Alma de Pássaro-Margarida Rebelo Pinto

Transcrição

Alma de Pássaro-Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto
Alma de pássaro
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(c) 2001, Margarida Rebelo Pinto e Oficina do Livro - Sociedade Editorial,
Lda.
Título: Alma de pássaro
Autor: Margarida Rebelo Pinto
Revisão: Henrique Tavares e Castro
Composição: Oficina do Livro em caracteres Aldine 401, corpo 11
Capa: João Figueiredo
Fotografia: Augusto Brázio
Impressão e acabamento: Guide, Artes Gráficas, Lda. (Portugal)
2' edição: Janeiro, 2002 - 5000 exemplares
ISBN 972-8579-55-1
Depósito Legal n.° 181698/02
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A migrating bird uses up quantities of energy equivalent to a large proportion of
its body weight. It fies over vast areas of ocean, desert and other hostile environments in
which it cannot pause to rest and will cer tainly not find any food. It may be blown off
course by winds, thrown out of the air by storms and pursued by predators. That many
migrating birds die en route to their destinations is a certain fact, though not one that
can be backed up with precise numbers. Migrating birds generally return to the same
areas to breed, so we can work out that as few as half of them may return from one
breeding season to the next. However, it is not known how many of these die on
migration and how many die in their winter quarters, for the simple reason that we only
have a vague idea about where most of them go.
So why do they do it? The short answer is that they migrate because it profits
them to do so. In the autumn, migrating birds escape the cold and the food shortages
that follow in winter's wake by fleeing to the abundance of the tropics. The spring sees
them returning to take advantage of longer days and wider spaces, in which they can
more easily raise their families. Sometimes a bird returning to breed in an area for the
second or third time will nest in exactly the same place as before. More frequently,
however, birds will upgrade to one of the more desirable residences left empty by
neighbours who failed to return. Very occasionally, a bird will return to breed with a
previous partner. But after a bird has travelled across the world and back again, its
circumstances will usually have changed sufficiently that it will find itself in a new
territory, with a new partner. Before setting off to do it all again.
Mark Wilson, PhD em Bird Ecology University de Sheffield, England.
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Ao meu filho Lourenço.
À Mafalda, Geninha, Clarinha, Vera e Margarida, sem as quais a vida seria
infinitamente mais difícil.
À minha querida mãe.
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“É melhor olhar para o céu do que lá viver.”
Truman Capote,
Breakfast at Tiffany's
“Que difícil que é a vida dos homens, pensou ela. Eles não têm asas para voar por
cima das coisas más.”
Sophia de Mello Breyner Andresen,
A Fada Oriana
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Estou exausta. Completamente exausta. Quando o despertador toca, abro
os olhos e levanto a cabeça que parece pesar mais do que o corpo todo. Carrego
imediatamente no botão e o silêncio regressa ao quarto. Devo ter acordado pelo
menos quatro vezes durante a noite. Duas antes do Miguel chegar, mais uma
quando o ouvi entrar e ainda outra, perto das seis. Levanto-me a custo sem
acender a luz, tentando não acordar o Miguel que dorme do lado direito da
cama de barriga para baixo e a cara encostada à almofada. Apetece-me passarlhe os dedos pelo cabelo ondulado, mas em vez disso. puxo as raízes junto às
minhas têmporas, imaginando por um segundo como ficariam os meus olhos se
os rasgasse numa plástica, enquanto massajo o couro cabeludo com a ponta dos
dedos em movimentos circulares e me dirijo para o quarto da Carolina que
ainda está a dormir. A luz entra de chofre pelas janelas da sala e da cozinha
ainda sem cortinas e percorre o hall de entrada. Abro ligeiramente as persianas
do quarto cor-de-rosa e arrumo mecanicamente os bonecos que estão
encostados à parede junto aos pés da cama.
Sento-me e começo a fazer-lhe festas até ela acordar. Saboreio o toque doce
da sua pele, a seda dos seus cabelos louros em desalinho. Faz um esgar e vira a
cabeça para o outro lado. Final mente acorda, estende-me os braços e levanta-se,
reclamando leite com chocolate e pão com doce. As pernas finas e pequenas
ginasticam-se até à cozinha onde lhe preparo o pequeno-almoço.
Vivo sozinha há três anos, desde que o Pedro saiu de casa. Um dia
acordou, virou-se para mim e disse:
- Vou viver com a Sandra. Estou apaixonado por ela. Nem queria
acreditar. A Sandra era a professora de Tae Kwon Do. Ele andava no Tae Kwon
Do há um ano. De vez em quando, falava-me dela, mas nunca liguei. Ou então
não quis ligar. As mulheres treinam o mecanismo da negação com excessiva
facilidade, como um vício mesquinho que se adquire quase sem se dar por isso.
Devia ter percebido que alguma coisa estava mal depois da Carolina ter
nascido, mas estava demasiado absorvida pela miúda e pelo lançamento da
editora. É que no fundo tive duas filhas ao mesmo tempo, andava exausta. Mas
não tanto como agora. Sento-me na mesa de ripas amarelas, que deve ser de
jardim, mas que eu achei que ficava bem na cozinha.
A Carolina bebe por um copo com pozinhos brilhantes que rodopiam à
volta do Winnie the Pooh e do seu amigo Tiger e lambuza o pão com doce que
cai no pijama cor-de-rosa onde bonecos com antenas na cabeça pulam com os
braços erguidos. Olha para mim aflita e passa o dedo pela nódoa.
- Desculpe, mãe.
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Respondo-lhe que não faz mal, que sei que não fez de propósito, e ela
continua a comer e a chuchar o leite pela tampa do copo.
- Mãe.... - Sim, filha. - O Miguel está a dormir? - Sim, querida.
- Posso ir lá dar-lhe um beijinho? - Não, querida.
A cara contorce-se numa expressão de tristeza.
- Oh... porquê?
- Dás logo à noite, está bem? - E ele está cá, logo à noite? Começo a
impacientar-me.
- Não sei, querida, logo se vê.
Dá mais uma dentada, calculo que seja a penúltima.
- Mãe...
- Sim, filha.
- Por que é que o Miguel não vive cá em casa?
- Porque tem a casa dele.
- Mas a Sandra vive com o pai...
- Não, querida, o pai é que vive com a Sandra.
Fica a olhar para mim de boca aberta, e vejo-lhe os neurónios a mil à hora
dentro do cérebro, a darem as pernas e os braços uns aos outros.
- Vá, despacha-te, que já estamos atrasadas.
Estamos sempre atrasadas. Regressamos ao quarto onde a visto em menos
de um minuto e lhe calço uns ténis cor-de-rosa, pavorosos, que ela exibe com
orgulho no colégio por causa da palavra mágica que têm bordada: Barbie. Por
fim, penteio-a, e ela deixa-se levar, dócil como uma boneca. Pede-me para pôr
aquele travessão que tem uma flor azul e que não encontro em lado nenhum;
por isso, convenço-a a segurar o cabelo com outro, é muito mais giro, com o
Tweety, é de crescida, estás a ver, e ponho o par no meu cabelo para provar que
tenho razão.
- A mãe é mesmo maluca.
Maluca estava eu quando engravidei do Pedro, ele que nunca falou em
filhos e sempre disse que não tinha estofo para ser pai. Estofo é para os bancos
dos carros, respondi-lhe, quando ele começou com a conversa do costume,
mesmo depois de lhe ter dito que estava grávida e que não ia, de certeza, fazer
um aborto. Não tive a culpa. Qual é a probabilidade de ter duas ovulações num
mês? Eu estava habituada a fazer as contas e conhecia os sintomas dos dias de
perigo, mas não tenho nenhum alarme que liga e faz barulho se faço uma
ovulação a seguir à outra.
- É raro, mas, às vezes, acontece - disse o médico, batendo com a caneta
ritmicamente em cima da ficha - a menina está na idade, foi o seu relógio
biológico.
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Puta que pariu o relógio biológico. E o tipo todo contente. Porque é que os
obstetras gostam tanto de ver as doentes grávidas? Deve ser uma tara como
outra qualquer.
O Pedro ainda reclamou, mas com 28 anos já não podia dizer que ainda
era muito novo e que eu lhe estava a estragar a vida. Coitado do Pedro, se
gostasse mesmo dele nunca lhe tinha feito uma maldade destas. Andávamos há
seis meses, eu fazia trinta daí a uma semana e vivia obcecada com bebés. Agora,
vivo obcecada com os fins-de-semana em que a Carolina vai para o pai e posso
dormir até à uma da tarde, levar o pequeno-almoço à cama e ficar a namorar a
tarde inteira com o Miguel, como dois adolescentes. Falta-me sono. Sono e
tempo. Os bens mais escassos da minha vida.
Entramos no carro e desfio a habitual corrente de recomendações: põe o
cinto, não abras a janela, juízo na escola, venho-te buscar às seis. O caminho é
um pára-arranca infernal e demoro vinte minutos a percorrer menos de sete
quilómetros, como se fosse a primeira prova de um longo dia de trabalho e de
chatices. Despedimo-nos com vários beijos e abraços e deixo a minha princesa
entre vinte crianças e uma educadora com um ar absorto e doce.
Quando chego à editora, o Nuno já lá está. Gel no cabelo, óculos de aros
finos, aquele ar de menino bem comportado que lhe dá imenso charme. Com 42
anos, ainda parece um miúdo. E é. A um canto, um blusão preto de cabedal
dormita em cima de um capacete também preto, e o ar está impregnado de um
perfume qualquer da moda.
- Bom dia, estás bem? - pergunta, sem levantar os olhos do écran do
computador onde uma tabela cheia de números o absorve.
- Cansada, muito cansada.
Desvia os olhos, arqueia as sobrancelhas e observa-me longamente.
- Mas sempre bonita.
- Isso é porque pus base - foi no elevador, em menos de vinte segundos,
estou a ficar boa nisto.
- Não. Isso é porque és mesmo bonita.
Abre a gaveta e retira de lá um embrulho comprido e fino. - Toma.
Comprei-te isto ontem.
Abro o presente. É um coça-costas de madeira, daqueles que se vendem
nas feiras.
- É para usares quando o Miguel estiver cansado.
- O Miguel nunca está cansado. Por isso é que ando com ele. Toma.
Humor com humor se paga.
- Ligas demasiado ao sexo.
Observo-lhe o polo, as calças de marca, o telemóvel topo de gama com
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ligação wap e não sei que merdas mais em cima da secretária ao lado de uma
caneta de colecção.
- E tu demasiado às aparências. - Bem, vamos trabalhar?
- Onde é que está a Paula?
- Foi ao correio. Já volta.
Tocam à campainha. O Nuno regressa às tabelas, fingindo não ouvir.
- Vais tu, ou vou eu?
Levanta-se, disfarçando o ar de seca.
- Porque é que os homens são todos preguiçosos? - Não é para tudo,
minha linda, não é para tudo.
O Victor entra na sala com os sapatos cambados, a fralda da camisa fora
das calças. O duche não faz parte do seu dia-a-dia. - Bom dia, rapaziada.
- Bom dia, génio - responde o Nuno.
- Minha editora preferida - diz o Victor, olhando-me com cara de cão
vadio e fazendo uma vénia.
- Pois, pois, queres é conversa.
O Victor é o nosso melhor autor e a nossa maior dor de cabeça. E a prova
de que não é preciso estar na moda nem aparecer todas as semanas nas revistas
para se ter sucesso. Veio para a editora porque estava farto dos “gajos
merceeiros”, como ele costuma dizer. Trazia dois sucessos editoriais
estrondosos e nenhuma motivação para continuar a escrever. O sucesso cansa,
diz. Apetece-me responder-lhe que a falta de sucesso cansa muito mais, porque
é uma dor cega e inútil, mas nunca lhe respondo a sério. Aqui é tratado nas
palminhas, embora às vezes tenha que ir à farmácia comprar ampolas de
paciência para o aturar. Artistas.
- Conversa também quero, mas se vocês tivessem um minuto...
- Embora lá, pá! - responde o Nuno, já a caminho da sala de reuniões,
enquanto pousa o braço à volta do ombro do Victor. Parecem o David e o
Golias.
- Precisam de mim?
- Claro! Sem ti, não somos ninguém.
- Guarda o charme para a tua mulher, malandro.
O Victor quer dinheiro. Segundo o contrato, recebe de seis em seis meses o
resultado do apuramento dos direitos de autor e o último foi há dois meses.
- O que é que fizeste aos mil contos que te demos em Fevereiro?
- Mas agora és minha mãe, ou quê? - Perguntar não ofende.
O Victor coça o nariz, inspira profundamente para depois se desfazer num
suspiro próprio de quem está habituado a vitimizar-se.
- Se vocês não quiserem...
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- Não tem a ver com querer, tem a ver com poder. E nós, agora, não
podemos. Deixa ver como é que chegamos ao fim do mês.
- É que, sem dinheiro, não posso acabar o Céu Cinzento. - Porque é que
não fazes umas colaborações para a imprensa, ou dás aulas como toda a gente?
- Porque não me apetece.
É nestes momentos que me imagino transformada numa ampola. O Victor
volta a coçar o nariz, arrependido por me ter respondido torto, mas não
desarmo, mantenho a cara fechada e cruzo o olhar com o Nuno que ajeita os
óculos na cara.
- Bem, liga daqui a uma semana, vamos ver o que podemos fazer. Mas, vê
lá se adiantas o Céu Cinzento, ouviste? Olha que isto não é um banco. Coração
de manteiga. Este rapaz nunca mais aprende.
- Mas tu és pai dele?
O Nuno tira os óculos, observa as manchas de dedadas e limpa-as à fralda
do polo, antes de responder.
- Não, mas tem que se tratar bem os autores. Sobretudo se já foram
maltratados por outras editoras.
- O Victor não foi maltratado. Foi roubado.
- Por isso mesmo.
- Já agora, podias dar-lhe banho. Ou, então, oferecer-lhe um after shave.
- Só se fosse Old Spice. É mesmo o género dele.
- Sim, já o estou ver a fazer surf na Fonte da Telha.
Eu é que estou com uma telha do tamanho do mundo que se dilui no ar
quando o Miguel me telefona com a voz mais meiga do mundo a dar-me os
bons dias, como se não me tivesse enchido de beijos, mesmo antes de sair.
Ainda estava meio a dormir, mas suficientemente acordado para me retribuir
uns tantos. Se não fosse o Miguel, não sei o que seria a minha vida. Já nem me
lembro como era antes dele aparecer, há um ano, no princípio do Verão, com os
projectos de remodelação do meu apartamento, recomendado pelo Frederico,
que estava sem tempo para me ajudar.
- Vais gostar dele. É um tipo sensacional.
E era. O amor é sempre assim: não se procura, encontra-se. E eu encontreio no Miguel, quando lhe abri a porta e o vi a entrar de passo decidido e sorriso
aberto, atrapalhado com os rolos das plantas, muito articulado, a explicar que o
Frederico já lhe tinha passado o projecto e que tinha tido esta e aquela ideia
para alterar mais isto e aquilo. Desenrolou a papelada toda, plantas e mais
plantas e em menos de um minuto percebi que não precisava de mudar a minha
casa, precisava era de mudar de vida. Uma semana depois, entre conversas
telefónicas de três quartos de hora, mails para cá e para lá, e menos de meia
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dúzia de almoços, capitulei. Na altura pensei, isto é um miúdo à procura de
uma gaja para mandar umas trancadas, mas senti-me demasiado vulnerável
para lhe resistir e além disso ele já me tinha dado a volta.
Nunca fiz as obras. Tudo o que antes me parecia absolutamente
fundamental e inadiável ficou reduzido a nada. Mudei as portas dos armários
da cozinha e dei a remodelação por encerrada. O Miguel não ganhou um
cliente, mas arranjou uma namorada e eu voltei a sentir que estar viva afinal até
pode ser uma coisa bestial. Habituei-me depressa a ele, aos rolos espalhados
pela casa, aos silêncios e às noitadas no atelier, às t-shirts emblemáticas, quase
sempre filhas de uma viagem, quase sempre com uma história para contar,
quase sempre com o mesmo aviso final um dia destes vou-me outra vez
embora, já sabes como sou
Eu sei, mas não me interessa. Nunca me interessou o que e que o Miguel ia
fazer no dia seguinte, muito menos daí a uns meses. Habituei-me a tê-lo ao meu
lado, sem lhe exigir mais do que a sua presença e o amor que tem para me dar.
Habituei-me sobretudo a não esperar nada e a receber tudo o que me dá como
uma dádiva, uma espécie de bónus, o prémio inesperado que deixa o bom
funcionário surpreendido.
Às vezes, quando a respiração da Carolina se transforma em tosse e me
levanto e vou ao quarto dela só para ver se está tudo bem, olho para o Miguel a
dormir ao meu lado, e lembro-me de que não é meu, que pode partir de um dia
para o outro, como fez o Pedro. Mas quando acordo e no dia seguinte ele ainda
lá está, penso que cada dia a mais já é uma eternidade. E os dias sucedem-se
numa paz harmoniosa e tão doce que vai apagando a memória das discussões
com o Pedro, das discussões entre o meu pai e a minha mãe, à noite, quando
pensavam que já estava a dormir. E às vezes estava mesmo, mas as vozes
alteradas acordavam-me de repente, sentia a cabeça a latejar como se tivesse
apanhado demasiado sol e não resistia: caminhava em silêncio pelo corredor às
escuras, e ficava a ver as sombras que se agitavam como monstros na parede, à
medida que o tom das vozes subia. Depois, a minha mãe iniciava o inevitável
ciclo do choro compulsivo e descontrolado que punha o meu pai ainda mais
exaltado.
- Mas por que raio é que foste engravidar?
Deve ter sido aí que comecei a odiar-me por ter nascido, por ser mulher,
por tudo. O Miguel está, sem saber, a apagar os fantasmas e, quando vejo
sombras na parede, já não oiço o choro da minha mãe. O Miguel está a fazer-me
bem e só por isso, já merecia o mundo.
Mas às vezes cansa-me o seu alheamento do mundo, o espírito idealista
que confunde um extracto de conta com uma aplicação financeira, o
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desconhecimento total das coisas mais básicas da vida.
- Não se pode ter tudo - costumava dizer a minha mãe. Deve ter sido com
ela que aprendi demasiado cedo o mecanismo da negação. Quando o meu pai
viajava por causa do banco e ficava fora durante o fim-de-semana e ela fingia
que não percebia. Ou quando, à quarta-feira, nunca vinha jantar. Ou quando o
Marcelo começou a fechar-se no quarto com os amigos, quando percebia que o
meu pai ia estar fora durante o fim-de-semana. Às vezes, dava com ela sentada
na mesa da cozinha, com o olhar fixo de quem partiu para muito longe e os
olhos inchados. Poucas vezes a vi chorar, mas acabava por ser pior, porque só
com os anos aprendi a decifrar os subtis sinais de dor e tristeza que se lhe
denunciavam nos traços que o tempo se encarregou de marcar. Quando
pressentia a minha presença, era como se voltasse à terra: os ombros
estremeciam-lhe ligeiramente, sinal de regresso do espírito ao corpo, numa
tentativa de enfrentar outra vez a realidade. Deve ter sido nessa altura que
começou a ficar doente. Às vezes, queixava-se de dores no peito, mas, como ela
sempre disse que era aí que se escondia a caixinha da tristeza, nunca ligámos. O
meu pai continuava ausente e mesmo quando estava em casa, mal olhava para
ela. O Marcelo aventurava-se a medo pelos caminhos misteriosos da
homossexualidade e eu era demasiado pequena para perceber que a minha mãe
não era eterna.
IPO, nove da manhã. Vejo-a deitada, as veias dos braços salientes, o cabelo
desgrenhado. Uma camisa de noite às florinhas amarelas e os olhos fixos no
tubo da quimioterapia. Nem uma palavra, só os olhos aos gritos a dizerem
estou farta, estou farta. E eu ali sentada, impotente como um peixe, a roer-me
de raiva, a disfarçar a tristeza com pastilhas elásticas, revistas, ramos de túlipas
- sempre brancas - fotografias da Carolina recém-nascida, depois com três
meses, depois com seis. Os minutos contados para voltar à editora, para depois
regressar a seguir ao almoço e distraí-la mais um bocado. E depois para casa,
sem tempo nem cabeça para nada. Chegava exausta, vazia, sem um pingo de
energia. A Célia saía a correr, com umas trombas até ao chão, porque já estava
atrasada.
- A menina já tem dois dentes e a senhora nem reparou. Depois, batia com
a porta para que a marca do seu desagrado ecoasse no ar ainda durante algum
tempo, aborrecida com os meus atrasos, a minha apatia, a minha falta de
organização, ela que morava no Cacém e tinha que apanhar dois transportes
para vir trabalhar, com um filho da mesma idade da Carolina entregue a uma
ama, o Fábio Jorge - Fábio por causa de um actor de novela e Jorge porque era o
nome do inútil do marido que estava em casa há um ano a marinar de uma
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desintoxicação. Ela, a quem nunca ninguém passara uma peça de roupa, fritara
um bife ou levara a Londres.
- A menina já tem dois dentes e a senhora nem reparou. O Pedro a fazer as
malas para ir viver com a professora de Tae Kwon Do. A Carolina a brincar no
parque, roendo furiosamente rocas de borracha, rabugenta, com a fralda suja. A
minha mãe no IPO com veneno nas veias para matar outro veneno. E eu ali, a
assistir a tudo como se aquela vida não fosse minha. Tinha entrado por engano
na sala de cinema errada, não era a minha mãe que estava a morrer, não tinha
sido trocada por uma Sandra, a minha filha nunca fazia cocó, o meu pai afinal
tinha-se redimido, divorciava-se da Elsa e regressava, arrependido e disponível
para me ajudar a tratar da minha mãe.
Mas, não. Aquele era mesmo o meu filme e não podia recusar o papel
estúpido da heroína trágica - estúpido porque inútil e todas as coisas inúteis
acabam por ser invariavelmente estúpidas - do qual fazia parte chorar até
adormecer de tristeza pela minha mãe, de raiva pelo Pedro e de cansaço pela
Carolina que perdia a chucha de meia em meia hora.
O Pedro saiu quase sem se despedir, não conseguia olhar para a minha
cara. Fez um esgar desajeitado que queria dizer desculpa, levantou a Carolina
do parque, apertou-a contra o peito e segredou-lhe ao ouvido:
- O pai não vai fugir, querida, vai só mudar de casa e vem-te ver sempre
que puder.
Como se ela percebesse. Indiferente, voltou a sentar-se no parque e
regressou à tarefa absorvente de roer a roca de borracha.
Ele baixou os olhos para que o seu olhar não se cruzasse com o meu e saiu
sem dizer uma palavra. Na manhã seguinte a Célia chegou pontualmente às
nove e perguntou-me se estava doente.
- A senhora está com a cara inchada que parece um bolo.
Saí depressa, sem responder, meti-me no carro e respirei fundo. Tinha dez
minutos para me pôr na Baixa. Era o dia da escritura da constituição da
sociedade com o Nuno.
Quando cheguei ao notário, o Nuno fitou-me, admirado.
- O que é que se passa?
- O Pedro saiu de casa.
- O quê?
- Arranjou outra e pôs-se a andar.
- Assim, sem mais nem menos?
- Assim, sem mais nem menos.
Abanou a cabeça, num gesto de solidariedade.
- Que filho da puta. São todos iguais.
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- Calma lá, que eu não sou desses!
Pois não. O Nuno não era desses. Era pior.
Maternidade Alfredo da Costa, oito da noite. Estou deitada numa cama
desde as dez da manhã. Sinto-me tão cansada que me doem as pálpebras. Estou
em trabalho de parto há dez horas. E o bebé, nada. Já fiz a dilatação de cinco
dedos, mas algo me diz que esta miúda me vai dar um trabalhão a nascer. Já
telefonei ao médico, mas, como é domingo, tem o telemóvel desligado. Só
espero que não tenha ido para fora de Lisboa. Quando cheguei, ligaram-me um
fio, e desde manhã que oiço o coração dela a bater, tum tum, tum tum, tum
tum. Estou sozinha. A minha mãe começou ontem a quimioterapia. O Pedro
está lá fora, diz que não era capaz de entrar, que era melhor assim. Melhor para
ele, com certeza. A Ana está em Espanha com o Frederico e o meu pai está-se
cagando. O Marcelo deve estar a dormir, saiu do IPO ontem de rastos quando
viu a minha mãe entubada.
Tenho frio. Enfermeiros e médicos passam por mim como se fosse
invisível. Há mais cinco parturientes à espera, nas camas ao lado. Cheira a
hospital e a sangue. Estagiários passam de um lado para o outro. As
enfermeiras são velhas, gordas e atarracadas e carregam nos olhos o cansaço de
muitas falhas. A pouco e pouco, o medo vai-me inundando o corpo e a alma.
Quero que ela nasça depressa, quero livrar-me disto e tê-la nos braços. Carolina.
Soube sempre que era uma rapariga. No dia em que fui à farmácia buscar o
resultado do teste de gravidez, vi-lhe a cara, os olhos, as mãos. Toda a gente se
riu e duvidou da minha clarividência, como se ser mãe não fosse isto mesmo,
saber dos nossos filhos mesmo antes deles saberem quem são. Não te
entusiasmes, nunca se sabe o - que pode acontecer, dizia a Ana, cautelosa como
sempre. Em quatro meses, já tinha tido dois desmanchos, ela e o Frederico
ficaram inconsoláveis. Mas tive mais sorte. O meu bebé queria mesmo crescer
dentro da barriga, só que agora não lhe apetece nascer. Para me acalmar,
começo a cantar em surdina uma música da Marisa Monte. Isso acalma-me e
acalma-a. Faço sempre isto, quando uma ou outra ficamos nervosas e
geralmente resulta.
Bem que se quis / depois de tudo ainda ser feliz / mas já não há caminho
pra voltar / e o que é que a vida fez de nossa vida / o que é que a gente não fez
por amor...
- Como é que se sente, minha linda?
O meu médico chegou, finalmente. Tem cara de bebé, cabelo encaracolado
e um sorriso que, de repente, me leva o medo todo.
- Feita num oito - respondo. - E ainda só fiz cinco dedos de dilatação.
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- Estou a ver - responde, já absorto em observações anatómicas. As mãos
dele sobem e pousam na minha barriga enorme, desmesurada, que me faz
sentir uma baleia com problemas de obesidade.
- Parece-me que o seu bebé não está encaixado, minha linda. Se isto
continuar assim, temos que fazer uma cesariana.
Nem respondo. Raio da miúda. Sem me dar tempo de lhe perguntar o que
é que vai acontecer a seguir, o médico vira costas com um lacónico já volto.
Também me ia embora, se pudesse sair daqui. O burburinho à minha volta estáme a deixar doida. Como é que estas pessoas são capazes de trabalhar numa
maternidade como se estivessem a passar códigos de barras num
supermercado? Parecem indiferentes a tudo, anestesiadas pelo sofrimento
alheio. Como no IPO, onde a minha mãe está.
- Como é que está a mãezinha?
É a Hilda, enfermeira-chefe, que deve ter sabido por uma colega que a
minha mãe foi internada.
- Assim, assim - respondo, sem vontade de continuar a conversa.
- Há tantos anos aqui a trabalhar e é logo internada quando a menina
precisava dela.
Isso mesmo, enfermeira Hilda. Ponha-me mais deprimida e triste do que já
estou. Trinta anos a aturar as dores das outras e sem poder estar ao meu lado
quando preciso tanto dela. Merda. Este não é o meu ano de sorte. O médico
regressa com ar triunfante.
- Já está.
- Já está o quê?
- Já chamei o anestesista. Vamos fazer-lhe uma epidural e tirar cá para fora
esse bebé teimoso que não quer sair.
Pronto, tenho mesmo que ir à faca.
- Não se assuste, que vai correr tudo bem - diz o médico que põe cá fora
criancinhas todos os dias com a mesma displicência com que vê o Benfica
sentado no sofá a beber uma cerveja.
Devolvo-lhe um sorriso entre o verde e o amarelo. Estou sozinha. O Pedro
lá fora, o Frederico e Ana em Espanha, a minha mãe entubada. Merda, merda,
merda. Este é o momento mais importante da minha vida e não tenho ninguém
com quem o partilhar. Os homens são mesmo uns maricas. O que é que custava
ao Pedro passar este mau bocado comigo?
- Vamos a isto - diz o médico, enquanto o anestesista me espeta uma
agulha no meio da espinha que me dói horrivelmente.
A pouco e pouco, a dor e o cansaço dissolvem-se numa dormência parda e
morna. A anestesia faz-me desaparecer do peito para baixo. Enfermeiras
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conduzem a maca para a sala de operações. Os tectos da maternidade estão um
nojo, não devem ser pintados há mais de quarenta anos, reparo enquanto me
lembro daquelas cenas típicas nos filmes em que os feridos viajam de maca,
com as caras debruçadas sobre eles.
A sala tem uma cor estranha e toda a gente se esconde atrás de umas batas
verde vomitado de cão. O médico inicia a operação depois de me terem tapado
a barriga com um lençol, não vá a minha curiosidade mórbida levar-me a olhar
para coisas que não quero ver. O tempo passa devagar, oiço cada segundo a
estoirar dentro da minha cabeça, como um sino puxado à corda por um
Quasimodo possesso. Não sei quanto tempo já passou, talvez meia hora,
quando, de repente, lhe oiço o choro perdido e inconsistente, um gemido doce
que sei que nunca mais vou esquecer. Levantam-na à altura dos meus olhos, e
vejo-lhe o corpo minúsculo, envolto em óleos celestiais, esbracejando
anarquicamente, os olhos fechados e a cabeça do tamanho de uma laranja. O
choro ganha consistência e pousam-na no meu peito por um instante. De
repente, tudo o que era grave, sério e importante, deixa de o ser. O meu mundo
mudou. Sou mãe. Sinto-me feita de mel. As lágrimas que me correm pelas
têmporas já não são salgadas, mas cheias de açúcar. Sou mãe. Sou mãe. Sou
mãe. E tenho uma filha linda.
- Que linda menina!
A candidata tinha olhos azuis e um ar limpinho, o cabelo liso apanhado
com um elástico de cor, e vestia umas calças pretas com uma camisa branca. O
Pedro olhou-a dos pés à cabeça, mas ela não se intimidou.
- Como é que se chama?
- Célia Lopes, sotôr.
- Que idade tem?
- Vinte e seis, sotôr.
- Tem filhos?
- Sim, um, o Fábio Jorge, que também é assim bebé como a menina dos
senhores.
Bem educada e limpinha. O Pedro e eu trocámos um olhar de
assentimento.
- Pode começar amanhã?
Vejo-a esfregar mentalmente as mãos de contente. - É quando os senhores
quiserem...
E foi assim que Célia entrou na nossa vida e ficou na minha, agora que o
Pedro se foi embora. Engoma mal, limpa pior e leva para casa cassetes de vídeo
sem me dizer que depois repõe com a infantilidade típica das pessoas pouco
inteligentes, mas finjo que não percebo, porque é impecável com a Carolina e a
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miúda adora-a.
São quase onze da manhã quando desligo o telefone. Gosto de me derreter
pelo fio a falar com o Miguel, faz-me lembrar quando era miúda e passava
horas a namorar ao telefone. Geralmente, o Nuno aproveita estes momentos
para ir arrumar pastas na sala de reuniões. Ainda não percebi se gosta ou não
do Miguel. Parece-me que do que ele não gosta é de me ver tão apaixonada.
Não me devia ter enrolado com ele quando me separei, foi uma estupidez
monumental, um passo em falso perfeitamente dispensável. Mas tínhamos uma
história antiga por resolver, desde a faculdade, e estas coisas têm que estoirar
por um lado qualquer, senão uma pessoa nunca mais se liberta delas. Se calhar,
também foi por isso que levei a ideia da editora para a frente com ele; no fundo
eu sempre lhe achara piada, nunca me passou pela cabeça que fosse
correspondida da mesma forma. E claro, assim que me separei, poucas semanas
depois, numa ida a Barcelona em trabalho, acabámos na cama um do outro. Foi
então que percebi que não sentia nada por ele. Nada vezes nada, a não ser uma
enorme atracção e uma grande amizade. E tudo voltou à normalidade, como se
nada tivesse acontecido.
- Ele é um miúdo, o que é que te pode dar?
Qualquer dia, ainda tens um desgosto - disse-me quando lhe contei que
me tinha apaixonado. Não sei exactamente o que é que o Nuno sente por mim.
E ele provavelmente também não. Os amigos não se julgam, aprendi isso há
muitos anos, mas não me esqueço do que ele fez à Ana, depois de ter tido
aquele episódio estúpido comigo. Se calhar, foi só para me chatear, ou será que
os homens não fazem essas coisas? Apesar de nunca termos falado no assunto,
acho que ele nunca encaixou o facto de eu não ter sentido nada por ele. É
engraçado porque, sem querer, fiz-lhe o que ele costuma fazer às mulheres; dei
umas voltas e depois fui à minha vida. Não é o meu género, mas quando se leva
com um pontapé no ego, só há duas coisas a fazer: cair ou reagir. Eu não podia
cair mais, a minha mãe tinha morrido, tinha que reagir, senão tinha a sensação
de que podia morrer também.
- Já desligaste? - o Nuno regressa à sala com pés de lã, sorriso malandro ao
canto da boca - tanto amor, tanto amor! Olha que já não tens idade para isso...
- Não, tenho idade para começar a fazer liftings e a procurar um tipo mais
velho cheio de massa para pôr a Carolina no colégio americano, não?
- Calma, não te chateies. Só acho que, com esse puto, não vais a lado
nenhum.
Também não quero ir a lado nenhum, idiota. O Miguel já me levou muito
mais longe do que deves ter levado alguma mulher, mas não lhe respondo. Em
vez disso, fuzilo-o com o olhar e mudo de assunto:
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- Já vieram as provas da revisora do livro da Mónica?
- Já, estão aqui. Queres dar uma vista de olhos?
A Mónica é a nossa próxima aposta. Escreve razoavelmente, com
vivacidade, é muito contemporânea e tem humor. Além disso, conhece mais ou
menos toda a gente, é gira, morena, com um ar exótico e moderno. Praticamente
todas as condições para vir a ser um sucesso editorial. Dá alguns erros de
português, mas é para isso que cá estamos e claro que em qualidade literária
não chega aos calcanhares do Victor, mas o sol, quando nasce, também não é
para todos.
- Ouve lá... - lá vem outra vez a conversa que não me interessa.
- O que foi? - respondo com voz enfadonha, sem levantar os olhos do
manuscrito.
- É que... bem, ontem fui dar uma volta e encontrei o Miguel...
Apetece-me levantar os olhos do papel, mas não lhe vou dar essa
confiança.
- Eu sei.
O Nuno fica calado. Deve estar a pensar se deve ou não continuar a
conversa. Por fim, lá se decide.
- Ah... então se já sabes... eu achei um bocado estranho, mas está bem.
Pronto. Vou levantar os olhos e acabar de vez com esta conversa.
- Ouve, Nuno, o Miguel faz o que lhe apetece, nunca me meti na vida dele
nem tenho feitio para isso, mas, se me queres dizer alguma coisa, fala de uma
vez ou então cala-te e não me faças perder tempo.
O Nuno tira os óculos e limpa as lentes na fralda do polo. Depois, colocaos no nariz.
- Não é nada. É que estava com uma miúda muito gira...
- Pois estava. Era a Mariana, amiga dele. Mais alguma coisa?
- Se tu achas normal que o teu namorado vá beber copos com uma amiga,
como tu dizes, então já não digo nada.
- O que eu não acho normal é que tu te metas na minha vida. Lá porque
cada vez que sais à noite com uma gaja e deixas a tua mulher em casa é para
ires para a cama com ela, não quer dizer que todos os gajos sejam como tu, pois
não? Ou andamos todos aqui a comer-nos uns aos outros, e só eu é que sou tão
estúpida que não dou por nada?
- Deixa lá. De facto, não tenho nada a ver com isso. Desculpa, não te volto
a falar do assunto.
- Acho bem - respondo de forma terminal, para que não restem dúvidas.
Estúpido. O que é que ele tem a ver com a minha vida ou a do Miguel?
Alma de porteira. O meu telemóvel toca. É a Teresa. Está com a voz apagada, de
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repente, pressinto o pior.
- Tens tempo para almoçar?
- Claro. O que é que aconteceu?
- O Vasco desapareceu outra vez.
Estou um bocado cansado. Não ouvi o despertador e, como é costume,
cheguei tarde ao atelier. Agora tenho que me despachar para ter as plantas da
pousada prontas até ao fim da tarde. Pelo menos os alçados laterais, senão o
Frederico chega e desata a fazer perguntas. Gosto do Frederico, é um tipo
inteligente, com bom fundo e uma cabeça arejada. Um tipo brilhante, sem a
mania que é bom. Trata toda a gente por tu e protege a equipa do atelier como
um chefe de matilha. É o chefe ideal: atento, esperto e motivador. Claro que vai
franzindo o sobrolho quando se cruza comigo à entrada, depois das onze, mas
como sabe que faço as noitadas que for preciso e nunca falho um prazo, dá-me
uma palmada nas costas e diz em tom protector:
- Tu fazes-te, puto, tu fazes-te.
Foi ele que me convenceu a entrar no concurso de arquitectura da câmara,
com o projecto do Centro Social do Bairro da Liberdade. Mostrei-lho há um ano,
na entrevista de candidatura para o atelier. Foi o meu trabalho de final de curso,
não estava nada mal e o Frederico não me poupou elogios.
- És bom, miúdo. O que é que vais fazer disto?
- Nada, vai para a gaveta.
- Está bem.
E nunca mais me lembrei do assunto. Há dois meses, chegou-se ao
estirador com um recorte na mão e disse:
- Acho que devias concorrer a isto.
Era um anúncio de um concurso de arquitectura, patrocinado pela Câmara
de Lisboa para jovens arquitectos para obras públicas, projectos inéditos. No
regulamento era obrigatório ter menos de 25 anos.
- Quando é que fazes anos?
- Em junho, dia 9.
- Então, ainda podes entrar. O prazo acaba a 30 de Maio. És o mais novo
aqui do atelier, devias concorrer - disse o Frederico. Ainda torci o nariz, não sou
dado a estas coisas, a preguiça não me puxa para me meter em coisas que não
sei no que é que vão dar, e além disso estou habituado a que tudo me venha
parar às mãos, por isso não achei bem, nem mal.
- Está bem, se achas que posso ganhar.
- Claro que podes. O projecto é muito bom e sempre são dois mil contos. E
se ganhasses, era mais um prémio para o atelier, estás a ver?
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Às vezes, gostava de ser como o Frederico, que vive para isto e para a Ana.
Mas não, ainda não larguei a minha costela de boémio e viajante. Hoje estou
aqui, amanhã posso estar do outro lado do mundo a apanhar bananas, se me
der na cabeça. Estou sempre a dizer isto à Inês, mas acho que ela não percebe.
Ou então finge que não percebe. As mulheres adoram fazer-se de parvas.
Três Jamesons já me põem bem, ontem não devia ter bebido quatro. Ainda
não são três da tarde, e já me está a dar o sono. Mas a Mariana estava com a
corda toda; quando cheguei a casa, passava das três, a Inês já dormia ferrada.
Mesmo assim, acordou com o barulho da chave, enrolou os braços à volta do
meu pescoço e perguntou, com voz de menina pequenina:
- Divertiu-se?
Tratamo-nos por você, num registo íntimo, para recordar os tempos em
que mal nos conhecíamos e, num dos vários almoços que passei a tentar engatála, me saiu um tu, sem querer não me trate por tu que eu não tenho a sua idade
Demorámos mais tempo a deixar de nos tratar por tu do que a dormir
juntos. Foi cómico estar com uma mulher na cama e tratá-la por você. Depois
habituámo-nos. As mulheres ligam imenso a estas coisas, e como eu quero é
que ela se sinta bem, habituei-me a tratá-la assim, com doçura. Antes de a
conhecer andava na vertigem da noite, comia gajas umas atrás das outras, não
havia nada nem ninguém que me interessasse. Quando entrei para o atelier,
acalmei um bocado, comecei a pensar que talvez fosse porreiro arranjar uma
namorada. A Mariana tinha-se enrolado comigo mas só pensava no exnamorado, que além de ser um cabrão também era casado, e voltou para ele ao
fim de uma semana. Não fiquei chateado, ela dava-me tusa, tinha umas boas
mamas, mas não era grande coisa na cama e eu não estava envolvido com ela,
por isso ficámos amigos e não se falou mais no assunto.
Quando o Frederico me passou o projecto da casa da Inês Ramos e me
disse que era a melhor amiga dele, não fazia ideia que a minha vida iria mudar
tão depressa. Liguei-lhe para o telemóvel, e atendeu-me uma voz de miúda,
fresca e despachada. Combinei ir lá a casa no fim da tarde, e lembro-me de que,
sem conhecer o bairro, dei com a rua à primeira, eu que sou um despistado
incurável. Abriu-me a porta uma mulher linda, quase da minha altura, vestida
de forma elegante e descontraída. Que boca, meu Deus! Fiquei logo fixado na
boca, direita e bem desenhada, mesmo antes de reparar nas curvas suaves e
alongadas, no cabelo a roçar os ombros, nas pernas altas e musculadas.
Desenrolei as plantas em cima da mesa da casa de jantar e foi então que
assomou à porta uma boneca articulada com caracóis na cabeça e uma cara de
anjo que disse: olá Miguel. A Inês desatou a rir e apresentou-me a Carolina,
que, dez minutos depois, já estava instalada ao meu colo, enquanto a mãe e eu
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discutíamos tipos de focos e modelos dos puxadores.
Já passava das nove quando a Inês simpaticamente me pôs na rua, a
pretexto de ter que dar de jantar à miúda e deitá-la cedo. Vim para casa e
telefonei-lhe à noite. Ficámos uma hora ao telefone e pedi-lhe o e-mail.
Adormeci agitado a pensar nela, nas pernas compridas debaixo dos jeans
apertados, na voz doce e fresca, na boca carnuda, regular e desenhada a lápis
número 3 e no dia seguinte mandei-lhe vários e-mails.
Sabia que era dez anos mais velha do que eu, o Frederico já me tinha
contado que era separada, que o marido se baldara de casa para ir viver com a
professora de Tae Kwon Do e dei comigo a pensar quem era o idiota que
largava uma lasca daquelas, com um metro e setenta e cinco, ainda por cima
porreira e inteligente, com corpo de teenager e uma cara mais fresca do que
metade das minhas colegas de Arquitectura com menos dez anos que ela. Vou
andar com esta gaja, pensei, vou mesmo andar com ela, não vai ser como as
outras que me têm passado pelas mãos, é preciso é dar-lhe a volta. Ao fim de
um mês de mails e almoços de chove não molha, não me trate por tu que eu não
tenho a sua idade perguntei-lhe o que é que ia fazer no fim-de-semana, e
respondeu com ar vago que a Carolina ia para o pai, e que, por isso, não tinha
planeado nada além de dormir e pôr as leituras em dia.
