que esse material é um elemento estranho – o som –, como poderia resultar nessas
condições algo mais adequado que uma imagem?” 21
Com a idéia segundo a qual a imagem faz o estímulo percebido
transpor uma esfera inteiramente distinta, Nietzsche avança um passo
a mais em sua operação de desmontagem das ilusões lingüísticas da
metafísica, exercida aqui mediante essa incipiente crítica ao modelo da verdade como adequatio. Na realidade, tal como Enrique
Lynch examinou com perspicácia e com riqueza de detalhes naquele que continua sendo, até o momento, o estudo mais completo publicado em castelhano sobre a teoria nietzschiana da linguagem,22
Nietzsche recorre a uma representação do conhecimento como espelho, estruturalmente análoga, em princípio, àquela que é própria
da gnosiologia moderna; no entanto, ele especifica que o que se
reflete em tal espelho não é senão nossa imagem do mundo – e isso
o distingue de toda confiança metafísica na possibilidade de acesso
a um “mundo verdadeiro”–, ou seja, ele é consciente de que se
trata sempre de uma representação derivada, em suma, de uma
metáfora mesma, já que a imagem translada a uma esfera diferente
e simboliza o representado por ela.23 Em conseqüência, conclui a
passagem acima citada:
“Não são as coisas que penetram na consciência, mas a maneira que
nos relacionamos com elas, o pithanón. A plena essência das coisas não
se apreende nunca. Nossas expressões verbais não esperam de nenhum
modo que nossa percepção e experiência nos tenham subministrado um
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conhecimento multifacetado, até certo ponto aceitável, das coisas: têm
lugar imediatamente quando se sente o estímulo. No lugar das coisas, a
sensação somente incorpora um signo. Esse é o primeiro ponto de vista:
a linguagem é retórica, pois unicamente quer comunicar uma dóxa, não
uma epistême.” 24
Neste ponto, a argumentação do Curso de retórica vem enredarse diretamente na tese acerca da origem metafórica dos conceitos
exposta na única parte do Philosophenbuch que nos foi transmitida
de forma mais ou menos completa, isto é, o escrito do ano de 1873,
Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral. Aí, após descrever
o processo mediante o qual a coisa se nos apresenta traduzida primeiro como estímulo nervoso, depois como imagem e, finalmente,
como som articulado, concluindo, em virtude disso, que “não temos mais que metáforas das coisas, que não correspondem em absoluto às essencialidades originárias” (WL/VM § 1), Nietzsche explica como o conceito constitui unicamente mais um passo dentro
de tal processo, um passo consistente na petrificação e na perda de
força plástica e sensível de determinadas metáforas devido a seu
uso – com o conseqüente esquecimento de tal condição. O conceito
é, assim, o resíduo de uma metáfora que se esqueceu que é uma
metáfora e que, por isso, crê na ilusão da transposição artística em
que baseia sua captação do real. Somente graças a esse esquecimento do mundo primitivo de metáforas pode o homem, de resto,
viver com certa tranqüilidade, segurança e conseqüência, quer dizer,
acreditando que o mundo percebido por ele é uma verdade em si:
“Custa-lhe já esforço reconhecer que o inseto ou o pássaro percebem
um mundo totalmente distinto ao do homem, e que a questão de qual
das duas percepções de mundo é mais correta resulta completamente sem
sentido, já que para isso teria que se medir com o critério da exata percepção, isto é, com um critério não disponível. Assim, a percepção exata
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O “giro retórico” de Nietzsche
– que seria a expressão adequada de um objeto no sujeito – parece-me
um absurdo cheio de contradições: pois entre duas esferas absolutamente distintas como são o sujeito e o objeto não há nenhuma causalidade,
nenhuma exatidão, nenhuma expressão, senão, no máximo, um comportamento estético, quero dizer, uma transposição indicativa, uma tradução balbuciante a uma linguagem completamente estranha. Para a
qual se requer, em qualquer caso, uma esfera e uma força intermediárias que poetizem e inventem livremente. A palavra fenômeno encerra
muitas seduções, pelo que a evito o máximo possível, já que não é verdade que a essência das coisas manifeste-se no mundo empírico.” 25
A significação das teses defendidas nesse ensaio foi motivo de
amplo debate em numerosas ocasiões e, em data ainda não muito
distante, serviu para enclausurar Nietzsche numa atitude irracionalista que, mediante uma “crítica total e, portanto, auto-referencial
da razão”,26 desqualifica por inteiro o discurso da ciência para se
refugiar uma vez mais no recurso esteticista de uma nova época da
arte e do mito trágicos. Certamente, a aspiração – formulada nas
páginas finais do ensaio – à libertação do impulso formativo de
metáforas da sujeição cotidiana do intelecto ao férreo entrançamento
dos conceitos pode, à primeira vista, parecer coincidente com aquelas passagens de O nascimento da tragédia em que se percebe, com
maior nitidez, o seu vínculo com o programa romântico inicial de
uma Nova Mitologia. Mas é justamente aqui que se deve precisar a
autêntica inflexão que essas novas considerações sobre metáfora,
retórica e linguagem provocaram no decurso de seu pensamento, e
cujo exame contribui, além disso, para aclarar por que o nexo de
Nietzsche com a Frühromantik não se circunscreve a essa paradoxal seqüela do projeto de uma “mitologia da razão” constitutiva de
seu primeiro livro. O caso é que seu distanciamento posterior da
apelação wagneriana ao mito se faz no espírito mesmo dessa “ilustração superior” pretendida pelo ideário do romantismo inicial.
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Nietzsche despede-se de algumas das principais hipotecas românticas tardias herdadas de seus grandes mestres de juventude –
Schopenhauer e Wagner – graças, entre outros motivos, a uma reflexão sobre a índole artística de toda linguagem, que procede do
contexto daquela primeira filosofia romântica. Nesse sentido, seu
pensamento permanece aparentado com aqueles elementos da
Frühromantik que retomam a então pouco considerada idéia viquiana
de uma “sapienza poetica”, tal como esta se formula no segundo
livro da Ciência nova (1744). Nessa obra, em conexão com uma
teoria do mito, a linguagem poética é apresentada por Vico como a
língua originária, do mesmo modo que a fantasia é entendida como
a força produtora de cultura por antonomásia. Não obstante, o estatuto de “vera narratio” do mito também permaneceria, no Nietzsche
da época, submetido à consideração extra-moral da verdade que se
desprende de sua concepção da gênese tropológica da linguagem.
Autores como Hamann, Herder, Jean Paul ou Friedrich Schlegel
são, sem dúvida, de maneira direta ou indireta,27 referências importantes para o jovem Nietzsche, já que apelam a tal tipo de “lógica poética” com a pretensão de assaltar a rígida fortaleza dos conceitos, que se sente alheia e superior à esfera artística da fantasia e
da imaginação, provando, pelo contrário, seu necessário remetimento
a esta como sua condição de possibilidade. Mas Nietzsche, de sua
parte, acentua aquilo que Hans Blumenberg destacou como distintivo do tratamento romântico do mito, isto é, seu ocaso em relação
não tanto a uma base inquebrantável de descrição do mundo – o
originário acontecer fundante –, mas quanto à sua tarefa inconclusa
de redescrição e reinvenção do mesmo.28 Expoente também do intento sempre precariamente logrado de responder à radical estranheza e à falta de solo da existência, o mito deixa de ser pátria
metafísica, lugar da verdade primigênia, pura e não-contaminada,
para se converter em outro resultado do instinto que impulsiona à
formação de metáforas (e, assim, em uma prefiguração do próprio
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O “giro retórico” de Nietzsche
“trabalho no mito”29), com toda a contaminação de artifícios retóricos
que, desde o princípio, estão presentes já na linguagem.
Como observou Lacoue-Labarthe, uma das conseqüências mais
diretas dessa concepção da retoricidade intransponível da linguagem é a liquidação dos fundamentos metafísicos de uma teoria da
arte que localizava na tragédia o âmbito privilegiado de desvelamento
da genuína essência do real. Em particular, a crise da vertente mais
schopenhaueriana de O nascimento da tragédia, que traz à tona de
maneira definitiva a tese, de marca igualmente wagneriana, da música como verdadeira linguagem, como língua originária – prévia,
portanto, à poesia e como expressão direta da Vontade. A ponto de
se poder dizer que, desse modo, mito e metáfora aparecem contrapostos nessa primeira inflexão do caminho do pensar nietzschiano,
sendo esta, por certo, uma das razões pelas quais a obra ulterior
dificilmente se deixa conter dentro das estreitas margens de um
esteticismo fin de siècle. Aquilo que, a partir desse momento, faz a
mediação de sua relação com as teses do primeiro romantismo é o
aguçamento daquela crítica inicial ao conceito de coisa em si propiciada pela leitura de autores como Lange ou Spir.30 Se a atividade
do intelecto que confere sentido e ordem ao mundo é produto de
um impulso artístico do ser humano, não por isso cabe remetê-lo a
um fundamento bem determinado do real, equiparável à Vontade
schopenhaueriana. Não se trata, no limite, tão somente de que a
coisa em si seja mera invenção de uma lógica desmemoriada, um
acréscimo fantástico e ilusório ao fenômeno, mas de que o próprio
fenômeno como tal já é “interpretação” – resultado de uma atividade
metafórica em primeira instância e, em segunda, conceitual –, haja
vista que falamos de “coisas” que nos afetam e, inclusive, de afecções
ou sensações à custa de traduzir estímulos de diversas significações
a um significado abreviado, mais constante e uniforme. Daí que,
em consonância com a exegese de Gianni Vattimo, devemos considerar que os instintos aos quais tão freqüentemente alude Nietzsche
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Casares, M. B.
“não são eles mesmos senão produtos históricos.”31 Por esse mesmo motivo, o predomínio do “homem intuitivo” sobre o “homem
racional”, descrito nas páginas finais do ensaio Sobre verdade e mentira, que já não pode fiar-se no remetimento daquele a “uma esfera
situada acima e antes de toda aparência”,32 encontra-se próximo a
dar passagem à proposta de uma frutífera convivência – mesmo que
num conflito permanente – entre aquilo que, doravante, não se concebe senão como dois modos de proceder do intelecto, “esse mestre da ficção”. Essa proposta, titubeante ainda em meio às Considerações extemporâneas de 1874, e que depois se prolonga ao menos
até o período de Humano, demasiado humano com a idéia das “duas
cavidades cerebrais, uma para perceber a ciência, outra a não-ciência” (MAI/HHI § 251), mostra a cautela de Nietzsche frente a
qualquer possível recaída na “mistificação”33 wagneriana. Se essa
cautela se desvanece na obra tardia, em favor de uma assídua apelação à arte como modelo para a transvaloração dos valores, isso
não obedece, a meu ver, a uma volta ao paradigma vitalista operante
em O nascimento da tragédia e nas citadas Extemporâneas (do qual
Nietzsche se afastou na mesma medida em que chegou a reconhecer que o desmascaramento da metafísica não pode ser concluído
com uma atitude puramente negativa de rejeição, senão com uma
“assunção” hermenêutica), mas a um desenvolvimento coerente do
ficcionalismo gnosiológico: é a metaforicidade inerente a toda
atividade cognoscitiva, inclusive a da ciência, que permite pensar
um desdobramento superior da mesma, isto é, que não se limite a
satisfazer as necessidades da segurança vital que a tecno-ciência é
capaz de dispensar somente por si.
Por tudo isso, cabe concluir, com Paul de Man, que o modelo
retórico do tropo não somente constitui uma chave para a crítica da
metafísica empreendida nos escritos nietzschianos da maturidade,
mas que é, cabalmente, aquilo que impede de tomá-la por uma mera
inversão do platonismo.34 Ao remeter o desmonte das ilusões lógi-
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O “giro retórico” de Nietzsche
co-gramaticais da metafísica a essa crítica da linguagem, do conhecimento e da verdade, que desvela os componentes ficcionais da
razão, compreende-se, de fato, por qual motivo Nietzsche não pode,
a partir dos pressupostos mesmos de sua argumentação, chegar sem
mais a uma metafísica invertida, senão a um estabelecimento muito
mais denso e de alcance mais enriquecedor acerca do nexo entre
dóxa e epistême: a própria “História de um erro” converte-se em
algo que deixa de ser contemplado simplesmente como falsidade,
na medida em que contribuiu para gerar “o que hoje chamamos o
mundo” (MAI/HHI § 16), e que, precisamente por isso, descobre
em seu seio a possibilidade de ativar efeitos de sentido imprevistos,
orientando em uma direção nova e desconhecida aquela velha vontade de verdade cultivada ao longo de séculos de cristianismo. O
caráter de vir-a-ser das verdades não destitui por completo o seu
sentido objetivo, ainda que se obrigue a reconhecer, como parte
integrante do mesmo, um horizonte histórico-cultural conformado
previamente e uma dimensão última de inapreensibilidade – derivada da circunstância de que é somente através de uma estrutura já
lingüisticamente articulada que captamos e compreendemos o real.
A confluência entre esse aspecto da concepção nietzschiana de
linguagem e o modo por meio do qual ela desenvolve sua relação
com a Frühromantik vem, a ser assim, demonstrar que as reflexões
já consignadas tanto no Curso de retórica quanto nos diferentes fragmentos do Philosophenbuch se orientam numa dissolução do “mundo verdadeiro”, com a conseqüente emancipação do mito de toda
estrutura metafísica de base. Foi, em suma, esse “giro retórico” que
permitiu a Nietzsche despedir-se definitivamente de sua “metafísica
de artista” e empreender o caminho até uma crítica genealógica,
apta a elaborar uma compreensão mais profunda e rica em matizes
atinentes ao problema da superação do niilismo.
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Abstract: Through the influence of the early German Romanticism and
the position of Nietzsche’s thought within the history of metaphysics, the
author aims at showing the fundamental role of rhetoric in the philosopher’s
investigation on language, science and truth. Far from being just a
propensity of his early studies, Nietzsche’s rhetorical perspective exerts,
in the author’s view, a great influence on his whole work as a support in
the battle against metaphysics.
Key-words: language – metaphor – rhetoric – truth
notas
Cf. Foucault 16 e sua contribuição no VII Colóquio Filosófico Internacional de Royaumont (4-8 julho de 1964)
(Deleuze 11), as de Philippe Lacoue-Labarthe e Jacques
Derrida nas atas do Colóquio Internacional de Cérisy-LaSalle (julho 1972) (Nietzsche aujourd’hui? 39) e também
Derrida 12. Uma indicação interessante acerca do parentesco do projeto nietzschiano de análise da linguagem com
as Investigações filosóficas de Wittgenstein encontra-se em
Danto 10 p. 121ss. Cf. também Cacciari 6.
2
Junto a outros que serão mencionados com mais atenção
ao longo de nosso artigo, cabe citar trabalhos como os de
Goth 19, que demonstra um tratamento preferencialmente
clássico da disciplina, de Simon 45 e, num estilo mais novo,
os de Kofman 25 e Man 31. Cf. também Behler 2 e Böning
5. Publicações mais recentes são a monografia de Gasser
17, o volume organizado por Kopperschmidt e Schanze 26
e o livro de Kremer-Marietti 27, basicamente introdutório
e com notórias ausências de literatura secundária.
3
Cf. Grassi 21, 22 e 20. De Grassi, pode-se ler também,
sobre essa questão, Grassi 23.
1
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O “giro retórico” de Nietzsche
4
Cf. Lacoue-Labarthe 28, Lacoue-Labarte e Nancy 29. Formando parte de uma edição de escritos póstumos de
Nietzsche da mesma época, destinados a uma obra que
deveria chamar-se Philosophenbuch, existe em castelhano,
sob o título de “Retórica y Lenguaje”, uma versão tanto
dessa seleção de textos quanto das notas dos editores franceses (cf.. Nietzsche 34, p. 123-189). As sete primeiras
seções do Curso aí recolhidas foram publicadas pela primeira vez por Crusius 9, p. 237-269, cuja obra aqui abreviamos por GOA. Consideramos o resto do texto reiterativo
e com falta de interesse para sua inclusão aqui. Na edição
crítica empreendida por Colli e Montinari (Nietzsche 36)
(KGW), continuada depois por Wolfgang Müller-Lauter e
Karl Pestalozzi, os trabalhos de Nietzsche sobre a retórica
grega apareceram no quarto volume da segunda parte, em
1995, sob cuidados de Fritz Bornmann e Mario Carpitella.
Após a redação deste artigo, original de 1997, Luis Enrique de Santiago Guervós publicou em castelhano uma recomendável versão desses escritos sobre retórica (Cf.
Nietzsche 35). Todas as outras obras de Nietzsche são citadas pela edição de estudo (abreviada aqui KSA, Nietzsche
37), baseada na KGW, com exceção de todos os escritos
juvenis, as lições da Basiléia e os textos de caráter filológico.
5
Cf. Schlechta e Anders 44, especialmente pp. 122-127.
6
Em um texto de 1868, em que Nietzsche fala da “raiz
originária da música e da poesia” (Nietzsche 38, p. 351),
ele parece querer explicar o mecanismo da linguagem a
partir de sua função primordial como expressão rítmica de
uma sonoridade que figura e simboliza os sentimentos. Essa
sonoridade prévia e inconsciente, que é imanente ao complexo volitivo do corpo, é simbolizada tanto no gesto quanto no som (cf. KSA VII, 3 [19]). Música e poesia derivam,
portanto, ambas dessa musicalidade básica presente já no
surgimento da linguagem. Nietzsche matiza assim, desde o
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Casares, M. B.
começo, a tese romântico-wagneriana da música como língua originária, ainda que em O nascimento da tragédia ganhe terreno uma separação forte entre música e palavra,
que depois resultou diluída pela idéia de que a imagem
sonora sempre supõe a transferência da sua dimensão
inexprimível de estímulos e afetos a outra esfera distinta,
de significação. Nesse sentido, música e palavra guardam
ambas o mistério de uma sonoridade anterior a toda linguagem, no fundo, intraduzível.
26 |
7
Cf. Crawford 8, cap. X.
8
Nessa introdução, Nietzsche escreveu: “A linguagem não é
nem um produto consciente individual nem coletivo. O
pensamento consciente só é possível através da linguagem
[...] A linguagem resulta demasiada complexa para haver
sido elaborada por um único indivíduo; possui demasiada
unidade para haver sido pela massa, é um organismo completo. Portanto, deve-se considerar a linguagem como um
produto do instinto” (Philologica, Band III, in GOA XIX
p. 385).
9
Cf. ibid., p. 387. Cf. Schelling 43, vol. VI, p. 54.
10
Sobre essas ambigüidades, tratei-as mais extensamente
em meu estudo Voluntad de lo trágico, especialmente nos
caps. VI e VII (cf. Casares 7), sugerindo que a paixão de
Nietzsche pelo mundo terreno, contraditório, aparente, é
uma paixão anterior e mais funda que qualquer pathos
metafísico da verdade, o que anuncia, desde o princípio,
sua discrepância com Schopenhauer.
11
Cf. GT/NT § 6: “a música mesma, em sua completa soberania, não necessita nem da imagem nem do conceito”;
GT/NT § 21: “E enquanto a música nos constrange desse
modo a ver mais, e de um modo mais íntimo do que ordinário [...]” Que coisa análoga poderia oferecer o poeta das
palavras, que se esforça por alcançar aquela ampliação in-
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O “giro retórico” de Nietzsche
terior do mundo visível da cena e de sua iluminação interna com um mecanismo muito mais imperfeito, por um caminho indireto, a partir da palavra e do conceito? [...]: a
música é a autêntica Idéia do mundo, o drama é tão somente um reflexo dessa Idéia, uma isolada sombra da
mesma.”
12
Cf. GOA XVIII, p. 249-250
13
Cf. Figl 15. Sobre essa mesma problemática, mas centrada
no pensamento do jovem Nietzsche, cf. Figl 14.
14
Tomemos, por exemplo, Para além de bem e mal – Prelúdio de uma filosofia do futuro (1886), o livro que, dito pelo
próprio Nietzsche em Ecce homo, inaugura a parte de sua
tarefa “que diz não”, “a transvaloração dos valores”, e que
“é, em todo o essencial, uma crítica da modernidade” (EH/
EH, Para além de bem e mal, §2). Lá, na seção primeira,
intitulada “Dos preconceitos dos filósofos”, encontramos
uma crítica sistemática contra a base lingüística de tais preconceitos. Assim, no aforismo 16, discutindo o caráter de
“certeza imediata” do “eu penso”, Nietzsche afirma que
“deveríamos nos liberar, por fim, da sedução das palavras”. Retoma, então, a questão no aforismo seguinte para
argumentar a propósito da “superstição dos lógicos” que
consiste em “dizer: o sujeito ‘eu’ é a condição do predicado
‘penso’”, que “se raciocina aqui segundo uma rotina gramatical”. Depois, o aforismo 19 faz da vontade “algo que
somente como palavra forma unidade”, ou seja, uma “unidade verbal” que só o é pelo “preconceito popular que se
assenhoreou da sempre exígua cautela dos filósofos”. No
aforismo 20 diz: “Justamente aí onde existe um parentesco
lingüístico resulta de todo ponto impossível evitar que, em
virtude da filosofia comum da gramática – ou seja, em virtude do domínio e da direção inconscientes exercidos por
funções gramaticais idênticas –, tudo se ache disposto de
antemão para um desenvolvimento e sucessão homogêneos
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Casares, M. B.
dos sistemas filosóficos: igualmente parece estar fechado o
caminho para certas possibilidades distintas de interpretação do mundo”. Por último, no aforismo 21, com argumento e termos importados diretamente do ensaio Sobre
verdade e mentira, lemos: “Nós somos os únicos que inventamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a
finalidade; e sempre que introduzimos ficticiamente e misturamos esse mundo de signos, como se fora um ‘em si’
nas coisas, continuamos atuando de igual maneira que temos atuado sempre, a saber, de maneira mitológica”.
15
28 |
Cf. Meijers 32
16
Cf. GOA XVIII, p. 249. Gerber 18, p. 333: “Alle Wörter
sind Lautbilder und sind in Bezug auf ihre Bedeutung an
sich und von Anfang an Tropen”.
17
Cf. Meijers e Stingelin 33. Apesar de Meijers e Stingelin
estabelecerem também uma concordância entre passagens
da obra de Gerber e o ensaio Sobre verdade e mentira, aqui
a correspondência literal não é tão direta, citando praticamente exemplos que Nietzsche tomou igualmente para o
Curso de retórica. Isso parece estar em consonância com a
sugestão, feita pelos editores franceses – e que Meijers
retoma com cautela (cf. p. 384) – de que as anotações
para o Curso foram redigidas anteriormente ao ensaio, concretamente durante o semestre do inverno de 1872, e não
em 1874, como supunha a edição Kröner.
18
Cf. Meijers 32, p. 390. Cf. também Vaihinger 47, p. 771790; Schlechta e Anders 44, p. 50-59; Salaquarda 41;
Stack 46 e Ansell-Pearson 1. De minha parte, precisei alguns pontos acerca do alcance e limites dessa influência da
História do materialismo (Iserlohn, Baldecker, 1866) de
Lange sobre o jovem Nietzsche em Vontade do trágico p.
146-61.
