revista da alfabetização solidária
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REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA Vol. 3 – Nº 3 – 2003 ISSN 1519-9096 Semestral junho 2003 Revista da Alfabetização Solidária /Alfabetização Solidária. v.3, n.3 jan./jun. 2003. São Paulo: UNIMARCO, 2003. Revista da Alfabetização Solidária. Semestral ISSN 1519-9096 1. Alfabetização solidária 2. Educação – Brasil I. Título. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA Vol. 3 – N º 3 – 2003 ISSN 1519-9096 Semestral Direção: Alfabetização Solidária Edição: Unimarco Editora Editor: Reynaldo Damazio Editor-assistente: Luiz Paulo Rouanet Apoio: UNESCO Conselho Científico: Carmen Sá Brito Sigwalt (UFPR), Maria Valdelis Nunes Pereira (UNIVAP), Eliane de Moura (UEPB), Ivanilde de Sousa (Faculdade de Mococa), Luiza Marangoni (Faculdade Presidente Antônio Carlos), Maria de Fátima Chassot (Universidade Mackenzie), Neiva Costa Toneli (PUC Minas), Rosa Maria Jorge Persona (Universidade de Cuiabá), Vilvia Bentes (UNAMA), Ana Beatriz Longo Rodrigues (Universidade Católica de Pelotas). Comissão Editorial: Rosiléa Maria Roldi Wille, Edvirgem Ramos, Regina Célia Vasconcelos Esteves. Realização: Alfabetização Solidária SAU/Sul Quadra 5 – Bloco K – nº 17– Edifício OK Office Tower - 12º andar CEP.: 70070-050 – Brasília – DF Tel.: (61) 0800-610202 home page: www.alfabetizacao.org.br e-mail: [email protected] Capa: Sandro de Paiva Revisão de texto: Luiz Paulo Rouanet e Reynaldo Damazio Projeto gráfico: Simone de Castro Pinheiro Machado Diagramação: Regina Kashihara Impressão e acabamento: SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ....................................................................................... 5 ARTIGOS Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos de Andorinha – BA e Bacurituba – MA Alexandra Ferronato Beatrici ................................................................................ 7 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência Candido Alberto Gomes ....................................................................................... 17 Alfabetização e subjetividade Álvaro Pereira Gonçalves ..................................................................................... 29 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação Rosa Maria Jorge Persona Sumaya Persona de Carvalho .............................................................................. 39 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização Solidária em Várzea Alegre/CE Denize D. Campos Rizzotto ................................................................................. 47 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África Carmen Sá Brito Sigwalt Neiva Costa Toneli ................................................................................................ 57 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho de democratização da educação brasileira Claudia Maria de Andrade e Silva Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti ..................................................................... 71 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática pedagógica sem propostas prontas Lucileyde Feitosa Sousa ....................................................................................... 89 RESUMOS O alfabetizador em matemática – aprendendo a conhecer e a fazer o conhecimento matemático Solange Maria Gomes dos Santos ....................................................................... 97 A Fundação EDUCAR na Paraíba: histórias e memórias Maria Roberto de Lima ......................................................................................... 99 Contribuições de um projeto de arte e educação na alfabetização de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária Carminda André e Kathya Maria Godoy ........................................................ 100 Primeiras experiências de leitura e escrita: práticas culturais Imara Pizzato ....................................................................................................... 102 Uma experiência em Moçambique Eneida Maria Abreu de Souza ........................................................................... 103 Uma metodologia dialógica e pró-ativa para alfabetização de jovens e adultos Deuzimar Serra Araújo ....................................................................................... 104 A EJA nas comunidades indígenas: desabafos e possibilidades Antônio Jorge Paixão, Raimunda Benedita Caldas e Tabita Fernandes da Silva ................................................................................. 106 O encontro de secretários municipais e coordenadores municipais – sua repercussão na melhoria do PAS nos municípios como formadores de ações para integralização, sociabilidade de cidadania Afife Salim Sarquis Fazzano .............................................................................. 107 A sociabilidade nas famílias do nordeste brasileiro Afife Salim Sarquis Fazzano .............................................................................. 108 Formação continuada na educação de pessoas jovens, adultas e idosas: uma experiência no Estado da Bahia Lorita Maria de Oliveira, Maria Helena Weschenfelder e José Jackson Reis dos Santos ............................................................................................................. 109 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO ........................................................ 111 Apresentação Alfabetização Solidária tem imensa satisfação de apresentar o terceiro volume da Revista da Alfabetização Solidária, trabalho realizado em conjunto com as Instituições de Ensino Superior (IES), que busca promover e fortalecer o debate acerca de temas que envolvem a alfabetização e a educação de jovens e adultos. Temos a honra, mais uma vez, de reconhecer e divulgar o trabalho de nossos professores parceiros no empenho em produzir e disseminar, num processo permanente, a produção de conhecimento científico, com o intuito de trabalhar maneiras mais eficazes para a diminuição dos altos índices de analfabetismo de nosso país. Trata-se de uma publicação que divulga, em uma primeira parte, artigos científicos de professores dessas instituições relacionados à alfabetização e à educação de jovens e adultos e resumos de artigos, dissertações e teses desses mesmos professores. Dois dos artigos aqui apresentados relatam experiências e práticas de letramento em municípios do Nordeste brasileiro, quais sejam, “Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos de Andorinha (BA) e Bacurituba (MA)” e “Algumas práticas de letramento: uma experiência no Programa Alfabetzação Solidária em Várzea Alegre/CE, das professoras Alexandra Ferronato Beatrice e Denize D. Campos Rizzotto, respectivamente. Ademais, encontra-se, aqui, texto sobre o alfabetizador ribeirinho da Amazônia, artigo de autoria de Lucileyde Feitosa Sousa. A REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Apresentação – p. 5-6 |5 Discute-se, também, no artigo do professor Candido Alberto Gomes, algumas práticas bem sucedidas de educação de jovens e adultos e o artigo de Álvaro Pereira Gonçalves confronta diferentes autores no que diz respeito às concepções de leitura e escrita. Já as autoras Cláudia Maria de Andrade e Silva e Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti abordam aspectos relativos à história da educação brasileira no século XX, focalizando, sobretudo, a alfabetização. Mostra-se relevante a contribuição das autoras Rosa Maria Jorge Persona e Sumaya Persona de Carvalho que comentam sobre os principais resultados de pesquisa realizada em municípios do Norte e Nordeste, cujo objetivo consistiu em compreender a relação afetiva entre os alfabetizadores do Alfabetização Solidária. Por fim, as professoras Carmen Sá Brito Sigwalt e Neiva Costa Toneli relatam experiência de formação continuada nos Projetos Internacionais em São Tomé e Príncipe, na África. Assim, convidamos nossos leitores a compartilhar as reflexões dos autores apresentados sobre temas relativos à alfabetização e à educação de jovens e adultos, esperando, dessa forma, colaborar com o desenvolvimento e produção de conhecimento científico nessa área da educação brasileira. Regina Célia Vasconcelos Esteves Superintendente Executiva da AAPAS Coordenadora Nacional da Alfabetização Solidária 6| REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Apresentação – p. 5-6 ARTIGOS Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos de Andorinha – BA e Bacurituba – MA Alexandra Ferronato Beatrici Universidade Regional Integrada – URI – Campus de Erechim – RS “O nosso olhar parte de onde nossos pés pisam” Leonardo Boff “O saber tem historicidade. Nunca é, está sempre sendo. Mas isto não diminui em nada, de um lado, a certeza fundamental de que posso saber; de outro, a possibilidade de saber com maior rigorosidade metódica, o que aumenta o nível de exatidão do achado” Paulo Freire Introdução concepção de letramento numa perspectiva sócio-histórica nos leva a assumir que a linguagem é interação e, como tal, pressupõe a participação de sujeitos sociais que participam de ações contextualizadas em situações sociais de uso real da linguagem. A “Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... – p. 7-16 |7 a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (Freire, 1996, p.44). Constatando, tornamo-nos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. O letramento é um fenômeno essencialmente social, e propicia esta intervenção. Saber ler e escrever uma centena de palavras e frases não capacita o indivíduo para a leitura do jornal, de um documento etc, daí a necessidade de se letrar os sujeitos envolvidos no processo de aprendizagem, tanto alfabetizandos, como alfabetizadores, estes responsáveis pela mediação e re-construção de saberes em sala de aula. Entendendo por letramento a relação que cada indivíduo e cada grupo social estabelece com a língua escrita. Não afirmo com isso que o letramento garante ao aluno a inclusão social, mas a falta de letramento determina a exclusão. O olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos A implantação do Programa Alfabetização Solidária em Andorinha localizada ao norte da Bahia, com 12 mil habitantes, e posteriormente de Bacurituba, localizada na baixada Maranhense, de aproximadamente 5 mil habitantes, foi e continua sendo um desafio. Desafio que neste olhar volta-se para a concepção de letramento dos alfabetizadores com quem trabalhamos na Capacitação e dos alfabetizandos durante o andamento do módulo, pois uma das convicções que orientam nosso trabalho é a de possibilitar aos alfabetizadores e educandos o conhecimento e a criticidade diante dos fatos sociais, culturais e educacionais, proporcionando a reconstrução do pensamento e a interação com a sociedade. Constatamos que durante a Capacitação (ocorrida a cada semestre e com novos alfabetizadores) a concepção de alfabetização refletia no desenvolvimento do processo de letramento. No início do trabalho pedagógico, grande parte dos alfabetizadores mostravam-se leigos no assunto, ou mantinham enraizadas as concepções e metodologias em que foram alfabetizados; estas resumiam-se em ensinar o ba-be-bi-bobu, ou acreditavam que o bom resultado do Programa Alfabetização Solidária seria atingido quando os alfabetizandos conseguissem escrever o nome, passando assim, cinco meses somente na decodificação de 8| REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... - p. 7-16 letras, ou na cópia e repetição destas. Ou seja, transferiam para a práxis da educação de adultos os mesmos métodos e estratégias do ensinoaprendizagem de uma educação tradicional, sem compromisso educacional, sendo negada toda a cultura do aluno trabalhador, pois a alfabetização que tinham em mente desacreditava no conhecimento do adulto. Como diz Madeira (1999), demostrava a desvalorização da experiência de vida e de trabalho de homens e mulheres adultos, excluídos da cultura letrada, não valorizados socialmente. No relato de alguns alfabetizadores encontrávamos as seguintes expressões quando questionados sobre o que gostariam que seus alunos aprendessem: “queria que soubessem escrever o nome para nunca mais colocarem a impressão digital no papel”; ou “Vou me empenhar para que saibam aprender as letras e os nomes dos familiares”, ou ainda “A minha maior felicidade vai ser quando todos estiverem escrevendo seus nomes sem copiar do quadro”. Notávamos que tais concepções do processo de alfabetização mostrava-se atrasado, sem compromisso social e ético com o processo educacional, pois alfabetizar exigiria a incorporação de concepções comprometidas com uma mudança educacional e com o desenvolvimento do letramento. Arroyo (1996) defende uma educação para o adultos trabalhadores que propicie a estes o acesso ao saberes construídos. “Educar em qualquer instituição ou área nada mais é do que contribuir no processo de humanização” (ibidem, p.14). Esta humanização está ligada ao professor-alfabetizador que crê no processo de construção do conhecimento e faz da sua profissão um meio de contribuir, de forma significativa, para o desenvolvimento do ser humano, se responsabilizando por construir com os alunos os conceitos, conhecimentos sistematizados, adquiridos nas interações com o meio, os saberes quotidianos, os conhecimentos construídos através da observação e vivência. Precisávamos, durante a Capacitação, proporcionar o diálogo sobre estes aspectos de maneira crítica, através da comunicação entre as pessoas envolvidas, propiciando a percepção da importância de modificarem seus conceitos acerca da alfabetização de adultos. A Capacitação tornou-se um instrumento, sua finalidade estava em construir e reconstruir idéias, falas, atitudes, para que os alfabetizadores atingissem a real função de sujeitos envolvidos com o processo de mudança que iria ocorrer a partir de então, não fugindo aos problemas e dificuldades da REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... – p. 7-16 |9 realidade, mas desenvolvendo integralmente as capacidades de socialização, integração e posicionamento diante da sociedade. “Para ser válida, toda educação, toda ação educativa deve necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem concreto a quem queremos ajudar a educar-se” (Freire,1980, p.34). A educação de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária, dadas as suas características, requeria um perfil de alfabetizador que a maioria não apresentava, uma vez que seus cursos de formação não incluíam estudos sobre a área, e aqueles que atuavam nesse segmento baseavam suas práticas pedagógicas no empirismo, na intuição, no ensaio e erro e no modelo de sua escolarização. Essa atuação improvisada responderia, juntamente com outras causas, por taxas de evasões e, conseqüentemente, manutenção dos índices de analfabetismo, tornando-se necessária reflexões sobre as atitudes e metodologias utilizadas. Os alfabetizadores foram reconstruindo suas concepções, capacitados para planejarem suas ações a partir das vivências dos alfabetizandos num diálogo intercultural, utilizando conteúdos contextualizados que veiculassem informações advindas das diferentes áreas do conhecimento, levando-os a encaminharem-se para o letramento. “Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita” (Soares, 1998, p.18). O pressuposto é que quem aprende a ler e a escrever e passa a usar a leitura e a escrita, a envolver-se em práticas de leitura e de escrita, torna-se uma pessoa diferente, adquire um outro estado, uma outra condição. “Socialmente e culturalmente, a pessoa letrada já não é a mesma que era quando analfabeta ou iletrada, ela passa a ter uma outra condição social e cultural; não se trata propriamente de usar de nível ou de classe social, cultural, mas de mudar seu lugar social, seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura – sua relação com os outros, com o contexto, com os bens culturais, torna-se diferente” (Soares, 1998, p.37). Ter-se apropriado da escrita é diferente de ter aprendido a ler e a escrever: aprender a ler e escrever significa adquirir uma capacidade, 10 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... - p. 7-16 a de codificar e decodificar a língua escrita, apropriar-se da escrita é torná-la própria, assumi-la como sua propriedade. Despertar a reflexão para o significado do letramento era a maneira dos alfabetizadores despertarem para a consciência do real e, portanto, não poderia efetuar-se a não ser no seio desta tomada de consciência. Possibilitando também que os alfabetizandos fossem inseridos na construção da sociedade e na direção das mudanças sociais, fazendo com que se descobrissem autores do mundo e criadores de cultura. A Capacitação deveria auxiliar os alfabetizadores a serem sujeitos, instrumentalizando-os para algo mais que a preparação de quadros técnicos, de decodificações sem sentido, fora do contexto vivido. Além da formação e pesquisas realizadas durante esta, dos acompanhamentos e estudos feitos durante as visitas aos municípios mensalmente, foi realizada uma pesquisa durante o módulo XI, com a finalidade de detectar o nível de letramento dos alfabetizandos, fazendo com que conseguíssemos avaliar o trabalho do alfabetizador e também, onde e de que maneira poderíamos aperfeiçoar a Capacitação, contribuindo assim para o processo educacional no qual acreditamos. No Brasil, há poucas pesquisas que procuram avaliar o nível de letramento de jovens e adultos. A tendência tem sido considerar como alfabetizado (o termo adequado seria letrado), o indivíduo que tenha completado a 4º série do ensino fundamental, com base no pressuposto de que são necessários no mínimo quatro anos de escolaridade para a apropriação da leitura e da escrita e de seus usos sociais. Mas, quando se calcula o analfabetismo no Brasil com base nesse critério, o índice cresce assustadoramente. O primeiro passo para a realização da pesquisa foi de acompanhar as turmas em cada município, e aplicar o questionário de coleta de dados. Não nos detivemos como acontece em alguns países em verificar o nível de letramento pela quantidade de anos que os alunos permaneceram na escola (isto acontece em países desenvolvidos), a realidade em que trabalhamos com o Programa nos municípios é outra, alguns alunos já passaram pela escola, cursando até a 3º – 4º séries do ensino fundamental, mas esqueceram o que haviam aprendido. Em algumas salas, a presença dos alunos não é constante (não se caracteriza como evasão, pois os alfabetizandos geralmente vão em busca de emprego ou trabalham em plantações e, quando o período de colheita ou plantio se encerra, retornam para a sala). Também não utilizamos nesta pesquisa a autoavaliação, realizada em algumas verificações de níveis de letramento, especialmente pelo censos demográficos nacionais, pois pergunta-se REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... – p. 7-16 | 11 simplesmente se sabem ler e escrever, sem qualquer referência a o quê é capaz de ler ou à compreensão do que é lido ou escrito. Utilizamos um questionário contendo perguntas, sendo estas fechadas e abertas, a fim de confirmar o aprofundamento das respostas. Durante o semestre foram visitadas as salas de alfabetização, observadas e coletadas atividades, falas e atitudes dos alunos frente à proposta dos professores alfabetizadores. Também aplicamos algumas atividades, para verificar se haviam incorporado a função social da leitura e escrita. As atividades foram desde leitura e compreensão do que é, e para que servem os diferentes instrumentos de que dispomos em nossa sociedade: notícias, revistas, jornais, gravuras, mapas, programas televisivos, notícias do rádio, acontecimentos da cidade, da comunidade onde residem e do trabalho entre outras. Com a pesquisa, constatamos o letramento funcional nos alfabetizandos: alguns queriam aprender a ler folhetos, escrever cartas, ler a bíblia, mas a grande maioria gostaria de escrever o nome para não colocar a impressão digital onde solicitados. Esta idéia estava enraizada na comunidade, pouquíssimos foram além destas expectativas. Compreendemos que isto acontece devido ao contexto social em que vivemos e aos séculos de uma ideologia que pregou e prega uma alfabetização desvinculada de seu principal objetivo, fortalecer as camadas populares. O letramento nessa interpretação fraca de sua dimensão social, é definido em termos de habilidades necessárias para que o indivíduo funcione adequadamente em um contexto social (vem daí o termo letramento funcional ou alfabetização funcional). Segundo Gray1, o letramento funcional consiste nos conhecimentos e habilidades de leitura e escrita que tornam uma pessoa capaz de engajar-se em todas aquelas atividades nas quais o letramento é normalmente exigido em sua cultura ou grupo. O letramento funcional designa um estado mínimo, essencialmente negativo e passivo, ser funcionalmente letrado é ser capaz de estar à altura das pequenas rotinas cotidianas e dos comportamentos básicos dos grupos dominantes na sociedade contemporânea (Soares, 1998, p.74). O letramento funcional significa adaptação. Segundo Scribner, 1984 (apud Soares, 1998, p.73), caracteriza conceito que enfatiza seu valor pragmático ou de sobrevivência. “A necessidade de habilidades de letramento na nossa vida diária é óbvia, no emprego, passeando pela cidade, fazendo compras, todos encontramos situações que requerem o uso da leitura ou a produção de símbolos escritos”. O segundo aspecto detectado com a pesquisa, indicou que um dos fatores que impossibilitava o desenvolvimento do fenômeno do letra12 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... - p. 7-16 mento nas salas de alfabetização de adultos era o conhecimento e envolvimento por parte dos alfabetizadores, pois as representações de alfabetização que tinham, e as práticas pedagógicas que utilizavam não possibilitava o ir além, pois os adultos eram capazes de comportamentos escolares de letramento, mas eram incapazes de lidar com os usos cotidianos da leitura e da escrita em contextos não escolares. Os alfabetizadores apresentam um baixo grau de escolaridade, pouco conhecimento literário e crítico sobre questões educacionais, não conseguindo assim incorporar a utilidade da leitura e escrita, sabem onde podem utilizá-las, mas não conseguem fazê-las saírem das quatro paredes da sala de alfabetização ou das atividades ligadas ao livro didático. “Como educador preciso ir lendo cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações políticas-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo leitura do mundo, que precede sempre a leitura da palavra” (Freire, 1996, p.98). Esta leitura de mundo, que resume a ligação entre teoria-prática era o que faltava para os alfabetizadores, pois não faziam a mediação entre ambas, dificultando também a aprendizagem dos alfabetizandos, já que a grande maioria busca na escolarização a esperança de algo que foi deixado para trás e a possibilidade de se integrarem na sociedade como pessoas letradas. “O nível de letramento de grupos sociais relaciona-se fundamentalmente com as suas condições sociais, culturais e econômicas. É preciso que haja, pois, condições para o letramento” (Soares,1998, p.58). Quanto mais letrado for o professor alfabetizador, mais condições terá de letrar seus alunos, terá que adequar à sala de aula práticas que fazem parte de seu cotidiano. Três momentos dialeticamente e interdisciplinarmente entrelaçados podem auxiliar os alfabetizadores para promoverem o letramento em suas salas de alfabetização: primeiro, a investigação temática, pela qual aluno e professor buscam, no universo vocabular de ambos, onde vivem, as palavras e temas centrais de sua biografia; segundo, a tematização, pela qual eles REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... – p. 7-16 | 13 codificam e decodificam esses temas, buscando os seus significados sociais, tomando assim, consciência do mundo vivido; terceiro, a problematização, na qual buscam superar uma primeira visão mágica por uma visão crítica, partindo para a transformação do contexto vivido. Uma nova concepção da relação pedagógica foi proposta, não se tratava de conceber a alfabetização apenas como transmissão de conteúdos, mas de estabelecer um diálogo, introduzindo o letramento, isto significa que aquele que educa também esta aprendendo, visando uma educação mais humana, permitindo a mulheres e homens serem reconhecidos como sujeitos da sua história e não como objetos desta. A educação problematizadora que propomos aos alfabetizadores durante a Capacitação, está ligada a criatividade, estimulando a ação e a reflexão sobre a realidade, comprometendo-se com a procura e a transformação criadora do ser para poder construir a interação entre os sujeitos envolvidos no processo. Quanto mais criticamente exercermos a capacidade de aprender e de intervenção no espaço de aprendizagem mais estimularemos a ação e reflexão, guiando e orientando a comunidade escolar para as possibilidades de mudança, pois a alfabetização de adultos é o processo pelo qual os sujeitos (alfabetizandos e alfabetizadores) constroem atitudes, valores e consciência crítica através do meio, da tarefa de assegurar a aprendizagem do letramento a todos os que freqüentem as classes de alfabetização. Aprofundamos os estudos sobre o letramento com os professores alfabetizadores, já que a meta não é simplesmente ensinar o bê-a bá, ou seja a decodificação das letras, mas também ensinar para que serve a linguagem escrita e como poderão usá-la. “Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática” (Freire,1996, p.44). Constatando, tornamo-nos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. O letramento é um fenômeno essencialmente social, e propicia esta intervenção. “Programados para aprender e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que haja mulheres e homens 14 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... - p. 7-16 há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender” (Freire, 2000, p.85). A ênfase no letramento não significa a desvalorização da alfabetização, mas é o meio para a socialização da leitura e escrita onde a alfabetização é um componente deste processo. O letramento na sua dimensão social não é um atributo unicamente pessoal, mas sobretudo uma prática social, é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais “letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais, é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (Soares, 1998, p.72). Ser letrado em nossa sociedade significa introduzir-se na diversidade de práticas de leitura e escrita, significa ser apresentado e tornar-se usuário da variedade de textos que encontramos diariamente e não simplesmente ao ABC pois, para fazer uso da língua escrita, o alfabetizando necessita mais que um conhecimento rudimentar do código escrito, precisa experimentar um conjunto relativamente amplo de práticas de leitura e escrita, pelo menos aquelas que correspondem aos usos mais comuns dessas em nossa sociedade. Como destaca Marta Kohl Oliveira (1992) os adultos que chamamos analfabetos estão imersos no mundo letrado, são envolvidos pelas informações desse mundo e acumulam conhecimentos sobre suas regras de funcionamento e sobre o próprio sistema de escrita, sabem que não dominam este sistema, mas, buscam estratégias pessoais para lidar com os desafios que enfrentam nas esferas da vida que exigem competências letradas. Reconstruir com os alfabetizadores dos municípios de Andorinha e Bacurituba onde trabalhamos com o Programa Alfabetização Solidária desde 1998, que o objetivo da alfabetização é ensinar a ler, escrever, encaminhar o alfabetizando para o processo de letramento, para a compreensão das funções da língua oral e escrita na sociedade, torna-se ainda desafiador. A cada Capacitação recebemos um novo grupo de professores, que através dos estudos irão reformular e construir a sua compreensão acerca das bases teóricas da aprendizagem, e como Instituição de Ensino Superior devemos possibilitar a estes um processo constante de reflexão sobre a visão de mundo e de alfabetização que embasam suas práticas, fazendo assim com que reconheçam e incorporem uma nova educação de jovens e adultos, onde esta visará à preparação de sujeitos capazes de interagir com o meio e promover o desenvolvimento REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... – p. 7-16 | 15 coletivo, estabelecendo novas formas de relações no processo de letramento, pois, o saber construído através deste é um dos alicerces para a caminhada do cidadão que busca conhecer o mundo em que vive. Como já disse Paulo Freire (1980), somente a prática do professor irá conduzir os alfabetizandos à libertação ou à opressão, e o desenvolvimento do letramento torna-se fundamental para que tenhamos avanços na educação de adultos, de forma que nessa etapa de ensino o sujeito que busca o conhecimento não seja desenraizado de sua história, de seu tempo, de sua cultura e da sociedade mas sinta-se sujeito, cidadão letrado num mundo letrado. O preparo dos alfabetizadores tem proporcionado alterações no ensino dos municípios e desenvolvido o letramento de ambos os envolvidos. Sabemos que o processo é lento diante da grande situação que encontramos, mas os resultados são observados e mostramse com reais possibilidades de verdadeiras mudanças educacionais. Notas 1 Gray, 1956 enfatiza a natureza pragmática do letramento, em Soares, 1998, p.72. Referências Bibliográficas: ARROYO, Miguel.Educação Básica, Profissional e Sindical - um direito do trabalhador, um desafio para os sindicatos. In: Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte: Secretária Municipal de Educação. 