Pensei: é desta, tenho que conseguir. Já andava a bater uma à conta dela
cada vez que desligávamos o telefone à noite, só de ouvir a voz dela ficava com
uma tusa descomunal e senti que a pouco e pouco o gelo se estava a quebrar do
outro lado. Ela tratava-me por você, mas achava-me graça, dava-me corda e
tinha sempre tempo para atender os meus telefonemas ou responder aos meus
mails. Nessa sexta-feira disse-lhe que ia lá ter a casa às nove e entrei com uma
mochila para ficar o fim-de-semana. Não sabia se ia ter sorte, mas quando um
homem quer uma mulher, não há nada que o impeça, e ela já estava pronta para
ser virada. Já me chamava Migles, miúdo, e outros mimos do género; quando
elas começam assim, estão liquidadas, é apenas uma questão de tempo.
Toquei à porta e entrei de boné na cabeça e mochila ao ombro e já só saí na
segunda-feira seguinte. No domingo à tarde, com um tabuleiro cheio de
torradas submersas em manteiga e geleia e duas canecas do Mickey cheias até
acima de leite com Ovomaltine, a Inês perguntou:
- Então, somos namorados?
Ri-me de prazer só de olhar para a cara dela, estava igual à Carolina; de
repente, tinha outra vez cinco anos, os joelhos esfolados de cair da bicicleta, as
alças da camisa de noite descaíam-lhe deliciosamente pelos ombros abaixo, à
volta da boca os bigodes de leite davam-lhe um ar adorável e irresistível de
miúda que não quer crescer. Estava a olhá-la, deliciado, sem sequer pensar em
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responder-lhe o que para mim era óbvio, quando cruzou as pernas, deu mais
um gole da caneca a fumegar, e disse:
- Não faz mal, mesmo que não seja tua namorada, tu já és meu namorado.
Nunca tinha conhecido uma miúda tão querida. Nem tão mulher, por isso
apaixonei-me por ela nesse instante. A Inês suavizou-me o coração e fez-me
sentir que afinal não era só um tipo com pila, também tinha alma, que não era
um filho da puta mas uma pessoa perfeitamente normal, capaz de ter uma
namorada fantástica e de viver bem com isso.
Com o tempo, habituei-me ao remanso doméstico, a ter ao meu colo a
Carolina a fazer desenhos de árvores com maçãs do tamanho de abóboras, casas
que pareciam aviões e cães com cara de cogumelos, a ir-lhe aconchegar o
édredon enquanto adormecia com a cara encostada à minha mão e me dizia
baixinho eu quero que o Miguel tome conta de mim senti-la a mergulhar num
sono pacífico e suave, onde fadas e príncipes coabitavam no silêncio da
imaginação e depois voltar à sala iluminada a velas, onde a Inês se aninhava
nos meus braços, ainda mais frágil e pequenina do que a Carolina e víamos
televisão até à hora de irmos para a cama e nos amarmos durante horas a fio,
sem nunca nos cansarmos do corpo, do cheiro, da pele e dos olhos um do outro.
Mas, ontem, à noite, à conversa com a Mariana, voltei a cobiçar-lhe as
mamas fartas no decote generoso. Ela só falava do ex, e como tinha
ultrapassado bem a situação, que lhe tinha dito tudo na cara, e aquelas merdas
todas que as mulheres adoram fazer ou, pelo menos, dizer que fazem. E eu
comecei a pensar o que é que ando a fazer há quase um ano enfiado na casa da
Inês, na vida da Inês, a brincar aos pais com a filha da Inês, quando não passo
de um nómada que hoje pode estar aqui e amanhã na América Central a
apanhar bananas ou na China a passear na Muralha. Não tenho laços, nunca
tive, perdi a capacidade de os criar quando a minha mãe me deixou em casa,
disse que ia ao cinema e nunca mais voltou. Tinha sete anos, a farda do colégio
era um casaco ridículo e apertado, obrigavam-me a usar camisolas de gola alta
azuis escuras, deve ser por isso que ainda hoje não suporto nada junto ao
pescoço, só um fio de missangas no Verão, para dar mais estilo.
Se ao menos ela me tivesse explicado porquê, mas os adultos cometem
sempre o mesmo erro com as crianças, acham que elas não percebem nada, e
enganam-se, percebem tudo, mesmo aquilo que não quereriam perceber se já
fossem adultos. Dois anos depois, o meu pai juntou-se com a Lina, que trazia
um filho e uma história de maus tratos com um delinquente qualquer de boas
famílias que estava internado no Telhal com sintomas de esquizofrenia e
voltámos a viver a ilusão de um novo lar, pelo menos aparentemente, porque a
Lina nunca tomou o lugar para sempre vazio da minha mãe. Tinha 12 anos
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quando o meu pai me contou a verdadeira história, a minha mãe tinha fugido
com o Alberto Sequeira, um primo direito, um amor antigo e mal resolvido e
vivera os últimos quatro anos de vida nos Estados Unidos, no estado de Rhode
Island, onde o primo montara um restaurante de comida típica portuguesa. Só
me estava a contar a verdade porque recebera um telegrama a anunciar a morte
dela numa “highway” qualquer, onde se enfaixaram debaixo de um camião de
combustível; ela e o primo Alberto morreram juntos, provavelmente da mesma
forma intensa e aventureira com que viveram os últimos quatro anos em que a
minha mãe se tinha esquecido de Portugal, do meu pai, do Rodrigo e de mim,
como se eu fosse um cão rafeiro que se abandona no fim das férias, e que nem
sequer tem nome.
Quando a Inês me perguntou por ela, disse-lhe apenas que tinha morrido
quando eu era miúdo e que, de qualquer forma, não me lembrava dela, o que
até está perto da verdade. Lembro-me do olhar lânguido e ausente, da cara
branca e das feições regulares. A pele cheirava a alfazemas e as mãos
inundavam-me a cara de prazer antes de adormecer. Deve ser por isso que
quando a Carolina está agitada e a Inês me pede para lá ir, lhe cubro a cara de
festas eu quero que o Miguel tome conta de mim e tenho vontade de chorar,
mas tranco as lágrimas porque um homem não chora, muito menos. em frente
de uma criança e por isso aperto-a nos braços e digo-lhe estou aqui, Carolina,
estou aqui, não tenhas medo eu que perdi o medo de tudo quando percebi que
ela não ia voltar, quando senti que a minha vida valia tão pouco para ela que
me trocara por uma paixão mal resolvida, o meu pai inconsolável, noites a fio
em frente à televisão, e Olímpia, que já vinha de casa dos meus avós e conhecia
a minha mãe como a palma da mão dela, suspirava quando levantava os pratos
quase cheios, e dizia:
- Se o senhor doutor não come, quem é que vai tomar conta do
Miguelinho?...
E o Miguelinho no quarto, à luta com os soldados e as recordações
esbatidas da pele dela, do cheiro a alfazemas, da doçura das mãos pousadas na
minha cara a mãe gosta muito de ti filho
Mentiras, merdas de mentiras que os pais dizem aos filhos, como se nós
fossemos estúpidos e não percebêssemos nada. Como se não soubesse já, nessa
altura, que se ia embora, que ia trocar o andar de S. Sebastião por uma casa no
subúrbio perdido de uma América tão perdida quanto ela.
Quando o meu pai se casou com a Lina e comprou uma casa maior, ganhei
uma madrasta que sempre me tratou como filho, mas que nunca senti como
mãe. Talvez o coração tenha parado de bater no esquecimento dela, no
desprendimento dela. E, se calhar, é por isso que quase todas a noites acabo por
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dormir em casa da Inês, mesmo que vá sair e me interesse por outras mulheres,
tenho sempre os braços dela estendidos para me agarrarem o pescoço e a
perguntar-me, com um sorriso doce e sonolento:
- Divertiu-se?
Diverti-me sim minha querida, divirto-me sempre, a noite dá-me energia,
gosto de ver as gajas a passar, gosto de ver como os homens se metem com elas
e como elas se mostram ou não disponíveis, para mim são como ratos de
laboratório e eu sou o cientista a brincar às experiências. Como no nono ano,
nas aulas de química, ponho-me de fora e assisto ao espectáculo da primeira
fila. É tudo um circo. De vez em quando, aparece uma com cara de trapezista
que me chama a atenção e dou-lhe corda, se ela fala comigo mais' de cinco
minutos saco-lhe o telemóvel, mas depois não telefono, nunca telefono, não
quero fazer merda com a Inês. Pelo menos com ela, não. Ela, que me abriu as
portas da sua casa e da sua vida com a doçura de uma criança, que me tocou
partes do coração que nem sabia que tinha, que me faz todos os dias desejar ser
uma pessoa melhor.
Vim para casa meio bêbado. depois de ter dado dois beijos na Mariana.
Não sei se a queria comer ou não. Quatro Jamesons são o suficiente para
despistar os sentidos e esquecer a memória, mas, quando entrei no quarto e vi a
Inês semi-adormecida, os braços estendidos e o cheiro da sua pele impregnada
em cada átomo, adormeci a pensar que afinal as mamas da Mariana não são
assim tão boas, que a Inês é o máximo, e tenho mas é que ter juízo e atinar,
mesmo que não tenha nada para lhe dar e por isso mesmo um dia destes eu
acorde e faça como a minha mãe, me meta num avião e nunca mais volte.
Apanho a Teresa à porta da sede do banco na Baixa e como nos apetece
pizza às duas, nem discutimos onde vamos. A Teresa está com a cara inchada,
mas, como é morena e se sabe pintar bem, quase não se dá por isso. Sei que não
gosta de começar a falar dos problemas dela, precisa de uma mesa, uma garrafa
e dois copos de vinho. Por isso, conto-lhe as novidades, o Nuno a querer meter
veneno entre mim e o Miguel, a Carolina que me perguntou outro dia se as
pessoas também tinham fios como as paredes e a Ana que vai tentar mais um
tratamento de fertilidade, antes de fazer inseminação artificial.
Só depois de pedirmos duas calzone e uma meia garrafa de vinho branco é
que começa a falar.
- O Vasco desapareceu outra vez. Saiu ontem para ir comprar cigarros e
não voltou. Estive a noite inteira acordada à espera, fiz uma directa, não
conseguia dormir.
Por acaso, já estava à espera, mas não disse nada. Quando um tipo se mete
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na heroína, não é ao fim de dez anos que sai, só porque fez uma cura de três
meses numa clínica qualquer muito chique na Suíça. A coisa é muito mais
complicada do que isso. - E levava dinheiro?
- Não, mas hoje de manhã dei por falta do multibanco e como deves
imaginar, cancelei-o imediatamente; mas ele, ontem, já tinha levantado sessenta
contos, trinta antes da meia noite, e trinta depois.
- Mas como é que ele sabia o código?
- É fácil, era a nossa data de casamento, sete do três de noventa e um. É o
meu código para tudo.
- Então, e agora?
- Agora, liguei ao meu sogro, e ele meteu-se no carro e foi à procura dele.
- E tu?
A Teresa barra o pão com manteiga de alho e dá uma dentada decidida.
- Eu ? Eu tenho que trabalhar, filha! Ou tu achas que cheguei onde cheguei
no banco por andar à procura do meu marido cada vez que lhe apetecia fazer
merda? O pai dele que o encontre, que eu tenho mais que fazer.
Coitada da Teresa, é tudo garganta. Toda a vida viveu em função do
Vasco, dos problemas do Vasco, das crises do Vasco, do medo de perder o
Vasco, nas mil e uma formas de tirar o Vasco da droga, como se a sua existência
enquanto pessoa única não tivesse qualquer sentido. E agora está aqui a fazer-se
de forte, deve ser para se convencer a si própria, por isso vou ajudar.
- Tens razão. Andas a aturar essa merda há tempo demais. Quando é que
chegou da cura?
- Há um mês.
O vinho aterra na mesa e a empregada, com ar anémico, serve os dois
copos. E Teresa bebe imediatamente meio copo.
- E quando é que ia começar a trabalhar?
- Daqui a uma semana. - Estúpido.
Estúpido, filho da puta, egoísta de merda. Como é que um gajo com uma
vida bestial, uma mulher que faz tudo por ele e uns gémeos adoráveis se dá ao
luxo de estragar a vida dele e a da família?
- E os miúdos, perceberam alguma coisa?
- Não, disse-lhes que o pai tinha saído mais cedo. O pior é logo à noite.
- Até lá, o teu sogro ainda o encontra.
- Até lá, tenho uma reunião com a administração para apresentar o novo
logotipo do banco por isso ou me concentro no trabalho, ou estou tramada.
- Tramada já tu estás.
- Lá isso é verdade. Mas não há de ser nada.
Se diziam que a Thatcher tinha tomates nos ovários, não sei o que é que a
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Teresa tem. Aguenta tudo com uma cara impassível, aqui a comer uma pizza
enquanto o marido deve estar entornado numa valeta qualquer, ou num quarto
de uma pensão ranhosa, a ressacar da dose anterior.
- Admiro a tua calma.
- Não admires, que é tudo fachada. Logo à noite chego a casa, ponho os
miúdos na cama, tenho lá a Maria para me ajudar, enfio um Xanax, e esqueçome que existo. É simples.
Tenho que lhe perguntar outra vez, a resposta é sempre a mesma, há dez
anos que não muda, mas mesmo assim vale a pena tentar.
- Ouve lá... Porque é que não te livras de uma vez por todas desse traste?
- Porque gosto dele, e porque é o pai dos meus filhos.
- E se a vida de merda que levas, sempre a pô-lo e a tirá-lo de curas, um
dia te fizer tanto mal que não aguentes mais?
- Eu aguento. Aguento tudo. Não te esqueças que eu tinha dez anos
quando o meu pai se suicidou à minha frente. Quem aguenta uma merda
dessas sem endoidecer, aguenta tudo.
- É. Até ao dia em que o organismo estoirar por algum lado e tiveres um
cancro, ou uma merda parecida.
- Credo, tu andas um bocado negativa - exclama a Teresa batendo na
mesa. Mas como é de pedra, bate na cadeira. - Que disparate.
- Disparate? Olha a minha mãe, se não tivesse sido tão infeliz, se calhar
hoje ainda estava viva.
- Ainda não ultrapassaste isso, pois não?
Tento responder, mas a voz perde-se algures entre os pulmões e a
garganta. Respiro fundo e bebo mais um gole de vinho. Finalmente, a voz
destranca-se e oiço-a ao longe, como se pertencesse a outra pessoa.
- Foi um ano muito complicado... a editora a começar, a Carolina cheia de
febre por causa dos dentes... e a parva da Célia a mandar vir comigo. Chegava a
casa estoirada e ela dizia a menina já tem dois dentes e a senhora nem
reparou....
- Ainda tens essa palerma lá em casa?
- Tenho. Porquê?
- Devias arranjar uma interna, como a Maria. Com a vida infernal que
tenho, se não fosse a Maria, já tinha enlouquecido.
- Nem penses! A Célia não é grande espingarda, mas tem hora de entrada
e de saída. Perdia a privacidade toda com o Miguel. Não, nem pensar.
- O Miguel, o Miguel... como é que isso está?
- Fantástico, como sempre. Porquê?
- Nada. É que eu acho que essa relação não tem futuro nenhum.
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Mau. Isto hoje está tudo contra mim, ou quê?
- Ouve lá, o Nuno andou-te a passar cheques?
- Não sejas parva! O Nuno embirra com o Miguel porque tem um
fraquinho por ti. Deste-lhe para trás daquela vez e os tipos nunca se esquecem
das mulheres que não lhes ligam. Mas eu sou tua amiga, preocupo-me contigo.
- Mas preocupas-te com quê, e porquê? Nunca fui tão feliz, nem tive nada
que se comparasse ao que tenho com o Miguel. Não percebes que nos adoramos
e que estamos bem?
- Percebo. Mas é até ao dia. Ou tu não estás convencida que um miúdo de
25 anos com a sede de viver que ele tem, vai parar por aqui, pois não?
- E, porque não? Há imensos casais felizes em que o homem é mais novo
que a mulher, porque é que não havemos de ser um desses?
- Porque o Miguel não é assim, Inês, sabes muito bem o que quero dizer.
- A vida tornou-te uma pessoa amarga.
O olhar dela adoça-se. Cala-se por breves instantes e depois, muito
devagar, estende a mão por cima da mesa e agarra a minha.
- Ouve, eu não estou amarga, apenas me tornei numa pessoa avisada. Vivo
assim porque não soube viver de outra maneira. Mas estou cansada. Não sei
como vai ser o meu futuro. O Vasco não muda, provavelmente nunca vai
mudar. Estou gorda e a envelhecer, para o ano faço quarenta e já ninguém me
pega. Mas tu estás óptima, tiveste a sorte do idiota do Pedro se ter posto a
andar. És sócia de uma das editoras com mais prestígio no mercado, só tens
uma filha, ainda vais a tempo de reconstruir a tua vida com outra pessoa. Se
perderes estes próximos anos com um puto como o Miguel, que não tem nada
para te dar, um dia ele vai-se embora e tu entretanto deixaste que a vida te
passasse ao lado.
Passo os dedos mecanicamente debaixo dos olhos para tactear as rugas
minúsculas que só eu vejo. 35 anos. A idade ideal.
Ainda temos vontade e energia para o presente, tempo e ânimo para fazer
planos para o futuro, mas já ganhámos maturidade e tranquilidade com o que
vivemos no passado. Já sabemos o que queremos e o que não queremos. Mas o
tempo passa depressa. Qualquer dia a Carolina é adolescente, começa a receber
telefonemas de meninos armados em parvos, depois vêm as festas e as saídas à
noite e quando der por mim e olhar para o espelho, já sou uma senhora de meia
idade. Sei que a Teresa tem alguma razão, mas não me apetece pensar nisso.
- O Miguel não se vai assim embora, de um dia para o outro. Além disso,
ele adora a Carolina.
A Teresa enche o copo e dá uma última garfada na pizza, antes de voltar
ao ataque.
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- Oh, ele adora a Carolina!!! E quem é que não adora a Carolina? Inês, põe
os pés na terra, ao menos uma vez. Ele só está contigo porque tem uma paixão
enorme por ti. Mas ainda não tem idade para construir uma relação, o amor
para ele é isto, não percebes? Quando a paixão se esgotar, vai-se embora sem
olhar para trás.
- Quando esse dia chegar, logo se vê.
Pronto, já chega. Agora vou mudar de conversa.
- E o que é que vais fazer em relação ao Vasco?
- Depende.
- Depende de quê?
Se ele aparecer ou não.
- Claro que vai aparecer. Ou queres que ele apareça morto numa valeta?
- Cala-te, não sejas estúpida.
Ela tem razão. Mas o que é que me deu para dizer tamanha barbaridade?
Que estupidez. Felizmente nesse momento toca o telemóvel. Ainda deito a mão
à carteira para tirar o meu, mas é o da Teresa. Nas mesas mais próximas, três ou
quatro pessoas seguem instintivamente o, mesmo reflexo. Que ridículo, esta
merda dos telemóveis todos a tocar.
- Estou... Olá, tio. Ah!... ainda bem, tio. Faz um sorriso de circunstância.
- Sim, tio, pode levá-lo para lá, a Maria abre-lhe a porta. Obrigada, tio.
Ainda bem, tio. Obrigada. Até logo, tio... espere! Faz-me um favor? Ele deve ter
o meu cartão multibanco na carteira, ou num bolso, o tio não se importa de lho
tirar e entregá-lo à Maria? Bem haja, tio. Até logo. Eu tenho uma reunião, mas
vou assim que puder. Obrigada, até logo.
Desliga o telemóvel e fica a olhar pensativamente para as teclas.
- Pronto. Estava a dormir em Alcântara, à porta de um café. O meu sogro
vai levá-lo para casa.
À saída do parque, esbarramos com um arrumador de carros. Não é o
mesmo que costuma cá estar, quando venho à noite ao Lux beber um copo.
Devem ter isto dividido por turnos. Abro a carteira e dou-lhe uma moeda de
duzentos escudos. Que ironia, eu aqui a dar dinheiro a um toxicodependente e
a Teresa com outro em casa. Isto para não falar no marido da Célia.
Deixo a Teresa à pressa na esquina da sede do banco e desejo-lhe boa sorte
para a reunião. Esta mulher devia ser condecorada. Ou canonizada. Claro que a
apresentação do novo logo tipo vai ser um êxito, claro que daqui a seis meses é
outra vez promovida, enquanto o Vasco regressa a outra clínica para perder
mais seis meses a fingir que se vai limpar. O que ela precisava era de arranjar
um namorado. Mas não há nada a fazer, quando uma mulher gosta mesmo de
um homem aguenta tudo, espera o tempo que for preciso, não há nada que não
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faça para poder ficar com ele. E a Teresa gosta mesmo do Vasco. Como a Ana
gostava do Nuno. Como eu gosto do Miguel. E se um dia destes o Miguel
acorda e decide abrir as asas e cruzar os céus? Só de pensar nisso fico com dores
de estômago e um arrepio desce-me desprevenidamente pela espinha. Estarei
assim tão presa a ele? Quando começámos nem sequer o levava a sério não me
trate por tu que eu não tenho a sua idade disse-lhe um dia, num almoço
delicioso em que já só o via e ouvia, nada mais existia à minha volta, bêbeda
dele, mas ainda tentei manter a distância que achava higiénica; já estava quase a
capitular, era apenas uma questão de tempo. O Miguel riu-se, encolheu os
ombros e só me voltou a tratar por tu quando eu deixei. Mas nessa altura já
dormia na minha cama.
A Carolina fez outra vez chichi na cama. Faz uma ou duas vezes por mês,
geralmente quando adormece contrariada. Há dias que nunca mais têm fim e
quando finalmente ela adormece, deito-me imediatamente na cama e caio
redonda. Nos dias em que o Miguel cá fica, tudo se torna mais fácil. Ele faz dela
o que quer. Se lhe dou duas vezes a mesma ordem e finge que não ouve, o
Miguel repete exactamente o que eu disse com as mesmas palavras e a miúda
nem pestaneja. Obedece logo. Sou mesmo bom com mulheres, costuma
comentar o Miguel, que não se importa nada de brincar aos pais com ela.
Sempre brincou, desde o primeiro dia, com uma leveza que nunca percebi se
era fruto de uma grande inconsciência ou da mais profunda certeza do que
estava a fazer. Deve ser o primeiro caso. Com 25 anos que consciência pode ter
um tipo que saiu do colégio para a faculdade e da faculdade para o atelier, e
que nunca teve que assumir nenhuma responsabilidade na vida? Mas toca-me o
coração vê-los juntos, quando ela se enrosca no colo dele antes do jantar e os
dois lêem os meus livros da Anita impecavelmente conservados. Estou na
cozinha e oiço a voz do Miguel, pausada, calma, meiga, modular num tom
encantatório e penso isto é bom demais para ser verdade, ou melhor, já deixei
de pensar, senão ainda puxo a falta de sorte e eu tive tão pouca que agora bem
mereço viver assim, com a Carolina ao colo do Miguel e o Miguel ao meu colo.
A Teresa está sempre a gozar comigo, quando me liga pergunta:
- E então, como estão as crianças?
As crianças tomam conta uma da outra, as crianças adoram-me e eu não
preciso de mais nada, ou melhor, às vezes precisava que o Miguel ajudasse mais
um bocadinho cá em casa. Mas desde que lhe pedi para pôr a loiça na máquina
e me colocou os pratos grandes na parte de cima, percebi que era inútil, que
aquelas mãos são melhores no estirador e na cama do que cozinha. Por isso, não
insisti. Não se pode ter tudo.
A minha mãe havia de ter gostado do Miguel. Sempre soube dar valor aos
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meus amigos mais inteligentes, nunca teve paciência para aturar pedantes, e
achava que o Pedro era, como ela costumava dizer, muito pouca coisa. E
quando o comparo ao Miguel, era mesmo. Ou, então, sou eu que estou tão
apaixonada que só lhe vejo as qualidades. Deve ser isso.
É domingo à tarde e o Miguel está esparramado no sofá da sala, de fato de
banho e tronco nu, a ver o Benfica. Qualquer dia, ainda dou por mim a comprar
A Bola todos os dias para discutir com ele as tricas, entradas e saídas do plantel.
Mas ao menos os homens têm esta coisa que lhes dá distância e autonomia em
relação ao resto; as mulheres vivem quase sempre encerradas nos seus dramas,
como eu, por exemplo, que vim para a cozinha acabar de arrumar tudo,
enquanto Sua Excelência descansa na sala. Men work sun to sun, women's work
never done. Aprendi esta quando estive em Inglaterra a fazer de baby-sitter de
três adoráveis criaturas que se comportavam melhor à mesa do que a maior
parte dos adultos que conheço e que rezavam antes de adormecer. Sempre fui
doida por crianças. Se a Teresa me ouvisse agora, a pensar, ria-se e dizia logo:
- Pois, pois. O próximo, vais buscá-lo à porta do Liceu.
Levo para a sala duas cervejas de lata e sento-me no pouf a ler A
Imortalidade do Kundera. É bom, mas não há amor como o primeiro e A
Insustentável Leveza do Ser marcou mesmo a minha geração. Um homem e
uma mulher unidos para sempre, numa morte involuntária, sob o olhar
vigilante de uma amante lasciva e sábia. A clássica dicotomia da mulher
inocente e frágil, que é perfeita para ter em casa, e a amante insaciável e quase
fria que põe a cabeça dos homens a andar à roda. Será que o Miguel anda com
outras? A Ana passa a vida a insinuar que é perfeitamente natural que isso
aconteça e o Frederico, que já percebeu que a vida lhe é muito mais fácil se
concordar sempre com a Ana, vai juntando mais fios ao rio de veneno. Oiço-os
com polida e contrariada educação, e nem sequer me dou ao trabalho de lhes
responder. Porque haveria o Miguel de andar com outras? Porque os homens
pensam que se pode ter tudo, disse-me a minha mãe, quando sofri o meu
primeiro desgosto de amor, quando o Tiago, que era meu namoradinho de
bairro, me trocou por uma parva que dizia que era minha amiga. Com amigas
destas, ninguém precisa de inimigas. Mas o rapaz arrependeu-se, e voltou dois
meses depois. Não se pode ter tudo, dizia a minha mãe, nem se pode dar tudo.
Claro que, com 15 anos, eu não fazia a mínima ideia do que ela me estava a
querer dizer; por isso, quando o Tiago voltou e lhe abri os braços para, seis
meses depois, me fazer a mesma coisa, a minha mãe encolheu os ombros e
esperou que eu aprendesse sozinha. Mas se calhar ainda não aprendi nada.
- Em que é que estás a pensar?
O Miguel deve ter reparado no meu olhar subitamente ausente, com vinte
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anos de distância. Eu sentada no banco do Jardim da Estrela a chorar baba e
ranho, chovia a potes e eu não me queria levantar dali, à espera que a chuva me
lavasse a tristeza ou, melhor ainda, me levasse dali. Com 15 anos, o mundo
começa e acaba as vezes que forem precisas no mesmo dia. Tudo se constrói e
desaba a uma velocidade que a idade vai roubando, e, naquela tarde de chuva
que durou dois meses, percebi o que era perder alguém pela primeira vez.
- Estava-me a lembrar do primeiro namorado.
O Miguel deixa cair um meio sorriso quase sarcástico.
- Não me digas, um que foi muito mau e te trocou pela tua melhor amiga?
- Como é que sabes?
- Não sei, mas imagino. É um clássico que vos acontece sempre a todas,
coitadinhas!
Este coitadinhas poderia ter-me irritado se não tivesse sido pronunciado
com uma doçura irresistível. Pela milésima vez, observo-lhe as pestanas
enormes que rodeiam os olhos enormes. - O que é foi, agora?
- Nada. - Anda cá.
Sento-me ao lado dele e puxa-me a cabeça para o ombro. Respiro-lhe o
hálito fresco, temperado com o sabor do trigo, e dou mais um gole na cerveja. O
ombro dele está quente e apesar de ossudo, é muito confortável. A mão direita
passeia metodicamente pelo meu cabelo.
- Às vezes, acho que ainda és mais pequenina que a Carolina.
- Às vezes, sou.
- Sabes o que é que ela me disse, outro dia, quando a estava a adormecer?
Eu quero que o Miguel tome conta de mim. Eu respondi que era o que estava a
fazer, mas ela abriu muito os olhos, e repetiu muito devagar, com aquela
solenidade dos miúdos quando querem dizer uma coisa mesmo importante.
Não é hoje. É amanhã, e depois, e depois. Apertei-a com força, e dei comigo a
pensar como é que a minha mãe foi capaz de nos deixar, a mim e ao Rodrigo,
quando éramos ainda tão pequenos.
- Mas a tua mãe não morreu?
- Sim - responde com um ar vago - mas antes disso aconteceram outras
coisas, que agora não apetece contar. Decido voltar ao fio inicial da conversa.
- Gostas muito da Carolina, não gostas?
- Gosto. É adorável. E quando ela me disse aquilo, percebi que se calhar
até vou querer ter filhos.
Ficamos os dois calados, agarrados um ao outro, a saborear o ar e o
silêncio. Filhos. Quem me dera ter mais, mas o Miguel não me está a dizer que
quer ter um filho comigo. Está apenas a constatar o seu primeiro sinal de
instinto paternal, é só isso, Inês Maria, não te ponhas com ideias. Além disso, o
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que faria eu com três crianças, se já tenho duas?
- Queria mais bebés, não era?
Quando a doçura começa a transbordar, voltamo-nos a tratar por você,
como no início mágico de todos os inícios, um ritual talvez estranho, mas
delicioso.
- Talvez, mas não tenho pena se não tiver.
Lá estou a condescender. A dizer-lhe o que ele quer ouvir, em vez de ser
sincera. Claro que quero ter mais um filho, dá-me dó ver a Carolina de balde
em punho pela praia fora, à procura de amigos para brincar. Claro que quero
ter mais, já me esqueci das dores do parto, dos pontos, do peito cortado de dar
de mamar, das noites em claro até ela aprender a dormir 12 horas seguidas. A
memória é isto: só nos lembramos do que foi bom. Esquece-se a dor, a tristeza, a
perda e o sofrimento. Esquece-se quase tudo. Ficam as luzinhas de Natal, os
movimentos triunfantes, os momentos de júbilo e glória, como fotografias
resgatadas num álbum que se abre com prazer.
- Um dia, se continuarmos juntos durante mais dois ou três anos, temos
um bebé, está bem?
Não me digas isso, Miguel, não me faças correr como a Dorothy pela
Yellow Brick Road com o leão medroso, o espantalho e o homem de lata. Não
me dês mais sonhos, não me ponhas a voar por cima do mundo como um balão,
senão rebento de felicidade e, como o voo é inseparável da queda, não vou
conseguir estar lá em cima e cá em baixo ao mesmo tempo, para me amparar
numa nova realidade. Cala-te, Miguel, não prometas nada, eu sei que não estás
a prometer, estás só a ser sonhador e sincero, tens 25 anos e não fazes a mínima
ideia do que é ter filhos e responsabilidades; mas, se isso um dia for mesmo
possível, então, quero que seja um rapaz com os teus olhos, e o teu cabelo, e a
tua alma de pássaro.
A Ana senta-se à minha frente. Vem apressada como sempre. Subiu a rua
a passadas gigantes e quase se deixa cair na cadeira, encostando por momentos
a cabeça ao espelho que tem atrás onde vejo o meu cabelo, como sempre mais
despenteado do que gostaria. Ela não. Usa-o ultra curto e ultra moderno, e
consegue sempre ter todas as farripas no sítio. Claro que vaia um cabeleireiro
estupidamente caro, que lhe leva mais de dez contos só para ter inspirações
com a tesoura. Mas tudo o que é bom paga-se e o resultado é este: eu ando
sempre despenteada, e ela parece acabada de sair todos os dias de uma
produção de moda.
A Ana não era uma amiga próxima até ter acontecido aquela estupidez
com o Nuno. Como a tristeza aproxima as suas vítimas, foi a partir desse
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momento que lhe estendi os braços e lhe dei o mais precioso bem que se pode
dar a quem fica sem amor: a amizade. Foi o que o Duarte fez comigo.
- Então, o Duarte não vem?
- Claro que sim, mas está atrasado.
A Ana pede a lista onde pratos com nomes estranhos se sucedem numa
sinfonia absurda de palavras que não conheço. Estamos no Tibetano, e a Ana é
uma expert, explica que seitã é uma proteína vegetal que substitui a carne e
desta possui várias qualidades, sem nenhum dos seus defeitos. Acabo por
escolher o prato do dia, derrotada com tanta informação que não percebo,
enquanto me delicio com um sumo de uma data de coisas, entre as quais
banana e cenoura, que a Ana me recomendou.
O Duarte chega, atrasado e despenteado, irresistível. É uma mistura de
Sean Penn com o Lucky Luke. Tem tanto de malandro como de querido, um
sorriso rasgado e uma voz de menino mimado que lhe dá uma graça
monumental. Podíamo-nos ter apaixonado as duas por ele, mas, sem sabermos
porquê - estas coisas não são mesmo para saber -, ficamos só amigas. Primeiro,
a Ana, e depois eu, através dela.
Deste-me o Frederico, e eu dei-te o Duarte, costuma dizer, por graça.
Quando apresentei o Frederico à Ana, percebi que o meu amigo dos almoços,
jantares e cinemas sem tempo nem hora marcada, tinha encontrado a mulher da
vida dele, e a Ana deve ter pensado o mesmo, porque estão casados há três anos
e nunca conheci um casal tão equilibrado, próximo e aparentemente feliz. Foi
em casa dela que me cruzei com o Duarte, um pária sentimental como eu, mas
sem divórcio nem filhos no currículo, só uma vontade enorme de não crescer e
de poder continuar a sair à noite com os amigos, apanhar bebedeiras e, como ele
diz, sacar Cláudias. O Duarte é, aliás, o autor de frases extraordinárias, que
pronuncia com o encanto de quem não tem a menor consciência do que está a
dizer, tais como a noite é um depósito, ou na noite há muitas Cláudias. Filho de
peixe sabe nadar e o Duarte é filho único de um dos reis da vida nocturna que
dominou Lisboa nos anos 80. Mas entre Jamesons e Cláudias furtivas, é talvez
um dos melhores amigos que já tive, e adoro-o.
- Como estão as minhas brasas? - pergunta, com aquele sorriso que podia
dar um laço no alto da franja, de tão expansivo e rasgado.
- E tu?
- Como sempre. Com álcool a mais no sangue e horas de sono a menos.
- Qualquer dia cais para o lado. Já não tens vinte anos.
- Pois não. Mas ainda não tenho trinta, por isso deixa-me estar, que para o
ano, torno-me um rapaz sério. Vocês não têm uma amiga como vocês, para
minha namorada? Era o que eu precisava, para ganhar um bocado de juízo.
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Começa o charme. A Ana eu não lhe resistimos, desatamos a rir, e ele
encolhe os ombros e olha-nos de lado, como se tivesse cinco anos. Já tentámos
arranjar-lhe duas ou três namoradas, mas em vão. O Duarte não gostou de
nenhuma; por isso desistimos, rezando para que um dia destes ele não seja
apanhado por uma Cláudia na curva, da mesma forma implacável e
destruidora como as apanha numa discoteca qualquer da Av. 24 de julho, às
cinco da manhã, entornadas que nem barris, e sem defesas para resistir a uma
ofensiva masculina bem planeada. Não é por acaso que ele chama a esta
avenida o Mercado da Carne. Mas, como quem com ferro mata, com ferro
morre, e ele trata tão mal as miúdas, qualquer dia há uma que lhe troca as
voltas.
- Ainda te havemos de ver casado com uma Cláudia, a empurrar um
carrinho de trigémeos - comento, antes de me distrair com o prato da dita seitã
que me aterrou debaixo do nariz. O Duarte observa o meu prato, e diz, com um
ar entendido, ao empregado:
- O mesmo para mim, por favor.
A Ana fita-me com cara de poucos amigos.
- O que é que se passa? - pergunto, cheia de medo de dar a primeira
garfada, não vá aquilo saber-me a rãs soviéticas fora de prazo.
- Essa dos gémeos não era para mim, pois não?
Bolas! Esqueci-me da merda do tratamento de inseminação artificial que a
Ana anda a fazer.
- Não estou a perceber...
- Coitado do Duarte! Estas nuances de tratamentos de fertilidade escapamlhe por completo. Deve perceber mais de técnicas de contracepção. Há dois
anos que a Ana anda a tentar engravidar. Talvez tivesse sido mais fácil se,
entretanto, não tivesse feito dois abortos espontâneos, um, aos dois meses e
meio, e outro, aos cinco. O último foi horrível, pensávamos todos que ela ia
conseguir. O Frederico teve um desgosto tão grande e tanta pena que engoliu o
desgosto, e só seis meses depois, quando ela teve que ir a Milão ver colecções e
foi jantar lá a casa, é que deitou tudo cá para fora. Eu estava num daqueles fins
de tarde infernais, com a Carolina a fazer birras porque não encontrava o ferro
de engomar da Barbie, não queria tomar banho, e depois não queria lavar a
cabeça, e depois não queria o molho dos bifes de perú porque lhe sabia a meias
velhas: isso mesmo, meias velhas, metáforas maravilhosas que passam por
aquelas cabecinhas mínimas. Eu é que já não estava pelos ajustes e, sem pensar,
enfiei-lhe uma galheta que ficou marcada na cara. A miúda desatou num
berreiro que podia ser ouvido no prédio todo, e foi nesse momento que o
Frederico chegou para jantar com uma garrafa de vinho tinto debaixo do braço,
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a levou para o quarto e ficou lá uma hora a brincar com ela a acalmá-la e a
adormecê-la com os infalíveis livros da Anita enquanto eu punha a mesa e
respirava fundo, pensando numa frase que ouvira em miúda e cuja origem já
desistira de localizar nós só não os matamos porque são nossos filhos
E eu estava a viver um desses dias infernais em que só pensava como seria
a minha vida sem aquele Hitler de saias e cinco anos em casa, quando o
Frederico entrou muito devagarinho na sala, se sentou no sofá e começou a
chorar, como um borrego arrancado à mãe, por causa da Ana.
Faith is nothing without a sense of irony. O Frederico é talvez o melhor
homem que conheço, com mais princípios e o maior coração, sério e
estruturado, que ama de uma forma doce e imaculada a sua mulher, que vive
para ela e para o trabalho. Ninguém mais do que ele merecia ter filhos. E ela
também, depois daquele disparate com o Nuno. Quando encontrou o Frederico,
sentiu desde o primeiro instante que era ele a pessoa que ela sempre esperara, o
homem que lhe iria dar o mundo. Talvez o mundo, mas filhos é que não e ainda
por cima, segundo os médicos, nem um nem outro eram inférteis.
Aparentemente, não havia nenhuma razão para que não conseguissem,
mas o facto é que não conseguiam e muito lentamente, à velocidade invisível
com que chegam certas doenças fatais, a tristeza instalou-se neles como um
pequeno vício que lhes minava os dias, e, inevitavelmente, desgastava, não o
amor inabalável que sentiam um pelo outro, mas a possibilidade de perfeição
desse amor, da consagração da união de um casal, o poder de gerar vidas e ter
uma família.
O Frederico tirou os óculos para limpar os olhos, depois de chorar durante
mais tempo do que eu pensei possível ver num homem, e pediu-me que nunca
contasse à Ana aquele desabafo que, aos olhos masculinos, é sempre um sinal
de fraqueza. Os homens não percebem que é exactamente ao contrário, que
quando se chora, é para lavar a alma e recuperar forças, que mostrar fraqueza é
uma forma de mostrar força. Moveram-se mundos, ruíram estados e salvaramse nações por causa de lágrimas de mulheres. Mas o choro é coisa de mulheres
ou de maricas: um homem não chora, e é por estas e por outras que, depois, não
os conseguimos perceber. Porque nem eles se entendem, espartilhados entre as
convenções que lhes impuseram, aquilo que os outros pensam e o que ainda
não percebem que sentem.
Claro que nunca contei à Ana e, como me apercebi da gravidade da
situação, lidei com ela com a displicência que o bom senso aconselha nos casos
sem solução, mostrando-me discreta mente solidária, mas sem dar demasiada
importância ao caso. Não há coisas nem pequenas nem grandes, todas têm a
mesma importância, disse Oscar Wilde ao amante, na carta que lhe escreveu na
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prisão, quando, exactamente por ter um caso com ele, foi preso e cumpriu pena
durante mais de dois anos, sem que o outro, que lhe estoirara a fortuna e lhe
roubara horas infinitas de trabalho, se tenha dado ao trabalho de lhe escrever
ou de o visitar, votando-o ao mais profundo esquecimento.
O esquecimento é a arma mais letal do amor, quem nos esquece é como se
se esquecesse de tudo o que fomos. Ou pior: que existimos. Quem ama e
consegue esquecer é uma espécie de assassino: mata a realidade, apaga-a,
renega-a e transforma-a num pesadelo absurdo no qual somos obrigados a
aprender outra vez a viver. Não sei se foi bem isto que senti quando o Pedro se
foi embora porque, agora, quando olho para trás, acho que nunca o amei. Mas o
esquecimento a que ele me votou, de um dia para o outro, quando saiu de casa
para ir viver com a Sandra, deixou-me perdida. Mas não gostava dele. No
fundo, foi melhor assim, eu sabia que, mais dia menos dia, nos íamos separar.
Nem teria conseguido dormir com o Nuno, duas semanas a seguir.
- E o Miguel? - pergunta o Duarte
- Liguei-lhe outro dia para ir bater umas bolas, mas estava cheio de
trabalho, adiou para a semana.
O Duarte é viciado em squash e, de vez em quando, combinam jogar.
Parece que o Miguel não joga tão bem como ele, mas, como é muito
competitivo, adora aquilo, e, cá para mim, também é uma forma de se ter
aproximado mais dele e de o conhecer melhor, e, quem sabe, talvez de me
proteger. Quando o Miguel e eu começámos, o Duarte recebeu-o com a
cordialidade afável e reservada dos irmãos mais velhos, quando a irmãzinha
aparece com um namorado novo, o que não deixa de ter piada, porque o Duarte
é mais novo do que eu. Mas os homens são mesmo assim, para eles proteger é
uma forma de amar. Só eu é que arranjo sempre homens que gostam de ser
protegidos.
- Pois anda. Mas este fim-de-semana conseguiu não ir ao atelier e
passámos o tempo todo a namorar, isto é, o tempo que a Carolina deixou,
porque eu acho que ela deve pensar que ele também é namorado dela.
- Olha, e daqui a uns anos, quem sabe... - atalha o Duarte, depois de uma
careta bem disfarçada que acompanha uma garfada na maldita seitã.
Às vezes é mesmo parvo. Faço-lhe um sorriso amarelo canário.
- Vê lá se queres levar um estalo.
- Se for tão gira como a mãe - contemporiza.