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O “giro retórico” de Nietzsche
WL/VM § 1: “A ‘coisa em si’ (isso seria justamente a
verdade pura, sem conseqüências) também é completamente inapreensível para o criador da linguagem e em absoluto
merece seus esforços. Ele designa tão somente as relações
das coisas com os homens e, para expressá-las, recorre às
metáforas mais audazes. - Um estímulo nervoso transferido em primeiro lugar a uma imagem!: primeira metáfora. A imagem transformada de novo em um som articulado!:
segunda metáfora. E, em cada caso, um salto completo de
esferas, até outra totalmente distinta e nova”. Para uma
relação das coincidências e distinções entre Nietzsche e
Gerber, cf. Meijers 32, p. 381-387.
20
GOA XVIII, p. 249
21
ibid. p. 249
22
Cf. Lynch 30, pp. 264-270.
23
Em um fragmento póstumo da época, datado entre o verão de 1872 e início de 1873, escreve Nietzsche: “O imitar contrapõe-se ao conhecer enquanto este não quer fazer
valer nenhuma transposição, mas fixar a impressão sem
metáforas e sem conseqüências. A tal fim, a impressão resulta petrificada: presa e delimitada por conceitos, depois
morta, esfolada, mumificada e conservada em forma de
conceito. No entanto, não existem expressões ‘apropriadas’ nem conhecimento apropriado sem metáforas. Contudo, subsiste a ilusão sobre o particular, ou seja, a fé em
uma verdade da impressão sensorial. As metáforas mais
habituais, as usuais, valem agora como verdades e como
medida para as mais raras. [...] Conhecer não é mais do
que trabalhar nas metáforas prediletas, ou seja, um imitar
não percebido já como tal” (KSA VII, 19 [228]).
24
GOA XVIII, p. 249
25
WL/VM § 1. Em paralelo com tudo isso, a famosa definição: “Que é, portanto, a verdade? Um exército em movi19
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mento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em
uma palavra, uma soma de relações humanas que, elevadas, extrapoladas e adornadas poética e retoricamente, após
longo uso por um povo, resultam firmes, canônicas e
vinculativas: as verdades são ilusões daquilo que se esqueceu o que é, metáforas gastas e sem força sensível, moedas
que perderam sua efígie e que agora já não são consideradas moedas, mas metal.”
26
Cf. Habermas 24, p. 219.
27
Nietzsche toma de Gerber, para seu Curso de retórica, esta
ilustrativa citação de Vorschule der Aesthetik de Jean Paul:
“Assim como na língua escrita os hieróglifos precederam o
alfabeto, na linguagem oral a metáfora – enquanto aquilo
que designa relações e não objetos – constitui a palavra
mais antiga, que não precisou mais do que perder paulatinamente sua cor para se converter na própria expressão. A
espiritualização e a corporificação constituíam uma unidade, porque o eu e o mundo todavia se confundiam. Por
isso, do ponto de vista das relações espirituais, toda língua
é um dicionário de metáforas extintas” (Paul 40 p. 179).
Cf. GOA XVIII, p. 264-265.
28
Cf. Blumenberg 4, p. 15.
29
“Ainda quando, para fazer literariamente compreensíveis
certas correlações, distingo entre o mito e a sua recepção,
não quero, no entanto, dar espaço com isso à presunção de
que o ‘mito’ seja uma primária formação arcaica, em relação à qual tudo o que vem depois deve se denominar ‘recepção’. Inclusive os mais primitivos mitologemas a que
podemos aquiescer são já produtos do trabalho no mito”
(Blumenberg 3, p. 133).
30
A influência de Afrikan Spir sobre Nietzsche data de 1869,
ano de publicação de sua Indagação sobre a certeza no conhecimento da realidade, e é documentada, sobretudo, a
partir de 1873, ano em que apareceu sua obra fundamen-
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O “giro retórico” de Nietzsche
tal, Pensamento e realidade. Ensaio de renovação da filosofia crítica. Da escassa bibliografia a respeito, cabe destacar o trabalho de D’Iorio 13, assim como o de Sánchez 42.
31
Cf. Vattimo, “Nietzsche et la philosophie comme exercice
ontologique”, in Deleuze 11 p. 209. Nessa linha, insiste
Vattimo 48, p. 31: “Interpretar, por exemplo, darwinianamente o além-do-homem e todas as noções de luta presentes no conceito de vontade de potência significa, de fato,
retornar ao teorema fundamentalmente metafísico e ‘moral’ da unidade originária do ser, desta vez entendida como
‘a vida’ com suas exigências de conservação e desenvolvimento [...] desde um único principio [...] o instinto de conservação, concebido como aquele que rege a história, mas
que não tem, por sua vez, história: com as características
do ser metafísico”.
32
Cf. GT/NT § 6. Era esta justamente a esfera simbolizada
em O nascimento da tragédia pela música e aquela que a
linguagem, “enquanto órgão e símbolo das aparências”,
nunca podia aquiescer.
33
Nota do Tradutor: No texto original, Barrios faz um jogo
com a palavra “mistificação” que se perde em português.
A palavra utilizada é “mixtificación”, que remete a
“mistificar” (mistificar) e a “mixtura” (mistura). Devemos
lembrar que uma das principais críticas que Nietzsche lança contra Wagner é a sua falta de estilo, a ausência de uma
característica forte, ou seja, a mistura de estilo e de
características.
34
Cf. Man 31, p. 132: “Portanto, podemos afirmar legitimamente que a chave para a crítica nietzschiana da metafísica – que, talvez por erro, foi descrita como mera inversão da metafísica ou de Platão, radica no modelo retórico
do tropo ou, se se prefere chamá-lo dessa maneira, na literatura, enquanto linguagem que de modo mais explícito se
funda na retórica”.
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Edição organizada por G. Colli e M. Montinari. Berlim/
Munique, Walter de Gruyter/DTV, 1980.
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cadernos Nietzsche 13, 2002
“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
“Lições sobre os filósofos
pré-platônicos” e A filosofia
na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo*
Marcelo Lion Villela Souto **
Resumo: Trata-se de uma leitura comparativa envolvendo dois textos em
que Nietzsche se dedica a interpretar especificamente o pensamento dos
filósofos pré-platônicos: Lições sobre os filósofos pré-platônicos e A filosofia
na época trágica dos gregos. Com esse enfoque, o presente artigo pretende
apontar para as motivações que promoveram as modificações estilísticas e
argumentativas ocorridas nestes textos.
Palavras-chaves: filósofos pré-platônicos – estilo – verdade
No inverno de 1869/70, como professor de filologia clássica,
Friedrich Nietzsche anuncia a sua intenção de ministrar cursos a
respeito dos filósofos gregos anteriores a Platão. Os manuscritos utilizados como base para esses cursos (“Lições sobre os filósofos préplatônicos”) haveriam de ser suficientemente elaborados somente
*
**
O texto Die Vorplatonischen Philosophen não faz parte da edição em 15 volumes, organizada por G. Colli e M. Montinari. Utilizamos, pois, em nosso trabalho, a edição francesa Les philosophes preplatoniciens (apresentação e notas:
Paolo D’Iorio; tradução Nathalie Fernand. Paris, Editions de L’eclat, 1994).
Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro – UERJ.
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Villela Souto, M. L.
dois anos mais tarde. Estas “Lições”, que contém o germe da
interpretação nietzschiana no que se refere aos primeiros filósofos
gregos, representam o momento do desenvolvimento inicial de sua
argumentação a esse respeito. Em tais manuscritos são encontradas
informações precisas acerca das fontes utilizadas por Nietzsche em
suas pesquisas filológicas e filosóficas, sendo que os fragmentos analisados aparecem, na maior parte das vezes, no original em grego,
seguidos da tradução e extensamente comentados; a eles, numerosos
dados biográficos são acrescentados. Além das análises derivadas
imediatamente dos textos dos próprios filósofos pré-platônicos,
Nietzsche estabelece diversos paralelos com a literatura científica e
filosófica de seu tempo. As correntes de interpretação às quais ele
se filia e defende – assim como aquelas com as quais ele rivaliza –
são citadas explicitamente. As análises filológicas dos textos são,
enfim, complementadas por discussões de cunho teórico-especulativo, o que permite avaliar as principais preocupações observadas
no momento da elaboração de tal projeto filosófico.
O texto dessas “Lições”, contudo, não permaneceu intacto e nos
anos que se seguiram à sua elaboração, diversas tentativas de remodelação podem ser confirmadas.1 Preparando-se para levar a termo a publicação efetiva de um livro sobre o pensamento e a vida
dos primeiros pensadores gregos, Nietzsche impõe-se a tarefa de
reestruturar seus manuscritos. Esse projeto deu origem a um novo
texto, escrito sob uma nova orientação e respondendo a outras exigências. Intitulado A filosofia na época trágica dos gregos, este ensaio de reformulação corresponde ao manuscrito que foi enviado a
Bayreuth em 1873, destinado a ser lido por Richard Wagner.
Apesar da relativa proximidade entre o texto das “Lições” e o de
A filosofia na época trágica dos gregos, é possível encontrar, sob
diversos aspectos, significativas diferenças entre os dois. Nas
“Lições”, trata-se de organizar um inventário, da maneira mais
completa possível, de todas as passagens relativas aos filósofos pré-
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
platônicos, tanto no que se refere aos dados biográficos quanto no
que tange especificamente ao pensamento e às doutrinas defendidas
por cada um desses pensadores. O cuidado com a descrição
pormenorizada das diversas doutrinas revela-se indispensável, em
se tratando de um texto que servia de base para a realização de cursos
universitários. Por esse mesmo motivo, fora necessário realizar um
inventário extenso envolvendo os mais diversos comentadores, isto
é, filósofos, filólogos e homens da ciência que participavam das
principais disputas acerca dos assuntos tratados. Em A filosofia na
época trágica dos gregos, no entanto, a sua preocupação parece mudar
e, com efeito, é possível ver explicitamente expostas as características
do estilo de interpretação e escrita próprios a Nietzsche – havia,
agora, a intenção de dar uma identidade ao futuro livro. Os pensadores já não são tratados com a mesma objetividade, eles se aproximam
evidenciando sua personalidade, tornando-se como que personagens
entre os quais se traça uma trama, uma espécie de diálogo trágico
estabelecido no momento inaugural do pensamento filosófico.
As diferenças, contudo, não são apenas de ordem estilística e
pode-se mesmo encontrar rupturas cruciais no âmbito das teses
defendidas nos dois manuscritos. No primeiro dos três textos que
compõem o prefácio à edição francesa de Les philosophes preplatoniciens: “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique”, Paolo D’Iorio comenta as diversas reconstruções sofridas
por esse projeto de confecção de uma obra acerca da leitura dos
filósofos gregos anteriores a Platão. O seu comentário parte da tese
segundo a qual o manuscrito original das “Lições” teria sido escrito
com o intuito de exaltar a ultrapassagem da era mítica e das crenças
envolvidas pelo pensamento mítico entre os gregos. Sendo assim, o
projeto de formação e consolidação do pensamento científico seria a
tônica fundamental das “Lições”. Os filósofos pré-platônicos seriam
vistos como responsáveis por essa revolução e como os fundadores
dessa nova maneira de pensar. Na sucessão desses filósofos, Paolo
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D’Iorio visa a encontrar sinais de um progressivo desenvolvimento
do pensamento científico. A argumentação nesse sentido se vê
reforçada pela referência aos paralelos traçados por Nietzsche entre
o pensamento dos antigos e o das modernas teorias científicas e
filosóficas. Através de tal remissão, D’Iorio acredita poder encontrar
no pensamento nietzscheano, tal como este foi elaborado nas “Lições”,
um elogio à cientificidade e à progressiva racionalização no pensamento dos antigos. Referindo-se a este texto, ele sentencia:
“Todo o conjunto do pensamento filosófico grego é avaliado em função da capacidade das doutrinas antigas serem reutilizadas pelas ciências modernas”.2
D’Iorio também se refere ao diálogo, traçado nas “Lições”, entre
Kant e os eleatas. É dito explicitamente por Nietzsche que somente
a partir de Kant pode-se perceber seriamente o problema de Parmênides e Zenão.3 Inversamente, é possível deduzir, através de seus
argumentos, que diversos problemas fundamentais para o desenvolvimento da filosofia transcendental já se encontram indicados por
estes filósofos gregos. Os eleatas – já se poderia adivinhar – são
especialmente enfocados em relação a Kant e aos neo-kantianos por
terem sido percebidos como os primeiros porta-vozes da primazia do
pensamento conceitual sobre a evidência da experiência imediata.
E, além desta relação explorada nas “Lições”, também é enfocada
a construção de uma ponte ligando Schopenhauer a Anaximandro,
Heráclito e Empédocles. A referência a Anaximandro é clara: ao
interpretá-lo como o introdutor da cisão radical entre o mundo metafísico do ser e o mundo físico do vir-a-ser, Nietzsche o descreve
como aquele filósofo que, pela primeira vez, pôde expor propriamente o problema do valor da existência; a partir daí é estabelecida
imediatamente a sua ligação com o pessimismo schopenhaueriano.
Em relação a Heráclito, a herança se mostra na representação dos
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
traços de sua personalidade. Através de sua descrição como homem
solitário, orgulhoso por possuir a verdade que escapa aos outros,
poder-se-ia, pois, antecipar a imagem do gênio tal como esta é esboçada por Schopenhauer:
“Heráclito representa a imagem do gênio schopenhaueriano e do
músico visionário wagneriano que, atravessando com o olhar sua profunda interioridade, entra diretamente em contato com a essência metafísica do mundo”.4
Finalmente, Nietzsche diz ser Empédocles o pensador mais estreitamente vinculado a Schopenhauer. A doutrina da filia kai neikos
(amor – que une; e ódio – que separa) é vista como uma antecipação da vontade de vida schopenhaueriana. As principais características semelhantes encontradas entre esses filósofos são: o repúdio à
religiosidade por devoção ao racionalismo, a ética da compaixão e a
crença no valor alegórico do mito e da religião. Enfim, Empédocles
assemelhar-se-ia a Schopenhauer sobretudo por se localizar na fronteira entre o mito e a ciência, entre a magia e as luzes.
De acordo com Paolo D’Iorio, estabelece-se nas “Lições” uma
linha estrutural que atravessa o pensamento dos filósofos préplatônicos conferindo, a ser assim, unidade ao seu conjunto. E, segundo a direção que essa linha aponta, os elementos míticos vão
sendo progressivamente desvalorizados na medida em que o pensamento passa a se consolidar a partir de redes conceituais de cunho
científico-filosófico. A cada pensador é, pois, estabelecida uma tarefa específica dentro desse enorme “projeto” de submissão do pensamento a uma forma científica. Reproduzindo sinteticamente as
descrições encontradas nos textos de Nietzsche, vemos que: Tales
inauguraria uma visão científica do mundo ao propor uma explicação de tudo que existe pela metamorfose de uma única substância
originária: a água; Anaximandro, de sua parte, continuaria o proces-
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so de abstração ao indicar a água como algo gerado a partir de uma
alternância entre calor e frio; a contribuição de Heráclito, por sua
vez, seria a de negar toda a permanência ao mesmo tempo em que
afirma a existência de leis fixas que regulam os movimentos;
Anaxímenes, através de suas doutrinas sobre a rarefação e condensação do ar, mostrar-nos-ia pela primeira vez uma teoria sobre a
evolução da matéria originária; Anaxágoras, de seu lado, terminaria por explicar essa evolução a partir do movimento circular gerado pelo Nous; Empédocles, seguindo esse mesmo trilho, trataria de
atribuir elementos psíquicos – filia kai neikos – a todo o movimento
e à produção de formas; e, por fim, Demócrito e Leucipo deveriam
ser vistos como representantes do último estágio da “desantropomorfização” e “cientifização” do pensamento ao explicarem a existência e o movimento por meio de uma força posta no coração da
natureza: os átomos e o vazio.5 Sob tal perspectiva, caberia mesmo
a Demócrito a tarefa de realizar a definitiva ultrapassagem do estado mítico no pensamento e chegar, pois, à concepção da representação científica da natureza – não por acaso, o seu sistema é louvado como o mais coerente em todo o pensamento antigo. Numa palavra:
o materialismo atomista criaria, pela primeira vez, uma imagem
unificada e coerente do mundo empírico, capaz de ser diretamente
utilizada pela ciência.
Seguindo esses mesmos argumentos, D’Iorio termina por sustentar que as “Lições” são destinadas a encontrar definitivamente
uma linhagem de evolução entre os pré-platônicos, a qual se
determina pela possibilidade de uma doutrina ser utilizada pela
ciência moderna. E, uma vez admitida essa conclusão, é posta a
pergunta:
“Como conciliar uma epopéia que celebra a ultrapassagem do mito
por meio da ciência, com a metafísica de artista tal como Nietzsche havia
formulado em O nascimento da tragédia?”6
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
Ora, segundo o comentador, para que fosse possível conciliar
esses dois modos de pensamento heterogêneos e pôr termo a essa
cisão, foi preciso que Nietzsche reformulasse seus manuscritos originais. Sendo assim, suas primeiras apreciações sobre os filósofos préplatônicos teriam sido reescritas de tal modo que fosse possível tornálas condizentes com as concepções expostas em O nascimento da
tragédia. A principal motivação dessa conciliação seria seu proveito
em relação à reforma cultural wagneriana e, para que o texto das
“Lições” pudesse servir aos interesses da comunidade de Bayreuth,
foi preciso que ele sofresse diversas adaptações: “(...) Nietzsche havia
reescrito seu texto em função do seu destinatário.” 7
A fim de corroborar essa tese, D’Iorio comenta as diferenças
entre as “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na
época trágica dos gregos: Nietzsche teria suprimido paulatinamente,
durante as reconstruções do seu trabalho, as referências ao pensamento científico e filosófico contemporâneos; teria feito diversas modificações acentuando o caráter artístico e intuitivo dos pensadores
gregos; e, além disso, teria eliminado as citações em grego, as construções filológicas e as remissões à literatura critica. Enfim, D’Iorio
pretende transmitir-nos a idéia de que, temendo a reprovação de
seu mestre Wagner, Nietzsche sentiu-se forçado a remodelar pontos capitais na confecção de seu primeiro manuscrito.
Ensaio de resposta
Quanto às relações estabelecidas entre as teorias filosóficas e
científicas modernas e as doutrinas dos filósofos pré-platônicos não
há o que condenar. Da mesma maneira, os dados utilizados e as
suas referências não serão aqui questionados, mas apenas estas sínteses generalizadoras que causam espanto. Será preciso investigar
se a reformulação nos primeiros manuscritos de Nietzsche havia sido
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elaborada com o único intuito de servir aos ideais da reforma cultural wagneriana. De outra forma, será questionado se o texto das
“Lições” pode ser efetivamente considerado como “uma epopéia que
celebra a ultrapassagem do mito por meio da ciência.” Nesse sentido, será preciso verificar se é possível, dentro do contexto das
“Lições”, estabelecer um critério de avaliação destes filósofos que se
determine unicamente pela capacidade de suas doutrinas serem
“reutilizadas pelas ciências modernas”.
Como já foi visto, está fora de questão o fato de que os dois livros
destinavam-se a diferentes propósitos: as “Lições sobre os filósofos
pré-platônicos” são uma compilação de anotações feitas para serem
usadas em cursos universitários e é, portanto, natural que contenham
um grande número de dados e informações. A um texto elaborado
com esta finalidade é indispensável o estabelecimento de diversas
relações com o pensamento de sua época e a explicitação precisa
das fontes utilizadas em suas argumentações e conclusões. Trata-se,
a ser assim, de um texto no qual os principais argumentos e teses
propriamente nietzschianos encontram-se dispersos em meio a
numerosos dados, considerações e apontamentos derivados de outros
comentadores envolvidos nas discussões que estabeleciam seu interesse direto no momento. Sua principal virtude deve ser, portanto,
a de nos proporcionar o contato com estas informações sobre as suas
principais fontes e influências no que concerne à interpretação dos
pré-platônicos.
Já o texto de A filosofia na época trágica dos gregos é, desde o
início, elaborado tendo em vista a sua publicação efetiva. Suas preocupações devem, pois, ser outras: o cuidado com a unidade estilística é patente, a exposição dos argumentos é apresentada com mais
veemência, diversas remissões à literatura crítica são, de fato, suprimidas. É possível, no entanto, derivar disso uma intenção distinta daquela que foi apresentada por Paolo D’Iorio e, antes de rele-
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
gar esse livro a um ingênuo intento de agradar o mestre, talvez deva
ser útil dar a palavra ao próprio Nietzsche. No segundo prefácio
feito para A filosofia na época trágica dos gregos, o filósofo expõe as
intenções desta obra:
“Esta tentativa de contar a história dos filósofos gregos mais antigos
distingue-se de outras tentativas semelhantes pela sua concisão. Esta foi
conseguida pelo fato de que, em cada filósofo, mencionou-se apenas um
número muito limitado das suas teorias, em virtude, portanto, de não
apresentar uma imagem completa. Mas escolheram-se as doutrinas em
que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo, ao passo
que uma enumeração completa de todas as teses que nos foram transmitidas, como é de costume nos manuais, só leva a uma coisa: ao total
emudecimento do que é pessoal. É por isso que esses relatos são tão aborrecidos: pois em sistemas que foram refutados só nos pode interessar a
personalidade, uma vez que é a única realidade eternamente irrefutável.
Com três anedotas é possível fornecer a imagem de um homem; vou tentar extrair três anedotas de cada sistema e não me ocupo do resto”
(PHG/FT, segundo prefácio).
Neste texto, Nietzsche louva exatamente sua capacidade de concisão e, com efeito, não é sua pretensão estabelecer um tratado
exaustivo que “dê conta” de todos os fatos conhecidos acerca desses filósofos e de todas as minúcias de suas doutrinas. Nietzsche
recusa-se abertamente a estender seus comentários, tal como é o
costume entre seus contemporâneos, e estabelece como sua meta,
ao contrário, trazer para perto esses filósofos, aproximá-los de si e
aproximar-se deles, num duplo movimento. O intento de Nietzsche
nesse momento é reter o que entende como sendo uma caracterização da personalidade desses filósofos, a valorização dos seus traços
de caráter, da sua individualidade, através dessas descrições; pretende, enfim, traçar um esboço das peculiaridades de suas vidas e
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doutrinas. Em duas ou três anedotas será narrada a vida desses sábios ilustres, que serão, assim, descritos como existências únicas, que
funcionam como modelos de todo o pensamento filosófico posterior.
Os filósofos pré-platônicos são, no limite, vistos como exemplos de
comportamentos de exceção, de modos de vida realizados e, por isso,
irrefutáveis. Cada um deles é descrito como a encarnação de uma
das formas efetivas do pensamento filosófico, de um modo próprio
de criar questionamentos. Originando questões e soluções eternas,
seus conceitos e suas problematizações ultrapassam a singularidade
de quem os produziu. À medida que avançam, percorrendo o caminho
do humano, vão iluminando outras trilhas e sendo iluminados por
novas luzes.