1996. FREIRE,Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ____________ Pedagogia da Indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos São Paulo: Ed. UNESP, 2000. FREIRE, Paulo. Conscientização. Teoria e Prática da Libertação. Morais: São Paulo. 1980. MADEIRA,Vicente de Paulo. Para falar de Andragogia, Programa Educação do Trabalhador. v.2, CNI-SESI. 1999. SOARES, Magda. Letramento. Um tema em três Gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,1998. Alexandra Ferronato Beatrici Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Campus Erechim/RS Av. Sete de Setembro 1620 – CEP: 99700-000 16 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Um olhar sobre o letramento nos alfabetizadores e alfabetizandos... - p. 7-16 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência Candido Alberto Gomes Universidade Católica de Brasília Seminário Internacional sobre Práticas Bem Sucedidas na Educação e Alfabetização de Jovens e Adultos se reuniu em 10 de setembro de 2002, durante a terceira Semana da Alfabetização da Comunidade Solidária, na cidade de São Paulo. Constituindo a abertura da Década da Alfabetização das Nações Unidas no Brasil, o evento foi organizado pelo Instituto de Educação da UNESCO, em Hamburgo, e pelo Escritório da UNESCO no Brasil. Vinte e dois países estavam representados, 12 dos quais apresentaram trabalhos sobre as suas experiências. As apresentações e os debates formaram um rico painel sobre os desafios e as respostas oferecidas no mundo. O Este relatório sintético está dividido em várias partes: primeiro, como fundamento, considerações iniciais sobre as crescentes exigências da sociedade do conhecimento e as relações entre características marcantes da subescolarização e seu enraizamento social e a Educação para Todos; segundo, uma visão das experiências apresentadas e das lições que delas se pode extrair. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência – p. 17-28 | 17 Crescentes exigências da sociedade do conhecimento Como é amplamente reconhecido, a alfabetização formal se tornou claramente insuficiente em face da escalada de exigências educacionais na sociedade do conhecimento. A alfabetização funcional, assim como a alfabetização para o uso das novas tecnologias da informação e comunicação, constituem capacidades mínimas a serem universalmente compartilhadas com a população. De outro modo, o conhecimento e as competências insuficientes levarão grupos humanos cada vez mais numerosos a serem excluídos. Este é o principal motivo pela qual a alfabetização não pode mais ser abordada stricto sensu, como no caso dos antigos 3 R’s, na expressão inglesa, isto é, ler, escrever e contar. Hoje ela é um processo muito mais exigente, que requer não apenas escolarização – como base para a educação continuada, ao longo da vida –, mas também um ambiente favorável para a sua prática e o amadurecimento na família, na comunidade e no trabalho, como tem sido assinalado pelos documentos básicos da Década da Alfabetização das Nações Unidas (Organização das Nações Unidas, 2000; Robinson, 2002). Igualmente, ela exige educação posterior a fim de manter e de avançar, tendo como plataforma as conquistas já realizadas. Como resultado, a alfabetização nesse sentido amplo está intimamente associada à guerra contra a pobreza, tal como recomendado pelo Marco de Ação de Dacar, tendo em vista a Educação para Todos (Educação para todos, 2001). Por isso, a educação sozinha não pode maximizar os seus efeitos se as condições de vida não mudam como um todo. No entanto, a guerra contra a pobreza não pode ser vencida sem educação. Isso é particularmente importante para a América Latina e o Caribe, onde as disparidades sociais e educacionais são mais agudas do que em qualquer outro continente. Embora a América Latina e o Caribe tenham um nível de riqueza e educação mais alto que outras áreas do mundo em desenvolvimento, a distribuição desses bens é altamente assimétrica, de modo que tanto o acesso quanto a democratização constituem temas importantes de reflexão e ação. Nessa relação de interdependência mútua entre educação e pobreza, a educação básica é ao mesmo tempo um direito, um dever e uma responsabilidade para todos, como foi lembrado pela Declaração de Hamburgo (Declaração..., 1997). Usando uma metáfora para ilustrar estes fenômenos complexos e interrelacionados, a alfabetização é uma porta aberta para a espécie humana, enquanto a educação básica é a ponte para a educação continuada, um caminho que vai do nascimento até a morte. 18 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência - p. 17-28 Os compromissos coletivos e o novo enraizamento histórico-social Os Compromissos de Dacar envolvem assegurar o atendimento às necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos, bem como alcançar uma melhoria de 50 % nos níveis de alfabetização de adultos até 2015, especialmente para as mulheres (Educação..., 2001). Estes dois objetivos, um qualitativo e outro quantitativo, remetem a algumas estratégias estabelecidas pelo mesmo documento: • • • • Promover políticas num quadro setorial sustentável e bem integrado, vinculado de maneira clara à eliminação da pobreza e a estratégias de desenvolvimento; Mobilizar forte comprometimento político; Garantir o envolvimento e a participação da sociedade civil nas estratégias para o desenvolvimento educacional; Desenvolver sistemas de direção e administração educacional sensíveis, participativos e controláveis. Estas estratégias evidenciam a consciência de um novo enraizamento histórico-social da subescolarização e do fracasso escolar, numa visão de conjunto, indispensável ao sucesso no cumprimento dos compromissos em tela. Em primeiro lugar, a inserção das políticas educacionais no contexto das políticas de desenvolvimento e de combate à pobreza é o reconhecimento de que há mútua dependência entre elas. Da mesma forma que é ocioso discutir o que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, não adianta debater se a subescolarização é antes filha da pobreza ou o contrário. Falta de acesso e fracasso na escolarização constituem expressões do fracasso social, da reprodução da lógica e da política de exclusão, que perpassa todas as instituições sociais e políticas (cf. Arroyo, 2000). Ambas são reflexos e fatores da exclusão social e da pobreza, com que se preocupa expressamente a Declaração de Dacar. Nesse caso, cumpre distinguir que os pobres são aqueles que têm renda e capacidade de consumo abaixo de determinados limites, mas excluídos são os que não dispõem de determinado padrão de vida, de inclusão de costumes, de valores e de qualidade de vida, como ser do sexo feminino, ter cor negra, ser idoso etc. (Sposati, 2000). Portanto, nessa visão holística, a educação é muito mais que um problema pedagógico, é parte de um contexto histórico-social que a produz e para o qual ela contribui. Daí porque a alfabetização não pode ser vista como uma REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência – p. 17-28 | 19 mera questão de sala de aula ou um problema de educadores, mas um processo social abrangente mesclado a outros processos sociais. A complexidade da problemática, por isso mesmo, requer respostas à altura, com o comprometimento político e a participação da sociedade civil. Com efeito, o tradicional Estado-Providência, que presidiu à industrialização substitutiva de importações e foi motor do desenvolvimento econômico e social, contava consigo mesmo e com os recursos que se apresentavam amplos para as necessidades da época. Ele se arrogava as responsabilidades da educação, sobretudo em certos níveis, muitas vezes com elevado grau de centralização e concentração das decisões. Toda a educação ficava sujeita à burocracia pública, hiper-regulamentadora. No entanto, a paisagem mudou na “década perdida”, veio a crise fiscal, os recursos encolheram e a capacidade técnica e gestora do Estado entrou em crise. Uma alternativa utilizada, em várias ocasiões, foi a de transferir os problemas para a mão invisível das forças de mercado, esperando que a interação entre a oferta e a procura resolvesse por si os problemas de sociedades altamente desiguais. Por excesso ou escassez, o Estado deixou de exercer as ações historicamente necessárias (Gomes, 2002). Por isso mesmo, as políticas sociais deixam de ser uma prerrogativa exclusiva do Estado para se tornar uma função social mais ampla, com profundo envolvimento da sociedade civil e novo conceito de exercício da cidadania (Colozzi, 2002; Gajardo, 2002). Esse pacto entre o Estado e a sociedade civil é baseado em processos de descentralização, parceria, transparência, controle social e participação, que integra as políticas setoriais, assim como o local e o global. Implica o fortalecimento do tecido social, a ampliação do espaço público e a consolidação da democracia (Setúbal, 2000). Assim, o papel do Estado não é o do Leviatã centralizador, que supostamente tudo pode, que tudo reforma segundo os seus ditames. Também não é o de ausente, que “terceiriza” as responsabilidades, mas um órgão permeável, aberto, cooperativo, responsável e, sobretudo, profundamente comprometido, do ponto de vista político, com as suas responsabilidades. A ele cabe articular o pacto entre as forças vivas da sociedade, garantindo o respeito às normas do jogo. Sua missão é a de organizar a conciliação, avaliar resultados e atuar diretamente onde necessário (cf. Tedesco, 1998; Teodoro, 1996). Por fim, segundo o espírito desse pacto, diametralmente oposto às mudanças verticalmente impositivas, surge a necessidade de desenvolver sistemas de direção e administração educacional sensíveis, 20 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência - p. 17-28 participativos e controláveis. Parceria e descentralização são alguns dos termos-chave, que abrem perspectivas para atender às necessidades de formar uma comunidade educativa. Efetivamente, a escola, trabalhando com valores e conhecimentos, tem uma natureza própria, que está além de uma empresa e, segundo alguns, de uma simples instituição. Pode ser definida como uma instituição do conhecimento socialmente capaz, baseada no próprio conhecimento, na comunicação, na cooperação e na comunidade. Valorizada por uma dupla cadeia de valores, sociais e de serviço, constitui em si uma comunidade e está necessariamente incluída na comunidade local e, conforme a situação, nacional e internacional (Butera et al., 2002). Desse modo, a educação para todos e, conseqüentemente, a escola para todos constituem, antes de mais nada, um problema de todos e não de uma máquina burocrática. O papel estratégico da liderança e da parceria A alfabetização e a educação de jovens e adultos constitui um complexo de missões difíceis e de grande porte que requerem a associação de atores governamentais e não governamentais, como de organizações internacionais. Parafraseando a expressão segundo a qual a guerra é muito séria para ser deixada inteiramente aos generais, a alfabetização e a educação são também complexas demais para serem o objeto de um único ator. As experiências apresentadas no seminário apresentaram bons resultados resultantes da integração de todos os níveis de governo e da mobilização da sociedade civil, tal como foi recomendado pela Conferência de Dacar. Não por acaso o programa brasileiro de alfabetização se chama Comunidade Solidária. O caso da Guatemala, apresentado no evento, é particularmente ilustrativo de um movimento coletivo, baseado em voluntários, envolvendo jovens, adolescentes e até crianças, apoiados tecnicamente pelo governo. Integrando o governo e organizações não governamentais, isso é especialmente significativo numa sociedade multilíngüe e multicultural que administra aguda escassez de recursos, aliada às disparidades sociais. Com isso, nos mais variados ambientes educativos,o país está lutando contra uma alta taxa de analfabetismo. Por seu lado, o programa Comunidade Solidária, no Brasil, com a sua ampla gama de parcerias, incluindo em particular os governos federal, estaduais e municipais, universidades e faculdades, assim como uma miríade de REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência – p. 17-28 | 21 organizações não governamentais, é outro exemplo de associação de esforços para alcançar capilaridade num país de dimensões continentais. Na Jamaica, por seu lado, a Fundação JAMAL tem promovido o engajamento de numerosas forças sociais para atingir o objetivo de erradicar o analfabetismo. Por fim, a grande variedade de experiências na promoção de semanas de educação de adultos é outro exemplo de oportunidades para mobilizar a sociedade civil em numerosos países, conduzindo a pactos educacionais explícitos ou implícitos, cuja relevância já foi ressaltada como meio de reforma e de cumprimento dos compromissos de Dacar. O valor da parceria é tão expressivo que a UNESCO-Brasil propõe o estabelecimento de uma rede de cooperação entre países e instituições a fim de trocar regularmente lições extraídas das suas experiências. A riqueza da pluralidade O precioso mosaico de experiências que foi apresentado no seminário ilustrou a necessária flexibilidade na aprendizagem dos jovens e adultos de acordo com o contexto econômico, social e cultural e ambiental. Tal diversificação em dimensões intranacionais e internacionais, além de ser um formidável desafio técnico, é uma fonte de infinito enriquecimento dos processos educacionais. Os educadores precisam extrair vantagens desta pluralidade, em vez de eventualmente considerá-la como um obstáculo, já que a realidade está longe de ser singular. Com efeito, a diversidade não é uma fraqueza, mas uma recurso inigualável para a adaptação e a sobrevivência em tempos de mudança e de crise, do mesmo modo que a biodiversidade. Como conseqüência, de acordo particularmente com a experiência brasileira, as culturas oral e escrita não são opostas e a última não pode ser encarada como inferior à primeira. Em vez de estabelecer uma tensão destrutiva entre elas, os educadores devem promover o seu mútuo enriquecimento. Um exemplo oferecido pelo seminário foi a experiência israelense com os imigrantes etíopes, que demonstrou o valor de integrar o processo educacional nos respectivos contextos e, assim, de construir e não de queimar pontes de mão dupla. A cultura e a língua desses imigrantes é amplamente usada e respeitada no processo, tendo como elos educadores que, de preferência, partilham das suas experiências e/ou têm a mesma origem. Sua aprendizagem parte 22 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência - p. 17-28 das situações de vida mais prementes, para que consigam resolver os seus problemas e ganhar autonomia. Os efeitos positivos das semanas de educação de adultos promovidas por numerosos países são também exemplos de como a diversidade cultural, por meio da mobilização social, é uma tesouro para promover o processo educacional. Conjugando as forças vivas da sociedade em eventos na mídia, festivais, reuniões, conferências, festividades em todo o país e quantas outras atividades forem significativas; reunindo diferentes culturas e grupos, esses países, conforme as suas apresentações, têm sido bem sucedidos em tornar a educação de jovens e adultos uma questão pública, ao mesmo tempo que despertam grande interesse da população. Dessa forma, a educação deixa de ser um problema de educadores e educandos para se tornar um assunto público, com as suas realizações, inclusive com episódios emocionantes de ex-alunos que efetuam grandes conquistas no campo da cultura e do trabalho. Com isso, se obtém atenção, doações em forma de trabalho voluntário e outros recursos e apoio para conquistar mais verbas públicas. Em outras palavras, a educação sai do seu nicho para se tornar, como cumpre ser, um problema e um compromisso de todos. Nesse sentido, os Festivais Egípcios da Aprendizagem são um exemplo, uma vez que, uma semana por ano, eles mobilizam todo o país, desenvolvendo-se nos mais variados meios sociais, das aldeias às cidades, e combinando atividades face a face com a ação da mídia. Além disso, é preciso atentar que o respeito à pluralidade é uma característica essencial dos projetos de educação de jovens e adultos. O programa brasileiro Comunidade Solidária, atuando com elevado número de instituições de educação superior, tem sido bem sucedido ao usar várias metodologias de alfabetização, em vez de uma. Com isso, estabelecem-se vários caminhos para o mesmo ponto de chegada. Afinal, a opção metodológica é uma questão, antes de tudo, da unidade escolar e da sala de aula, que estão mais próximas do aluno e da sua circunstância. Em relação aos objetivos educacionais, o slogan da Guatemala revela a sua distância salutar das campanhas de massa com propósitos estreitos: é importante ensinar como pensar, não ensinar o que pensar. Foi isto precisamente o que Paulo Freire (1975) recomendou, ao distinguir conscientização e doutrinação. A primeira é o núcleo da pedagogia liberadora, enquanto a última é um processo relacionado à educação bancária. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência – p. 17-28 | 23 A integração entre Educação e Cultura Como evidência de que os estritos processos de letramento são inadequados ao mundo contemporâneo, a integração entre educação e cultura, conforme as experiências oferecidas, tem contribuído amplamente para o sucesso dos projetos. A educação deve ser intimamente inserida na vida, em vez de constituir um pacote exótico, imposto de fora pelas sociedades urbanas, letradas. Retornando às semanas de educação de adultos, é digno de nota que elas se tornaram meios atraentes de articular símbolos e ritos sociais, aos quais homens e mulheres, como seres culturais, são sensíveis. Esses eventos têm sido bem sucedidos no estabelecimento da comunicação entre sociedades, educadores e estudantes potenciais e vice-versa. De acordo com o relatório do Reino Unido, tais semanas fazem dos adultos embaixadores da aprendizagem, inclusive, pelas suas realizações que se tornam públicas. Trabalhar com adultos como promotores da educação e apoiá-los ao alcançarem as suas comunidades (e, como membros dela, tendem a fazê-lo com grande sucesso) tem se provado uma forma recompensadora de desenvolver as atividades da promoção da educação de jovens e adultos. Efetivamente, o estudo dos casos de vários países (África do Sul, Botsuana, Egito, Eslovênia, Filipinas, Jamaica, Namíbia, Nova Zelândia, Quênia e Reino Unido) evidenciaram grandes resultados. Eles se incluem entre cerca de 35-40 países do mundo inteiro envolvidos nas semanas da educação de adultos1. Estas campanhas promocionais em favor da educação têm alcançado resultados positivos quanto a: 1) aumentar a visibilidade da educação de adultos e continuada; 2) mostrar a variedade de atividades de aprendizagem existentes e colocar em questão o conceito estrito de educação de adultos, destacando que a educação, em atendimento às necessidades da vida, se estende do berço ao túmulo; 3) alcançar os adultos excluídos e marginalizados; 4) enfatizar o papel da educação continuada; 5) demonstrar e festejar as conquistas dos alunos e criar uma base para que alcancem repercussão; 6) construir parcerias e cooperação2. Em geral, essas semanas têm uma coordenação nacional, exercida pelo Ministério da Educação e por uma associação ou instituto nacional. Elas também envolvem uma ampla coalizão de entidades-guarda-chuva nos níveis regional e local. Eventos e atividades incluem uma cerimônia nacional de abertura, palestras, oficinas, visitas, exposições, festivais, linhas de telefone para atendimento, eventos 24 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência - p. 17-28 diversos numa grande variedade de locais, “institutos móveis” e muitos outros. A mídia tem grande envolvimento. Como se vê, tais semanas são meios de mobilização de esforços, além de terem o potencial de promover uma abordagem abrangente da alfabetização e educação de jovens e adultos, como partes integrantes dos compromissos de Educação para Todos, inclusive quanto à educação continuada. Educação para a subjetividade Se os estudantes são de fato os sujeitos do processo educacional, a educação de jovens e adultos precisa ter e manter o seu foco neles. Experiências positivas, sem dúvida, consideram suas expectativas, realizações, experiências e contexto. Os trabalhos apresentados no seminário enfatizaram basicamente quatro aspectos: 1) A necessidade de atrair estudantes: A educação pode não ser uma alta prioridade para os jovens e adultos que lutam arduamente para ganhar a vida. Tanto no caso da alfabetização, nos países em desenvolvimento, quanto da educação continuada, esta sobretudo nos países desenvolvidos (embora não possa ser apanágio deles), é necessário persuadir os potenciais estudantes a se beneficiarem das oportunidades educacionais. Eis porque as semanas da educação de adultos são tão importantes, inclusive e em particular como processos educativos, enriquecidos pela pluralidade e associadas às culturas dos estudantes. O caso guatemalteco, bem como o de outras sociedades multiculturais, ilustra a necessidade de atrair e de cativar a clientela potencial para os programas educacionais. 2) O valor da motivação: Não só a motivação inicial é necessária para se engajar na educação, como foi observado acima, mas também para se manter até ao fim nos estudos, sem desistir no meio do caminho. Isso é particularmente verdadeiro para a educação à distância, em que a persistência do aluno é fundamental. O desenvolvimento de lideranças e o enraizamento nas diversas circunstâncias sociais dos alunos tem se mostrado da maior importância, por exemplo, nas Filipinas e no Quênia. Neste último país, a Associação de Alunos da Educação de Adultos tem exercido um papel expressivo para atrair os adultos para o processo educacional, mobilizando-os, motivando-os e incorporando-os ao nível local. Sua presidente é um exemplo vivo, pois foi também uma adulta que se educou fora da idade escolar própria. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência – p. 17-28 | 25 3) A importância da auto-confiança: A educação formal e não formal é uma nova experiência para muitos alunos jovens e adultos. Mais do que isso, a educação de jovens e adultos pode ser e usualmente é precedida em suas vidas por experiências dolorosas de fracasso na escola regular, manifestas, inclusive, na repetência e no abandono. Para lutar contra essa bagagem indesejável é essencial inspirar autoconfiança nos estudantes, para que creiam que podem aprender, como fez Israel com os imigrantes etíopes. É interessante que o caso destes últimos, com as diferenças lingüísticas e culturais, não é tão diferente dos migrantes rurais que encontram um ambiente inteiramente novo nas cidades ou, mesmo, de camponeses que, no seu meio, são surpreendidos pela introdução de tecnologias modernas. 