- Vá lá, estava a brincar. Não estás com aquelas parvoíces na cabeça de
seres mais velha do que ele, pois não?
- Não, mas devia estar - corta a Ana, como uma faca laser.
- Porquê? Ele adora-a!
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- Pois adora. Adora brincar aos pais com a filha dela, adora ter uma
namorada mais velha, que lhe apara os golpes e o recebe sempre de braços
abertos. Assim, é fácil ter uma relação.
Era o que me faltava, ter estes dois aqui a falar de mim como se nem
sequer estivesse presente.
- Se vocês quiserem saber o que é que eu acho da minha vida, já agora...
O Duarte intercede em meu favor:
- Mas para que é que estás com essa conversa? Ele é um gajo porreiro,
bolas, nem todos os homens são uns filhos da mãe... Bem, há poucos, mas ainda
há alguns...
- É melhor estares calado, Duarte, porque o que tu fazes às miúdas que
sacas na noite também não é nada que se recomende.
- Mas eu não gosto delas, não percebes a diferença? E elas sabem
perfeitamente ao que vão.
O Duarte ri-se e vou a dizer não sei muito bem o quê, quando, com um
leve levantar de mão, me pede silêncio e continua a falar.
- Ouve: se eu posso ter sexo fácil e de borla e... bem, enfim, umas vezes
melhor, outras pior, mas sempre é sexo, e se posso ter, porque é que não hei-de
aproveitar?
A Ana olha-o mais ou menos chocada, mas ele já está embalado na sua
argumentação.
- E quem é que te diz que elas também não querem exactamente a mesma
coisa que eu? É um jogo limpo, toda a gente que entra nele sabe ao que vai. Mas
isto não tem nada a ver com coisas a sério, com o Miguel e a Inês é diferente, ele
gosta mesmo dela e...
- Vocês importam-se de parar com essa conversa??? - devo ter falado um
bocado alto porque, de repente, o restaurante calou-se em peso e as cabeças das
outras mesas viraram-se quase todas ao mesmo tempo para mim. Odeio que
falem da minha vida, e odeio ainda mais ser o centro das atenções. O
empregado aproxima-se e retira os pratos.
- E sobremesa, vão desejar?
Porque é que esta gente constrói as frases ao contrário? Por que é que não
diz primeiro o verbo, e depois o complemento? Deve ser dos telejornais. Peço a
lista com secura, o Duarte encolhe os ombros faz um meio sorriso e a Ana
retracta-se.
- Desculpa, Inês. É que essa tua história preocupa-me.
- Andas a falar muito com a Teresa, vocês parecem combinadas.
- Pois parecemos, mas acredita que é com a melhor das intenções.
Coitada da Ana! E é mesmo com a melhor das intenções, mas, se estivesse
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contente com a vida dela, não se inflamava tanto com os possíveis problemas da
minha. Olha para o relógio, abre a carteira para deixar a parte dela e despede-se
apressadamente, porque tem uma reunião com uns italianos daqui a cinco
minutos, dá-me um beijo fugidio e voa pela porta.
- Sempre vais lá jantar com o Frederico? - pergunto-lhe, quando já vai a
sair.
- Claro, depois ligo-te.
O Duarte olha para mim com cara de Madre Teresa de Calcutá.
- Ela não anda bem, pois não? - E pede ao empregado duas tortas de
laranja. - Aquela história de não conseguir engravidar dá-lhe a volta à cabeça.
- Bem, se o Frederico não lhe conseguir fazer um filho, eu posso sempre
tentar...
Bom e velho Duarte, nunca consegue levar nada a sério.
Um quarto para as onze e eu ainda aqui às voltas com o alçado. Mas quem
corre por gosto, não cansa. A Inês passa a vida a gozar comigo, chama-me
risquinhos, lápis n.° 0, formiguinha, mas é uma querida, nunca pergunta a que
horas chego. Em vez disso, liga às oito e meia a dizer que, se quiser passar por
lá a seguir, mais tarde, me dá de jantar seja a que horas for. Devia-me ter
despachado mais cedo, hoje o Frederico e Ana vão lá jantar, mas não posso sair
enquanto isto não estiver pronto. Ainda bem, não tenho grande paciência para a
Ana, sempre a dar opiniões e a embirrar com toda a gente. Só um santo como o
Frederico para a aturar. Bem o gajo não é bem santo, é mais uma banana com
olhos. Havia de ser comigo. Levava uma corrida que se punha mansa num
instante, ou então dava-lhe corda aos sapatos e ala que se faz tarde! Tenho
pouca paciência para gajas, e ainda menos quando são chatas. Mas o Frederico
está a chegar aos quarenta, parece que se amolece um bocado nessa idade.
Querem todos casar e ter filhos, um lar, cães e casas de campo, sinais de uma
vida calma e sossegada, códigos de conforto que me põem logo a bocejar. A
mim, não me apanham. Ainda tenho muito para viver, muita viagem para
fazer, muita gaja para comer.
Toca o telemóvel. É o meu irmão Rodrigo, a perguntar se quero ir beber
um copo. Hesito, porque apetece-me sempre sair, mas há dois dias que não vejo
a Inês e quero ir dormir com ela. Mas, se fizer bem as coisas e tiver pontaria,
ainda faço um 2 em 1 e consigo lá chegar a horas de apanhar o Frederico e a
Ana de saída. Irrita-me a maneira como as amigas da Inês me olham, como se
estivessem à espera que lhes pregasse uma rasteira ou lhes deitasse a língua de
fora. Cambada de balzaquianas. A outra deve ser uma esfomeada, sempre com
o marido internado, está gorda que nem uma vaca, também quem é que comia
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aquilo? Às vezes esqueço-me que a Inês tem mais dez anos que eu, quando
vamos sair com os meus amigos não dou por nada, ela parece uma miúda, a
diferença de idade não existe. Mas, quando estou com alguns amigos dela,
sinto-me desconfortável. Parece que estão todos à espera que eu faça merda,
para poderem apontar o dedo e dizer:
- Estás a ver? Não passa de um puto lunático e pretensioso. Puto lunático e
pretensioso. Foi o que me chamou a Teresa quando na noite de anos da Inês, lhe
organizaram um jantar e só apareci depois da meia noite. Não tenho culpa que
a Inês faça anos no mesmo dia que o meu irmão Rodrigo. Mas a Teresa até é
porreira. Um bocado frustrada com a merda de vida que tem, mas no fundo,
boa pessoa. Não teve foi coragem de mo dizer na cara. É mesmo típico das
gajas, dizerem as maiores merdas pelas costas e, depois, sorrisos pela frente. Se
me tivesse chamado puto lunático e pretensioso, tinha dito logo: e tu minha
vaca com falta de peso em cima, não andas mas é a precisar de levar com ele?
Saltava-me logo a tampa, era fatal. A Inês nunca viu este lado agressivo
que dispara muitas vezes com excessiva facilidade. Também era impossível,
com uma pessoa como ela. Nunca conheci ninguém tão conciliador, de uma
tranquilidade tão acolhedora. Ela despela o meu lado melhor, com ela não
consigo ser bruto ou agressivo, nem sequer frio. É como se possuísse a fórmula
secreta para me aquecer o coração. Mas será que é esta a vida que eu quero?
Afinal, está-me a apetecer ir beber um copo com o Rodrigo.
Telefono à Inês a dizer que, hoje, não vou lá dormir. Nada, nem uma
palavra de censura.
- Tu é que sabes.
- Mas sei o quê?
- O que te apetece fazer.
E mudou de assunto para eu pensar que ela não estava a dar nenhuma
importância ao facto; pôs-se a contar que a Carolina tinha estado a montar um
comboio e lhe perguntara onde é que estava o condista. A miúda é o máximo.
Condista. Um mistura de condutor com maquinista. Desliguei com a
consciência tranquila. Vou mas é acabar esta merda e ligar ao Rodrigo para
irmos comer um combinado e beber uma cerveja. Mas aquela do tu é que sabes,
ficou-me a moer. Porque é que elas nos cobram sempre as coisas? Bolas, tenho
25 anos, está bem que ontem fui beber um copo e hoje também vou, e depois?
Não gosto menos dela por causa disso, nem me passa pela cabeça sequer comer
outras gajas. Aquilo ontem com a Mariana foi uma estupidez. Não lhe devia ter
saltado à boca, somos bons amigos, e um absurdo. Mas também não teve
importância nenhuma, por isso nem vou perder tempo a pensar no assunto.
Não, eu não vou andar por aí a fazer estupidezes; nem eu quero, nem a Inês
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merece. Gosto é de fazer o que me apetece. E faço.
Quando chego ao restaurante o Rodrigo manda uma mensagem escrita a
dizer que está atrasado, para variar. Entretanto, aparecem o Rui e o Paulo, que
andaram comigo no liceu. O Rui é um bicho do mato sem paciência para gajas,
a não ser que seja para as comer. O Paulo é pacífico por natureza, tem uma
namorada há cinco anos que supostamente o adora, é preguiçoso e trabalha
pouco, mas como o pai é rico e ele trabalha na construtora da família, também
não precisa de se, chatear. O Rui, que tem um espírito crítico cirúrgico, faz parte
daquele género filho da puta com sistema de refrigeração no sangue, que nunca
perde o pé e acerta quase sempre, embirra à brava com a Kátia, acha que ela
além de gostar do Paulo, gosta do carro do Paulo, das férias com o Paulo, da
casa do Paulo, um apartamento bestial junto às Amoreiras. Já para não falar da
casa no Algarve e do acesso privilegiado ao circuito colunável do Verão: tios
com fios de ouro e calças encarnadas, camisas desapertadas para fazer
sobressair a peitaça peluda e disfarçar sem qualquer sucesso as barrigas vastas e
nojentas. E tias armadas em frescas, ouros por todos os lados, jeeps e
descapotáveis, todos a comerem-se desvairadamente uns aos outros, como é
típico dos meio ditos “evoluídos”, onde reina o poder e o dinheiro. A Kátia, que
nasceu na Parede, filha de um técnico oficial de contas e de uma professora de
matemática, deve ter aprendido desde pequena a fazer contas à vida - herança
genética ou cultural, tanto faz - e viu no Paulo um futuro risonho e garantido.
Não quer dizer que a gaja não goste dele, por acaso até acho que gosta. Mas o
Rui é implacável: acha que ela anda a ver se dá o golpe e, cá para mim, já deu.
Peço um combinado com hamburger, e eles uma cerveja, já jantaram todos.
- Então, o Rodrigo? - pergunta o Paulo.
- Está atrasado, como de costume.
- Enfiado numa gaja qualquer, com certeza - atalha o Rui, que não sabe
nem quer falar de outra forma. E começa a contar que conheceu uma gaja podre
de boa, quando foi renovar o bilhete de identidade há uma semana, para provar
que se podem conhecer nos sítios mais inusitados.
- Estávamos na bicha para os impressos e comecei a galar-lhe o cu,
daqueles em pêra, mas subidos, e um cabelão encaracolado pelas costas abaixo,
liguei logo o radar.
- Tinha fio dental? - pergunto, enquanto observo duas miúdas com ar de
finalistas de Relações Internacionais que acabaram de entrar.
- Claro! Não sabes que as gajas boas usam todas fio dental? E como
nenhum de nós tinha fotografias, fomos a uma daquelas lojas manhosas, ao
lado, tirar as fotos, e foi aí que lhe disse uma parvoíce qualquer.
- O quê?
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- Qualquer coisa do género: se precisar que a faça sorrir lá dentro da
máquina, não me importo de lhe fazer umas palhaçadas.
Este gajo é parvo, mas tem piada. É que tem mesmo. As miúdas sentam-se
do outro lado, mesmo à nossa frente, e a mais alta olha discretamente. O Rui
troca um olhar rápido comigo, mas eu abano ligeiramente a cabeça. Não valem
o esforço.
- Genial - diz o Paulo, que é tímido como uma bananeira.
- Pois, mas ela encolheu os ombros e nem sequer se riu.
- Palhacito.
- Até tentei ser, mas não surtiu grande efeito.
- Tiveste azar ou então era uma gaja sem sentido de humor. Era mesmo
boa? - insisto.
- Podre.
- Então, devia ser daquelas convencidas, que acham que ninguém lhes
chega. Não há paciência para essas gajas - remata o Paulo.
- Pois é. As gajas, quando são boas, raramente têm sentido de humor. As
feias é que costumam ter piada - comento. E penso, como diria a Inês: não se
pode ter tudo. Mas eu tenho. De facto, sou uma pessoa com sorte.
- E como se chamava? - pergunto, entre duas garfadas.
- Não faço ideia - responde o Rui, encolhendo os ombros.
- Quer dizer, fizeste figura de palhaço e nem o nome ou o telemóvel lhe
sacaste?
- Mas tu não sabes que essas merdas não se pedem? Elas é que dão, se
quiserem.
- Então e agora?
- Agora, tenho que ir aí sair à noite e ver se a apanho.
- E se ela não for de cá? Se é daquelas que veio da terra para renovar o BI e
passa os fins de semana numa discoteca qualquer nas Caldas da Rainha?
- Paciência - diz o Rui. A passividade dele às vezes irrita-me. - O que há
mais por aí é gajas boas. Se eu conheci uma podre de boa na bicha do BI,
também posso conhecer outra, noutro sítio qualquer.
- Lá isso é verdade - diz o Paulo, a acabar a imperial.
- Pois, mas tu já foste apanhado - respondo-lhe. O hamburger está bom,
mas as batatas estão mal fritas.
- Este já se fodeu. Dou-te um ano e lá vai a malta ver-te a enforcares-te,
apanha tudo uma grande tosga e és mais um liquidado pelas malhas do amor.
- Podemos-te fazer uma despedida de solteiro, com umas eslavas a
comerem-se umas às outras - digo eu - é caro mas vale a pena.
- Não se ponham com ideias.
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- Mas tu estás armado em parvo, ou quê? Não me digas que não queres
uma despedida de solteiro como deve ser?
O Rodrigo chega ao balcão, com um ar completamente esbaforido.
- Então? Passa-se alguma coisa que eu não saiba? O Rui pisca-me o olho.
- Passa - responde, muito sério.
- O que é que foi?
- O Miguel vai ser pai. A Inês está grávida.
Parvalhão. Do que este palhaço se foi lembrar. E tinha que ser comigo.
- A sério? - o Rodrigo não consegue fechar a boca, engoliu a tanga à
primeira.
- É verdade, pá - respondo, com compostura e circunspecção. .
- É pá, que cena, pá.
- Cala-te - corta o Rui - pareces aqueles imbecis do Big Brother.
- Mas é que é mesmo uma cena macaca - justifica-se o Rodrigo. E passa-me
a mão pelo ombro, pesaroso e solidário. - É a vida - remato, com ar conformado.
- Mas tu és um puto, pá! O que é que vais fazer com uma criança? Tu
endoideceste???
Silêncio sepulcral, quebrado ao fim de infinitos quinze segundos pelo
Paulo, que se lança num ataque de riso incontrolável. De repente,
desmanchamo-nos todos a rir à gargalhada e o Rodrigo cai nele.
- Que cabrões que vocês me saíram! E pede uma cerveja.
- És mesmo um anjinho, pá - diz o Rui, ainda perdido de riso.
- Isso não sou, mas o meu irmão mais novo ser pai é uma merda que me
fazia alguma confusão.
- A mim também me fazia, acredita.
- Isso somos nós que somos uns putos. Os nossos pais, na nossa idade, já
tinham filhos.
- E deu cá um resultado! Os únicos que não estão separados são os do
Paulo.
- Olha, eu vou adorar ter putos - diz o Paulo. Coração de manteiga. Este
gajo não tem safa. Há-de ser sempre assim. Já em puto nunca andava à pera,
apesar de ter mais um palmo de altura e três de largura do que qualquer um de
nós. Se o chateavam, virava as costas e ia-se embora.
- Também eu, mas é daqui a muitos e longos anos - respondo. - Uma das
coisas que eu gosto na Inês é que já tem uma filha, pelo menos essa cassete já
despachou.
- Pois é, mas quando elas querem engravidar, um gajo nunca está safo.
- A Inês nunca me faria uma merda dessas. - Como é que sabes?
- Sei.
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- Pois. E o Pai Natal existe. O Rui às vezes irrita-me.
- Ouve lá, ó palhaço, a Inês é impecável, é das melhores pessoas que já
conheci, por isso não te ponhas com bocas.
- Calma lá, não te irrites! Sabes que eu acho-a cinco estrelas, mas não te
esqueças que tem 35 anos e, nessa idade, elas querem todas a mesma coisa.
- Estás enganado, nunca andaste com uma mulher mais velha, por isso não
fazes a mínima ideia do que é que estás a dizer. A Inês teve urra casamento de
merda e quer é um tipo porreiro que lhe faça companhia e a trate bem, a ela e à
filha. As mais novas é que são perigosas, porque acham que a vida é casar e ter
filhos, mesmo que andem por aí armadas em executivas, puxa-lhes sempre o pé
para o casório. As mais velhas, não. Já se espetaram e agora querem é ser
felizes.
O Rui fica calado e apaga o cigarro.
- Tens razão, pá. Por acaso, apetecia-me uma mulher mais velha. E as
amigas dela, são alguma coisa de jeito?
- Olha, daí é que não tens sorte, são todas uns coiros. - Pois, gajas boas não
se arranjam todos os dias.
- Pois não - respondo, depois de pedir um café. - Tu tens sorte - remata o
Paulo.
- Se eu tivesse uma namorada como a tua, não andava a comer as pázinhas
do Montijo que trabalham lá na empresa - reforça o Rodrigo.
Pázinhas do Montijo. O meu irmão é um tipo com piada.
- E andas a comer, quem?
- Uma gaja chamada Sílvia, que trabalha no contencioso.
- E é boa?
- Até há vinte minutos, era do melhor - responde a olhar para o relógio.
- Cabrão. Estiveste a fazer horas extraordinárias.
- Extraordinárias é a palavra exacta, irmão. Gargalhada geral.
- E então, não se vai a lado nenhum?
O meu telemóvel dá sinal de mensagem. É a Inês. Se ainda lhe apetecer
vir, a cama está quentinha à sua espera. E eu também. Que querida! Esta miúda
é mesmo o máximo.
- Embora ao Bairro Alto beber mais uma cerveja? - pergunta o Rui.
- Eu não. Vou ter com a Inês.
Pagamos a conta e despedimo-nos rapidamente. O Paulo vai para casa, o
coração mole quase nunca o motiva para ir ver gajas, já o Rui e o Rodrigo são
uns autênticos profissionais. Eu movo-me a gajas, costuma dizer o Rui. Eu
também meu, só que agora é só uma que me move.
Envio uma mensagem a dizer que vou a caminho. Responde-me: ainda
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bem. Voo com o meu Peugeot 206 prateado pela Fontes Pereira de Melo com os
Nirvana aos gritos, subo a Joaquim António de Aguiar, os semáforos ficam
todos verdes à minha passagem, quero chegar depressa, apertá-la contra o meu
peito, meter-lhe os dedos na boca e amá-la com toda a força.
Minutos depois, abre-me a porta com os olhos ensonados, uma camisa de
noite de seda a roçar-lhe as coxas, só vejo umas pernas que nunca mais acabam,
mordo-lhe a boca, agarro-a pela cintura e começo a beijá-la mesmo antes de
fecharmos a porta. Encosto-a à parede da entrada, as minhas mãos descem
pelas pernas, afasto-as com força, e vejo-a a atirar a cabeça para trás, as pestanas
tremem involuntariamente, o corpo arqueia-se num movimento lânguido, e
empurro-a apressadamente para cima da cama. É sempre assim, quando chego
a casa dela, apetece-me logo amá-la, adoro esta mulher, adoro-a, adoro-a.
Ou sou eu que ando com a mania da perseguição, ou então as minhas
amigas decidiram acabar com o meu sossego. Outro dia, a Teresa com a
conversa acerca da minha relação do Miguel e agora a Ana com o mesmo
discurso. Será que a realidade é assim tão óbvia, e que sou eu que estou tão cega
que não a vejo? E por que é que não há-de resultar uma relação que tem tudo,
com uma pessoa que adoro, com quem me dou tão bem em tantas coisas?
Antes do Miguel aparecer na minha vida, vivia sempre com a sensação
que demasiadas coisas me passavam ao lado. Não imaginava o que é passar
dias a fio com alguém ao lado sem sequer questionar a sua presença, sem nunca
me fartar da voz ou do cheiro. Desconhecia o momento mágico que antecede o
reencontro, o instante perfeito da aproximação, o toque dos dedos pelas minhas
costas com a emoção da primeira vez somado ao prazer da infinita repetição. A
vida não era isto. As cores revelavam-se mais esbatidas, os contornos eram
menos nítidos e os dias mais iguais. Sentia menos vontade de viver, ou menos
energia para encarar os dias. Vivia em permanente esforço, com a editora, a
morte da minha mãe, a imbecilidade do meu pai e as ausências do meu irmão, o
Pedro que parecia nunca estar perto, mesmo que passasse o dia em casa. Vivia
em esforço e estava habituada a viver assim, sempre cansada e a esperar cada
vez menos dos outros e da vida. Deve ser uma forma de envelhecer, pensava,
quando, à noite, ao tirar da cara pó misturado com base, via as rugas como fios
de teia de aranha tecendo a sua inefável marca à volta dos olhos mortiços. Hoje,
quando me levanto de manhã e inspecciono a cara à procura das marcas que me
denunciem a passagem do tempo, sinto-me fresca, a boca parece ter aumentado
de volume e readquirido a sua cor original, os olhos aclararam, o cabelo cresceu
e sinto-me outra vez como quando acabei o curso e me meti de mochila às
costas, pela Europa, com o Frederico. O Miguel ensinou-me a viver sem esforço
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e a ser feliz. Faz-me sentir uma miúda e se calhar sou como o Duarte: também
não quero crescer, e é por isso que, quando olho para a Carolina à procura do
bebé que ela já foi, dá-me pena de não poder voltar atrás no tempo e senti-la de
novo ao meu peito a beber do meu leite e a alimentar a minha vida. Penso em
tudo isto enquanto a procuro no recreio, às seis da tarde, já o sol se encosta ao
fio do horizonte. Devia ter vindo às cinco, mas o Nuno que não tem filhos e
portanto nem sequer lhe passa pela cabeça que há horas limite para ir buscar as
crianças, atrasou-me a vida por causa de uma reunião com o distribuidor, e tive
que voar para chegar antes que o colégio feche.
A Carolina atravessa o recreio assim que me vê, como uma seta ensinada
pelo coração. Consegue sempre dar pela minha chegada antes de eu a localizar,
o olhar iluminado e azul, o ca belo num ninho de vespas, os joelhos esfolados,
as mãos encardidas e um sorriso que só se tem aos cinco anos, ou muito de vez
em quando, quando o amor transforma a paixão numa doce existência a dois.
Sempre a vi na minha imaginação ou no meu coração - e não serão o coração e a
imaginação uma e a mesma coisa? - e foi por isso que quando os enjoos
matinais me decifraram o futuro, percebi que ia ter uma menina linda, de
cabelos compridos e olhos de cachorro à procura do dono. Também percebi que
nunca mais estaria só, mesmo que vivesse sozinha, mesmo que a minha mãe
fosse apanhada pelo cancro. Eu já não era uma pessoa avulso no mundo. Tinha
alguém por quem olhar, para quem viver, alguém que era uma parte de mim e
que um dia teria filhos que teriam filhos que teriam filhos de modo que as
minhas células estariam para sempre espalhadas em outras vidas, vivendo as
alegrias e as tristezas como eu, quando a senti pela primeira vez a mexer-se,
nadando no líquido amniótico cheio de amor e de expectativas.
A Carolina avança, abraça-me as pernas, dá-me a mão, pega na mochila e
solta a pergunta sacramental:
- Ó Mãe, pode-me comprar alguma coisa?
- Hoje não, querida. Já é tarde e ainda temos que ir ao supermercado.
- E no supermercado, pode-me comprar alguma coisa? Porque é que os
miúdos nunca desistem?
- Talvez. Quando lá chegarmos, logo se vê.
Entramos na carrinha e eu ponho a cassete do costume. A cassete está
velha e a carrinha também; devia trocar esta geringonça por uma coisa a sério,
mas não tenho jeito para trocar as coisas na minha vida, nem carros, nem
pessoas. A Carolina canta o Hakuna Matata, e dou por mim a cantar aos gritos,
oh I just can't wait to be king, seguido de Can't you feel the love tonight. O Elton John,
que era um rapazinho do meu tempo, ainda se vai aguentando. Ele e o Phil
Collins com a banda sonora do Tarzan. Mas do que eu gosto mesmo é das
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músicas da Bela e o Monstro. Be our guest be our guest, put our service to the
test... Grande personagem, a do Lumière. Olha, lá estou eu como o rapaz do
Tibetano. O que eu queria dizer era: o Lumière é uma grande personagem. A
propósito, não faço a menor ideia do que é que vou fazer para o jantar. Quando
éramos só a Carolina e eu, tinha muito menos trabalho. Mas não me importo.
Estaciono no parque do Colombo e inicio a saga semanal das compras,
acompanhada pela Carolina, que já é grande demais para ir sentada no
carrinho, mas ainda demasiado pequena para não se perder, porque, ao fim de
dois minutos, desaparece e não consigo encontrá-la. Tentando não perder a
calma, procuro-ajunto aos corredores da roupa onde estávamos há menos de 30
segundos, mas nem sinal. Começo a andar cada vez mais depressa, passo para
os corredores seguintes, o coração está quase a saltar-me pela boca, sinto as
palmas das mãos secas, a garganta arranhada, dói-me a cabeça, a miúda não
está em lado nenhum e passam-me pela cabeça as histórias sinistras de raptos
de miúdos em centros comerciais. Volto atrás e é então que a vejo, no corredor
dos brinquedos, sentada no chão com outra miúda mais pequena do que ela, a
brincar com uma cozinha miniatura, inadvertidamente tirada da caixa. Ao
mesmo tempo que me aproximo, assustada e furiosa, mas tentando controlarme, oiço uma voz grave e ansiosa atrás de mim.
- Francisca! Querida!
Viro-me, e quase choco com um homem de 40 anos, vestido com jeans e
uma camisa de ganga de marca, já um bocado ruça. Seria um tipo
absolutamente normal se não trouxesse atreladas às duas mãos mais duas
miúdas, uma de sete e outra de nove ou dez anos, vestidas de igual, como duas
bonecas. Porque é que um homem com crianças à volta chama sempre a atenção
das mulheres? A mais velha agarra a dita Francisca, e a cara do pai desanuviase. Pega-lhe ao colo e fala-lhe com a doçura de quem quer ralhar, mas já não
consegue, ou acha que não vale a pena. Olha-me com alguma timidez, e diz:
- Desculpe.
- Desculpe, o quê?
- já vi que também deve ter perdido a sua filha... São uns diabinhos.
- Não tem que pedir desculpa.
E ficamos ali a olhar um para o outro, até que a Carolina diz:
- Ó Mãe, quem é este tio que eu não conheço?
Para a Carolina, o mundo está dividido em bons, maus, a mãe, o pai, os
polícias e os tios.
- Sou o tio Filipe - responde o quarentão, sem se desmanchar a rir,
fazendo-lhe uma festa na cabeça.
- E são todas suas filhas? - pergunta a Carolina.
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- Ó Carolina, por amor de Deus, está calada! Agora sou eu que tenho que
lhe pedir desculpa, é que esta miúda nunca se cala e...
- Não tem mal - e virando-se para ela - são, são todas minhas filhas.
- Como naquela série de televisão? - volta a perguntar o cotomiço.
Desta vez foi demais. O dito Filipe e eu desatamos a rir às gargalhadas e as
miúdas, por contágio, também. Dou a mão à Carolina e despeço-me com um
sorriso enfiado, afastando-me a passos largos em direcção ao carrinho que ficou
junto ao pão. Começo mecanicamente a encher o carrinho com uma data de
coisas que preciso, que não preciso mas que me apetece e outras que nunca me
passaria pela cabeça comprar se não as pusessem mesmo diante dos meus
olhos.
- Tu és mesmo doida, miúda.
- Então, ele era um pai com três filhas. É como na história da televisão, a
mãe não acha?
Acho, filha, acho que és igual a mim quando tinha a tua idade, dizia tudo
o que me passava pela cabeça. Foi por isso que o meu pai me deu um estalo
com toda a força, quando, um dia, cheguei à sala e lhe perguntei:
- O que é que o pai fez desta vez à mãe que está outra vez a chorar fechada
no quarto?
Vim a saber dez anos mais tarde que a minha mãe descobrira mais uma
das suas histórias, desta vez com uma espanhola estabelecida na Av. de Paris.
Deve ter sido aí que perdi a mania de dizer tudo e, agora, não digo nada, nem
quando o Miguel me liga para o telemóvel - atribuí ao número dele o toque da
banda sonora da Missão Impossível, por sugestão da Teresa -, a dizer que vai
passar o fim-de-semana ao Algarve com o Rui, o Rodrigo e o Paulo.
- Não fica triste, pois não?
- Claro que não, meu amor. Vai, e diverte-te. Podias é ter avisado antes,
que eu aproveitava e trocava de fim-de-semana com o Pedro.
- Ah... pois... não me tinha lembrado. Desculpe... Quem não tem filhos
nunca se lembra destes pormenores. Destes e de outros.
- Mas ainda passámos o outro fim-de-semana sempre juntos... - responde
suavemente, à espera de um sinal de concordância.
E foi tão bom...
- Disse alguma coisa?
- Não, querido, estava só a pensar...
- A pensar em quê?
- No que ainda tenho que comprar. Não faço ideia nenhuma do que é que
vou fazer para o jantar. Apetece-te alguma coisa de especial?
- Não... É que vou jantar fora... com eles.
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- Com eles, quem?
- Com o Paulo e o Rui.
- Tá bem.
O que é que ele quer que eu lhe diga? Que fico chateada? E se ficar,
porque é que lhe hei de dizer? O silêncio instala-se.
- Ouve, não te vais chatear; senão chateio-me eu, percebes?
Pronto. Lá vem o mau feitio de quem se sente mal com o que faz.
- Eu não me queixei, pois não?
- Eu conheço muito bem esses silêncios! - a voz vai-se exaltando a cada
palavra - Não devia estar tanto contigo. Nem sequer vivemos juntos e depois,
quando não vou ter contigo, é isto.
Devia desligar-lhe o telefone, dizer “eu é que não devia estar tanto
contigo, vai à merda, depois falamos”. Devia despachá-lo, fazê-lo sentir de
alguma forma que estou irritada. Mas, em vez disso, respondo-lhe que não vale
a pena irritar-se, que se divirta, e amanhã falamos. Quando desligamos, já está
tudo calmo, com a minha passividade apaziguei-lhe a fúria encenada para que
eu não tivesse coragem para me chatear e como fiz o que ele queria, é evidente
que desligou o telefone sem sequer ter percebido como fiquei triste e chateada.
Bolas, sou mesmo estúpida.
- Ó Mãe, porque é que está com essa cara?
- Qual cara, filha?
- Ainda está zangada por me ter perdido?
Fixo-lhe o olhar ansioso de cachorro à procura de dono. Se eu não fizer
imediatamente um esforço para mudar de expressão, sou uma idiota. Respiro
fundo.
- Não, querida, a mãe está só cansada. - E, num golpe baixo para lhe
conseguir desviar a atenção, sugiro com ar despreocupado:
- Queres levar estas gomas?
- Sim! Sim! Obrigada, mãe - o cotomiço agora salta de alegria e encaminhase para a caixa. Encolho os ombros e respiro ainda mais fundo, à procura de
uma força qualquer que não encontro. Afinal, do que é que eu estava à espera?
Vem aí o Verão, e, quando o Verão chega, fica tudo mais ou menos confuso,
como diz o Duarte. Boys will be boys. Talvez a Ana e a Teresa tenham razão: vivo
com demasiada fé e dedicação uma relação que, afinal, não é assim tão sólida.
Ou, se calhar, é. Mas eu sou tão insegura que já ponho tudo em causa, só
porque ele, hoje, vai jantar com os amigos é não passa comigo o fim-de-semana.
Que chatice, estes medos fazem de mim a minha maior inimiga, se continuo
assim, a minha vida rapidamente se transforma num inferno.
O telemóvel volta a tocar, a música da Missão Impossível sobressalta-me.
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- Estou...
- Sim, querido... - respondo com o tom mais calmo do mundo. Às vezes,
fico surpreendida com a capacidade que tenho para ser querida com ele.
- Não fique zangada comigo. Eu gosto mesmo de si, só que tenho a minha
vida, e...
- Eu sei, eu sei.
E sei mesmo. Era igual, na idade dele. Achava que o mundo era muito
grande e que não ia ter tempo de ir a todos os sítios que queria nem de conhecer
todas as pessoas que sonhava que existiam. Queria beber a vida toda de uma
vez, queria tudo ao mesmo tempo, achava que sabia imensas coisas, distinguia
o bem do mal e o preto do branco, vivia rodeada de sonhos e cheia de certezas.
Mas isso foi até a minha mãe ficar doente.
- Não é por eu fazer a minha vida que não gosto de si. Mas já sabe como é
que eu sou, só faço o que me apetece.
Que sorte! Também não me importava.
- Eu sei. Deixe lá, não tem importância. Eu pego na Carolina e vamos
passar o fim-de-semana com a Ana e o Frederico.
- Já combinaste?
É mentira, nem sequer sei se eles vão. Mas vou dizer que sim.
- Mais ou menos. Eles vão sempre, e, assim, aproveito e descanso um
bocado.
- Então, pronto. Vemo-nos para a semana, está bem?
Ter 25 anos é isto. Intensidade elevada à potência máxima, saídas à noite,
fins-de-semana aqui e ali, e a sensação deliciosa que sabemos tudo, queremos
tudo e conseguimos tudo. Bem, o melhor é ligar à Ana e ao Frederico, a ver se
vão para o Alentejo. Amigos: é impossível pensar no que seria viver sem eles.
Já passa das nove quando o Frederico me dá um toque para o telemóvel a
avisar que está a chegar. A Carolina põe às costas a mochila em que o Garfield,
de gorro e cachecol patina de pata dada com o Oddie, e eu pego no meu saco de
fim-de-semana, que me parece sempre demasiado pesado e no entanto sempre
com coisas a menos quando chego ao destino. O jeep do Frederico é espaçoso e
confortável e a Carolina adora andar lá dentro porque vê o mundo de cima.
Aninhamo-nos as duas no banco de trás, enquanto o Frederico acelera em
direcção à ponte Vasco da Gama a caminho do Alentejo. Olho para o céu no
qual a lua completamente cheia parece uma bola prestes a rebentar e penso no
Miguel, a estas horas já no Algarve, sentado numa esplanada com os outros, a
beber cervejas e a comentar as miúdas que passam. Devia ter trazido qualquer
coisa para lhes oferecer, uma garrafa de vinho, por exemplo, ou uma compota
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qualquer, mas, para variar, tive um dia de doidos e nem me lembrei. Paciência.
Quando pararmos numa bomba de gasolina, logo penso num presente
qualquer. A Ana vai-me espiando discretamente pelo retrovisor sem no entanto
me perguntar o que quer que seja, mas a minha cara não engana ninguém. A
Carolina enrosca-se em mim, como uma lagarta numa maçã, e adormece pouco
tempo depois de passarmos a portagem. O Frederico vai contando com grande
entusiasmo os últimos projectos que tem em mão, enquanto a Ana me explica o
que é que se vai usar no próximo inverno, e me desafia a ir com ela a Milão, da
próxima vez que for lá escolher uma colecção. Tento mostrar-me interessada
nos diferentes temas que vão tomando conta da conversa, com momentos de
total abstracção que, espero eu, passem despercebidos.
E se elas tiverem mesmo razão? E se aquilo que vivo com o Miguel não
passar de uma fantasia de adolescente tardia? E se não me chegar tudo o que ele
tiver para me dar? Se um dia destes me apetecer ser como estes dois, poder
fazer planos a longo prazo, comprar casas de cidade e de campo a meias, deixar
de pensar em tudo sozinha e construir a minha vida com alguém a sério, sem
medos, sem hesitações nem dúvidas?
- Não estás cá, pois não? - pergunta a Ana, com aquele sorriso doce que as
amigas só têm para as amigas.
- Mais ou menos.
- Boa resposta.
- Pois é. Dá para tudo.
- E não diz nada.
O Frederico espreita-me pelo retrovisor e quase sorri.
- Vocês querem parar com isso?
- Ela não quer falar, mas eu sei que há qualquer coisa que a está a chatear.
- E, virando-se. para trás, à espera de confirmação: - É ou não é?
- Mas ela pode não querer falar... - defende o Frederico. Querido Frederico.
Conhece-me há 20 anos, talvez melhor do que ninguém. Conhece os meus
silêncios e o que significam. Talvez por isso me esteja agora a proteger.
- Pois posso.
- Vês?!!! - remata o Frederico, triunfante.
- De qualquer maneira, temos o fim-de-semana todo para conversar.
Quando chegamos, deito a Carolina e ajudo-os a descarregar as coisas. A
Ana, que é uma fada do lar, trouxe rosbife, arroz de cenoura feito, iogurtes,
sumo, vinho, queijos e presunto. Até teve tempo de fazer um bolo de mel. Que
máquina doméstica infernal. Adorava ser boa dona de casa e conseguir
organizar a vida como ela. Mas, em vez disso, esqueço-me sempre de qualquer
coisa fundamental quando vou ao supermercado, só sei cozinhar bem três ou
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quatro pratos e para mim dar um jantar em casa é uma prova que requer mais
coragem do que atravessar uma ponte suspensa sem cordas por cima de um rio
infestado de sanguessugas.
A Ana senta-se no sofá forrado a chita e inspecciona as teias de aranha do
tecto abobadado. O Frederico acende a lareira e põe a banda sonora de O Piano,
e eu sento-me a ler o manuscrito da Mônica, intitulado Cala-te por favor Tenho
a cabeça ocupada com outras coisas, mas dá para perceber que tem humor,
ritmo e está escrito com simplicidade. Conta a história de um homem casado
que se envolve com uma estrangeira vinte anos mais nova. Mas não é mau.
Pouco depois, com a desculpa que estou com dores de cabeça, subtraio-me
para o quarto onde a Carolina dorme, enrolada sobre si mesma, na cabeceira
esquerda. Gosto de partilhar o quarto com ela, de lhe sentir o cheiro do cabelo,
de lhe beijar a testa mole e de me deixar inundar por esta sensação de amor
total, incondicional, infinito e perfeito.
Sabes, minha filha, é que antes de tu nasceres eu era só mais uma pessoa
avulso, tinha muitas ideias mas pouca força, alguns sonhos e muitos disparates
na cabeça. Sensatez e ponderação eram palavras complicadas e opacas, cujo
significado não me apetecia ir ver ao dicionário. Depois, tu chegaste, um
bocadinho de gente num choro mimado e foi assim que começou a maior
aventura da minha vida.
Às vezes, o cansaço toma-me os braços e a cabeça, ralho contigo e zangome se trocas os talheres à mesa, ou dizes asneiras. Mas é à noite, quando te
adormeço, na penumbra do teu quarto forrado a sonhos e ursos simpáticos, que
me alimento do teu ar, quando mergulhas no sono tranquilo e seguro. Fecho os
olhos para te ver melhor. Qualquer dia, tens 15 anos e uma colecção de amigas e
amigos com quem vais comer gelados e trocar discos. Mas, quando fores uma
mulher, ou te formares, ou aceitares o teu primeiro emprego, vou-me sempre
lembrar do bocadinho de gente que eras, do choro mimado antes de te pôr ao
peito, dos joelhos esfolados e da tua voz, aos cinco anos, a dizer a Mãe sabe que
eu gosto muito da Mãe?
É que a memória é o nosso melhor património e é por causa de ti que o
meu coração é como o universo, está sempre a crescer e nem eu nem ninguém
sabe onde vai parar.
E continuo assim, pela noite fora, a falar com ela mergulhada no mais
íntimo dos silêncios, à espera que o sono chegue, enquanto os dedos voam em
pequenos círculos sobre a sua ca beça de anjo. Sei muito bem o que me apetecia
agora: que o Miguel também tivesse vindo, que o Miguel gostasse de ter vindo,
e tivesse tanta paciência para os meus amigos como eu tenho para os dele. Que
hoje mesmo, que a lua está cheia e só me apetece fazer amor, o meu corpo
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voltasse a construir o milagre da criação e juntos fôssemos mesmo uma família.
Mas o Miguel deve estar entre uma discoteca e outra, noutra onda, a viver outra
realidade. Ainda penso em mandar-lhe uma mensagem escrita, mas para quê,
se ele não a vai ver? Amanhã é outro dia, preciso que o sono chegue, me dê
força e umas asas que me levem para um lugar qualquer, onde não me sinta
nem triste nem cansada. Um lugar qualquer, cheio de verde e azul, com
árvores, sombras e pássaros, um lugar sossegado e protegido do resto do
mundo, onde a Carolina possa brincar com outras crianças e eu consiga
descansar de mim própria.
O dia amanhece luminoso e o cotomiço acorda com a luz que passa pelas
frestas irregulares das portadas. Levantamo-nos as duas e vamos para a
cozinha, onde a Ana, com um roupão branco de bordado inglês e o cabelo
impecável - como sempre - se decidiu a cumprir a tarefa de fazer panquecas.
- O Frederico?
- Ainda está a dormir, coitado. Estas últimas semanas no atelier têm dado
cabo dele.
- Eu sei. O Miguel também tem feito imensos serões. Eles estão mesmo
cheios de trabalho.
- Onde é que ele está?
- Foi para o Algarve com o irmão e uns amigos. A Ana abana a cabeça com
ar reprovador.
- Podia ter vindo connosco.
- Pois podia. Mas se queres que te diga, nem lhe perguntei. Já me disse
tantas vezes que não, que desisti.
- Eu acho que ele também não se sente muito à vontade connosco, não é?
Se fosses um bocado menos seca com ele, se calhar era mais fácil, penso,
mas mais uma vez não digo. Para quê?
A Carolina senta-se num banco, à espera que eu lhe sirva um prato de
sopa com leite frio e corn flakes.
- Ó tia Ana...
- Sim, querida?
- Porque é que a tia ainda não tem bebés?
Esta miúda tem cada uma. Olho aflita para a Ana que está com a espátula
em riste, completamente apanhada de surpresa e tento salvar a situação o
melhor que posso.
- Porque ainda não chegou a altura e... - Mas a Ana faz-me sinal com a
mão para me calar, senta-se ao lado da miúda, faz-lhe uma festa na cabeça e
diz-lhe com toda a sinceridade - porque Deus ainda não quis, minha querida,
mas eu quero muito, e um dia vou ter.
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- Mas é Deus que decide? - pergunta a miúda.
- Também é - responde a Ana - e se tu rezares à noite, podes pedir isso a
Deus, não podes? Podes pedir para eu ter uma menina tão querida e bonita
como tu...