A intenção, revelada pelo próprio Nietzsche, de recriar uma
imagem sucinta dessas personagens ilustres do cenário filosófico,
parece vincular-se mais estreitamente aos seus textos e ser mais frutífera do que uma tentativa de “esconder” deliberadamente determinadas remissões a teorias científicas e filosóficas dos seus contemporâneos.8 Da mesma forma, a hipótese de que o texto deveria
ter sido modificado com o intuito de servir como respaldo para a
reforma cultural wagneriana parece pouco plausível. De fato, seria
muito estranho, para alguém que almeja a aprovação de Wagner,
iniciar o texto caracterizando-o como inimigo da filosofia. No início
do primeiro parágrafo de A filosofia na época trágica dos gregos,
Nietzsche escreve:
“Existem inimigos da filosofia, e é bom escutá-los, sobretudo quando
desaconselham a metafísica às cabeças doentes dos Alemães e lhes pregam a purificação pela física, como Goethe, ou a cura pela música, como
Richard Wagner. Os médicos do povo rejeitam a filosofia; e quem quiser
justificá-la terá de demonstrar para que é que os povos sãos precisam e
precisaram da filosofia.” (PGH/FT §1)
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
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Se este primeiro parágrafo não contém o sentido de uma radical
ruptura com os ideais de Bayreuth, ao menos a profunda diferença
em relação às intenções de Wagner já está posta desde o início.
Wagner e Goethe são caracterizados como médicos do povo, através
da música no caso de Wagner e da física no caso de Goethe, sendo
que esses “doutores” propõem a cura do povo alemão, que se
encontraria fundamentalmente doente. E, com vistas ao restabelecimento da saúde de tal povo, ambos desestimulam o desenvolvimento do pensamento filosófico. Nietzsche concorda, pois, com a
validade desse diagnóstico feito para o povo alemão, concorda também que aos povos doentes é desaconselhável a presença da filosofia, já que ela não serviria como remédio para restaurar uma saúde
perdida. Tanto aos povos quanto aos indivíduos doentes, a filosofia
sempre se mostrou, se não prejudicial, ao menos inútil para a restituição da saúde:
“Se alguma vez um povo se desmembrou e ficou ligado aos seus
elementos singulares com uma tensão frouxa, a filosofia nunca religou
intimamente esses indivíduos ao todo. Sempre que alguém se dispôs a
afastar-se e a constituir à sua volta uma barreira de auto-suficiência, a
filosofia esteve sempre pronta para o isolar ainda mais e o destruir através de seu isolamento” (PHG/FT § 1).
No entanto, o fato de não ser recomendável para a restituição de
uma saúde debilitada não implica necessariamente que a filosofia
seja em si algo inútil e sua prática reprovável. A filosofia só pode ser
reconduzida ao seu valor caso se mostre o motivo pelo qual determinados povos sãos precisavam dela. Nietzsche justificaria a filosofia
mostrando que, para uma civilização fundamentalmente sadia, sua
prática é um impulso ao crescimento da diversidade de formas de
vida, de formas superiores de vida, e que favorece, com isso, o
surgimento de “grandes homens”. Apenas aqueles que são, como
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Wagner, médicos do povo, denunciam os perigos e a inutilidade da
filosofia, pois voltam todas as suas forças, sua arte e seu engenho
para a cura de um povo doente. É natural, portanto, o seu resguardo
diante desse modo de pensamento fundamentalmente desagregador:
“Se alguma vez ela se mostrou útil, salutar e preventiva foi para os
povos sãos. Aos doentes tornou ainda mais doentes” (PHG/FT §1).
O repúdio à filosofia que se manifesta em Wagner é percebido –
mesmo em A filosofia na época trágica dos gregos – como sintoma de
coragem e honestidade: “A filosofia não tem direitos; por isso o
homem moderno, se pelo menos fosse corajoso e consciencioso, teria de repudiá-la e bani-la...”(PHG/FT §2). Entretanto, neste texto,
entre o ideal de cura do povo alemão e a tarefa de valorização da
filosofia, Nietzsche toma claramente o partido da filosofia e responde: “Tende antes uma civilização, e então ficareis sabendo vós também o que a filosofia quer e pode”.(PHG/FT § 2) Caberá a Nietzsche
executar, então, justamente a tarefa de revalorização do papel da
filosofia e do filósofo, mesmo que em detrimento da civilização, isto
é, mesmo às custas de mostrar a completa impossibilidade de se
erguer um ideal civilizatório sobre um povo doente:
“A tarefa que o filósofo tem que realizar no âmbito de uma civilização autêntica e possuidora de uma grande unidade de estilo não se
advinha a partir da nossa condição e da nossa experiência, porque não
temos tal civilização. Pelo contrário, só uma civilização como a grega
pode responder a pergunta relativa à tarefa do filósofo, só ela pode, como
eu dizia, justificar a filosofia em geral, porque só ela sabe e pode provar
por que razão e como o filósofo não é um viajante qualquer, acidental e
surge disperso aqui e ali. (...) Os gregos justificaram o filósofo, porque
este, junto deles, não é nenhum cometa” (PHG/FT § 1).
Como estamos longe do contexto de O nascimento da tragédia,
onde Nietzsche se encontrava junto ao seu “sublime precursor de luta”
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
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tal como dois médicos do povo! Estavam os dois, naquele momento,
desejosos de encontrar um remédio que restituísse a saúde do povo
alemão, uma esperança que pudesse consolá-los diante da situação
algo desesperadora que enfrentavam. A solução apresentada por
Nietzsche naquela obra foi a de apostar em um renascimento da época
áurea da civilização grega a partir da música; apostar, portanto, em
Wagner, como redentor da cultura alemã:
“Que ninguém tente enfraquecer a nossa fé em um iminente
renascimento da antiguidade grega; pois só nela encontramos nossa esperança de uma renovação e purificação do espírito alemão através do
fogo mágico da música. Que outra coisa saberíamos nomear que, na
desolação e exaustão da cultura atual, pudesse despertar alguma expectativa consoladora para o futuro?” (GT/NT § 20)
Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche parece tomar
distância desta postura mantida e defendida em O nascimento da
tragédia. Não se procura mais um remédio para uma civilização
decadente. De “sublime precursor de luta” à “médico do povo” há
uma enorme distância, sendo que a luta de Wagner parece não mais
seduzir Nietzsche. É possível que seja mais rico relacionar as
mudanças sofridas pelo primeiro manuscrito, não a um propósito
conciliador em relação aos ideais de Wagner, mas a uma tensão
própria, talvez inconciliável, pela qual passava o espírito nietzschiano.
Não há como negar que, nas “Lições”, Nietzsche destaca a coesão
do conjunto do pensamento dos pré-platônicos – freqüentemente
aparecem considerações explícitas sobre os laços de estreita necessidade que mantém ligados estes pensadores.9 Também é salientado
o fato desses filósofos, em conjunto, terem realizado a ultrapassagem do mito.10 Contudo, é característico do texto das “Lições” a tensão entre a avaliação destes sistemas filosóficos através de uma linha
progressiva estabelecida pela ciência e a intenção de pôr em destaque
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Villela Souto, M. L.
os valores defendidos por cada pensador, suas características
pessoais e suas doutrinas. À exposição do conjunto dos pré-platônicos
enquanto aqueles que ousaram ultrapassar as crenças que envolviam
o pensamento mítico, Nietzsche adiciona outros tipos de afirmações,
que destacam a exclusividade do pensamento de cada um desses
filósofos e a suprema inventividade que os caracteriza. Já se encontra,
nas “Lições”, a intenção declarada de destacar a criação de diversos
modos de filosofar completamente originais e é posta em relevo a
variedade de tipos filosóficos efetivos oriundos da civilização helênica.
Em determinadas passagens, Nietzsche pretende revalorizar
justamente essa diversidade por meio de uma descrição de cada
personalidade e doutrina:
“Para conhecer os gregos, o fato de que alguns deles tivessem chegado a uma reflexão consciente sobre eles mesmos é extremamente precioso. Mas sua personalidade, seus atos, são talvez mais importantes que
essa reflexão consciente. Os gregos criaram os ‘tipos filosóficos’; que se
pense em uma comunidade de indivíduos tão diversos como aquela de
Pitágoras, Heráclito, Parmênides, Demócrito, Protágoras e Sócrates. Esta
inventividade diferencia os gregos de todos os outros povos: habitualmente um povo não produz mais que um tipo filosófico destinado a
durar”.11
Este poder criador não só distingue estes pensadores de todos
os outros povos como também de toda a filosofia posterior a Platão.
Este, por sua vez, é descrito como o “primeiro grande caráter misto”, pois tanto sua personalidade quanto suas doutrinas revelam-se
um amálgama de elementos socráticos, pitagóricos e heraclíticos.
Após Platão, o pensamento filosófico revela-se um amálgama heterogêneo de extratos de doutrinas anteriores, que permanecem como
que presas externamente umas às outras e dispostas conforme as
peculiaridades do pensador. Essa mescla de várias doutrinas apre-
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
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sentadas em conjunto já não pode servir para a criação de uma concepção original, sendo que os filósofos posteriores a Platão não são
mais reconhecidos por Nietzsche como inventores, ou seja, não representam mais o acréscimo de um novo tipo no cenário filosófico: “(...) falta aos filósofos, desde Platão, algo de essencial (...)”
(PHG/FT § 2). E diz ainda:
“Sua doutrina das idéias(...) não pode em absoluto ser qualificada
de concepção original. O homem, ele mesmo reuniu em si traços de
Heráclito, (...) de Pitágoras, (...) e de Sócrates. Todos os filósofos posteriores são filósofos mistos como ele.”12
Desde o primeiro parágrafo das “Lições” é expressa, pois, a intenção de deixar que cada filósofo defenda a sua própria doutrina.
Uma avaliação acerca de seus pensamentos só pode vir deles
próprios e a avaliação em função de sua capacidade de serem
reutilizados pelas ciências modernas parece, neste momento, ser
posta de lado:
“A filosofia grega é usualmente encarada a partir da seguinte questão: até que ponto os gregos, em relação aos filósofos modernos, compreenderam e fizeram progredir os problemas filosóficos? Nós queremos colocar uma outra questão: o que nós aprendemos, através dos gregos, da
história de sua filosofia?”13
Nietzsche, ao que parece, pretende extrair dos próprios pensadores gregos a justificação da necessidade de suas doutrinas. Não
se trata de perguntar em que os filósofos gregos, tomados em conjunto, fizeram prosperar e contribuíram para o desenvolvimento da
filosofia moderna. Inversamente, ele se dirige aos gregos com a seguinte questão: até que ponto nós, filósofos modernos, conseguimos
aprender dos gregos sobre a história de sua filosofia? Indica, com
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isso, a sua intenção de dar a palavra aos antigos. Serão eles próprios
que poderão responder a respeito de quanto vale seu pensamento.
Nietzsche pretende revalorizar o pensamento dos antigos, os juízos
emitidos e os valores exaltados: “O julgamento dos filósofos antigos
sobre a vida é mais rico de significados”.14 Pretender que os sistemas filosóficos dos antigos possam ser julgados em função de sua
capacidade de serem reutilizados pelas ciências modernas seria justamente dar a palavra aos modernos e, mais uma vez, fechar os
ouvidos para o que os gregos falam sobre si. Hierarquizar as doutrinas desses pensadores em função das ciências modernas seria tornar a valorizar os juízos modernos contra aqueles que são postos
pelos próprios filósofos – que, por sua vez, são o objeto da questão.
É lançada, então, uma suspeita sobre a capacidade da interpretação moderna de alcançar a verdade acerca do pensamento dos
antigos. Ora, é possível que não se tenha aprendido suficientemente a partir da boca dos próprios filósofos. Muito se fala sobre eles,
mas não se consegue ouvir o que eles próprios têm a dizer. Nós,
filósofos modernos, não compreendemos o que vem a ser a sua filosofia, não compreendemos sequer o que vem a ser a filosofia, estamos, desta forma, longe de poder decidir sobre quais são os problemas filosóficos, quer dizer, sobre o que a filosofia deve levar em
conta ou deixar de lado. Ou, pior ainda: é possível antecipar o veredicto de que estejamos valorizando e supervalorizando justamente
aquilo que degrada, que denigre a imagem do homem perante a si
mesmo, enfim, o que o torna baixo.
A radicalização dessa suspeita sobre a capacidade de interpretação dos modernos, que é levantada já nas “Lições”, dará o tom da
abordagem que será feita em A filosofia na época trágica dos gregos.
A maneira como os filósofos serão descritos nesta obra parece indicar a descrença no critério de verdade posto a partir da filosofia de
Platão. Através da tentativa de recriação de seus “tipos”, Nietzsche
mostra que sua intenção efetiva, tal como se encontra nos prefácios,
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
foi a de reconstruir a história de modelos de vida irredutíveis e impossíveis de serem colocados em uma linhagem de evolução. Sua tarefa,
naquele momento, consistia exatamente na tentativa “de deixar soar
de novo a polifonia da alma grega” (PHG/FT, primeiro prefácio).
Em Humano, demasiado humano, livro que surge como uma
declaração de guerra aos ideais de Bayreuth, Nietzsche reforça algumas afirmações expostas já em A filosofia na época trágica dos
gregos. É possível destacar, dentre elas, a recusa a qualquer possibilidade de se encontrar entre os gregos uma linhagem de evolução
contínua e progressiva, um curso natural:
“Não posso me convencer de que a história dos gregos tenha tomado
aquele curso natural que é tão celebrado nela. Eles tinham talentos demasiado múltiplos para serem gradativos daquela maneira passo a passo da tartaruga na competição com Aquiles: e é isso que se denomina
desenvolvimento natural” (MAI/HHI, § 261).
Pode-se igualmente perceber que Nietzsche foi, aos poucos, distanciando-se da concepção de uma linha gradativa que envolveria o
pensamento atinente aos filósofos pré-platônicos. O filósofo se aproximará, cada vez mais, de um segundo viés de explicação, que ressalta o caráter exclusivo de suas doutrinas e distingue cada um deles como o portador de uma verdade. Que exige, para a sua defesa,
a grande disposição para a luta:
“Encontravam essa luz em seu conhecimento, naquilo que cada um
deles denominava sua verdade. (...) Esses filósofos tinham uma robusta
crença em si e na sua verdade e com ela derrubavam todos os seus vizinhos e predecessores: cada um deles era um combativo e violento tirano” (ibid.).
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Está aí, pois, exposto o caráter agonístico da verdade entre os
gregos, sendo que a certeza de sua posse faz com que cada um deles se torne guerreiro por ela. A verdade que cada filósofo possui e
defende através de sua própria existência não se confunde com a
verdade que os julga indistintamente, isto é, de acordo com os
padrões estabelecidos a partir da filosofia de Platão e radicalizados
pela moderna forma do pensamento científico – a respeito da qual
Nietzsche levantará severas suspeitas. Paolo D’iorio, talvez expressando um momento do discurso nietzschiano em que não havia
uma diferenciação precisa entre esses dois tipos de verdades, confunde duas formas distintas de juízos sobre a verdade, na seguinte
afirmação:
“Para Nietzsche, os filósofos da Grécia antiga eram indivíduos de
exceção que souberam passar do mito à ciência, que souberam viver para
a verdade, para a sua verdade mesmo ao preço de isolamento e conflito
com a comunidade”.15
Supõe-se, pois, que haja uma correspondência de sentidos entre viver para a verdade, com o significado específico de ultrapassagem do mito à ciência, e viver para a sua verdade, quer dizer, a
verdade que cada um desses pensadores trazia consigo, a verdade
da qual cada um deles era a encarnação. As mudanças nos manuscritos originais parecem apontar, em boa medida, para essa progressiva descrença acerca da exclusividade do critério que define o
que vem a ser verdade. A verdade platônica, tal como até agora
havia sido balizada pela opinião comum da tradição filosófica, passa pouco a pouco a ser posta em xeque. Expondo-se ao lado dela
outros juízos possíveis, conduzidos por outros critérios igualmente
possíveis, abre-se espaço para o questionamento acerca da superioridade incondicional de seu valor.
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
Os juízos verdadeiros, tal como a tradição filosófica admite, são
aqueles capazes de proporcionar um conhecimento seguro acerca
do objeto tratado e devem, por conseqüência, ter validade universal. Sobre um certo objeto, somente uma determinada espécie de
juízos correspondem a sua verdade, todos os demais são eliminados
como erros, falsidades ou crenças enganosas. A exigência de um
critério seguro que permita a determinação precisa da verdade dos
juízos emitidos é um procedimento inquestionável no âmbito do
pensamento filosófico. Convém lembrar, a esse propósito, uma passagem de Para além de bem e mal onde Nietzsche revela a crença
que está envolvida na gênese da verdade e como ela é sintoma de
uma forma específica de valorar:
“‘Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, a verdade
do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação
desinteressada do egoísmo? Ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem sonha com
ela é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter
uma origem que seja outra, própria – não podem derivar desse fugaz,
enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e
cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do Deus oculto, da
‘coisa em si.’ – nisso e em nada mais deve estar a causa’. – Este modo
de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos
os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás
de todos os procedimentos lógicos; é a partir dessa sua ‘crença’ que eles
procuram alcançar seu ‘saber’, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de ‘verdade’” (JGB/BM §2).
Será preciso admitir, sob tal ângulo de visão, que é por deferência a certos valores de cunho moral que a tradição filosófica, na esteira
de Platão, postulou, como o critério decisivo para a verificação da
autenticidade de um conhecimento, a completa dissipação de toda
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ilusão. A completa exclusão de conhecimentos que possam ser
adquiridos através do engano e da mentira surge em proveito de um
tipo de juízo que pretende poder afirmar a sua própria validade
incondicional. Por meio dessa “crença”, que se pretende universalmente válida, são defendidos certos tipos de valores e, por meio
destes, é postulada uma determinada norma comum para o comportamento humano em geral. É possível, todavia, que, paralelamente a
esses “juízos verdadeiros”, existam outros tipos mais ricos de
significados sobre a vida e que estes, por sua vez, possam proporcionar o florescimento de novas maneiras de existir e novas manifestações possíveis das forças vitais. Em A filosofia na época trágica dos
gregos, Nietzsche compara essas duas maneiras distintas de julgar:
“O juízo desses filósofos (pré-platônicos) sobre a vida e sobre a existência em geral é muito mais significativo do que um juízo moderno,
porque tinham diante de si a vida numa plenitude exuberante e porque
neles o sentimento do pensador não se enreda, como em nós na cisão
do desejo da liberdade, da beleza e da grandeza da vida e do impulso
à verdade, que só pergunta: o que é que a vida vale?” (PHG/FT §1).
É mesmo possível supor que, em A filosofia na época trágica dos
gregos, Nietzsche caminha em direção ao aprofundamento da
investigação acerca dos impulsos que promovem o desenvolvimento
de todo tipo de conhecimento e interpretação. Houve, sim, diversas
modificações nos manuscritos, mas estas parecem apontar antes para
o aprofundamento de uma questão que passará a ocupar posição
fundamental no pensamento de Nietzsche: a radicalização do
questionamento sobre o valor da vontade de verdade, a sua origem
posta como um problema moral. Conforme se encontra no já
mencionado Para além de bem e mal:
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
“De fato, por longo tempo nos detivemos ante a questão da origem
dessa vontade (de verdade) – até afinal parar completamente ante uma
questão mais fundamental. Nós questionamos o valor dessa vontade”
(JGB/BM §1).
A vontade de verdade é levada, pela radicalização de seus
próprios métodos, a lançar suspeitas acerca de seu próprio valor.
Ora, cabe lembrar que, no mesmo ano em que fora escrito A filosofia
na época trágica dos gregos, Nietzsche produz Sobre verdade e mentira
no sentido extra-moral. Nietzsche faz, já neste texto, duras críticas à
noção de verdade, dizendo tratar-se de “um batalhão móvel de
metáforas, metonímias e antropomorfismos, enfim, uma soma de
relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente (...)
ilusões, das quais se esqueceu que o são” (WL/VM §1). Neste
momento, a verdade já aparece completamente destituída de seu
valor incondicional e é exposta, no limite, como uma forma específica de ilusão. À luz disso, não é descabido supor que justamente o
progressivo aguçamento dessa descrença no valor absoluto da verdade conduz a reformulação em seus manuscritos. O abandono da
necessidade de se pensar de acordo com os padrões exigidos por
uma verdade que se define por absoluta contraposição à ilusão, à
invenção de metáforas e à sedução o faz seguir um caminho diferente em A filosofia na época trágica dos gregos.
Para que seja possível corroborar essa hipótese interpretativa,
no entanto, convém analisar os comentários feitos por D’Iorio a respeito das mudanças sofridas nos textos nietzschianos que tratam
especificamente sobre o pensamento de Heráclito de Éfeso. Na descrição de Heráclito, tal como surge nas “Lições”, D’Iorio assinala a
importância dos comentários em que Nietzsche se remete diretamente
ao pensamento científico de sua época. E, por meio dessas remissões,
a intenção de Nietzsche, tal como foi detectada por D’Iorio, seria a
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de demonstrar a impossibilidade da permanência absoluta de
qualquer ente no tempo:
“Nas “Lições” sobre os pré-platônicos, Nietzsche ilustra o panta rei
heraclítico com a ajuda da psicologia da percepção temporal do famoso
naturalista Karl vom Baer. (...) Isto demonstra que não existe permanência absoluta. Nossa percepção da permanência de uma coisa e a
medida na qual nós a percebemos depende somente de nossa vitalidade
e do nosso ritmo cardíaco. (...) Em todo caso, a percepção de absoluta
imobilidade da parte de um ser vivo não implicaria a estagnação do
movimento cósmico. Mesmo o sistema solar não preservará sua configuração atual: ele está destinado a se extinguir quando as reservas de luz
e calor forem esgotadas. Nietzsche transpõe à escala cósmica a idéia do
absoluto devir, citando a teoria de Hermann Hemholtz (...)”.16
Na descrição que é feita em A filosofia na época trágica dos gregos, D’Iorio comenta a mudança na atitude de Nietzsche perante o
pensamento de Heráclito. Nesse livro, em vez de remeter a concepção heraclítica da temporalidade às mesmas teorias científicas que
faziam parte das “Lições”, Nietzsche faz um paralelo com Schopenhauer, de tal modo que fosse possível fornecer uma referência capaz de ser mais facilmente reconhecida por Wagner:
“Em A filosofia na época trágica dos gregos, ao contrário, a concepção da temporalidade em Heráclito é traduzida em termos metafísicos e comparada àquela de Schopenhauer, segundo a qual tudo que
existe no espaço, no tempo e na causalidade possui apenas uma
existência relativa. Esta referência, que poderia ser mais familiar a
Wagner, é, entretanto, inexata no que concerne a Heráclito, porque se a
seguirmos rigorosamente, a concepção de Schopenhauer conduz não à
negação da permanência, mas à negação do devir.”17
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
É possível, todavia, encontrar uma outra explicação para as
mudanças na atitude interpretativa de Nietzsche com respeito ao
filósofo Heráclito. Pode-se admitir que justamente o abandono de
uma “crença metafísica” – a crença na “verdade” – estaria norteando os comentários nietzschianos e o novo tipo de abordagem que
surge através deles. Talvez não fosse exatamente a intenção de
Nietzsche, no momento da elaboração de A filosofia na época trágica dos gregos, realizar a definitiva demonstração da inexistência da
permanência absoluta. A prova definitiva da verdade ou da falsidade acerca dessa doutrina não parece motivá-lo especialmente. Importa cada vez menos o grau de veracidade que possa ser demonstrado nesses sistemas – que nunca é absoluta, exceto para o seu
autor. O que passará a constituir sua principal fonte de interesse
será a tentativa de recriação de uma imagem dos pensadores envolvidos e esta apontará, em última instância, para a necessidade que
os levou a advogar em favor de suas doutrinas, em função da defesa
de determinados valores expressos através delas:
“Ora, os sistemas filosóficos só são inteiramente verdadeiros para os
seus criadores: os filósofos posteriores consideram-nos normalmente um
erro enorme (...) Quem, em contrapartida, se alegra com grandes homens
também tem sua alegria em tais sistemas, pois, mesmo que sejam inteiramente errôneos, não deixam de ter um ponto completamente irrefutável,
uma disposição pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do filósofo: assim como a partir de uma planta se podem
tirar conclusões sobre o solo” (PHG/FT, primeiro prefácio).