4) Participação nos processos decisórios: Os alunos jovens e adultos estarão interessados no processo educacional na medida em que este processo é algo deles próprios, não algo previamente preparado para eles, como um pacote entregue ou imposto contra a sua vontade. Em outros termos, o interesse depende de eles serem sujeitos e não objetos da educação, como, não é demais lembrar, ensina Paulo Freire. A experiência antes mencionada do Quênia é ilustrativa. A aprendizagem com os colegas é uma dimensão do modo de fazer a educação se tornar algo feito pelos estudantes e não feito para eles. Em suma, de acordo com a Declaração de Hamburgo, “é essencial que as abordagens da educação de adultos sejam fundamentadas na própria herança, cultura e valores e experiências prévias do povo e, também, que os diversos modos com que essas abordagens são implementadas capacitem e encorajem cada cidadão a estar ativamente envolvido e a ter voz no processo”. Isso significa que os alunos jovens e adultos devem ser sujeitos em toda a riqueza das suas diversidades (cf. Cuéllar, 1997) que, reitera-se, são fontes de riqueza e não obstáculos ao processo educativo. A educação assim orientada, novamente segundo a Declaração de Hamburgo, é um conceito poderoso “para construir um mundo em que o conflito violento seja substituído pelo diálogo e por uma cultura de paz baseada na justiça”. Tais afirmações recordam que a educação de jovens e adultos, como a educação regular, também deve fundamentar-se nos quatro pilares previstos para o século XXI: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (cf. Delors et al., 2000). 26 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Práticas bem-sucedidas de educação de jovens e adultos: pontos de convergência - p. 17-28 Notas 1 Maiores informações podem ser obtidas no sítio da UNESCO, www.unesco.org /education/uie/InternationalALW. 2 Com base na apresentação de Bettina Bochynek, International Adult Learners Week: Achievements and Perspectives. Referências Bibliográficas ARROYO, Miguel G. Fracasso/sucesso: um pesadelo que perturba nossos sonhos. Em Aberto, Brasília, v. 17, nº 71, p. 9-20, jan. 2000. BUTERA, Federico et al. Organizzare le scuole nella società della conoscenza. Roma: Carocci, 2002. COLOZZI, Ivo. Le nuove politiche sociale. Roma: Carocci, 2002. CUELLAR, Javier P. 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Tal levantamento se justifica, por contribuir para análise posterior dos modos de subjetivação do programa, pois entendemos que o imaginário institucional produz sujeitos a partir de relações interpessoais ocorridas em seu interior. Defendemos que as instituições são órgãos mediadores privilegiados entre os níveis social e individual. Por sua dimensão de apoderamento simbólico, o dispositivo institucional formata o pensamento do sujeito sobre si e sobre a realidade que o envolve. O Pressupostos teóricos Nesta parte do trabalho, fazemos um confronto de diferentes concepções de escrita-leitura, segundo vários autores. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade – p. 29-38 | 29 Para Cagliari (1998, p.141), a escrita consiste num sistema de formas gráficas que representam palavras, frases e textos. Os códigos escritos se desenvolvem em diferentes lugares, independentes uns dos outros, desde cerca de 3.300 a.C., e podem ser de três tipos: pictográfico, que representa diretamente os referentes concretos; ideográfico, que representa pensamentos ou idéias; e fonético, que reproduz os sons da fala. Para o autor, os sistemas escritos sempre visam à comunicação social; através deles, potencializam-se os processos cognitivos e a reprodução do passado cultural. Segundo essa visão, a história e a ciência são simultâneas à escrita. Na mesma perspectiva, Bottéro (1995, p.117) propõe que a escrita está relacionada à vontade de conhecer a lógica do mundo, de construir explicações para os fenômenos da natureza. Ela incutiu nos homens um novo espírito, uma nova disposição através da qual se desenvolve em muitos aspectos a civilização. Gnerre (1994)1 afirma que, no decorrer da história, o uso da escrita esteve restrito a poucos iniciados, que passavam por uma preparação para poderem decifrar códigos sagrados ou de técnica militar. Esse procedimento assegurou o controle social pela restrição da leitura e escrita às castas educadas, diferenciando-as das massas que não dominavam a escrita. Para o autor, a escrita confere uma redução no sentido da linguagem, uma linearidade ao pensamento. Ginzburg (1987), quando discute as relações do poder com a escrita, defende que não se trata, simplesmente, de decifrar o significado das formas gráficas. O controle social se faz através da interpretação da escrita, que deve ser autorizada pelas instituições que têm o monopólio da leitura legítima, detendo e impondo modos de difusão e apropriação. A interpretação dos textos só tem valor de verdade quando submetida aos interesses das instituições encarregadas de dizer sobre o que deve ou não ser lido, e do bom e legítimo modo de apropriação do texto. Há casos em que é conveniente para os interesses dos que dominam a sociedade que seus membros excluídos do poder leiam e escrevam. Nessas situações, a disseminação da leitura e escrita aperfeiçoa e intensifica o mecanismo de subjetivação conveniente à reprodução social. A universalização e a obrigatoriedade do ensino em nossa sociedade apontam para suas necessidades de permanência histórica. Dependendo das conveniências políticas e econômicas, a classe que domina a sociedade amplia ou restringe o acesso de seus 30 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade - p. 29-38 membros à leitura e escrita, sempre de acordo com os interesses de manter seu domínio. Outros fatores relacionados à leitura e à escrita no processo de alfabetização escolar como um processo que facilita a ascensão do indivíduo no quadro social, político e econômico, são discutidas a seguir. Letramento e Alfabetização: até que ponto pessoas letradas podem não ser alfabetizadas O conceito de letramento, postulado por Tfouni (1997, p.98), compreende as conseqüências do processo de exposição dos sujeitos nãoalfabetizados a uma cultura letrada. Consiste num sistema de representação que sofre determinação das relações de poder que se estabelecem entre sujeitos que dominam a leitura escrita fonética em confronto com letrados que não a dominam. Na perspectiva grafocêntrica da escolarização, diz Tfouni, somente a aquisição da escrita permite às pessoas desenvolverem o raciocínio lógico dedutivo e a capacidade de inferir, típicas do pensamento cientifico. Nela, só o pensamento dos alfabetizados opera com racionalidade e os indivíduos não–alfabetizados são incapazes de raciocinar logicamente. Seu pensamento é primitivo, ambíguo e pré-operatório. Segundo pesquisas desenvolvidas pela referida autora, o que existe nas sociedades industriais modernas são graus de letramento. Cultura e indivíduos totalmente ágrafos ou iletrados são apenas os que pertencem a sociedades que não têm um sistema de escrita, nem sofrem influências dele. Alfabetização e letramento são processos interligados, mas de natureza diferente. O letramento é logicamente anterior, mais amplo; independe da alfabetização e a suporta. Nessa formulação, a questão não é se o sujeito domina ou não a escrita. O que importa no letramento é a exposição do individuo à sociedade letrada, consolidando sua capacidade de descentrar o raciocínio e resolver conflitos e contradições que se estabelecem no plano dialógico. Porém, o indivíduo letrado e não-alfabetizado sofreu um processo de subjetivação grafocêntrico que lhe impôs a idealização da cultura escrita, fazendo com que se identifique como intelectualmente incapaz, passando a ver-se com os olhos de quem o segrega2. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade – p. 29-38 | 31 A abordagem da questão da alfabetização está realizada neste texto, envolvendo duas linhas de análise. Uma acepção mais ampla, na qual alfabetização é a capacidade de o indivíduo realizar a atribuição simbólica para objetos e eventos diversos, podendo tratar-se de representação gráfica. Esse processo caracteriza-se por ser sempre incompleto, já que a cultura está em constante mudança, e exige que o sujeito se transforme, para identificar-se e permanecer membro socializado de sua cultura. Essa teorização compreende níveis de complexidade crescentes na representação dos objetos, desde a pronúncia das primeiras palavras até a produção de textos para um interlocutor ausente. Nessa abordagem, os limites entre alfabetizado e não-alfabetizado não são claramente identificáveis. Não existe um grau zero de analfabetismo, nem um nível completo de alfabetização. Um segundo modelo proposto pela autora compreende alfabetização numa perspectiva mais instrumental, estreitamente ligado à instituição escolar. Nele, alfabetização é um processo de aquisição das habilidades de codificação/decodificação de sinais gráficos, exigidos para leitura e escrita, transcrições mecânicas das unidades sonoras para grafia. Nesse sentido escolar, a alfabetização se limita a seus aspectos de desempenho psicomotor. Seu valor é medido pela exigência das habilidades necessárias à reprodução da força e do mercado de trabalho. Assim entendida, ela chega a um fim e o limite entre alfabetizado e nãoalfabetizado pode ser claramente demarcado. Contrariando esta concepção pedagógica de alfabetização, Chartier (1996, p.246) escreve que “a aprendizagem da leitura se apóia muito mais sobre os questionamentos pré ou extra-escolares, ligados à descoberta, pelo sujeito, de problemas que pertencem à compreensão da ordem dos objetos do mundo, do que sobre uma escolarização ou uma aprendizagem escolar”. O sistema escolar desencoraja uma “leitura plural”, em proveito da decifração e do saber ler em seu nível utilitário elementar. Fragmentos de redações sobre a importância do saber ler/escrever Temos, abaixo, depoimentos de informantes não-alfabetizados que vivem toda a sua vida numa sociedade letrada, mas com poucas oportunidades de leituras. Uma vez inquiridos sobre “A importância do estudo em minha vida”, responderam em redações, das quais selecionamos e comentamos à luz das teorias acima alguns fragmentos, sem alterar (“corrigir”) sua linguagem: 32 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade - p. 29-38 “ Se eu conhecesse um pouco da escola não teria sofrido tanto na vida só encontrei dificuldade devido não ter leitura so trabalhei em serviço braçal cada um mais trabalhoso que o outro.” (Informante 1) Quando o informante emprega “Se eu conhecesse um pouco da escola não teria sofrido tanto na vida”, o ouvinte/leitor entende que essa satisfação pessoal, individual, é, de fato, resultado de um condicionamento sócio-cultural, como se uma voz – em sua mente – lhe dissesse que só tem o direito de ter alegria ou felicidade quem é alfabetizado, quem tem estudo! Com a expressão “so trabalhei em serviço braçal cada um mais trabalhoso que o outro”, o falante deixa transparecer a voz aculturada das instituições governamentais e dos cursinhos preparatórios para concursos, vestibulares, enfim, para os indivíduos das sociedades que queiram conseguir um espaço social e financeiro, garantido para si e sua família, por muitos anos. “Comecei a juntar as letras, as coisas começaram aficar mais fáceis e claras... Eu era infeliz quando não sabia nem fazer meu nome não sabia de alguma palavra, viva (vivia) dependendo de alguém para me orientar sobre como fazer as coisas, porém sofria por demais com as coisas erradas que não podia concertar na minha vida..” (Informante 2) Segundo a autora, a categoria letramento é uma tentativa de superar a visão etnocêntrica que incide sobre grupos que estão à margem do processo de alfabetização, isto pode se verificar nos depoimentos, abaixo, de informantes não letrados e analfabetos: “Passei a ser uma pessoa que possui nome, que se comunica sem ficar pedindo ajuda aos outros hoje eu sou AJS... Freqüento a feira e a mercearia... Graças a Deus, [tirou] o tampão dos meus ouvidos.” (Informante 3) “Minha vida transformada revelou o tesouro que estava escondido dentro de mim deixava muito triste e mim encomodava muito não sabia ler nem escrever, estava faltando um pedaço de mim pássaro voando sem destino.” (Informante 4) “Me sinto outra pessoa a alfabetização me ensinaria a enxergar coisas mais claras. Uma pessoa não alfabetizada fica perdida (em) meio a sociedade pois uma pessoa analfabeta é como cego, que precisa ser giado pelas outras.” (Informante 5) REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade – p. 29-38 | 33 “Nos da alegria e vontade de viver... Aprender a respeitar as leis e ser respeitado pelas pessoas... Com estudo nós somos capazes de transformar o mundo o estudo é muito importante com ele eu posso garantir um bom emprego para dar um vida financeira para minha família. Quando temos uma boa educação maior a chance e a chance de conseguir um bom emprego sem o estudo não somos nada na vida, vamos trabalhar com trabalhos pesados.” (Informante 6) ”Não sabe ler e escrever é um cego o mundo não cendo cego da visão pessoal mais cego para a sociedade.” (Informante 7) ”A coisa mais importante que existe no mundo... Porque sem ele ninguém é ninguém é triste viver assim sem saber ler e escrever mal consigo ter fé... É triste viver assim não ter estudo agente não é ninguém.” (Informante 8) Nos depoimentos escritos dos nossos informantes, reconhecemos que eles não só eram analfabetos, como também não letrados relativamente ao pan-conhecimento adquirido com a freqüência permanente na escola oficial. A polifonia nos textos institucionalizados Para Koch (1998), polifonia tem alguma participação com intertextualidade, relacionada ao primeiro tipo de polifonia tratado por Ducrot (1984). Vejamos. O conceito de polifonia, como se sabe, foi introduzido nas ciências da linguagem por Bakhtin (1929), para caracterizar o romance de Dostoievski. Para Bakhtin, o dialogismo é constitutivo da linguagem: “A palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor e receptor. Cada palavra expressa o ‘um’ em relação com o outro, Eu me dou forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço. O Eu se constrói constituindo o Eu do Outro e por ele é constituído”. Ducrot (1998, p.50-1) trouxe o termo para o interior da pragmática lingüística para designar, dentro de uma visão enunciativa do sentido, as diversas perspectivas, pontos de vista ou posições que se representam nos enunciados. Para ele, o sentido de um enunciado consiste em uma representação (no sentido teatral) de sua enunciação . Nessa cena, 34 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade - p. 29-38 movem-se as personagens – figuras do discurso – que se representam em diversos níveis: a. locutor – “responsável” pelo enunciado. (Ducrot distingue ainda entre locutor enquanto tal – L – e locutor enquanto pessoa; b. enunciadores – encenações de pontos de vista, de perspectivas diferentes no interior do enunciado. Ducrot (1984) considera dois tipos de polifonia: a. b. Quando, no mesmo enunciado, se tem mais de um locutor – correspondendo neste caso ao que Koch (1998, p.50-1) denomina intertextualidade explícita, isto é, discurso relatado, citações, referências, argumentações por autoridade etc. Quando, no mesmo enunciado, há mais de um enunciador, recobrindo, em parte, a intertextualidade implícita, sendo, porém, mais ampla: basta que se representem, no mesmo enunciado, perspectivas diferentes, sem necessidade de se servirem de textos efetivamente existentes. Por isso, Ducrot se refere à encenação (teatral) de enunciadores – reais ou virtuais – a quem é atribuída a responsabilidade da posição expressa no enunciado ou segmento dele. Essa noção de polifonia permite explicar uma gama bastante ampla de fenômenos discursivos, que podem ser classificados segundo a atitude de adesão ou não do locutor à perspectiva polifonicamente introduzida. Por vezes, isso se faz por meio da reprodução da voz da sabedoria popular, como provérbios e ditos populares, ou por meio de reprodução dos interlocutores; porta-vozes dos valores estabelecidos em dada cultura. Para Orlandi (1987, p.100), o “discurso pedagógico” produz subjetividade porque identifica e classifica seus usuários. Sua proposta identitária consagra os que se identificam com o estatuto de informantes racionais e moralizados, como é o caso dos discursos de todo professor, instrutor, pedagogo, preocupados com a formação moral e cultural de seus discípulos. Assim sendo, todo discurso de seus discípulos serão polifônicos, uma vez que a voz de seu instrutor que, por sua vez, já é porta-voz da instituição e da cultura, está ocorrendo na boca ou na pena de seu discípulo. Isto é, o que os informantes declaram em suas redações não é o que eles pensam ou sentem, de fato, mas “recitam” as palavras, já internalizadas, de todos REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade – p. 29-38 | 35 aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para formar os interdiscursos3 em suas memórias. O significante discursivo, quando investido pelo desejo, esforça-se por cobrir a falta constituinte do informante, mas essa impossibilidade remete a outro significante parcial associado. No lugar da falta de sentido, faz-se uma metáfora. Nessa perspectiva, o informante e seu senso cotidiano são metáforas que se instauram para tentar conter a deriva significante e produzir um sentido provisório, negando-se sua dimensão histórico-subjetiva. Percebem-se, nas citações, duas anterioridades lógicas: na primeira, as categorias letramento e alfabetização do informante precedem o modo de escuta e produção dos depoimentos; na segunda, as significações da linguagem que ele empregou antecedem o estilo do informante. Portanto, ao se realizar os estudos das suas falas, opera-se a partir de um conceito de informante e entendemos que suas palavras estão cifradas nos significantes discursivos institucionais empregados por aqueles que produziram discursos antes dos produtores das redações analisadas. Antes de falar de si mesmo, o informante é falado nas instituições da sua cultura, no discurso dos professores, que estão internalizados, e passam agora a compor um discurso que é mais uma alternativa subjetiva: o falante produz discursos balizados pelos discursos alheios. Conclusão A classe que domina a produção cultural domina também o sistema de idéias. Este modelo instaura a cultura que o usuário reproduz em todos os seus discursos. Para Douglas (1966, p. 14-15), não há sociedade que se mantenha, se não investir legitimamente em sua própria reprodução, “lançando poderes para prosperar e para retaliar ataques(...), pois a sociedade não existe num vácuo neutro, nem sem comando”. Fazem parte do laço social os esforços dos homens no sentido de forçar uma “boa cidadania”, ou seja, a reprodução de subjetividades. Observamos uma forte determinação da concepção de redenção, de carência e obscuridade, assim como o alcance de uma condição de plenitude que o próprio informante define; a partir da metáfora das luzes, passa a ver por meio da alfabetização o que antes não via. A categoria letramento não está presente, explicitamente, nas redações; 36 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade - p. 29-38 o conceito de alfabetização é restrito e instrumental. Esse modo de representar sua condição recém-atingida de alfabetizado coloca o informante numa condição paradoxal para ele mesmo, pois, além de ter passado grande parte de sua vida na condição de analfabeto, agora seu índice de escolarização é apenas introdutório e parte de um longo processo indefinido. Quanto às posições sociais e econômicas elevadas com um sentido idealizado das possibilidades financeiras resultantes de seu nível de alfabetização, está presente uma expectativa de redenção do trabalho pesado, como se as condições econômicas fossem efeitos apenas da institucionalização do conhecimento e não de políticas governamentais macroeconômicas. Notas 1 Exemplo dessa segregação é mostrada na reportagem do Jornal Folha de S. Paulo, 1 caderno, p. 2, agosto de 2000. Nas eleições municipais de 2000, a Justiça Eleitoral, para fazer valer a Constituição Federal, que determina que apenas cidadãos alfabetizados podem concorrer a cargos eletivos, aplicou teste nos candidatos que não demonstravam ter instrução formal. No Estado de São Paulo. 1.521 postulantes foram reprovados. Nos quinze municípios cearenses em que os testes tinham sido aplicados até a data da publicação, 70 candidatos foram reprovados sendo que 30 já tinham sido vereadores. 2 Tal é a visão dos nossos informantes, refletida em suas redações. 3 M. Pêcheux (1975 p.162) chama de interdiscurso ao “todo complexo com dominante das formações discursivas”, e é por esse conceito que se podem apreender as relações entre elas, quer dizer, a relação (a separação) de uma formação discursiva com o “exterior”. Orlandi explica o interdiscurso como “o lugar de constituição dos sentidos, a verticalidade (domínio de memória) do dizer, que retorna sob a forma pré-construído, o já dito”. Diz ainda que “a relação entre as formações discursivas é ‘soldada’ pela existência do interdiscurso. E a exterioridade (...) constitutiva só se define em função dos interdiscursos, ou melhor, essa exterioridade tem o seu modo de existência definido pelo interdiscurso”. Pêcheux distingue, ainda, o interdiscurso do intradiscurso, isto é, do funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o que digo agora, com relação ao que eu disse antes e ao que eu direi depois, portanto o conjunto dos fenômenos de ‘co-referência’ que garantem aquilo que se pode chamar ‘fio do discurso’, enquanto discurso de um sujeito” (1975 p.166). REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade – p. 29-38 | 37 Bibliografia BOTTÉRO, J. MORRISON, K. Cultura, pensamento e escrita. São Paulo: Ática, 1995. CAGLIARI, L. C. Alfabetização sem ba, bé, bi, bó, bu. São Paulo: Spione, 1998. CHARTIER, R. Práticas de leitura. Tradução de Cristine Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. _________. Como as instituições pensam. São Paulo: EDUSP, 1998. GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Tradução de Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. GNERRE, M. Linguagem escrita e poder. São Paulo: Martim Fontes, 1994. KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto. 1998. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do dizer. 2. ed., Campinas: Pontes, 1987. TFOUNI, L.V. Letramento e alfabetização. 2. ed., São Paulo: Cortez, 1997. Álvaro Pereira Gonçalves Coordenador Pedagógico do Programa Alfabetização Solidária do Campus da UNESP de São José do Rio Preto. Rua: General Osório, 334 (fundos) – Centro – Olímpia, SP CEP: 15400-000 E-mail: [email protected] Tel: (17) 3279-8138 38 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização e subjetividade - p. 29-38 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação Rosa Maria Jorge Persona Universidade de Cuiabá – UNIC Sumaya Persona de Carvalho Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT sta pesquisa teve como objetivo compreender a relação afetiva entre os alfabetizadores do Programa Alfabetização Solidária da Universidade de Cuiabá – UNIC, que atuam nos municípios de Lábrea-AM e Guaratinga-BA. Desde 1998, a Instituição vem realizando cursos de capacitação nesses municípios, duas vezes por ano – janeiro e julho – de aproximadamente vinte dias cada, nas diferentes áreas do conhecimento. Nove etapas foram consideradas neste estudo, ou seja, desde a primeira, em 1998, até a de janeiro de 2002. A proposta do curso consistiu em trabalhar a alfabetização de jovens e adultos de forma multidisciplinar, tendo a linguagem como eixo articulador das diferentes visões de mundo e o contexto social dos alfabetizadores e alfabetizandos. Essa forma de trabalho foi utilizada por entender-se que ela oferece contribuições significativas e faz com que o alfabetizador: a) adquira conhecimentos que o possibilitem entender o mundo a sua volta de maneira crítica; b) perceba a sua capacidade de elaborar situações problemas que sejam reflexivas, oportunizando a produção do conhecimento; c) reconheça a importância do trabalho coletivo na construção do conhecimento; d) compreenda a sua dinâmica de ação para E REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação – p. 39-46 | 39 desenvolver prazerosamente a sua capacidade de elaborar e organizar idéias na produção de textos escritos. Assim como Ferreira (1990:190), nós também salientamos a imprescindibilidade do trabalho coletivo, pois o “pensar coletivo é rico em informações, troca de valores e de métodos de análise”, sem, entretanto, deixar de salientar a imprescindibilidade do trabalho individual. Dessa forma, um dos requisitos básicos considerados no curso foi a elaboração, pelos alfabetizadores, de relatórios diários e individuais. Esses relatórios ofereciam aos professores informações a respeito do conteúdo trabalhado e a percepção dessas temáticas e, ainda, como cada alfabetizador percebia/sentia seu relacionamento com o grupo. Alguns aspectos apresentados nessas produções revelaram que as relações afetivas estabelecidas entre professores/alfabetizadores e alfabetizadores/alfabetizadores influenciavam na aprendizagem. Em cada módulo havia a preocupação em discutir com o alfabetizador a idéia de que é necessário observar, em sua sala de aula, como o aluno aprende e como ele se apropria do conhecimento em suas diversas instâncias – leitura, escrita, domínio dos conceitos científicos etc., para que o processo de ensino aprendizagem se torne significativo. Considerando os aspectos acima mencionados, o curso visava o desvelar do alfabetizador, através de vivências para a importância de: acreditar nas suas possibilidades de aprendizagens e nas dos alfabetizandos, valorizar as idéias e avanços, despertar o gosto e criar o hábito pelo estudo; desafiar pensamentos, participar de estudos em grupo e apresentar competência para ensinar. O texto entendido como uma unidade de significações faladas, lidas, escritas e desenhadas, foi o ponto de partida de todas as temáticas trabalhadas, tais como: educação para a cidadania, processo de alfabetização, ensino da língua portuguesa e matemática, conhecimento histórico-geográfico, educação e saúde, educação artística, e psicologia. Os alfabetizadores foram incentivados à produção de composições criadoras (histórias, poemas, crônicas, diálogos), e de composições funcionais (bilhetes, cartas, recados, relatórios), integradas com a linguagem não-verbal (artes plásticas, dramáticas e musicais). Essas produções escritas, artísticas, realizadas pelos alfabetizadores vinham carregadas de conteúdos com significações afetivas. O vínculo de parceria e confiança que formaram com os professores e, especialmente, com os colegas alfabetizadores chamou a atenção de todos os professores. Nós, responsáveis pelas temáticas Alfabetização 40 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação - p. 39-46 