- Eu peço, tia. Prometo - e regressa aos corn flakes com a concentração
típica das crianças quando estão a comer. Entretanto, encho uma caneca com
café acabado de fazer e deito-lhe um pingo de leite. Que bom...
- Vês? - exclama a Ana. - Não há como a verdade para os deixar contentes.
Toma lá.
E vira a frigideira para cima do meu prato, para o qual desliza uma
panqueca dourada, irresistível.
- Agora põe-lhe manteiga ou doce de amora e vais ver como é bom.
E senta-se à minha frente, a olhar para mim.
- Para onde é que está a olhar?
- Estava a ver como vocês são parecidas e a pensar como é que uma
mulher como tu ainda não arranjou um tipo decente. Mau. Vai começar o
massacre, às dez da manhã?
- Ouve... eu tenho a vida que quero... as coisas na editora vão lindamente,
a Carolina está a crescer, e o Miguel é óptimo...
- Claro. Mas não é pessoa para ti.
Estou quase a pegar no prato e na caneca de café e a ir para o alpendre.
- Não vamos ter este tipo de conversa agora, pois não? - respondo, em tom
semi ameaçador, olhando de lado para a Carolina, que continua a comer os corn
flakes, impassível, como se não estivesse a ouvir.
- Tens razão - remata a Ana. E, notando o meu ar chateado, muda de
estratégia. - Tu é que sabes. Desde que te sintas feliz... Feliz? Mas quem é que é
feliz? E quem é que quer ser feliz? A felicidade é a coisa mais irritante do
mundo, uma utopia idiota e hipócrita, inventada por um cretino qualquer. A
felicidade é uma coisa insuportável, um mito incómodo que só serve para nos
fazer sentir ainda mais infelizes.
- Eu não quero ser feliz, Ana. Só quero ter alguém de quem goste e que
goste de mim. Como naquela música dos irmãos Gershwin, Someone to watch
over me. Isso basta-me.
- Pois. Mas isso só acontece quando quem está ao teu lado quer as mesmas
coisas que tu.
- Mãe, posso ir ver televisão?
A Carolina levanta-se e limpa a boca com muito cuidado ao guardanapo
de papel, enquanto me fita pacientemente.
- Posso, Mãe?
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- Claro, querida. Mas, primeiro, vai-te vestir que, depois, vamos lá abaixo
ver as vacas e os mémés.
O cotomiço suspira e responde está bem. Pouco depois, ouve-se o barulho
de fundo indistinto, onde gritos e ruídos estranhos se misturam numa cacofonia
sem critério nem ritmo, e vejo-a a mergulhar instantaneamente em estado de
hipnose perante a caixa que mudou o mundo. Não devia deixá-la ver tanta
televisão, temo que lhe paralise o cérebro e lhe atrofie a imaginação, mas talvez
não. E se eu parasse de me culpar por não ser uma boa mãe é que fazia bem.
- Ela está de se comer - comenta a Ana, com um sorriso triste.
- Também vais ter uma, não te preocupes.
- Isso é o que toda a gente me diz, mas eu já não acredito. Nem eu, nem o
Frederico.
- Eu também gostava de ter, pelo menos, mais um... - arrisco, enquanto
como a quarta. - Meu Deus! O que se come no campo! Quarta panqueca!
- Tu vê mas é se tens juízo.
Não resisto a fazer o meu ar típico de menina mimada, quando estou
pronta a cometer uma grande tropelia. A expressão na cara da Ana endurece.
- Ouve lá... tu não estás a pensar....
- Bem, por acaso outro dia o Miguel falou nisso. Levanta-se e começa a
andar de um lado para o outro.
- Mas está tudo doido ou quê? Quem é que esse puto pensa que é, para
falar dessas coisas assim, com, com... com essa leviandade?
- Leviandade? Disseste leviandade?! Ó Ana, isso é uma palavra que já não
se usa, uma coisa de avós!!! - comento, tentando desviar a conversa de uma
inevitável rota de colisão.
- Chama-lhe o que quiseres, mas eu acho que mais vale ser à antiga e chata
do que viver neste caos.
- Qual caos? Eu não disse que estava à espera de bebé, só disse que me
passava pela cabeça, enfim, vagamente - e arrasto a voz quando digo
vagamente para que ela perceba mesmo o que quero dizer - que... talvez...
talvez me apetecesse ter outro filho. E, para a acalmar de vez, remato:
- Nem ando a tentar, nem nada.
- Contigo, nunca se sabe.
Pois não. A Ana sabe que eu fiquei à espera de bebé ao primeiro descuido,
sabe que era tudo o que eu queria, sabe que nem sequer gostava assim tanto do
Pedro. No fundo, ela acha que sou doida.
- Eu não sou doida, Ana. Estou a criar uma filha sozinha, não me meto
noutra igual. E o Miguel não tem nem idade nem cabeça para se meter numa
coisa destas.
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- Então não o metas tu - conclui, em tom categórico.
- Bem, vou acordar o Frederico, e vamos dar um passeio até à vacaria, para
a Carolina ter um banho de campo, achas bem?
Acho bem. Acho que a minha filha precisa de ver ao vivo uma vaca, senão
ainda chega à faculdade a pensar que o leite vem das prateleiras do
supermercado. O que não acho bem é vocês todas passarem a vida a opinar
sobre mim e o Miguel. E se me apetecer mesmo ter um filho do homem que
adoro, o que é que tef?
- Porque é que estás a olhar para mim com essa cara? Não queres ir ver as
vacas?
- Sabes que eu adoro vacas. E ovelhas. E o cheiro a estrume. E porcos...
- Bem, já não vamos tão longe. - E sai da cozinha, deixando-me entre a
mesa de pequeno-almoço para arrumar e uma data de ideias líricas sobre o
amor e a maternidade a boiar no frasco de compota.
Pouco depois, descemos pela encosta do lado direito da casa, andamos por
um carreiro um bom bocado até avistar um aglomerado de casas, onde estão a
vacaria, o curral e as cavalariças, que agora servem de armazém. A Carolina
está cansada. Teve que parar duas vezes durante a caminhada. Vê-se logo que é
uma criança de cidade, que só mexe as pernas da entrada do prédio até ao
carro, e meia hora à tarde, no recreio do colégio. Mas quando ouve o barulho
dos badalos acelera o trote, como os cavalos quando percebem que estão a
voltar a casa. O meu telemóvel começa a cantar afinado o tema da banda sonora
da Missão Impossível.
- Bom dia, pequenina. - O Miguel está com voz de ressaca, a falar
baixinho, como se estivesse com medo de acordar alguém.
- Bom dia, meu querido - e, de repente, as nuvens desaparecem todas do
céu, fica tudo azul, é lindo... - então, como estás?
- Completamente rebentado. Dormi três horas. Fomos a todo o lado e estes
doidos, às sete da manhã, ainda me meteram num after hours.
- Quem corre por gosto não cansa - corto, com alguma ironia.
- Pois é. Mas está a ser fixe.
Irrita-me um bocado quando ele diz fixe. Soa-me a campanha eleitoral de
esquerda festiva. Já ninguém diz fixe.
- Okapa - respondo, para não destoar. Mas ele nem percebe que estou a
gozar. Fixe? Francamente. Um dia destes vou ter que lhe explicar umas coisas.
- E tu e a Carolina? Estão-bem?
- Óptimas. Vamos agora à vacaria dar um banho de cultura à miúda,
senão ela ainda pensa que uma galinha é um Knorr com pernas.
O Miguel ri-se. - És tão querida. - Pois sou.
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- Mas olha que eu também sou... Adoro este mel telefónico.
- E adoro-te.
- Então, porque é que não estás aqui comigo? Isto é tão giro!...
- Mau, não comeces. Bolas, Inês, estás a ficar repetitiva. Essa gaja não te
está a dizer mal de mim, pois não?
- Essa gaja é minha amiga, e não admito que fales assim dela.
- Oh, que susceptível! Eu disse essa gaja, como podia ter dito a Ana, não
percebes?
Percebo. Percebo que tens um medo dela que te pelas, embora estejas
convencido que te estás a cagar para o que dizem ou pensam os meus amigos.
- Está bem. Mas estás-te a divertir, não estás?
- Claro! Já sabes que, quando estou com os meus amigos, é sempre do
caraças.
Esta coisa que os homens têm com o grupo a que pertencem, o espírito da
manada, deve dar-lhes imensa segurança. Nós, mulheres, também devíamos ser
assim.
- Ó mãe, venha depressa, está ali uma vaca bebé! - grita a Carolina que
entretanto já tinha entrado nos estábulos com a Ana.
- Já vou, querida - respondo com a máxima convicção que consigo mostrar
e que neste momento é nula.
- Está bem - responde o cotomiço, encolhendo os ombros.
- Vá. Vá lá ver as vacas - diz o Miguel do outro lado, com doce de
framboesa na voz. - Quando chegar amanhã a Lisboa, ligo-lhe, está bem?
- E não queres dormir lá em casa?
- Sei lá! Porque é que tenho que decidir isso agora? É sábado de manhã,
acordei de propósito para te ligar e dar um beijinho e já me estás a perguntar
onde é que durmo amanhã?
- Sorry - e nem reconheço o fio de voz que soltei. Como se tivesse cinco
anos e me tivessem encontrado na dispensa, a roubar barras de chocolate
amargo para bolos. Mas porque é que eu estou a pedir desculpa? Por lhe
perguntar se quer dormir comigo amanhã? Devo estar a endoidecer.
- Não faz mal - responde o Miguel, como se fosse o meu primo mais velho
que me apanhou na dispensa, e me diz que não conta nada aos adultos se eu lhe
der um bocado. - Agora, descanse e divirta-se. Depois falamos, está bem?
Um silêncio pesado invade o fio invisível. Não sei o que dizer.
- Adoro-te, miúda. Não sejas parva, não estragues tudo, ouviste?
Não, Miguel, eu não estou a estragar nada, eu só tenho saudades tuas e
apetecia-me que estivesses aqui comigo, não percebes?
- Não, Miguel, eu nunca estrago nada. Tudo o que eu quero é estar bem
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contigo e...
- Mas não queiras tudo. Não me peças tudo. Eu já dou tanto.. .
- Eu sei, meu querido. E também te adoro. Vá, agora vai lá dormir mais
um bocado. Beijinhos.
- Beijinhos.
A Ana está especada à porta da vacaria.
- Já acabou a conferência de imprensa? - pergunta, com ar irónico.
Abano a cabeça sem conseguir - nem quero - esconder algum desânimo.
Este miúdo ainda me vai dar muito trabalho. - Anda cá ver isto. - E puxa-me
pela mão.
Lá dentro está escuro e o cheiro não é dos mais fáceis de suportar para
uma citadina retinta como eu. A Ana caminha apressadamente até ao fundo,
onde vejo a Carolina ao colo do Frederico que, por sua vez, está sentado no
chão, os dois a fazerem festas a um vitelo que me parece anormalmente
pequeno.
- É um recém-nascido - explica-lhe o Frederico - Como tu, que eras muito
pequenina... - e continua a falar baixinho. A Ana e eu deixamos de perceber o
que ele lhe diz. A miúda está aninhada ao colo dele, como um caracol que
descobriu uma nova casa. Estão os dois a fazer de conta: ela, que ele é o pai, e
ele, que ela é a filha. Por momentos a Ana fica emocionada, dou-lhe o braço e
saímos outra vez.
Cá fora, o céu cobriu-se outra vez de nuvens. Ou então nunca descobriu,
foi a minha imaginação delirante que o pintou de azul. Agora, está cinzento
escuro e o vento corta-nos a cara.
- Bolas, eu tenho que ter um filho, senão enlouqueço - rosna a Ana entre
dentes.
- Já pensaste em adoptar?
- Ora, à velocidade a que andam os processos de adopção em Portugal,
quando me dessem uma criança, já tinha idade para ser avó.
Caminhamos as duas em silêncio, sem sequer pensar que direcção estamos
a tomar. Devia tentar animá-la, mas não me lembro de nada encorajador para
lhe dizer e nem sequer me sinto muito bem. Acho que, de alguma forma, e sem
que eu perceba porquê, o Miguel se está a afastar de mim. E que esse
afastamento é inevitável e irreversível. E, pior ainda, que a perspectiva disso
acontecer me está a deixar em pânico. Porque é que amar alguém implica esta
entrega, e esta dependência e todo o sofrimento que daí pode vir? Porque é que
não sabemos amar e deixar voar aqueles que amamos? Sempre me orgulhei de
ser uma pessoa equilibrada e liberal nas relações, mas, quando o Pedro se foi
embora, senti-me rejeitada. Quando a minha mãe morreu, foi como se o mundo
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tivesse acabado. E agora, com o Miguel...
A Ana olha para mim e dá-me o braço. - Ele está-te a fugir, não está?
- Não há nada que me diga expressamente isso, mas eu sinto-o a afastarse, assim, muito devagarinho... E o pior é que isso me está a custar imenso...
- Mas tu já sabias que ia ser assim...
- Já sabia, porquê? Só porque ele é mais novo? E a paixão que temos um
pelo outro, não está acima de tudo?
- Inês, ele tem 25 anos, por amor de Deus! Nada, nem ninguém, estão
acima dele, não percebes? Ele é completamente livre, sente-se dono do mundo,
pode fazer da vida dele o que muito bem entender, e com 25 anos, hoje em dia,
ninguém quer casar, ter filhos, nem sequer manter uma relação estável.
- Mas ele está comigo há um ano, e... - E calo-me, para que ela não oiça a
minha voz embargada.
A Ana pára no meio do carreiro. Lá ao fundo, uma linha regular de
choupos dança contra - ou a favor? - do vento, encostada a um riacho que corre
devagar.
- Ele está contigo porque gosta de ti, ninguém põe isso em causa. Mas tu
para ele não representas uma opção de vida. E, no dia em que representares, ele
escolhe não te escolher, e vai-se embora.
- Dizes isso porque o Nuno foi um filho da mãe contigo.
- Não. O Nuno é um filho da mãe, ponto final. Teria sido um sacana
comigo, naquela ou em qualquer outra circunstância. É um cobarde e um
jogador. O Miguel, não. É só um miúdo porreiro e egoísta que quer viver a vida.
E podes ter a certeza que vai vivê-la sem ti.
Tenho o olhar fixo nos choupos, que continuam a dançar ao fundo, e os
ouvidos no riacho. Não quero ouvir o que a Ana me está a dizer, mas tenho que
ouvir. Tenho, de uma vez por todas, de descer à terra e capacitar-me - capacitarme, que palavra mais parva! - que a realidade está muito mais perto do que ela
me desenha, do que sonho em que tenho vivido neste último ano.
- E o que é que vais fazer, quando ele se for embora?
- Embora? Embora porquê? Mas quem é que disse que ele se vai embora?
A Ana encosta-se, por momentos, a um tronco caído, e passa as mãos pela
cara. Está aflita, sinto que me vai dizer qualquer coisa importante. E vai mesmo.
- Então, ele não te disse nada? - Do quê?
- Do prémio que ganhou com o projecto do centro social do Bairro da
Liberdade?
- Não!
Espera, isto é o concurso em que o Frederico o convenceu a entrar com o
trabalho de fim de curso, e que ele não ligou nenhuma.
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- Não me digas que ele ganhou!
- Eu não acredito que ele não te contou!!! Que tipo mais estranho!...
O Miguel ganhou o prémio. O Miguel ganhou o prémio, e não me disse
nada. Não acredito. NÃO ACREDITO.
- Mas quando é que eles souberam?
- Não me lembro, acho que foi esta semana. Ficaram tão contentes no
atelier que até abriram uma garrafa de champanhe. De repente, troncos dos
choupos desdobram-se em dois e começam a avançar na minha direcção, quais
monstros ameaçadores, o barulho da água no riacho torna-se ensurdecedor e as
minhas pernas balançam como duas canas, por isso encosto-me também ao
tronco deitado e começo a respirar fundo, o mais devagar que consigo, sempre
mais devagar, mais devagar ainda...
Ele sempre disse que tudo era temporário. Ele sempre disse que queria
fazer uma viagem, assim que juntasse algum dinheiro. Lembro-me de uma
noite em que entrou em minha casa com o olhar transtornado - não andávamos
nem há um mês -, gesticulando como um doido, a dizer: eu não posso ter uma
namorada, eu quero fazer uma viagem daqui a uns meses, eu não tenho nada
para dar a ninguém e agora apareceste tu, o que é que eu faço, o que é que eu
faço. E eu, como sempre, fui protectora e conciliadora, agarrei-o suavemente,
embalei-o como tantas vezes faço à Carolina e pedi-lhe que tivesse calma, que
havia um tempo e um modo para tudo, que o que andamos cá a fazer é a acertar
o tempo e o modo, que ele podia fazer as viagens que quisesse, que uma coisa
não tinha a ver com a outra, o que não podia era estragar o presente que era tão
bom e perfeito por causa de um futuro hipotético e longínquo. Então o Miguel
abriu o coração e chorou como uma criança, disse que me amava tanto que
tinha medo desse amor, que queria estar comigo mas que tinha medo de não ter
nada para me dar. Disse-me que eu lhe descobrira partes do coração que ele
nem sequer conhecia e desde esse dia nunca mais teve nenhum ataque de
estupidez. Mas agora é diferente. Agora ele tem dinheiro e vontade. Agora ele
já recarregou baterias, já viveu um ano debaixo da minha asa. Ele agora quer
outras coisas, outra vida, outras experiências. E vai, como sempre, fazer o que
quer.
- Não podemos confiar o coração a um animal selvagem - começo a citar,
quase em surdina, alheada de mim mesma, como se a voz não fosse minha. Não podemos confiar o coração a um animal selvagem: quanto mais lhe damos,
mais forte fica. Até ter força suficiente para largar a correr para a floresta. Ou
voar para uma árvore. E depois, para outra árvore mais alta. E depois, para o
céu.
- O que é isso?
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- É do Breakfast at Tiffany's, aquele romance do Truman Capote que deu
um filme com a Audrey Hepburn, lembras-te?
- Mas podia ter sido escrita para o Miguel - conclui a Ana.
Dois anos. Já passaram quase dois anos desde que a minha mãe morreu.
Às vezes, parece que foi há meia hora que estive aqui, neste cemitério, a ver o
caixão descer e as lágrimas que me escorrem pela cara são as mesmas desse dia.
Outras vezes, como hoje, em que o sol se reflecte com uma intensidade
esmagadora nas lápides, vivo a sensação de alguma distância, como se o tempo,
afinal, tivesse mesmo a capacidade de suavizar tudo, até a dor.
Em dias de sol como este, vou visitar a campa ao jardim dos Prazeres - que
nome tão estúpido, como se houvesse algum prazer nos que cá ficam ou
naqueles que a terra vai comendo - quando me sinto tão só que não encontro
respostas no mundo dos vivos, só nas pedras do cemitério onde o nome
esculpido me faz bater o coração, outra e outra vez, mais e mais depressa. A
minha mãe, que me encheu a vida de luz e me deu o melhor amor do mundo,
aquele amor incondicional que as mães guardam para sempre no peito pelos
filhos, e que todos os dias tento dar à Carolina. Como quase todas, foi a melhor
mãe do mundo, mesmo quando estava cansada das nossas tropelias, o Marcelo
e eu a brincar aos índios no corredor com as roupas dela, luvas, saias
compridas, casacos de peles entregues às mãos da barbárie infantil e ela sentada
na sala, a fazer camisolas de tricot para meninos que não podiam ir comprá-las
às lojas como nós, e a suspirar conformada com a sua condição de mulher. O
meu pai sempre fora, em trabalho ou sabe-se lá em quê. As camisas sujas de
baton no colarinho, quando chegava. E ela a fingir que não reparava, fechava-se
no quarto depois de nos ter servido um jantar sempre delicioso, pescada com
batatas a murro, lombo de porco com puré de maçã. Ainda hoje sinto o sabor do
puré de maçã e mordo a boca só de pensar nisso. E um leite creme com corações
queimados. O que estava ali era o coração dela, mas eu ainda era muito
pequena para perceber o inferno silenciado em que ela se fechara. Só quando
ficou doente por carregar tanta dor no peito durante tantos anos, é que me
lembrei dos corações queimados, silenciosos e estóicos, que se partiam com a
colher e se transformavam numa nuvem de açúcar, antes de os devorarmos
com o prazer da gula.
Entro no cemitério e o silêncio dá-me paz, no ar paira o cheiro doce a
mortos e a passado e as minhas botas de salto de metal fazem eco entre as
campas. Vou até onde ela dorme, ajeito as flores artificiais que comprei e que
parecem mesmo verdadeiras, e sento-me ali, no banco de pedra, a olhar para o
nome e a pensar que não tive tempo de lhe escrever uma carta para lhe dizer
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que a amo, que queria que estivesse viva para a poder levar à praia respirar as
ondas e abraçar o mar, que, no dia em que a Carolina nasceu, desejei que fosse
igual a si, minha querida mãe, que a sinto a pairar, à procura do momento certo
para descer outra vez ao mundo dos vivos, e peço-lhe que espere só mais um
bocadinho, peço-lhe que nunca me deixe, que nunca se afaste, que nunca se
esqueça que tem uma filha que a adora, e que, se não fosse a Mãe, eu não sabia
abraçar o mar nem fazer tricot, não sabia o que era amar para sempre uma
pessoa, mesmo que esse amor só sirva para nos encher os dias de tristeza e as
noites de solidão.
A Mãe havia de gostar de conhecer o Miguel. Ele guarda no olhar toda a
doçura de uma criança que nunca há-de crescer, tem uns olhos enormes onde
cabe o mundo inteiro, e eu gosto de fugir para dentro dos olhos dele, umas
orelhas pequenas e perfeitas que cheiram a alfazema - não se ria, Mãe, é mesmo
verdade! -, é magro, tem o cabelo ondulado e a boca bem desenhada, e quando
adormece na minha cama sou inundada - todas as noites, Mãe, todas as noites! por um conforto eterno que nunca senti antes, nem com o Pedro nem com
ninguém, uma proximidade que nunca julguei possível e sempre que fazemos
amor, é como se fôssemos um só corpo. Não sei se a Mãe alguma vez sentiu
isto. Eu sei que amou muito o pai, e que o pai talvez não a tenha sabido amar
como devia - digo talvez porque apesar das zangas e das traições dele, ainda me
lembro de o ver a olhar para si com ar desesperado, com aquele olhar esvaziado
que os homens transportam quando se perdem no amor - mas se calhar não,
Mãe, se calhar é só a minha imaginação a delirar, a desejar ardentemente, para
que a dor seja menos aguda e profunda, que a Mãe tenha sido algumas vezes
feliz com ele como eu sou - ou fui, não sei bem - com o Miguel.
Só que agora não sei o que hei-de fazer, Mãe. Já me dissolvi tanto neste
amor que julgava perfeito, que se o Miguel se for embora da minha vida, já não
me vejo, nem me sinto sem ele. Como se o mundo passasse todo por ele. Acho
que vou demorar muito tempo a aceitar a realidade, se ele não fizer parte dela.
A Mãe deve perceber o que lhe quero dizer, porque sempre viveu para nós e
para o pai. Apesar de tudo, nunca deve ter imaginado a sua vida sem nós, pois
não? É muito mais fácil viver por alguém e para alguém. Os filhos libertam-nos
de nós próprios, e Deus sabe que não há maior prisão do que a nossa própria
identidade. Mas isso é para pessoas avulso como o Miguel, não foi para si nem
nunca será para mim. Tenho a Carolina, e a Ana, e a Teresa, e o Duarte, e o
Frederico. Apesar da distância e da tristeza que ele me dá, tenho o Marcelo.
Tenho agora muitos mais medos, mas ainda vou tendo sonhos. Apetecia-me ter
outro filho e dar-lhe outro neto, apetecia-me que o meu pai se separasse da
estúpida da Elsa, apetecia-me que o Miguel tivesse mais dez anos e o mesmo
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coração, a mesma doçura, a mesma alegria de viver que me alimenta e me faz
sentir que o tempo pode passar sem envelhecermos, que uma relação entre um
homem e uma mulher pode mesmo ser feita só de amor. Apetecia-me fazer uma
viagem com ele, partir de mochila às costas, como fiz com o Frederico, lembrase? Mas, desta vez, para ter muito tempo para olhar para ele, para o ouvir a
recitar-me David Mourão-Ferreira: Deitada és uma ilha/ e raramente surgem
ilhas no mar tão alongadas/com tão prometedoras enseadas... a Mãe conhece
esse poema, não conhece? Tem um fim magistral, exacto, cirúrgico que diz eu
morro da vida que me dás todos os dias.
O meu amor com o Miguel é isto, é só amor, não há mais nada entre nós,
só esta essência que me dá uma paz infinita e me enche o coração de luz. Mas,
se calhar, porque é tão doce e perfeito, talvez não seja possível, como as estrelas
que, por brilharem com mais intensidade, só brilham metade do tempo das
outras, e eu vou ter que me habituar a viver sem ele, mesmo que isso represente
que só consiga separar os dias das noites pela luz do sol, que quase morra,
continuando viva, que os meus olhos, todos os dias, se levantem para o ver
cruzar os céus.
O pai nunca lhe deve ter lido poesia, Mãe, nem escrito no vapor do vidro
da casa de banho São de nada tempestades/ante a falta que me fazes, como faz
o Miguel. Por isso, eu não sei se a Mãe alguma vez foi feliz, mas eu sou - ou fui,
não sei - e não quero deixar de ser, não quero perder o Miguel, já a perdi a si,
não quero, não quero.
O Miguel perdeu a mãe dele quando era muito pequeno. Talvez ele saiba
lidar com a morte melhor do que eu e tenha aprendido a não depender de
ninguém nem a sofrer com a perda. Talvez ele tenha desenvolvido essa
capacidade em muito novo e a tenha interiorizado para sempre, como as
músicas que decorámos na infância e que nunca esquecemos, ou os cheiros que
se colam ao sangue. Mas eu ainda não aprendi. Ainda não aprendi a deixar
partir aqueles que amo, ainda venho aqui falar consigo e pedir-lhe ajuda.
Olho para o relógio e reparo que estou aqui há mais de duas horas. O sol
já desce e o frio arrepia-me. Um quarto para as cinco.
Os mortos fecham às cinco
É a hora em que os cemitérios fecham as portas, disse-me uma vez uma
senhora que costumava vir visitar a campa da filha, aqui mesmo ao lado da
minha mãe. Era muito velha, enrugada e mirrada como uma batata velha e
tinha uns olhos azuis que pareciam ter luz própria. Há algum tempo que não a
vejo. Será que também morreu?
Os mortos fecham às cinco
Levanto-me do banco inóspito e desconfortável e respiro fundo, como se
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acordasse de um estado de transe. Uma brisa inconsistente faz dançar as flores
de plástico, a água já secou e a campa olha-me, silenciosa e cúmplice. Regresso
ao carro com o passo incerto, os saltos das botas soam-me a passos de
fantasmas, entro no carro e ponho um CD dos Lighthouse Family que o Miguel
me ofereceu. A cidade está estranhamente deserta. Por isso, chego ao Campo
Grande em dez minutos e entro no pátio onde a Carolina joga à macaca com
mais crianças.
- O que foi, Mãe? O que é que tem na cara?
- Nada, querida, estou só cansada.
Tenho que parar com esta mania de dizer à miúda que estou cansada,
cada vez que quero esconder a tristeza. Sou uma cretina. Uma auto-piedosa
cretina. Tenho que me controlar.
O Miguel já está lá em casa quando chegamos. Não sei porque é que lhe
dei a chave, mas pareceu-me uma coisa natural. Ele tinha entrado na minha
vida a duzentos à hora, não fazia sen tido bater à porta sempre que ia ter
comigo. Mesmo sem vivermos juntos, já fazia parte da minha vida. A Carolina
salta-lhe para o pescoço e ele agarra-a com toda a força, e, depois, dá-me um
daqueles beijos lânguidos que me deixam a cabeça a andar à roda.
Num instante faço o jantar - hamburgers com batatas fritas e salada para
os três -, arrumo a loiça na máquina, preparo a roupa da Carolina para o dia
seguinte, deito-a e adormeço-a. Regresso à sala onde o Miguel, semiadormecido no sofá, vê o resumo dos jogos de futebol do fim-de-semana. Sentome para que ele possa deitar a cabeça no meu colo, mas ele levanta-se, fecha a
porta da sala, baixa os estores e começa a despir-me.
Deixo-me ir, devagar e depressa ao mesmo tempo, deixo que ele me ame
com a voracidade que tão bem conheço, abandono-me completamente nos
braços dele, e ficamos assim muito tempo, as mãos entrelaçadas e os olhos a
trocar de globos oculares até que o cansaço nos vence.
No dia seguinte pergunto-lhe porque é que não me contou do prémio.
Responde que não é uma coisa importante, mas que está a pensar fazer uma
viagem. Digo-lhe que já sabia e que acho muito bem que ele aproveite o
dinheiro do prémio para fazer o que lhe apetece. Se tivesse a tua idade fazia o
mesmo, remato, num tom mais confiante do que alguma vez julguei que fosse
possível. O Miguel olha-me com aqueles olhos enormes e diz-me és tão querida,
tocado pelo meu entusiasmo com a viagem dele. E, quando ele sai e a porta
bate, deito-me outra vez na cama e tapo a cara com todas as almofadas para não
ouvir o meu choro infantil e inútil. Agora é que é. A minha vida vai mesmo
mudar e eu vou ter que me habituar a estar outra vez sozinha.
- O que é essa cara? - hoje, nem a base, nem o tapa olheiras conseguiram
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fabricar um milagre. O Nuno que nestas coisas nem é mau tipo, mostra-se
preocupado:
- Aconteceu alguma coisa? - pergunta, com um sorriso ansiosamente
amável.
- Nada de especial - respondo, tentando não ser demasiado distante.
Gosto do Nuno e sei que é meu amigo, mas não me apetece partilhar as
minhas derrotas femininas com ele.
- Olha as vendas que chegaram do distribuidor - diz, deixando escorregar
para cima da minha secretária uma folha enorme, cheia de números. - O Victor
continua a vender que nem um doido. Mais de seis mil por mês - comenta,
esfregando as mãos uma na outra.
- És mesmo economista: só pensas na facturação.
- Não - responde, com um sorriso cúmplice - também penso nos novos
valores. Por isso é que hoje vou almoçar com a Mónica.
- Tu não me digas que...
Nem quero acreditar. O Nuno a meter-se com a nova autora da editora.
- Não, não é o que estás a pensar! Quem me dera, mas a miúda está noiva:
o melhor é não a desviar do bom caminho. - Pois, mas se lhe pudesses pôr as
patas em cima...
- Eu, ou qualquer homem. Ela é boa como o milho!
- Ó Nuno, não fales assim dos teus autores!
- Porquê? Até estou a elogiá-la. Além de não ser uma má autora, é uma
autora podre de boa. O que é que queres que eu faça? Boys will be boys.
- Deixa lá. Desde que não te metas com ela, tudo bem. - E, se me meter,
ainda melhor - conclui, com ar de gladiador que acabou de matar um
adversário invencível.
- Eu só gostava de saber porque é que vocês, os homens, precisam tanto de
se afirmar sexualmente para se sentirem seguros. Deve ser uma coisa biológica,
essa necessidade de espalhar o sémen.
O Nuno ri-se com ar complacente.
- Lá estás tu com a mania das generalizações. Eu sei que sou básico e típico
em certas coisas, mas tens que acabar com essa conversa de os homens isto e as
mulheres aquilo. Já não há paciência, Inês. Senão ficas uma chata.
Ele tem razão. Estou a ficar chata e qualquer dia fico velha. - Homens e
mulheres são diferentes, e depois? Se fossem iguais não tinha piada nenhuma,
pois não?
- O que não tem piada nenhuma é seres casado e andares sempre entretido
com outras mulheres. Isso é que não tem piada.
- E quem é que te disse que a minha mulher é uma santa? E, se vivo bem
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assim, porque é que hei-de mudar? Todas as pessoas são diferentes e, acredita,
de uma ou de outra forma, acabam por encontrar o equilíbrio nas formas mais
bizarras de viver. E mesmo que não percebas, lembra-te que somos todos
diferentes.
- Pois somos. Tu adoras a bandalheira e a confusão. Já eu, sou mais
organizada.
E não lhe dou mais conversa. Não vale a pena ter este tipo de diálogo com
o Nuno. Para ele, desde que a pila ande distraída, tudo bem. Merda do sexo:
acaba por ser um poder, mais forte que a beleza, a inteligência, o charme ou o
dinheiro. E, quando entra para o sangue, é muito difícil de sublimar. Como o
Miguel e eu. Não me consigo imaginar na cama com mais ninguém e agora que
ele se vai embora, o que é que vai ser a minha vida sexual? Simplesmente, NÃO
vai ser. É melhor não pensar nisso agora, tenho duzentos telefonemas para
fazer, e a Mónica que vem cá almoçar connosco para falarmos do manuscrito.
- Já leste o manuscrito da Mónica?
- Claro. E não está nada mal. Muitos clichês e uma catrefada de erros de
ortografia, mas o resultado é bom. E gosto do fim, quando a miúda estrangeira
por quem o personagem principal se apaixona decide ser namorada do filho
dele. É um bom twist.
- Mulheres com passado gostam de homens com futuro - respondo eu, a
pensar noutra coisa.
- Pois é. Para quem gosta de brincar às casinhas, como tu e o Miguel. - E
faz uma pausa, põe cara de porteira, e arrisca: - Continua tudo bem entre vocês,
não é?
- Claro que sim. Nunca estivemos tão bem - respondo, com um sorriso
cínico.
A manhã passa veloz e, antes da uma, chega a Mónica com urnas calças
encarnadas que lhe marcam o rabo e uma t-shirt colada, com a barriga de fora.
O cabelo moreno e bem cuidado passa a linha dos ombros e um risco de bâton
marca-lhe a boca grande e carnuda. É aquilo a que o meu pai gosta de chamar
um belo exemplar. O Nuno assume involuntariamente uma atitude de parvo,
desfazendo-se em risinhos imbecis e olhares redondos para a Mónica, que finge
que não percebe o estado de excitação dele e aproveita para mostrar o anel de
noivado. A mim e que não me apanham outra vez nesse campeonato; se
soubesse o trabalho que dá casar, nunca me tinha metido em tal empreitada. E
para quê? Para o outro idiota chegar a casa e dizer eu vou viver com a Sandra. E
eu que me lixe, não é? Por acaso, devia telefonar-lhe um dia destes, a agradecer
o facto de se ter posto a andar. O Pedro era uma couve. Chato, sem imaginação
e sempre armado em bom. O seu a seu dono. Ele ficou com a professora de Tae
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Kwon Do, e eu fiquei com o arquitecto mais talentoso e querido do mundo. Só
que agora vou ficar sem ele...
Vamos a um restaurante mexicano onde o Nuno e a Mónica não se coíbem
de pedir caipiroskas em barda, enquanto discutem animadamente a história, o
que o Nuno gosta mais e gosta menos, acertam a data do lançamento e
agendam as primeiras entrevistas. A Mónica não gosta do tom verde escuro do
fundo da capa, mas o Nuno convence-a a aceitar, explicando que o título é
muito forte e não pode perder o impacto. Mas ela gostava mais de um quadro
do Hopper. Está-se mesmo a ver que a rapariga já foi ao Moma e ficou fã dele.
Por fim, lá se acerta tudo, não sem duas ou três bocas malandras do Nuno,
que não consegue deixar de olhar para o peito dela. E dou comigo a tentar
imaginar como é que é ser homem. Que inferno, só pensam em sexo. Bem diz o
Duarte, que defende a teoria de que os homens quando acordam, a primeira
coisa que pensam é onde é que vão meter a pila. Depois, tomam banho, vão
trabalhar, almoçam fora uns com os outros, fazem desporto e pagam os
impostos. Mas o pensamento primordial e essencial está sempre presente: e
agora? Onde é que vou meter a minha pila? Deve ser isto a vida de um tipo.
Que estafa.
- Tu não descansas enquanto não a passares a ferro, não é, meu malandro?
- pergunto-lhe, depois de a deixarmos num táxi.
- Digamos que já tive vários sonhos eróticos com ela. E se a puder fazer....
E se a puder fazer!!! São mesmo uns animais. Eles pensam mesmo assim!
Fazer uma gaja. Como comer um bife, lamber um gelado, saborear um leite
creme. Bem, sempre é melhor do que comer uma gaja. E dai, talvez não, talvez
seja tudo a mesma merda.
- Ouve lá: quando é que foi a última vez que, além de estares afazer uma
gaja, como tu dizes, também sentiste urna coisa qualquer parecida com amor?
- Não sei... Talvez com a Ana.
A minha alma está parva. Depois deste tempo todo, ele está-me a querer
enrolar. Ainda deve ter remorsos.
- Estás é com remorsos, deixa-te de tangas.
- É verdade. Podes não acreditar, mas é verdade. Pensei em separar-me e
tudo. Só que depois, não aguentei. A Ana tem um feitio insuportável, é
mandona e autoritária. A minha vida ia ser um inferno. Mas gostei muito dela.
A sério - acrescenta, tentando contrariar o meu ar incrédulo.
- Pois. Por isso é que deu no que deu. Hoje, nem se falam.
- Claro. Tu não percebes que, se não tivesse sido uma relação de amor, até
podíamos ser amigos. Íamos almoçar de vez em quando e, quem sabe, até
mandar uma trancada. Há tanta gente que faz isso... Mas quando a coisa é mais
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séria, depois, é muito difícil passar do amor para a amizade. Parece falso,
percebes?
O Nuno a falar a sério sobre coisas sérias e a ser sincero. Estou a viver um
momento único, uma autêntica revelação.
- E ainda pensas nela?
- Claro que penso. Penso imenso e tenho saudades. Os homens nunca se
esquecem das mulheres de quem gostaram. Nunca. Vocês é que são umas
cabras: quando decidem pôr-nos para trás das costas, viram a página e
esquecem-nos mesmo.
- Olha que estás a ficar igual a mim: os homens isto, as mulheres aquilo...
O Nuno encolhe os ombros, revelando algum conformismo e uma doçura
que nunca lhe conheci. Que giro! Se calhar, ele também tem coração como as
outras pessoas. Talvez até seja uma pessoa normal.
- E alguma vez lhe disseste? - Isso é que nunca.
- Mas, porquê? Ela até hoje pensa que nunca gostaste dela!...
- Não sabes que os homens não são bons a verbalizar essas coisas?
- Porquê? Achas que é uma fraqueza confessar amor a alguém? Olha, o
Miguel sempre me disse que me amava e isso nunca o enfraqueceu aos meus
olhos. Pelo contrário.
- O Miguel é um poeta e tem 25 anos, não sabe o que diz. Vocês as
mulheres é que têm que verbalizar tudo. As coisas mesmo importantes não
precisam de se dizer, sentem-se. Se a Ana pensa que nunca a amei é porque é
menos inteligente do que eu pensava. Andei com ela quase um ano, estava com
ela sempre que podia, mas olha, há coisas que não se explicam.
- Claro, vocês têm sempre imensas desculpas óptimas, mas isso é só para
os outros. Quando o Pedro saiu de casa, a Carolina ainda mal andava, e ele não
teve pena nenhuma.
- Claro que teve, não sejas parva. Essa tua mania de achares que nós
somos todos umas bestas, como tu costumas dizer, está-te a estragar. Tens que
parar com isso.
- Ninguém gosta de ser trocada por uma professora de Tae Kwon Do.
- Ninguém gosta de ser trocado por ninguém, essa é que é a questão. E,
aqui para nós, o que te custou foi a rejeição, porque tu nem sequer gostavas
muito do Pedro. Se não tivesses ficado à espera de bebé, nem te tinhas casado.
Por isso, não te faças de vítima, está bem? - E respira fundo, para depois
rematar:
- E a professora de Tae Kwon Do, ao menos, era boa?
- Vai à merda.
A Paula faz a entrada na sala mais oportuna do ano para dizer que o
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Miguel está na sala de reuniões. Com esta informação inesperada, as pulsações
multiplicam-se e levanto-me como um foguetão.
Entro na sala e o Miguel está sentado com um ramo enorme de flores que
me estende desajeitadamente.
- Toma.
Rosas, gladíolos, gerbérias, um pot-pourri de cores e aromas inunda o ar.
- Não quero que te zangues comigo. - Faz uma pequena pausa e respira
antes de continuar. - Vou-me embora daqui a uma semana.
Sento-me, antes que os vidros das janelas com vista para o Jardim das
Amoreiras se partam na minha cara. As pulsações ensurdecem-me, e mal
consigo ouvir a minha voz a perguntar:
- Mas vais já? E porquê? E para onde?
- Para a índia. Vou até Nova Deli e, depois, quero viajar pelo país, ir às
montanhas do Ladak, passar por Goa, ainda não sei bem.
- E quando é que partes?
- Na próxima sexta-feira, dia 9 de Abril.
Estúpido. Dia 10 da Abril faz dois anos que a minha mãe morreu, e ele
nem sequer se lembrou. E, no dia 7, faz um ano que andamos, e ele vai-se
embora. Não, eu não tenho sorte. Eu não tenho mesmo sorte nenhuma.
- Eu não tenho sorte - deixo escapar, muito baixo.
- O que é que disseste?
- Nada, deixa lá...
- Não sejas assim! Eu ouvi muito bem, disseste eu não tenho sorte - e
levantando-se, começa a andar de um lado para o outro - foda-se, porque é que
eu me meti nesta relação? Eu sabia que isto ia dar merda, eu disse-te sempre
que não tinha nada para te dar, tu sabias que eu sempre quis fazer uma viagem,
eu nunca te enganei, bolas! Como é que podes ser assim injusta comigo?
Eu não estou a ser injusta Miguel, estou só a dizer o que penso, mas como
tu só sabes pensar em ti, não tens a mínima ideia do que os outros pensam, não
tens, nem queres ter.
- Vá lá, não reajas assim, como se te estivesse a atirar coisas à cara! Fui
completamente apanhada de surpresa e não percebo qual é a pressa...
- A pressa sou eu que a tenho, não percebes? Bolas, tenho 25 anos, se
continuo assim, perco os melhores anos da minha vida e por mais feliz que seja
- e acredita que nunca amei tanto ninguém, nem fui tão feliz com nenhuma
mulher do que como contigo -, tenho que viver a minha vida, viajar, sentir-me
livre. Não percebes que disso depende a minha sanidade mental?
- Mas eu não te estou a pedir para não ires, pois não? - respondo, quase a
chorar e fazendo um esforço ciclópico para me controlar - eu só não percebo
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porque é que tem que ser já e porque é que isso põe em causa tudo o que temos.
- O que temos não é o que tu queres, nem o que eu quero. Tu precisas de
um marido, de uma pessoa ao teu lado, que te apoie e que, de algum modo, seja
um pai para a Carolina. Eu sou só um puto cheio de ideias na cabeça e com
muito pouco para dar.