Como um botânico, em sua pesquisa sobre o solo, interessa a
Nietzsche, cada vez mais profundamente, a remissão às raízes morais da doutrina heraclítica do vir-a-ser, a perscrutação de seu subsolo
moral. Na descrição de Heráclito, feita no texto de A filosofia na
época trágica dos gregos, o que está fundamentalmente em jogo é a
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necessidade da justificação do vir-a-ser, daí a profunda importância
da remissão a Schopenhauer. Pouco a pouco a questão sobre a verdade ou a falsidade de sua doutrina vai cedendo lugar a esta outra:
por que foi necessário justificar a mudança, tratá-la como sintoma de
justiça, expressão desta e, através disso, contrapor-se a Anaximandro, para quem a existência do mutável era proveniente de um crime
posto na origem? É por isso, sobretudo, que a filosofia de Anaximandro surge com tamanha ênfase nas reformulações dos seus
escritos.18 As mudanças nos manuscritos parecem caminhar para a
intensificação da busca pelos substratos morais que motivaram a
afirmação da necessidade das doutrinas desses filósofos.
Em vez de perceber essas reformulações como uma tentativa de
conciliação com relação a Wagner, será necessário entendê-las como
uma indicação do caminho percorrido por Nietzsche em seus vários
experimentos com a linguagem e o pensamento, um desenvolvimento de sua capacidade de lançar suspeitas cada vez mais abrangentes
e cada vez mais específicas, um aperfeiçoamento contínuo em sua
capacidade de “ver além do ângulo” (cf. EH/EH, Por que sou tão
sábio, § 1). A sua maneira de escrever sobre os filósofos pré-platônicos
é, pois, modificada em função das descobertas e invenções que
marcam suas interpretações. Desatendendo a verdade enquanto
adequação integral ao objeto estudado ou prova definitiva da validade
de determinado juízo, abre-se então o espaço para novas possibilidades interpretativas. As experiências com o pensamento podem,
enfim, ser aprimoradas. Através delas, podem aparecer novas formas
de verdades, novos ângulos e enfoques interpretativos.
Essas mudanças nos manuscritos acentuam, de fato, uma característica que já estava presente em sua versão original, a descrição
da personalidade dos filósofos como tentativa de aproximação e
recriação de seus tipos. Em Humano, demasiado humano, obra escrita cerca de cinco anos após a confecção desses manuscritos,
Nietzsche retoma o seu pensamento sobre os pré-platônicos acen-
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
tuando justamente a experiência de interpretação como reconstrução de uma imagem do filósofo que fora perdida, uma reconstituição
do seu tipo:
“Mesmo dos tipos mais antigos a maioria foi mal transmitida pela
tradição; todos os filósofos, de Tales a Demócrito me parecem extremamente difíceis de reconhecer; mas quem é capaz de recriar essas figuras
move-se entre imagens do mais poderoso e puro dos tipos. Essa aptidão
é, sem dúvida, rara falta até mesmo aos gregos posteriores que se ocuparam da filosofia mais antiga (...)” (MAI/HHI § 261, grifo nosso).
Para colaborar com a tentativa de recriação dos tipos filosóficos
gregos, de reconstituição de suas imagens, Nietzsche faz apelo a
elementos importados de diversas manifestações artísticas. Cria,
então, para ilustrá-los, uma linguagem pictórica, refere-se a elementos da escultura e do teatro: “Vemos (...) como em uma oficina de
escultor, tais tipos” (ibid.).
Seria ainda possível ler A filosofia na época trágica dos gregos
como uma tentativa de recriação de personagens dentro do cenário
filosófico, uma experiência de expô-los em um contexto teatral. O
próprio título do livro estabelece uma comparação entre estes filósofos gregos e a tragédia. O texto, por meio dessa leitura, já apontaria para o entendimento da verdade enquanto experimentação com
o pensamento, para a exploração de novas possibilidades de lidar
com a filosofia. Nota-se isso na própria forma do livro e em seu estilo deliberadamente teatral. É, de certa forma, o que restou depois
que a vontade de verdade, cumprindo seu último dever, realizou seu
destino, lançando-se ao fundo. Poderiam ser apontadas, no livro em
questão, diversas tentativas de recriação das ações desses filósofos
como personagens em uma peça. Assim, por exemplo:
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“Tales: impelido pela imaginação, ‘salta de possibilidade em possibilidade, (...) chega a apanhar certezas em vôo’; Anaximandro: ‘vivia
como escrevia, falava de maneira tão solene como se vestia, levantava
a mão e pousava o pé como se esta vida fosse uma tragédia na qual
tivesse sido predestinado a fazer o papel de herói’; Heráclito: ‘a face de
Herácli-to transforma-se aos nossos olhos, apaga-se o brilho orgulhoso
dos seus olhos, traça-se no seu rosto uma ruga profunda de renúncia
dolorosa e de impotência’; Parmênides: ‘parece feito de gelo e não de
fogo, e irradia à sua volta uma luz fria que queima (...) dele se apoderou o calafrio da abstração.’”
E o cenário também é preparado:
“‘Enquanto na figura de Tales o tipo universal do filósofo só sobressai
como de entre o nevoeiro, a imagem do seu grande sucessor já nos fala
muito mais distintamente;’ ‘Anaximandro deteve-se ante as sombras profundas que cobriam como fantasmas gigantescos o cume de uma tal
concepção de mundo’; ‘No meio dessa noite mística em que estava envolto
o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um relâmpago divino’”. (PHG/FT §3, 4§, 5§, 6§ e §9)
Tal como estas descrições foram enumeradas, é possível retirar
diversos outros exemplos dessa forma de reconstituir a imagem desses filósofos fazendo apelo à recriação dramática dessas personagens. E, à guisa de conclusão, vale trazer à tona o comentário de
Sarah Kofman que, em seu livro Nietzsche et la scène philosophique,
sugere uma concepção que se aproveita exatamente desta característica do livro de Nietzsche. É, então, descrita uma cena que se
passa entre Nietzsche, Heráclito, Empédocles e Demócrito. Nesta
cena, Kofman interpreta a personagem Nietzsche e nos fala através
dele. Que se dê, pois, a última palavra ao filósofo:
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
“Fazer-me arqueólogo e ainda escultor para tentar arrancar o segredo desses exercícios do grande artista que esculpiu esta bela estátua da
qual só nos restam fragmentos, de tal sorte que ‘o que foi realmente
produzido, permaneceu para sempre segredo de ateliê’.
Pintor, arqueólogo, escultor? Pela escrita. Fazer reviver como em um
quadro, os primeiros filósofos evitando-se pegar como modelo Gomperz e
seus enjoativos resumos da vida dos pensadores gregos, como se uma vida
pudesse ser resumida. Pintar não mais consistirá em contar ‘tudo’, a supor
que isso seja possível. Ser ‘breve’, esta será minha regra: não existe pintura sem seleção, sem o uso de um crivo, de uma câmara obscura que
peneire o ‘real’. Querer tudo contar ou ver tudo aquilo que é, isto faz
parte de uma outra categoria de espíritos que não a minha, os espíritos
‘anti-artísticos’.
Pintar tendo como modelo Diógenes Laercio, dando nova vida aos
filósofos do passado com a ajuda de uma ou duas anedotas bem escolhidas. Hegel me desaprovaria, ele que reprova Diógenes por contar ‘anedotas maldosas’, que estima toda anedota como maldosa, pois não passa de palavrório inessencial. A anedota, ao contrário, não é o equivalente
de um ‘toque’ que sublinha o essencial, mas a beleza, a única coisa
irrefutável, a única que permanece quando a verdade do sistema desapareceu?”19
Abstract: We hope to bring out a comparative reading of two texts in
which Nietzsche specifically expounds the pre-platonic philosophers:
Lessons on pre-platonic philosophers and Philosophy in Greek tragic age. In
the light of this approach, the article aims at pointing out the motivations that
gave rise to stylistic and argumentative modifications within these texts.
Keywords: pre-platonic philosophers – style – truth
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notas
Sobre as diversas fazes de elaboração de seu trabalho, ver
D’Iorio 1, “Les manuscrits”, p. 75: “A primeira redação
completa é o texto das “Lições” que nós propomos aqui.
A segunda redação corresponde ao primeiro ensaio de
remanejamento (incompleto) [...] A terceira redação (ainda
incompleta, onde faltam as figuras de Empédocles, de
Leucipo e de Demócrito, dos pitagóricos e de Sócrates)
corresponde ao manuscrito enviado a Bayreuth (...) a partir do qual foi estabelecido o texto que é habitualmente
publicado sob o título de A filosofia na época trágica dos
gregos. Em outro, um compêndio de planos e rascunhos
[...] precedentes, que acompanham e seguem as três redações sucessivas”.
2
D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par
l’esprit scientifique”, p. 45.
3
Nietzsche 7, p. 83.
4
D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par
l’esprit scientifique”, p. 23.
5
Ibid. p. 28.
6
Ibid., p. 14. Que se leia também: “Com exceção de breves
notas sobre Empédocles, o grande afresco traçado nas
“Lições” dificilmente poderia ser conciliável com O nascimento da tragédia. O livro gêmeo arriscava vir a ser um
perigoso adversário da metafísica da arte e da reforma
cultural wagneriana: a força mítica coesiva da arte não
entrava em acordo com o espírito analítico e desagregador
da filosofia” (ibid., p. 34).
7
Ibid., p. 34. Também a esse respeito: “Nos cadernos que
vão do verão de 1872 à primavera de 1873, Nietzsche
tenta modificar sua moldura original de modo a fazê-la servir à causa de Bayreuth” (ibid., p.34).
1
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“Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e A filosofia na época trágica dos gregos:
um ensaio comparativo
Cf. ibid., p. 39: “Ele (Nietzsche) simplesmente suprimira
algumas referências à ciência e à filosofia contemporâneas
e dotara estas figuras antigas de um caráter mais artístico e
mais intuitivo. Ele queria, como em O nascimento da tragédia, o reconhecimento e a aprovação do mestre.”
9
“Todos esses homens são talhados numa só rocha: seu
pensamento e seu caráter são unidos por uma estreita
necessidade” (Nietzsche 7, p. 82).
10
“Estes primeiros filósofos tiveram que descobrir o caminho que levava do mito às leis da natureza, da imagem ao
conceito, da religião à ciência” (Ibid., p. 84).
11
Ibid., p. 82.
12
Ibid, p. 84.
13
Ibid., p. 81.
14
Ibid., p. 82.
15
D’Iorio 1, “La naissance de la philosophie enfantée par
l’esprit scientifique”, p. 13.
16
Ibid., p. 32 .
17
Ibid., p. 32.
18
Nas “Lições”, Nietzsche inicia o capítulo sobre Heráclito
através de uma biografia do filósofo de Éfeso; em PHG/
FT, o pensador alemão parte de uma contraposição direta
com o pensamento de Anaximandro.
19
Kofman 2, pp. 18-19.
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referências bibliográficas
1. D’IORIO, Paolo. “La naissance de la philosophie enfantée par l’esprit scientifique” e “Les manuscrits”;
in Les philosophes préplatoniciens; Paris, Editions de
L’eclat, 1994.
2. KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la scène philosophique. Paris, Union Générale d’Éditions, 1979
3. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio
a uma filosofia do futuro, tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
4. _______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
5. _______. A filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução Maria Inês Madeira de Andrade. Lisboa, Edições
70, 1995.
6. _______. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo, Cia das Letras, 2000.
7. _______. Les philosophes preplatoniciens. Apresentação
e notas: Paolo D’Iorio; tradução Nathalie Fernand.
Paris, Editions de L’eclat, 1994.
8. _______. Kritische Studienausgabe: Sämtliche Werke em
15 Vols. Ed. Organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari. Berlim/Nova Iorque, Walter de Gruyter,
1980.
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Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista
Odium fati
Emil Cioran, a hiena pessimista*
Paulo Jonas de Lima Piva **
Resumo: Nascido na Romênia em 1911, Cioran passou a maior parte de
sua ociosa e entediada existência em Paris, lapidando com ironia e com
um fino desespero um pensamento iconoclástico, autofágico e nadificante.
Morreu em 1995, deixando um pessimismo original expresso em contundentes fragmentos e aforismos. Nosso objetivo é tratar de alguns pontos
dessa filosofia fulminante, dessa filosofia do odium fati, na qual sem Deus
tudo é Nada, e Deus, Nada supremo, tendo provocativamente como pano
de fundo a sua perspectiva mais antípoda: o amor fati nietzschiano.
Palavras-chave: ceticismo – ateísmo – pessimismo – niilismo – amor
fati – odium fati
“A vida é doce”. Lobão
Debruçar-se sobre a obra de Emil Cioran é iniciar uma irreversível e temerária expedição pelo Nada. Façamos isso imaginando uma hiena, o animal desconfiado, perigoso e arredio das floresComunicação apresentada no IV Encontro Interno de Pesquisa em Filosofia
realizado na Universidade Estadual de Campinas, nos dias 28, 29 e 30 de
novembro de 2000, e no VI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea
realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, no período de 22 a
26 de outubro de 2001.
**
Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e
bolsista da FAPESP.
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tas e das inóspitas savanas. Atenhamo-nos atenciosamente às suas
principais características: trata-se de um animal carnívoro, de uma
fera muito astuta e veloz, que perambula pelas selvas com sutileza,
nas pontas dos dedos, sem se fazer notar; seus hábitos são noturnos,
e é um predador que se alimenta de filhotes e das sobras das presas
dos predadores maiores, quase sempre disputadas com os abutres;
em última instância, é um animal que sobrevive dos destroços de
carcaças abandonadas; ademais, ela é também moradora de tocas
e de cavernas, e tem a curiosa mania de, em todo crepúsculo, dirigir a sua mandíbula atroz para o sol declinante e emitir uma espécie de latido ou de uivo; já em meio à alcatéia, emite um som que
mais se parece com uma risada, com uma sarcástica, fulminante e
melancólica gargalhada.
A imagem, mais exatamente a metáfora, é às vezes muito mais
esclarecedora e precisa do que a mais rigorosa e complexa das definições racionalistas. Sendo assim, transportemos essa hiena ao
reino embevecedor das metáforas, ao lugar no qual nada é
cartesianamente claro e distinto. Nesse universo, imaginemos essa
hiena fora da sua realidade e do seu habitat; imaginemos uma hiena filosofante, uma hiena especuladora, entediada, bocejante e com
uma insônia irremediável, confortavelmente acomodada em uma
cadeira de balanço, no cume de um despenhadeiro, com fones de
ouvido, ouvindo Bach, rodeada de prostitutas e de ruínas, declamando com sarcasmo ao vazio do mundo, ao Nada do ser, no pôrdo-sol da razão, o seu pessimismo humano e, sobretudo, o seu pessimismo cósmico. Permitamo-nos esse delírio por um instante. Tal
delírio, ao mesmo tempo corrosivo, extravagante e até divertido –
zaratustriano num certo sentido –, sintetiza e expressa com perfeição o pensamento de Emil Cioran.
Cioran é considerado por alguns críticos o escritor da língua
francesa mais importante deste século, ao lado de Paul Valéry. Mas
ele é antes de tudo um filósofo, um pensador que dedicou todo o
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seu (mal) estar no mundo ao exame dos temas mais essenciais ao
homem – à “investigação voluntária dos aspectos mais detestados e
infames da existência” (KSA XIII, 16 [32]), diria Nietzsche –, isto
é, às questões metafísicas (Deus, o Mal, o efêmero, o sentido da
vida, a morte). Anti-sistemático e lacônico, é situado na tradição que
vai dos moralistas franceses a Wittgenstein, passando por
Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche. Curiosamente, Cioran foi
fascinado pela figura da hiena, pela sugestiva simbologia subjacente
a esse animal. Prostitutas, marionetes, loucos, bêbados, santos e
porteiros são outras imagens recorrentes em sua obra, mas não com
a mesma força e com o mesmo papel estratégico da hiena. Duas
seriam as justificativas da sua obsessão pelo animal: a primeira delas, por ser Cioran um cultivador da ironia e do riso demolidores; a
segunda, por ser um obcecado pelo pior, ou seja, por ser um colecionador de ruínas filosóficas, em especial, das carcaças metafísicas, religiosas, estéticas e morais da tradição, deixadas em grande
parte por Nietzsche, com a sua boa nova “Deus está morto!” (Cf.
Za/ZA, Prólogo, § 2).
Em História e utopia, por exemplo, uma reunião de ensaios filosóficos e políticos publicada em 1960, num momento em que a
revolução e o socialismo eram a esperança de quase toda a intelectualidade mundial, Cioran escreve, na contramão dos “bem-pensantes”, e para o nosso assombro, o seguinte: “Um mundo sem tiranos seria tão enfadonho quanto um jardim zoológico sem hienas”
(Cioran 8, p.66). Oito anos antes, em Silogismos da amargura, a
hiena aparece em duas passagens muito instigantes. Na primeira
delas, como uma metáfora da nossa selvageria astuciosa e predatória em relação ao “próximo”. Para Cioran, somos todos hipócritas,
todos predadores dissimulados, somos todos carniceiros uns dos
outros; cada ato generoso, cada atitude de desprendimento, cada
sorriso simpático seria um engodo, uma sofisticada armadilha; enfim, como escreve Cioran, “todo ato lisonjeia a hiena que existe em
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nós” (Cioran 7, p. 52). Na segunda passagem de Silogismos da
amargura em que a imagem da hiena é evocada, Cioran enfatiza
que, além de animais traiçoeiros e mesquinhos, somos também animais assolados por uma dupla desgraça: somos todos dotados de
razão e, desde os espermatozóides, estamos quimicamente ligados
à palavra: estas seriam as causas fundamentais da maior parte dos
nossos infortúnios. Ser dotado de razão significa viver à mercê da
nossa imaginação; esta, por sua vez, seria alimentada por uma vontade de verdade, no fundo, por uma vontade de ilusão e de felicidade. Por outro lado, ser uma “raça de tagarelas, de espermatozóides
verbosos” (ibid., p. 17), como afirma Cioran, significa obscurecer o
mundo com mantos verbais. Em outras palavras, sobretudo em filosofia, o homem, valendo-se da sua imaginação, da vontade
subjacente a ela, e da palavra, revela-se um animal delirante – somos “formados na escola dos veleidosos” (ibid., p. 11) –, e, o que é
pior, um animal delirante, metafísico, dogmático e intolerante, um
ser que não tem consciência do seu próprio temperamento fantasioso
e do seu próprio dogmatismo, de modo que é essa imaginação e
essa vontade que fazem os homens criarem deuses, messias, paraísos, utopias, absolutos e universais; é esse lado imaginativo e desejoso da razão que faz a humanidade engendrar sistemas metafísicos,
ideologias políticas e religiões, e entregar-se a eles de modo passional
e insensato, dando origem ao fanatismo, o qual vem fazendo da história um palco de terríveis carnificinas.
Nesse sentido, no caso da filosofia em particular, Cioran resume a história de todas as correntes filosóficas, de todos os grandes
sistemas, à história dos devaneios idiossincráticos de solitários rancorosos: “A história das idéias é a história do rancor dos solitários”
(ibid., p. 12), sentencia. Ou seja, no entender devaneador,
idiossincrático e rancoroso de Cioran – ele não se excetua –, o mundo supra-sensível de Platão, a mônada leibniziana, o espírito absoluto de Hegel, a filosofia kantiana com os seus diversos juízos, a
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vontade de potência de Nietzsche, além da iconoclastia do seu próprio pensamento, nada mais seriam do que meras fábulas particulares, sofisticados delírios pessoais, construções verbais enfeitiçadoras e inanes, confissões autobiográficas, enfim, garrulices parciais e
desprovidas de objetividade. Filosofia, portanto, seria eufemismo
de mera opinião, de simples doxa, eufemismo de desabafo, de explosão (cf. Cioran 9, p. 123). De onde se segue que, na perspectiva
cioraniana, a filosofia deve ser entendida como um gênero literário
específico, como fraseologia prolixa, o que faz dos tão propalados e
idolatrados sistemas da tradição reflexiva pequenos universos
inverossímeis, idiossincráticos e vaniloqüentes. Se quisermos ousar
um pouco mais, os discursos filosóficos em torno da Verdade, do
Bem e do Belo foram até hoje, aos olhos de Cioran, complexas e
extravagantes articulações de jargões herméticos e de pretensões
descomedidas, em suma, o mais monumental e vergonhoso
blablablá. Em última análise, os grandes sistemas filosóficos seriam
tão estapafúrdios e oníricos quanto a metáfora (zaratustriana) da
hiena filosofante que utilizamos no início. E por que tudo isso? Porque a nossa razão é megalomaníaca, tem sede de absoluto, de totalidade, de universalidade, de objetividade, de transcendência, no
fundo, tem uma necessidade visceral de encantamento e ilusão. Sem
a idéia do absoluto e sem a idéia de um fundamento e de uma
transcendência, o homem se desespera. Dito de outro modo, sem a
idéia de que há verdades absolutas na filosofia e na moral, sem a
idéia de um Deus, de um ponto de Arquimedes ou de um outro
mundo, o ser humano depara-se com a tentação do suicídio. Portanto, é para não dar cabo das suas vidas que os seres humanos
inventam deuses, solos e verdades. E é para continuarem vivos que
eles crêem às cegas. Em contrapartida, é contra essa embriaguez, é
contra esse entorpecimento desesperado, temerário e megalomaníaco
oriundo de um híbrido de razão e de fé que se confundem, que
Cioran invoca o ceticismo: “O ceticismo derrama demasiado tarde
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suas bençãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas
convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal” (Cioran 7,
p. 80). E como corolário da suspensão cética do juízo temos o silêncio. Sendo a metafísica uma engenharia de sons e de símbolos que
deturpa, falsifica e recria o mundo, um jogo de palavras ocas capaz
de entorpecer e de viciar almas sensíveis e delicadas, Cioran propõe: “Não há salvação possível fora da imitação do silêncio” (ibid.,
p. 17). Calar-se, capitular-se à afasia, é, portanto, um antídoto eficaz contra os descontroles da imaginação, a atitude mais sensata de
um filósofo ao término aporético de cada investigação. Por aproximar-se muito do silêncio, o uivo é outra possibilidade de desprendimento do Logos oracular aventada por Cioran: “Se tivesse que
renunciar a meu diletantismo, me especializaria no uivo” (ibid., p.