e Psicologia, buscamos compreender como o processo de construçãoaproximação e intimidade dos alfabetizadores se deu na interlocução grupal, aspecto relevante para a formação da identidade do grupo. Nesta pesquisa estiveram envolvidos 238 alfabetizadores nos nove módulos trabalhados, em grupos rotativos, sendo que 190 possuíam formação de magistério e 48 apenas o primeiro grau (completo e incompleto). Utilizamos observação, entrevista, relatórios e produção de textos para compreender a relação afetiva entre eles. Trabalhamos, inicialmente, com a própria escrita dos alfabetizadores, ou seja, o seu texto. A partir de suas produções, com respeito e liberdade para expressar as suas alegrias, as suas dores, as suas pressões, as suas tensões, seus sofrimentos, os dissabores de estarem distantes de casa, num grupo constituído por pessoas que possuem crenças e costumes diferentes, e na confrontação grupal, os alfabetizadores se comunicaram, manifestando o sentir comum a todos, conforme expressa o texto de uma alfabetizadora. “Compreendi que podemos superar as dificuldades no registro das idéias, pensamentos e opiniões, que ainda fazem parte do nosso dia-a-dia, dando um basta, sem medo de errar, sem vergonha do grupo, pois só se aprende fazendo, errando e se autocorrigindo”. Nosso objetivo consistiu em coordenar e observar as atividades procurando fazer com que os alfabetizadores interagissem, trocando reciprocamente suas informações, suas noções e se auxiliassem mutuamente. Para tanto, há que se considerar alguns aspectos que interpenetram no desenvolvimento destas atividades: muitos alfabetizadores mesmo morando na mesma cidade e, sendo esta extremamente pequena, não se conheciam; havia, ainda, a situação de pertencerem a Estados diferentes que apresentam características culturais muito próprias. Essa situação precisava ser entendida, mais que isso – ser vivida, e vivida no grupo. Eles tinham clareza desse fato, só não era tão nítida a forma de superar essas diferenças. Parece que os grupos, cada um a seu modo, encontraram o caminho, conforme relato de um alfabetizador “As diferenças de cultura entre os grupos, que pareciam de início tão distantes e diferentes, acabaram encontrando semelhanças incríveis e construindo a cultura do curso.” REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação – p. 39-46 | 41 O trabalho coletivo constituiu um fator fundamental para que os alfabetizadores entendessem a importância do grupo como uma engrenagem na qual as informações de pontos de vista e de graus de compreensão permitiam o crescimento do grupo de maneira dialética. Assim, as contribuições individuais trazidas para o grupo passavam por um processo de reflexão que possibilitava ao grupo a oportunidade de elaboração de uma síntese integradora. A expressão “grupo é grupo”, criada pelos alfabetizadores como marca da relação afetiva estabelecida entre eles, pode ser entendida como um momento de síntese para o desenvolvimento das atividades no grupo, ou seja, eles estavam estruturando um ponto de integração na constituição do grupo que culminou com o neologismo “Guaralábrea”, que significa a junção dos nomes dos municípios de Guaratinga e Lábrea. Percebemos que no decorrer de cada módulo a relação foi sendo construída em meio a um processo de observação mútua, em que cada um procurava no outro aspectos peculiares, e cada interlocutor foi assumindo seu espaço e sendo identificado pelo outro. Através da linguagem verbal e não-verbal, manifestaram o seu sentir comum a todos em diferentes situações. Assim, no decorrer desses módulos, pode-se dizer que aconteceu a relação afetiva, no sentido de sensibilidade que expressa Maffesoli, (1999:12) “o laço social torna-se emocional e elabora-se um modo de ser (ethos) onde o que é experimentado com outros será primordial”. As expressões abaixo evidenciam esse aspecto, na medida em que os alfabetizadores afirmam que “Da convivência com o grupo aprendemos mais experiências, conhecimentos, desenvolvemos mais a nossa criatividade, nossos afetos e expressamos nossas idéias.” “O que vivi e aprendi no grupo foi inesquecível. Foram transmitidas coisas boas e úteis que me ajudaram no meu desenvolvimento como pessoa.” O vínculo de confiança necessário para que os alfabetizadores participassem ativa e espontaneamente do processo ensino-aprendizagem foi estabelecido quando eles estruturaram uma relação de troca comum a um grupo. E, como eles mesmos apontam,“a união do grupo foi um fator fundamental dentro do curso, aliado à troca de conhecimento que cada um demonstrou.” 42 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação - p. 39-46 As falas dos alfabetizadores abaixo corroboram as idéias de Maffesoli (1999:310) de que “a pessoa constrói-se na e pela comunicação”. “Foi só alegria e afetividade. Hoje, qualquer palavra ou imagem que lembre o Curso em Cuiabá nos enche o coração de alegria e muitas lágrimas nos olhos.” “Os laços de amizade que o grupo criou, o afeto, o respeito e o carinho pelo colega, espero como alfabetizadora, conseguir esse sucesso com os meus alunos.” Inegavelmente pessoas convivem com pessoas. Esta é uma afirmação quase redundante, mas é interessante observar que estando em casa, na escola, no trabalho, nas ruas e onde quer que existam indivíduos, as pessoas entram em contato e aproximam-se, afastamse, comunicam-se, simpatizam-se, entram em conflito, porém desenvolvem afetos, interagem, aprendem. Paulo Freire (1993:75) já afirmou que é importante “...fazer com que o cognitivo caminhe junto com o afetivo e daí se encontra a resposta para ação e se começa a chegar próximo de uma grande comunhão”. A tomada de consciência por parte dos alfabetizadores, ao lerem a sua produção escrita e expressarem seus sentimentos, foi o ponto significativo da pesquisa. Assim como afirma Maffesoli (1999:305/ 311) os relatos dos alfabetizadores reforçaram a idéia de que “... a existência do eu constrói-se na relação, na lógica comunicacional [...] a pessoa pode sair do seu egocentrismo [...] ou utrapassar toda espécie de ilusão antológica. O eu social é totalmente investido pelo outro.” É a situação de estar face-a-face com outro de que falam Berger e Luckmam (1991:47) “o outro é apreendido por mim num vivido presente partilhado por nós dois, onde a subjetividade do outro é acessível”. Podemos dizer que da mesma forma que ocorre a relação face-aface, no processo de alfabetização este aspecto tem que ser considerado porque é no jogo da interlocução, e dentro deste, que aflora a perspectiva para uma troca efetiva de informações e experiências, transformadas em um novo material de conhecimento. E isso os alfabetizadores demonstraram em seus relatos ter compreendido e vivido, pois segundo eles “É mesmo impressionante como em tão pouco tempo as pessoas conseguem firmar laços tão fortes de afetividade. Eu, particularmente, REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação – p. 39-46 | 43 nunca irei esquecer do olhar, do sorriso, do que aprendi com cada um. Saio também com a confiança de que ensinei algo para alguém.” Neste sentido, constatamos que para além de uma mera decodificação das produções dos alfabetizadores deparamo-nos com duas questões: a apreensão de como os alfabetizadores percebem e concebem seu relacionamento e, por outro lado, a interpretação da realidade vivida pelo grupo, tal como ela foi passada. A complexidade desse processo vai de par com o próprio enredamento da linguagem, enquanto forma de representação do real. Portanto, analisar as relações que acontecem entre os alfabetizadores puramente no campo psicológico ou afetivo é, no mínimo, um comportamento ingênuo. Elas acontecem inseridas no social, e são profundamente marcadas pelas contradições sociais. Dessa forma, na relação estabelecida entre os alfabetizadores e professores/alfabetizadores estavam presentes os aspectos sociais, políticos, econômicos e a dimensão afetiva, apesar de pouco discutida pela academia, mas que vem se destacando na atualidade. Embora seja pouco investigada, a dimensão afetiva foi amplamente contemplada e partilhada pelo grupo. Ela surge fortemente expressa nos relatos orais e escritos dos alfabetizadores. Quando o tema alfabetização entra no cenário, esta dimensão emerge com intensidade, conforme podemos observar no relato de uma alfabetizadora. “Alfabetizar é: criar laços de amizade, respeito, companheirismo, confiança, compreensão, solidariedade. É se orgulhar a cada descoberta, a cada conquista juntos. E, mais que tudo isso é a felicidade de ver seu aluno com sorriso no rosto, dizendo: aprendi muito com você. Eu aprendi a respeitar o outro, a gostar do outro. Eu não sabia o que era relacionamento, hoje eu sei. Eu aprendi.” É preciso ter presente que o discurso afetivo desta alfabetizadora não é acrítico e nem se circunscreve à visão acanhada do magistério como doação ou assistencialismo. Embora envolto culturalmente pelo imaginário do vocacional, o discurso da alfabetizadora tem como eixo de construção de sentido a questão do prazer associado ao trabalho, apesar da falta de reconhecimento social configurada no aprofundamento das relações capitalistas da escola. O vínculo afetivo, observado no cotidiano do curso e constatado nas expressões verbais e não-verbais dos alfabetizadores, pode ser 44 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação - p. 39-46 considerado um dos fatores mais importantes no êxito da interação social e da aprendizagem. A interação estabelecida no grupo, em diferentes módulos, favoreceu a instalação de um clima de confiança tão necessário à participação ativa, e ao mesmo tempo espontânea no processo de ensinar e de aprender. Os alfabetizadores demonstraram elevado grau de afetividade e interesse cognitivo no decorrer do curso, elementos importantes no processo de alfabetização. O desejo de sentir-se bem no grupo e a vontade de aprender contribuiriam para corroborar com a idéia de vários pesquisadores, dentre eles Vygotsky, Piaget e Paulo Freire, de que não existe dicotomia entre o aspecto cognitivo e afetivo, mas que eles são necessários à aprendizagem. A relação de confiança que se formou entre os alfabetizadores e os professores foi estabelecida, por assim dizer, porque sentiram prazer de estarem juntos; aprenderam porque estavam juntos e, ainda, sentiram prazer de estar juntos e vontade de aprender; por isso, aprenderam. A confiança, aliada ao desejo de vivenciarem experiências em grupo, levou-os à constituição de um grupo, tanto que, segundo eles, “Aprender a trabalhar em grupo foi muito importante, pois nos tornamos uma família.” Dessa experiência, percebemos que levam algo muito especial, que vai além do cognitivo. Levam conhecimentos teórico-metodológicos de como alfabetizar um adulto, aliados a uma compreensão anterior, mas fundamental ao processo ensino-aprendizagem, que é relacionar-se com o outro respeitando suas diferenças e singularidades. Pode-se dizer, sem medo de errar, que a vinda dos alfabetizadores do Amazonas e da Bahia para Mato Grosso constituiu aspecto de grande relevância, pois o intercâmbio cultural entre os três estados possibilitou tanto para os alfabetizadores quanto para os professores da universidade uma experiência única, rica, participativa, dinâmica, prazerosa e significativa. Este vínculo ficou evidente na frase de uma alfabetizadora “Aprendi, convivendo com o grupo, que não é preciso conhecer completamente uma pessoa para saber se você vai se dar bem ou mal com ela; basta um olhar, um aperto de mão ou uma palavra, para saber quem é quem. Mas só conseguiremos atingir este ponto se entendermos que cada pessoa tem uma forma de ser e, que em cada região do nosso Brasil, há diferenças, quase infinitas, na forma de ser, de pensar, de vestir, de comer, de falar...” REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação – p. 39-46 | 45 Bibliografia BERGER, P. L. e LUCKMAN. A Construção Social da Realidade. Petrópolis, Vozes, 1991 FERREIRA, Márcia Ondina V. Como Vejo Minha Prática Educativa. In RAYS, Oswaldo. A Leituras para repensar a prática educativa. Porto Alegre, Sagra, 1990. FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não – cartas a quem, ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho D‘Agua, 1993 MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Trad. Gurovitz, Berta Halpern. Petrópolis: Vozes, 1999 PERSONA, Rosa M. J. Alfabetização: Prática Pedagógica de Professores Considerados Bem Sucedidos. Cuiabá: UFMT, Mestrado; 1991 46 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Alfabetização Solidária: relação interativa no processo de capacitação - p. 39-46 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização Solidária em Várzea Alegre/CE Denize D. Campos Rizzotto 1 Universidade Federal de Uberlândia – UFU alfabetização de jovens e adultos tem sido objeto de estudo de alguns pesquisadores (Kleiman, Signorini e colaboradores, 2000) que muito têm contribuído para a compreensão desse processo. No mundo atual, os meios de comunicação tornam-se cada vez mais sofisticados e o código escrito domina nos veículos de comunicação de massa. A escola, enquanto instituição responsável pelo processo de escolarização, é desafiada a garantir a todos a apropriação da linguagem escrita. A “alfabetização” passa, assim, a ser vista como um instrumento de equalização social, como forma de inclusão dessas pessoas que vivem à margem de uma sociedade letrada. A definição de alfabetização não é uma tarefa simples pois, hoje, devido à grande valorização social do domínio das habilidades de ler e de escrever, este termo ampliou seu significado. A pessoa que escrevia seu próprio nome era considerada alfabetizada; atualmente, o próprio IBGE, no recenseamento de 2000, indicou o domínio de determinados usos sociais da escrita para classificar o indivíduo como alfabetizado. Dessa forma, falar sobre alfabetização de jovens e adultos pressupõe compreender que apesar do adulto vivenciar o processo de construção da leitura e da escrita, isto ocorre de forma diferente ao processo A REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... – p. 47-56 | 47 vivenciado por uma criança. Temos que considerar que o jovem e o adulto têm modos diferentes de se aproximar do objeto de estudo, isso pressupõe um tempo diferente para construir os conhecimentos, em decorrência de suas experiências acumuladas, oriundas de vivências em uma sociedade letrada. Em seu trabalho sobre o processo de aquisição de escrita pelo adulto, Picoli2 revela que podem ser observadas algumas etapas evolutivas propostas por Ferreiro (1989) no seu trabalho com crianças, porém o contato social com a escrita, em suas várias modalidades, possibilita ao adulto estabelecer “relações diferentes tanto com o objeto de conhecimento, que é a escrita, como com o contexto no qual esse objeto se insere: a escola, o ambiente de trabalho, a sociedade”. (2000, p.118). A inserção de jovens e adultos nessa sociedade letrada demanda a apropriação das práticas sociais da leitura e da escrita que são utilizadas em sua comunidade. Isso acarreta no adulto a “consciência, em maior ou menor grau, de que utilizamos as letras para escrever e de que há uma disposição espacial específica da escrita na página” (Picoli, 2000, p. 118). Assim, é comum encontrarmos em nossas turmas, adultos analfabetos, que mesmo não estabelecendo qualquer correspondência gráfico-sonora, utilizam letras na tentativa de construir palavras, ou mesmo um texto. Isso nos revela que as experiências vividas pelo adulto são responsáveis pela diferenciação entre o processo de aquisição de escrita pelo adulto e pela criança. Acreditamos que conhecer esse processo possibilita fazer a devida diferenciação e perceber os “saltos” qualitativos dos adultos em algumas etapas. Isto é fundamental para que o professor possa propor desafios relativos ao processo de aquisição da escrita vivenciado pelo adulto, assim poderá estabelecer uma prática pedagógica que considere estes saberes acumulados. Já estamos familiarizados a ler e ouvir a palavra alfabetização, enquanto “letramento” ainda é uma palavra estranha, não só com relação à sua utilização, como também quanto ao seu significado, por isso, não foi ainda incorporada ao nosso vocabulário. Kleiman (1995) apresenta o termo como uma tentativa de se descrever usos e funções da modalidade escrita em processos sociais de comunicação. Assim, de acordo com o contexto em que as pessoas estão inseridas (associações, igrejas, partidos, sindicatos) elas adquirem uma fami- 48 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... - p. 47-56 liarização com a escrita funcional3 e a oralidade letrada4 utilizada por estes grupos sociais, incorporando-as em suas falas. Mesmo sendo considerada analfabeta, uma pessoa que não domina a leitura e escrita pode fazer uso de situação de comunicação social como por exemplo, ditar uma carta para alguém escrever, reconhecer avisos, placas etc. Assim, o conceito de letramento amplia o de alfabetização, quando reconhece que o indivíduo letrado desenvolve práticas de leitura, de escrita e de oralidade que nem sempre são reconhecidas pela escola, embora válidas para lidar com as demandas sociais de comunicação tais como: ler uma conta de luz, assinar seu próprio nome e participar de organizações sociais, associações comunitárias e outros tipos de organizações (Descardeci, 2000, p.55) Consciente da emergência de ações efetivas que visem contribuir para a mudança do quadro do analfabetismo em nosso país, desenvolvemos desde 1998 um trabalho de formação de professores, direcionado para a alfabetização de jovens e adultos, através do Programa Alfabetização Solidária (PAS) no município de Várzea Alegre5, CE. Localizada no interior do Estado e com mais de 50% de sua população residente na zona rural, esta comunidade é composta por pequenos agricultores, que plantam para o sustento da família. Muitos sobrevivem de “bolsas”, ajuda financeira que o governo oferece para evitar o êxodo para os grandes centros urbanos. No município de Várzea Alegre, o índice de analfabetismo no período que iniciamos o Programa (1998), girava em torno de 30%da população, o que significava uma média de 9.000 analfabetos. Apesar de possuir várias escolas na zona urbana e na zona rural, os jovens e adultos continuavam excluídos do processo de escolarização pela falta de oportunidade de estudar, pela sua própria condição de vida. A população do município é predominantemente católica, sendo São Raimundo Nonato o seu santo Padroeiro. Percebemos que esta influência religiosa determinou uma grande concentração de “Raimundos” na região de Várzea Alegre. A cultura local revela uma riqueza de costumes, como em todo Estado do Ceará, além de uma culinária típica e manifestações folclóricas peculiares. Mas, a música e a poesia se destacam neste contexto, fazendo parte do cotidiano das pessoas. As manifestações artísticas como os repentes, a literatura de cordel e inclusive os poemas são de domínio popular na região nordeste do país. Ao escrever-me um poema, o aluno está exercitando sua conREVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... – p. 47-56 | 49 dição de escritor e se auto-afirmando enquanto membro de uma sociedade que utiliza socialmente a linguagem escrita para se comunicar. Mesmo sem o domínio na língua culta, das regras gramaticais e ortográficas, o agricultor conseguiu, através de seu registro, estabelecer uma comunicação entre aluno e coordenadora setorial. Esta estratégia possibilita-lhe compreender o uso social da escrita. Neste fragmento do trabalho do aluno Luiz Gonzaga de Caldas, morador do Sítio Bebedouro é possível observar a utilização de linguagem poética, bem como o perfil do texto escrito em estrofes e versos, além das rimas e aliterações, que são características desta modalidade de escrita literária: “Meu nome é Luiz Gonzaga Não sou o Rei do Baião Eu moro no Ceará No emtereor do sertão Sou pobre não tem denhero Soufro por falta de pão Vou decha de fazer planta Que asorte vem comtra a mim Planto milho nas capim Plamtei mandeoca Branquinha Em um tereno de Camtero As raiz era um cabelo Da grosura de uma linha Mil covas não deu farinha Que des para uma janta A goma de uma a ramca Não deu uma tapioca Por mi ver nesta derota Vou decha de fazer plamta (sic) (...)” Luiz Gonzaga de Caldas No contexto rural, onde estão localizadas a maioria das salas do PAS no município de Várzea Alegre, as práticas de letramento ficam restritas à algumas modalidades. Por isso, mesmo sem saber ler e escrever, muitos analfabetos dominam a linguagem poética e oralmen- 50 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... - p. 47-56 te compõem repentes e poemas com facilidade. Utilizam esse recurso muitas vezes como forma de denunciar sua condição de vida, as mazelas da seca ou mesmo para brincar com as palavras. No litoral nordestino, região de turismo intenso, é comum encontrarmos duplas de poetas, compositores repentistas que criam melodias ao olhar para as pessoas e imaginarem sua origem, profissão, escolaridade etc. Com uma linguagem simples, porém poética, eles cantam e fazem desta atividade o seu trabalho e sustento. Podemos considerar que para ser letrada não basta que a pessoa domine o código escrito, é necessário que se utilize desse conhecimento em seu cotidiano e em suas relações sociais. Portanto, como afirma Descardeci (2000, p.63) “tornar-se letrado é um processo no qual o indivíduo se engaja, mais ou menos, de acordo com o seu papel, seus interesses e suas necessidades na sociedade em que vive”. Podemos perceber que algumas pessoas adultas apropriam-se de marcas lingüísticas, ou mesmo de expressões formais, próprias de alguns portadores de textos (ou gêneros discursivos) como revela a carta do senhor João José da Silva : “ (...) estou gozado saúde graças ao nosso bom Deus é espero que estas li encrote a sra gosamdo muita saúde e que eu desejo para senhora (...)” sic. – Sítio Canindezinho (14/12/99). Esta forma de se expressar revela uma certa familiaridade do indivíduo com esta modalidade de escrita. Ao utilizar expressões formais, características de cartas, ele procura legitimar-se como membro de uma sociedade letrada que se comunica através deste instrumento de comunicação. Alguns trechos extraídos de correspondências recebidas de alunos do Programa Alfabetização Solidária de Várzea Alegre, revelam a utilização da escrita como instrumento de reivindicação de direitos. Está implícito nas palavras escritas com dificuldades o desejo destas pessoas em continuar estudando viram na coordenadora setorial uma “autoridade” que pudesse estar lhes garantindo este direito: “(...) en segundo lugar quero fala para você nois gostaria que este progento Continuaci que nois estamos aprendeno muito coisas (...)” Raimundo de Souza – Sítio Umari dos Carlos. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... – p. 47-56 | 51 “(...) nois fiquem com muita vontade de estuda mais olha Dona Denize eu que saber se a nossa escolar vai continuar por que eu estava com vontade de estudar mais(...)” Raimundo Vieira de Silva – Sítio Forquilha. Analisando a realidade com a qual trabalhamos e que consiste em receber alunos, a maioria de jovens e adultos oriundos da zona rural do interior do Ceará, verificamos que uma das demandas de letramento se concentra na necessidade de comunicação com os parentes que migraram para outros estados. A utilização de cartas ou até mesmo o domínio dos códigos para conseguirem efetuar uma ligação telefônica é essencial para eles. Ser capaz de se comunicar com pessoas que estão distante representa a conquista de novos espaços, a sua inserção em um mundo ao qual não tinham acesso: “(...) Denis eu nu dia dos óculos eu fique Aligre qua prezença da senhora uma aligria muito grande com móis toudos a senhora ni disculpi os erros porque eu estou estudando com muita fé e Deus é espero que a senhora ni RESPOSTI nado mais disponha a cina João José da Silva” – Sítio Canindezinho (25/05/2000). (...) eu pesso Que A senhora mim RESPOSTA obrigado. nada mais do céu amigo Raimundo Vieira da Silva - Sítio Umari dos Carlos. Em sua carta, o Sr João José fala de seus sentimentos e, como o Sr Raimundo, enfatiza a expectativa quanto à resposta à sua correspondência, assim estarão efetivando a ação comunicativa e legitimando-se enquanto usuários da língua escrita. Eles evidenciam também a apropriação de expressões peculiares às cartas (marcas lingüísticas), como por exemplo: “nado mais disponha a cina” e “nada mais do céu amigo”. Nestas regiões rurais, outras demandas podem ser observadas. Elas variam de comunidade para comunidade e até mesmo de acordo com as relações de gênero6 ali desenvolvidas. Porém, entre todos os grupos, a necessidade de dominar a escrita do próprio nome é preponderante. O desejo em trocar o documento de identidade marcado pela impressão digital significa, para muitos, a conquista de um direito negado por condições de vida impostas à revelia, na infância vivida na “lida da roça” e não nos bancos de uma escola. Entre as mulheres, o desejo de aprender a ler para ajudar seus filhos em idade escolar se justifica na dificuldade em acompanhá-los nas tarefas escolares, ou mesmo em ler uma receita culinária e fazer uma lista de 52 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... - p. 47-56 compras do “mercantil” (denominação dada aos mercados) e até mesmo conseguir um emprego que não seja de doméstica ou na lavoura. Nas falas dos homens é revelada a necessidade de dominar a leitura e a escrita como forma de fortalecimento de sua autonomia, de sua inserção no mercado de trabalho. Muitos relatam experiências frustradas de buscar emprego em São Paulo e não terem êxito por não saberem ler e escrever, ou mesmo alimentam o sonho de se alfabetizarem para conquistar esse direito. Neste contexto, as histórias de fracassos e situações de exclusão contribuem para a diminuição da auto-estima destes indivíduos que é verbalizada por expressões populares, tais como: papagaio véio num aprende a fala! Esta frase é utilizada pelos adultos que tentam justificar fracassos escolares. Este problema de perda da auto-estima interfere diretamente na sala de aula, pois o aluno se sente incapaz de realizar as atividades propostas. O medo de “errar” é um entrave para o avanço do aluno, principalmente quando o professor, despreparado, vê os “erros” como falha e não como construção. As histórias de vida destas pessoas, associadas às questões sócioculturais revelam, também, situações de discriminação, experimentadas por muitos migrantes nordestinos quando buscam melhores condições de vida nas regiões sul e sudeste Podemos perceber este sentimento através de trechos extraídos de cartas de dois alunos. “(...) eu estou li escrevendo porque eu gosto muito da aligria da senhora quando a senhora vem a qui em Várzea Alegre a eu presto a tenção a senhora abraca o preto i o branco(..) João José da Silva – Sítio Canindezinho. “Denise eu gostei murto da sua maneira de tratar as pesoas pricipaumerte nóis (...)” José Edinaldo de Menazes – Sítio Cachoeira dos Vitor (16/07/99). O Sr João José revela sua preocupação com o preconceito racial, ao destacar que presta atenção ao fato de que eu cumprimento a todos indistintamente. A fala do Sr. José Edinaldo “gostei muito da sua maneira de tratar as pessoas, principalmente nós”, revela uma baixa auto-estima, um sentimento de inferioridade, que foi construído ao longo da vida, marcada por situações de discriminação. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... – p. 47-56 | 53 Esta análise demonstra a importância em se conhecer a clientela com a qual se está trabalhando, para que se possa direcionar as ações educativas. O contexto sócio-econômico e cultural é determinante para a caracterização da demanda de letramento da comunidade. Conhecer estes dados possibilita ao professor planejar atividades significativas a partir das necessidades de seus alunos, visando um ensino que vá além da aprendizagem da leitura e da escrita, que possa resgatar a auto-estima dos alunos. Em um contexto de formação de alfabetizadores de jovens e adultos, é importante considerar que o educador deve partir de uma investigação das práticas de letramento da comunidade onde o aluno está inserido, para que, assim, possa propor práticas em que o código alfabético, “passaria a ter apenas uma função instrumental para a realização de projetos que partiriam das necessidades de leitura e de produção de textos dos alunos e de suas comunidades” Kleiman (2000, p.21) Quando enfocamos o letramento no processo de ensino-aprendizagem de jovens e adultos é fundamental termos clara a função do professor alfabetizador, como mediador e facilitador do processo de aquisição da escrita, que também deve estar inserido nesta sociedade letrada e, portanto, fazer uso social da escrita. Não é raro encontrarmos pessoas tidas como alfabetizadas que não são capazes de ler e compreender um texto jornalístico, não têm acesso ou mesmo interesse por textos literários ou científicos e se dizem contrárias a qualquer modalidade de escrita. Estas pessoas, se fossem educadores, teriam dificuldades de ensinar a seu aluno a função social da escrita. Considerando o período de 5 meses que os alfabetizadores do programa Alfabetização Solidária dispõem para trabalhar com estes jovens e adultos analfabetos, acreditamos que este trabalho deve ter como objetivo principal mobilizar e criar condições para que estas pessoas iniciem o processo de aquisição da língua escrita, através de atividades significativas de leitura e produção escrita e de estratégias que viabilizem um trabalho de construção coletiva7, ou seja, resgatar do cotidiano destes alunos situações em que o código escrito é utilizado para interagir, comunicar e não apenas agrupar letras sem que tenham um significado real para o aluno. Portanto, a proposta a ser desenvolvida pelo PAS deverá efetivar situações de ensino que viabilizem o “fortalecimento da autonomia do aluno e, assim, ajudá-lo em seu desenvolvimento como cidadão e em sua inserção nas práticas cotidianas de uso da escrita” (Kleiman, 2000, p.21). Dessa forma, é fundamental incorporar aos processos de 54 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... - p. 47-56 ensino-aprendizagem da leitura e da escrita as demandas do aluno ou de grupos de alunos envolvidos no Programa Alfabetização Solidária, utilizando metodologias e estratégias de ensino que considerem as características de sua clientela, suas experiências de vida que envolvem não apenas os conhecimentos prévios de leitura e escrita, como também sua auto-estima, seus sonhos e expectativas. Conseqüentemente, é necessário que o professor utilize a leitura e a escrita em seu cotidiano reconhecendo-a como objeto social. Ele só terá condições de letrar seus alunos se ele próprio for letrado. Para isso, o educador deverá fazer uso e ter disponível para si mesmo e para os seus alunos as mais variadas modalidades de textos escritos, desde bulas de remédios, textos instrucionais, literários, artísticos, poéticos, jornalísticos e científicos, para que ele tenha condições de efetivar a proposta de letramento prevista nos “ Princípios Orientadores do Programa Alfabetização Solidária”. Notas 1 Mestre em Educação- Coordenadora Pedagógica do 1º ciclo – ESEBA-UFU – Coordenadora Setorial do Programa Alfabetização Solidária – município de Várzea Alegre Ceará: 1998/2002 . 2 KLEIMAN, SIGNORINI e Colaboradores (2000) . 3 Picoli (2000) pesquisou o processo de aquisição de escrita pelo adulto tendo como categorias de análise as etapas que caracterizam a linha evolutiva na aquisição da escrita segundo FERREIRO (1989). 4 Segundo Signorini (2000, p.45), a escrita funcional, “refere-se às habilidades de uso funcional da escrita, como ler placas e instruções, preencher formulários, fazer requerimentos (...)”. 5 A mesma autora esclarece que a oralidade letrada refere-se às habilidades orais que os indivíduos desenvolvem em suas práticas sociais, participando de reuniões na comunidades e eventos sociais em geral. 6 A Universidade Federal de Uberlândia coordena através da PROEX/ ESEBA/FACED sete municípios localizados no interior do Estado do Ceará, enquanto parceira do Programa Alfabetização Solidária. 7 A estratégia de projetos ou metodologia de projetos é uma proposta pedagógica que possibilita uma aprendizagem significativa, pois tem como princípio a interação do aluno na construção do processo, além de permitir o diálogo entre vários conteúdos estudados. Outra opção, seria a utilização de temas geradores. 8 Gênero: grupos de indivíduos que são constituídos de acordo com características comuns, podendo ser organizados de acordo com as atividades desenvolvidas como por exemplo a agricultura ou mesmo quanto ao sexo (masculino, feminino). 10 A estratégia de projetos ou metodologia de projetos é uma proposta pedagóREVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... – p. 47-56 | 55 gica que possibilita uma aprendizagem significativa, pois tem como princípio a interação do aluno na construção do processo, além de permitir o diálogo entre vários conteúdos estudados. Outra opção, seria a utilização de temas geradores. Bibliografia DESCARDECI, M. A. A. S. O Incentivo Municipal à Alfabetização: Um Evento de Letramento na Comunidade. In Kleiman, A. K. Alfabetização e formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 54-74. KLEIMAN, A. K. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In:______. (org). Os significados do letramento: Uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de letras, 1995. p. 15-61. KLEIMAN, A. K; SIGNORINI, I. Alfabetização e formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. PICOLI, F. Para Mio a Mudasa na Tié Probemas”: as Primeiras Produções do Alfabetizando Adulto. In Kleiman, A. K. Alfabetização e formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 103.122. RIBEIRO, V. M. M. Conceito de Alfabetização. Texto elaborado para o projeto SESC-LER do Serviço Social do Comércio. SIGNORINI, I. O Contexto Sociocultural e Econômico: Às Margens da Sociedade Letrada. In Kleiman, A. K. Alfabetização e formação do professor: alfabetização de jovens e adultos. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. p. 40-53. SOARES, M. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1992 . Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica,1998. 56 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Algumas práticas de letramento: uma experiência no programa Alfabetização... - p. 47-56 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África Carmen Sá Brito Sigwalt1 Universidade Federal do Paraná – UFPR Neiva Costa Toneli2 PUC-Minas Quatro instituições de ensino superior brasileiras vêm realizando um Programa de Alfabetização no país africano de São Tomé e Príncipe. A Universidade Braz Cubas de São Paulo, a Universidade Federal do Paraná, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais são as responsáveis pelo desenvolvimento deste projeto. Em janeiro deste ano, estivemos no país com o objetivo de realizar um acompanhamento do trabalho pedagógico desenvolvido nas cem salas de aula implantadas pelo Programa, em novembro de 2002. Nos dias de permanência em São Tomé visitamos as salas de aula implantadas, correspondentes a turmas da zona rural e urbana do país. Essas visitas de acompanhamento evidenciaram dois grandes grupos de atuação dos professores. Um primeiro grupo que vinha trabalhando de forma coerente às orientações dadas durante o processo de capacitação, ou seja, utilizavam uma metodologia que contempla, não apenas a dimensão gráfica do processo de alfabetização, mas atende à necessidade de garantir um processo de letramento dos professores e alfabetizandos. Tal metodologia tem como ponto de partida textos significativos que REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 57 possibilitam a compreensão do que é ler e escrever, a função social do letramento e da escrita, o despertar o gosto pela aquisição dessas habilidades e o domínio sistemático do código da Língua Portuguesa. O segundo grupo observado revelou estar privilegiando apenas o processo de domínio do sistema gráfico da língua e secundarizando ações que atendam o processo de alfabetização no seu sentido mais amplo. Em outras palavras, esses alfabetizadores estavam desenvolvendo uma prática acentuadamente tradicional, enfatizando predominantemente a memorização de sílabas e letras. Em que pese esse equívoco de encaminhamento, percebemos em todos os alfabetizadores um compromisso efetivo com o desenvolvimento do trabalho. As visitas às turmas revelaram, ainda, uma semelhança acentuada com os problemas enfrentados pelos alfabetizadores do Programa Alfabetização Solidária desenvolvido no norte e nordeste do Brasil. Entre outros, a precariedade da iluminação das salas de aula, doenças, limites de visão, dificuldades de transporte quando o alfabetizador não reside nas proximidades da sala de aula, cansaço dos alfabetizandos após um dia penoso de trabalho, indisciplina em algumas turmas da zona urbana, problemas de assiduidade e pontualidade por questões de trabalho e tarefas domésticas, insatisfação com o valor da bolsa auxílio aos alfabetizadores e dificuldade de acesso dos coordenadores às salas, para as visitas de acompanhamento. Nessa ocasião, realizamos um encontro de formação contínua com todos os dez coordenadores distritais, procurando retomar a metodologia, os pressupostos teóricos e o encaminhamento prático do trabalho que envolve o processo de aquisição da língua escrita. Nesse mini-curso, partimos de uma crítica às formas metodológicas tradicionais de alfabetização, apontando os seus limites e finalizamos apresentando e discutindo com os coordenadores como realizar um trabalho mais conseqüente e consistente no processo de alfabetização. Enfatizamos a necessidade de se trabalhar com variados gêneros textuais e concluímos o trabalho propondo um rol de atividades significativas a serem realizadas em sala de aula para a articulação da dimensão de letramento e domínio da grafia. Distribuímos, também, aos coordenadores distritais um “kit” de literatura, disponibilizado pelo Programa Alfabetização Solidária, com um acervo de 70 volumes para cada um deles e orientamos para o desenvolvimento de um Projeto de Literatura que denominamos de “Os Livros Criam Asas” para possibilitar o acesso a essas obras por todos os alunos do Programa. Deixamos o país assumindo um compromisso com os coordenadores distritais e Ministério de Educação de São Tomé e Príncipe de 58 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 realizarmos um grande Encontro de Formação Contínua com a proposta de envolver os cem alfabetizadores, os dez coordenadores distritais e cinqüenta professores da rede oficial de ensino do país, em nossa próxima visita. O objetivo do encontro, que se concretizou em abril deste ano e que teve a duração de 16 h/a, foi o de possibilitar, junto aos alfabetizadores, o aprofundamento da concepção de alfabetização e do processo de letramento, dos encaminhamentos metodológicos e das atividades de sistematização para o domínio efetivo da Língua Portuguesa, propiciando condições para a troca de experiências significativas entre o alfabetizadores. Iniciamos a palestra do primeiro dia do Encontro de Formação Contínua salientando aos professores africanos que o Brasil, assim como eles, ainda não conseguiu diminuir o seu elevado índice de analfabetismo, portanto não tínhamos a pretensão de solucionar o problema de outro lugar, uma vez que ainda não resolvemos a questão em nosso próprio país. Destacamos que os percentuais de analfabetismo em nosso território têm diminuído, pois em 1920 possuíamos 64,9% da população de analfabetos; em 1940 o percentual caiu para 56%; em 1960, para 39,6%; na década de 80, para 25,4% e o ano 2000 aponta para cerca de 15% da população. No entanto, em números absolutos, houve um aumento de pessoas analfabetas na faixa de 15 anos de idade ou mais. Segundo os dados estatísticos, o Brasil tinha uma média de 11 milhões de analfabetos na década de 20; 13 milhões em 1940; quase 16 milhões nos anos 60, 18 milhões em 1980 e perto de 20 milhões nos dias atuais. Evidenciamos que os municípios brasileiros que apresentam elevados índices de analfabetismo revelam também indicadores alarmantes em relação à saúde, expectativa de vida, mortalidade infantil e saneamento básico, mostrando a estreita relação entre miséria e analfabetismo, ou em outras palavras, as cidades com índices precários de desenvolvimento humano registram percentuais elevados de analfabetismo. Salientamos que o enfrentamento desse problema exige não apenas políticas educacionais, mas as demais instâncias de relações sociais precisam de investimento e ação. São necessários, então, programas que fomentem a necessidade de políticas de saúde, de moradia, de saneamento, de lazer e de cultura, entre outras. Enfatizamos que as propostas pedagógicas de alfabetização podem colaborar no processo, não apenas do letramento, mas de transformação social. Realizamos, inicialmente, uma crítica às metolodogias tradicionais de alfabetização, mostrando que os “textos” das abordagens conservadoras REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 59 são conjuntos de frases sem nenhum significado. O critério de escolha destes “textos” é a incidência de uma determinada letra ou sílaba e a leitura dessas produções distancia o aluno da real noção de texto, ou seja, aquilo que tem significado. Trabalhar com sílabas isoladas, palavras descontextualizadas, frases estranhas e treinamentos mecânicos de estruturas elaboradas com critérios questionáveis de dificuldade leva os alfabetizandos, submetidos a esses pseudotextos, a produzir pseudoescritas. Os “textos” das abordagens tradicionais são meros pretextos para a apresentação de uma letra ou sílaba. Não comunicam uma idéia, não têm unidade temática e não utilizam os recursos que a língua escrita possui para evitar a repetição, as redundâncias etc. Não configuram um sentido lógico, descaracterizando a língua como produto da interação entre sujeitos sócio-historicamente situados, conforme postula Bakhtin (19993: 142). Já a concepção presente nos métodos tradicionais de alfabetização vê a língua como um conjunto de formas prontas e acabadas que devem ser memorizadas, como um código autônomo, estruturado como um sistema abstrato e homogêneo e desvinculado do uso. Supervaloriza o domínio do sistema gráfico, secundarizando o trabalho da linguagem no seu sentido mais amplo, que é o trabalho com o significado. A prática pedagógica dos métodos tradicionais impõe um treino perceptual e motor no período preparatório, um treino repetitivo de palavras e padrões silábicos durante o processo de alfabetização, colocando absoluta ênfase na cópia e na simples fixação da correspondência entre som e grafia. Enfim, ensinar apenas a mecânica da leitura e da escrita não é alfabetizar. Após a crítica às formas tradicionais de alfabetização, explicitamos os pressupostos que devem sustentar o processo de letramento, destacando a língua escrita como um sistema de representação em que a grafia das palavras e seu significado estão associados. A relação de ensino tem que se organizar de forma que o aluno possa entender a leitura e a escrita como atividades sociais significativas que envolvam o uso da língua em situações reais, através de textos significativos e contextualizados. O domínio do gráfico é apenas parte de um processo mais amplo. Essa concepção de alfabetização se articula com uma concepção interacionista de linguagem, ou seja, mais do que possibilitar a transmissão de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Aprender a língua não é apenas aprender estruturas, mas é, sobretudo, aprender formas de pensar o mundo e de agir sobre ele. 60 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 Procuramos explicitar, ainda, pressupostos que levassem os professores a negar as formas tradicionais de alfabetizar e os orientamos para o desenvolvimento de ações pedagógicas com vistas à aquisição da leitura e da escrita como atividades de real função social. As oficinas pedagógicas desenvolvidas na segunda fase do Encontro de Formação foram realizadas a partir da exposição de sugestões de encaminhamento do processo de alfabetização (anexo 1) com orientação sobre os momentos que devem anteceder o trabalho com o texto, a apresentação de um texto significativo, questões de interpretação e atividades para a sistematização do domínio do código gráfico da língua. Os professores, de posse de um documento que tratou dos passos a serem seguidos para trabalhar o texto na sala de aula (anexo 2) e de dez diferentes textos que contemplaram diferentes gêneros textuais (anexo 3) realizaram a elaboração de unidades de ensino com questões de interpretação e sugestões de atividades para o domínio progressivo do código da Língua Portuguesa. O fechamento do trabalho possibilitou a socialização das produções realizadas, revelando um alto nível qualitativo das propostas. Segundo a avaliação realizada pelos professores, junto aos participantes, o Encontro foi altamente positivo, pois proporcionou a eles a oportunidade de “troca de experiências”, “enriquecimento de conhecimentos”, apontou maneiras de “encaminhamento de uma aula” e trouxe, ainda, “contribuições para “melhoramento do processo ensino/ aprendizagem”, enfim, todos foram unânimes em apontar a validade do trabalho realizado pela equipe de professoras das IES brasileiras. Notas 1 Professora da Universidade Federal do Paraná e Coordenadora do Programa “Alfabetização Solidária” na UFPR. 2 Professora da PUC-Minas e Coordenadora do Programa “Alfabetização Solidária” na Universidade. 3 Trata-se da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicação original de 1929. A tradução brasileira consultada é de 1999. Referência Bibliográfica SIGWALT, Carmen. A Formação do Professor Alfabetizador: Caminhos e Descaminhos – dissertação de Mestrado. UFPR: 1992. KLEIN, Lígia Regina. Proposta política Pedagógica de Mato Grosso do Sul. 2000. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 61 Anexo 1 1º Encontro de formação contínua do programa “Alfabetização Solidária” para os educadores de São Tomé e Príncipe Universidades brasileiras envolvidas: PUC-Minas, PUC-RS, UBC e UFPR Sugestões de encaminhamento do Processo de Alfabetização 1º momento: Conversa com os alunos sobre São Tomé e Príncipe. O professor poderá falar sobre a história das duas ilhas, as características naturais do país, os aspectos que marcam o povo, as condições de vida da população, suas dificuldades, as esperanças do povo, a forma como as pessoas que visitam o país o vêem etc. 2º momento: O professor apresenta um texto síntese de uma reportagem de uma revista brasileira que fala de São Tomé e Príncipe. O professor poderá levar a revista para a sala de aula, mostrá-la aos alunos, ler alguns trechos da reportagem e finalmente registrar no quadro de giz ou num cartaz o seguinte texto: São Tomé e Príncipe Duas ilhas. A maior é São Tomé e a outra Príncipe, um dos últimos paraísos do planeta. Florestas virgens tropicais, com pássaros, árvores e flores estranhas, praias douradas e montanhas vulcânicas no meio disso tudo. Um povo simpático: assim é São Tomé e Príncipe. 3º momento: O professor deverá ler o texto para os alunos com entonação, timbre e ritmo adequado. Solicitar que os alunos leiam junto com o professor ( de fato eles estarão realizando uma pseudoleitura, mas é desta forma que se inicia o processo). 4º momento: O professor direcionará o processo de interpretação do texto, permitindo que os alunos falem sobre ele e sobre outros aspectos que não estão no mesmo, mas que dizem respeito a São Tomé e Príncipe. Sugerimos questões como estas: 1. 2. 3. 62 | O texto apresenta características de que país? O país é formado por quantas ilhas? Segundo o texto, quais as características naturais do país? REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 4. 5. Como é o povo de São Tomé e Príncipe, segundo o texto? Que outros aspectos naturais possui São Tomé e Príncipe e que o texto nos registra? 6. Além de simpático, como vocês definiriam o povo? 7. Cite outros aspectos positivos das duas ilhas. 8. Quais as dificuldades enfrentadas pelo povo de São Tomé e Príncipe? 9. Como vocês acreditam que estas dificuldades podem ser superadas ou amenizadas? 10. Quais as maiores necessidades do povo? 11. Vocês conhecem a história de como estas ilhas foram descobertas? 12. O que vocês sabem sobre sua história? 5º momento: O professor, em conjunto com os alunos, pode destacar algumas palavras significativas do texto que devem ser registradas no quadro. Estas palavras deverão ser lidas pelo professor e pelos alunos (é importante destacar que os alunos nesta fase realizam uma pseudoleitura, ou seja, repetem tal como o professor leu). 6º momento: Identificação de palavras no texto: a) Aponte / apague / descubra, no texto, onde está escrito: • São Tomé • Príncipe • Povo • Ilhas • Árvores • Um b) Distribuir fichas com palavras do texto para que o aluno as localize. 7º momento: Identificação de letras: a) Lembrar de palavras que terminem com : • planeta (a) b) lembrar de palavras que comecem com: • outra (o) • estranhas (e) • ilha (i) • um (u) c) destacar as letras: e–o–a–u–i d) Pedir que os alunos encontrem estas letras (vogais) em outras palavras do texto. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 63 e) Fornecer fichas com as letras (a – e – i – o – u), pedir que os alunos digam palavras que comecem com estas letras. 8º momento: a) Completar palavras com as letras que estão faltando: p__ v__ ( povo) __rvores (árvores) Pr__ncip__ ( Príncipe) ___m ( um) ___lhas (ilhas) b) Completar com o auxílio de fichas e procurando no texto: palavras : ficha: (du__s) ilh__s m__ior São Tom__ Príncip__ Planet__ P__v__ __m __lhas __ltimos para__sos pl__net__ p__ssaros __rvores a a a e e a o u i u i a a e 9º momento: Destacar e ler algumas palavras e solicitar que os alunos verifiquem se na escrita no seu nome aparecem aquelas letras, por ex.: POVO (O) ILHAS (I) ESTRANHA (E) ÁRVORES (A) Osvaldo Ivete Ernesto Alda 10º momento: Trabalhar com padrões silábicos, por ex: POVO NOVO (destacar para os alunos que a alteração de uma letra muda a palavra) POVO POLVO 64 | ILHA ILHAS NOVO NOVE REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 • Substituir a sílaba assinalada por outras (escritas em cartelas) – não esquecer de discutir o significado destas palavras novas. POVO (NO) NOVO (VE) Sugestão de texto: As ilhas de São Tomé e Príncipe são irmãs do Brasil por parte de Portugal. Elas foram descobertas em 1471 pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pedro Escobar. O Brasil foi descoberto em 1500 pelo navegador português Pedro Álvares Cabral. São Tomé e Príncipe é um dos cinco países africanos que, junto com Brasil e Portugal, formam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Temos muito em comum com São Tomé e Príncipe. A mesma língua, a mesma alma, metade africana e metade portuguesa. Gosto e jeito para a música. Sugestão de texto: Dona Alda encontrou com Ernesto e perguntou: – Como vai a vida? Ernesto respondeu: – Leve, leve. Sugestão de texto: História de vida Meu nome é _________, moro no distrito de Neve. Levanto bem cedo para pescar. Quando era criança não pude estudar, por isso, à noite, vou à escola. Estou aprendendo a ler e a escrever. Outros textos: bilhetes, cartazes, propagandas, anúncios, convites, notícias, receitas, lista de compras etc. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 65 Anexo 2 1º Encontro de formação contínua do programa “Alfabetização Solidária” para os educadores de São Tomé e Príncipe Universidades brasileiras envolvidas: PUC-Minas, PUC-RS, UBC e UFPR Passos a serem seguidos para trabalhar o texto na sala de aula A metodologia que estamos propondo deverá ser seguida no desenvolvimento de todas as unidades. 1º Passo – Ativação de conhecimentos prévios. Ativar os conhecimentos prévios dos alunos a respeito do tema que será tratado. Levantamento de hipóteses e previsões, a partir do título do texto, de nomes de pessoas e lugares etc. 2º Passo – Atividades de linguagem oral: diálogo sobre o tema. Esse diálogo é indispensável para que os alfabetizandos aprendam de fato a dizer o que pensam, expor seus argumentos e idéias, aceitando opiniões e respeitando pontos de vista diferentes. Através do diálogo, o alfabetizador deve incentivar o aluno a questionar informações recebidas e suas próprias experiências e conhecimentos acumulados ao longo da vida, para chegar à elaboração do texto. 