- Mas já me deste tanto... - E, sem pensar, agarro-o pelos pulsos e fixo o
meu olhar no dele. - Então diz-me na cara que já não gostas de mim! Vá lá, dizme e eu aceito tudo!
- Não é nada disso! Não tornes as coisas ainda mais difíceis . soltando-se,
vira as costas e diz, sem olhar para trás - depois falamos melhor, quando
estivermos os dois mais calmos.
O barulho da porta da sala de reuniões abate-se sobre mim como uma
explosão. Pouco depois, oiço a porta da rua bater com alguma violência,
seguida de um silêncio mortal. A Paula entra cautelosamente, mas mando-a sair
com um gesto brusco. Pouco depois, o Nuno, com um copo de água e sem dizer
uma palavra, senta-se ao meu lado.
Muito devagar, como se estivesse a pedir desculpa pelo que estou a fazer,
deito a cabeça no ombro dele e choro convulsivamente. O Miguel vai-se embora
para a semana, dois dias depois de fazermos um ano, um dia antes do
aniversário da morte da minha mãe. O Miguel vai sair da minha vida e eu não
sei como é que vou viver sem ele. É que não sei mesmo.
Já passaram dois meses, mas é como se tivessem passado vinte, ou dois
dias, não sei bem. Depois do Miguel ter partido, mergulhei numa letargia
surda, passei a dormir muitas horas por noite e a deixar a Carolina uma ou
duas vezes por semana, em casa da Ana. Há dias em que, simplesmente, não
tenho força para a ir buscar e passar o resto do dia com ela.
O livro da Mónica foi lançado e, com algumas entrevistas aqui e ali, está a
tornar-se mais um sucesso editorial. Adivinha-se já como o grande campeão de
vendas do Verão, o que provocou no Victor um ataque de ciúmes e lhe deu
estímulo para acabar o Céu Cinzento. Isto quer dizer que vamos fechar o ano
em alta, com boas vendas no Natal. Com a Mónica e o Victor já podemos
apostar em autores novos e outro dia fiquei com vontade de conhecer um
miúdo que me mandou um manuscrito divertido, com um título sugestivo:
Quentes & Boas. Uma comédia pós-teenager bem escrita, escorreita e com
bastante garra. O pior é que tem um nome de caramelo, coitado do miúdo,
chama-se Orlando Truta. Ninguém se chama Orlando, muito menos Truta. Um
dia destes, peço à Paula que o mande cá vir. Tem 25 anos, como o Miguel. Será
que é giro? Devia ter juízo e não pensar nestas parvoíces, mas tenho que me
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distrair com alguma coisa.
Para enganar a tristeza tenho lido muitos manuscritos e alguns livros que
me fazem companhia. Descobri novos autores, como o Frank Ronan e o Nick
Hornby, e novos músicos - ouvir os Lighthouse Family a cantar `Cause we are
gonna be/Forever you and me/ dá-me náuseas e vontade de chorar. Por isso, vou
todas as semanas para a Fnac e ponho-me a ouvir tudo o que é novidade, a ver
se algo me distrai. Já descobri uma sueca óptima, chamada Lisa Ekdhal, e o
Chet Baker também me tem sabido fazer boa companhia. O Miguel vai dando
sinal por mail e, às vezes, por telefone, de uma forma irregular e caótica. Nas
entrelinhas, sinto que está a morrer de saudades minhas, e ainda bem. Talvez a
distância nos aproxime, como sempre faz às pessoas quando elas têm alguma
coisa para dar uma à outra. Mas ainda não acordei do estado de profunda
apatia em que mergulhei de forma voluntária quando ele se foi embora.
Magoou-me muito o facto de não ter sequer voltado a ver-me, nem na véspera,
quando, completamente desesperada e fora de mim, lhe implorei que me
deixasse levá-lo ao aeroporto. Recusou terminantemente, não me disse a hora
do voo e ameaçou cortar relações comigo se lá aparecesse.
- Não me podes rejeitar desta forma e por-me assim fora da tua vida gritei-lhe em desespero de causa. Mas ele respondeu:
- Mas eu não te estou a rejeitar. Só estou a viver a minha vida como quero
e a ser honesto contigo. Andámos um ano e nunca tivemos uma discussão.
Tivemos que deixar de andar para nos desentendermos?! Por favor controla-te.
Odeio despedidas. Por favor, aceita o meu amor por ti, e não me cobres nada.
Tenho que ser livre.
E eu tive que aprender a viver com isso. Às vezes, levanto os olhos e vejoo a cruzar os céus, atravessando a vida e o tempo, indiferente a quase tudo,
inexpugnável na sua auto-suficiência feita de razão e de algumas ideias feitas,
que o tempo e a vida se encarregarão, um dia, talvez daqui a muitos anos, de
desfazer. Devia ter estado mais atenta aos primeiros sinais, nas conversas
iniciais, onde, por desconhecimento do interlocutor e pela típica inconsciência
de todos os inícios, mostramos aquilo que somos. No nosso primeiro almoço,
em que me falou dos valores que tinha e que eram apenas dois: a generosidade
e a amizade. Só há poucos dias - dois? cinco? Não faço ideia, pois, desde que
tive que aprender a viver o tempo sem ele, distingo o dia da noite apenas pelo
cansaço - que nunca, em algum momento desse almoço, o Miguel falou de
amor. E, embora o amor seja também feito de uma e outra coisa, é ainda uma
outra, e não me parece que ele alguma vez tenha sabido o que é.
Não quero nem posso ser injusta com o Miguel. Ele amou-me como jamais
alguém me amou, com o corpo, o espírito e o coração, e amou-me muito bem.
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De uma forma franca e doce, dando o melhor de si mesmo, com todos os cantos
arejados do coração, como ele gostava de me dizer. Mas eu vejo um coração
demasiado grande para nele caber uma só pessoa, e demasiado pequeno para a
deixar lá ficar. Vivi lá dentro, faço parte desse estreito núcleo que lhe fez
estremecer o sangue a ponto de o abrir. E deve ser por isso que, quando o
fechou com a frieza que sempre o faz seguir em frente, quase sem olhar para o
que deixou construído atrás, à espera que as raízes se cortem e voem com a
inconsistência de um espantalho no final da colheita, o estrondo ficou a ecoar
dentro da cabeça, instalado em todos os meus sentidos, sem conseguir ainda
perceber porquê.
Acordo todas as manhãs com este zumbido e a certeza que não vais voltar.
Cansada de me convencer que, apesar e acima do teu individualismo estava a
tal inevitabilidade a que nos submetemos e chamamos amor, pensei que, com
todo o amor que sentia por ti te iria suavizar e de alguma forma fazer parte do
teu equilíbrio, tornando-me subtilmente indispensável. Hélas. Nunca pensei
enganar-me tanto. Mas só agora percebo que o teu amor por mim não foi uma
inevitabilidade, mas uma escolha. Alguém que te chamou a atenção e que um
dia decidiste que querias atravessar, com a intuição certeira de um animal
selvagem que procura refúgio temporário, quando está cansado. Sei que não
vinhas a fugir de nada, nem à procura de coisa nenhuma. Mas acho que quando
eras pequeno te arrancaram uma parte de ti, e desde então ficaste incompleto e
perdeste, quem sabe talvez para sempre, a capacidade de adormecer nos braços
de alguém sem que penses no perigo de ficar na armadilha do carinho para
todo o sempre.
Não, o teu amor por mim, volto a dizê-lo, não foi uma inevitabilidade,
mas uma escolha feita com a leveza e a frontalidade com que fazes tudo na
vida. Por isso te foi tão linear - e repara que não escrevo a palavra fácil escolher outro caminho.
Mas não foi assim para mim. Entraste a duzentos à hora na minha vida, e
quando te vi pela primeira vez a passar a porta da minha casa onde viveste
quase um ano quase todos os dias, deixei-me levar por essa inevitabilidade,
submetendo-me a tudo o que depois se seguiu, e chamando-lhe amor. Um amor
total, gratuito, despojado, com o corpo, a cabeça e o coração todos enterrados lá
dentro. Um amor quase visceral, tão certo e evidente que nem por um instante,
a partir do momento em que me afastaste - com a mesma determinação com
que te afastaste há dois meses e te meteste num avião à procura de ti próprio,
do outro lado do mundo - o cabelo da cara com a mão e me começaste a amar,
duvidei que estava ali a certeza, o sabor, a essência do amor.
A seguir, veio a paixão, a proximidade quase irreal de tão leve e
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verdadeira, a comunhão de duas pessoas, tantas e tantas vezes dissolvidas nos
braços uma da outra, sem nunca deixarem de ser elas próprias. Sentia esta
alquimia a crescer a cada dia, estremecendo-me a alma. Saboreava os teus
regressos como momentos eternos e irrepetíveis - e percebi que tinha
descoberto a essência do amor.
Hoje, apetece-me pensar que me enganei, que nunca me amaste, e que, em
vez disso, andaste a brincar, ainda que de uma forma séria. Não foi o Borges
que disse escrevo com a seriedade de quem brinca? Talvez me tenhas amado da
mesma maneira, e isso não devia em nada retirar a seriedade do teu amor por
mim, mas prefiro, num acto da mais torpe e desajeitada sobrevivência, agarrarme a essa ideia feita - tão feita e tão estúpida, meu Deus! - que tenho que gelar o
coração antes de me desfazer enquanto limpo a cara e assoo o nariz, mimada e
inconsolável como uma criança a quem lhe morreu o cão.
Nunca chorei tanto como nos dois últimos meses. Adormeço e acordo com
estes malditos fios colados à cara, que me escorregam até ao queixo e se
encontram num mesmo caminho que vai dar ao mar. A tristeza é um vício e eu
viciei-me nela, meu querido Miguel.
Às vezes, vou passear à beira do rio onde a sua água se mistura com o mar
e dou comigo a pensar que o mar foi feito com as lágrimas de muitas e muitas
mulheres que se dissolveram na sua tristeza até alcançar os oceanos.
Provavelmente, grande parte do que foram evaporou-se, com a implacável
rapidez da volatilização. E eu sei o que isso é, porque perdi a vontade de voar.
Mas, quando olho o ar à transparência, vejo-me feita de pequenas partículas
que esvoaçam perdidas, quase invisíveis e nada relevantes.
De vez em quando a Carolina aproxima-se e pergunta-me se estou
cansada - sempre lhe disse esta mentira estúpida e, um dia, ainda me arrependo
de ter ensinado à minha filha que o cansaço é a máscara da tristeza -, e, para me
distrair, diz-me que sou a mais linda. Hoje, perguntei-lhe quem era a pessoa
melhor do mundo, à espera de a ouvir pronunciar o seu próprio nome e ela
respondeu:
- O Miguel.
O Miguel, que me enchia o corpo, o coração, os dias e a casa, o mesmo que
agora abriu as asas e foi lamber as feridas da sua solidão escolhida, embora essa
sim, inevitável, para muito longe. O Miguel, que eu sei agora, não voltará a
adormecê-la à noite, aconchegando-lhe os cinco anos de medos e sonhos, à
procura de alguém que tome conta dela.
E o pior, Miguel, o pior é que eu também tenho cinco anos e também
queria alguém que tomasse conta de mim. Por isso é que choro e barafusto, por
isso é que me queixo ao mundo, por isso é que bato com os pés e pergunto
72
outra vez porquê.
Arrumei as fotografias numa gaveta que não consigo que seja a do
esquecimento, deixei de tocar os nossos discos - como se estes gestos infantis
me levassem a algum lado, como se te conseguisse exorcizar, que parva! - mas
ficou muita coisa: o teu frasco de perfume quase vazio, a tua escova de dentes,
livros e discos, um cartão que descobri outro dia dentro de um romance do
Kundera, e que dizia:
mon amour l'aventure commence,
e outro ainda, desta vez todo branco, que vinha com um ramo de flores não o último, o da despedida desajeitada, mas outro, quando fizemos seis
meses -, que dizia:
te quiero, obrigado por me teres trazido de volta a luz.
suavizei-te o coração, Miguel, e olha o que fizeste ao meu! Queria tanto
esquecer o teu cheiro, que ainda vive nas almofadas, as noites e tardes na cama,
e o teu corpo cá dentro, e os teus olhos adoçados pelo amor que sentias por
mim, as mãos pequenas, a segurar a caneca de Ovomaltine com três colheres de
açúcar, a Carolina abraçada a ti, a dizer-te:
- Bom dia, Miguel.
Ou então, por vezes no silêncio da noite, chamava-te com um adorável e
mimado fio de voz, para que lhe fosses aconchegar a cama e segredava-te ao
ouvido:
- Eu quero que o Miguel tome conta de mim.
E tantas, tantas outras coisas que me sacodem o coração, metido numa
caixa e fechado no congelador, para não se desfazer e ir ter ao mar...
Estou cansada. Cansada e triste. Cansada de me sentir triste. Triste por me
sentir assim. E o pior, Miguel, o pior é que vivo há muito tempo nesta dor, e,
como estou habituada a tratar a dor como um mal necessário - a morte da
minha mãe deixou-me esse legado eterno - não sei nem quando nem como vou
conseguir libertar-me de ti e limpar-te da minha memória sem contudo te
apagar do meu coração. Sei que tudo tem um fim e que o sofrimento também,
mas agora vejo tudo enevoado, os braços só se estendem para aninhar a
Carolina, que me vê a chorar mais vezes do que devia, ou então para o céu, à
tua procura, no voo improvável de uma ave migratória. E não me apetece sair
de casa nem ver pessoas, só queria era esquecer-me de mim, porque só assim acho eu, na minha viagem alucinada e infantil ao fundo da minha própria dor,
para ver se a mato - conseguirei apaziguar-te dentro do meu peito e continuar a
gostar de ti com a mesma doçura è encanto com que me comovi a primeira vez
que me conquistaste com as tuas palavras, à mesa de um restaurante onde te
disse não me trate por tu que eu não tenho a sua idade no mesmo restaurante
73
onde ainda hoje te procuro, como te procuro nos objectos esquecidos, nos
frascos vazios de perfume, nas fotografias, nos livros que leste - são sempre
infinitas as formas que arranjamos para nos sentirmos perto daqueles que
amamos - te passei a mão pelos ombros e te dei um beijo a pedir-te que fosses
mais velho, que fosses menos egoísta, que juntasses à amizade e à generosidade
o amor, tu, que até sabes amar e não tens medo de nada, que nunca deixaste de
me dar o mundo pelo teus olhos e me disseste para sempre
te quiero, obrigado por me teres trazido de volta a luz.
a luz que agora levaste e que nenhum céu me trouxe ainda de volta,
apesar de, com uma ansiedade adolescente, me ligar todos os dias à Internet
para ver se o mundo me traz apenas um fio de luz, meia dúzia de linhas tuas,
um sinal ténue mas persistente que me diz que de alguma forma te manténs
ligado a mim e que talvez ainda me ames. Há pessoas que vivem mal com o
amor e que, por isso, arranjam formas de o viver na inviabilidade. Tu não
podias ficar aqui comigo, tinhas que te meter num avião e procurar no outro
lado do mundo as respostas que ainda não sabes que carregas dentro de ti e que
sempre lá estiveram. Mas como podes tu saber, Miguel, se tens 25 anos e a
cabeça cheia de certezas e de ideias feitas?
Ainda recordo, como se fosse uma estalada, a frase infeliz que usaste para
te desculpar: que não tinhas nada para me dar. Claro que tinhas, Miguel, e deste
muito. E tudo o que deste, soubeste dar muito bem. Senão, não tinhas ficado um
ano debaixo da minha asa e, se calhar é por isso que outro dia, quando fui
acordar a Carolina para ir ao colégio e lhe chamei mimada e preguiçosa, ela
respondeu:
- O Miguel era muito mais mimado do que eu, estava sempre a dormir ao
colo da mãe e a pedir-lhe mimos.
Não foi fácil explicar-lhe que te foste embora. Ela diz que te viu um dia no
colégio, mas ela olha para fotografias de anúncios de bancos, para revistas de
moda, para reportagens na televisão, aponta o dedo e, invariavelmente, diz:
- Olha o Miguel.
Tal como eu, Miguel, e nem imaginas o que isto me custa. Também ela te
procura em todos os lados, também para ela são infinitas as formas que ela
arranja para te recriar na sua imaginação. Só que, outro dia, Miguel, outro dia,
estava eu a adormecê-la, e disse-me uma coisa horrível:
- Sabe Mãe, às vezes já não me consigo lembrar da cara do Miguel.
E eu acho que ela está a fazer com a tua memória o que tu fizeste com a
memória da tua mãe: a matá-la, mesmo antes dela ter morrido, para que a dor
não se instale.
Eu sei que a Carolina só tem 5 anos e que vai recuperar a tua perda muito
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mais depressa do que eu, mas dói-me vê-la a apontar para cada Peugeot 206
prateado que passa, aponta à tua procura, a cabeça quase que se desatraca do
pescoço na ânsia de te encontrar, para depois voltar a baixar, enquanto
pergunta:
- Mas, afinal, o Miguel nunca mais volta da viagem?
E eu explico-lhe que tu foste em trabalho, mas acho que ela não acredita,
acho que ela sabe, ou pelo menos sente que te foste embora e é por isso que
voltou a fazer chichi na cama.
Tudo isto penso, sem nunca to dizer nos mails, em vez disso mostro-me
interessada na tua viagem, nas aventuras que vais vivendo, nos sítios por onde
já passaste. E nunca te pergunto quando voltas. Sei que, quando decidires
voltar, será por ti e apenas por ti. Agora percebo o que me querias dizer naquele
almoço, quando falavas de generosidade e de amizade. Esqueceste-te de dizer
individualismo. És uma pessoa avulso, Miguel, à procura da tua alma do outro
lado do mundo, e eu tenho-a aqui adormecida nas mãos e não sei o que fazer
dela, porque a tua alma se fundiu, em tempos, com a minha e não consigo olhar
para dentro do meu coração sem te ver lá, mesmo que tenhas escolhido outro
caminho. Os destinos vivem-se como uma outra vida e eu tento todos os dias acredita, porque é mesmo verdade - olhar para os dias e enchê-los sem ti. Mas,
em vez disso, contemplo-os como se não fosse eu a vivê-los, enquanto treino em
surdina um verbo novo, que, quer queira quer não, vou ter que aprender a
conjugar em todos os tempos e modos. O mesmo verbo que me deu força
quando a minha mãe morreu: o verbo aceitar. Aceitar que já me amaste, que
nada é eterno e tudo muda, que a vida é feita de momentos, que devia estar-te
grata por todo o amor que me deste, pela tua frontalidade e sinceridade. Aceitar
que o meu amor por ti não te podia roubar a juventude, aceitar a perda e a
ausência daqueles que amo. Amar alguém é deixá-lo partir, olhar o céu e ver na
dança da lua um momento qualquer em que talvez voltes, sem nada pedir, nem
nunca esperar. Pensei que tinha passado esta prova depois da morte da minha
mãe, mas parece que afinal desaprendi tudo. No amor é assim, desaprende-se a
cada momento e, agora, tenho que voltar a aprender a respirar o ar que já não
partilhamos.
Mas acredita Miguel, que, quase todos as noites ainda sonho com o teu
corpo dentro do meu, vou à índia e persigo-te na terceira classe de comboios
que cheiram a carne podre e a suor, imagino-te sentado num banco de pau de
um cibercafé a mandar-me mails, ou a olhar para uma florista num mercado de
rua; e penso que, se estivesse ali contigo, me compravas um ramo enorme, me
abraçavas e me davas um daqueles teus beijos ternos e infinitos. Não posso
deixar de te reviver na' minha memória, Miguel, pois, doutra forma, sei que
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poderia enlouquecer, e esquecer o prazer de sentir o vento a bater-me na cara, o
sol a queimar-me a pele neste Verão seco e escaldante que já se faz anunciar.
Talvez um dia possa viver de outra forma. Talvez o tempo, ou a vida, ou
as circunstâncias, ou o amor persistente e dedicado de outro homem me
libertem o coração das tuas sombras e me resgatem deste inferno quase
celestial. Mas, agora prefiro viver assim, imaginando o teu regresso eterno e
irrepetível, encolhendo os ombros à vida, fingindo que não desisto dela
enquanto tu não voltares.
- A Paula despediu-se.
- O quê?
- Pois. Custa a acreditar, mas é mesmo verdade. A Paula despediu-se. E
pediu para gozar as férias que lhe faltam já na próxima semana.
De facto, está sempre tudo a mudar na vida. Porque é que ainda me
surpreendo?
- Mas porquê? Para onde é que ela vai?
- Para o Canadá, viver com o namorado.
Está bem. A Paula tem 24 anos e está connosco desde o princípio.
Começou por ser secretária e tornou-se o nosso braço direito: vai à gráfica, trata
dos lançamentos, lê alguns manuscritos, enfim, faz parte da casa. Mas vai
deixar de fazer.
- Que chatice! E agora, onde é que vamos arranjar outra como ela? pergunto, com algum desânimo. Não gosto nada de mudanças. Demoro sempre
mais tempo do que devia a habituar-me a elas.
- Em parte nenhuma - responde o Nuno. - Vamos pôr uma anúncio,
perguntar a meia dúzia de pessoas e escolher uma que aprenda depressa.
- Não nos faltava mais nada.
- Não te preocupes, tudo se resolve.
O meu telefone directo toca. É o Duarte a saber como estou. Digo-lhe que
estou bem, embora ele perceba pela minha voz que há muito tempo que não
atinjo sequer os mínimos olímpicos.
Pergunta se quero que me leve a almoçar, mas eu já tinha combinado com
a Teresa e convido-o a passar lá por casa a seguir ao jantar, para beber um café.
Diz que tem umas novidades giras para me contar. Eu já estou mesmo a ver que
vou ter um serão com histórias macacas dos episódios sexuais do Duarte com as
Cláudias da vida.
A uma passo pela sede do banco da Teresa, e, para variar, vamos às
pizzas. A Teresa está com umas calças largas pretas e um twin set beije, que lhe
fica lindamente. As unhas impecavelmente pintadas de encarnado muito
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escuro, o cabelo bonito, vê-se que viu as mãos do cabeleireiro há poucos dias.
Vem bem disposta como sempre, cheia de energia e com novidades para contar:
os gémeos já falam pelos cotovelos, a campanha da nova imagem do banco está
a ter um sucesso estrondoso e o Vasco está há mais de dois meses limpo, sem
tocar em nada, e recomeçou a trabalhar com o pai.
- Parece-me que, finalmente, me foi dada a possibilidade de viver uma
vida normal - comenta, enquanto se senta e acende a luz da mesa para chamar a
empregada.
- E achas que está para durar?
- Não sei, nem me interessa. Como me ensinaram nos Narcóticos
Anónimos, o que é preciso é viver um dia atrás do outro. E depois, logo se vê. Já
só quero que o dia de amanhã seja igual ao de hoje.
Pedimos uma pizza Casanova, uma Vegetariana e dois chás frios.
- E tu, como estás?
- Bem.
- Mesmo?
- Vá lá, não me apetece falar nisso.
- E o inominável, tem dado notícias?
Desde que o Miguel se foi embora que a Teresa optou por o designar desta
forma. Assim, não tenho que dizer palavrões - explicou-me - é mais simples e
dá muito menos trabalho.
- Sim, de forma irregular, mas, digamos... consistente.
- Cabrão.
- Não sejas assim.
- Inês, esse puto é um cabrão, e tu ainda não te convenceste disso.
- Não é nada. Tem 25 anos e quis viver a vida dele.
- Não. Tem 25 anos e é um egoísta de merda, que se esteve cagando para a
mulher de quem ele dizia que gostava e para uma criança de 5 anos.
- Acho que estás a ser injusta. O Miguel nunca me mentiu, nunca andou
com outras, ou agiu comigo de forma incorrecta. E, quando achou que não tinha
mais nada para me dar, e que a vida dele não passava por mim, foi-se embora.
- Pois. E, agora, não te larga, não te deixa viver. - Eu também não quero
viver.
- Não sejas parva. Agora inventas uma depressão só porque ele se foi
embora?
Sem que eu própria me aperceba, começo a chorar. Talvez ela tenha razão.
Mas a forma violenta e pragmática como expõe os factos dá-me cabo dos
nervos, que já estão à flor da pele. A Teresa fica aflita, pega-me na mão e
debruça-se sobre a mesa.
77
- Desculpa. Não queria ser bruta. Mas é que não aguento ver-te assim por
causa de um puto lunático e pretensioso. Enerva-me, e acho completamente
absurdo.
- Eu também acho - respondo, enquanto passo a ponta dos indicadores
pelo canto dos olhos tapados com os óculos escuros que tive o bom senso de
pôr, assim que, involuntariamente, a torneira abriu.
- Ouve... Eu sei o que é que o Miguel foi para ti, sei como gostavas dele e
como te sentias bem com ele, mas isso agora acabou, percebes? Ele, foi-se
embora há mais de dois meses, já se deve ter enrolado com meia dúzia de
miúdas da idade dele, que também estão convencidas que foram dar a volta ao
mundo. E tu, o que é que fizeste? Choraste, dia sim, dia sim, desligaste-te do
mundo, e, sem dizer nada a ninguém, decidiste esperar por ele. Achas que isso
é vida?
Se o Miguel a ouvisse agora, nunca mais lhe falava. - Tu também sempre
esperaste pelo Vasco...
- O Vasco sempre esteve comigo, temos dois filhos e, depois dos miúdos,
ele é a pessoa mais importante da minha vida. O Miguel esteve um ano contigo,
Inês, um ano! Viveste 35 anos antes dele e viverás mais 35 depois dele. O
mundo não acabou com o Miguel, minha querida. Ele foi uma etapa, uma
pessoa que te fez feliz e que, agora, já não tem nada para te dar. E tu não podes
viver abraçada ao passado, senão esqueces-te da Carolina, dos teus amigos e,
pior do que tudo isso, de ti própria.
Faz uma pausa para beber um pouco de chá.
- Estou a ser muito má? Queres que pare?
- Continua.
Eu sei que ela tem razão, sei que não me adianta muito ouvi-la, sei que
vou demorar tempo a digerir tudo. Mas também sei que, por mais que me custe
a sua franqueza, isto é bom para mim, por isso tenho que aguentar.
- Esse miúdo que tu tanto idolatraste só porque era “muito esperto”, como
tu dizias, é uma pessoa completamente banal, tão banal que até teve que ir fazer
uma viagem para não parecer banal. Percebes o que te estou a dizer? Ele teve a
maior experiência da vida dele quando andou contigo, abriste-lhe a cabeça e o
mundo, e, depois, ficou um pavão, um pavão que se encheu com as tuas penas
e ficou convencido que era o maior e que o mundo estava à espera dele. Mas
não passa de um limitado, de... olha, isso mesmo! De um atrasado emocional!
Há os atrasados mentais, não há? O Miguel é um atrasado emocional.
- Mas ele gostou mesmo de mim... - respondo, já totalmente derrotada.
- Viu-se... Se gostasse mesmo de ti, tinha ficado ao teu lado, não se tinha
ido embora. Nós, os pseudo-intelectuais que lemos muitos livros e vamos muito
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ao cinema é que temos a mania que o amor tem que envolver sofrimento,
espera, abnegação, sacrifício. E para quê? Para perdermos tempo e
desperdiçarmos energia. O homem certo é aquele que quer ficar mesmo com
aquela mulher e a mulher certa é a que quer mesmo ficar com aquele homem. E
o resto é conversa.
- Mas ele era especial. Era uma pessoa muitíssimo inteligente e...
- E de que é que te serviu a inteligência toda dele? Para te dar a volta à
cabeça e ficares completamente desarmada quando Sua Excelência decidiu ir
viajar. Serviu-te para alguma coisa?
Podia explicar-lhe que o Miguel me ensinou a ser feliz, a gostar de viver
com outra pessoa, a cozinhar a melhor massa de salmão do mundo, a fazer sexo
e amor ao mesmo tempo, a reconhecer a Cassiopeia e Ursa Menor, a estar de
mão dada horas a fio, a dormir agarrada a outro corpo, a divertir-me com as
mais pequenas coisas da vida. Mas não tenho energia. Por isso calo-me. De
qualquer maneira, a Teresa ia achar tudo coisas sem a menor importância.
- Olha - continua embalada, enquanto devora com aplicação pequenas
fatias de pizza - se soubesse o que sei hoje, não me tinha apaixonado por um
tipo inteligente como o Vasco. Quanto mais inteligentes, mais problemáticos.
Ou são uns inadaptados que não aguentam este mundo cão em que vivemos e
por isso metem-se na droga ou no álcool, ou então, são uns perversos, como
essa criatura que nem quis que tu fosses ao Aeroporto despedir-te e, uma
semana depois, já te estava a mandar mails. Se soubesse o que sei hoje tinha-me
apaixonado por um daqueles tipos de camisa azul forte, género vendedor, que
estão sempre a contar anedotas e para quem está sempre tudo bem. É que para
densa, basto eu. E tu.
De repente, começo-me rir. Ela é boa. Ela é mesmo muito boa. Se
almoçasse todos os dias com ela, curava-me da Miguelite em três tempos.
- Eu acho que tu devias fazer psicoterapia.
- Não preciso. Venho almoçar contigo duas vezes por semana, e o efeito é
o mesmo.
- Mas, para isso, tens que ouvir o que te digo e deixar de perder tempo a
fantasiar com o impossível, ouviste?
Nesse momento, alguém passa por detrás do meu lugar e senta-se na mesa
contígua à minha. Não o reconheço imediatamente, mas, quando ele me dirige
um como está tímido e sorri dente, reconheço o pai das três miúdas que
encontrei há meses, no Jumbo.
- Olá... É o... Filipe, não é?
Vem sozinho. Está com um polo alaranjado e calças de ganga. A um dia de
semana, será que este tipo não trabalha?
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- Lembra-se do meu nome! - responde, com um sorriso rasgado. - E como
está a... Carolina, não é Carolina, a sua filha?
- Bolas! Como é que se lembra?
- É que a minha mais velha também é....
Preparo-me para continuar a conversa, quando intercepto o olhar crítico e
curioso da Teresa, mas o Filipe já se inclina sobre a mesa para lhe dar um aperto
de mão formal, mas cordial.
- Desculpe, sou o Filipe Almeida, conheci a sua amiga no hipermercado.
Ele disse conheci a sua amiga no hipermercado, e, provavelmente, nem
sequer se lembra do meu nome. Sim, senhor, que lindo diálogo! Se alguém nos
ouvisse, ganhávamos o Campeonato dos Diálogos mais Bimbos do Ano.
- Fez muito bem - responde a Teresa, que é a pessoa com mais à vontade
que eu conheço -, é um sítio tão bom para conhecer pessoas como outro
qualquer. Queres sobremesa? Então, são dois cafés, se faz favor.
O dito Filipe senta-se, finge que não está a prestar atenção à nossa
conversa e pede uma salada caprese e uma calzone. Abre o jornal “A Bola” e lê
atentamente um artigo sobre o Luís Figo. Como se ainda houvesse alguma coisa
a dizer sobre ele.
A Teresa e eu saímos rapidamente, primeiro porque, como sempre, ela
está a atrasada e depois porque está mortinha por me perguntar coisas sobre
um tipo sobre o qual, para grande tristeza dela, não sei absolutamente nada.
Achou-o giro e, de repente, dá-lhe uma dor de barriga e desaparece outra vez
para dentro do restaurante, voltando dois minutos depois com um ar menos
congestionado.
- Há coisas que não podem esperar - comenta, magistralmente, ao entrar
no carro. - É giro, o tal Filipe.
- Não acho.
- Claro. Como estás cega e te fizeram uma lobotomia, só o inominável é
que é giro, não é, minha linda? - E, soltando um suspiro que podia ser de uma
fadista muito rodada, daquelas que têm uma tasca com pretensões a fina na
Madragoa: - Deus me dê saúde e paciência.
Abro o carro com o comando à distância e a Teresa fica por momentos a
olhar, maravilhada com o brinquedo novo.
- Muito bem, sim, senhora. Andamos a subir na vida. Que giro! É novo?
- É. Tinha que fazer uma coisa qualquer para ficar menos triste, e olha...
- Não te chegava ter ido ao cabeleireiro rectificar o tom das madeixas, não
foi, minha doida? Tinhas que comprar um Peugeot 307 novinho em folha, não
era?
- Pois... E já viste os estofos em beije? E a caixa de cinco CD's à frente?
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- Muito bem. Parabéns. E então, agora, carro novo, vida nova, ou nem
tanto?
- Há de ser. Há de ser. Tudo a seu tempo.
E despedimo-nos com um abraço rápido e cúmplice.
À tarde, pomos o anúncio para uma assistente editorial e rezamos para
que não nos apareçam 257 atrasadas mentais. Isto sem a Paula não vai ser fácil.
Só até ao fim do ano temos mais seis lançamentos, quatro dos quais autores
estrangeiros em ascensão de quem o Nuno teve o bom gosto de adquirir os
títulos, na Feira de Frankfurt, e eu vou ter que andar a fazer de guia turística a
uma chilena, dois irlandeses e uma alemã nos próximos meses: mostrar-lhes o
Mosteiro do Jerónimos, o Palácio da Pena e o diabo a quatro.
Quando olho para o relógio, são quase seis e, mais uma vez, voo
literalmente pela cidade no meu carro que ainda cheira a novo, ao som da Lisa
Ekdhal, que canta I will be blessed para ir buscar o cotomiço que vem sujo,
esfolado e com dores de barriga. A caminho de casa, o meu telemóvel toca, e
vejo no visor um número desconhecido.
- Estou...
- Sim - respondo, num tom neutro. Não gosto nada de atender chamadas
de pessoas de que não faço a mínima ideia quem são.
- É a Inês?
- De quem é esta voz?
- Quem fala?
- Desculpe estar-lhe a ligar.... é o Filipe.
- Qual Filipe?
- O pai da Carolina... que conheceu há uns meses no supermercado... hoje
encontrámo-nos nas pizzas..
A vida, apesar de tudo, ainda me vai conseguindo surpreender. Só muito
de vez em quando, mas às vezes acontece.
- Ah! - E fico calada, não consigo dizer mais nada.
- Desculpe estar-lhe a ligar, mas a sua amiga deu-me o seu número...
A Teresa é uma doida. Doida varrida. Deve ter-lhe dado o meu número
quando foi à casa de banho. Se calhar, nem foi e inventou tudo só para lhe dar o
meu telefone. Meu Deus, está tudo maluco?
- Não está aborrecida de eu lhe ter ligado, pois não? Aborrecida, que
polido. Ele não disse chateada, disse aborrecida. Será do género que também
diz conduzir em vez de guiar, viatura em vez de carro e serviço em vez de
trabalho? Brrrrr, espero que não. - Não, não fiquei aborrecida - respondo.
- É que, quando ela voltou a entrar no restaurante, eu estava a pensar em
sair para lhe pedir o número e, olhe... foi isto. - Ó mãe, quem é ? - interrompe a
81
Carolina, que é mais curiosa que um gato.
- É aquele senhor - Meu Deus, eu disse senhor? Não devo estar boa da
cabeça! - que tem três filhas, que conhecemos no hipermercado, lembras-te?
- Se calhar, não é uma boa altura para falar. Eu também fui agora buscar as
minhas filhas... Posso ligar-lhe mais tarde?
Mas o que é que este tipo quer? Fará parte do DA - Divorciados
Anónimos? - uma categoria inventada por mim, em analogia com os NA e os
AA, só que nunca fiz reuniões nem distribuí panfletos.
- Pode... se quiser - respondo, com uma distância calculada, para que ele
não se entusiasme muito, mas também não ache que estou a ser hostil.
- Então... depois eu ligo e... podíamos almoçar um dia destes... já sei que
gosta de pizzas.
- Logo se vê - e, antes que a conversa caia num vazio absurdo, despeço-me
de forma simpática, mas definitiva.
- Como é que ele se chama, mãe?
- Filipe - respondo, alheada da realidade, tentando perceber o que se
passou.
- É o nome do Príncipe que é o namorado da Bela Adormecida, pois é?
Aquele que lhe vai dar um beijinho para ela acordar, depois de estar mais de
100 anos a dormir, pois é?
Pronto, acabou o sossego. A Teresa, a minha filha Carolina e o mundo
decidiram em conjunto arranjar-me um namorado. O Duarte aparece às dez e
meia, depois de eu ter adormecido a Carolina, que pediu mais uma vez para lhe
contar a história da Rapunzel - ainda me perguntou se o príncipe da rapariga
das tranças compridas também se chamava Filipe, mas não lhe dei conversa -,
prepara dois Jamesons e começa a contar as suas últimas proezas sexuais na
noite de Lisboa. A sua última conquista chama-se Alice e acabou de chegar de
Londres, onde trabalhou como assistente numa editora. Para ver se vale a pena
e também para conhecer a peça - a curiosidade feminina é infinita - digo-lhe que
ma mande à editora. Quem sabe, pode ser que tenha qualificações para
trabalhar connosco.
- O teu sócio vai gostar dela de certeza. Tem umas óptimas mamas remata o Duarte. E, perante o meu olhar fulminante, emenda a mão. - Não,
agora a sério, ela é desembaraçada e porreira, pode ser que seja boa para vocês.
No dia seguinte, a Alice telefona às dez e mandamo-la vir ao meio dia.
Chega com uma saia travada preta e uma camisa cor de laranja, tem uma cara
simpática - embora o piercing na sobrancelha me provoque uma estranheza
permanente - tem experiência na área e anda à procura de trabalho numa
editora. Combinamos dar-lhe a resposta no final da semana quando, depois de
82
quatro dias a entrevistar raparigas confusas e desarticuladas com menos
neurónios do que um goraz acabado de pescar, nos rendemos à evidência e
ligamos à Alice, que bate palmas de contente do outro lado da linha e aceita
começar mesmo antes da Paula se ir embora. Está tão entusiasmada que nem
discute o ordenado, e o Nuno e eu respiramos fundo e achamos que afinal tudo
se resolveu mais depressa do que estávamos à espera.
Em casa nessa noite recebo mais um mail do Miguel, que me avisa que até
Goa é pouco provável que encontre um cibercafé. Mas sinto-lhe as saudades a
atravessarem as linhas que leio e tenho outra vez vontade de chorar. Porque
sinto que nem o tempo nem nada me vai ajudar a esquecê-lo tão cedo, pelo
único e simples motivo que, apesar de dar toda a razão à Teresa, é mesmo
verdade que o coração tem razões que a razão desconhece, e prefiro guardar a
memória triste do Miguel no meu coração do que sentir que não amo ninguém.
Não tem que se amar alguém para se ser feliz, pois não? Eu sei que não
devia ter acabado com a Inês daquela maneira brutal, sobretudo depois de tudo
o que vivemos juntos. E eu gostava mesmo dela, se calhar ainda gosto, mas é
melhor não pensar nisso. Mais valia nunca ter começado a andar com ela. Eu
sabia que isto podia acontecer mas, como sempre, deixei-me ir. Pensei: que se
lixe, logo se vê, e quase destruí a pessoa de quem mais gostei em toda a minha
vida. Mas tinha que ser. Tinha mesmo que ser, ou ficava ali preso até ao fim da
vida. Qualquer dia ela queria ter filhos e, depois, o que ia ser de mim? Pai, aos
25 anos? Nem pensar: só se quisesse endoidecer e transformar a minha
existência num inferno de fraldas e obrigações.
Sempre lhe disse que não tinha nada para lhe dar, que tudo era
temporário, que um dia me ia meter no avião e desaparecer. Ela sabia desde o
início que o amor era apenas um acidente de percurso na minha vida.
Ontem mandou-me um mail a chamar-me atrasado emocional, explicando
que a Teresa era a autora da “brilhante” designação. E que tinha conhecido um
tipo chamado Filipe, mais velho, com três filhas. Se calhar, é a pessoa certa para
ela. Pode-lhe dar segurança, estabilidade, um pai à Carolina - sim, porque o
imbecil do Pedro fazia menos vezes de pai da miúda do que eu. Encontrar um
tipo à altura dela e ter tudo o que ela merece e que é mesmo tudo. Claro que me
mandou o mail só para ver se me irritava. Já eu, que sou um senhor, nunca lhe
disse que fiz a viagem até Londres e de Londres para Nova Deli com uma doida
que tinha conhecido quatro dias antes no Algarve. Para quê magoá-la? Foi uma
coincidência. A maluca decidiu acompanhar-me até à índia e gozar uma
semana de férias que ainda lhe faltava. A gaja dava-me uma tesão monstra, e a
ideia de viajar com uma desconhecida atraía-me, como se emprestasse à minha
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viagem um toque ainda mais aventureiro. Mas não volto a cometer um erro tão
crasso. A gaja era de estalo e, ao fim de dois dias, a queixar-se do cheiro da rua,
da miséria que não aguentava ver, dos condutores de riquexó e de tudo e mais
alguma coisa, mandei-a à merda. Ainda me fez uma cena de choro e pontapés à
porta do hotel, e eu sem saber se havia de lhe partir a cara ou não, tal era o meu
ódio por ela. Um tipo come duas vez uma gaja, e isso dá-lhe obrigação de
alguma coisa? Ela é que se meteu debaixo de mim, no Algarve e depois, quando
soube que eu ia, e estava de férias, decidiu ir no mesmo voo. Não contente com
a perseguição, inventou mais uma semana de férias e foi até Nova Deli. Faltou
ao emprego três dias e foi despedida. Os ingleses não brincam. Nem queria
acreditar quando a meti num táxi a cair de podre para o aeroporto e, desde
então, só recebi dois mais dela: um, a dizer que tinha perdido o emprego por
minha causa, e o outro, a anunciar que ia regressar a Portugal e que nunca mais
queria ouvir falar de mim. Como se eu quisesse saber se estava viva ou morta...
Que seca! As mulheres são um bicho mesmo estranho. Estranho, chato e
perigoso. O Paulo bem se lixou: a Kátia deixou-se levar num penalty que tenho a certeza - não foi um acidente. Estava-se mesmo a ver. E aquela banana
com olhos, a mandar-me um mail todo contente, a anunciar que vai ser pai. Pai
aos 24 anos, quando ainda nem sequer acabou o curso. Claro que tem as costas
quentes. O pai tem massa que nunca mais acaba. Deve ter sido por isso que a
Kátia “se distraiu”. Ainda não casaram, e o pai do Paulo já lhes comprou um
andar na Parede com vista para o mar, e ofereceu-lhes uma lua de mel nas
Caraíbas. Há tipos que nascem com o rabo virado para a lua.