48). Todavia, embora sejamos “animais metafísicos pela podridão
que abrigamos dentro de nós” (Cioran 6, p. 139), embora nossa
loquacidade seja pré-natal (cf. Cioran 7, p. 17), que o filósofo tenha
a lamentável “mania verbal” e que toda palavra seja sempre uma
palavra a mais, Cioran sugere aos aniquiladores de galimatias e aos
desiludidos com os discursos que se aproximem do uivo e do mutismo expressando-se por meio de textos lacônicos inspirados no telegrama, no epigrama e no epitáfio (cf. Cioran 7, p. 14).
Para finalizar a ocorrência da imagem da hiena na obra de
Cioran – ele ainda define nossa alma como “hiena patética” (Cioran
6, p. 36) –, lemos em um dos seus fragmentos póstumos, carregado
de ironia, o seguinte: “Eu estou maravilhosamente apto a imaginar
o desespero das hienas” (Cioran 10, p. 28). Imaginemos por um
instante o que viria a ser o desespero de um animal que parece
viver gargalhando. O desespero na gargalhada, a gargalhada no desespero: puro paradoxo, o que no caso de Cioran não é nenhum
problema. Ele é considerado por alguns o “mestre do paradoxo”,
além de “arauto do pessimismo”, de “niilista radical”, de “pensador da amargura”, de “dândi da misantropia”, de “místico sem
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objeto”, de “místico enraivecido”, de “gnóstico”, de “moralista rigoroso”, entre outros epítetos. A essas classificações poderíamos
acrescentar mais uma: Cioran foi uma hiena pessimista, ou seja, ele
filosofou como uma hiena. Mas o que significa filosofar como uma
hiena? Filosofar como uma hiena significa levar a investigação e a
análise metafísica às últimas conseqüências. E quando levamos a
razão às últimas conseqüências, quando utilizamos de maneira radical e impiedosa a nossa razão no plano especulativo, no âmbito
da metafísica particularmente, quando empregamos de modo corajoso, ousado e persistente a nossa reflexão, não sobra nada sobre
nada. Pensar como uma hiena significa, portanto, intensificar o poder corrosivo, desmistificador e desmitificador do pensamento em
relação a todas aquelas certezas e verdades que fomos obrigados a
aceitar e a propagar desde a manjedoura. Quando filosofamos assim, aquilo que nos parecia inexpugnável, revela-se uma frágil ficção. Nossas verdades até então sagradas evaporam-se no ar, caem
cadáveres sobre os nossos pés. E este filósofo-hiena alimenta-se
desses despojos, nutre-se da carcaça das fábulas metafísicas e religiosas que antes eram para nós as verdades inabaláveis e redentoras oferecidas pela fé. A ironia desenganada de nossa hiena pessimista destrói todos os fundamentos, e com eles desmorona toda uma
cosmovisão na qual tudo era harmônico, lógico, simples, enfim,
encantado. Chegamos, portanto, ao Nada. “Só há iniciação ao nada”,
escreve Cioran, “e ao ridículo de estar vivo” (Cioran 6, p. 20). E o
que é o Nada de acordo com Cioran? Significa, metafisicamente
falando, a ausência de um fundamento absoluto e universal na
ontologia, na epistemologia, na moral, na estética e nos seus desdobramentos. Trocando em miúdos, o ateísmo de Cioran inviabiliza a
velha garantia do mundo das essências.
Lemos em Silogismos da amargura: “Por necessidade de recolhimento, livrei-me de Deus, desembaracei-me do último chato”
(Cioran 7, p. 50); lemos também: “Fora da matéria, tudo é música:
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Deus mesmo não passa de uma alucinação sonora”(ibid., p. 59); e
mais: “Os diletantes não querem saber de Deus; os loucos e os bêbados, esses especialistas da divindade, fazem dela o objeto de suas
ruminações”(ibid., p. 63); por fim: “Se acreditasse em Deus, minha
fatuidade não teria limites: passearia nu pelas ruas...” (ibid., p. 59).
Em Breviário de decomposição, livro publicado em 1949, Cioran
refere-se a Deus como “causa inútil, absoluto sem-sentido, modelo
dos bobos, passatempo de solitários, ouropel ou fantasma conforme
divirta nosso espírito ou freqüente nossas febres” (Cioran 6, p. 138).
O pessimismo de Cioran é, sem dúvida nenhuma, uma das conseqüências possíveis do ateísmo, e vale ressaltar, a mais temerária
delas. Deus não existe, e agora? Se eliminamos a idéia de Deus da
visão tradicional de mundo, daquela cosmovisão baseada na religião, tudo perde o sentido, tudo fica sem significado, sentimo-nos
órfãos na galáxia, produtos do acaso; junto com a idéia de Deus
desmantela-se a idéia de uma moral absoluta e universal, revela-se
absurda a idéia de uma alma espiritual, e desaparece a esperança
numa eternidade post-mortem. Com o ateísmo, adquirimos consciência da nossa insignificância no universo, do quanto a nossa vida é
curta e precária. Não há mais um Deus para nos recompensar, para
nos punir, nos vigiar, ou para nos proteger. Resta apenas o indivíduo na sua solitária singularidade, a sua consciência e uma relativa
e limitada liberdade. Quando se perde a fé nesses antigos dogmas,
temos a lucidez – “A lucidez é o nada”, declara Cioran (cf. Jakob
13, p. 5) –, melhor dizendo, a “clarividência, liberdade diante do
delírio ou da loucura” (Brum, 1, p. 8); somos arremessados ao Vazio e ao Nada, por conseguinte, a vida perde a sua estabilidade. A
respeito desta situação, por assim dizer, karamazoviana, de que sem
Deus tudo é permitido, implicação desesperadora num primeiro
instante, Cioran escreve: “Sem Deus tudo é nada; e Deus? Nada
supremo” (Cioran 7, p. 49).
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O que Cioran quer dizer com “Sem Deus tudo é nada; e Deus?
Nada supremo”? No fundo, ele quer dizer o seguinte: os deuses
nunca existiram, sempre foram mitos que o homem considerou como
reais; em outros termos, sempre foram Nadas reverenciados pelos
quais os povos historicamente mataram e morreram. Por outro lado,
como vimos, a cosmovisão tradicional sempre teve na fé em Deus o
seu alicerce vital. Uma vez evaporado este alicerce, tudo vem abaixo, ou seja, Tudo vira Nada. Dito de outro modo, no que concerne
a Deus, “se o idolatramos, é o Ser; se o repudiamos, é o Nada”
(Cioran 6, p. 138). O que fazer diante disso, como viver em meio
aos destroços de Deus? Ou melhor: é possível viver em meio aos
destroços de Deus, em meio ao Nada consciente de si? Uma filosofia assim não seria um convite ao suicídio?1
Por incrível que pareça, Cioran sobreviveu ao seu pessimismo,
não se curvou em face do insuportável ônus do Nada consciente de
si. Não se matou; ao contrário, morreu com 84 anos, em 1995, em
Paris, de mal de Alzheimer. Nasceu curiosamente na Romênia, na
Transilvânia, em 1911. Seu pai era padre ortodoxo, sua mãe era
uma incrédula, de quem herdou o gosto por Bach. A propósito,
declara Cioran a respeito de Bach: “Se há alguém que deve tudo a
Bach esse alguém é Deus” (Cioran 7, p. 73). Cioran formou-se em
filosofia em Bucareste, estudou na Alemanha de 1933 a 1935 –
período suficiente para simpatizar-se com o nazismo e em seguida
decepcionar-se com a mesma intensidade –, depois foi para a França escrever uma tese sobre Nietzsche. Durante três anos viveu com
a sua bolsa de estudos sem nada produzir. Totalmente avesso ao
trabalho, cultivava o valor aristocrático do ócio. Em virtude disso,
leu muito. Aliás, foi um aristocrata em quase todos os sentidos,
mesmo não tendo um franco no bolso. Durante vários anos, almoçou e jantou no restaurante universitário da Sorbonne, a preço subsidiado, até ser jubilado da universidade por ter excedido-se no seu
tempo de vida acadêmica. Viveu quase miseravelmente morando
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em apartamentos precários e ganhando um dinheiro aqui e outro
acolá com biscates. Mas o ponto de partida, o fator determinante da
sua filosofia desencantada e sarcástica é a insônia, como nos mostra
sua correspondência com o filósofo espanhol Fernando Savater:
“Meu estado de saúde, afortunadamente mau, é em grande parte
responsável pela direção, pela cor dos meus pensamentos. Comecei
a ser ‘eu’ graças à insônia, a essa catástrofe a que devo tudo e que
marcou profundamente a minha juventude” (Cioran 11, p. 17).
Cioran contava então com 20 anos. Tornou-se imprestável. Como
não dormia, não conseguia dar aula. Foi um fracasso como professor de filosofia de um liceu. Passava a madrugada toda perambulando pela cidade conversando com guardas-noturnos ou se relacionando com prostitutas. E este é outro dado importante: por
experiência, Cioran via nos prostíbulos uma fonte rica de sabedoria. O método da sua filosofia (se é que tem um) é o de fazer das
suas idéias suas prostitutas, fazer da filosofia uma libertinagem do
espírito.2 Segundo ele, “só o bordel é compatível com a metafísica”
(Cioran 6, p. 164), logo, devemos nos relacionar com todas as idéias,
com todas as teses e doutrinas sem nos apegarmos a nenhuma.
Cioran chega a asseverar que “um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do
sorriso e da destruição” (Cioran 7, p. 16). O pensar então deve ser
um grande experimento. Fazer da filosofia uma promiscuidade, fazer das nossas idéias putas, significa proteger-se do dogmatismo e,
conseqüentemente, do fanatismo. O pensador deve estar aberto a
todas as experiências reflexivas possíveis, deve ser um libertino da
razão. Em outras palavras, a filosofia pensada deste modo nos torna
imunes à sedução perniciosa dos dogmas e das verdades absolutas,
seria o “método” mais lúcido e mais inofensivo de se fazer metafísica, como nos mostra Cioran no texto “Filosofia e prostituição”, de
Breviário de decomposição: “O filósofo, desiludido dos sistemas e
das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo,
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deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos
dogmática: a prostituta” (Cioran 6, p. 86).
Mas voltemos à insônia. O fato de não dormir fez de Cioran
uma personalidade exaurida e deprimida. Esse estado fisiológico
levou-o a ter uma percepção do tempo bastante diferente da concepção do tempo daquele que dorme. O insone cioraniano enxerga
o tempo como algo eternamente contínuo, enquanto aquele que
dorme vive a cada manhã a ilusão de um novo dia, a ilusão de que
o tempo é descontínuo, que acaba e recomeça. É dessa época o
primeiro livro de Cioran. Ele contava na ocasião com 22 anos. O
nome do livro: Nos cumes do desespero. A insônia era tão terrível,
tão insuportável, que ele pensou em se matar imediatamente após
publicá-lo. O livro seria uma espécie de testamento pessimista. Entretanto, o livro foi publicado – e premiado na Romênia, diga-se de
passagem – e ele não se suicidou. Certa feita, não agüentando mais
a insônia e a depressão, Cioran desabafou à sua mãe: “Mãe, não
agüento mais!”. Sua mãe então disse-lhe impassível: “Se eu soubesse teria feito um aborto” (Jakob 13, p. 4). Esse é outro momento de
extrema importância do pensamento de Cioran: além da insônia terlhe dado a consciência da continuidade ininterrupta e do vazio do
tempo, a afirmação lúcida de sua mãe revelou-lhe outros dois aspectos fundamentais da existência: o acaso e a gratuidade. Sua vida
carecia de destino e de necessidade. Se ele existisse ou não, as coisas continuariam existindo do mesmo jeito. Dito de outro modo,
somos totalmente insignificantes em face do universo, todos prescindíveis do ponto de vista da matéria. A propósito, sobre a vida,
Cioran faz vários julgamentos. Em Breviário de decomposição, por
exemplo, Cioran desabafa: “Merda de existência miserável!” (Cioran
6, p. 163). Em Silogismos da amargura, por sua vez, Cioran é implacável em várias passagens. Numa delas, sentencia: “Mais que
um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte,
nem mesmo a poesia conseguem corrigir” (Cioran 7, p. 20). Em
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outra passagem, Cioran define: “A ‘vida’ é uma ocupação de inseto”
(Cioran 7, p. 55). Em outra, lemos: “Alguém emprega continuamente a palavra ‘vida’? Saiba que é um doente” (ibid., p. 33). Para
finalizar, detona um dos seus mais aniquiladores aforismos: “A vida,
esse mau gosto da matéria” (ibid., p. 56).
Para um iconoclasta melancólico feito Cioran, que pulveriza tudo
com ironia e deboche, que não encontra na vida nenhum sentido,
nenhum valor – “Repetir-se mil vezes por dia: ‘Nada tem valor neste mundo’, encontrar-se eternamente no mesmo ponto e rodopiar
tolamente como um pião...” (Cioran 6, p. 96) –, e que acha que
não vale a pena viver, o suicídio parece ser o seu destino lógico e
inevitável. Sendo assim, por que então não se matou?
Cioran tem várias justificativas para a recusa do suicídio e para
a sua permanência na vida. Ele declara, por exemplo, que quem
não tem nenhuma razão para viver, do mesmo modo não teria nenhuma para morrer (Cioran 7, p. 56). Todavia, poderíamos retrucá-lo com o seguinte argumento: ora, Cioran, não ter nenhuma razão para viver não seria uma boa razão para se suicidar? Outra
justificativa de Cioran poderia ser a seguinte: suicidar-se é um ato
de fé (cf. Savater 18, p. 152), é uma postura que deriva de um
assentimento a uma tese pessimista que se julga verdadeira. Como
ele é um cético na medida em que duvida do seu próprio pessimismo e do seu próprio ceticismo, como ele ri de si mesmo e destrói o
seu próprio pensamento, ele jamais se mataria por acreditar que a
vida não tem sentido. E se um dia ele mudasse de idéia, e se descobrisse enganado e passasse a ver um sentido em tudo? Cioran sugere também que um pessimista pode se acostumar com o absurdo e
se resignar em face do Nada, abandonando assim a idéia de se matar. Outro fator que poderíamos acrescentar às justificativas de
Cioran é a resistência natural do nosso instinto de conservação à
sedução da forca, do brilho da navalha ou do apertar do gatilho.
Esse instinto de conservação manifesta-se, por exemplo, na fé:
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“‘Quando faço a barba’, me dizia um semilouco, ‘quem, senão Deus,
me impede de cortar a garganta?’ – a fé seria apenas, afinal da
contas, um artifício do instinto de conservação. Biologia por toda
parte...” (Cioran 7, p. 89). Por último, Cioran sugere que o riso –
segundo ele, “reservado aos iniciados” (ibid., p. 79) – permitiria ao
pessimista manter-se em sua incoerência. Ao invés do suicídio, o
pessimista cioraniano parece optar por uma paradoxal e estridente
gargalhada perante o Nada; ao invés do drama e do choramingar
de outros pessimismos, o pessimista cioraniano decide pelo humor
e pela banalização, os quais rejeitariam a morte voluntária sem afirmar de maneira apaixonada e trágica a vida. Em outras palavras,
Cioran, ao modo da hiena, ou seja, em meio a carcaças, uivos e
gargalhadas, reduz a existência de um modo geral a uma trágica
piada. A propósito, José Thomaz Brum observa: “Pessimismo cósmico, fatalismo e niilismo banham sua obra exigente e severa, onde
o riso é contraponto para uma lucidez implacável” (Brum 1, p. 9).
Trata-se, no fundo, de um odium fati incompleto, de um odium
fati que não se realiza plenamente em virtude das objeções céticas
e cínicas do filósofo. Portanto, o ceticismo, o hábito de existir, a
resignação, a resistência do instinto de conservação, e a negação
debochada e cínica da vida fariam desse pessimista um “veterano
da dor”, um “aposentado do suicídio” (Cioran 7, p. 91). No entender de Cioran, o suicídio deveria ser mesmo uma decisão dos
otimistas (ibid., p. 56), ou, mais precisamente, uma opção daqueles
otimistas frustrados com as promessas do seu próprio otimismo, uma
atitude daqueles otimistas que choram viúvos diante do fracasso dos
seus projetos humanistas e do remorso de terem protagonizado catástrofes. Hitler, por exemplo, teria tentado salvar a civilização pela
barbárie (cf. ibid., p. 42). De qualquer forma, a questão permanece: como um pessimista assim tão radical consegue sobreviver ao
seu pessimismo? Como uma pessoa que não crê em nada, que duvida o tempo todo até de si mesmo, um indivíduo sem ilusões nem
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esperanças, que passa os seus dias a escrever fragmentos, a ler romances, a ouvir Bach e a se entediar, como pode alguém assim continuar vivendo? A essa questão, Cioran responde o seguinte: “O
pessimista deve inventar cada dia novas razões de existir: é uma
vítima do ‘sentido’ da vida” (Cioran 7, p. 16). O que ele quer dizer,
em outras palavras, é que a vida de um niilista incoerente, isto é,
que a vida de um pessimista que não se mata, deve ser movida por
pequenas razões cotidianas. Cioran afirma ainda que, para tentar
se adaptar à vida, é preciso mudar constantemente de desespero
(cf. ibid., p. 86).
Por ser um grande desiludido com a filosofia – “Afastei-me da
filosofia no momento em que para mim se tornou impossível descobrir em Kant alguma fraqueza humana (...)” (Cioran 6, p. 54) –,
com a razão – “As análises da insônia desfazem as certezas” (ibid.,
p. 164) – e com o homem – este, um fracasso já com Adão (cf.
Cioran 7, p. 82) –, Cioran nunca teve nenhuma pretensão de ser
coerente. Aliás, como foi aludido, Cioran é um especialista em paradoxos. Ao contrário do que parece, Cioran não visou a induzir
ninguém ao suicídio. Por outro lado, evidentemente, Cioran também não instigou ninguém a amar a vida. O que ele diz é que as
ilusões são o fundamento de uma vida suportável (cf. Jakob 13, p.
5). Quanto mais ilusões, quanto mais esperanças e mitos existirem
na vida de um homem, mais suportável será para ele existir. Nesse
sentido, destruir as fábulas que a nossa vontade de ilusão e de felicidade introduz nas coisas e nos fenômenos, é um empreendimento
camicase. Se Cioran, que leu muito os místicos e os escritos budistas, pudesse prever as conseqüências do seu modo tão radical e tão
corrosivo de pensar, certamente nunca teria questionado a sua primeira ilusão. Seria bem melhor assim. O próprio Cioran várias vezes se lamenta de ter uma ilusão consciente, isto é, de ter uma ilusão que tem a consciência de que é uma ilusão – o seu pessimismo
talvez: “Espírito positivo corrompido, o Destruidor acredita ingenua-
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Odium fati: Emil Cioran, a hiena pessimista
mente que vale a pena demolir verdades. É um técnico às avessas,
um pedante do vandalismo, um evangelista extraviado” (Cioran 7,
p. 51). Enfim, Cioran sugere que os iludidos que não são cônscios
de suas ilusões são seres abençoados; é o caso dos que têm esperanças: “Quando me lembro que os indivíduos são apenas gotas de
saliva que a vida cospe, e que a vida mesma não vale muito mais
em comparação com a matéria, dirijo-me ao primeiro bar que encontro com a intenção de nunca mais sair dele. E, no entanto, nem
sequer mil garrafas me dariam o gosto da Utopia, dessa crença em
que algo ainda é possível” (ibid., p. 86).
E aqui retomemos pela última vez a metáfora da hiena do início
das nossas reflexões. Com tudo o que foi dito, ela pode agora ser
melhor entendida. Recordemos: uma hiena filosofante, insone,
entediada e bocejante, no topo de um despenhadeiro, numa cadeira de balanço, com fones de ouvido, ouvindo Bach, rodeada de prostitutas e de destroços, uivando em silêncio, com sarcasmo, ao vazio
do mundo, ao Nada do ser, no pôr-do-sol da razão, o seu pessimismo humano e, sobretudo, o seu pessimismo cósmico. Imaginemos
agora esse filósofo que reduz o amor ao encontro de duas salivas
(cf. Cioran 6, p. 15) e que considera a humanidade uma tragicomédia cujo destino está atrelado ao futuro do cianureto (cf. Cioran 7,
p. 85), frente a frente com uma filosofia tão afirmativa quanto a
desenvolvida por Nietzsche na sua maturidade.3
Foi Nietzsche, segundo Susan Sontag, quem “formulou quase
toda a posição de Cioran um século atrás” (Sontag 19, p. 83). De
fato, Cioran foi um grande entusiasta de Nietzsche na juventude,
porém, a “idolatria da força” fomentada pelo filósofo alemão com
as hipóteses da vontade de potência, do eterno retorno e com a proposta da transvaloração dos valores e do além-do-homem decepcionou-o visceralmente. A respeito dessa desilusão determinante,
Cioran relata:
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“Quando se é jovem, pratica-se a filosofia menos para buscar nela
uma visão que um estimulante; perseguem-se as idéias, adivinha-se o
delírio que as produziu, sonha-se em imitá-lo e exagerá-lo. A adolescência se compraz no malabarismo das alturas; em um pensador ama o
saltimbanco; em Nietzsche amávamos Zaratustra, suas poses, suas palhaçadas místicas, verdadeira feira de cumes... Sua idolatria da força
é menos um sinal de esnobismo evolucionista que uma tensão interior
projetada para fora, uma embriaguez que interpreta e aceita o devir.
Disso tinha que resultar uma imagem falsa da vida e da história. (...)
Como Nietzsche, acreditávamos na perenidade de nossos transes; graças
à maturidade de nosso cinismo, fomos ainda mais longe que ele. A idéia
do além-do-homem nos parece, hoje, uma mera elucubração; naquela
época, nos parecia tão exata como um dado experimental. Assim se eclipsou o ídolo de nossa juventude” (Cioran 7, p. 29).
Assim sendo, se a hiena do odium fati se deparasse na sua “mais
solitária solidão” com o demônio de A gaia ciência anunciando-lhe
“o mais pesado dos pesos”, ou seja, o irremediável eterno retorno
do mesmo,4 ou, então, com o próprio Nietzsche de Ecce homo dando a sua “fórmula para a grandeza no homem”, o amor fati,5 ela
certamente gargalharia dos dois à maneira dos deicidas ressentidos
com o Absoluto, e, do alto do seu cinismo, com um semblante irônico
de que a vida é doce, indagaria-os: “há coisa mais vil do que dizer
sim ao mundo?” (Cioran 6, p. 67).
Ao cotejar as filosofias de Nietzsche e de Schopenhauer em O
pessimismo e suas vontades, José Thomaz Brum, tradutor e amigo
de Cioran, distingue duas modalidades de pessimismo. Valendo-se
do próprio Nietzsche, Brum refere-se a um “pessimismo clássico”,
de procedência pré-socrática, e a um “pessimismo romântico” (cf.