3º Passo – Leitura e exploração do texto. a) Fazer um comentário sobre o texto: suas características, função social, locais em que são encontrados, antes de apresentá-lo, em cartaz, para os alunos. b) Deixar que os alunos explorem o texto, verificando se existe nele alguma palavra ou letra que eles já conheçam. Observar as ilustrações e as gravuras (se houver), tentando ler o que está escrito no texto. c) O alfabetizador deverá ler o texto em voz alta (apontar as palavras com a régua) e pedir aos alfabetizandos que acompanhem a leitura buscando estimulá-los à leitura individual e coletiva, mesmo que levem algum tempo para conseguir decifrar o código escrito, centrando sua preocupação na busca do significado. d) Utilizar atividades orais, relativas ao texto, para que os alunos identifiquem partes do mesmo (identificar nome de pessoas e/ou lugares, data, título, última frase, palavras iniciadas por determinada letra ou que contenham determinada sílaba etc.) 66 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 4ºPasso – Decomposição do texto em frases. a) Fragmentar o texto em frases (trabalhar no chão), montando e desmontando o texto novamente. b) Destacar uma frase no texto para ser escrita em ficha. Essa frase desencadeará a reflexão sobre o tema tratado na unidade. 5º Passo – A sistematização para o domínio do código. a) Destacar as palavras mais significativas do texto, colocando-as em fichas. b) Fazer a leitura dessas palavras. c) Apontar as palavras no texto, pedir aos alfabetizandos que as identifiquem, sublinhando-as, circulando-as etc. 6º Passo – A relação letra/som. Destacar, das palavras que estão sendo utilizadas, algumas delas (3 ou 4) para trabalhar a relação letra/som. Tais palavras serão formadas com fichas de sílabas e com o alfabeto móvel. O trabalho com as palavras pode ser feito conforme as seguintes sugestões: * a) Apresentar esta palavra em vários contextos – no quadro, cartaz, fichas – até perceber que os alunos já fazem uma leitura globalizada. b) Decompor a palavra em sílaba e fazer a relação oralidade/escrita com cada sílaba. c) Desenvolver vários jogos (memória, bingo etc.) para fixação das palavras, sílabas e letras. d) Promover atividades de formação de sílaba com alfabeto móvel ou alfacabo. e) Promover atividades de escrita com as sílabas estudadas. f) Promover atividades de identificação das sílabas estudadas no interior de outros vocábulos. g) Promover atividades de memorização das letras em ordem alfabéticas h) Promover atividades de identificação oralidade/escrita. 7º Passo – Formação de novas palavras. O professor utilizará as sílabas que estão sendo trabalhadas, para a formação de novas palavras. Essas deverão ser escritas em fichas ou no quadro para serem lidas pelos alunos. Concluindo: O trabalho de alfabetização e letramento de jovens e adultos deverá dar conta, portanto, de duas questões: REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 67 1ª) a questão das relações textuais (função social do texto, textualidade, utilização dos vários gêneros textuais que circulam na sociedade); 2ª) questão da codificação /decodificação da língua escrita (chegando até às sílabas e letras do alfabeto). * Adaptação das propostas apresentadas por Lígia Regina Klein in Proposta político-pedagógica de Mato Grosso do Sul, 2000 Anexo 3 Gênero textual: reportagem São Tomé e Príncipe Duas ilhas. A maior é São Tomé e a outra Príncipe, um dos últimos paraísos do planeta. Florestas virgens tropicais com pássaros, árvores e flores estranhas, praias douradas e montanhas vulcânicas no meio disso tudo. Um povo simpático: assim é São Tomé e Príncipe. (Revista “Top Magazine” – Ano 5 – nº 50) Gênero textual: reportagem PROGRAMA “ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA” EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE O programa “Alfabetização Solidária” em São Tomé e Príncipe está sendo desenvolvido por cem alfabetizadores e dez coordenadores, sendo um alfabetizador por turma. O trabalho atende a 2.500 alunos em seis distritos em São Tomé: Água Grande, Cantagalo, Cauê, Lembá, Lobata e Mé-Zochi, com salas nas zonas urbana e rural, além de dez salas na ilha de Príncipe. (“PUC-MINAS” – Março de 2003) Gênero textual: notícia IDENTIFICADO O VÍRUS DA NOVA PNEUMONIA Cientistas identificaram o vírus responsável pela pneumonia asiática, também conhecida como SARS (síndrome respiratória aguda grave). Como se suspeitava, esse vírus é parente de um dos que causam o resfriado. Com a confirmação, pode ser desenvolvido novo teste para a doença. (“Folha de São Paulo” – 11-04-03) 68 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 Gênero textual: poema MÃE SANTOMENSE Oh mãe, Mulher incansável Nas tuas costas dormi Quando descascavas a banana Para a refeição da tarde, Quando ias para a roça De manhã E em qualquer hora do dia. Oh mãe, Mulher incansável As tuas canções aprendi: A que triturava o izaquente E a que embalava a criança Que era eu. Oh mãe, Mulher incansável Pelo teu leite Pelas tuas canções Pela felicidade de teus filhos, Eu te agradeço Mil vezes Oh minha mãe. Autora: Alda do Espírito Santo Gênero textual: receita culinária PUDIM DE FRUTA-PÃO Ingredientes: • Meia fruta-pão • 06 ovos • 06 colheres de açúcar vidrado • sumo de um limão Modo de preparar: Depois de preparada a fruta-pão, põe-se a cozer em água e sal. Depois de cozida, é pisada. Juntam-se as gemas dos ovos, as claras batidas em castelo e o açúcar. A forma é barrada com açúcar queimado e o pudim é cozido em banho-maria. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África – p. 57-70 | 69 Gênero textual: quadras 1 Santo António de Lisboa Era um grande pregador, Mas é por ser Santo António Que as moças lhe têm amor. 2 Tenho vontade de ver-te Mas não sei como acertar. Passeias onde não ando, Andas sem eu te encontrar. QUADRAS 3 Não me digas que me queres Pois não sei acreditar No mundo há muitas mulheres Mas mentem todas a par. 4 A laranja que escolheste Não era a melhor que havia. Também o amor que me deste Qualquer outra mo daria. Fernando Pessoa – Quadras populares Gênero textual: bilhete São Tomé, 14 de Abril de 2003. Querida Prima Antónia Desejo-lhe saúde e felicidades e espero, também, que tudo lhe esteja a correr pelo melhor. Por estarmos muito distantes uma da outra e na impossibilidade de conversarmos de perto, venho por este meio comunicar-lhe o casamento da minha filha, que será realizado no próximo mês de maio. Entretanto tudo farei para lhe enviar um convite, no qual indicarei a data do casamento, bem como o local da Boda. Ciente de que não faltará a essa cerimónia, desde já, conto com a sua presença. Da sua prima, Helena Bonfim Gênero textual: anúncio MOTO Vendo uma moto, de cor vermelha, de 125 cilindradas, em bom estado de conservação, único dono. Preço a combinar. Tratar com António Pires, em Almas, Distrito de Mé-Zóchi. Gênero textual: história de vida “Eu, aos dez anos de idade, comecei a trabalhar envernizando cadeiras. O que eu ganhava, entregava a minha mãe. Meu pai nos deixou e, por passar tanta dificuldade, fui forçado a sustentar minha mãe e minhas quatro irmãs. Hoje só me arrependo de ter atrasado os meus estudos”. Fábio. Aluno da Educação de Jovens e Adultos, Mossoró, 1996. 70 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Uma experiência de formação continuada em São Tomé e Príncipe, na África - p. 57-70 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho de democratização da educação brasileira Claudia Maria de Andrade e Silva* Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti** “O que pode ser visualizado como novo é a perspectiva de que o conhecimento, em vez, de produzir certezas, é marcantemente uma estratégia de as desmontar. Parece ser mais uma habilidade de lidar criativamente com a incerteza, com a qual convive dialeticamente... O ‘porto seguro’ não é um lugar...”. (Pedro Demo, 1998) Considerações Iniciais N os primórdios da República brasileira, compreendendo os anos de 1930 a 1964, pode-se inferir a respeito da democratização do sistema escolar brasileiro? A partir desta problemática, buscaremos expor algumas características e considerações acerca desta fase histórica, além de historicizar algumas críticas e debates historiográficos. Não obstante, enfatizaremos algumas controvérsias e elementos característicos da educação no Brasil. Ao compreendermos a história do Brasil como um conjunto de interligações estruturais, torna-se necessário uma contextualização não REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 71 só do período anterior – II Império –, como também da conjuntura nacional e internacional das décadas de 30 a 60. Para o estudo do II Império e início da fase republicana, utilizamos como referencial o estudo de Francisco de Oliveira (Oliveira, 1975), cujo objetivo é reexaminar o significado histórico do período, partindo de questões historiográficas a respeito da continuidade dos aspectos econômicos coloniais, apesar de levar-se em consideração as modificações relevantes durante a Primeira República. Oliveira introduz vertentes analíticas para a compreensão deste momento da História do Brasil. A primeira, de cunho estruturalista, que aborda a criação de um mercado interno por via da expansão de renda monetária das exportações. A outra – identificada como neoclássica –, reflete sobre a alocação dos fatores econômicos e distribuição entre exportação e importação, salientando um obstáculo para o processo de industrialização brasileira: a política liberal. Apesar das divergências, as duas tendências apontam para um elemento comum: o progresso. Neste ponto, “há que se ver o movimento das forças sociais em ação e as diversas situações não devem ser entendidas nem como desvios nem como uma decorrência natural” (Oliveira, 1975, p. 394). A sociedade brasileira caminha para transformações Neste sentido, a economia e a sociedade brasileiras foram gestadas na expansão do capitalismo e, por isso, deve-se pensar nas “expressões da dialética da produção”. Por conseguinte, não devemos simplesmente afirmar a ocorrência contínua de um processo histórico; pois, é proeminente perceber também as transformações inerentes ao conteúdo e ao crescimento da economia brasileira. Nos anos 30, as mudanças econômicas e sociais demonstraram ter havido uma ruptura no sistema agro-exportador, dando início ao processo de financiamento interno à produção cafeeira e incentivos ao setor de indústrias de transformações. Evidenciando um momento transitório para o capitalismo industrial, este processo estimula uma nova divisão social do trabalho (substituição do escravismo pela mão-de-obra assalariada) e a formação de um mercado interno. A solução encontrada foi a eliminação dos obstáculos da divisão social do trabalho. 72 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 “Na raiz da importância da divisão social do trabalho no Brasil, encontra-se o ter sido o país colônia de exploração comercial que adotou formas de trabalho compulsório. Esta é a base ou a ausência de base para o mercado interno” (Novais apud Hollanda, 1975, p. 402). Desta forma, as relações matizadas a partir da Primeira República podem ser caracterizadas pela industrialização e urbanização; substituição da mão-de-obra escrava por assalariada etc. Estas características revelam a “explosão de uma população para o capital, que marcarão as condições do nascente capitalismo industrial no Brasil” (Novais apud Hollanda, 1975, p. 406). Detalhando a conjuntura nacional, Francisco de Oliveira sintetiza sua hipótese central de que estas transformações devem compreender um fator determinante do contexto internacional: o imperialismo e a expansão do sistema de exportações de capitais (capitalismo financeiro). A miséria educacional no Brasil Outro estudo importante para auxiliar-nos nesta análise é a tese de doutoramento de Maria Elizabete Xavier (1990). Após delimitação teórico-metodológica, a autora aponta os objetivos de sua investigação: refletir a “miséria educacional brasileira” não só através de questões externas; mas, sobretudo, a partir das contradições internas. Na introdução, a autora explicita a origem do problema (dependência ou dominação externa no pensamento pedagógico nacional), revelando as diversas tendências da historiografia (“complexo colonialista” e dominação econômica e cultural). Elabora uma interpretação crítica para tentar desmitificar o distanciamento entre sociedade e sistema educacional, buscando apreender o pensamento e a prática pedagógica como produtos dessa realidade, ou seja, “processo de produção da consciência pedagógica nacional e nele a constituição de uma ideologia educacional no país” (XAVIER, 1990, p. 14). A partir desta temática, reconstrói historicamente as relações entre liberalismo e capitalismo, ressaltando que o ideário liberal deve ser considerado como um integrante da constituição do capitalismo brasileiro. No entanto, é interessante notar que essas relações passam por adaptações às realidades dos pólos periféricos e menos desenvolvidos. Ao explicitar a ideologia liberal, Xavier procura apontar REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 73 as interligações existentes entre esse ideário e o comprometimento pedagógico com a realidade nacional. Anos 30 a 60: reconstrução nacional A contextualização se faz necessária, abordando a conjuntura da década de 30 a 60, em que o capitalismo brasileiro adaptava-se à fase industrial: as bases da ideologia educacional foram assentadas no movimento de reconstrução educacional e o sistema de ensino sofreu uma reorganização que lhe definiu a própria estrutura. Além de referências ao desenvolvimento capitalista internacional, pode-se afirmar que a industrialização configura-se como o último estágio no processo de consolidação das relações de produção. Todavia, deve-se explicar o desenvolvimento do sistema capitalista pelas contradições particulares e formas de dominação, mas também pela articulação com o desenvolvimento internacional deste sistema. Ao mencionar a emergência da industrialização brasileira, salienta-se ainda que as crises cíclicas das economias agro-exportadoras, em particular no caso brasileiro, incentivam a superação destas relações, marcadas pela nova dinâmica: a industrialização. Foi nas primeiras décadas do século XX que o Brasil encontrou a oportunidade e as condições históricas necessárias para superar a crise da economia agro-exportadora e alterar as formas tradicionais de dominação capitalista, através da industrialização. Após esta ênfase na conjuntura brasileira, Xavier (1990) elenca as contradições particulares da industrialização nacional, desde a descrição da evolução do capitalismo internacional até as novas determinações (exportação de capitais). No Brasil, aponta a gestação do empresariado nacional, que fora produzida conjuntamente e dependente do capital estrangeiro. No final da década de 1920, tanto a economia como a política nacional tiveram que sofrer rearticulações, principalmente no que se refere ao Estado. “Internamente, o capitalismo foi-se amoldando à antiga estrutura ultra-conservadora da economia colonial, entrelaçou suas raízes com as dos velhos troncos semifeudais e superpôs, às anacrônicas organizações monopolistas, formas mais modernas de monopólio” (Xavier, 1990, p. 38). 74 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 O Estado Brasileiro atuava como agente promotor da expansão industrial, favorecendo nitidamente a monopolização interna da economia. Este processo, entre as décadas de 30 e 50, foi marcado por contradições, apesar de consolidar a ordem capitalista. Dicotomia social: os dois brasis Compreende-se, ainda, nesta fase a manutenção da formação social brasileira (aristocrática, concentradora de riquezas, prestígio social e poder). Neste ponto, percebe-se a inviabilidade de integração nacional, pois as camadas trabalhadoras sofriam dupla expropriação (classes dominantes internas e externas). Destarte, permitiu-se a simultaneidade de duas realidades brasileiras: de um lado, a que se transformava, absorvendo as modificações do capitalismo, mas impedindo a integração nacional; do outro, a dominação externa, estimulando a modernização e dificultando o desenvolvimento auto-suficiente. Após esta contextualização, pode-se inferir que as origens e a estruturação do ideário educacional brasileiro, são constatados através da “maneira pela qual os obstáculos ao desenvolvimento econômico-social do país se traduziram em limites da renovação do seu sistema educacional” (Xavier, 1990, p. 59). Ao receber influência direta das sociedades hegemônicas, as transformações intelectuais e culturais expressaram-se como “ornamentos” desta relação. A doutrina liberal instigava a reformulação da educação, desembocando nas propostas de escola pública, universal e gratuita. Deste modo, assegurava-se uma “certa” isonomia, tanto no âmbito do direito quanto das oportunidades e a escola serviria aos propósitos de progresso individual e mobilidade social. Escola Nova: uma proposta democrática O ideário escolanovista representou tais perspectivas, sem deixar de refletir “o desconforto das elites intelectuais progressistas, diante de um índice de analfabetismo que punha a descoberto o ‘atraso’ do país” (Xavier, 1990, p. 61). A nova pedagogia preocupava-se em fazer um rearranjo político e adequar o ensino à nova ordem “democrática”. Para tanto, as várias REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 75 reformas de ensino vivenciadas no período: Reforma Francisco Campos, Reforma Capanema e Substitutivo Lacerda. As modificações demonstraram uma maneira de direcionar as insatisfações sociais, pois, “expandir as oportunidades educacionais ou reformar as instituições escolares representava um custo menor que alterar a distribuição de renda e as relações de poder” (Xavier, 1990, p. 63). A pedagogia da Escola Nova apontava, neste sentido, a realização dos objetivos das classes dominantes, além de atender também aos anseios das classes médias e inferiores. Sob influência de John Dewey, o ideário escolanovista funcionava como um instrumento privilegiado de mediação política. Os debates referentes às questões da educação brasileira, entre os anos 20 e 30, contaram com a participação de diversos segmentos sociais: revolucionários, reformistas e reacionários. O ponto convergente entre esses agentes era a idéia de reconstruir o país através da escola, pautado na educação. Somente após 1930 é que algumas reformas estaduais foram postas em prática, apesar da maioria não apresentar bases teóricas consistentes. A partir destas diretrizes traçadas pelo pensamento escolanovista, algumas mudanças foram efetivadas visando a “democratização”. Entretanto, as limitações encontradas foram expressivas: legitimação do dualismo educacional (popular X elite) e incentivos à escola privada, além da descentralização. Apesar de traçarem reformas para os três níveis de ensino, a proposta escolanovista permanece no âmbito das generalizações teóricas, apesar de propor pragmaticidade. Além disso, os pioneiros mantinham a concepção de educação geral e intelectualizada, tendo como função a formação e a legitimação das elites no poder. Contudo, o ideário liberal salienta que “só pela educação que a doutrina democrática, utilizada como um princípio de desagregação moral e de indisciplina, poderá transformar-se numa fonte de esforço moral, de energia criadora, de solidariedade social e de espírito de cooperação” (Xavier, 1990, p. 81). A “democratização” seria impulsionada pela euforia de reconstrução nacional e do sistema educacional brasileiro. No entanto, as controvérsias entre a necessidade social e as propostas feitas para “democratizar” o ensino apontam para uma assertiva. As inovações, 76 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 introduzidas no projeto original e mantidas no texto final da lei (Lei de Diretrizes e Bases, de 1961), alargavam mas não democratizavam a destinação do sistema escolar brasileiro. Matizes da democratização Para estabelecermos elementos controversos e semelhantes da historiografia a respeito da democratização do ensino brasileiro, procuramos focalizar outros estudos que pudessem nos permitir, ao final dessa análise, estabelecer algumas considerações sobre o assunto. A escolha recai sobre os estudos de Celso Beiseigel, que centra sua análise no período correspondente ao processo de democratização educacional, detectado na “progressiva extensão das oportunidades de acesso à escola, em todos os níveis de ensino, para setores cada vez mais amplos da coletividade” (1986, p. 383). Enfatiza a existência de dois movimentos responsáveis pela “democratização”: 1) aumento de matrículas e 2) criação de um modelo único de escola no nível médio. O primeiro caso pode ser exemplificado pela Campanha de Educação de Adultos (ensino supletivo), MOBRAL e outros movimentos regionais, que foram responsáveis pela ampliação das oportunidades de ensino primário. Nesta perspectiva, também houve aumento de cursos de ensino médio e superior. Todavia, a oferta do número de vagas não acompanhou a expansão da procura de oportunidades para o ensino superior, acarretando à educação o aparecimento de um novo tipo de escola: uma instituição voltada à obtenção de lucros. Destarte, coexistiam dois tipos de escolas: 1) elitista, caracterizado por crescentes índices de competição em torno de poucas vagas disponíveis e 2) escolas para absorver toda a clientela que pudessem alcançar, exigindo dos candidatos somente habilitação de nível médio e pagamento das mensalidades. Apesar desta dualidade existente no nível superior, esta característica demonstra uma abertura de oportunidades. Celso Beiseigel (1986, p. 389) vale-se de dois exemplos para explicitar as modificações do sistema escolar brasileiro. No Estado de São Paulo, por volta de 1970, pode-se perceber que “as barreiras seletivas vêm sendo pouco a pouco empurradas para os degraus mais elevados da pirâmide escolar”. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 77 Neste sentido, após 1930, o sistema escolar, como um todo, avançou bastante na direção da democratização das oportunidades. No entanto, o autor faz referências a Fernando de Azevedo ao descrever a organização escolar durante a Primeira República. Azevedo enfoca a dualidade instituída pelo regime federativo (Ato Adicional de 1834): ao Governo Federal cabia a organização do ensino secundário e superior, além da preocupação centrada na formação de elites; aos Estados, uma educação popular e a instrução primária. Ao retomar algumas descrições acerca do ensino secundário, o autor remete-se continuamente às reformas federais e estaduais ocorrentes na Primeira República que “apesar de todas as tentativas feitas, não conseguiria dar uma duração uniforme e uma estrutura básica ao ensino secundário; isto viria a ocorrer, como uma das primeiras medidas da Revolução de 30, através da Lei Francisco Campos, e que levaria à expansão desse nível de ensino e ao início de sua articulação com as demais modalidades de grau médio” (Beiseigel, 1986, p. 390). Ao atentar para as transformações do ensino secundário, Beiseigel caracteriza detalhadamente a Reforma Francisco Campos. O documento dispunha sobre a organização dos setores secundário e comercial do nível médio, além de reformular as escolas secundárias em séries e currículos, subdivididos em dois ciclos, o fundamental, de cinco anos, e o complementar, com dois anos letivos. No aspecto legislativo, as reformas foram já previstas na Constituição de 1934 e 1937, principalmente por encarregar a União da fixação de bases e, sobretudo, determinar os quadros integrantes da educação brasileira, traçando assim as diretrizes do ensino. É importante destacar que somente em 1942 foram decretadas leis referentes ao ensino industrial, agrícola, secundário e comercial. Contudo, as alterações proeminentes só aconteceram com a Lei no 4024, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1961. Nas décadas de 40 e 50, a coexistência de dois sistemas de educação: 1) popular (primário e profissionais de nível médio) e 2) elitista (primário, secundário e superior). Ao destacar a expansão do ensino secundário, tornou-se necessário uma caracterização das condições que possibilitaram uma transformação do ensino médio e do sistema escolar brasileiro. 78 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 Outro ponto relevante da análise é a participação crescente da iniciativa privada ao nível secundário. Não obstante, a escola passou a representar a possibilidade de ascensão social, o meio de conquista de novas e melhores posições na sociedade em transformação. Entretanto, este estudo também abarca questões referentes à rede oficial, indicando um aumento de matrículas no ensino secundário após 1945. Tal fato, refletindo as aspirações populares, incentivava as ações políticas na corrida eleitoral. O outro exemplo foi o Estado do Paraíba que, apesar de não viver intensamente a urbanização e industrialização, também representou a idéia de ascensão social através da educação. Portanto, o sistema educacional apresentava-se “em consonância com a disseminação de um sistema estratificatório que começava a se desprender de seus traços estamentais e a adotar características mais próximas às de uma sociedade de classes” (Rodrigues apud Beiseigel, 1986, p. 396). Somente com a Lei no 5692 (11/08/1971), as modificações da educação encontrariam sua maior expressão (criação de ginásio, obrigatoriedade do ensino comum com duração de oito anos etc). Ao contextualizar o período e traçar interligações com a estrutura educacional, pode-se concluir em sua organização formal, o sistema escolar avançou bastante na direção da democratização das oportunidades. Ranços e avanços do processo de democratização educacional Cabe também mencionar as limitações deste processo. Tais limitações podem ser apontadas no âmbito quantitativo (desenvolvimento não homogêneo, principalmente nas áreas rurais, e evasão escolar) e nas causas (inexistência de escolas, organização e funcionamento do ensino, elevados índices de reprovação, despreparo docente, deficiências materiais, curta duração, conteúdo, relações sociais). Neste interim, desenvolvem-se polaridades: 1) as boas escolas, com instalações adequadas, dotadas de materiais didáticos e quadro seletivo de funcionários, e 2) as escolas desprovidas de prédios e materiais didáticos. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 79 Outros fatores são determinantes externos para o fracasso escolar: privilégio e marginalização das populações urbanas, subnutrição, “carência cultural” e a necessidade de trabalho. A “carência cultural” é reforçada, conforme Luiz Antonio Cunha, pela existência de um choque cultural entre as condições sócio-econômicas e o conteúdo apresentado aos alunos de camadas citadinas inferiores. Deste modo, é possível concluir que “as escolas semelhantes, com idênticas condições materiais, humanas e organizatórias de funcionamento, apresentariam rendimento muito diverso, de acordo com as variações nas características sócio-culturais de suas clientelas” (Beiseigel, 1986, p. 406). Após estas inferências, Beiseigel aborda questões sobre a existência de níveis diferenciados de escolaridade, permitidos pela controvérsia entre rendas estaduais e escolaridade. Isto denota a preocupação com relação à educação das classes trabalhadoras. Educação & Cidadania: A hora é essa! Neste sentido, a atuação educacional pós-30 procura estender as possibilidades de escolarização à maioria dos cidadãos. Ao encontrar pontos limítrofes (organização do sistema escolar e condições sociais), o poder público procurou corrigir as distorções diagnosticadas. Esta atuação pode ser identificada através da “campanha de Educação de Adultos”, criação de classes de recuperação e soluções diretas e indiretas (merenda escolar) para os casos de evasão. Além disso, outra possibilidade foi encontrada na instalação de cursos noturnos. “Embora a extensão das oportunidades escolares e a transformação formal do sistema de ensino não tenham de fato produzido conseqüências mais significativas na situação de classe da grande maioria dos habitantes, ao integrarem o aparato ideológico dissimulador do real estariam na verdade consolidando a própria desigualdade que pretendiam combater”(Beiseigel, 1986, p. 410). Num tom otimista, Beiseigel afirma que é ponto comum os limites impostos por uma estrutura não igualitária às possibilidades de democratização. Estes limites, por conseguinte, são flexíveis e podem ser ampliados mediante a prática democratizadora. 80 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 Para finalizar, o autor explora a década de 60, sob o regime militar, mas que dinamizou o movimento estudantil e buscava a ampliação das “bases populares”. Desta forma, o governo consolidava suas políticas e seu poder através do apoio popular. Na contra-mão da história Dentre as propostas de democratização e desenvolvimento de um sistema que atingisse realmente as “bases populares”, estava o pernambucano Paulo Freire. Nascido em Recife, em 1921, sendo o Nordeste, além de cenário inicial de sua vida, uma amostra – com 15 milhões de analfabetos (IBGE, 1960), de um universo que apontava a crise do sistema educacional brasileiro, o que inspirou a elaboração de sua teoria. No II Congresso Nacional de Educação de Adultos, em 1958, no Rio de Janeiro, Paulo Freire apresentou o relatório “A Educação de Adultos e as Populações Marginais: O Problema dos Mocambos”, firmando-se como um educador progressista ao apresentar uma filosofia renovadora. “Que a educação de adultos das Zonas dos Mocambos existentes em Pernambuco se fundamente na consciência da realidade da cotidianidade vivida pelos alfabetizandos para jamais reduzir-se num simples conhecer de letras, palavras e frases” (FREIRE, 1958, p. 12) Ainda constava no relatório que a alfabetização de adultos não poderia ser “sobre – verticalmente – ou para – assistencialista – o homem, mas com o homem, com os educandos e com a realidade”. O conhecimento popular e a referência local já eram valorizados por Paulo Freire. Até a condição da mulher foi citada quando diz que esta deveria “superar suas condições de miséria mudando a natureza de suas próprias práticas domésticas”. Suas primeiras experiências foram em Angicos, no estado do Rio Grande do Norte, em 1963, quando 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em 45 dias. A prática deu respaldo para a sistematização do método, cujo princípio é a valorização da realidade do educando no processo de ensino-aprendizagem. Em 1964, Paulo Freire foi exilado, através do golpe militar, devido à sua atuação na Campanha Nacional de Alfabetização, e, após setenta e cinco dias preso, foi para o Chile para orientar e coordenar o REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 81 processo de alfabetização dos trabalhadores que atuariam no processo de reforma agrária. A permanência no Chile foi fundamental para explicar a consolidação da sua obra, iniciada no Brasil, já que encontrou um espaço social e educativo dinâmico e uma mobilização política ativa, o que lhe permitiu reavaliar seu método e sistematizá-lo teoricamente1. Depois de um ano em Harvard, já na década de 70, Paulo Freire desenvolveu um trabalho de assessoria educacional na África, o que originou a obra, de sua autoria, Cartas à Guiné Bissau (1977). Enquanto a cultura africana ampliou e aprofundou a prática pedagógica de Freire, a filosofia marxista redimensionou o seu pensamento, principalmente a partir da obra de Gramsci, Kosik e Habermas, como citou Moacir Gadotti (1995, p. 43): “Os filósofos marxistas nutriram Paulo, especialmente Gramsci. Isso refletiu nos diálogos com educadores como Henri Giroux, Donaldo Macedo, Ira Shor e Peter MacLarn e Carlos Alberto Torres”. Freire voltou ao Brasil, em 1980, dedicando-se à Escola Pública Popular, um projeto que buscava a qualidade do ensino público e que pode ser em parte desenvolvido, através da sua atuação na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Sobre o livro A educação na cidade (1991), Moacir Gadotti diz que a obra retrata um Paulo que estava na luta concreta pela transformação de um sistema educacional burocrático e obsoleto, dentro do qual – declara Freire na dedicatória desse livro – “mudar é difícil, mas é possível e urgente”. Liberdade: a pedagogia proposta por Freire Mais que uma idéia de educação ou um simples conceito, Paulo Freire acreditava que educar, antes de tudo, era uma causa que “libertava” o homem das injustiças sociais através do saber. O aluno precisa ser provocado a descobrir seu potencial através do conhecimento de si e dos problemas sociais que o cercam. A pedagogia pregada por Freire não percebia a educação apenas como meio para dominar os padrões acadêmicos de escolarização. Era necessário engajar as pessoas no processo social e político, estimulando-as a participar ativamente da sociedade, através do 82 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 exercício consciente da cidadania. Dentro da concepção Progressista Libertadora 2, a Pedagogia de Freire conduzia a educação como um ato político. A valorização do saber popular, da identidade cultural e do contexto social de quem vai aprender é o princípio pedagógico para a construção do conhecimento. O método de Paulo Freire consiste em uma codificação inicial de algo que retrate o cotidiano vivido pelos alunos. A decodificação da palavra escrita, que segue a leitura da situação codificada, compreende algumas fases: • levantamento do universo vocabular dos grupos que serão alfabetizados; • escolha das palavras geradoras que representam uma situação concreta; • criação da “ficha de descoberta” (denominada assim por Paulo Freire); A partir das fichas, com a decomposição das famílias fonêmicas correspondentes aos vocábulos geradores, novas palavras serão construídas. Segundo Freire, seu método ultrapassa as normas metodológicas e lingüísticas, já que vai além delas quando propõe às pessoas não só a apropriação do código escrito, mas a possibilidade de decodificação do mundo. A aquisição mecânica da escrita e da leitura é uma solução imediata e superficial que responde às estatísticas e reduz índices de analfabetismo, mas não torna o indivíduo capaz de reduzir os problemas sócio-econômicos que o cerca nem permite que ele tenha noção global dos fatos. Não liberta! Comunicação e Educação: parceria necessária Educação de natureza política e educar para libertar não foram as únicas preocupações de Paulo Freire. A linguagem, a comunicação e os elementos comunicacionais formam um dos eixos fundamentais da sua proposta educativa, já que o processo de ensino e aprendizagem passa, antes de tudo, pelo ato comunicacional que precisa ser eficiente. Na atuação de um educador deve haver o uso de elementos da comunicação e, por isso, em sua formação deve estar inserida a cultura midiática e as novas tecnologias. Paulo Freire considerou que as competências de um professor são as da leitura e da escrita, além de saber enfrentar os fatos cotidianos através REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 83 da comunicação em suas diversas formas de expressão. É preciso que o educador se aproprie dos avanços tecnológicos como forma, não só de otimizar os resultados com os alunos, mas, principalmente, de ampliar as dimensões da inserção social através do letramento contemporâneo. A produção de conhecimento, de leitura e de escrita, onde o computador, por exemplo, é um elemento dinamizador, acontece no Programa Alfabetização Solidária, que integra a Comunidade Solidária desde 1997, através do “Alfabetização Digital”. O Projeto foi criado para qualificar a mão-de-obra local e promover o acesso à informática, como meio de conter a exclusão digital, nos municípios atendidos pelo PAS. É preciso avançar A alfabetização, entendida como aquisição das competências lingüísticas, parece insuficiente no mundo contemporâneo para estabelecer uma comunicação efetiva. Valorizando os recursos da época – chamados anos de chumbo por compreenderem o período de ditadura militar brasileira para avançar no processo de alfabetização/letramento, Freire inseriu elementos audiovisuais no desenvolvimento do seu trabalho a partir da valorização de ambientes interativos e, mais tarde, reforçou o uso do vídeo, da televisão e da informática, como afirma Moacir Gadotti em seu artigo A prática à altura do sonho (1998). O método de alfabetização de Freire, aprovado pela Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (1963), foi adotado pelo Movimento de Educação de Base (MEB) das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), lideradas por Frei Leonardo Boff, Frei Beto e outros adeptos da Teologia da Libertação, como adequado para alfabetizar através da Telescola – Educação à distância usando rádio e monitores. No âmbito religioso a valorização comunicacional foi ampliada de tal forma que a Igreja criou o termo Comunicação Social, utilizada pelas CEBs e mais tarde, já com perfil de comunicação de massa, pela Renovação Carismática Católica. Embora não haja uma proposta linear no pensamento de Paulo Freire a respeito da relação Educação e Comunicação, no livro Comunicação ou extensão ele discute a importância da ação comunicacional no ato de educar, como se o conteúdo para ser relevante e significativo não pudesse desprezar a forma. O meio se torna um veículo que 84 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 estende às pessoas o conhecimento, ou seja, a comunicação faz a educação acontecer. Porém, uma questão importante a ser relevada é que, da mesma forma que os meios de comunicação educam eles também alienam. Na década de 70, Paulo Freire chamou a atenção para o termo “fazer a cabeça” – modismo da linguagem da época, argumentando que quem “faz a cabeça do outro” nega este alguém para produzi-lo à sua maneira. É a manipulação. Por isso, deve haver uso criterioso dos meios comunicacionais, por conta do conteúdo exposto, mas não limitação dos veículos de comunicação. Considerações Finais No período militar, destacaram-se alguns métodos pedagógicos – a exemplo daquele desenvolvido pelo educador Paulo Freire –, que respondiam às expectativas dos grupos dirigentes, no Governo da União, e aos objetivos fixados para o movimento estudantil na área da educação. O método Paulo Freire apontava alguns itens relevantes à educação: crítica às condições de vida, sob uma coordenação de debates; incentivo a reflexão e investigação dos modos de organização da sociedade brasileira. No entanto, as tentativas de democratização da educação no Brasil foram barradas com o golpe de 1964. Isto explica-se pelo fato de que, “ao tentarem atuar sobre as matrizes estruturais das desigualdades que procuravam combater, os movimentos de educação popular empreendidos no âmbito do Estado ‘populista’, talvez estivessem finalmente ultrapassando os limites possíveis do processo de democratização do ensino e da sociedade, na ordem social capitalista” (Beiseigel, 1986, p. 416). Apesar de sonhado e postulado por todas as tendências acima enfocadas, o processo de democratização do ensino e, conseqüentemente, de democratização institucional, ainda é um problema contemporâneo, um caminho que se começa a percorrer, sem, no entanto, vislumbrar-se o seu fim. Entrementes, em pleno século XXI, podemos ver a realização de um sonho, de um planejamento de longa duração iniciar as primeiras colheitas da aplicação e desenvolvimento de parcerias que integram instituições de ensino superior e comunidades sem letramento. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 85 Afinal, os problemas relacionados à alfabetização não devem ser entendidos e analisados de forma isolada e segmentada, mas sim como um elemento integrante das políticas e das diretrizes de desenvolvimento sustentável. “Inevitavelmente, eles se inserem em um contexto social, cujo conjunto de indicadores apresenta sérias deficiências. No Brasil, são resultado de um histórico de desigualdades bastante conhecido. Na educação, esse entrave só será resolvido com a garantia irrestrita de acesso à escola na idade adequada e de permanência nas salas de aula. Se essa frente avançar, provocará forte e positivo impacto sobre outros problemas sociais das comunidades focadas”. (Esteves, 2000). As primeiras letras se tornam mais do que símbolos gráficos soltos, transformando-se em possibilidades, em potencialidades de realização dos próprios sujeitos históricos que se apropriam de sua práxis e de sua história. O século XX foi um tempo de lutas políticas e jurídicas para assegurar a educação aberta no Brasil. Já o século XXI abre-se com as ações de uma Década da Alfabetização, onde ler e escrever são mais do que experiências são, sobretudo, formas de multiplicar cidadãos e fazer menção aos protagonistas sociais até então excluídos: aqueles que somente utilizavam a linguagem oral como referência. Neste sentido, retomamos Moacir Gadotti, como consideração final. Não obstante, homens e mulheres adultos, assim como as crianças, ao serem alfabetizados, ampliam horizontes e constroem sua própria liberdade: “A dúvida é pois um ato de liberdade e de responsabilidade pelo qual um homem empunha, retoma a situação na qual vive, colocando-se como sujeito dela. Um ato, não uma ação entre outras” (Gadotti, 1991, p. 17) Notas * Especialista em Psicopedagogia pelo Centro Educacional de Pós-Graduação Olga Mettig. Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Bahia e em Relações Públicas pela Universidade Salvador. Coordenadora dos Programas Alfabetização Solidária e Universidade Solidária dentro da 86 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... - p. 71-87 Universidade Salvador (UNIFACS). Assessora da Coordenação de Assuntos Comunitários da Universidade Salvador. ** Doutoranda em História pela Universidad de Leon, Espanha. Mestre em História pela PUC/SP. Professora de Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Salvador e da Faculdade de Tecnologia Empresarial. Integrante do Núcleo de Estudos Sociais da Cidade (CORDIS/UNIFACS) e membro da ANPUH (Associação Nacional de Pesquisadores de História). Coordenadora de Assuntos Comunitários da Universidade Salvador. 1 Sobre o exílio de Paulo Freire e o desenvolvimento da pedagogia quando esteve no Chile, ver ZABALETA, Marta. Contextualizando la utopia de Paulo Freire. Revista Gestão & Planejamento, Salvador, ano 3, nº 4, jul/dez de 2001, p.9-32. 2 Progressista Libertadora: tendência pedagógica, defendida por Paulo Freire, que vê a educação como forma de conscientização das pessoas do meio em que vivem, visando a transformação social. www.propostascurriculares.hpg.ig.com.br Referências Bibliográficas BEISEIGEL, Celso de Rui. Educação e Sociedade no Brasil após 1930. In: FAUSTO, Boris (Org). História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, volume IV. São Paulo, Difel, 1986, p. 381-416. ESTEVES, Regina. Três questões sobre o analfabetismo. Folha de São Paulo, 19/3/2000, c. Mais. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. São Paulo: Paz e Terra, 1992. GADOTTI, Moacir. Educação de Jovens e Adultos: teoria, prática e proposta. São Paulo: Cortez, 1995. GADOTTI, Moacir. Por uma filosofia crítica da educação. Educação e Poder. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1991. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, Livro I. São Paulo: Difel, 1975. OLIVEIRA, Francisco de. A emergência do modo de produção de mercadorias: Uma interpretação teórica da economia da República Velha no Brasil. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo III, Livro I. São Paulo: Difel, 1975. RODRIGUES, Cláudio J. O magistério secundário estadual da Paraíba. São Paulo: USP, 1976 (Mestrado). XAVIER, Maria Elizabete. Capitalismo e Escola no Brasil: A constituição do liberalismo em ideologia educacional e as reformas de ensino (1931-1961). Campinas, Papirus, 1990. ZABALETA, Marta. Contextualizando la utopia de Paulo Freire. Revista Gestão & Planejamento, Salvador, ano 3, nº 4, jul/dez de 2001, p. 9-32. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 História e alfabetização no século XX: leituras a partir do sonho... – p. 71-87 | 87 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática pedagógica sem propostas prontas Lucileyde Feitosa Sousa1 1. Indo além das concepções tradicionais de alfabetização As concepções tradicionais de alfabetização, pautadas em parâmetros mecanicistas que focalizam a expressão escrita como mera representação da fala ou como código, que apenas instrumentaliza, serviram por muitos anos de pressupostos para a alfabetização. Essas concepções tradicionais acabaram por silenciar os sujeitos, já que utilizavam, como recurso para chegar ao processo de aquisição da escrita e da leitura, apenas a memorização mecânica, priorizando os inúmeros exercícios de cópias e de reprodução, muitas vezes dissociados da realidade vivencial do alfabetizando. Ao contrário do exposto acima, a concepção de linguagem que norteou a análise do presente estudo advém de um enfoque sociointeracionista, pois concebe a linguagem como uma atividade constitutiva, cujo lócus de realização é a interação verbal entre sujeitos sociais e históricos. Nessa concepção, o que o indivíduo faz, ao usar a língua, não é tãosomente exteriorizar os seus pensamentos, mas sim realizar ações, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). A linguagem é, nessa concepção, lugar de interação humana: as várias vozes se entrecruzam em um contexto sócio-histórico e ideológico. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... – p. 89-96 | 89 Nesse sentido, a língua não é vista como um sistema fechado, pronto e acabado de que o sujeito pode se apropriar, ao contrário, ao interagir com os outros, os sujeitos sociais reconstroem a linguagem. Buscou-se, ao longo da análise, as contribuições de Bakhtin e de Paulo Freire, já que esses teóricos nos trazem uma concepção de homem como Ser histórico e social, um novo enfoque sobre linguagem e alfabetização e, ainda, as contribuições de Carvalho2 Bakhtin (apud Freitas, 1994) toma, em seus trabalhos, a linguagem viva, múltipla, histórica feita pelos sujeitos: “O sujeito como tal não pode ser percebido nem estudado como coisa, posto que sendo sujeito não pode, se quiser continuar sê-lo permanecer sem voz, portanto, seu conhecimento, só pode ter um caráter dialógico”. (p.117) Bakhtin trouxe a noção de dialogismo, mostrando que o eu e o outro estão intimamente ligados, tendo como elemento articulador a própria linguagem, isto é, a linguagem é o centro de suas investigações. Em sala de aula, no discurso dos alunos, percebe-se as várias vozes, mesmo que elas estejam distantes. Essas mesmas vozes ecoam no momento da fala. Nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz. As contribuições de Bakhtin possibilitam refletir sobre o sujeito que está sendo alfabetizado, considerando que a linguagem atravessa o indivíduo provocando um processo dialético, uma forma de interação e, por isso, é preciso levar em consideração as linguagens, histórias e experiências de mundo dos alunos em processo de escolarização. Vale ressaltar e reafirmar o modo como Paulo Freire(1982) concebe a alfabetização de adultos: “A alfabetização de adultos é um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador. Para mim seria impossível engajar-me em um trabalho de memorização mecânica dos “ba, be , bi, bo ,bu”, e dos “lá, lé, li, lo, lu”. Não poderia reduzir a alfabetização ao ensino puro da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias’ dos alfabetizandos. Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador o processo de alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito”. A alfabetização, como ato criador e político, envolve a interação entre os educandos, educadores e o mundo e, principalmente, 90 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... - p. 89-96 a descoberta e o exercício dos seus direitos como cidadãos vivendo em uma sociedade letrada. Paulo Freire faz referência ao método mecânico que anula a capacidade criadora do alfabetizando e ressalta a importância do diálogo, do aluno ser sujeito de sua própria história e, dessa forma, estabelecer relações com outros alunos. 1. Escolha do tema A escolha do tema está relacionada ao contato estabelecido com os alfabetizadores de Juruá e Careiro da Várzea – AM através do Programa Alfabetização Solidária, desde 1997. Optou-se em fazer uma análise sincrônica do trabalho desenvolvido ao longo das nove etapas do curso de Capacitação de Alfabetizadores. Por isso, o enfoque maior será dado a uma das atividades desenvolvidas no último treinamento, ocorrido em janeiro de 2000, na cidade de Porto Velho, Estado de Rondônia. No último treinamento, uma das atividades propostas se voltou para a reflexão sobre o texto da “receita”.3 Através desse texto, procurou-se debater e tecer reflexões sobre “o como” se dá o processo de alfabetização “com e sem propostas prontas” e, a partir disso, foram propostos aos alfabetizadores o desafio de construírem as suas “propostas prontas”, se é que existem verdadeiramente, propostas prontas para se alfabetizar alguém. Entretanto, observa-se que esta opção pela chamada proposta pronta está mudando e sem dúvida começa pelo repensar a prática pedagógica: para que alfabetizar? Como alfabetizar? Quando? Por quê? A proposta pronta silencia a voz do alfabetizando porque concebe o sujeito no vazio, sem voz e Paulo Freire já dizia que não há sujeito no vazio: o sujeito precisa falar, ser ouvido e interagir socialmente. Sem dúvida, cabe à escola e ao alfabetizador espaços de interação em sala para que o alfabetizando tenha a oportunidade de dizer a sua “palavramundo” e, dessa forma, exercer a sua cidadania. 2. Conhecendo municípios Juruá – o município de Juruá está localizado à margem direita do rio Juruá. Antigamente Juruá era um pequeno seringal, conhecido como “Caitaú’ e pertencia a um seringalista cearense chamado Raimundo REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... – p. 89-96 | 91 Rocha. Devido o crescimento da comunidade, Caitaú despertou grandes cobiças aos migrantes que por ali passavam. Certo dia, o Sr. Raimundo Rocha decidiu vender suas terras ao Estado do Amazonas e, no dia 19 de dezembro de 1955, Caitaú passou a ser chamada Juruá, por ser o primeiro município às margens do rio Juruá. Careiro da Várzea – o município de Careiro da Várzea localiza-se à margem esquerda do rio Solimões. Sua população é formada, em sua maioria, por descendentes de nordestinos. O município sofre bastante na época das enchentes. O município recebeu esse nome por causa da presença dos índios que habitavam essa área. Careiro significa “caminho dos índios”. Sua população sobrevive não só da pesca, mas também da criação bovina. 3. Conhecendo os alfabetizadores Os alfabetizadores são oriundos das áreas ribeirinhas da Amazônia e aceitaram o desafio de participar do Programa Alfabetização Solidária – PAS, tendo como objetivo alfabetizar, durante cinco meses, em suas comunidades, jovens e adultos que não tiveram acesso ao processo de escolarização. O curso de capacitação em alfabetização de adultos tem como objetivo oferecer elementos teórico-práticos a partir de uma visão sociointeracionista, repensando a questão da alfabetização de adultos, de modo que haja uma contextualização da realidade amazônica bem como de todo o país. Os professores saem dos seus municípios com destino a Porto Velho para participarem do curso na Universidade Federal de Rondônia, em Porto Velho. O curso de capacitação promoveu além da troca de experiência, o repensar da prática pedagógica, da experiência em leitura e produção textual, conforme se constata nas falas de alguns alfabetizadores: Depoimento 1 “Participei da capacitação, com o objetivo de conseguir vários ensinamentos para eles (alunos). Farei com que eles aprendam muitas coisas dos seus interesses. Eu vou assumir a responsabilidade de ser uma boa educadora e, sobretudo, amiga deles...sinto-me feliz por poder realizar esse trabalho dentro de minha própria comunidade, no município de Careiro da Várzea”. 92 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... - p. 89-96 Depoimento 2 “Creio que a alfabetização é uma das fases mais importantes da vida do ser humano. É o momento de aprender a ler e a escrever, pois enquanto isso não acontece a pessoa sente-se como estivesse ‘cega’. A partir do momento que se aprende a ler e a escrever é como se abrissem as ‘janelas’ para um novo horizonte. Novos caminhos se abrem, tudo se torna mais fácil”. 4. Analisando a prática dos alfabetizadores por meio de suas falas Depois de apresentadas as receitas, foi proposto aos 24 alfabetizadores, participantes do curso de capacitação, o desafio de criarem as suas próprias propostas para trabalhar na alfabetização, sendo selecionadas, aleatoriamente, quatro propostas: Proposta 1: “A melhor maneira para alfabetizar jovens e adultos é através das histórias infantis, que eles mesmos poderão criar junto com os colegas da escola ou com jornais velhos, revistas para poder entender o mundo ao seu redor e para ele se sentir mais à vontade. Faça ele ficar à vontade na sua sala de aula. Faça o possível para que seja uma maneira bem prática para facilitar a sua leitura”. O alfabetizador lançou mão de alfabetizar a partir das histórias infantis que eles poderão criar, juntamente com outros colegas, considerando a chamada escrita social que corresponde aos textos, tais como: jornais, revistas, embalagens que fazem parte do cotidiano dos alunos em processo de alfabetização. O contato com a chamada escrita social permitirá ao alfabetizando, segundo o alfabetizador ,“entender o mundo ao seu redor”, criando as histórias infantis a partir dessas alternativas sugeridas pelo alfabetizador. Proposta 2: “Repita a receita quando for necessário, pois cada educando tem um ritmo próprio e este precisa ser respeitado para que ele se sinta feliz para poder adquirir novas coisas para o seu dia a dia e trabalhar com perseverança em seus conhecimentos”. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... – p. 89-96 | 93 O alfabetizador parte do princípio de que cada alfabetizando tem um ritmo próprio e que é preciso respeitar esse ritmo. É importante essa afirmação porque nos leva a constatar que os alunos são heterogêneos, possuidores de linguagens, culturas diferenciadas. Cada aluno apresenta uma história diferenciada de vida que precisa ser levada em consideração quando se pretende alfabetizar adultos, além de serem experiências significativas na coletividade. Proposta 3: “Em primeiro lugar, saber o que o adulto já conhece e usar isso vai ser o ponto de partida para a sua alfabetização. Ela sempre tem que saber a realidade de seus alunos e assim ficará mais fácil de trabalhar com a escrita e a realidade do aluno no sentido de poder ajudar no seu dia a dia e no mundo do qual ele vive. Isso ficará muito mais fácil se o professor usa material prático para que a pessoa não fique sem motivação”. A alfabetizadora priorizou o saber de mundo do alfabetizando, isto é, a chamada “palavramundo”, tendo como ponto de partida para alfabetizar o conhecimento de mundo do aluno. Proposta 4: “Pegue o adulto com carinho, enrole no coração, salpique um pouco de doçura mexa com uma colher de atenção leve ao fogo do incentivo e jamais deixe apagar a chama dos seus alunos de conseguir alcançar seus sonhos. Apresente livros que possam despertar o interesse e manter o ambiente nem um pouco cansativo nem para o professor nem para o aluno e que ele ganhe muito com isso e pronto”. A proposta do alfabetizador é extremamente poética, sendo que os ingredientes estão recheados de: carinho, coração, doçura, incentivo, atenção, sonhos, interesse etc. Todos esses ingredientes contribuirão no processo de alfabetização, pois o alfabetizador assume o papel de incentivador e mediador do conhecimento, ou seja, educador e educando interagem constantemente, construindo o conhecimento de modo coletivo. 94 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... - p. 89-96 É importante buscar as experiências individuais porque cada sujeito é singular. Não há como trabalhar com uma proposta fechada na alfabetização. É necessário construir ambientes alfabetizadores, na própria sala de aula, como sugere o alfabetizador acima. O encontro com o outro permitirá ao alfabetizando construir-se como leitor, escritor e exercer a sua cidadania. 5. Conclusão Pode-se chegar a algumas considerações, a partir das chamadas “propostas” escritas pelos alfabetizadores do Amazonas: o alfabetizador concebe o processo de alfabetização como compreensão da realidade, processo este criativo, onde a aprendizagem da leitura e da escrita possibilitará ao educando compreender o universo que o cerca, de maneira crítica e militante. A concepção de linguagem que permeia a prática desses profissionais contempla a concepção defendida no início do presente trabalho: linguagem é interlocução. A linguagem é vista como processo de interlocução, isto é, as várias vozes se entrecruzam em um contexto sócio-histórico e ideológico. Dessa forma, o diálogo em sentido amplo é que caracteriza a linguagem e as atividades propostas pelos alfabetizadores. Percebe-se que não existe uma “proposta pronta” para se alfabetizar alguém, ou melhor, cada alfabetizador cria e enriquece a sua própria prática com ingredientes que sejam saboreados por todos os alfabetizandos, de modo coletivo e dinâmico. Esses ingredientes precisam levar em consideração: a cultura, as histórias, experiências, as diferentes linguagens; valorizar o saber que o aluno produz fora da escola e, principalmente, o professor-alfabetizador deve manter, segundo Silva (1998) o compromisso político de ser um militante da mudança. Um dos aspectos que tornou a capacitação interessante foi o fato de os alfabetizadores compartilharem as suas experiências de leitura, análise e produção de textos, que indicou uma criticidade do grupo participante. Como se observou, as propostas construídas durante o curso foram diferenciadas: alguns colocaram fortes doses de criatividade, de lirismo, de compromisso político etc. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... – p. 89-96 | 95 Verifica-se que as chamadas, “propostas prontas” não condizem com a realidade do educando. Na prática, tal e qual se concebe, não há como trabalhar com propostas fechadas, método pronto, pois é preciso construir a nossa própria proposta através do dialogismo defendido por Bakhtin, partindo dos textos, experiências e linguagens dos alfabetizandos. Notas 1 Coordenadora Geral do Programa Alfabetização Solidária, pesquisadora no Projeto Beradão e Mestranda do Programa Institucional em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Endereço eletrônico: [email protected] 2 CARVALHO, Marlene. “Alfabetização sem receita e receita de alfabetização”. Belo Horizonte, Centro de aperfeiçoamento de profissionais da educação, 1996. 3 CARVALHO, Marlene. “Alfabetização sem receita e receita de alfabetização”. Belo Horizonte, Centro de aperfeiçoamento de profissionais da educação. Referências Bibliográficas CARVALHO, M. “Alfabetização sem receita e receita de alfabetização”. In: Carpe diem. Belo Horizonte, Centro de aperfeiçoamento de profissionais da educação, 1996. FREIRE, P. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam, São Paulo, Editora Autores Associados e Cortez Editora, 1982. FREITAS, M.T. O pensamento de Vygotsky e Bakhtin no Brasil. São Paulo, Campinas, Papirus, 1994. KRAMER, S. Por entre pedras: arma e sonho na escola. São Paulo, Ática, 1994. SILVA, E. T. Criticidade e leitura: ensaios, Campinas, Mercado de Letras: Associação de Leitura no Brasil, 1998. 96 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 O alfabetizador ribeirinho da Amazônia e a construção de uma prática... - p. 89-96 RESUMOS O alfabetizador em matemática – Aprendendo a conhecer e a fazer o conhecimento matemático Profª. Solange Maria Gomes dos Santos Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá – Paraná Um dos grandes desafios da Alfabetização Matemática é mostrar uma nova forma de representar os números e as relações numéricas através de situações do cotidiano do alfabetizando, oportunizando a ampliação de seus conhecimentos e a construção do seu saber lógico-matemático, e, trabalhada a partir de eixos temáticos possibilita a ele, um resgate de sua historicidade e um contato no contexto político, social e cultural no qual está inserido. Nesta concepção, durante a capacitação dos alfabetizadores no Projeto Alfabetização Solidária em nossa Instituição, trabalhou-se a integração dos eixos temáticos “Nosso Corpo” e “Medidas do Corpo”, com uma oficina chamada “Beleza Áurea”, que consiste em avaliar as proporções de medidas do corpo humano dentro de uma tabela matemática. Tem-se por objetivos: evidenciar a importância do corpo humano e sua relação com a aprendizagem matemática; explorar e aplicar as relações métricas de forma mais criativa e o fortalecimento do conceito de auto-estima e de auto-imagem como referenciais de identidade social. A metodologia usada foi do grupo espalhado pela sala onde cada participante recebe uma folha de papel onde há uma figura humana, de corpo inteiro, demarcada com pontos de medição e uma tabela matemática. Formam-se então subgrupos. Cada pessoa mede o seu colega de grupo, anota na folha e faz os cálculos matemáticos, aplicando conhecimentos básicos do uso da calculadora. Em seguida, recolhem-se estas folhas e os acadêmicos, com uma planilha de cálculos, verificam as pessoas que estão mais próximas das proporções de Beleza Áurea. No encerramento da atividade são eleitos o Mister e a Miss Beleza Áurea entre os alfabetizadores. Com este trabalho, estamos mobilizando o alfabetizador para perceber-se, permitindo a reflexão e a exREVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 97 pressão dos sentimentos referentes à sua auto-estima e auto-imagem através da Educação Matemática. Este trabalho foi sendo comentado pelos grupos e hoje há uma disputa “criativa” de títulos entre as cidades participantes do Programa Alfabetização Solidária. É a Matemática presente em todas as situações do cotidiano de nossas vidas! Palavras-chave: alfabetização, ensino de matemática, cidadania, auto-estima. FAFIPAR Caixa Postal 117 – CEP: 83203-280 – Paranaguá-PR Tel.: (41) 423-3644 E-mail: [email protected] 98 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 A Fundação EDUCAR na Paraíba: histórias e memórias Maria Roberto de Lima Centro de Educação, Universidade Federal da Paraíba Este estudo objetivou reconstruir e analisar a história institucional das ações da Fundação EDUCAR, no Estado da Paraíba, enquanto organização administrativa e pedagógica. Privilegiamos pesquisar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) em especial na Paraíba, no período de 1985-1990, enquanto política educacional do governo da Nova República. Quanto à metodologia, optamos por uma pesquisa de natureza histórica e descritiva, que teve como foco um “estudo de caso de organizações numa perspectiva histórica”. Para atingirmos as intenções do estudo, nos pautamos pela abordagem qualitativa, com base em documentos escritos (oficiais e não oficiais) e na oralidade dos sujeitos sociais vinculados à Fundação EDUCAR/PB. Os instrumentos utilizados na pesquisa foram entrevistas e questionários. Com base nos resultados, constatamos que este trabalho contribuirá para preencher a lacuna existente na história da Educação de Jovens e Adultos na Paraíba, naquele período, e que servirá como contribuição à outras pesquisas. Concluímos que a atuação da Fundação EDUCAR, na Paraíba, foi semelhante em alguns pontos à atuação do MOBRAL – apesar da abertura política pós-golpe militar - realizando um efetivo trabalho educativo. Palavras-chave: História, educação de jovens e adultos, Fundação EDUCAR. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 99 Contribuições de um projeto de arte e educação na alfabetização de jovens e adultos do Programa Alfabetização Solidária Carminda André Universidade Estadual Paulista Kathya Maria Godoy Universidade Estadual Paulista A Universidade Estadual Paulista por meio do Instituto de Artes desenvolveu, implantou e acompanhou o projeto pedagógico “Arte e Educação na Alfabetização”, nos anos 1999, 2000 e 2001. Esse projeto teve por objetivo formar e capacitar arte-educadores-alfabetizadores para a atuação no Projeto Piloto Grandes Centros Urbanos Alfabetização Solidária. Como desdobramento dessa ação, foi necessária a criação de uma metodologia de trabalho que possibilitasse a alfabetização de jovens e adultos por meio da relação entre arte e educação. Este artigo procura ilustrar momentos dessa prática arte-educativa por meio de exemplos vivenciados durante o projeto. Utilizamos como subsídios o conceito de mimesis na prática de jogos lúdicos. A estratégia do uso de jogos educativos no processo de alfabetização possibilitou a integração entre o conhecer, o fazer e o refletir por meio da arte. E ainda fez com que os arte-educadores-alfabetizadores atuassem como mediadores no processo educativo, tornando-se criadores e apreciadores da obra e do artista. Os resultados mostraram que um projeto com essas características é viável, possibilitando por um lado, que os arte-educadores-alfabetizadores 100 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 tivessem novas perspectivas de atuação pedagógica e por outro, a conquista da alfabetização de jovens e adultos por meio de ações arte-educativas. Assim, o alcance desse projeto foi além de uma ação educativa, permitiu uma intervenção sociocultural na periferia da cidade de São Paulo. Nesse sentido, podemos afirmar que projetos desta natureza são importantes para a construção de uma sociedade igualitária. Palavras-chave: projetos, arte e educação, alfabetização. E-mail: [email protected] REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 101 Primeiras experiências de leitura e escrita: práticas culturais Profa. Imara Pizzato Quadros Faculdade de Educação da UNIC- Universidade de Cuiabá- MT Este trabalho é um desdobramento da minha Dissertação de Mestrado em Educação intitulada: “Educação e Cultura: a Arte no Programa Alfabetização Solidária, Lábrea-AM e UNIC-MT”. Utilizando os conceitos antropológicos de cultura, diversidade, etnocentrismo, relativismo e multiculturalismo (crítico), discute-se a cultura como um solo fértil, em que a Educação e a Arte se enraízam, para mostrar que as práticas culturais locais fornecem um rico suporte ao processo de alfabetização de jovens e adultos. Tendo como objetivo valorizar a linguagem artística como primeira e enriquecedora possibilidade de leitura e escrita, a partir da contribuição freiriana, dos temas geradores, busca-se co-relacionar educação e cultura partindo do modo como os alunos- alfabetizadores vêem, sentem, pensam e constroem significados de mundo, de ser do mundo, de ser no mundo com os outros, entendendo que através da possibilidade de melhor se conhecer e se re- conhecer (a si, aos outros iguais, e aos outros diferentes) é que se amplia os saberes e o sentido de ser – estar no mundo. Conhecendo outras formas, que não a nossa, de viver e dar sentido à vida é que compreendemos o pluralismo como princípio da diversidade cultural e do direito à diferença. Palavras-chave: educação, cultura, arte e alfabetização. 102 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 Uma experiência em Moçambique Eneida Maria Abreu de Souza. Universidade do Estado da Bahia – UNEB Em 21 anos de serviços prestados à Universidade do Estado da Bahia – UNEB, conheci programas variados relacionados à educação de jovens e adultos. Um deles, no entanto, me estimulou a participar com muita determinação: Programa Alfabetização Solidária. Após dois anos de atuação no âmbito nacional, passei a integrar a Equipe Internacional. Em outubro de 2002 fui a Moçambique, país localizado na África Austral, onde durante 22 dias realizei atividades de Supervisão e Acompanhamento do Programa na 2ª visita da II fase nas províncias de Maputo e Manica. Porém, mais do que dar,ganhei uma nova visão sobre a realidade cultural e sócio-econômica do país. Lá percebi o quanto PAS tem sido importante na reconstrução de um país onde a carência do saber e a política de educação de jovens e adultos são necessidades prementes. O desenvolvimento das ações do PAS naquele país vem contribuindo na consolidação de uma sociedade mais justa, humana e solidária. Os resultados positivos, registrados nos relatórios, apontam o sucesso do Programa naquele país, porém o contato direto com aquelas pessoas, nos impulsiona a fazer muito mais na esperança de contribuir efetivamente com o resgate da cidadania de um povo cansado de sofrer. Palavras-chave: solidariedade, relações humanas, educação de adultos. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 103 Uma metodologia dialógica e pró-ativa para alfabetização de jovens e adultos Profa. Deuzimar Serra Araújo Universidade Estadual do Maranhão – UEMA Centro de Estudos Superiores de Caxias – CESC Instituto Pedagógico Latino Americano & Caribeño – IPLAC Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada nas turmas de alfabetização de iniciativa governamental e não governamental no município de CaxiasMA e nas turmas de alfabetização do Programa Alfabetização Solidária nos municípios coordenados pelo Campus Caxias e defendido na dissertação de mestrado. Apresenta uma alternativa metodológica que possa melhorar a qualidade do ensino e corresponder as expectativas e anseios dos alunos, na tentativa de superar as formas memorísticas e mecânicas de ensinar e aprender. Na alfabetização trabalhamos a partir das bases teóricas mencionadas nesta pesquisa, uma proposta de cunho pedagógico e metodológico, alicerçada no processo dialético da prática docente educativa, oportunizando aos alfabetizadores a mudança de concepção de alfabetização e da sua prática pedagógica, tendo em vista a formação do educando enquanto construtor e reconstrutor do seu conhecimento, tornando-se leitor crítico do seu mundo e da sua palavra. A partir da disseminação da metodologia com os alfabetizadores, na ocasião da capacitação e no processo de desenvolvimento das atividades do programa, propiciar aos jovens e adultos das turmas de alfabetização do Programa Alfabetização Solidária aquisição da leitura e da escrita, através de atividades diversificadas articuladas com a realidade, buscando autoconhecimento de se e do seu mundo e conseqüentemente tornar-se sujeito interatuante e pró-ativo do seu contexto.Com base na concepção progressista de educação e em correspondência com os desafios do novo milênio, tornase imperiosa a educação continuada do homem, atrelada aos valores éticos e 104 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 humanos em que o aprender a conhecer, a fazer, a ser e a viver juntos sejam incorporados no processo docente educativo. Neste contexto a metodologia dialógica e proativa centra-se nas bases epistemológicas das teorias de Paulo Freire e Vygotsky que privilegiam no processo ensino aprendizagem o contexto histórico cultural do educando, onde a partir dos conhecimentos prévios possam simultaneamente adquirir a consciência crítica de se e do seu mundo, sendo capaz de interrelacionar o saber sistematizado com a leitura holística de mundo, intervindo de forma eficaz e dinâmica na sociedade. Nesta perspectiva, os termos Dialógica e Pró-ativa são utilizados dentro de uma visão pedagógica interventora e preventiva, objetivando a formação do homem autêntico, ético e humano. A Metodologia Dialógica e Proativa aborda orientações pedagógicas respaldadas na realidade educacional de jovens e adultos e apresenta temáticas que contemplam a linguagem e o cotidiano dos alunos, tendo como eixo norteador o diálogo processado através das etapas ver, julgar, agir, avaliar e prever, utilizando textos diversificados, dando ênfase a música contextualizada à realidade social dos Jovens e adultos. Sustenta-se pois, nos estudos da Andragogia e letramento que conjugados contemplam a visão diagnóstica e prognóstica da educação continuada dos jovens e adultos. OBS. Este trabalho foi tema da Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação pelo Convênio UEMA/IPLAC. Palavras-chave: alfabetização, metodologia, Paulo Freire, Vigotsky. •Apresentado ao Tribunal de Defesa – em 28/11/1999. E-mail: [email protected] REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 105 A EJA nas comunidades indígenas: desabafos e possibilidades Antonio Jorge Paraense da Paixão Raimunda Benedita Cristina Caldas Tabita Fernandes da Silva Universidade do Estado do Pará - UEPA Este trabalho propõe-se a chamar atenção dos envolvidos em educação de jovens e adultos para a importância da criação de um programa de alfabetização desta natureza em Educação Indígena. Para isso são apresentadas razões fundamentais que justificam a criação deste programa e as condições exigidas para que um programa deste porte tenha sucesso. Em seguida, é apresentada a proposta propriamente dita que prima por corresponder às necessidades específicas dos índios no tocante à alfabetização, considerando as peculiaridades culturais de cada comunidade indígena, bem como a faixa etária, evitando assim que o índio continue à margem de mais um direito seu enquanto cidadão brasileiro. Como não se pode pensar em alfabetizar alunos índios sem que se interfira na língua destes, propomos a associação de projetos de revitalização da Língua Indígena, como o já em curso na UEPA - Revitalização da Língua Ka’apór -, como pré-requisito para a alfabetização de índios jovens e adultos. A proposta orienta-se sobretudo pelos pensamentos de Paulo Freire que concebe toda e qualquer forma de alfabetização como ação criadora a que os alfabetizandos comparecem como sujeitos, capazes de conhecer e não como resultados da ação exclusiva do docente. Palavras-chave: revitalização, educação indígena, alfabetização. E-mail: [email protected] 106 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 O encontro de secretários municipais e coordenadores municipais – sua repercussão na melhoria do PAS nos municípios como formadores de ações para integralização, sociabilidade de cidadania Afife Salim Sarquis Fazzano Para o segundo semestre de 2002, foi previsto um mini-congresso, por ocasião da Capacitação de Professores Alfabetizadores, quando então estavam reunidos os professores e os Secretários Municipais dos três municípios parceiros sendo Ingá/PB, Carnaubais/RN e Caiçara do Norte/RN, professores da UNOESTE/SP e os Secretários da Prefeitura Municipal do Município de Presidente Prudente/SP, ligados à área de Programas Sociais, Educação Popular e ao PAS, para realização de palestras e mesas-redondas. Este encontro teve como objetivo estudar as realidades locais e aprimorar o processo de educação de jovens e adultos na região dos municípios parceiros. Deste encontro resultou ações mais concretas por parte dos secretários de educação dos municípios parceiros, ampliação de sua atuação no PAS em seu município; troca de experiências entre os componentes dos quatro municípios reunidos, capacitação de melhor qualidade para os coordenadores municipais e dos monitores pedagógicos do PAS. Palavras-chave: capacitação de professores, encontro de secretários municipais. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 107 A sociabilidade nas famílias do nordeste brasileiro Afife Salim Sarquis Fazzano1 O presente artigo traz conceitos sobre a família e a caracteriza enquanto instituição social, com o objetivo maior de trabalhar a sociabilidade em famílias do nordeste brasileiro. Tem, como amostragem para estudo, as famílias de baixa renda dos municípios de Caiçara do Norte/RN, Carnaubais/RN e Ingá/PB. A partir da vivência da autora em cidades dessa região, em sua participação no Programa Alfabetização Solidária (PAS), com a apreensão empírica da vida cotidiana dos sujeitos, por meio de entrevistas e observações, foi possível um estudo sobre essa realidade. A conclusão da pesquisa nos mostra as semelhanças e características próprias existente entre e em cada região pesquisada. Palavras-chave: Sociabilidade, família, Programa Alfabetização Solidária. 1 Doutoranda do Programa de Pós em Sociologia pela UNESP, Campus de Araraquara/ SP; Mestre em Educação pela UNOESTE de Presidente Prudente/SP; professora do Departamento de Educação da UNOESTE. Coordenadora Geral do Programa Alfabetização Solidária pela UNOESTE. 108 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 Formação continuada na educação de pessoas jovens, adultas e idosas: uma experiência no Estado da Bahia Lorita Maria de Oliveira1 Maria Helena Weschenfelder2 José Jackson Reis dos Santos3 O presente texto é resultado de um processo de formação continuada desenvolvido no contexto de três municípios baianos com os quais a Universidade de Passo Fundo atua, desde o ano de 1998. Objetiva-se com essa produção explicitar, analisar e compreender o processo de formação continuada realizado no interior dos grupos de estudos destinados aos educadores e educadoras da Educação de Pessoas Jovens, Adultas e Idosas (Epjai). Para analisar e compreender o processo de formação, utiliza-se, além da experiência no contexto dos municípios, de fragmentos de histórias de vida dos próprios sujeitos envolvidos no trabalho político-pedagógico. Como enfoque metodológico de análise, aponta-se a perspectiva dialético-hermenêutica, na tentativa de compreender e interpretar as falas e os registros dos sujeitos, partícipes ativos no trabalho de formação continuada. Os resultados alcançados permitem afirmar que os fragmentos de histórias de vida, a definição de coletivos permanentes de estudos e a memória como partes da metodologia da formação são indispensáveis ao desenvolvimento e vivência da práxis pedagógica. Podese dizer, portanto, que a metodologia da formação, denominada, metodologia da práxis, assegura um processo de ressignificação, de qualificação permanente dos profissionais, possibilitando, dessa maneira, a constituição dos sujeitos como educadores críticos, investigativos, reflexivos, pesquisadores. Palavras-chave: formação continuada, metodologia da práxis, fragmentos de história de vida. REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 | 109 1 Coordenadora Pedagógica do Programa Alfabetização Solidária, na Universidade de Passo Fundo/RS. Mestra em Educação. 2 Gestora Administrativa do Programa Alfabetização Solidária, na Universidade de Passo Fundo/RS. Mestranda em Educação (UPF/RS). 3 Ex-Coordenador do Programa Alfabetização Solidária em Tucano, no período de 1998 a junho de 2001. Mestrando em Educação (UPF/RS). 110 | REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Resumos – p. 97-110 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO As seguintes normas devem ser observadas no envio de artigos: • Máximo de 20 laudas. • Artigo em disquete e uma cópia impressa, com identificação, endereço e telefone para contato. • Digitação em Word, fonte Times New Roman 12. • Configuração da página: margens superior e inferior 3,0; esquerda e direita: 2,5 cm. • Título centralizado, nome do autor à direita, com indicação da instituição a que pertence (no caso da cópia com identificação do autor). • Endereço para correspondência (eletrônico ou tradicional). • As citações no corpo do texto devem ser feitas com o sobrenome do autor, ano de publicação e página entre parêntes. Ex: (Boff, 1998, p. 6). • A bibliografia completa deve constar do final. Sobrenome, nome, título em negrito, nome do(a) tradutor(a), quando for o caso, cidade, editora e ano de publicação. Ex.: BOFF, Leonardo. O despertar da águia. Petrópolis: Vozes, 1998. • As notas de rodapé devem ser utilizadas apenas para acrescentar informações, não para citações. • Os artigos devem ser enviados para a Unimarco Editora a/c Luiz Paulo Rouanet – Av. Nazaré, 900 – CEP 04262-100 – São Paulo – SP. Dúvidas e informações através dos telefones (11) 3471-5700 r. 5778, fax: (11) 6163-7345 e e-mail: [email protected] REVISTA DA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA – VOL. 3 Nº 3 Normas para publicação – p. 111 | 111