Olho para este céu, e não reconheço as estrelas. Mas a lua é a mesma,
cheia, imensa e tenho saudades do corpo da Inês, do cheiro da sua pele, do
cabelo liso e comprido, de lhe morder a boca e agarrar as mãos. Não sinto falta
dela. A vida ensinou-me a não sentir a falta de ninguém, a aceitar a perda e a
morte com um sorriso cínico e um conformismo quase inato, e deve ter sido por
isso que me tornei neste bicho estranho que a Inês se encarregou de monstrizar
depois de me ter vindo embora, numa tentativa desesperada de me limpar da
sua existência. Queixou-se de mim ao Rodrigo, quando o encontrou na rua por
acaso e foram beber um café. Falou mal ao Pedro e ao Paulo quando deu de
caras com eles no cinema, como se eles lhe tivessem feito algum mal e mandoume mails devastadores em que saltavam frases como estalos na cara, do género
entraste e saíste da minha vida com a leviandade de uma puta, explicando-me
que estava triste e magoada, acrescentando tiradas literárias e com intencional
pendor dramático, como amei-te demais para não te odiar e outras parvoíces do
género. Tenho a certeza que se me visse agora, me enchia a cara de estalos.
Palavras que destilavam raiva, uma raiva que nunca lhe conheci e que me fez
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imaginá-la diferente, menos doce e perfeita. Ou, então, preferi pensar assim
para, de alguma forma, viver melhor o esquecimento. Não que a queira apagar
da minha vida, gostava mesmo de a conseguir guardar de alguma forma. Mas,
desta forma, vai ser muito difícil.
O Duarte mandou algumas notícias, a dizer que ela estava bem, que só a
achava triste por causa da miúda, que, ao que parece, passa a vida a perguntar
por mim, e isso irritou-me, fez-me sentir um pulha, um estúpido, um atrasado
mental. Nunca devia ter-me ligado tanto à Carolina. No fundo, fiz-lhe o que a
minha mãe me fez. Não, estou a exagerar; isto é a merda do remorso a tomar
conta de mim. Eu não sou nem nunca fui pai dela e a Inês sabia que riscos
estava a correr.
Serviu-me de lição. Sou uma pessoa avulso, não tenho laços nem bens
materiais, sou despojado de tudo. Para mim, contam apenas o meu pai, os meus
irmãos, três ou quatro amigos. E a Inês. Mas, agora, quero esquecer o que vivi
com ela: é fácil, sou muito bom a fazer exercícios de abstracção. Basta pensar só
no melhor que vivemos juntos e apagar o resto, a memória não me vai atraiçoar.
Hei-de saber sempre lembrá-la com a doçura que merece e a distância a que a
imponho para não acordar todos os dias de manhã, olhar-me ao espelho e ver,
na imagem reflectida, um atrasado emocional. Estúpida, tocou-me mesmo no
ponto. Ela conhece-me melhor do que ninguém, foi a ela e apenas a ela que
revelei a minha natureza dócil. Mas não o devia ter feito, devia ter-me mantido
resguardado debaixo da minha carapaça, como sempre fiz desde miúdo.
Deve ser isto o amor. Dá-nos a capacidade de sermos nós próprios, ao
mesmo tempo que nos tira o medo. Sempre pensei que nunca tive medo de
nada nem de ninguém, mas, agora, quando olho para trás e a vejo a estenderme os braços como uma criança, às vezes, acho que ainda és mais pequenina
que a Carolina às vezes, sou.
Apercebo-me que foi com ela que perdi o medo de amar e de me entregar
a alguém, o que nunca tinha feito desde a partida da minha mãe. E, pior ainda,
nunca tinha querido, ou podido, ou sabido fazer.
A Inês resgatou-me os afectos, devolveu-me o coração, mexeu com a
minha vida de uma forma que nem ela própria imagina, e é por isso que, apesar
de todas as guerras que ela queira encenar, só a consigo lembrar com doçura.
Como se, ao esquecê-la, perca outra vez o meu lado mais humano.
- Conseguimos!
- O quê???
- Conseguimos. A Ana está à espera de bebé.
As pernas começam a tremer, de repente fico toda arrepiada.
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- A sério?
- Claro que é a sério - responde o Frederico, completamente eufórico.
- E já passaram mais de dois meses.
- Então, quer dizer que... naquele fim-de-semana em que fomos para o
Alentejo, ela já estava...
- Ou já estava, ou ficou nessa altura.
Que giro, vem aí um bebé. E, quando ele nascer, vou-me lembrar que
estive sempre perto dele, mesmo quando não passava de um feijão
microscópico. Um bebé, que bom! Era mesmo disto que eu estava a precisar,
para me animar um bocado.
Desligo emocionada, cheia de vontade de chorar. Não sei porquê, mas
acho que, desta vez eles vão conseguir, desta vez vai dar mesmo tudo certo.
Selecciono no visor o número da Ana para lhe ligar, mas, nesse exacto
momento, o telemóvel toca. É o Filipe. Tem-me ligado de vez em quando, para
me convidar para um concerto de música clássica ou para outros programas
culturais simpáticos, mas recusei sempre, não porque não me apetecesse ir, mas
porque, já agora, quero ver até que ponto ele é persistente. Mergulhei num
torpor letárgico e estou a habituar-me a ele. Já me chega o esforço diário que
tenho que fazer com a Carolina para lhe tentar - pelo menos tentar - transmitir
que está tudo bem. Mas hoje estou tão contente por causa da Ana e do
Frederico, que sou eu que lhe pergunto se quer almoçar. O Filipe nem deve
estar a acreditar, porque pergunta se é hoje e agora, e respondo-lhe com um ar
óbvio claro que sim, e combinamos encontrar-nos à uma e quarto, num
restaurante de comida espanhola ao pé do jardim das Amoreiras.
Quando vou ligar à Ana, entra-me a Alice de rompante pelo gabinete.
- A Inês desculpe, mas é que está lá fora um autor que diz que marcou
uma reunião consigo.
Olho para a agenda e não tenho lá nada. De repente, lembro-me daquele
cartaz muito estúpido que diz, em letras cada vez mais pequenas: A falta de
sexo torna a sua vista curta, ou qual quer coisa do género, e penso até que ponto
o sexo ou, neste caso, a falta dele, me anda a complicar o sistema. Chego à
conclusão que muito pouco. Tem piada, quando andava com o Miguel, nunca
passámos mais de três dias sem sexo, e agora, desde que ele se foi embora, nem
tenho pensado nisso. Devo estar a perder qualidades.
- Inês....
- Desculpa, estava distraída, aqui a ver a agenda, mas não tenho nada...
Como é que se chama o tipo?
- Orlando Truta.
O Orlando Truta! O autor do Quentes & Boas! A Alice está com cara de
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quem acabou de comer um chocolate.
- Porque é que estás com essa cara?
- É que ele é uma brasa!...
- O Orlando?
- Sim.
Orlando Truta. Podia ser o nome do assistente do Mandrake. Olho para o
relógio, e é meio-dia.
A Alice está visivelmente excitada com o aparecimento inesperado deste
candidato a autor. Observo-a disfarçadamente: a cara não é bonita - e aquele
piercing ainda me faz confusão -, mas é alta, do género boazuda, tem o rabo
espetado e um peito grande e direito. Além disso, é bem disposta, arranja-se de
forma discreta e trabalha bem. Esta geração comeu papas que eu não comi, de
certeza absoluta. Coitados dos rapazes que vivem na rua dela, não devem ter
uma vida nada fácil.
- Ok, leva-o para a sala de reuniões e diz-lhe que tenho um quarto de hora
para falar com ele.
A Alice sai da sala a trote. Demoro propositadamente mais cinco minutos,
só para o deixar à espera, e escovo o cabelo num gesto de vaidade mecânica.
Orlando! NINGUÉM se chama Orlando, muito menos se nasceu depois dos
anos 80. Espero que o rapaz tenha um petit nom qualquer.
Entro na sala com cara de directora de campo de férias e estendo-lhe a
mão.
- Inês Ramos, directora editorial - e, apontando para a mesa, com o mesmo
tom seco e profissional: - Sente-se.
E rio-me para dentro. Directora editorial, que parva! Só trabalha comigo o
Nuno, a Alice e o contabilista, que vem uma vez por mês. Isso faz de mim
directora de mim própria. É como aquele poema genial do O'Neill: diz-lhe que
estás ocupado/ a entrevistar-te a ti mesmo/mesmo porque se não/ o pões
desde já porta/fora tás quilhado...
- Boa tarde, obrigado por me ter recebido. É que passei aqui perto e, como
ainda não recebi nenhuma resposta da vossa editora, resolvi bater à porta. Sabe
como é: quem tem boca, vai a Roma - remata o assistente do Mandrake.
Será que esta rapaziada lê o O'Neill? E o Jorge de Sena? E o Al Berto?
Devia fazer um inquérito aos hábitos de leitura do jovem, mas, em vez disso,
cedo à personalização da coisa.
- E como é que sabia o meu nome?
- Não sabia. Mas, agora, já sei. Inês.
Gosto da maneira como ele pronuncia Inês. Por que será que gostamos
tanto de ouvir o nosso próprio nome? Que giro que ele é. Alto, de pele e olhos
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claros, cabelo liso castanho claro, tipo Ethan Hawke. Não pode ter mais de 22
anos.
O meu ar de directora de campos de férias reverte-se em cara de monitora
entusiasta.
- E além de querer ser escritor, o que é que faz?
- Estou em Medicina. No quarto ano.
Sim, senhor, um estudante. Isto faz-me sentir velha. Saí da Faculdade há
mais de dez anos: é uma violência pensar nisso. - Por acaso já leu o manuscrito?
- Sim, dei uma vista de olhos - comento com a máxima distância que
consigo. - Não é mau. A história é boa, o fio narrativo está bem construído, mas
as personagens estão um bocado rudes, estereotipadas...
Que maldade. O manuscrito dele está ao nível do da Mónica, que
lançámos agora e que se está a revelar um sucesso de vendas muito razoável.
Podia publicá-lo já, mas, se me ponho a editar toda a gente que aparece com
potencial, onde é que vou parar?
- Se fosse a si, trabalhava um bocado mais sobre o que já está feito. Olhe
para o que escreveu como um esboço e trabalhe as situações, invista mais na
construção dos personagens.
- Vou fazer isso mesmo - responde, com um sorriso tímido, e eu vejo uma
fileira de dentes imaculados e perfeitos que podiam fazer trezentos anúncios
para pastas dentífricas.
Olho para o relógio, para lhe dar a ilusão que estou com pressa.
O assistente de Mandrake promovido a estrela de Hollywood levanta-se e,
sem saber muito bem onde pôr as mãos, diz:
- Bem, Inês... Então... não lhe roubo mais tempo.... Muito obrigado por me
ter recebido... Vou fazer o que me disse.
- Faz muito bem. E apareça daqui a dois meses. Mas, para a próxima vez,
marque mesmo uma reunião, está bem?
- Claro, desculpe. É que resolvi seguir o meu feeling. Quando tinha a tua
idade, também passava a vida a seguir os meus feelings. E, geralmente,
acertava.
- ... e como, geralmente, acerto...
Mau! O rapaz não é assistente do Mandrake, é mesmo o próprio mágico, a
adivinhar o que me vai pela cabeça.
- Ia dizer alguma coisa? - pergunta, com o ar mais inocente do mundo.
- Ia. Oiça lá, você não tem outro nome qualquer, uma alcunha?
- Tenho. Pode chamar-me Kiko.
- Kiko, com cê ou com kapa?
- Kapa. Sempre com kapa. Okapa.
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- Desculpe?....
Ai, será que disse mesmo Okapa, ou só pensei? Não, tenho a certeza que
só pensei. Estou a ficar um bocadinho confusa, vou mas é pô-lo a andar.
O Kiko despede-se com outro aperto de mão e promete voltar em breve
com um novo manuscrito, e eu saio da sala de reuniões com a sensação que
afinal o mundo é um sítio bestial, cheio de gente engraçada para conhecer, e
que a vida não acabou quando o Miguel se foi embora. Passo à frente da
secretária da Alice, que pergunta:
- Então?
- Era mais um candidato a autor.
- Qual é o manuscrito dele?
- O Quentes & Boas.
- A Inês não se importa que eu o leve para casa para o ler?
- Claro que não.
Quentes & Boas. Como esta miúda. Nem sei como é que o Nuno ainda não
se meteu com ela. Diz que é muito nova, e que as miúdas muito novas estão
sempre em zapping, não têm fio condutor e que, por isso, dão imenso trabalho.
O Nuno tem-se revelado um amigo encantador, atento, cuidadoso e muito
querido. Quase todos os dias me traz um presente para o escritório - um
chocolate, uma flor, um cartão divertido, uma amostra de perfume, e já fomos
jantar duas ou três vezes. E o melhor de tudo é que não existe entre nós
nenhuma tensão sexual, somos só e apenas amigos, o que para mim neste
momento já é tudo. Acho que fui injusta e reconheço agora que, na altura em
que me envolvi estupidamente com ele, afinal só lhe fiz o que tanto critico nele,
no Duarte e em tantos outros homens. Usamo-nos todos uns aos outros e
chamamos a isso amor. E, quando já não nos podemos usar uns aos outros
chamamos a isso ódio. Não que, em algum momento, me tivesse passado pela
cabeça envolver-me a sério com ele, mas agora, enquanto desço a rua para ir ter
com o Filipe e a pensar no Kiko - chamar-lhe Kiko torna tudo muito mais fácil,
mais viável, seja lá o que for - apercebo-me que o amor é uma coisa e a vida é
outra, e que ainda preciso de aprender a viver melhor, sem depender tanto dos
outros para me sentir, senão feliz, pelo menos, confortável. Se não fosse tão
dependente do meu amor pelo Miguel, não teria sofrido tanto com a sua
partida, quando afinal ele continua próximo, nem que seja através das palavras.
Mas eu quero mais, quero ter uma vida normal. Ainda acredito que uma vida
normal me podia fazer feliz, e é completamente embrulhada nesta e noutras
ideias que chego ao restaurante onde o Filipe, já sentado à mesa, me espera com
uma ansiedade bem disfarçada. A cara abre-se num sorriso aberto e tranquilo
assim que me vê, e, um quarto de hora depois, já estamos a falar de crianças,
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colégios, férias, cinema, música. Tudo por tu, como se já nos conhecêssemos há
anos e, sem darmos por isso, o tempo passa num instante. Observo-o
meticulosamente, qual bactéria vista ao microscópio. Tem pinta, embora as
entradas e as rugas à volta dos olhos lhe denunciem a idade. A voz pausada e
tranquila traz-me um conforto inesperado - e não pôs demasiado perfume, o
que só joga a favor dele. É um tipo discretíssimo, dos pés à cabeça. Quando nos
levantamos, reparo que não é muito alto, mas tem os ombros bem alinhados e,
ou me engano muito, não tem barriga. Por uma questão de bom gosto e
educação, não entramos em conversas íntimas e despedimo-nos de forma
cordial e calorosa.
- Telefona-me - peço-lhe, enquanto me afasto devagar.
- Está bem. Mas só se aceitares os meus convites.
- Claro que aceito.
- Então... eu depois ligo, está bem?
E afasta-se com um passo sincopado, os braços muito direitos, como dois
ponteiros para a frente e para trás, qual soldado de chumbo. Espero que não
caia da janela, não vá parar a um esgoto e não seja engolido por nenhum
peixe(!!!).
Subo a rua com um novo alento e, quando chego à editora, o Nuno atira,
triunfante, com um gráfico para cima da minha mesa.
- Vês? Por causa da Mônica, o Victor despachou-se, e estamos com o Céu
Cinzento e com o Cala-te por Favor nos tops. Olha as vendas do distribuidor.
Isto é o máximo! - E esfrega as mãos como um traficante de escravos que acabou
de vender uma Elle Mc Pherson a um sultão bilionário. Muito bem. Em três
anos, construímos uma empresa sólida, e o meu sócio, afinal, não só é uma
máquina a trabalhar como se revelou uma óptima pessoa. A Ana e o Frederico
vão ser pais. A Carolina prepara-se para entrar para a primeira classe, e tenho
um tipo interessante e engraçado, interessado em mim. Um não, dois; porque,
às quatro, o Kiko liga a perguntar se quero ir beber um copo com ele, hoje, à
noite. Teria sido assaltada por um ataque de riso, se não tivesse ficado tão
perplexa.
- Um copo??? Mas você não está bom da cabeça!!!
- Porque não? Só porque sou mais novo? Não me diga que tem
preconceitos com a idade...
Não rapaz, mas a última vez que dei corda a um da tua idade, apaixoneime perdidamente e só agora estou a levantar a cabeça. Por isso, gato escaldado
da água fria tem medo.
- Ainda está aí?
- Estou.
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- Oiça, eu sei que isto pode não lhe parecer muito ortodoxo, mas apeteceume, e como costumo fazer o que me apetece....
Onde é que eu já ouvi isto?
- Se eu tivesse a sua idade, também fazia.
- Vá lá, não seja maternal, eu sei que o que vou dizer lhe vai soar ridículo,
mas costumo ter este problema com as mulheres, porque só me interesso por
mulheres mais velhas e a minha idade é sempre uma chatice...
Que lata! Esta nova geração não deixa de me espantar. - Isso quer dizer
que está interessado em mim, é?
- Quer dizer que me apeteceu ligar-lhe e, como é óbvio, não tem nada a
ver com o manuscrito que lhe enviei. Mas, se calhar, estou a perder o meu
tempo e o seu, por isso, peço-lhe imensa desculpa...
Agora está a fazer o género do ofendido, a ver se tenho pena dele. Mas
não vou ter.
- Tem toda a razão, Kiko. O melhor é ficarmos por aqui - e desligo, com
“mixed feelings”. Acho que foi a primeira vez, desde que o Miguel se foi
embora que me custou dar uma tampa. Mas tinha que ser. Um tipo mais alto,
mais giro e mais novo que o Miguel, era só o que me faltava. Não estou com
estrutura para aguentar outro espertalhão que me fascina pela sua inteligência e
precocidade e, daqui a seis meses, descobre que quer ir para missionário na
Amazónia. O Nuno é que tem razão: esta é a idade do zapping, estão sempre a
mudar de canal. Podem ser muito estimulantes, mas nada é consistente.
O telemóvel toca outra vez e a palavra chamada aparece a piscar no visor,
o que indica uma chamada internacional.
- Olá, Inês...
Meu Deus! É o Miguel! É O MIGUEL. O MIGUEL ESTÁ-ME A LIGAR DO
OUTRO LADO DO MUNDO. - Miguel!... Meu querido!... Como é que estás?
Onde é que estás agora? - pergunto, completamente em transe, sem disfarçar a
emoção.
- Cheguei ontem a Goa, e isto é tão bonito que me apeteceu ligar-te.
- Que bom!....
- Estás bem?
- ... estou... não, a sério, estou mesmo bem.
- E a Carolina?
- Está óptima. Estás a gostar?
- Estou. Imenso.
- E quando é que voltas?
Estúpida, estúpida, estúpida. Eu NÃO podia ter feito esta pergunta.
- Não faço ideia... porquê? Já não está zangada comigo e quer-me dar
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beijinhos, é?
Cala-te, meu idiota. Não me comeces a manipular com a tua doçura.
- Não....
- Não está zangada ou não me quer dar beijinhos? Estúpido. Está a falar
comigo como se eu tivesse cinco anos, me tivesse roubado uma boneca, a
tivesse devolvido, e nada disto tivesse a menor importância.
- Mais ou menos.
Silêncio do outro lado. Adoro esta resposta. É óptima, dá para tudo e
deixa as pessoas desconcertadas. Mas o Miguel está a perder a paciência.
- Bem, já percebi que ainda não consegues ter uma relação normal comigo.
Se soubesse não te tinha telefonado. Manda um beijinho à Carolina, não te
esqueças. Adeus.
E desliga. Assim, sem mais nem menos, na minha cara, como se eu
pudesse ligar-lhe outra vez, como fazia quando se irritava comigo e sabia que
dois minutos depois, ou um ou outro ligava. Mas agora não lhe posso telefonar.
O Miguel já não está ao alcance da minha mão. Está em Goa, chateado comigo
porque eu ainda estou chateada com ele. Isto é o cúmulo! O que é que ele estava
à espera? Que, depois de tudo o que se passou, eu lhe falasse como se nada
fosse? Será que fui muito seca? Não, não posso ter sido. Nunca fui seca com ele,
sempre o tratei com demasiada brandura e esse foi, de certeza - e só agora é que
me apercebo, que burra! - um dos meus erros. Devia ter sido menos branda,
mas habituei-me a fazer tudo para que ele nunca se zangasse comigo, sempre
com medo de o perder. E onde é que isso me levou?
Passo o resto da tarde a tentar concentrar-me em orçamentos, guias de
remessa das gráficas, gráficos que o Nuno me passa, estimativas de vendas,
ensaios de preço e provas de capa para os próximos títulos. Quase em vão. A
voz do Miguel, a cara do Miguel, o cheiro do Miguel regressam à minha pele e
ao meu coração, e sinto que estou tão apaixonada por ele como quando se foi
embora. O amor é sempre assim: começa por um fio inconsistente de paixão e
atracção e, quando damos por isso, já nos esmagou com a sua força e
persistência. Eu TENHO que deixar de gostar daquele diabo viajante. Mas
como? Como é que se esquece alguém? Como é que se apaga a memória dos
sentidos? Como é que se lava a alma e se limpa o coração?
- Ferida de cão só se cura com pêlo de outro cão - responde a Teresa, num
fim de tarde de sexta-feira, na qual decidimos não ser mães - o Pedro foi buscar
a Carolina, e os gémeos estão em casa com a Maria - e nos apeteceu ir às
compras para um centro comercial e gastar dinheiro em lingerie, colares e
écharpes, e mil e uma pequenas coisas que só servem para nos torrar o cartão
de crédito e dar à alma um magro conforto.
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- O quê?
- Isso mesmo. Arranja um gajo, e vais ver que isso passa.
- Estás parva? Não estou disponível para me envolver com ninguém...
- Mas quem é que falou em envolveres-te??? Eu disse um gajo, não disse
um namorado, pois não?
- Estás doida.
- Pois estou. Mas feliz.
Deixo cair das mãos uma carteira de pano, daquelas com bordados de
flores, tipo neo-hippie, que se usam este ano.
- Tu não me digas que...
- Exactamente - e vi-a mexendo na secção dos colares como se nada fosse.
- Tu... tu... tu arranjaste um amante?
Amante. Que palavra mais foleira, mas foi o que me saiu.
- Pois arranjei.
- Então, e o Vasco?
- Tu sabes há quanto tempo é que o Vasco não me toca por causa da
porcaria da heroína?
- Não.
- Então, nem queiras saber. Mas olha que já aguentei mais do que podes
pensar. Só que agora fartei-me.
- E... vais-te separar?
A Teresa pára à minha frente e começa a dar-me marteladas leves na
cabeça com os nós dos dedos.
- Hello! Is there anybody home? Estás maluca, ou quê? As pessoas que estão
na loja observam-nos e riem-se.
- Está quieta! - peço-lhe, perdida de riso, enquanto lhe afasto a mão.
- És mesmo uma romântica incurável. Por acaso ouviste-me falar de amor,
paixão, ou uma coisa do género?
- Não. - Então...
Então, a Teresa tem um amante e está feliz da vida, e não sei por que é que
estou tão espantada. Fico contente por ela.
- Bem, então, nesse caso... espero que seja bom para ti....
- Olha, querida, mau não é de certeza.
- E quem é o feliz contemplado?
- Se te contasse, nem acreditavas.
- Try me.
- Ok. Mas prometes que não contas a ninguém, nem à Ana, está bem?
- Está bem. Mas o que é que pode ser assim tão estranho para não se poder
saber?
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- É um segurança lá do banco.
- Um segurança?! Daqueles que usam farda e tudo?
- Sim, desses.
- Que fino!!! A directora de marketing de caso com um segurança daqueles
que estão à porta e nos pedem o bilhete de identidade.
- Ele não é desses. Faz a segurança da administração.
- Ok. Pertence a uma força especial de elite!!!
- Estás a gozar, mas já esteve na Legião Estrangeira.
Isto é lindo! A minha melhor amiga, respeitável mãe de família, abnegada
esposa, nora ideal, com uma carreira invejável e dona de casa perfeita, tem um
amante que é segurança. Se lesse isto num livro, achava um recurso imaginativo
de péssimo gosto, mas a vida é sempre outra coisa, não é? E sempre muito mais
divertida do que qualquer ficção.
- Muito bem. E como se chama o guerrilheiro?
- Américo.
- Vespúcio? Como o outro que descobriu a América?
- Não. Mas descobriu-me a mim. E olha, até estou bastante satisfeita com
isto.
- E tu consegues chamar-lhe Américo?
- Bolas, Américo é pior que Orlando.
- Ainda não lhe arranjaste uma alcunha?
- Mais ou menos. Chamo-lhe estupendo.
- És o máximo.
- Não sou nada. Sou só uma mulher, e estou farta de ser perfeita,
percebes? E tu também devias estar. Tens que te distrair, mas estou a falar de te
distraíres a sério, não é passares a vida a fazer programas com o Nuno e o
Duarte, que é como se fossem teus irmãos. Arranja um tipo qualquer e vai-te
divertir. Um tipo ou mais. Quando uma mulher não ama um homem, gosta de
vários, não é? Li isto em qualquer lado e acho que faz sentido. Vive a vida,
miúda. Vais ver que um bocado de disparate te vai fazer bem.
Regresso a casa com cinco sacos de compras. Já nem me lembro bem do
que é que está lá dentro, entre camisolas, dois pares de sapatos e uma carteira.
Tenho uma vaga ideia que comprei mais umas coisas, mas nem me lembro bem
o quê. O caso da Teresa com o combatente da Legião Estrangeira deixou-me
estupefacta. E se eu ligasse ao Truta? Consulto a minha lista de chamadas
atendidas do telemóvel, e o terceiro é um número que não conheço. Deve ser
este. São oito e meia, estou sozinha, a Carolina só vem no domingo, e não me
apetece ir outra vez para o Alentejo com o casal perfeito. Podia ligar ao Filipe,
mas ia parecer que estou desesperada, ou muito interessada, ou as duas coisas,
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o que, neste caso, não interessa nada porque nem sequer é verdade. Também
podia ligar ao Nuno, mas é sexta-feira: deve estar em casa com a mulher. Ou
então ao Duarte. Mas não. Vou ligar ao Truta.
Uma hora depois, sentamo-nos à mesa de um restaurante de comida
brasileira, onde a picanha, segundo o Kiko, é uma especialidade. Como tive
algum tempo para me arranjar, resolvi experimentar se ainda sabia brincar às
mulheres sexy, e parece-me que o resultado não foi mau. Umas calças pretas
justas, botas de salto alto e uma camisola encarnada de gola alta sem mangas
com uma boneca estampada à frente, o cabelo lavado e bem escovado, bâton,
rimmel e um toque de blush, e pareço outra.
- Parece outra - comenta o Kiko, disfarçando o nervosismo com a carta à
frente da cara, por cima da qual só consigo ver uns olhos claros, brilhantes, de
uma cor indefinida.
- Tens olhos de gato - deixo escapar, não sei se sem querer, ou não.
- Já me disseram isso.
Ok. Temos um rapaz da nova geração, convencido de que é o máximo.
- De gato pardo.
- Antes pardo que parvo. Além disso, à noite, todos os gatos são pardos.
- E quase todos parvos.
- Pois.
Senhores telespectadores! Bem vindos a mais uma sessão do concurso
“Quem é o Mais Engraçadinho do Mundo!!” O concurso de todos os
portugueses e para todos os portugueses, onde mostramos como é divertido ser
português! Contem piadas, anedotas, façam trocadilhos e podem habilitar-se a
ganhar um carro ou uma viagem ao Oriente! Oriente? Mau, isso é que não era lá
muito boa ideia...
- Viaja muito?
- Sempre que posso. Geralmente no Verão, depois dos exames; às vezes,
na Páscoa. Depende do que tenho que estudar. E a Inês?
Gosto mesmo da maneira com ele diz o meu nome.
- Dantes, viajava mais. Agora, com a Carolina, a minha filha, é mais difícil.
- Que idade tem?
- Quem? Eu ou a Carolina? O Kiko ri-se.
- A Carolina. Acha que me importo com a sua idade? Decido não
responder.
- Tem cinco.
- Que giro. Tenho uma irmã com seis anos, do segundo casamento da
minha mãe.
- Então a sua mãe deve ser novíssima.
95
- Tem quarenta. Tinha dezoito quando eu nasci. Não é bem mãe, percebe?
Foi sempre uma espécie de irmã mais velha... se calhar, é por isso que as
mulheres mais velhas me fascinam tanto...
Mau. O rapaz já deu Freud na Faculdade e daqui a um bocado, está-me a
contar uma aventura tórrida com uma amiga da mãe.
- Oiça... estive a reler o manuscrito hoje à tarde e vou mesmo trabalhá-lo a
sério, mas gostava que a relação que eu venha a ter consigo, seja ela qual for,
não tivesse nada a ver com o que vai acontecer com o meu livro. Quero mesmo
separar as águas, percebe?
Percebo. Percebo que me estás a cantar a canção do bandido, mas vou
fingir que não percebo.
- Claro, Kiko, não se preocupe. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
E, diga-me lá, qual foi a última viagem que fez? - Fui a Praga e a Budapeste, no
fim do Verão passado. Muito giro.
- E a próxima?
- Ainda não sei. Talvez vá a Moçambique. Ou, então, à índia.
Mau. Deve estar na moda, com certeza. Há dez anos, ia tudo para o
México, agora é isto.
- O que é que foi? Também quer vir?
Malandro. Estás habituado a que tudo te corra bem, não é? - Não,
obrigada. Ainda me cruzava com o meu namorado. Ex-namorado.
- Ah...
E fica calado. Que estúpida! Por que é que disse isto? É ridículo e, além
disso, não há nada que irrite mais um homem do que ouvir uma mulher falar
de outros homens, sobretudo dos ex-qualquer-coisa. Mas o Kiko não se
desmancha.
- E isso acabou há muito tempo?
Podia ter sido há um ano meu caramelo, que era a mesma coisa. Não
percebes que quando se gosta mesmo, o tempo não conta?
- Há uns meses.
Olha, afinal, minto bem. Foi há dois meses e não há uns meses, o que faz
toda a diferença. Uns meses podem ser cinco, sete, dá a ideia de muitos, e foram
mesmo poucos, mas está bem assim.
- E tu, há quanto tempo não tens namorada?
- A sério, há dois anos. Andei um ano com uma rapariga, mas depois
chateámo-nos.
- E quem era?
- Era uma advogada. Devia ter a sua idade. Está-me a provocar.
- Você nem sabe a minha idade.
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- Sei, sei. Mais de trinta e menos de quarenta. Chega perfeitamente.
- És sempre assim tão seguro?
- Não. Sou só sincero. É um hábito que não quero perder. Mas vais perder.
Com a idade, vais perder isso e outras coisas.
- Posso tratá-la por tu?
não me trate por tu que não tenho a sua idade. - Disse alguma coisa?
- Não.
- Então? Posso?
- Claro que podes, Kiko. De qualquer maneira esta coisa do você não faz
sentido nenhum.
- Ainda bem. É que te achei tão séria, lá na editora...
- Lá, estava a trabalhar. Aqui, estou-me a divertir.
- E estás mesmo?
Outra vez aquele brilho nos olhos à Ethan Hawke. - Estou, claro que estou.
O jantar voa. Pratos e pratos de picanha, arroz, feijão preto, farofa e couve
mineira, aterram na mesa. As caipiroskas puxam pela coisa, e há mais de seis
meses que não comia tanto, nem nada me sabia tão bem. O Kiko conta histórias
de viagens, da mãe, da irmã mais nova, dos amigos, da faculdade, de quando
começou a escrever, fala do manuscrito e de outros projectos, fala do pai que é
médico, e eu vou ouvindo, falando o menos possível da minha vida e puxando
por ele.
A seguir, para continuar na onda transatlântica, rumamos a um bar onde
se toca música brasileira ao vivo, continuamos na senda das caipiroskas e já
estou completamente grossa. Mas não me importo nada. Estou viva outra vez,
estou bem disposta, tenho uma óptima companhia ao meu lado e não sei como
e que vou acabar esta noite, mas também já não estou nada preocupada. Como
é que a Teresa disse? Quando uma mulher não ama um homem, gosta de
vários, não é? Parece-me que estou a gostar deste.
Vinte e dois anos é isto. Apanham uma bebedeira e no dia seguinte
levantam-se para ir fazer jogging. É o zapping.
Olho em volta e reconheço o típico quarto de rapaz solteiro: uma televisão
enorme, vídeo e DVD, colunas e uma aparelhagem, revistas de carros, meias e
sapatos por todos os lados. O Kiko procura umas meias e uns ténis no meio da
confusão e enfia uns calções colados que lhe ficam a matar. É tão giro... - Vives
sozinho?
- Não, vivo com o meu pai. Mas ele está fora, num congresso, só volta na
quarta-feira, por isso fica à vontade. Eu volto já. E sai, com um sorriso
triunfante. Levanto-me, procuro a casa de banho e uma toalha lavada no
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armário, tomo um duche rápido e saio de casa dele. Estou mesmo doida, isto
não pode ser. O fim da noite é uma amálgama de imagens desfocadas e sons
difusos, sem o menor sentido. Só de pensar nisso, começa-me logo a doer a
cabeça. Será que me passei completamente? E se fui para a cama com ele, e
estava tão grossa que nem me lembro?
Já na rua, lembro-me que não tenho carro e não reconheço o bairro onde
estou. Entro num café, e pergunto a medo ao empregado onde é que há uma
praça de táxis, mas o empregado, de bigode fino e óculos, responde, impassível:
- Só lá em baixo, junto à igreja.
- Qual Igreja?
- A Igreja da Ajuda, menina.
Obrigada, já me ajudou muito.
Ligo ao Duarte, que está providencialmente a tomar o pequeno-almoço
junto ao rio, e peço-lhe para me vir buscar, depois de lhe ter dado o nome de
uma rua de que nunca ouvi falar, e ele também não. Um quarto de hora depois,
apanha-me na esquina e leva-me para casa.
- O que se passa, miúda?
- Fiz um disparate, mas não me faças perguntas agora. Depois, conto-te.
A noite teria sido perfeita se tivesse vindo dormir a casa, mas estava tão
bêbeda que o Kiko me trouxe para casa dele e me deitou sem eu dar por nada.
Diz que foi ele que me enfiou esta sweatshirt que tem a bandeira americana e
me deixou dormir, mas olho-o desconfiada, de manhã, quando me acorda com
um leve toque da mão na minha cara. Sinto-me idiota e vulnerável. A dormir
em casa de um estranho de quem não sei absolutamente nada. Devo estar
completamente doida.
O Kiko levanta-se do lado de fora da cama e percebo que deve ter
dormido do outro lado: as almofadas estão amassadas e cheira a sono. Tem uma
t-shirt branca com a gola coçada e uns slips pretos, apertados, até metade das
coxas.
- Estou doida - digo baixinho.
- Não estás nada. Apanhaste uma bebedeira, e tive que te trazer para casa,
foi só isso. Olha, fiz café e tens pão na cozinha, se quiseres fazer umas torradas.
Vou fazer um jogging e já venho, está bem?
O Duarte ri-se, e pergunta-me se preciso de alguma coisa, mas eu só quero
a minha casa, o meu quarto, o sossego e a protecção do meu lar. Quando entro
na sala e vejo a fotografia da Carolina, dou comigo a pensar que raio de mãe
sou eu que se apanha sozinha num fim-de-semana, e acaba a noite em casa de
um estranho. E se ele fosse um assassino? Um psicopata? Um serial killer? Abro
um armário e tiro uma embalagem de Corn Flakes. Lembro-me da anedota do
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alentejano no meio de um campo de trigo, convencido de que era um Cereal
Killer, e desato a rir à gargalhada no meio da cozinha. Sou uma estúpida, uma
cretina, uma inconsciente. O melhor é desligar o telemóvel e dormir o resto do
dia, esquecer a noite e rezar para que o Kiko não me volte a ligar. Ou, então,
rezar para que ele nunca mais deixe de me ligar. Sei lá o que pensar disto tudo.
Dói-me a cabeça, as costas, as pernas, quero dormir e esquecer-me que afinal
não sou tão bem comportada como pensava que era.
Ao fim da tarde finalmente levanto-me, tomo outro banho, aqueço uma
sopa e ligo o telemóvel. Nenhuma mensagem. Será que o Kiko ficou chateado
por me ter vindo embora? Se fosse comigo, ficava. Por isso, é possível que sim.
Abro o computador e ligo-me à net. Tenho um mail do Miguel à minha espera.
Um mail longo, amargo, provavelmente escrito depois da nossa curta e
estúpida conversa de ontem à tarde. É sábado de tarde, estou com frio e
cansada, espera-me uma noite solitária. Tudo o que eu não queria era um mail
agressivo do Miguel, a chamar-me infantil, mimada, autopiedosa, a acusar-me
de não saber lidar com a realidade, a atirar-me à cara que não me deve nada e
que nunca devia ter andado comigo, a portar-se como um imbecil sem coração.
A solidão está a amargá-lo cada vez mais, leio e releio as palavras, e já não
reconheço o Miguel por quem me apaixonei, que vivia na minha casa e brincava
com a minha filha, que me aquecia o coração e me fazia sentir que era a miúda
com mais sorte do mundo, porque era outra vez uma miúda, nada me pesava e
tudo parecia tão fácil, tão certo, tão simples e tão bom...
Num fôlego, respondo-lhe da mesma moeda, e deixo-me levar pelas
palavras, a raiva contida de semanas e semanas explode e choro ao mesmo
tempo que escrevo. Autopiedosa, compulsiva, paralisada pelo meu próprio
medo, como ele me disse. Pode ser que sim, mas, se nunca há só uma visão para
a mesma realidade, chegou o momento dele levar com a minha visão, de a
engolir e a digerir do outro lado do mundo, sozinho, mesmo que as minhas
palavras sejam como bofetadas. Agora já não quero saber, já não tenho medo de
o perder, porque já o perdi há muito tempo, só que ainda não tinha querido
aceitar tal evidência. As palavras atropelam-se nas teclas, trocam de lugar no
écran, estou possuída por uma febre de raiva e tristeza e dor e não sei mais o
quê, mas estou-me nas tintas. Pela primeira vez, estou-me nas tintas se, por
causa do que digo, ou escrevo, ou penso, o Miguel se vai chatear comigo. Desta
vez sou eu que me dou ao luxo de me chatear com ele. E, antes que me
arrependa, envio o mail sem reler e fecho o computador, tentando, pela
primeira vez, encerrar um capítulo da minha vida e imaginar que, daqui para a
frente, vou ser feliz sem a sombra do Miguel, ou o que resta dele.
Sabes o que me faz mais impressão em ti? É que a matéria-prima é, de
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facto, muito boa; tu pensas e sentes bem as coisas, tens uns óptimos miolos e
um coração enorme, embora, como já te tenha escrito um dia, demasiado
grande para caber só lá uma pessoa e demasiado pequeno para ela lá poder
ficar.
Mas falta-te o mais importante, aquilo que nos faz sair de nós mesmo e
sentir a vida na sua plenitude: falta-te a dimensão dos outros. Dás pouco,
apesar de me tentares convencer que dás muito. Quando se dá a sério, nunca se
cobra, Miguel, nem sequer se mede o quanto se dá. Nunca é demais, sabias?
Mas é como te disse uma vez: tu não desenvolves, não te deixas ir, não te
perdes, no último momento, defendeste-se sempre com um jogo de cintura
invejável e, com a tua implacável lucidez cartesiana, tens sempre para ti e para
os outros as mais fundamentadas e lógicas justificações. Não passas de um
atrasado emocional, consciente das tuas limitações, mas sem nenhuma vontade
de as ultrapassar.
Houve momentos em que invejei essa tua autonomia e independência, que
te fazem tão inexpugnável. Mas agora não. Deve ser horrível desligar da vida,
como se nos tirassem da ficha com um gesto brusco e desumano.
Desculpa o desabafo, mas estou nos antípodas, ou, como me disseste uma
vez, talvez esteja apenas muito perto da perfeição. Não aspiro a nenhum tipo de
perfeição, mas gostava de construir alguma coisa sólida com alguém mesmo
especial. E tu, nem disso gostavas. Às vezes acho que nem sequer tem a ver com
a idade: é estrutural e incontornável em ti. Quando é que percebes que viver na
solidão é a maior e mais estéril das prisões? À força de te protegeres dos outros,
ausentas-te de ti mesmo, e onde estás agora? Qualquer dia olhas para dentro de
ti e já lá não estás.
Boa viagem, Miguel. Boa viagem ao centro de ti próprio. E boa sorte. Vai
ser mesmo difícil encontrares-te.
Ainda estive para lhe dizer que a Carolina já não se lembrava da cara dele.
Nunca lhe contei que ela o via em todo o lado, nos anúncios de roupa, em
cartazes de rua, em séries de televisão. Porque haveria agora de lhe contar a
verdade? A Carolina já se esqueceu da cara dele, e eu tenho que me esquecer
que o amei tanto. Senão é que dou mesmo em doida, e depois, quem é que cá
fica a tomar conta da editora, da miúda e do bebé da Ana e do Frederico?
O Miguel já só está a fazer-me mal. Prefiro o silêncio e a ausência à tristeza
das sombras. Tenho, duma vez por todas, que assumir que o meu sonho
acabou. Amanhã, acordo e começo a mentalizar-me que a minha vida continua
sem ele e que vai correr tudo bem. Mas, hoje, só quero dormir, esquecer a dor e
limpar o coração. Isto não é viver e eu tenho que continuar viva, inventar uma
vontade que não tenho e obedecer-lhe cegamente. Talvez nem seja assim tão
100
difícil. Quando se continua vivo depois de morrer, é fácil ser-se obediente.
- Não são cuecas, são slips - precisa a Teresa. - E o Nuno também usava, e
nessa altura achavas muito sexy, lembras-te?
- Usava? Tem piada, não me lembro...
A Teresa, como sempre, acertou em cheio. Desta vez, a Ana ficou sem
resposta. Estão, mais uma vez, as duas a falar da minha vida, como se eu não
estivesse presente. Um dia tenho que acabar com isto.
- Mas tu, afinal, foste ou não para a cama com ele?
- Não. Quer dizer, acho que não. Pelo menos, não me lembro.
Se estivéssemos num torneio de golfe a Ana corria perigo de vida.
- Fecha a boca, miúda. Senão, ainda te entra uma mosca, ou uma bola de
golfe, ou outra coisa qualquer.
- Eu não acredito nisto! Tu estás completamente doida? E se foste para a
cama com ele e não te lembras? E se ele não usou camisinha?
- Não fui, parva, estava só a gozar contigo - e, fazendo uma pausa para
acentuar mais a coisa. - Não fui, mas ainda vou a tempo.
- E fazes muito bem - remata a Teresa.
A Ana olha-a de lado.
- Tu andas esquisita... O que é que se passa?
- Nada.
- E o Vasco, como está?
- Bem, obrigada: a fingir que trabalha com o pai. Bom, pelo menos
continua limpo, já lá vão quase quatro meses.
- Ainda bem.
A Teresa pisca-me o olho, a dizer coitadinha, é uma tapada, não faz a
mínima ideia do que se passa.
- E o trabalho no banco, como vai? - pergunto com um sorriso malicioso.