Brum 4, p. 74). Em linhas gerais, o primeiro seria o “pessimismo
dos fortes”, isto é, “um pessimismo trágico que aceita a existência e
a sua dolorosa verdade dionisíaca: a morte e o sofrimento”.6 Trata-
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se da filosofia nietzschiana propriamente dita. Por outro lado, teríamos um pessimismo fundamentado no horror às dores e ao efêmero
da vida, na compaixão, na negação da vontade e na fuga do mundo,
ou seja, o pessimismo de Schopenhauer. Enquanto a perspectiva
trágica de Nietzsche consiste num “dionisíaco dizer-sim ao mundo,
tal como é, sem desconto, exceção e seleção” (KSA XIII, 16 [32]),
numa celebração permanente e alegre dos encantos e dos dissabores do vir-a-ser, em suma, numa afirmação vigorosa da vontade e
numa radical adesão ao viver, o pessimismo schopenhaueriano advoga “a negação do querer-viver” (cf. Brum 4, p. 49), ou seja, a
fuga do ordinário (cf. ibid., p. 89) e a busca de alívio, de consolo e
de redenção sobretudo na arte (cf. ibid., p. 87). Em vista disso,
como poderíamos classificar o pessimismo de Cioran?
Nem romântico tampouco trágico. Nada de cantilenas compassivas ou subterfúgios estéticos, como em Schopenhauer, tampouco
reverências à vontade, propostas de transvalorações, juras piegas
de amor à fugacidade, e defesas incondicionais da vida, como em
Nietzsche. O pessimismo de Cioran parece ter um perfil próprio. O
seu odium fati é antes de tudo uma declaração de descontentamento visceral e de nojo irremediável em relação a tudo o que existe e
acontece, é o desabafo veemente daquele que nega radicalmente a
vida por se ressentir com os seus golpes e por não suportar a sua
condição ínfima em meio à insignificância cósmica. Não ser mais
do que se é, deteriorar-se no absurdo, conviver com a futilidade de
tudo, ser asfixiado pela vagareza enfadonha e implacável do tempo,
ser ruminado pela certeza indubitável da morte: tudo isso é pungente demais para a hiena pessimista. No seu entender, a superação do niilismo é farsa, ilusão, promessa religiosa. E mesmo que
essa superação fosse exeqüível, a insignificância da existência permaneceria inexpugnável. Lucidez e alegria são, portanto, inconciliáveis (cf. Rosset 17, p. 101). Não há nada na vida que valha um
retumbante Sim, não há nada na matéria e no tempo que mereça
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ser amado Assim sendo, a causa da existência torna-se efetivamente
indefensável (cf. ibid., p. 102). O pessimista cioraniano encontrarse-á então diante de um impasse pendular: passará seus dias oscilando entre a apatia e o suicídio (cf. ibid., p. 99), entre a resignação
provocada pelo hábito e a tentação da morte voluntária. Como não
possui compromisso com a coerência, ele poderá renunciar ao seu
ceticismo e se matar. No entanto, caso seja vencido pela suspensão
cética do juízo e pelo costume de existir, o pessimista cioraniano
sobreviverá chafurdado no mais mordaz dos cinismos. E é nessa
direção que o pessimismo de Cioran deve ser entendido, como um
pessimismo cínico, ou seja, como uma perspectiva arrasadora constituída por um desdém rancoroso, por uma melancólica ironia e por
um riso misantrópico, amoral, banalizador e autofágico, os quais
reduzem a razão, o homem e a vida a uma grotesca e nadificante
anedota. Trata-se, portanto, de um pessimismo sem evasivas, consolos e hipóteses criadoras de sentido. A filosofia de Cioran é, em
suma, um pessimismo sem auto-ajuda7.
Abstract: Born in Romania in 1911, Cioran spent the most part of his
tedious and indolent life in Paris, ironically and hopelessly shaping an
iconoclastic and autophagous thought. He died in 1995 leaving an original pessimism, well expressed in several fragments and aphorisms. Having
Nietzsche’s amor fati as its backdrop, the article aims at dealing with some
aspects of this fulminating philosophy, this odium fati philosophy, in which
without God everything turns to Nothing, and God, on the other hand,
turns out to be the supreme Nothing.
Key words: skepticism – atheism – pessimism – nihilism – amor fati –
odium fati
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notas
1
A essência das reflexões de Cioran aproxima-se muito da
idéia de Albert Camus, em O mito de Sísifo, de que “só
existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.
Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia” (Camus 5, p. 23).
Contudo, a solução dada por Camus a essa questão é antagônica à de Cioran. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, arremata Camus em tom quase imperativo (id., ibid., p. 145).
2
Denis Diderot, talvez o principal pensador ateu da Ilustração francesa, tinha já no século XVIII esta mesma concepção de filosofar. Em O sobrinho de Rameau (1761), sua
obra-prima, lemos: “Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear no Palais-Royal, às cinco horas da tarde.
Sempre solitário, sou visto sonhando no banco de Argenson.
Entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política,
amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais
completa libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira idéia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas de Foy, nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã de ar estouvado, fisionomia risonha, olho vivo, nariz
arrebitado, deixando esta por outra, assediando todas e
não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras.” (Diderot 12, p. 41).
3
Charles Andler dividiu a obra multifacetada de Nietzsche
em três períodos, sendo o último o “Período da Reconstrução”, a fase da maturidade, na qual a afirmação da vida é
o valor supremo (cf. Brum 3, p. 11).
4
A esse respeito, lê-se: “– E se um dia ou uma noite um
demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te
dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a
viveste, terás de vivê-la ainda mais uma vez e ainda inúme-
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ras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada
prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te
retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do
mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta
da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela,
poeirinha da poeira!’ – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em
que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nunca ouvi nada
mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre
ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero
isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’ pesaria como
o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como
terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para
não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? –“ (FW/GC § 341).
5
“Minha fórmula para a grandeza no homem é o amor fati:
não querer nada de outro modo, nem para diante, nem
para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo (...), mas amálo...” (EH/EH, Por que sou tão esperto, § 10).
6
Cf. Brum 4
7
A propósito de Cioran, Franco Volpi ressalta que sua obra
“destila, por todas as páginas, um concentrado de pessimismo que envenena de morte todos os ideais, esperanças
e impulsos metafísicos da filosofia, ou seja, todas as tentativas de dar à existência algum sentido e segurança, em face
do abismo de absurdo que a todo instante a ameaça. As
reflexões de Cioran empurram-nos até o ponto de nos sentir nus perante um destino também nu” (Volpi 20, p. 104).
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referências bibliográficas
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decomposição. Tradução de José Thomaz Brum. Rio
de Janeiro, Rocco, 1989.
3. _______. Nietzsche, as artes do intelecto. Porto Alegre,
L&PM, 1986.
4. _______. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e
Nietzsche. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
5. CAMUS, A. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução de Mauro Gama. Rio de Janeiro, Guanabara,
1989.
6. CIORAN, E. Breviário de decomposição. Tradução de José
Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.
7. _______. Silogismos da amargura. Tradução de José
Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
8. _______. História e utopia. Tradução de José Thomaz
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9. _______. Exercícios de admiração. Tradução de José
Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 2001.
10. _______. Cahiers (1957-1972). Paris, Gallimard, 1997.
11. _______. “Carta-prefácio”. In: SAVATER, F. Ensayo
sobre Cioran. Madri, Editorial Espasa-Calpe, 1992.
12. DIDEROT, D. “O sobrinho de Rameau”. In: Textos escolhidos. Tradução de Marilena Chauí e J. Guinsburg.
Col. “Os Pensadores”. São Paulo, Abril Cultural, 2ª
edição, 1979.
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| 87
Piva, P. J. de L.
13. JAKOB, M. “A insônia da razão” (entrevista). Tradução
de Leda. T. Motta. In: “Mais!”, Folha de São Paulo,
12 de fevereiro de 1995.
14. NIETZSCHE, F. Obras incompletas. Tradução de Rubens
R. Torres Filho. Col. “Os Pensadores”. São Paulo,
Abril Cultural, 2ª edição, 1978.
15. _______. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da
Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986.
16. _______. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César
Souza. São Paulo, Brasiliense, 1987.
17. ROSSET, C. “Post-scriptum: le mécontentement de
Cioran”. In: La force majeure. Paris, Les éditions de
minuit, 1983.
18. SAVATER, F. Ensayo sobre Cioran. Madri, Editorial Espasa-Calpe, 1992.
19. SONTAG, S. “‘Pensar contra si próprio’: reflexões sobre Cioran”. In: A vontade radical. Tradução de J. R.
Martins Filho. São Paulo, Companhia das Letras,
1987.
20. VOLPI, F. O niilismo. Tradução de Aldo Vannucchi.
São Paulo, Edições Loyola, 1999.
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
Por que não
teoria do conhecimento?
Conhecer é criar
Gilvan Fogel*
Resumo: Partindo de um fragmento póstumo de Nietzsche, o autor explica por que o filósofo alemão nega a teoria do conhecimento enquanto disciplina em proveito de uma nova noção de conhecimento. Para isso, ele
assinala, de um lado, a imbricação entre a concepção tradicional de conhecimento e os pressupostos cartesianos; e recorre, de outro, ao esclarecimento de conceitos como perspectiva e afeto, presentes, para Nietzsche,
em todo ato de conhecimento.
Palavras-chave: conhecimento – perspectiva – afetos
I
Uma anotação de Nietzsche, de 1887, sob o título “Reforma de
Princípios”, anuncia cinco tópicos. Um deles, o quarto, diz: “Em
lugar da teoria do conhecimento uma doutrina perspectivista dos afetos
(à qual pertence uma hierarquia dos afetos: os afetos transfigurados:
seu ordenamento superior, sua espiritualidade)” (KSA XII, 9[8]).
*
Gilvan Vogel é professor do Departamento de Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Fogel, G.
Queremos entender esta proposta de Nietzsche. Para tanto, é
preciso começar perguntando: e por que não teoria do conhecimento? O que é – Nietzsche diria: o que quer a teoria do conhecimento?
Na história da filosofia, desde a Grécia clássica, o conhecimento sempre se configurou com um dos problemas maiores. Discutido, porém, de maneira inseparável da pergunta pelo real, ou seja,
constituindo-se num modo ou numa via de acesso para a compreensão da realidade do real. Mas com a característica de um problema
à parte, independente e, sobretudo, com a efígie de propedêutica e
de organon, isso somente se dá na modernidade, no desdobramento de uma certa compreensão/interpretação de Descartes e, principalmente, de Kant. É nesta rota histórica que o conhecimento, já no
século XIX, será tematizado sob a sigla “teoria do conhecimento”
(ou ainda epistemologia, criteriologia, gnosiologia) e tal tematização
se fará a partir dos pressupostos desta era moderna.
O ponto de partida decisivo é a separação e oposição alma e
corpo (homem e mundo, ativo e passivo, vivo e morto, sujeito e
objeto), que traz consigo uma aporia: como pode o sujeito atingir,
captar, apreender o objeto? Sujeito e objeto, homem e mundo, alma
e corpo são substâncias, isto é, cada qual se define como um estrato
autônomo, um algo sub- e pré-existente e, então, pergunta-se: como
o dentro capta o fora? É possível o conhecimento, o saber? Como?
Em que medida? Sob quais condições? Surge assim o chamado
“problema da ponte”, quer dizer, da passagem, da mediação ou da
intermediação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido, entre
homem e mundo, entre alma e corpo.
O conhecimento passa a ser uma terceira substância, uma terceira “coisa”, a saber, uma propriedade, um poder ou uma faculdade do sujeito, da “alma”, responsável por estabelecer a mediação. Ele torna-se uma espécie de hífen para conectar sujeito e objeto,
homem e mundo. O conhecimento torna-se assim meio e instrumento e forja-se um campo específico de investigação, cunha-se um
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
“objeto novo”, que, portanto, reclama uma nova disciplina – a teoria do conhecimento.
Neste contexto, conhecimento e representação são inseparáveis.
Conhecer é representar, ou seja, conhecimento é a representação
de algo ou, ainda, a representação que um sujeito pensante (o homem) faz ou tem de um objeto formal ou materialmente dado, à
medida que este sujeito se volta, retorna sobre si e a partir desta
volta sobre si re-apresenta o dado sob a própria forma do sujeito –
esta re-apresentação constitui propriamente o objeto. No âmbito
desta formulação, impõe-se a necessidade de definir os três termos,
a saber, representação, sujeito e objeto. A grande questão, no entanto, geradora de tudo o mais, é a pressuposição desta compreensão, segundo a qual a realidade, toda realidade possível, já se faz e
precisa se fazer como ou a partir da estrutura sujeito “versus” objeto.
Isto é uma evidência, um óbvio e, por isso, inquestionável. Este tipo
de evidência cria sempre uma escuridão, uma cegueira no pleno
meio-dia da evidência...
A teoria do conhecimento está a serviço da realização do ideal
moderno de verdade, ou seja, está empenhada em fazer cumprir a
certeza como critério de verdade, como medida de realidade. Para
tanto, ela define que, antes de conhecer, é preciso certificar-se, assegurar-se que se conhece (isto é, atinge-se, capta-se, apreende-se
ou representa-se o objeto) e que se conhece bem, isto é, que o conteúdo do conhecimento, de algum modo, real ou transcendentalmente, corresponde à natureza ou ao modo de ser do objeto conhecido. A teoria do conhecimento, assim, vendo o conhecimento como
meio e instrumento (organon), reivindica para si o direito de propedêutica, tal como a lógica se auto-denominou propedêutica e organon para pensar – para pensar bem ou corretamente: antes de pensar é preciso aprender a pensar corretamente. Impõe-se previamente
estudar as regras para o bom pensar, tal como se o modo de pensar
existisse ou pré-existisse antes e fora do pensar isso ou aquilo, as-
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Fogel, G.
sim ou assim outro. Teoria do conhecimento, tal como lógica, converte-se num aspecto da metodologia, ou seja, da doutrina do método ou do caminho do prévio asseguramento e controle do conhecimento, da verdade e do real. Sim, impera o tipo “desconfiado”,
que, meio empolado, se diz cético e crítico... De passagem, lembremos uma observação de cunho psicológico, de Dostoievski, segundo a qual os tipos mais desconfiados são o anão e o corcunda. Seria
teoria do conhecimento coisa de corcunda e de anão?!... Nietzsche
fala que a filosofia “reduzida à teoria do conhecimento é um resto
de filosofia, movida por desconfiança e covardia, quando não escárnio e compaixão consigo mesma – uma filosofia no último suspiro, um fim, uma agonia – como poderia tal filosofia mandar”? (JGB/
BM § 204).
É neste contexto de incerteza e de desconfiança, mas que no
fundo é obsessão por certeza, controle e auto-asseguramento, que
se faz oportuna a pergunta de Hegel: “Por que não, ao contrário,
tratar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança e preocupar-se com o fato de que o medo de errar já é o próprio erro?”1. É,
portanto, no espírito desta aguda observação de Hegel, que precisamos começar a articular a compreensão da proposta de Nietzsche
de ver o problema do conhecimento no âmbito de uma doutrina
perspectivística dos afetos – é, pois, desconfiado com a desconfiança fomentadora da teoria do conhecimento e, sobretudo, cuidando
que o medo de errar já é o próprio erro... Sim, não preocupação
com conhecimento e verdade, mas medo de errar – isto norteia a
teoria do conhecimento.
O desdobramento do problema do conhecimento, tendo como
fios condutores a teoria do conhecimento e a moderna formulação
de base do problema (S x O), conduz ao estudo detalhado dos processos e dos mecanismos bio-psicológicos e neurofisiológicos (o cérebro) do sujeito cognoscente, o que passa a responder pelas possibilidades e pela natureza do conhecimento. Este, que já é visto como
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
intermediário e instrumento, passa a ser compreendido e determinado como uma espécie de epifenômeno de funções cerebrais, melhor, bio-psico-neurológicas. É o que hoje se faz com o nome de
neurociência cognitiva. Por esta via, explicar-se-á sensações, recepções do fora ou externo pelo dentro ou interno, estímulos, enzimas,
ácidos, sinapses, correntes e fluxos eletroquímicos – enfim, sempre
ainda a mecânica e o mecanismo da representação, do conhecimento, que, assim, continua visto como intermediário e instrumento. A
questão, a saber, o conhecimento nele mesmo, continua desviada e
falsificada. A neuro-ciência cognitiva e, por extensão, as chamadas
filosofias da mente são a versão pós-moderna da moderna teoria do
conhecimento – o conhecimento estaria localizado em alguma área
do cérebro, que estaria sendo rigorosamente mapeada. E o cérebro
seria um dado primário – o real !! O pós (pós-moderno), como também o neo, aqui e quase sempre, é tão-só indicação de arcaísmo –
arcaísmo e solecismo...
Por que não teoria do conhecimento? Porque o problema, de
cara, ab origo, está mal encaminhado, já desviado do verdadeiro
problema e, portanto, com esta formulação ou a partir desta précompreensão não resta nenhuma esperança. Kant, com surpreendente humor, diria: perguntando deste modo, é como se um ordenhasse o bode e outro aparasse com a peneira...!!2
II
Sim, “introduzir uma desconfiança na desconfiança e cuidar que
o medo de errar já é o próprio erro”, pois se parte de uma outra
evidência, a saber, o afeto é o elemento, o medium – o absoluto. Isto
é o mesmo que dizer: o começo (princípio, fundamento) é afeto.
Quando se diz: afeto é o elemento não se está pensando com elemento, por exemplo, a parte que entra na composição de algo ou
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Fogel, G.
cada parte, cada indivíduo de um ajuntamento de partes, mas o
âmbito, o ambiente, o clima ou o pathos em que algo se dá, acontece, a saber, o envolvimento ou ambiência em que este algo se encontra – mais, que ele é, quando se diz, por exemplo, que a água é
o elemento do peixe. Digo também que é o seu meio, seu medium e
com isso não se pensa com meio o intermediário (como acima, na
primeira seção, quando assim se falava do conhecimento na perspectiva da teoria do conhecimento), o ponto central eqüidistante, a
metade ou a porção entre (intermediária) um e outro termo, mas
algo como o meio ambiente, a circunstância, tal como se está no
meio da multidão, no meio da borrasca e da tormenta, isto é, totalmente envolto e tomado por borrasca, por tormenta ou por multidão, de tal modo que estas se fazem, cada vez, sim, o elemento! É,
portanto, neste sentido de elemento e de medium que afeto se faz o
ab-soluto, quer dizer, o que não tem referência alguma para fora
(antes ou depois, aquém ou além) do próprio afeto: ele é lugar e
hora de vida, de existência, das coisas que aparecem ou se dão na
vida, na existência. Portanto, começo, origem, fundamento.
Formulando melhor: por afeto cabe entender todo e cada verbo
constitutivo do existir, do viver. Verbo, isto é, todo e qualquer modo
de ser possível do homem, modo este que abre um campo de relacionamentos e, a partir da ação ou da atividade que é este campo, se
instaura, vem a ser um âmbito, um domínio possível de realidade,
por exemplo, pensar, escrever, pintar, caçar, guerrear, jogar... A
isso se pode também denominar força, isto é, irrupção de força,
que é um campo de relacionamento ou de instauração de uma realidade possível.
Foi dito: o afeto abre um campo de relacionamentos e este é
ação, atividade. Em questão está a ação ou a atividade de auto-exposição deste afeto, ou seja, a ação de o afeto fazer-se este afeto ou
vir a ser o que é aparecendo como isto, como aquilo. Auto-exposição diz: expor-se, aparecer ou vir a ser desde si mesmo. Este desde
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
si mesmo é a denominação própria de vida (Psyché) e o que decide
por esta auto-exposição é o caráter de súbito, de abrupto ou de imediato do afeto. Afeto, a força ou o modo de ser em que se está e
que se é, é como a subtaneidade, a i-mediatidade do salto. Assim
se configura também o círculo. Por isso, origem, começo – Ur-sprung.
O afeto, a força, que é ação, é abissal – por isso vida, a saber, movimento desde si próprio ou auto-exposição.
Afeto diz ainda e, sobretudo, ser tocado, ser tomado por. É o
que também denominamos experiência. Dizer que afeto é começo,
é igualmente dizer que origem (salto, Ur-sprung) é entendida a partir de experiência, como experiência. Experiência, empeiria, fala do
movimento, da atividade do ser tocado, tomado pelo afeto que perfaz, isto é, que é esta própria experiência. É assim, nesta estruturação, que vai se fazendo a exposição, a auto-exposição ou, o que
é a mesma coisa, aparição, concretização.
A noção de experiência anda rigorosamente junto com a noção
de começo, de origem, perfazendo uma e a mesma compreensão –
um e o mesmo fenômeno. Isto justamente porque começo, origem,
se define como e a partir de experiência. Ao se falar de começo
como súbito, imediato, o que se está falando é que, a rigor, no ou
num começo (pois o começo é sempre um começo) não se entra,
mas nele abruptamente se cai, mesmo se de-cai, isto é, nele nos vemos súbita ou abruptamente caídos, jogados e, por isso, tomados,
atravessados, perpassados – quer dizer: afetados. Este atravessar,
perpassar é que propriamente dá o caráter de pathos, de afecção, ou
seja, de ser tocado e tomado por... Enfim, o que também se denomina experiência. Começo, por um lado, tem ou é a mesma
estruturação de experiência e, por outro, é sempre e necessariamente uma experiência determinada e é justamente esta determinada experiência que define, que dá a determinação ou o modo de
ser do que aparece e se mostra – quer dizer: disso que é e há. A
determinação (em alemão, Be-stimmung, en-tonação) é justamente
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a cor, o tônus, o tom – mais e melhor, a coloração, a entonação que
atravessa, quer dizer, percorre, perdura, performa e assim perfaz
isto que é e há, tornando isto tal como há e é. Sim, o é é o tom, a
entonação, isto é, o afeto, a afecção. “Experiência, empeiria, é uma
palavra que em grego, como em latim, vive da raiz per. Os vocábulos, como as plantas, vivem de suas raízes. Nas línguas germânicas
existe igualmente per em forma de fahr. Por isso, experiência se diz
Erfahrung. ...per é atravessar; em grego, peiro ...”3
Assim, perfazendo, performando, perdurando, experiência
(Erfahrung) é, de algum modo, a viagem – erfahren é viajar. Mas
sobretudo a viagem verbo e não substantivo, ou seja, trata-se de ser
ou estar em viagem, a caminho. Por exemplo, A fenomenologia do
espírito, de Hegel, enquanto “Ciência da experiência (Erfahrung)
da consciência”, é o saber que é a viagem da consciência, isto é, é
o ser e estar em viagem, o a caminho da consciência para a consciência que, assim, define, determina o movimento de realização de
realidade enquanto e como curso e percurso desta origem, deste
caminho, deste método – enfim, desta estória (acontecer, suceder).
Experiência é portanto isto: a, uma viagem. A viagem que se é. A
viagem que é, que são as coisas, cada coisa. É assim, como viagem,
que experiência é também envio, destino e destinação, remetimento,
relacionamento – estória.
Experiência (afeto), portanto, se faz e se dá como uma viagem
(fahr), que é uma travessia (per), ou seja, em viagem, a caminho ser
atravessado, trespassado, perpassado. Nesta viagem, por ela e desde ela, mostra-se, revela-se ou faz-se visível tudo quanto é e há. Daí
que experiência (afeto) e perspectiva dizem o mesmo. Elas se implicam e se complicam! Tudo quanto é e há, é e há à medida que já é
a articulação de um afeto, isto é, de um modo de ser, que também
pode, talvez precise se denominar perspectiva, uma vez que é neste
ou desde este afeto que o que há e é mostra-se, aparece, faz-se visível (perspectiva = perspicere) ou vem à determinação (entonação,
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coloração!). Perspectiva (perspicere) fala, portanto, do elemento, do
medium como lugar e hora de instauração ou a instância do fazer-se
visível – ser-aparecer.
Uma “doutrina perspectivista dos afetos” é uma doutrina que
articula uma compreensão de realidade, da dinâmica de realização
de realidade, enquanto e como perspectiva-afeto ou afeto-perspectiva. Trata-se de uma doutrina do real enquanto e como movimento
de experiência ou a compreensão de realização de realidade como
sendo o mesmo que realização/concretização de experiência. Experiência (afeto) é determinação à medida justamente que é o que faz
com que a coisa (tudo quanto há e é) insista e persista em seu ser,
na sua presença e isto, de novo, à medida que é um insistente e
persistente (repetitivo e incoativo) atravessar. Ou seja: a experiência, o humor, per-fazendo, per-correndo, per-passando, per-durando e, assim, levando o que é e há à perfeição (per-facção)4.
A realidade, toda e qualquer possível realidade, é o movimento, a dinâmica de transfiguração, isto é, de alteração ou diferenciação do afeto, do humor – da experiência. É ela que é o mesmo que
se altera, que se diferencia (se transfigura)5, perfazendo assim o
múltiplo, a multiplicidade – tudo quanto há e é. É ela, portanto, o
logos, quer dizer, o sentido, a força instauradora de todo real. E isto
na e como a estruturação de afeto (perspectiva), que, por se fazer
desde e como salto (súbito, i-mediato, círculo!), se revela como
transcendência – e nada subjetiva.
Os verbos que conjugam o viver, o existir, são experiências,
afetos e, por sua vez, cada um é diferenciação e alteração (transfiguração) de si mesmo. Ou seja, cada um repete a estrutura de experiência ou perspectiva enquanto tal. Daí sua(s) transfiguração(ões)
na tessitura, no urdimento do real.
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III
A este modo de ser arcaico, que é ser no elemento-afeto (experiência), pode-se também denominar interesse. Vida, existência é
sempre já interesse, ou seja, é ou dá-se sempre já interessadamente.
Num sentido bem preciso, interesse quer dizer: ser sempre já no
âmbito ou desde dentro (“inter”) de um determinado modo de ser
(“esse”); quer dizer: desde dentro de um afeto que, viu-se, modulase como força, perspectiva, experiência – enfim, a ou uma determinação. A expressão “sempre já”, escandida pela repetição, aponta
para a dimensão de súbito, de imediato ou de salto, justamente a
dimensão que abre, instaura medium, elemento, no âmbito do qual
sempre já se é ou se está – círculo. Os modos de ser, os verbos que
perfazem o existir definem os interesses, são os interesses. Com isso,
está-se dizendo que a vida é inserção. Inserção ou história – na verdade, estória (acontecer, suceder). O homem não consegue, não pode
pôr-se fora ou atrás de si mesmo para apreender-se ou representarse “oniabarcantemente” de fora, ou seja, antes de afeto (interesse),
o que significa dizer: o homem não consegue pôr-se antes ou fora
do próprio homem, para assim apreender, captar o começo do homem. Ser histórico, ser inserção quer dizer que o homem não começa, isto é, não há o primeiro homem, pois ele sempre já começou, sempre já se deu ou aconteceu.
Então o homem, este ou aquele homem, não pré- ou sub-existe
ao afeto, ao interesse. Assim sendo, o homem, quer dizer, este ou
aquele, não tem afeto(s), ele não é algo algum, nenhum eu, nenhuma pessoa, nenhuma alma, espírito, consciência, enfim, nada constituído (sujeito) e que seja tocado ou tomado, ou que assim constituído se abra para ser tocado ou tomado por algum afeto, por algum
interesse, que venha a somar-se ou a agregar-se a ele. Antes e paradoxalmente, é porque sempre já foi tocado e tomado por afeto-interesse é que o homem vem a ser, pode vir a ser este, aquele ou aque-
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le outro sujeito definido, constituído. Mas, ora, está-se falando de
homem e vem irremediavelmente a pergunta: afinal, que homem?
Quem é tocado ou tomado, isto é, afetado? Não há quem, isto é,
sujeito pré- ou sub-existente, mas tão-só um modo de ser (o homem)
que pode e mesmo sempre já veio a ser tocado ou tomado (afetado)
por um tal ou tal interesse e que, uma vez tomado, é usado pela
ação do afeto que, então, o faz vir a ser o que ele é. Isto na ação,
historicamente, isto é, na estória (acontecer, suceder) de auto-exposição do afeto-interesse. Este modo de ser, que se define como poder ser tocado por afeto, não é, portanto, nenhum algo, material ou
imaterial, pré- ou sub-existente, mas, segundo uma cunhagem precisa, “a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade”6. Este estranho estrato – a realidade da liberdade como possibilidade para possibilidade – é a definição de homem, do vivente
que é ou tem “logos” e, então, a forma ou a determinação de toda
realidade possível, à medida que se configura como lugar e hora de
todo e qualquer afeto-interesse, ou seja, de tudo quanto é e há, uma
vez que é o afeto (experiência) que define a textura, a constituição
ou determinação ontológica.
O salto, decidindo pela forma afeto-interesse, define uma amarração, uma co-implicação (“síntese”!), que é relação. Não relação
compreendida a partir de seus termos ou pólos, que seriam, na
mútua, recíproca ou simultânea e dialética referência, anteriores
(portanto, fora!) à própria relação e os autores ou a causa da relação. Ao contrário, o salto decide por relação como o atamento que
se instaura, que sempre já se instaurou no salto e desde o salto (por
causa dele, então, em razão ou por causa de nada! Graças a nada!)
e que funda e possibilita isso que a distração ou o senso comum
denomina termos ou pólos de uma relação. O salto, o súbito, abrindo e instaurando círculo, põe ou instaura relação, a relação arcaicooriginária, cuja insistente retomada desenha a linha, os contornos,
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as configurações todas do real, ou seja, determina toda realidade
possível.
Nesta articulação ou na vigência deste modo de ser, que se define como inserção-história (a relação arcaico-originária), a estrutura sujeito x objeto não é boa medida para medir o real, quer dizer,
não é oportuna para falar de realidade enquanto afeto-interesse ou
inserção e história. Por isso, não é boa medida para se falar responsavelmente de conhecimento. O próprio conhecimento se determinará como um afeto, como um verbo possível, e, assim sendo, tal
como se fosse um terceiro termo ou uma faculdade ad hoc, ele não
mediará ou intermediará nada interno (homem) com algo externo
(mundo, ‘coisas’). Sujeito e (+) objeto, homem e (+) mundo, dentro e (+) fora são epígonos e isto porque o e (o “+”), o conectivo,
que está à busca de explicação e justificativa para um elo de ligação, um nexo (a síntese) é o que não há como terceiro termo, o que
é supérfluo, uma vez que tal ligação ou amarração sempre já aconteceu, sempre já se deu. Ou seja, a síntese sempre já foi! É ela o
acontecimento arcaico, a relação originária ou o um que sempre já
se deu. Tanto Deus (Descartes), quanto esquematismo transcendental (Kant) são supérfluos – expedientes inoportunos para solucionar
um pseudo-problema.
Jogado, inserido no afeto-interesse-história, o homem é, melhor,
vem a ser – se faz! – tal como personagem num enredo. O enredo,
a estória, é o elemento. A tal ponto o elemento – ou seja, o começo,
a fundação, a inauguração – que é preciso dizer: não há personagem sem enredo, quer dizer, não há o personagem do drama, da
obra não escrita. Faltou tudo, faltou o enredo, a ação, a estória, que
é o tecido, a textura, a substância do personagem, isto é, do homem
e de todo e qualquer real possível. Ao abrir-se de uma narrativa, de
uma estória – imagine-se o Quixote, Hamlet, Raskolnikov, Riobaldo
– o personagem é tão-só um grafema ou um fonema, tinta preta
sobre papel branco e, enquanto tal, somente uma insinuação e uma
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promessa. Melhor formulado: a promessa de um enredo, de uma
estória faz do personagem também uma insinuação e uma promessa – a possibilidade de ser, de vir a ser o poder-ser que ele é. Portanto, a possibilidade de uma possibilidade, a saber, a sua própria.
Sim, vem a ser o que tu és. No desdobrar-se da ação, no entretecerse, no urdimento ou na teia do enredo, da estória, que é o suceder
ou acontecer deste poder-ser, o personagem vai surgindo, vai irrompendo, fazendo-se carne, ganhando vísceras, miolo, tutano, determinação, evidenciando ou fazendo visível um modo de ser possível,
qual seja, o seu e só o seu próprio. Ele não é sujeito ou causa da
ação, mas, ao contrário, ele é obra de ação, de atividade de obra
fazendo-se obra. Diz o Quixote, com toda propriedade: “Que cada
uno es hijo de sus obras”. Isto é: obra de obra.
Por falar em Quixote, curas e barbeiros – todos aqueles que
estão fora da Cavalaria Andante, o senso comum! – acreditam que
personagem, por exemplo, o próprio Quixote, é obra da fantasia,
da imaginação do autor, de Cervantes, que, sim, seria um sujeito e
preexistiria à obra. O Quixote seria invenção, projeção, podem dizer
ainda produção ou criação da mente (pois é assim que entendem
criação: como “invenção”, projeção da mente!), do cérebro do autor, de Cervantes, e, como tal, efeito da causa-Cervantes. Mas isso é
senso comum – perspectiva de curas e de barbeiros! O Autor não
pré- ou sub-existe à obra. Ao contrário, ele é obra da obra.
Cervantes, o escritor, vem a ser Cervantes, a saber, o escritor, à medida e só à medida que escreve, que se deixa tomar pela possibilidade-Quixote e se deixa fazer pelo fazer-se do Quixote. É o escrever que faz de Cervantes escritor e, por isso, com todo rigor, fora,
antes ou depois do escrever ele não tem o direito de dizer: “eu escrevo!”. O eu é tardio, epígono. É o que resta, o que sobra, o que se
cristaliza ou se coisi-fica no escrever, desde o escrever. É assim que,
na obra e desde obra, fazem-se o autor e o personagem – Cervantes
e o Quixote: “Que cada uno es hijo de sus obras”!
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O escrever, o verbo, que perfaz a possibilidade de ser à medida
que é um afeto-interesse, usa Cervantes, o qual se deixa usar e, então, fazem-se autor e obra, isto é, Cervantes (o escritor) e Quixote.
É só a perspectiva do de fora, do sujeito, que diz: “Ele, Cervantes,
escreve”, quer dizer, ele é o sujeito, a causa do escrever, que portanto preexiste ao escrever. Isso, já se disse, é a visão de curas e de
barbeiros, que sempre pensam: “eu escrevo”, como se escrever fosse
um atributo e um ato deliberado (posso ou não posso, quero ou não
quero escrever!) de um sujeito, que seria escritor antes de escrever
e mesmo absolutamente sem escrever. É claro que há isto, este sujeito, mas tal sujeito só é verdadeiro quando redijo uma petição ao
INSS ou preencho um formulário na repartição pública, por exemplo, para o CNPq. Mas quando está em questão identidade, próprio, destino, história (estória!), enfim, vida como obra e obra de
obra, a medida passa a ser outra e aí ouve-se o veredicto de artista,
de quem fala a partir da experiência – Cervantes: “Para mí sola
nació don Quijote, y yo para él; él supo obrar, y yo escribir; solos los
dos somos para en uno”.
Portanto, dentro e fora, constituinte e constituído, causa e efeito, autor e obra, sujeito e objeto – nada disso é boa medida para
medir o real, o qual se faz e se determina desde e como afeto, que
é, em última instância, a textura, a consistência da vida. Nada disso
pois é modo de ser fundador do autêntico, do genuíno conhecer.
IV
E como se faz então o conhecer no horizonte de uma doutrina
perspectivista dos afetos?
No discurso Do ler e do escrever, na primeira parte de Assim falava Zaratustra, lê-se: “De tudo que se escreve, amo (isto é, gosto,
quero) somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Es-
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creve com sangue e experimentarás que sangue é espírito. Não é
fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores preguiçosos”.
Cabe entender, na citação, “escrever” com a mesma intensidade, com a mesma gravidade, tal como acima se falou do escrever
para Cervantes. Escrever, na citação, não fala, portanto, do ato de
preencher um formulário para a CAPES, mas é verbo, um verbo do
ou no existir-viver, então, uma possibilidade de ser do real e, por
isso, em questão está a feitura e a liberação de um próprio, de uma
identidade, a conquista de liberdade – portanto, questão de vida e
de morte na dinâmica do vir-a-ser ou do fazer-se deste escrever. Em
lugar de “escrever”, posso e preciso ler-entender qualquer outro
verbo, contanto que realmente verbo do ou no existir-viver, por
exemplo, pintar (com sangue), arar (com sangue), jogar (com sangue), guerrear (com sangue), pensar (com sangue), etc...
Ao invés de dizer “escrever com sangue”, pode-se dizer: escreve com força, escreve com vida. Mas vida é afeto, interesse. “Sangue” diz o mesmo que afeto, isto é, o mesmo do que acima formulamos como força, perspectiva, experiência, interesse. O texto, então,
diz: escreve desde o real interesse, ou seja, desde dentro de um
modo próprio de ser – ou ainda: escreve realmente tocado e tomado (afetado) e experimentarás, quer dizer, evidenciar-se-á ou fazerse-á visível que sangue, isto é, afeto (interesse), é espírito, ou seja, a
vida, a força ou o poder de evidenciação e persuasão de todo escrever, de todo aparecer e fazer-se visível. Enfim, tal escrever revelase como uma autêntica perspectiva (perspicere), autêntico poder de
realização. É, portanto, “sangue” (afeto) que evidencia, que é a evidência ou o poder de iluminação do que aparece e se faz visível
como isso, como aquilo. Ele é a determinação – “Be-stimmung”.
Mas, na citação, a frase que realmente nos interessa é a seguinte: “Não é fácil compreender sangue estranho – odeio os leitores
preguiçosos”. Como entender o sangue alheio, isto é, como conhecer o outro? Seria esta a mesma pergunta que aquela: como o sujeito
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pode atingir, apreender o objeto? Estaríamos, de novo, frente ao
problema da “ponte”? Não. Não é isto que está em questão, uma
vez que o fundo de ressonância, a estruturação é outra, a saber,
vida (começo, origem, fundamento) desde e como afeto, ou seja, na
configuração do súbito (imediato), salto, círculo, relação originária.
Aí sujeito x objeto não é a medida, não diz a relação. Mas vejamos.
“Compreender o sangue estranho” quer dizer: entrar no horizonte, na dimensão, isto é, na força ou no interesse realizador (=
perspectiva) do outro. Ou seja, entrar no movimento de realização
de realidade (= afeto), a partir do qual o outro fala, o qual o outro
é, ao dizer e ver o que diz e vê, tal qual vê e diz. Por “entrar” entenda-se o ser tocado e tomado por, isto é, subitamente, passar a
fazer parte ou participar de uma experiência. Entrar no sangue estranho é, sim, crescer com o outro, con-crescer com o movimento de
realização do outro. É então co-fazer a realização de realidade que
o outro faz e é, melhor, pela qual o outro é feito e per-feito. Em
suma, é co-fazer e assim con-crescer com a própria coisa, que aparece como outro, como transcendência. O sangue estranho, dizendo
afeto-experiência-perspectiva, diz a própria coisa, a saber, o sangue
estranho é sempre a determinação da coisa estranha, do outro – a
alteridade enquanto tal. Conhecer, assim, é realmente co-nascer.
E é preciso, impõe-se, por respeito à coisa, para poder colocarse nela mesma e falar desde ela mesma – para tanto, impõe-se entrar nela, participar dela, que é o modo, o único modo como vai-se
concrescer, co-fazer – co-nascer. E isso, diz o texto, “não é fácil”. E
não é fácil, porque não é mediatizado, intermediado, ou seja, não é
nada “demonstrado”, se se entende por demonstração o processo
formal de, pela via de uma cadeia de pressuposições e de conclusões, coerentes ou sintaticamente consistentes, derivar ou deduzir a
“passagem” e com ela também a própria coisa. Não é fácil porque
não tem, no caso, o expediente facilitador da mediação ou intermediação lógico-dedutiva – silogística. Não há “prova” e “garantia”
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objetivas. “Então, é subjetivo!” – retruca e refuta o espírito objetivo.
Não. Objetivo-subjetivo, já se viu, não é critério, não é medida, quando o que está em questão é a natureza súbita e então circular do
afeto, isto é, da experiência, isto é, de toda e qualquer realidade
possível.
Compreender, experimentar e assim entrar no sentido do sangue estranho, participar dele e desde ele e graças a ele ver e falar –
isso não é fácil! Não é fácil, mas é o que é preciso, o que se impõe.
Afinal, como se entra no sangue estranho, como se passa a se participar dele? Enfim, como se entra na própria coisa, na própria
transcendência? A transcendência o é do afeto, da experiência e
quem (!) decide isso é o súbito, o salto – quer dizer, “ninguém”,
nada. O caminho é o salto. No sangue estranho, na coisa, só se entra
através do salto. No salto, através dele, dá-se a transposição súbita
para o outro, para o sangue estranho. Por esta via, entra-se na própria coisa, participa-se dela, ou seja, entra-se no seu sentido (força,
afeto, interesse) e assim a compreendemos. Este salto, porém, não
acontece sem esforço, sem prévia ocupação ou sem pré-ocupação.
Por isso, diz ainda Zaratustra, quer dizer, esta compreensão de experiência (afeto) e salto: “Odeio os leitores preguiçosos”, ou seja,
estes que não estão empenhados no esforço, na necessidade da conquista do salto ou da transposição para o sangue estranho – para a
própria coisa.
V
A preparação para o salto dá-se por uma espécie de prévia ocupação ou de uma pré-ocupação com a coisa, com o sangue estranho. Esta preocupação se caracteriza como o esforço, o empenho,
mesmo a “boa vontade” para com a coisa, ou seja, uma certa disposição preliminar de consentimento e de assentimento. A este con-
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sentimento ou assentimento, que é uma obediência, pode-se também denominar escuta. Portanto, a transposição súbita é preparada
por todo um tempo de escuta, isto é, por todo um tempo de prévia
doação e entrega a isso para que é preciso se passar, se transpor –
enfim, se saltar. É isso, a saber, este esforço de escuta, de espera e
de entrega prévias, que o leitor preguiçoso não tem, não é. É justamente sua indiferença, sua apatia ou desinteresse, o não estar e não
ser assim previamente empenhado que caracteriza a sua preguiça.
A rigor, ele não quer ler o sangue estranho, não quer entrar na coisa.
Dizia-se: O salto se dá desde a escuta. É-se tentado dizer: ele
cresce, ele se funda em escuta. Alguém objetará: “então, não há
nem súbito e nem salto!” O fato é que o salto reclama que, para
saltar, de algum modo, já se esteja na compreensão ou na précompreensão disso para dentro de que se quer ou se precisa saltar,
para assim vir a compreender e a conhecer. Isto é paradoxal –
contraditório. Mas justamente neste contraditório ou paradoxal está
a afirmação do salto, quer dizer, do círculo que somos e do abissal
da coisa, de toda coisa. Isto está anunciado no fragmento 18, de
Heráclito, que diz: “Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”,7 isto é,
se de algum modo já não se está nisso para o qual se impõe saltar, o
salto jamais se dará e a “coisa” permanece “indescobrível”,
inacessível.
Mas que “de algum modo” é este? O homem, sendo ou vivendo
no e desde o salto – a irrupção súbita, o “Ur-sprung” – já é sempre
todos os afetos. Entende-se, enquanto possibilidade, ele já é todos
os possíveis modos de ser de vida ou todas as possibilidades (verbos, afetos) da existência, uma vez que é homem, isto é, que vive,
que existe. Assim sendo, quando se fala de súbita transposição (passagem, transferência) para o sangue estranho, para o afeto que o
outro é, não estamos diante da aporia cartesiana da passagem de
um sujeito para um objeto, pois o que está em questão não são duas
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substâncias autônomas (a res cogitans e (+) a res extensa), mas, saltando para outro afeto, salta-se sempre para uma possibilidade própria, ou seja, tão-só passa-se para um modo de ser que já é nosso,
de cada um. Por isso e só por isso pode-se passar. Um passar que é
sempre ultra-passar, trans-cender, o que se é ou aquilo em que se
está em direção a uma possibilidade própria – isto é, passagem ou
ultrapassagem de um afeto para outro. Isto define a estória (o acontecer ou suceder) das transfigurações dos afetos. Esta passagem ou
transposição, enquanto salto da ultrapassagem, é a conquista de uma
possibilidade própria, que perfaz o crescimento, ou seja, a intensificação e a clarificação de vida no traçado de um destino, de uma
destinação. É nesta dinâmica, que é a do jogo da passagem, da autosuperação ou da estória, que o homem realiza o imperativo da vida,
cunhado por Píndaro, sob a forma: “Vem a ser o que tu és”. Ou
seja, estória, acontecer ou suceder, de afeto – de interesse ou de
experiência.
Esta transposição, melhor, esta (pré)disposição para o salto é
ela mesma um afeto, a saber, o afeto que é o próprio conhecer, que,
por seu lado, cada vez realiza-se diferentemente, ou seja, cada vez
este conhecer se realiza como o afeto ou a coisa em questão – isto
é, o afeto ou a coisa da hora! Há tantos conhecimentos, tantos modos de conhecer, quantos os interesses, os afetos ou os possíveis
verbos do existir. E isto não é subjetivismo ou relativismo, uma vez
que não é esta a constituição, a textura de afeto, de interesse.
Mas há um conhecimento exemplar, que não é o conhecimento,
tal como, por exemplo, se auto-proclama o conhecimento conceitual-representativo ou lógico-categorial, mas que é sempre um conhecimento, a saber, aquele que se põe na própria coisa, à altura da
própria coisa e desde ela vê e fala, quer dizer, aquele que se transporta ou se transfere para o sangue estranho, para o afeto que é a
coisa em questão, que a performa, enquanto e como sua determinação (Bestimmung), sua essência.