- Melhor que nunca - responde a Teresa.
- Tu não podes entrar nessa espiral de loucura - diz a Ana, que não
consegue fechar a boca, depois de lhe ter contado a minha noite com o Kiko.
- Pois não, mas apetece-me.
- Por que é que lhe estás a dizer isso? - pergunta a Teresa.
- Porque acho um absurdo e só a pode pôr ainda pior.
A Teresa respira fundo. Eu sei que ela se irrita com a atitude sempre
politicamente correcta da Ana perante tudo, mas, desde que anda a viver a
aventura da vida dela com o Rambo da administração, ainda tem menos
paciência.
- Pois. O inominável pôs-se a andar, e ela tinha que ficar feita monja à
101
espera de quê? Do príncipe encantado? E, entretanto, não pode viver a vida
dela?
- Eu não disse isso, só disse que esta história com o tal Kiko não tem pés
nem cabeça.
- Como é que sabes? Nem sequer o conheces - respondo.
- Nem preciso. Um puto que usa cuecas pretas!
- Não sei o que é que vocês têm. Ultimamente andam um bocado parvas.
E levanta-se, com aquele ar digno e sofrido que as grávidas gostam de
assumir desde o primeiro dia em que sabem que estão à espera de bebé.
- Coitada da Ana. Devias-lhe contar do legionário.
- Para quê? Para me chatear até à morte? Não, é melhor assim. Ainda tinha
um desmancho com o susto.
É tão bruta, esta Teresa.
- Não sejas estúpida, com essas coisas não se brinca.
- Tens razão. Ouve lá, e o Truta? Vai ao forno, ou quê?
- Não faço ideia. Ele tem-me ligado, mas o Filipe também. Por isso, ando
um bocado dividida. A culpa é tua, com aquela máxima de quando uma mulher
não ama um homem, etc., etc.
- Pois. Agora, deu-te para as apostas múltiplas.
- Não é isso. É que não sei muito bem o que fazer. Já saí outra vez com o
Filipe, e sinto-me lindamente, mas falta ali estímulo, percebes?
- Falta estímulo porque também não lhe dás hipótese. E, como ele deve ser
do tipo cauteloso, anda a estudar o problema. Mas eu acho-o muito melhor do
que a Truta Salmonada.
- Porquê?
- Porque te pode trazer algo de novo.
Fico a pensar na resposta. Era a última que estava à espera de ouvir. A
Teresa podia ter dito: porque ele é mais velho, mais maduro, e talvez saiba
melhor o que quer; porque ele é inteligente e bem educado, e já passou por uma
separação; porque um tipo que vive com as três filhas só pode ser boa pessoa;
porque ele não usa slips pretos. Mas esta resposta deixou-me perplexa.
- E o que é que pode ser novo?
- Alguém que te proteja, em vez de seres tu a meter toda a gente debaixo
da tua asa. Alguém que te dê conforto e atenção, em vez de chatices e dores de
cabeça. Alguém por quem não sintas uma paixão doida e avassaladora que te
acabe com as defesas. Uma relação que tu controles.
- E qual é a piada disso?
- Experimenta e verás. Claro. É o que a Teresa está a viver com o Rambo
dela.
102
- Bem, adorei vê-las, mas tenho que voltar para a editora, senão o Nuno
mata-me - digo, levantando-me do sofá, onde a Ana acabou de servir o café, ao
mesmo tempo que bebo de uma vez todo o conteúdo da chávena. A Teresa
também tem que voltar para o banco, por isso, saímos as duas de casa da Ana.
- Aquele bacalhau no forno estava demais, não estava? - pergunto à
Teresa, que vem com a mão na barriga.
- Estava, mas tenho que emagrecer. Senão, não aguento as investidas.
- Do Rambo? - Pois.
E desatamos as duas a rir que nem umas parvas. É bom estar viva. Antes
de entrar no carro, a Teresa agarra-me pelo braço e fixa o olhar dela no meu.
- Ouve... Tu estás mesmo melhor, não estás?
- Claro!
- E aquele idiota, continua a chatear-te com mails?
Ele não é idiota, nem os mais dele alguma vez me chatearam, mas não vale
a pena explicar isso à Teresa. Não vale a pena explicar às pessoas o que elas não
querem perceber.
- Não. Assunto arrumado.
- Ainda bem. Mas olha que, quando ele voltar, ainda corres perigo. Eu sei
que ainda gostas dele.
- Eu também sei, mas já aprendi a viver com isso. Não te preocupes.
- E sabes quando volta?
- Não faço ideia nenhuma, nem quero saber.
- Óptimo, era isso mesmo que eu queria ouvir. Não é verdade, mas não faz
mal.
De repente, dá-me um abraço com força e fica alguns segundos assim,
quieta, encostada a mim.
- Achas que também se treina o coração? - pergunto, com uma voz
estranha que não parece minha.
- Tudo se treina, minha querida. Tudo se treina, até o coração.
E entra no carro, acelera a fundo e desaparece na esquina. Lembro-me da
Teresa com dez anos a chegar ao colégio, depois de ter faltado uma semana com
um ar impassível, como se nada fosse. Corriam pelos corredores os boatos mais
mórbidos acerca da morte do pai dela: que se tinha atirado de um sexto andar,
que se tinha enforcado com uma gravata, que a mãe o tinha encontrado morto,
degolado. Mas só muito mais tarde soubemos a verdade. Tinha-se suicidado
com um tiro de pistola na cabeça à frente da Teresa. Foi ela que me contou no
décimo ano, com o mesmo à vontade com que me estava a descrever as férias
que passara com a mãe e o padrasto, em Itália. Depois da morte do pai, o Vasco
e a droga pareciam-lhe coisas simples de enfrentar, ou então, pior do que isso,
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habituou-se a viver em sofrimento e o Vasco foi só um meio para poder
continuar a viver dessa maneira. Mas não. Ela sempre gostou dele e
provavelmente, como quando se gosta a sério, talvez nunca deixe de gostar. O
Rambo é uma diversão pura, como ir ao cinema ou à Feira Popular, no Verão,
voar na roda gigante, empanturrar o desejo de farturas com cheiro a canela e
sabor a açúcar.
Tudo se treina e a verdade é que, nas últimas semanas, tenho feito tudo
para esquecer o Miguel. Para meu grande espanto, até tenho conseguido.
Ela não me podia ter escrito aquilo. Simplesmente não podia. Quem é que
ela pensa que é? Só porque já sofreu, acha que sabe tudo? Atrasado emocional!
Sim, posso ser um atrasado emocional, mas não chateio ninguém, nem cobro a
ninguém o meu amor. Ela sabia, sempre soube que a minha relação com ela era
imprevisível. Sempre lhe disse que, um dia, pegava nas minhas coisas e me ia
embora: sou um nómada afectivo, é a minha natureza. Quem não quiser lidar
com isso que se afaste. Dei-lhe tudo, muito mais do que a qualquer outra
mulher, amei-a e sempre a respeitei. Ela foi a pessoa mais importante da minha
vida, e aprendi tanto com ela que acho que vou demorar alguns anos a digerir
tudo. Mas por que é que ela há-de querer estragar tudo com insultos e
agressões? Por que é que não aprendeu ainda a aceitar a vida de braços abertos
e a perceber que só se anda para a frente com mudanças e rupturas, mesmo que
isso doa e custe, e seja difícil? A vida é isto: uma mudança permanente e
inesperada. Crescer também passa por aceitar aquilo a que os indianos chamam
dukkha, a insatisfação perante a impermanência na vida, e isto passa por aceitar
tudo, na vida e na morte, da vida e da morte. Mas não. A Inês, do alto da sua
pretensa sabedoria é insegura. Por isso, tem que classificar e ordenar tudo na
cabeça dela, e todos aqueles que não seguirem o mesmo caminho são
desertores. Não posso nem quero cingir a minha vida a um só modo de a viver.
Ela sempre soube isso e o nosso amor nunca foi posto em causa. Para quê agora
estragar tudo?
Talvez já ande a viajar há tempo demais, mas não quero voltar ao atelier
do Frederico nem à vida que deixei; senão esta viagem não serviu para nada, a
não ser para adiar decisões que não quero tomar. Talvez alugar uma casa
pequena e procurar trabalho noutro atelier mais pequeno, não sei ainda bem.
O Oriente fascina-me e cansa-me ao mesmo tempo. Sinto-me bem aqui
porque estou longe do mundo mas nas últimas semanas um vazio ainda maior
e mais pesado foi-me tomando os dias. Não sei bem quando, nem exactamente
com quê, mas o olhar deixou de se prender nas coisas, como se tudo o que já vi
me chegasse. Agora, preciso de pisar outra vez uma terra cujo cheiro não
104
estranhe, de olhar para as pessoas e lhes reconhecer feições ocidentais, de comer
um bife do lombo com ovo a cavalo e saborear um pudim flã. Coisas sem a
mínima importância, às quais só agora dou valor, como poder ir a uma caixa
multibanco e levantar dinheiro, deitar-me numa cama acabada de fazer,
resgatar cheiros e objectos, poder tomar duche todos os dias, ler os meus livros
e ouvir os meus discos, sem ter que os trocar com os outros viajantes. Estou
cansado de ler em inglês, de lavar as mesmas t-shirts vezes sem conta e de ouvir
sempre os mesmos CD's no meu walkman. Mas, ao mesmo tempo, acho que me
podia habituar a esta vida. O desprendimento traz-me uma paz que não
consigo alcançar quando me fixo. Por isso, não sei o que vou fazer, embora no
fundo saiba muito bem que tenho de voltar. Só que agora tudo ficou mais
difuso. A Inês se calhar arranjou alguém - e se o fez, fez muito bem. Quem sou
eu para a julgar, se fui eu que a deixei? A Carolina deve ter crescido muito
nestes meses. Duvido que ainda se lembre de mim. De certeza que a Inês, com a
típica fúria feminina, fez desaparecer todos os meus sinais, fotografias ou
quaisquer objectos que a fizessem lembrar da minha frágil e remota presença.
Ou talvez não, talvez ainda me reconheça e se for ao colégio vê-la como fiz
antes de me vir embora, talvez ainda possa sentir outra vez o calor da sua cara
encostada à minha, o cheiro a bebé, o toque suave dos caracóis enrolados nos
meus dedos... os miúdos têm este efeito devastador e quase perverso,
amolecem-nos o coração para sempre, mesmo quando não são nossos filhos.
Não volto a ter uma namorada com filhos, a não ser que tenha a certeza
que vou viver alguns anos com ela. E, como a única certeza que tenho na vida é
que nunca poderei dar certezas de nada a ninguém, é bom que aprenda esta
lição e não me esqueça. Sei que é uma das razões que dão tanta mágoa aos mails
da Inês, leio-o nas entrelinhas e acho que ela pode ter alguma razão, mas estou
farto de lhe pedir desculpa e de me justificar por ter feito aquilo que achava que
devia fazer. ,Mas, quando me apaixonei por ela e pela miúda ao mesmo tempo,
nem pensei no futuro. Não sabia, não queria, nem podia pensar. Com 25 anos
só se pensa em viver, usufruir de tudo e viver até ao limite. O futuro é o tempo
de um verbo que se aprendeu na escola; o passado é sempre conjugado no
pretérito perfeito, não há imperativo nem condicional. A vida corre no presente,
sem planos nem projectos a longo prazo.
Irrita-me a conversa da idade que a Inês recorrentemente tem nos mails,
como se as pessoas não pudessem escolher se envelhecem ou não. Quando a
conheci, vi nela uma frescura de miúda como se o tempo não lhe tivesse
passado por cima, e foi uma das coisas que mais me encantou nela. Mas, se
calhar, era fachada, pode não ter passado de um esforço para se pôr à minha
altura, com medo de me perder. Não sei o que é ter medo de perder alguém, as
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pessoas nunca perdem as outras, podem é perder-se delas, como a Inês e eu nos
perdemos. Mas guardo-a para sempre como a melhor coisa que me aconteceu.
Quem me dera que ela soubesse fazer o mesmo. Apetece-me voltar a vê-la,
apertá-la outra vez nos braços, sentir-lhe o hálito fresco e o cheiro
inconfundível, deitá-la na cama e amá-la com paciência e cuidado, como
sempre fiz, devagar, e depressa, e devagar outra vez, até que o corpo se liberte
em espasmos infinitos, quase celestiais.
Dormi com algumas mulheres durante estes meses. Primeiro com a chata
do Algarve; depois, com uma inglesa; depois, com duas norueguesas, numa
noite de loucos em Nova Deli; mais uma mexicana que andava à procura do
Dalai Lama, e ainda uma sul-americana que era relações públicas do hotel onde
estou, aqui em Goa. Mas esses corpos, sempre apetecíveis até ao momento em
que as levava para a cama, tornavam-se inertes, quase inanimados, depois de
estar com elas, e um vazio estranho invadia-me a pele. Talvez tenha estado
demasiado tempo com uma mulher que amei e me tenha habituado a um
padrão de entendimento muito alto. Ou então, aquilo que inevitavelmente se
apodera de nós, e que alguns teimam em chamar amor, tenha feito de mim uma
pessoa melhor e, por isso mesmo, um amante melhor. Sempre gostei de comer
gajas, e quem não gosta é paneleiro, mas demorei algum tempo a perceber a
diferença abissal entre estar na cama com uma mulher que se ama ou dormir
com qualquer outra. Não tem a ver com prazer, mas com o estar, ou o ser. Com
a Inês, eu era eu mesmo, alguém que sempre escondi de mim e dos outros e que
a Inês soube como ninguém tocar. Com as outras mulheres, sou apenas um
homem, sinto-me mais um tipo qualquer e quero que elas sejam mais um
número a acrescentar à minha lista. Prefiro não criar laços, nem fomentar
confusões: entra no jogo quem quer, e abandono-o sempre que me apetece.
Mas estou há demasiado tempo sozinho. Escolhi a solidão como caminho,
e um cansaço que desconheço vai-se apoderando aos poucos de mim. Apeteceme voltar, e, por isso, um dia destes, ligo ao Rodrigo e troco o meu bilhete.
Talvez fique em casa dele por uns tempos, até encontrar outra casa. Podia ficar
com a Mariana, que ficou com a minha: mas isso não, não quero voltar atrás,
aos mesmos cheiros e lugares. Não quero voltar atrás em nada, nem no meu
amor pela Inês. Tudo na vida tem o seu tempo, e o meu agora é outro: é novo, é
desconhecido, é estranho. Mas é o meu, o que eu quero e que tenho que viver.
A miúda chega dez minutos antes do Filipe bater à porta, tem uma cara
redonda, muito simpática, fala com um tom de voz pausado e a Carolina, que
gosta logo dela, vem-me dizer à socapa: ó Mãe, ela é muito mais simpática do
que a Célia. Eu volto a pensar que se calhar a Teresa tem razão: devia arranjar
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uma interna, assim já não tinha que andar sempre a recorrer a baby-sitters. Mas
a ideia de ter uma pessoa estranha em casa vinte e quatro horas por dia faz-me
confusão. Explico-lhe o ritual do sono da Carolina - uma história com a luz
acesa, ou uma canção com a luz apagada, antes de adormecer, e a Lena vai
dizendo que sim com a cabeça, ouvindo-me com educada paciência, como se
nunca tivesse feito aquele trabalho na vida, ela que é baby-sitter desde os 16
anos e está a acabar Economia.
Pouco depois, o Filipe toca à porta, e convido-o para subir porque ele quer
ver outra vez a Carolina, o que não acho nem bem nem mal. Mas quando ela lhe
pergunta pelas filhas, e ele lhe fala delas com o olhar iluminado, fico logo
arrependida de o ter deixado ver a miúda, não vá ela começar a construir
castelos na linda cabecinha loira povoada de caracóis.
Saímos rapidamente e o Filipe, com aquela boa educação que não se vê
mas que se sente, abre-me a porta do carro enquanto me vai falando do chefe
do restaurante onde vamos, com quem ele joga golfe de quinze em quinze dias,
quando não está com as miúdas. No carro, o ambiente tranquilo é acentuado
por uma pianada que não conheço e sobre a qual levo logo uma ensaboadela: O
quê? Tu não conheces o Bill Evans? Parece impossível! Em meia dúzia de
quilómetros, fico a saber que o pianista americano foi o precursor do Keith
Jarrett e de outros génios do jazz; quando chego ao restaurante e me sento à
mesa, olho para o Filipe e acho-o mesmo giro no seu estilo discreto e bem
comportado de Super Pai.
Talvez a Teresa tenha razão, talvez ele me possa trazer algo de novo, uma
segurança qualquer que eu não conheço. Mesmo que fiquemos só bons amigos,
que diabo, nem todos os tipos que se aproximam de mim têm que pertencer à
categoria de pretensos-candidatos-a-qualquer-coisa-do-tipo-namorados, como
dizia o Duarte, outro dia.
- A partir de agora, só vou ligar ao que tu me contas sobre esses tipos
quando me falares de um sobre o qual não digas: o pretenso, o talvez futuro, o
candidato a, um que está convencido que.
O Duarte tem razão. Tenho que acabar com estas parvoíces. Escusava era
de ter ido para a cama com o Kiko. Ele ligou-me e queria ver-me. Eu andava a
escapulir-me desde a noite em que apanhei a bebedeira, mas ele foi ligando,
insinuando-se, com o à vontade que só se tem naquela idade, uma espécie de
inconsciência que dá segurança e legitimidade a tudo o que nos passa pela
cabeça fazer, e eu deixei-me ir. Quando me telefonou na terça-feira passada a
dizer que estava à porta, não resisti. Ficámos no sofá, horas e horas, a conversar.
Ele agarrou-me, e eu pensei: por que não? E como na minha cabeça não ouvi
nenhum grilo falante a dizer-me para não ir e nesse dia não tinha falado com a
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Ana - se ela me tivesse ligado a relembrar porque é que, segundo ela, o Kiko é
um disparate ainda maior que o Miguel, mas não ligou - acabei por ceder. Não
sei se foi bom ou mau. Pareceu-me bom, fisicamente, mas mau,
emocionalmente. Talvez o Kiko tenha sentido o mesmo, porque não durou
muito tempo, nem teve nada de arrebatador, mas acho que, mesmo assim, o
balanço foi positivo: pelo menos, voltei a sentir algum peso em cima do meu
corpo, e isso emprestou-me de alguma forma uma sensação de libertação. O
sexo pode ser a melhor sensação do mundo, ou a mais estranha: encher-nos ou
esvaziar-nos, tornar-nos em seres invencíveis ou totalmente vulneráveis. O
problema é quando se consegue juntar sexo e amor: o padrão torna-se tão alto
que é muito difícil, quase impossível lá voltar. Quando acabou, e o Kiko se
levantou da cama, tive vontade de chorar. Só me lembrava do Miguel, deitado
ali ao lado, das curvas do corpo dele e das orelhas que cheiravam a alfazema,
do seu olhar terno que se perdia no meu, no depois do depois, onde havia tudo:
paz, libertação, beleza, amor, quase perfeição. O Kiko voltou com um sorriso
enfiado, passou-me a mão pela cara, deitou-se ao meu lado, e sussurrou:
- Estás farta de sofrer, não estás, querida?
E aquele querida comoveu-me, mas engoli a emoção e desactivei o
mecanismo das lágrimas, com um esforço de concentração notável.
Tudo se treina na vida, minha querida. Tudo se treina, até o coração e
ficámos ali, os dois, a tentar preencher o vazio inevitável de dois corpos que
ainda não cultivaram os laços da intimidade. - Não podes ser tão densa, Inês.
Pensa menos na vida. Vais ver que é muito mais fácil viver.
No dia seguinte o Kiko ligou, mas pedi-lhe tempo, ainda não percebi se
quero ou não que ele entre na minha vida. O medo voltou outra vez e instalouse numa cadeira, aos pés da minha cama. Olha para mim todas as noites, antes
de me deixar adormecer, e diz, com voz de mulher: não vais cometer os mesmo
erros, pois não?
E lembro-me que li num sítio qualquer uma definição de demência como a
repetição dos mesmos erros à espera de resultados diferentes, e enterro a cara
na almofada. Mas o Senhor Medo, que veste um fato azul escuro e é velho,
careca, e tem voz de mulher, chama-me parva, avestruz, burra, e diz-me para
ter cuidado. Um dia destes, tenho que mandá-lo mesmo embora. Mas por
agora, é bom que ande por ali a vaguear no meu quarto e no meu espírito, para
não levantar os pés do chão e desatar a voar como um pássaro, como o Miguel
fez com a vida dele.
O Filipe também tem medo. Diz que o medo é um bicho invisível que se
instala depois da separação, sempre indissociável de uma sensação de falhanço
por não se ter conseguido aguentar as coisas. E eu pergunto-lhe quem é que
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consegue, e ele responde-me com um sorriso triste, o que nos faz voltar às
trivialidades e ao Sushi. O Kiko tinha razão quando me dizia para não ser tão
densa, e quando vamos pedir a segunda dose, o meu telemóvel toca e é o Kiko a
perguntar onde estou, e se pode vir ter comigo. Faço sinal ao Filipe para me
levantar da mesa e saio do restaurante. Isto é de uma falta de educação
indesculpável, penso eu, enquanto estou cá fora a dizer ao Kiko que vim jantar
com um amigo e que, hoje, vai ser impossível.
- Como queiras - responde, com secura.
- Desculpa ter ligado, não te volto a incomodar. - E desliga, furioso.
Regresso à mesa e desfaço-me em desculpas, mas o Filipe ri-se, e comenta que é
impossível que eu não tenha meia dúzia de tipos a telefonarem-me para isto e
aquilo, e, como não faz perguntas sobre a minha vida, omito o Kiko, as duas
noites com o Kiko, e o medo que tenho de estar a deixar entrar outro Miguel na
minha vida.
- O pior do medo é que, quando se instala, demora imenso tempo a
desaparecer outra vez - continua o Filipe.
- Acho que o pior é habituarmo-nos à tristeza. Eu fiquei muito mais
fechada, mais egoísta, tenho menos paciência para os problemas dos outros. Há
dias em que não me apetece ver nem sequer falar com ninguém, a não ser com a
Carolina, claro.
O Filipe conta como as filhas foram importantes na separação - foi ela que
saiu de casa - e como se apoiou nelas.
- Hoje, nem imagino o que é viver sem as ter quase todos os dias por
perto. Passei a encher a minha vida com elas, e o lado perverso disto é que, cada
vez que me interesso por uma mulher, acabo por ter muito pouco tempo para
ela, porque as miúdas estão sempre à frente.
- E assim, estás protegido. As tuas filhas são uma espécie de escudo.
- Claro. Mas quando te habituas a viver na concha, quem é que te tira de
lá?
- Nada. A não ser uma coisa.
- O quê?
- Um grande amor.
- Talvez. Mas essa visão é muito romântica para o meu gosto.
- Então, experimenta imaginar a tua vida todos os dias ao lado de uma
pessoa por quem não sintas mesmo amor - argumento, ligeiramente inflamada.
- Não há tolerância possível. Ou adoras viver com uma pessoa ou rapidamente
não a podes nem ver.
- Mas eu nem falo de viver com alguém. Isso, hoje em dia, para mim, está
fora de questão. Falo em sentir alguma coisa profundamente por alguém. Eu
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posso sentir atracção, entendimento, tesão, vontade de estar com essa pessoa,
mas isso é amor?
- Não. O amor é a soma de tudo isso, mas é ainda outra coisa diferente,
que está acima disso, acima de qualquer parâmetro ou definição. Uma coisa
qualquer que não sei o que é, mas quando sinto, tenho a certeza que é aquilo
mesmo.
- E já sentiste, não já?
- Claro!
- Com o teu marido?
- Não. Com o meu último namorado.
- Oh!...
O Filipe fica sem saber o que dizer. Não devia estar à espera de uma
resposta tão sincera. Mas saiu-me, não houve nada que a evitasse. Nem eu
queria.
- Mas viveste muito tempo com ele?
- Um ano... um bocadinho menos de um ano.
- E porque é que se separaram?
- Porque ele foi crescer.
O Filipe não responde. Devia estar à espera que lhe desse uma explicação
longa, repleta de pormenores que, provavelmente, não lhe interessavam nada,
mas não. Desta vez fui sucinta, cirúrgica, diria mesmo brilhante. O Miguel foi
crescer, é a grande resposta.
Já em casa, depois de uma despedida morna e quase cerimoniosa do Filipe
- ou era eu que estava meio desligada, e não o pus à vontade, ou, então, o jantar
não foi como ele estava à es pera e quis-se ir embora -, e depois de ter pago à
Leria, ligo para o Kiko, que tem o telemóvel desligado. E agora? O que vai ser a
minha vida? Será que não consigo estar quieta?
Talvez consiga, no dia em que olhar para a cara do Miguel e conseguir ler
na minha cabeça, escrito a néon a acender e a apagar a poderosa palavra:
ACABOU.
Quando já estou de camisa de noite, pronta para me enfiar na cama,
alguém toca à campainha. Sobressaltada, pergunto pelo intercomunicador
quem é.
- Sou eu, o Filipe. Posso subir um bocadinho?
Claro que podes, Filipe. Se há alguém que me dá suficiente paz e
segurança para poder subir à minha casa, às duas da manhã, és tu.
- Já me ia deitar... mas vá lá, sobe.
Abro-lhe a porta devagar e entra quase a medo, olhando discretamente
para as minhas pernas - uso sempre camisas de noite curtas, o Miguel adorava
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e, além disso, detesto sentir coisas enroladas às pernas quando estou a dormir e senta-se na sala. Vou ao quarto buscar um roupão e preparo dois Jamesons. O
Filipe tira o casaco e senta-se no sofá. Pega numa almofada e pede-me que me
sente ao lado dele. Depois, larga a almofada e agarra uma das minhas mãos, e
fica ali, muito quieto, a olhar para mim.
Devia dizer qualquer coisa, perguntar-lhe o que está a fazer, por exemplo,
porque é que me está a agarrar a mão, mas prefiro ficar calada, a saborear a
temperatura da mão dele por cima da minha. É bom...
- Então? Já ias dormir, não era?
- Sim, tenho algum sono, mas não muito.
Quero que ele perceba que fez bem em voltar atrás. Quero que ele perceba
que me sinto bem ao pé dele.
- Gosto mesmo de estar contigo, sabias?
A mão dele aperta a minha com mais força, e o olhar adoça-se.
- Eu também. Por isso é que voltei.
- Fizeste bem.
- Ouve... eu sei que nem eu, nem tu, estamos preparados para o que quer
que seja, e que o que se passou nas nossas vidas deixou algumas marcas e
fechou algumas portas... mas eu gosto mesmo de estar contigo... e acho que
estou a sentir-me tão bem que é uma estupidez não aproveitar isto... mesmo
que eu não saiba o que isto é, percebes?
Estás a ser sincero, ou já não vais para a cama com alguém há muito
tempo?
- Onde é que queres chegar?
- Quero chegar aqui, ao pé de ti, poder telefonar-te sempre que me
apetecer e estarmos juntos com frequência. Quero, de alguma forma, trazer.
qualquer coisa de novo à tua vida, porque já me estás a trazer à minha... não sei
bem o que é, mas sei que é bom e, por isso...
E agora? Deixo-me ir ou conto-lhe a verdade? O Filipe parece adivinhar o
que me passa pela cabeça, porque se debruça sobre mim e dá-me um beijo
suave, lento, delicioso. Mas eu tenho que lhe dizer duas ou três coisas, senão
isto não me vai correr bem. Por isso, afasto-me um pouco para trás - não muito,
para ele perceber que só quero falar, que não o estou a rejeitar, e digo:
- Ouve... Eu sinto o mesmo... e tu já percebeste que gosto de estar contigo
e, quanto mais estou, mais gosto, mas eu ainda estou completamente apanhada
pelo meu ex-namorado, e mesmo que me envolva contigo, se ele entrar por
aquela porta um dia destes, e disser que quer voltar, tu eclipsas-te à velocidade
da luz, percebes? E não te quero fazer isso, acho que não é justo.
- Mas eu não me importo. Eu sei os riscos que corro, já sou crescido. A
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sério, não me importo.
Bolas, já tinha saudades de alguém que me agarrasse assim.
Lisboa nunca tem luz a mais nem parece demasiado bela, sempre que se
sobrevoa depois de uma longa ausência. Há um calor próprio em cada cidade, e
Lisboa tem uma temperatura especial, morna, doce, acolhedora. Sinto a
pulsação a acelerar enquanto o piloto, numa acrobacia turística, faz um arco
sobre a cidade para mostrar aos turistas as colinas - dizem que são sete, mas
conto sempre mais - que tanto encantaram Ulisses. Como estará a minha
Penélope? De cá de cima, vejo o prédio dela, e, de repente, é como se ela
estivesse aqui sentada, na cadeira número 7 B, de mão dada comigo, a rir-se.
Oiço-lhe a voz de miúda, e conto mentalmente os dentes brancos e certos da
boca. Fecho os olhos e sinto-lhe o cheiro da pele. Bolas!, ainda não aterrei e já
estou a pensar nela. Quando chegar lá abaixo, como é que vai ser? Só disse ao
Rodrigo que chegava hoje. Espero que ele esteja no aeroporto à minha espera,
pedi-lhe para não dizer nada ao resto das pessoas, quero um regresso calmo e
tranquilo, em tudo diferente ao da minha partida,, por isso também não disse à
Inês.
Tenho tanto medo de lhe fazer ainda mais mal, agora que regressei e ainda
a desejo, mas não quero voltar a andar com ela, o melhor é ela pensar que ainda
estou em viagem. Ficamos os dois mais protegidos. É isso mesmo. Olha que boa
ideia. Se eu não disser a ninguém próximo dela que voltei, como é que pode
saber? Lisboa é uma aldeia, mas, se não andar pelos sítios do costume, pode ser
que ninguém dê por mim. Só se me encontrar por acaso no cinema. Mas tenho
saudades dela. Tenho saudades do corpo dela, das pernas, da boca, tenho
saudades de a comer, bolas. Mesmo nestas últimas semanas, em que o calor e o
cansaço de andar há tanto tempo a viajar me baixaram a libido, nunca deixei de
pensar nela e, agora, que estou a voltar, o desejo acordou outra vez. Mas, é
melhor, não. Não lhe posso fazer mal outra vez. Nunca quis magoá-la, e foi
isto... Só espero que ela tenha arranjado um namorado porreiro, que goste
mesmo dela e lhe dê tudo o que eu não sei, não posso ou, simplesmente, não
quero dar. E se ela tiver mesmo arranjado alguém? Não é difícil, ela tem tudo
para ser a namorada ideal. Para quem quer ter namorada, claro.
Tenho que procurar trabalho, estou a ficar sem dinheiro e não me apetece
ir outra vez para casa do meu pai. Agora, fico em casa do Rodrigo e, depois,
logo procuro um apartamento para alugar. Mas, primeiro, tenho que arranjar
trabalho num atelier qualquer. E não quero ligar ao Frederico, senão ele diz à
Inês que voltei. Já sei, ligo ao pai do Pedro, que é engenheiro civil, pode ser que
ele me arranje alguma coisa. Qualquer coisa que me dê horários e disciplina,
estou farto de ser escravo da minha própria liberdade. Mesmo que seja a ganhar
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pouco, estou-me nas tintas. Estou-me nas tintas para o dinheiro, desde que dê
para comprar livros e discos, para jantar fora e ir para os copos, tanto me faz.
O Rodrigo está um bocado emocionado, há quase três meses que não me
vê, mas lá em casa já nos esquecemos todos de chorar - deve ter sido quando
éramos miúdos, e a minha mãe se foi embora - e por isso abraça-me e dá-me
pancadas desajeitadas nas costas, enquanto diz:
- Então, meu? Afinal não te converteste ao budismo? Estás mais magro,
pá!
E eu também estou um bocado emocionado, mas engulo em seco e desato
a contar coisas da viagem, para distrair o coração. É estranho: parecer que o
tempo que estive fora me passou ao lado, que ainda hoje de manhã estava aqui,
a sair do táxi, com as mesmas malas, depois de ter viajado com a cabeça
encostada ao vidro, a olhar para o reflexo esbatido dos candeeiros pela luz
branca da madrugada. Não houve salvas de canhão, nem lenços acenando aos
barcos, nem as costas da mão num movimento de vírgula a limpar as lágrimas.
Afinal, as despedidas acabam por ser sempre mais silenciosas: um táxi a
atravessar Lisboa, numa madrugada quase fria, luzes amarelas dos candeeiros
públicos, sacos de plástico empurrados pelo vento e uma ausência de pessoas
que serve de atenuante a qualquer crime de fuga. Naquele dia, não houve
testemunhas. Sou muito melhor a apanhar aviões do que a levantar o braço à
entrada do aeroporto para me despedir. Ou talvez finja melhor.
Quando cheguei a Nova Deli, arrependi-me de não ter dito à Inês para ir
ao aeroporto, mas não podia vê-la. Se a visse, seria tudo muito mais difícil. Mas,
com o tempo, fiquei mais triste com a minha atitude. A verdade é que a
distância parece um bisturi. Recorta o essencial, que a proximidade costuma
vulgarizar. E a Inês foi essencial na minha vida, é ainda essencial, mesmo que
não queira ou não possa voltar a andar com ela. É fundamental que um dia
talvez daqui a algumas semanas, quando voltar a sentir que este é o meu país, e
que é aqui que pertenço, fale com ela e lhe explique que a cobardia tem mais
poder que a sinceridade, que o medo, nos homens, é um cancro porque só se
sente quando já dói, e só dói quando os estragos estão feitos e são irreversíveis.
Mas agora quero parar, que é uma coisa que nunca aprendi a fazer. Deve
ser por isso que não acerto o passo com o pulso, nem o tempo com o modo.
O Rodrigo está nervoso, preocupado e mostra-se agitado com o meu
regresso. Diz que o meu pai se entristeceu com a minha ausência, que viu a Inês
ao longe num centro comercial com a Carolina e um tipo mais velho, mas como
esta parte da conversa não me interessa nada, pergunto como é que está o
grupo todo, quando é que o coração de manteiga se casa, e se ele tem atacado
muito na noite com o Pedro. A caminho de casa dele, peço para fazer um
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pequeno desvio e passamos à porta de casa da Inês. É domingo, são duas da
tarde e não vejo a carrinha na rua. Não deve estar em casa, embora as janelas
estejam abertas. Apetece-me mesmo vê-la, mas torço os dedos para conter a
impaciência e o Rodrigo ri-se e aponta para um prédio mais alto, do outro lado
da rua, um pouco mais à frente, duas janelas onde se diz: Aluga-se. Peço-lhe
para parar, e escrevo na minha agenda electrónica o número de telefone. Se for
uma casa pequena e sossegada, alugo-a aqui mesmo.
- Foste-te embora sem te despedires e agora vais alugar um andar mesmo
ao pé de casa dela? Ou ainda gostas dela, ou então és completamente doido.
- Sou completamente doido.
- Então, por que é que não ligas já?
- Já te esqueceste que, quando uma pessoa vai viajar para sítios como a
índia e o Nepal, não leva telemóvel?
- Então liga do meu.
Não queria que isto fosse tão rápido mas, como gosto de ser organizado,
ligo mesmo e uma senhora com uma voz humilde atende-me, diz que posso ver
a casa ainda hoje e, quando lhe digo que estou no bairro, responde.
- Venha, venha. Bata na porteira, que eu vou lá e mostro-lhe o
apartamento. Mas, olhe que é pequeno...
- Não faz mal. Está arranjado, não está?
- Pronto a habitar.
- Então, estou aí daqui a meia hora.
E desligo. O Rodrigo pergunta por que é que não vamos já, mas preciso de
entrar num café tipicamente português - daqueles que antes da viagem
detestava e que, agora, me resgatam o sabor de Lisboa, com cadeiras de
fórmica, balcões transparentes atulhados de bolos com creme e empregados
com ar fora de moda - sentar-me, fumar um cigarro e beber uma bica a escaldar.
- Então, conta lá? Valeu a pena?
- Claro. Mas é mesmo outro mundo. Foi óptimo, vi imensas coisas e
conheci pessoas com piada, diferentes desta gente cá.
- E conheceste gajas giras? Comeste algumas gajas boas?
- Claro.
- Cabrão!
- Pois sou.
E ficamos os dois calados, a olhar para o fumo dos cigarros que se
confunde com o que sai das chávenas de café. Nunca nos habituámos a
conversar de coisas sérias, da mesmo forma que nos esquecemos de chorar,
quando éramos miúdos. Mas o Rodrigo é feito de outra massa, pensa menos nas
coisas do que eu e por isso é um tipo muito mais feliz e muito mais saudável.
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Nunca percebeu porque é que acabei com a Inês.
- Se tens uma namorada podre de boa que te adora, de quem gostas e com
quem te dás tão bem em tudo, porque é que acabaste? - perguntou-me, atónito,
quando lhe contei.
- Não sei - respondi, na altura. E agora, três meses depois, continuo sem
saber. Mas é que não sei mesmo.
- Sabes o que é que eu acho? - começa o Rodrigo, depois de terminar o
café. Vem aí uma teoria qualquer que não me apetece ouvir, mas ainda agora
cheguei, por isso tenho que mostrar alguma boa vontade. - Eu acho que esta
viagem não te serviu para nada.
- Porquê?
- Porque te foste embora à procura de qualquer coisa, e voltaste com as
mãos a abanar.
- Pode ser.
- E isso não te chateia?
- Nada. Porquê?
- Tá bem, tu é que sabes. O importante é que voltaste, estás porreiro e não
entraste para nenhuma seita budista maluca. - Os budistas não fodem, meu.
Achas que eu aguentava uma merda dessas? Além disso sempre fui ateu, nunca
tive a menor propensão para ter fé no que quer que fosse. Achas que era aos
vinte e cinco que me dava uma pancada dessas?
- Sei lá. A distância pode fazer muita merda à cabeça de um gajo.
Não lhe vou responder que nunca me fui embora, que quando se viaja,
não se deixa o lugar de partida. Eu pensava que sim, mas aprendi que não, ao
menos isso eu aprendi.
- E agora? O que é que vais fazer?
- Agora vou ver a casa.
- Está bem, não me referia a isso. Referia-me à tua vida.
- Vou arranjar trabalho, o que é que queres que faça?
Eu sei que me ia perguntar pela Inês, mas olhei para ele de tal forma que
decidiu ficar calado, e ainda bem.
- Entrem, se faz favor - diz a porteira do prédio, abrindo a porta do
apartamento. Um hall pequeno, quadrado, uma sala pequena, quadrada, um
quarto ainda mais pequeno, também quadrado, uma casa de banho pequena,
arranjada de novo com pastilha azul clara, ainda e também quadrada, e uma
cozinha espaçosa e com boa luz. A sala tem duas janelas corridas até ao chão e
dá para uma varanda pequena e simpática. O quarto também e afinal tem a
mesma área. Só me parece mais pequeno porque uma das paredes é
ligeiramente em curva. Gosto da casa, a simetria traz-me uma vaga sensação de
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ordem, como se fosse disso que eu agora precisasse. E, se calhar, preciso
mesmo. Não posso pôr cá muita coisa, o que é óptimo, porque trago o que
tenho de casa do meu pai e, assim, não gasto dinheiro.
- Quanto é a renda?
- É noventa e cinco mil escudos. Com um mês de caução.
- Então já está. Fico com a casa.
A porteira nem acredita. Deve ter posto o anúncio há pouco tempo, não
estava à espera de alugar o apartamento tão depressa.
- Mas o senhor tem a certeza?
- Tenho. E quem é o senhorio?
- É uma senhora que foi viver para o estrangeiro. Mas tem cá um
advogado que é procurador, e o senhor trata tudo com ele.
- Está bem. Então, dê-me o número de telefone do advogado e não mostre
a casa a mais ninguém, eu fico com ela.
A porteira sai para ir a casa dela buscar o telefone do advogado, e o
Rodrigo olha para mim como se me fosse enfiar dentro de uma camisa de
forças.
- Tu és mesmo doido.
- Porquê? Porque aluguei uma casa em cinco minutos?
- Sim, ainda agora chegaste. Podias ver outras.
- Ouve, a renda está barata, a casa está impecável e o sítio é óptimo. Não
me queres lá em casa a dormir na sala, e a ver as gajas que tu comes a passarem
do quarto para a casa de banho à minha frente, pois não? É que eu nem me
importo. Para elas é que pode ser chato...
- Tens razão, isto é capaz de ser uma boa casa para ti.
E é mesmo. Está nova, está livre, está limpa e vai-me dar a sensação de ter
uma casa. E é muito melhor que o meu apartamento anterior, onde pagava mais
dez contos.
- E posso entrar, quando?
- Assim que tiver o contrato assinado. Aqui tem o número do senhor
doutor - diz a porteira, estendendo-me um papel onde números enormes se
encavalitam - se quiser ficar mais um bocadinho a ver a casa...
Vou à cozinha que já tem esquentador, fogão e frigorífico. Óptimo. Vejo as
tomadas na sala e no quarto, verifico o contador, o estado das janelas, se há
rachas nas paredes ou no tecto e um quarto de hora depois, saímos. Assim é que
eu gosto. Mal cheguei e já tenho casa. Todos os malandros têm sorte, como
costumava dizer a Inês.
- E agora?
- Bem, agora vamos ver o pai e a Lina, não é?
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- Lá terá que ser - responde o Rodrigo, que é como eu, tem pouca
paciência para reencontros familiares.
Quem disse que a vida é um eterno regresso a casa? À medida que a
cidade se vai desenhando com familiaridade perante os meus olhos, vou-me
sentindo mais perto de qualquer coisa, mas ainda não sei se é ou não de mim.
Dá trabalho viver. Dá mesmo muito trabalho.
- Então, mas afinal tu andas com ele, ou não? - pergunta a Ana, a
dogmática, que quer saber sempre tudo preto no branco.
- Vai andando - responde o Duarte, entre duas garfadas. Juntámo-nos
todos em casa da Ana, que ainda tem uma barriga pequena, mas já está uma
grávida completa, pele embaciada, olhar ausente, mãos postas no colo e andar à
Duffy Duck.
- Então, e o Truta?
- Isso é que ainda não sei como resolver.
- Não resolvas - atalha o Duarte, para quem tudo na vida é afinal bastante
simples.
- Isto de ires para a cama com todos os tipos que se metem contigo tem
que acabar - acrescenta a Ana, fazendo cara de investigadora da Gestapo.
- Isso não é verdade. Há anos que me meto com ela, e nunca levei nada corta o Duarte, e desatamos todos a rir.
O Vasco está com boa cara, e a Teresa e ele parecem tão bem que, por
momentos, me esqueço do caso do Rambo e, quando me lembro, fico um
bocadinho atrapalhada. É estranho estar na mesma sala com eles e ser cúmplice
da infidelidade dela. Não tem mal nenhum, mas não deixa de ser uma sensação
esquisita. Ao menos, a Ana e o Frederico não têm de certeza esse tipo de
problemas. O Frederico é fiel como um cão e a Ana mais firme que uma rocha.