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O conhecimento conceitual ou lógico-categorial-representativo
é tão-somente um modo possível de conhecer, que tem ou é um
interesse próprio, o qual se revela teleologicamente na civilização
técnica ou na tecno-ciência. É aí que este conhecimento exibe maximamente o interesse que ele é, qual seja, o ideal ou o programa
de tudo programar, isto é, de planificação, controle e autoasseguramento totais. Identifica-se inteiramente com o ideal de cálculo, onde “cálculo” não diz somente numeração e quantificação,
mas, sobretudo, através da numeração e da quantificação, cálculo
fala da atitude que está empenhada no estabelecimento antecipado
de todas as condições prévias para o exercício do controle e do autoasseguramento, quer dizer, cálculo fala do triunfo do esforço pelo
cumprimento do projeto cartesiano de verdade e igualmente de realidade como certeza. Este conhecimento possível – a total
objetificação na representação subjetiva – domina como o conhecimento e justamente isso se constitui na sua presunção, na sua arrogância, na sua hybris maior – se é que se possa falar de hybris maior
ou menor...
VI
Recapitulando, a teoria do conhecimento erra, primeiro, porque supõe a estrutura sujeito versus objeto como um índice elementar de toda realidade. É este seu ponto de partida. A partir daí,
impõe-se resolver o problema da ponte, isto é, da passagem, da apreensão ou da captação de um fora, o objeto em sentido lato (isto é, o
que quer que, formal ou materialmente, apareça fora do sujeito),
por um dentro, o sujeito, em sentido estrito, ou seja, o cogito, que
representa. Num segundo momento, a teoria do conhecimento erra,
porque, seguindo o fio condutor desta formulação, escamoteia o real
problema do conhecimento, à medida que passa a compreendê-lo e
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determiná-lo como meio, como elemento de ligação, o nexo que faria a conexão ou a junção (síntese!) com o real ou o objeto, supostamente separado do sujeito cognoscente. Assim, o conhecimento
aparece como meio ou, o que é a mesma coisa, instrumento. Na
seqüência, a teoria do conhecimento tende a se voltar exclusivamente
para a determinação e explicitação dos processos bio-psíquicos e
neuro-fisiológicos (veja-se, hoje, a chamada neuro-ciência cognitiva)
do sujeito cognoscente, do cérebro, ou seja, passa a ser doutrina(s) a
respeito do funcionamento dos mecanismos do conhecimento.
Vistos, porém, desde uma doutrina perspectivista dos afetos,
estes processos, mecanismos do conhecimento, melhor, do sujeito
cognoscente, absolutamente não interessam, pois resultam da falsificação na colocação do problema (ordenha e apara com a peneira!). Isso, a saber, tais processos e mecanismos, configura-se como
estranho e externo ao conhecimento, ou seja, não vai ao encontro
de seu modo de ser próprio, que, em última instância faz coincidir
conhecer e viver, conhecimento e vida. E por vida entende-se a dinâmica de vir a ser, o jogo de auto-superação ou de alteração (diversificação ou diferenciação) desde si mesmo. Este jogo de alteração, quer dizer, de vir a ser outro, que marca transformação ou
transfiguração, o movimento vida, se define como criação. E isto se
dá à medida que vida, enquanto dinâmica e jogo de interesse-afeto,
se revela como sendo necessariamente apropriação. Apropriação no
uso que faz daquilo que vem ao encontro no interesse e como interesse, que se revela ou que se faz visível desde a perspectiva que tal
interesse é. O interesse ou perspectiva já é sempre também apropriação. E apropriação quer dizer: trazer para junto de um próprio e,
assim, cunhar uma identidade. O próprio é sempre o interesse, a
força que realiza, que faz visível isto que aparece e se faz. Próprio,
interesse, afeto e perspectiva dizem, em diferentes níveis ou configurações da compreensão, o mesmo, ou seja, diferentemente apontam para o mesmo fenômeno. Sendo atividade de próprio ou apro-
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priação, impõe-se que vida seja compreendida desde e como interpretação. Inter-esse (apropriação) já é sempre inter-pretação, isto é,
o que quer que seja e apareça (que se faz visível na perspectiva, no
per-spicere) o é e se faz sempre já desde a relação arcaica que é todo
e qualquer interesse, todo e qualquer afeto, que sempre já se interpôs. É irrevogável que conhecer, isto é, transpôr-se para a dimensão
própria da coisa (= afeto), seja atividade de interesse, que este seja
ou se dê como apropriação e que esta seja o fazer-se ou concretizarse de interpretação (isto é, a própria ação de interesse ou afeto, que
sempre já se interpôs na e como relação originária), o que caracteriza uma dinâmica de alteração (diferenciação ou diversificação) ou
um jogo de insistente auto-superação, cujo outro nome é vida, enquanto e como criação ou estória (suceder, acontecer) – isto é, atividade de auto-transcender-se, auto-ultra-passar-se, auto-superar-se.
Assim sendo, impõe-se não entender conhecimento nos termos
propostos pela teoria do conhecimento, mas ver-se no conhecimento, na ação de conhecer, um modo de ser possível, então necessário, do homem e que, por isso, coincide com o próprio modo de ser
do fundamento, a saber, vida, que é criação. Por este caminho, o
problema do conhecimento coincide, por um lado, com o próprio
problema da realidade do real e, por outro, identifica-se com a própria filosofia, ou seja, com o esforço de coincidir com o próprio real
– amor à verdade!
Enquanto modo de ser fundamental de vida, o conhecimento
pode e precisa ser ele mesmo determinado como uma afecção (isto
é, nele e por ele mesmo um interesse possível) – um verbo da existência, cuja determinação é ser trans-posição para a dimensão da
coisa (real) nela mesma. A “coisa nela mesma”, note-se, não é nenhum algo subjetivo, objetivo ou intersubjetivo, mas igualmente um
afeto ou um interesse e este, por sua vez, dado sua constituição súbita ou imediata (salto, círculo), é transcendência.
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
Só por esta via é possível dizer o que é o conhecimento, uma vez
que por esta via ele é incorporado à própria estrutura de todo real
(ou seja, a vida) e ele passa a se revelar como realização plena de
estória, isto é, no suceder, no acontecer, na estrutura ou no jogo de
herdar (receber) e de transmitir (legar). Justamente esta estrutura
de herdar e de transmitir – a estória, que perfaz todo movimento de
realização de toda realidade possível – é descrita como criação, ou
seja, a interpretação desde e como a articulação de incorporação,
apropriação, que é liberação de um próprio e assim e por isso
concretização de liberdade. Vida como o jogo de inocência no e do
desejo.8 A partir desta compreensão, mecanismos do conhecimento, formas ou estruturas neuro-fisiológicas ou bio-genéticas – toda a
atual neuro-ciência cognitiva – se revelam como questões externas,
marginais, desinteressantes... Isto não vai ao encontro do problema
em sua essência ou modo próprio de ser, mas o falsifica. Encobreo, escamoteia-o com subterfúgios.
É preciso ficar claro que, visto desde e como criação, o conhecimento igualmente não se faz a partir do domínio e do controle de
uma certa metodologia, de uma certa doutrina metodológica, compreendida esta como um processo de universalização do acesso a
toda e qualquer coisa, a toda e qualquer verdade, por todo e qualquer um – diz-se: universal e objetivamente. Ter-se-ia assim método, melhor, lógica e metodologia, cada qual, como uma espécie de
instrumento para o exercício da democracia do/no saber e do/no
conhecer... Seria preciso dominar certas estratégias, certos princípios, antes e mais precisamente, certas regras e tudo se revelaria
igualmente para todo e qualquer um que dispusesse de um tal aparato-metodológico para a investigação, para a pesquisa...
Mas, não. Conhecimento como e desde afeto, à medida que este
é o princípio fundamental de todo real possível (isto é, real é afeto),
exige sobretudo simpatia. Simpatia ou, como vimos, consangüinidade – “Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espíri-
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to...” O que enfatizamos, porém, foi a seqüência da passagem, que
diz: “não é fácil compreender sangue estranho”, pois não é fácil
escutar e, então, obedecer ou participar da experiência, desde a qual
cresce e se faz o que aparece, há e é. E, no entanto, é isso e somente isso que é preciso, que se impõe – por amor à verdade! Para
tanto é preciso disposição, pré-disposição – disposição ou pré-disposição de esforço. Esforço para co-fazer e assim con-crescer, ou seja,
irromper, nascer para o realmente concreto, a saber, o fazer-se, o
auto-fazer-se de experiência como gênese do real. Por isso, diz o
texto ainda, “odeio os leitores/conhecedores preguiçosos”. Preguiça diz inércia, isto é, apatia, inapetência, indiferença em relação a
este necessário esforço de transposição – para participação. Aqui,
sem dúvida, a preguiça se revela a mãe de todos os vícios. O maior
é o da coisa, do dado. Todo pensamento, todo saber que parte do
dado e do feito e que visa ou aspira ao feito e ao dado, que quer o
feito e o dado – a informação! – é preguiçoso. O demônio de Deus,
dizem, é o sétimo dia... Foi subentendendo conhecimento e verdade no sentido de adequação e esta como ajustamento ou molde com
o dado e o feito – a constatação, a veri-ficação –, então, vendo conhecimento e verdade como preguiça, que Nietzsche escreveu a
seguinte anotação: “Vontade de verdade como impotência da vontade de criação”.9 E em outra parte: “A verdade é asquerosa, repugnante. Temos a arte – assim, não sucumbimos na verdade”.10 O real,
as coisas não são. Ou melhor: são à medida e somente à medida
que se fazem, à medida que se revelam um por-fazer. Enfim, como
nobre, como aristocrático esforço de conquista e de reconquista de
seus percursos. É assim, isto é, conquistando e reconquistando, que
se faz verdadeiramente estória – assim dá-se genuinamente o jogo
de herdar e de legar. Conquista-se e reconquista-se o que se herda,
para que assim se torne verdadeiramente nossa herança.
Este esforço de participação no sangue-experiência estranho
caracteriza maiusculamente o conhecimento, pois é este o esforço,
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melhor, o exercício que essencialmente marca o homem, a vida,
onde e quando ela se realiza plenamente – isto é, quando ela vem a
ser ela mesma. Este esforço culmina no salto, na trans-posição (transporte ou trans-ferência) para a força, para o “sangue”, que é o princípio ou propriamente a realidade de toda e qualquer “coisa”. Isto
não se trata de fácil tarefa, mas de máximo empenho previamente
movido e promovido por consangüinidade (a participação que, no
salto ou desde círculo, sempre já se deu) e que só se dá para aquele
que está neste esforço de conquistar e vir a ser isto que já é – vem a
ser o que tu és, é o chamamento, o apelo que é atendido e cumprido.
Neste esforço, na destinação do cumprimento desta tarefa (transposição, transferência) está aquele que se empenha por corresponder
ao chamado, para assim continuar estória, vida – a força do devir.
Nisso e por isso o conhecimento foi caracterizado ele próprio
como um afeto – justo o afeto ou a força (o verbo) de transporte ou
de transmigração para a força, o sangue. Em outros termos: o esforço ou o exercício de dizer a dinâmica da experiência de experiência
ou a fala da gênese de gênese, o que constitui pensamento e conhecimento em suas “horas” maiores ou plenas.
Assim, enquanto e como participação vital e esta compreendida
na estrutura da criação, que por sua vez precisa ser o jogo da estória (de acontecer, suceder, dar-se e fazer-se de real) – ou seja, a
real dinâmica de herdar e de transmitir, de receber e de legar ou
entregar – assim, se conhecer não é controle metodológico, inventário, domínio e manipulação de regras, de “conceitos”, também
não é, por outro lado, ajuntar, acumular, inventariar e capitalizar
informações – dados. Conhecer como criação, isto é, como produção de estória ou pura e simplesmente como estória, é sobretudo
não mais precisar de dados, de informações, de “cultura” e de “pesquisa”. Tal conhecer começa quando já se perdeu, já se desaprendeu
isso – o que significa, claro, que também isso foi usado e apropriado como ponto de partida.
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Desaprender o dado e o feito para assim, desde um saber “coisa” nenhuma, desde um “ter” coisa alguma, encontrar o lugar, o
tempo de realização da aprendizagem do aprender – instância e hora
da poética de todo e qualquer real possível. Este conhecer é exercício, então atividade e estória de aprender a aprender. É esta uma
outra formulação, um outro nome para dizer que é preciso desaprender-perder-esquecer o dado e o feito para poder vir a ser partícipe da força de transformação, de transfiguração – da criação, da
estória. Não acumulação, não conservação, mas ex-posição e na
exposição uso e gasto e no gasto e no uso transformação, transfiguração, procriação, poética. É esta a lei da superabundância, do transbordamento vital.
Numa tal experiência de criação, a preocupação, o importante,
portanto aquilo que pesa e que decide, não é guardar; a meta não é
conservar e acumular, mas, enquanto e como auto-exposição, continuar, isto é, promover à medida que procria. E é assim que é guardada, resguardada – conservada! – a vida, encarnada nisso que aqui
e agora se “conhece”.
Este conhecer, porque não é norteado pela conservação e pelo
acúmulo, é perda – aquiescimento na perda, no abandono. Digamos: ele esquece. Esquece, no tempo certo, o que é para esquecer,
perder – a saber, o dado – e que é o caminho para poder, no tempo
certo, retomar e recordar o que é preciso, no tempo certo, recordar
e retomar, ou seja, o caminho do por-fazer. Este conhecer é a celebração de uma memória fundadora, orientadora, originária. Tal
memória o é de “coisa” nenhuma, de nenhum dado, por isso não
atávica. Ao contrário, é memória ou lembrança de coisa nenhuma,
de nenhum dado ou feito, mas tão-só de um modo de ser, que se
revela como insistente precisar se fazer. Memória, recordação de
caminho, de caminhar – o método. É assim que este conhecer, constituindo-se no próprio ritmo ou cadência da participação vital, da
criação, esquece e recorda – no tempo certo ele larga, abandona,
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perde e, no tempo certo, readquire (redime-se!), retoma, revitalizase. Assim ele é devir, estória de kairós – o tempo da decisão, hora e
ritmo da vida. Desde a participação e na escuta que é esta participação, portanto, no crescimento de corpo e de vida, este conhecer
sabe o quão e quando, no tempo certo, esquecer (perder, desaprender) e o quão e quando, no tempo certo, lembrar (recordar, retomar). Assim ele se faz medida de satisfação, do fazer o suficiente –
a alegria do pouco, do limite, do necessário. Com isso e assim ele é,
ele está sempre satisfeito. O cumprimento deste “saber” determina
o ritmo do devir, a estória, o dar-se e acontecer do conhecer como o
movimento ou o devir de interpretação (incorporação, apropriação).
De onde vem este “saber”, este conhecer desta medida e do jogo
desta medida? Sim, do que se chama participação vital – escuta e
obediência a isso –, mas que pode e precisa também ser denominado kairós ou o tempo da decisão, do mando e da obediência, que é
o tempo da sabedoria de perda, de despedida e de recordação, de
reencontro. Na vida, enquanto jogo de lembrança e de esquecimento, é kairós que determina o quão e o quando de esquecimento e de
lembrança. É ele portanto a medida. Enquanto escuta ou participação vital, este kairós é um instinto, isto é, a evidência, o impor-se de
um “sentimento” – portanto, nada “objetivo”, mas também nada
“subjetivo”, por tratar-se da constituição de afeto, que, no salto e
desde o salto (círculo), é transcendência.
VII
Concluindo: “Quem escreve com sangue não quer ser lido, mas
aprendido de cor” (Za/ZA , Do ler e do escrever).
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Abstract: Starting from a posthumous fragment, the author tries to explain
the reasons why Nietzsche denies the theory of knowledge as a discipline
to the profit of a new notion of knowledge. In order to fulfill this task, he
underlines the imbrication between the traditional conception of knowledge
and the Cartesian presuppositions, and then resorts to the elucidation of
concepts like perspective and affect, which exist, in Nietzsche’s view, in
all act of knowledge.
Keywords: knowledge – perspective – affects
notas
Hegel. Phänomenologie des Geistes, p. 64.
Kant, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft, A 58; B 82/3.
3
Cf. Ortega y Gasset, “La idea de principio en Leibniz”, pp.
203-208.
4
“Entelécheia” – cf. Leibniz, Monadologia, § 18.
5
Cf. KSA XII, 9[8], fragmento citado no início do texto.
6
Cf. Kierkegaard, Conceito de angústia, cap. I § 5.
7
Carneiro Leão, Os pensadores originários.
8
Cf. Za/ZA, Do conhecimento imaculado.
9
KSA XII, 9 (60).
10
KSA XIII, 16 (40).
1
2
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Por que não teoria do conhecimento? Conhecer é criar
referências bibliográficas
1. CARNEIRO LEÃO, E. (org). Os pensadores originários.
Petrópolis, Vozes, 1993.
2. HEGEL. G. W. Phänomenologie des Geistes. Hamburgo,
Felix Meiner Verlag, 1988.
3. KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1992.
4. KIERKEGAARD, S., Conceito de Angústia. São Paulo,
Hemus, 1968.
5. LEIBNIZ, G. W. Monadologie. Paris, Delagrave, 1925.
6. NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes. Berlim/Nova York, Water
de Gruyter, 1988.
6. ORTEGA Y GASSET, J. “La Idea de Principio en
Leibniz”. In: Revista de Occidente, Madri, 1967, Vol.
1, pp. 203-208.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Convenção para a citação
das obras de Nietzsche
Os cadernos Nietzsche adotam a convenção proposta pela edição
Colli/Montinari das Obras Completas do filósofo. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais.
I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:
I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:
GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I – Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss:
Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I:
David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II – Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen
und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas
II: Da utilidade e desvantagem da história para a vida)
SE/Co. Ext. III – Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück: Schopenhauer
als Erzieher (Considerações extemporâneas III: Schopenhauer como educador)
WB/Co. Ext. IV – Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück: Richard
Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV: Richard Wagner
em Bayreuth)
cadernos Nietzsche 13, 2002
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
MAI/HHI – Menschliches Allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado
humano (vol. 1))
VM/OS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen
(Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)
WS/AS – Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein
Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)
M/A – Morgenröte (Aurora)
IM/IM – Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência)
Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM – Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM – Zur Genealogie der Moral (Genealogia da moral)
WA/CW – Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:
AC/AC – Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH – Ecce homo
DD/DD – Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:
GMD/DM – Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST – Socrates und die Tragödie (Sócrates e a tragédia)
DW/VD – Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo)
GG/NP – Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)
BA/EE – Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de
nossos estabelecimentos de ensino)
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
CV/CP – Fünf Vorreden zu fünf ungeschriebenen Büchern (Cinco prefácios
a cinco livros não escritos)
PHG/FT – Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia
na época trágica dos gregos)
WL/VM – Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)
Edições:
Salvo indicação contrária, as edições utilizadas serão as organizadas
por Giorgio Colli e Mazzino Montinari: Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe em 15 volumes, Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./
DTV, 1980 e Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe em 8 volumes,
Berlim/Munique, Walter de Gruyter & Co./DTV, 1986.
Forma de citação:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arábico indicará
o aforismo; no caso de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arábico
remeterá à parte do livro; no caso de Za/ZA, o algarismo romano remeterá à parte do livro e a ele se seguirá o título do discurso; no caso de GD/
CI e de EH/EH, o algarismo arábico, que se seguirá ao título do capítulo,
indicará o aforismo.
Para os escritos inéditos inacabados, o algarismo arábico ou romano,
conforme o caso, indicará a parte do texto.
Para os fragmentos póstumos, o algarismo romano indicará o volume
e os arábicos que a ele se seguem, o fragmento póstumo.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Contents
Nietzsche’s “rhetorical turn”
Manuel Barrios Casares
7
“Lessons on the pre-platonic philosophers”
and Philosophy in Greek Tragic Age:
a comparative essay
37
Marcelo Lion Villela Souto
Odium fati:
Emil Cioran, the pessimistic hyena
67
Why not theory of knowledge?
Knowing is creating
89
Paulo Jonas de Lima Piva
Gilvan Fogel
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES
1. Os trabalhos enviados para
publicação devem ser inéditos,
conter no máximo 55.000
caracteres (incluindo espaços) e
obedecer às normas técnicas da
ABNT (NB 61 e NB 65) adaptadas para textos filosóficos.
2. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de até 100
palavras, em português e inglês
(abstract), palavras-chave em
português e inglês e referências
bibliográficas, de que devem
constar apenas as obras citadas.
Os títulos dessas obras devem
ser ordenados alfabeticamente
pelo sobrenome do autor e
numerados em ordem crescente, obedecendo às normas
de referência bibliográfica da
ABNT (NBR 6023).
3. Reserva-se o direito de aceitar,
recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de
mudanças. Os relatores de parecer permanecerão em sigilo.
Só serão considerados para apreciação os artigos que seguirem
a convenção da citação das obras
de Nietzsche aqui adotada.
NOTES TO CONTRIBUTORS
1. Articles are considered on the
assumption that they have not
been published wholly or in part
else-where. Contributions
should not normally exceed
55.000 characters (including
spaces).
2. A summary abstract of up to 100
words should be attached to the
article. A bibliographical list of
cited references beginning with
the author’s last name, initials,
followed by the year of publication in parentheses, should be
headed ‘References’ and placed
on a separate sheet in alphabetical order.
3. All articles will be strictly refereed, but only those with strictily
followed the convention rules
here adopted for the Nietzsche’s
works.
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Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Os cadernos Nietzsche visam a constituir um forum de debates em
torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir da reflexão
nietzschiana.
Nos cem anos que nos separam do momento em que o filósofo interrompeu a produção intelectual, as mais variadas imagens colaram-se à
sua figura, as leituras mais diversas juntaram-se ao seu legado. Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar normas e destruir
ídolos, Nietzsche, um dos pensadores mais controvertidos de nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro da discussão filosófica. Daí, a oportunidade destes cadernos.
Espaço aberto para o confronto de interpretações, os cadernos
Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as idéias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se
consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra,
estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os
de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em
avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano.
Ligados ao GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, que atua junto
ao Departamento de Filosofia da USP, os cadernos Nietzsche contam
difundir ensaios de especialistas brasileiros e traduções de trabalhos de
autores estrangeiros, artigos de pesquisadores experientes e textos de doutorandos e mestrandos ou mesmo graduandos.
Publicação que se dispõe a acolher abordagens plurais, os cadernos
Nietzsche querem levar a sério este filósofo tão singular.
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cadernos Nietzsche 13, 2002
Convenção para a citação das obras de Nietzsche
Founded in 1996, cadernos Nietzsche is published twice yearly every May and September. Its purpose is to provide a much needed forum in a professional Brazilian context for contemporay readings of
Nietzsche. In particular, the journal is actively committed to publishing
translations of contemporary European and American scholarship, original articles of Brazilian researchers, and contributions of postgraduated
students on Nietzsche’s philosophy.
Cadernos Nietzsche is edited by Scarlett Marton with an internationally recognized board of editorial advisors. Fully refereed, the journal
has already made its mark as a forum for innovative work by both new
and established scholars. Contributors to the journal have included
Wolfgang Müller-Lauter, Jörg Salaquarda, Mazzino Montinari, Michel
Haar, and Richard Rorty.
Attached to GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, which takes place
at the Department of Philosophy of the University of São Paulo, cadernos
Nietzsche aims at the highest analytical level of interpretation. It has a
current circulation of about 1000 copies and is actively engaged in expanding its base, especially to university libraries. And it has been sent
free of charge to the Brazilian departments of philosophy, foreigner libraries
and research instituts, in order to promote the discussion on philosophical
subjects and particularly on Nietzsche’s thought.
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