Mesmo que lhe aparecesse um príncipe italiano à frente e a convidasse para
jantar, acho que ela recusava delicadamente. Já eu, pensava duas vezes....
- Podias tê-lo trazido - diz o Frederico, sempre anfitrião.
- Qual??? O Filipe ou o Truta? - pergunta o Duarte, a fazer-se de parvo.
- O Filipe, claro. Não queremos cá versões de Miguel em segunda
categoria.
Isto é uma chatice. Se um dia voltar a andar com o Miguel, como é que os
vou convencer que ele, afinal, é um tipo óptimo? Chorei tanto e fiz tantas vezes
o número da vítima que eles, agora não podem nem ouvir falar dele.
- Ainda é cedo. Só passaram três semanas.
- E então? Eu e o Frederico ao fim de três semanas já tínhamos ido a casa
dos pais dele e dos meus.
- Mas isso foi diferente. Vocês perceberam logo que tinham acertado.
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Vocês encontraram-se mesmo. O Filipe e eu ainda andamos aos encontrões,
percebes a diferença?
- Mas, se não gostas dele, porque é que andas com ele?
- Deixa-a em paz, Ana - corta a Teresa, que tem pouca paciência para estas
conversas circulares. - Ela pode fazer o que quer, não pode? Aliás, tudo o que
seja para esquecer o inominável neste momento é legítimo.
Pois é. O pior é que não resulta. Onde andará o meu nómada afectivo?
Será que já saiu de Goa? Há mais de quinze dias que não manda nenhum mail,
nem telefona. Será que já voltou? Não, isso não pode ser, senão tinha ligado de
certeza.
- Além disso, o Filipe parece-me um tipo óptimo. Bem educado,
inteligente, responsável, mais velho... enfim, alguém com algum tino, para
variar.
- Mas gostas dele? - lá vem a Ana, outra vez.
- Não sei. Acho que, no princípio, nunca se sabe bem. Gosto de estar com
ele, e quanto mais estou, mais gosto.
- E o outro?
Começo a achar que a Ana tirou a noite para me chatear.
- Sei lá do outro. Há quinze dias estava em Goa, agora não faço ideia.
- Mas, se ele voltar, não vais cair outra vez na esparrela, pois não?
O futuro a Deus pertence. Mas claro que vou, Ana. Para mim a história
não acabou, ou será que não percebes isso? Toda a gente percebe, até o Filipe, só
tu é que és feita de ferro e não apanhas as subtilezas do coração.
- Claro que não. Tudo tem um fim, e o sofrimento também.
- Bem, espero que estejas mesmo tão convencida como pareces.
Não estou, mas também não me apetece ouvi-la, e além disso ando um
bocado farta de discutir a minha vida emocional em espírito de terapia de
grupo. Faço sinal ao Duarte, e meia hora depois, vimo-nos embora. Adoro os
meus amigos mas, às vezes, quando estamos todos juntos, sufocam-me um
bocado. E depois a figura do Vasco para ali de um lado para o outro, como se
fosse uma sombra, sem abrir a boca, desligado de tudo, faz-me confusão. Por
que é que a Teresa não se separa? No fundo, sei porquê. Porque o Rambo não
significa nada, é um mero brinquedo nas mãos dela e um dia destes ela
despacha-o à velocidade da luz. Porque gosta do Vasco, ou daquilo que o Vasco
já foi, porque a droga é esta merda, leva as pessoas do mundo mesmo quando
ainda estão vivas. Porque acha que é assim que deve ser e nós, as mulheres,
devemos ter isto no ADN, a noção do que deve ser e do que está certo. E o mais
engraçado é que nem sequer é porque queremos ser assim, às vezes, não
conseguimos ser de outra maneira.
118
Quando chego a casa e pago o babysitting à Leria, liga-me o Filipe. Queria
passar por cá a dar-me um beijinho, porque as miúdas foram para a mãe, mas
hoje apetece-me estar sozinha. O Filipe fica com pena mas disfarça, começa logo
a dizer que, de qualquer maneira, ia ter um dia muito complicado, amanhã, e
que tinha que se levantar cedíssimo. Por isso, fico com menos remorsos quando
desligo e lhe desejo uma óptima noite. O que é que eu ando a fazer à minha
vida? E por que é que finjo que ando com ele, que está tudo bem, se, no fundo,
sei melhor que ninguém que isto não tem a ver com amor? Que o amor é outra
coisa, que não se explica, não se racionaliza, nem se justifica? Será que nunca
vou deixar de amar o Miguel? Será que isto não passa? Se passa sempre e a toda
a gente, quanto tempo vai demorar, até que eu sinta que a palavra “acabou” faz
mesmo sentido? Tenho que ver outra vez o Miguel, quando ele voltar. Tenho
que o ver a olhar para mim. Talvez volte a sentir a paz que nunca mais
recuperei, talvez ele me consiga explicar o que aconteceu e talvez, quem sabe,
até consiga perceber e aceitar a explicação que ele me der, e então, e só então,
conseguirei libertar-me desta tristeza impotente e resgatar o meu sossego. E já
agora, o meu coração.
A Carolina acorda-me com beijinhos e abraços. Esta manhã foi ela que se
levantou primeiro, e, nessas manhãs abençoadas, sou acordada pelo cheiro da
sua pele fresca e pela voz de menina mimada. Abro os olhos, e vejo as mãos
pequenas a rodearem-me a cara, enquanto chama baixinho:
- Mãe... mãe...
- O que é, querida?
- Hoje, sonhei com o Miguel, mãe. Sonhei que ele vinha num avião muito,
muito, muito grande - explica, abrindo os braços para demonstrar o que quer
dizer.
Foi só um sonho, querida, o Miguel também aparece às vezes nos meus
sonhos, mas agora tento não me lembrar dele para a vida poder continuar,
percebes ?
- E, no sonho, falaste com ele?
- Falei, mãe, e ele disse que gostava muito de mim. - E gosta, querida.
Gosta muito de ti.
Se ao menos gostar servisse para alguma coisa... Mas o Miguel é assim,
pode gostar muito de mim e da Carolina, que nunca há-de mudar nada da vida
dele por nossa causa.
Visto-a à pressa, depois de lhe ter dado a sacramental pratada de corn
flakes e saímos as duas, atrasadas como sempre. A Carolina demora algum
tempo a entrar para o carro, parece que está a fazer de propósito para nos
atrasarmos ainda mais, e dou-lhe um grito para se despachar.
119
- Desculpe, mãe. É que vi uma pessoa ali - e aponta para o fim da rua - que
parecia o Miguel.
Mas este inferno nunca mais acaba? Esta miúda nunca mais deixa de ver a
imagem do Miguel na televisão, nas revistas, em todo o lado? Bolas, ainda está
pior do que eu.
Mesmo assim, apesar de achar que estou a fazer um disparate, ligo para o
telemóvel dele. Talvez ele já tenha deixado a índia e, se veio para a Europa,
então já tem rede e posso apanhá-lo. Chama, mas não atende. Onde estará
agora o meu risquinhos, o meu lápis número zero? Só de imaginar que ele já
pode andar por aí, o coração dispara em flecha, como se estivesse a correr o
último quilómetro da maratona. Que chatice, não tenho o menor controlo nisto.
Pouco tempo depois, quando estou quase a chegar à escola, liga o Truta. Hoje
não é um dos meus dias.
- Estou... Kiko... Então?
- Olá, Inês... Está tudo bem?
No dia em que estiver tudo bem, pego na Carolina e vou três semanas
para as Caraíbas, mas, como diria o grande chefe Abraracourcix, amanhã não
será a véspera desse dia.
- Mais ou menos. E tu?
- Também... mais ou menos... ouve... eu estava a pensar se... se, por acaso
tinhas tempo para almoçar comigo...
Não posso adiar mais isto. Ando a fugir dele há semanas, tenho que
despachar este assunto.
- Claro que tenho. Queres ir ter à editora, à uma?
- Preferia outro sítio...
Esqueci-me que, na editora, eu sou a directora e ele é um candidato a
autor.
- Está bem. Então, escolhe.
- Não sei...
Está atrapalhado. Coitado, vou ajudá-lo.
- Então, passo pela Faculdade à uma e um quarto e vamos a um sítio
qualquer, lá ao pé, está bem?
- Óptimo - responde o Kiko, já com outro ânimo. Deve ter adorado a ideia
de eu o ir buscar à Faculdade, e eu também acho piada. Há anos que não vou a
nenhuma faculdade, deve ser bom voltar a ouvir o burburinho universitário.
Bons tempos em que a vida vinha toda nos livros. Agora, por mais que me
esforce, encontro muito poucas respostas.
A Teresa liga antes do meio-dia, a contar que despachou o Van Damme da
administração.
120
- Porquê?
- Nem sei bem. Comecei-me a sentir mal com isto e como de qualquer
maneira não tinha importância nenhuma, achei que andava a perder o meu
tempo.
- Fizeste bem. E como é que está o Vasco?
- Muito calmo. Parece-me que, desta, é que se limpou mesmo.
- Deus te oiça.
- Deus te oiça a ti a dizer isso. Bolas, já há muito tempo que mereço uma
vida decente.
- És tu e eu.
- Mas tu estás no bom caminho. Como é que vai isso com o Filipe?
- Mais ou menos. Vou agora almoçar com o Truta.
- Ouve lá, tu estás esquizofrénica, ou quê? Eu pergunto-te pelo Filipe e tu
respondes-me com o Truta?
- É que tenho que falar com ele, nunca mais lhe disse nada
- Isso é porque não tens nada para lhe dizer.
Ela tem razão. Como, aliás, quase sempre.
- Pois não.
- O que é que te deu para te meteres com esse miúdo?
- Não sei. Acho que foi uma espécie de vingança. Olhei para ele, achei que
era mais alto, mais novo e mais giro que o Miguel, enfim, uma estupidez
pegada. E o pior é que ele é um amor. Podia ser um filho da mãe e é uma
óptima pessoa.
- Óptimas, somos nós, Inês. Lá estás tu a achar que toda a gente é boa!
Porque é que ele não havia de te tratar bem? Não tem um manuscrito na tua
editora, e não quer ser publicado por ti? Claro que nunca se ia portar mal, só se
fosse acéfalo, não achas?
- Vês sempre tudo por esse lado, bolas! Não achas possível que as pessoas
se possam dar umas com as outras, sem outros interesses por detrás?
- Não. Comemo-nos todos uns aos outros e chamamos a isso amor, e
quando já não nos podemos comer uns aos outros, chamamos a isso ódio, não é
o que estás sempre a dizer? Ouve, eu não digo que o Kiko não tenha um certo
fascínio por ti, mas ninguém sabe, nem mesmo ele, até que ponto isso não é
influenciado pelo facto de tudo o que, eventualmente, lhe podes proporcionar.
- Então, por essa ordem de ideias, porque é que andaste com o Rambo?
- Porque ele me dava sexo e eu lhe dava protecção, aqui, no banco. Não te
parece óbvio?
- Parece. Mas com o Kiko é diferente.
- Porquê? Só porque o rapaz estuda Medicina, em vez de artes marciais?
121
Ela tem razão, não é nada diferente. Eu é que tenho a mania de romancear
tudo.
- Talvez tenhas razão.
- Então, vai lá almoçar com o Truta, e vê se tratas bem o Filipe, que isso é
que é uma coisa boa na vida.
- Boa era se estivesse apaixonada por ele.
- Tem calma. As paixões não levam a nada. Mais vale uma relação
duradoura que te dê alguma estabilidade e, quem sabe, o amor não vem
depois?
- Pareces uma actriz de uma telenovela mexicana.
- E a minha vida, é o quê? Beijinhos, tenho que ir trabalhar.
O Kiko está à minha espera na esquina, de golas levantadas e o cabelo
despenteado. Bolas, este miúdo é mesmo giro, era quase impossível não lhe ter
achado graça. Entra no carro com um ar sério e depois de três ou quatro vira à
esquerda e agora à direita, vamos parar a uma tasca com dez mesas e uma
empregada de avental que grita os pedidos para a cozinha, enquanto passa as
mãos pelo cabelo oleoso, que se arruma num carrapito indescritível. O prato do
dia é bacalhau à Braz, e sentamo-nos a um canto, mais ou menos sufocados pelo
cheiro a fritos. O Kiko está de orelha murcha porque tem imenso que estudar e
não lhe apetece, e também porque não percebe bem o que está a acontecer entre
nós. Isso não diz, mas eu percebo ou, pelo menos, sinto.
A pouco e pouco, vamos chegando ao assunto que ele quer abordar, mas,
como é miúdo e orgulhoso, não quer dar o braço a torcer.
Não estou habituado a esperar por nada, nem por ninguém- comenta, com
o olhar fixo, a ver se me intimida.
Claro que não, Kiko. Com essa cara e esse corpo deves sacar as miúdas
todas que queres, sem teres que pensar muito no assunto e, por isso, quando te
põem de molho, estranhas, não é, meu menino mimado?
- Tudo se treina, Kiko. Tudo se treina.
- Mas por que é que falas comigo com ar de professora? Achas que só
porque tenho 22 anos sou um atrasado mental? Agora dás-me lições de vida, é?
Isto não é um filme da TVI!
Este miúdo tem de facto bastante graça. Mas, ele está certo. Vou mudar de
registo e ser normal. Afinal, ele merece.
- Desculpa. É que não sei muito bem por onde começar, mas acho que o
que se passou entre nós não nos leva a nada, e....
- E quem é que disse que eu queria ir a algum lado?
- Não é isso. Nós sabemos muito pouco um do outro, e eu nunca te contei,
mas, antes de ti, tive um namorado da tua idade e...
122
- ficaste traumatizada? Ou achaste que nunca mais querias outra coisa? - O
tom sarcástico não deixa dúvidas. Está a ver se me irrita.
- Ouve, nem uma coisa nem outra.
- Pois eu acho que foram as duas. Ele deixou-te, não foi? E, agora, queres
um tipo mais velho, mais sólido, que te dê uma vida calma, a ilusão de uma
vida normal, não é?
Este miúdo é mesmo bom. A ilusão de uma vida normal. Sim,
senhor, muito bem apanhado. Mas, se calhar, é mesmo isso que eu quero,
a ilusão de uma vida normal.
- Exactamente.
- Então, de facto, eu não sou a pessoa indicada. Posso-te dar imensas
coisas, e até nem me importava, mas a ilusão de uma vida normal, não te vou
dar de certeza.
Está furioso. Devia estar à espera que eu discutisse um bocadinho mais,
mas não me apetece. Vou abrir o jogo duma vez por todas, pode ser que seja
recompensada pela minha sinceridade.
- Ouve... Quando o Miguel se foi embora, fiquei muito triste e percebi que,
mesmo que houvesse entre nós uma coisa muito especial, ele queria coisas
diferentes, não estávamos no mesmo estágio de vida, percebes? Por mais que eu
tente convencer-me do contrário, tudo o que eu quero hoje em dia é uma vida
calma e tranquila, com alguém ao meu lado, someone to watch over me, sabes do
que é que estou a falar?
- Não sei, porque não é isso que quero. Mas também gosto imenso do
Gershwin, se é isso que me estás a perguntar. Espertalhão. Sabia que não me ias
falhar esta. Gosto de ti, miúdo. Pego-lhe na mão, com doçura e cuidado.
- Eu gostei de ti, assim que te vi. Gostei da tua voz, da forma como dizes
Inês. És especial, e tenho a certeza que vais conseguir tudo o que queres, e, por
isso mesmo, preferi afastar-me antes que...
- Tens medo. Compra um cão. Isso mesmo, compra um cão. Arranja um
namorado mais velho e compra um cão. Era o quadro perfeito, a ilusão de uma
vida normal, não era? - outra vez o tom sarcástico. Não tenho jeito nenhum para
este tipo de conversas, corre-me sempre tudo ao contrário.
- Já arranjei.
- O quê, o cão?
- Não. O namorado.
- Puta.
- O quê?
- Nada. Podias ter-me dito.
- Estou a dizer agora.
123
- Então, ficamos assim. Boa sorte. Não te volto a chatear. Levanta-se, tira
do bolso dos jeans uma nota de mil e deixa-a em cima da mesa.
- Isto é para pagar o meu almoço.
E sai disparado. Sim senhora, menina Inês, quem te ensinou a ser sempre
sincera com o próximo?
- O que se passa?
O Filipe prima pela discrição, mas a minha cara não engana ninguém.
Estou completamente a leste.
- Nada, estou só cansada e com trabalho a mais na editora. - E não anda
por aí nenhum fantasma a sair do armário? - Não. Só que, hoje, chateei-me com
um amigo meu, e fiquei irritada.
- Deixa lá. Se for mesmo teu amigo, isso passa. Amigos não se julgam,
mesmo que se zanguem, não é?
É, é, Filipe. Não queres ser antes meu amigo, em vez de andarmos aqui a
fingir que temos uma coisa qualquer parecida com uma relação?
- Pois não. Mas ele não era meu amigo, eu é que era amiga dele.
Lanço-lhe o isco, mas o Filipe não morde. Decide ignorar o que eu disse e
enceta uma conversação longa e animada sobre as próximas férias que está a
planear com as filhas. Observo-o atentamente. Ele não é o meu tipo de homem.
O que é que estou aqui a fazer? Será que o medo de ficar sozinha me está a
paralisar, de tal forma que aceito uma relação que sei que não tem amor, só pelo
pânico da solidão? Ou será que estou com ele porque controlo o que sinto e por
isso sei que, assim, estou defendida e não me vou magoar? E se eu pusesse a
mão na consciência e ouvisse o meu coração? Não, isso era muito frustrante:
podia correr o risco de ouvir batidas sincopadas, a dizer Mi-guel-Mi-guelMiguel... que seca. E a sinceridade, às vezes, magoa tanto as pessoas, que o
melhor é ficar calada, e ver o que é que isto dá.
- Hoje, não estás cá. O melhor é ir andando - diz o Filipe, fazendo-me uma
festa na cabeça, como se eu fosse uma das filhas dele. Que bom, sabe mesmo
bem...
- Desculpa.
- Não faz mal. Também tenho dias assim, mas não sou tão sincero como
tu, e disfarço. Mas fazes bem em não disfarçar. Se eu fosse mesmo sincera, não
ias gostar, mas deixa lá. Há coisas mais importantes que a sinceridade.
- Mesmo que quisesse, não conseguia.
- Ainda bem. Gosto de ti assim.
- Mas achas que gostas mesmo de mim? Quer dizer, o suficiente para
andarmos juntos?
- Não sei. Nem tu. Por isso é que estamos no mesmo barco, não é? - e
124
abraça-me com cuidado -, mas gosto muito de estar contigo e isso, agora, chegame. Se também te chegar, então está tudo bem, não está?
O Kiko tinha razão. Isto é mesmo a ilusão de uma vida normal.
- E se o fantasma voltar a aparecer? - pergunto-lhe, em tom de quase
desafio.
- Logo se vê.
- Não sei porquê, mas acho que ele deve andar por aí.
- Sabes, sabes. Tu queres que ele apareça.
- Quero. Que estúpida, estou a tentar enganar quem?
- Mas, enquanto ele não aparecer, vamos andando, não é? Enquanto
houver estrada prá andar a gente vai continuar, a gente não vai parar...
Jorge Palma, que bom. O Miguel ofereceu-me o disco, e eu ofereci um ao
Filipe. Daí a cantoria agora. Está a mostrar que aprendeu a lição.
- Tens razão. Enquanto houver estrada prá andar, está tudo bem.
- Então, até amanhã, minha confusa da Silva. Vou desaparecer da tua vida
- remata, a sorrir, com cara de miúdo.
- Vocês são todos uns Houdinis.
- Eu gosto é da parte das correntes. Malandro. Já me está a excitar.
- Vá, vai-te lá embora, senão isto hoje ainda acaba mal.
- Porquê? Por causa das correntes?
Ainda hesito em pedir-lhe que fique, antevejo uma óptima noite de sexo,
mas, e depois? Sexo não é tudo. Bem, quando há amor, é quase tudo, mas
quando não há, nem é assim tanto. É bom, mas dispensável. Prefiro adiar, para
um dia em que esteja menos aérea.
- Amanhã falamos.
E despedimo-nos com um beijo óptimo, daqueles que dá vontade de
gravar na memória e saborear de vez em quando. Vou-me deitar, mas não
consigo adormecer. Não sei porquê, mas sinto-me sobressaltada, como se me
fosse acontecer alguma coisa que não faço a mínima ideia do que é, mas que é
de certeza importante. A minha intuição não me deixa descansada. Será que o
Miguel está a voltar? Às vezes, sinto-me tão ligada a ele que é como se o visse a
andar, a comer, a adormecer, a ler, tipo espelho da madrasta da Branca de
Neve. É um amor visceral, que vem mesmo cá do fundo. Há muito tempo que
passou para debaixo da pele, já não tem nada de cutâneo. Ou, então, é uma
obsessão estúpida e, como sou teimosa e obstinada, resolvi agarrar-me a isto,
para não ter que enfrentar o que é a realidade sem o amor que tenho por ele.
Habituei-me viver assim e fiquei fechada na minha própria prisão. Cada
escravo carrega a chave da sua própria liberdade. Será que é mesmo assim? Ou
há existências estupidamente condenadas a sofrer? Não pode ser, tenho que ser
125
dona da minha própria vida, e, se não controlo o que sinto, meto o coração no
congelador, arrumo os assuntos amorosos por uns tempos e dou paz e sossego
à minha vida. Mas se o Miguel voltasse... ah, se ele voltasse! Enchia a casa de
flores, enchia-me de luz e de força, enchia o peito de ar e a cabeça de ideias e
projectos. Se o Miguel voltasse, voltava a encher a minha vida, mesmo que fosse
só por uma semana, uns dias, uma noite apenas... se o Miguel voltasse, sentiame outra vez viva, e isso já era tudo, mesmo sabendo que, depois da partida
dele, nada será como dantes, mesmo sabendo que não faço parte das escolhas
dele, mesmo sabendo que o Miguel tem alma de pássaro e nunca se há-de fixar
em ninguém, e que, por isso, não lhe posso confiar o meu coração. Mesmo
sabendo tudo, eu voltava a estar com ele, a sentir o peso do corpo dele em cima
do meu, a saborear-lhe a boca, as orelhas, os dedos, o sexo, voltava a viver
noites brancas e iluminadas, horas e horas a fio fixada no olhar dele, onde
sempre vi o mundo inteiro, a sentir-lhe a cabeça a descansar no meu peito. Os
homens são como os deuses: nascem e morrem nos braços de uma mulher, e eu
dava tudo para o voltar a sentir por perto, recuperar o cheiro e acordar os
sentidos com a voz, a pele e o toque da suas mãos.... o amor deve ser isto
mesmo. Já não me lembro do mal que ele me fez, da forma cobarde e infantil
como se foi embora. O Miguel voltava e eu abria-lhe a porta com o mesmo
sorriso das noites em que ele chegava tarde, me empurrava contra a parede e
me começava a amar ali mesmo, antes de me trazer para a cama. Estou a
antecipar o prazer e, a cada instante que passa, sinto que ele pode voltar, que
ele vai voltar e que talvez, então, eu feche um ciclo da minha vida e aprenda a
guardar a doçura de um amor que tive que aprender a perder. Amar deve ser
isto: deixar partir aqueles que amamos, porque, se os amamos, já os temos para
sempre connosco. Amar talvez seja a melhor forma de ter alguém, e ter alguém
talvez seja a pior forma de amar. Nunca deixarei de amar a minha mãe, cada
ano que passa sobre a sua morte sinto que a amo mais e que está mais perto de
mim, como se o seu espírito, aos poucos, tivesse descido à terra e entrado para o
meu corpo.
Vejo-me ao espelho e sou cada vez mais ela, nos gestos, na voz, nos
silêncios, nos gestos das mãos, no olhar, na cabeça e no coração. Eu soube
guardar a minha mãe porque a amava, porque nunca deixei de a amar, nunca a
esqueci, nunca me zanguei com ela por ter morrido, mesmo nos meses a seguir
à sua morte, em que chorava todas as noites com saudades e ela me aparecia
nos sonhos. Depois, com o tempo - que não apaga nada, mas suaviza tudo -, fui
aprendendo a lidar com a realidade, e percebi que ela estava presente, que o
corpo é só um artefacto para andarmos por cá, o espírito vive acima de tudo, e a
minha mãe está comigo para sempre. Como talvez o Miguel esteja, ou talvez
126
não. Mas o tempo há-de me mostrar o que ainda não sei, e, por isso, vou esperar
e aceitar, aceitar e esperar, e conjugar todos os dias estes verbos. The best things
come for those who wait.
No dia seguinte, a Carolina acorda-me outra vez aos beijinhos e pede-me
para irmos tomar o pequeno-almoço à pastelaria. É raro pedir-me, está
habituada a tomá-lo em casa, é viciada em corn flakes, mas apetece-lhe um
croissant com fiambre e um leite com chocolate. Como estou exausta e me fazia
bem um galão, aceito a ideia. O cotomiço fica tão contente que se veste sozinha,
e quase morro a rir de a ver com os ganchos tortos na cabeça, muito coquette, e
as alças da saia mal cruzadas nas costas. Devia haver um spray mágico para se
pôr nos miúdos e eles não crescerem. Ficavam para sempre pequeninos, a achar
que o mundo é um sítio bestial, onde pais, mães, tios e primos, são todos bons, e
uma tarde bem passada são três voltas no comboio fantasma e duas bolas de
algodão doce. Está extraordinária, com uma camisola de gola alta cor de rosa às
riscas e umas meias até ao joelho. É mesmo gira, a minha filha.
Entramos no café e refastelamo-nos cada uma com o seu croissant e é,
então, que acontece uma daquelas cenas que só tinha visto nos filmes. O
MIGUEL ENTRA NA PASTELARIA. O MIGUEL EM CARNE E OSSO,
DESPENTEADO E COM CARA DE SONO. ÀS NOVE E MEIA DA MANHÃ,
ENCOSTADO AO BALCÃO A PEDIR UM CAFÉ. E não sou só eu a vê-lo.
- Mãe! Mãe! É o Miguel! É o Miguel!
A Carolina desata aos gritos, salta da cadeira como se fosse um míssil e
corre para o balcão. O Miguel vira-se, fica ao mesmo tempo espantado e
emocionado de a ver, pega-lhe ao colo e abraçam-se. O Miguel tem os olhos
fechados e encosta a cara ao cabelo dela, balançando-a ligeiramente e, quando
abre os olhos, OLHA PARA MIM. Devia-me levantar, mas não sinto as pernas,
as mãos tremem tanto que largo o copo do galão e o Miguel vem devagar até à
mesa, debruça-se sobre mim e dá-me um beijo na cara, ainda com a miúda ao
colo.
- Olá...
- Olá... - parece-me que tenho o queixo a tremer. Ou talvez não, talvez seja
só a voz. - Não fazia ideia que já cá estavas....
- Voltei há uma semana... Ela está linda!....
- E porque é que não ligaste?
- Eu ia ligar... Claro que te ia ligar, mas tenho tido imensa coisa que fazer,
e... - e estavas com medo que eu te desligasse o telefone?
- Mais ou menos. Não, acho que não.
- Mas eu não desligava...
- Eu sei, querida.
127
Querida. Ele chamou-me QUERIDA.
- Estou tão contente por vos ter encontrado....
- Também eu.
E, feita estúpida, começo a chorar.
- Ó Mãe, porque é que está a chorar?
- Porque estou contente, querida. Quando fores grande, eu explico-te.
De repente, o tempo pára, o Miguel fica a olhar para mim e parece que
passaram mil dias. À nossa volta, o barulho esbate-se. É como se tivéssemos
entrado noutra dimensão.
- Oh... Não fiques assim....
- Deixa estar, são os nervos, isto passa - relativizo, afogando as lágrimas na
ponta dos dedos, até conseguir secar os olhos. Por fim, regresso à realidade e
pergunto-lhe se quer passar lá por casa hoje à noite. O Miguel responde
imediatamente que sim, como se já estivesse à espera do meu convite. Olho
para o relógio, são quase dez horas, estou mais uma vez atrasada. Conversámos
muito pouco, o suficiente para me dizer que alugou uma casa e que vai voltar a
trabalhar num atelier, mas que ainda não ligou ao Frederico. Estou tão
atordoada que todas as palavras me parecem inúteis. Precisava de estar pelo
menos meia hora abraçada a ele para isto normalizar, e, agora, tenho que ir
levar a miúda, e depois ao aeroporto buscar a escritora chilena que chega hoje.
Depois, tenho que ir almoçar com ela e com mais sete ou oito jornalistas. Não
posso parar o tempo e ficar com ele. Por isso, despedimo-nos com um abraço
longo e enorme, já fora da pastelaria, e combinamos que ele vai ter comigo às
nove.
Assim que chego à editora, penso em ligar à Ana para ela ficar com a
Carolina mas, depois, decido falar com a Teresa, que sempre foi mais cúmplice
e compreensiva. De certeza que, por uma noite, não se vai importar de ficar lá
com a miúda.
Conto-lhe tudo e peço-lhe para ela não dizer nada, e ela responde também
não valia a pena. Por isso, combinamos que lhe deixo a miúda às oito. Se ela não
estiver, a Maria abre-me a porta e, no dia seguinte, ela mesma leva a miúda ao
colégio, para eu poder estar mais à vontade. Acontece tudo muito depressa,
olho à volta e vejo as cores saturadas, doem-me os olhos e sinto-me longe, as
vozes das pessoas chegam distorcidas aos meus ouvidos, estou mergulhada
numa espécie de hipnose, e quando a chilena chega, sinto o espanhol
enferrujado, passo o almoço com os jornalistas totalmente absorta. O Nuno
percebe que se passa alguma coisa mas não faz perguntas, e quando chega o
fim do dia e vou buscar a Carolina e a deixo em casa da Teresa depois de
inventar que tenho um jantar de trabalho, regresso a casa, tomo um chá de
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limão e meto-me num banho de imersão.
Deus ouviu as minhas preces. Deus ou qualquer outra entidade divina. O
Miguel está aí a chegar, o Miguel voltou para Portugal. O Miguel está outra vez
perto, o Miguel, se calhar, ainda gosta de mim. Quando olho para o relógio, são
oito e meia e o meu telemóvel toca a música da Missão Impossível. É como se o
tempo nunca tivesse passado, e ele sempre tivesse feito parte dos meus dias. E
fez, só que não estava cá. O corpo dele não estava cá. O espírito dele esteve
sempre bem perto, dentro do meu coração.
- Olá... Estou só meia hora atrasado, mas já vou para aí, está bem?
Meia hora. O que é meia hora, em dias, noites, semanas, meses de espera?
A espera é o tempo de deixar crescer aquilo que há-de ser. Podias demorar mais
uma hora ou duas, Miguel, para mim era o mesmo. O mundo vai parar de
qualquer maneira quando tu chegares, e me agarrares, e eu voltar a sentir-te
outra vez dentro de mim, porque estiveste sempre aqui. Já não lhe tenho raiva,
nem ódio, a tristeza foi-se embora, sinto-me cheia outra vez, como um balão de
feira, como se tivesse cinco anos e me oferecessem três voltas no comboio
fantasma e dois novelos de algodão doce. Esperei muito tempo por este
momento e, agora, que tudo está prestes a acontecer, agradeço-lhe esta meia
hora de levitação, de delírio, de alegria, de medo, de paixão. Agradeço-lhe o
tempo que me faz esperar e que me vai fazer amá-lo ainda melhor. O prazer
tem memória. Por isso, visto-me lentamente, uma saia leve e uma camisa de
botões para, depois, ser mais fácil de tirar. A minha pele está quente e a boca
seca. Seco o cabelo com afinco e primor até ficar liso como o de uma gueixa, é
isso mesmo que sou. Vou abrir a porta a alguém que já ma fechou na cara, mas
não me importo. Quero o Miguel, quero vivê-lo e respirá-lo em todos os
instantes que a vida me deixar.
Oiço o estalar metálico do elevador a chegar. Logo a seguir, o instante
preciso em que a porta se abre, inundando o patamar de luz indirecta. Ele sai
rapidamente, dá dois passos largos, já vi rado para a minha porta, que abro no
segundo em que acho que é o certo. E agora, no momento eterno e irrepetível
que sempre antecede os nossos reencontros, só mais um passo nos separa. Mas
já não oiço nada, as suas mãos, a sua boca, tudo o que ele é, está aqui, junto do
meu corpo e em cima dele, por todo o lado, inundando-me de êxtase, prazer e,
de uma forma qualquer, de amor. O Miguel está aqui, o Miguel, o meu Miguel.
Repito, baixinho, acertando o ritmo das sílabas com o pulsar do meu coração.
Mi-guel, Mi-guel.
Miguel. É engraçado como amamos o nome daqueles que amamos.
São dez da manhã quando acordo, depois de ter dormido menos de três
129
horas. Do lado direito da cama o Miguel dorme de barriga para baixo, o cabelo
despenteado e fico algum tempo muito quieta a observá-lo. Está mais magro e
com uma expressão triste, a expressão de “homeless puppie” que sempre teve a
dormir. Um ou dois vincos que nunca lhe tinha visto na cara ficaram como
marca da viagem. Percebo agora que se deve ter sentido muito sozinho durante
bastante tempo, mas ainda nenhum de nós sabe se isso o suavizou ou o tornou
mais agressivo, e aumentou ainda mais o fosso entre ele e o mundo. Agora, não
faço perguntas, nem quero saber o que vai acontecer amanhã. O mundo são 18
metros quadrados, este quarto iluminado pelos fios de luz que as frestas das
persianas deixam passar, o Miguel e eu juntos outra vez, mesmo que a nossa
relação seja uma equação impossível e que ele não consiga ficar ao meu lado. As
relações vivem-se como se podem, e não como se querem. Talvez o Miguel se
tenha ido embora porque era isso que queria, mas agora que voltou e não sabe
bem porquê, nem para quê, talvez também ainda demore algum tempo e viaje
dentro dele, até descobrir o que, durante a viagem, não encontrou.
Ontem, entre e durante o amor, disse-me Hoje voltei por ti, mas não para
ti e eu respondi-lhe eu sei, só as mulheres é que fazem isso pelos homens, mas
não me importo. Tê-lo outra vez nos meus braços, agora, é tudo. E amanhã,
logo se vê.
Falámos muito, de tudo e durante muitas horas, como se o tempo que
temos pela frente não chegasse para todas as coisas que temos para contar,
numa avidez ainda mais violenta que acompanha as primeiras vezes em que se
anuncia a paixão. E o Miguel disse-me coisas importantes. Reconheceu que era
um atrasado emocional, enquanto que eu - e nunca me vou esquecer daquele
olhar iluminado, quando repetiu o que me dizia quando éramos namorados, há
coisas que nunca se podem esquecer, sob pena de enlouquecermos - estava tão
perto da perfeição. Explicou-me que é muito mais fácil dar do que receber, que,
enquanto viajava e absorvia tudo a uma velocidade astronómica, se apercebeu
de que há coisas e pessoas para serem consumidas, e outras para serem
cultivadas. Que a distância não é ausência, que eu tinha estado por lá sempre,
mais ou menos latente num canto qualquer escondido do coração, e que tinha
sofrido com a ideia de nos ter feito mal, a mim e à Carolina. Há momentos na
vida que valem por uma eternidade, momentos em que sentimos que os deuses
descem à terra através do nosso corpo e respiram o mundo pela nossa pele, nos
deixam para sempre um legado de amor e de paixão, mesmo que o amor seja
uma coisa e a vida outra. Não há palavras que cheguem para descrever a
plenitude de um amor perfeito, eterno e intemporal. E, por um dia que seja, não
quero regressar ao mundo normal, onde as pessoas correm de um lado para o
outro, vão ao supermercado e pagam impostos. Por um dia apenas, quero ficar
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aqui com ele, viver os meus sonhos. Não falámos do presente nem do futuro. O
passado ainda nos pesa, ainda que de formas diferentes. Estamos os dois
virados para ele, nem um nem outro reuniu ainda forças e armas para se
libertar de tudo. Há ainda destroços por limpar. E o medo que se instalou aos
pés da cama, hoje de manhã, voltou a perguntar-me o que é que eu estava a
fazer, e fiquei sem saber o que lhe responder.
Imagino o número de chamadas não atendidas no telemóvel desligado
desde as sete da tarde, e os recados da Teresa, do Nuno - a perguntar se não
vou hoje de manhã - do Filipe - meu Deus, esqueci-me mesmo que o Filipe
existia, que estranho! -, da Ana, a quem esta hora a Teresa já contou o que se
passa. E, de repente, sinto-me cansada, exausta, com vontade de fugir com o
Miguel e me esconder do mundo. Mas sei que isso é impossível, que tenho a
chilena à espera na editora e contratos para assinar, que, antes das seis, tenho
que ir buscar a Carolina, trazê-la para casa, fazer-lhe o jantar e dar-lhe banho,
ler-lhe um ou dois parágrafos da Menina do Mar e adormecê-la nos meus
braços, arrumar a cozinha e ler um bocado, procurar um filme na televisão ou
pôr a conversa em dia por telefone.
É isso que é a minha vida, e não o Miguel, deitado na minha cama, às dez
e meia da manhã, a estender-me os braços como uma criança e a pedir-me que
lhe traga leite com Ovomaltine e torradas com geleia.
Acordo-o com beijos por toda a cara, damos um abraço imenso e um
bocadinho triste, e saio de casa com a sensação de que peso menos dez quilos e
rejuvenesci 15 anos. És tu, és tu, sempre vieste, enfim! Oiço de novo o riso dos
teus passos... E agora? Sei que a sombra é inseparável da luz e a queda do voo,
mas só quero voar mais um bocadinho antes de cair, poder olhar o mundo de
cima e levitar, como o Miguel me ensinou, sem nunca perder a capacidade para
improvisar uma aterragem, ainda que mal calculada. Se o Miguel veio para ficar
ou não, isso agora não me interessa. O que é importante é que está comigo, e
estamos bem. E tudo o resto, a razão, a sensatez, o que pensa a Ana ou o Teresa,
o que sinto pelo Filipe ou qualquer outro pormenor da minha existência, não
são nada perante isto. É para viver momentos como este que vale a pena estar
vivo.
Quando chego à editora, quase às onze e meia, a Alice olha-me de lado,
espantada com a minha cara e o meu atraso, mas não lhe dou confiança, e
passo-lhe logo mais de cinco chamadas para me fazer. O Nuno foi passear a
chilena e por isso fico sossegada na minha sala a trabalhar. Agora, só falta ligar
o telemóvel, mas ainda não me apetece enfrentar o mundo. Por isso deixo-o a
dormir mais um par de horas.
A Teresa liga para a editora a reclamar o telemóvel desligado, e pergunta-
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me como foi.
- Foi muito bom. Mesmo muito bom.
- E agora?
- Não sei. Mas não quero pensar, quero saborear, não te importas???
Mas a Teresa percebe. A Teresa sabe que nunca deixei de gostar dele, que,
mal ou bem, ele faz parte da minha vida, que a presença dele é importante para
o meu equilíbrio. Por isso, encolhe os ombros à minha total falta de juízo e
deseja-me boa sorte.
- Sabes que isto não quer dizer que ele voltou para andar contigo, não
sabes?
- Sei.
- E sabes que, apesar de terem passado uma noite óptima, isso não mudou
nada, não sabes?
- Sei.
- E tens consciência de que ele é um miúdo lunático e pretensioso, um
egoísta que só pensa nele, não tens?
- Tenho.
- Então, adeus, que estou a pregar um sermão aos peixes. Não é, minha
pequena sereia?
E desliga. Pequena sereia. Como na história que estou a ler à Carolina, que
fala de um rapaz que ia todos os dias, ao fim da tarde, brincar com uma Menina
do Mar. Apaixonaram-se, e ele tentou fugir com ela dentro de um balde, mas os
polvos apanharam-no e quase o sufocaram. Quando acordou, a Menina
desapareceu e todos os dias ele ia à praia à procura dela, até que uma gaivota
lhe levou uma poção que lhe permitia ir ao fundo do mar, à procura dela.
Então, o rapaz mergulhou e atravessou os oceanos nas barbatanas de um
golfinho, viajou sessenta dias e sessenta noites até chegar a uma ilha onde
voltou a encontrar a Menina e os seus amigos, o polvo, o caranguejo e o peixe. E
o rapaz ficou lá para sempre com ela e, segundo o Rei dos Mares, desde que ele
chegou, a Menina nunca dançara tão bem.
Já li esta história vezes sem conta à Carolina, e ela diz sempre que quer ser
a Menina do Mar. Por isso, quando vai à praia, nada como um peixe, e eu acho,
embora ela nunca me tenha contado, que cada vez que sai da água, olha para as
pernas para ver se elas se transformaram, ou não, numa cauda de sereia. Outro
dia, quando íamos a passear com o Filipe de carro pela Marginal - a tal ilusão
de uma vida normal -, a Carolina apontou para o farol do Bugio, e perguntou: Ó
mãe, se tirarmos o pipo, esta água vai-se toda embora? O Filipe e eu rimos,
enternecidos, mas a Carolina continuou a divagar, disse que se a água se fosse
embora, ela ia ficar amiga de todas as Meninas do Mar que estivessem no
132
fundo.
Eu também sou esta Menina do Mar, também choro e danço mal quando
tenho saudades de quem gosto, mas não houve nenhum Rei dos Mares que
mandasse vir o meu rapaz, nem o rapaz que se apaixonou por mim largou o seu
mundo para vir para a minha ilha. O meu rapaz tem um mundo só dele, e vou
aprender, duma vez por todas, a respeitar isso. Talvez já tenha aprendido a
querer cada vez menos dos outros, mas cada vez melhor. E talvez agora, que
deixei de lhe pedir o que quer que fosse, ele me comece a dar o que sempre
desejei. Mas tenho que esperar alguma coisa dele, porque é quando já não
esperamos nada das pessoas que elas morrem no nosso coração, e eu quero o
Miguel vivo para sempre no meu coração, mesmo que nem sempre possa estar
perto dele.
Às duas e meia, depois de ter almoçado com o Nuno e a chilena e de ter
tomado um café duplo - a falta de sono está agora a dar sinal - a Alice passa-me
uma chamada do Miguel.
- Então, está com o telemóvel desligado?
- Estou.
- É que não lhe conseguia falar. Ainda estou aqui em casa. Não se importa,
pois não?
- Se pudesse, estava aí contigo, meu querido. Fica o tempo que quiseres.
- Não posso. Vou sair agora. Tenho uma entrevista, às quatro, para o
gabinete do pai do Rui. Era só para lhe dar um beijinho, e dizer-lhe que foi tão
bom... É sempre bom estar consigo.
Quase lhe pergunto se quer jantar, e ele quase fala nisso, mas contenhome. Está ainda tudo muito fresco, muito recente, o melhor é não forçar nada. O
melhor é ligar o telemóvel e preparar-me para enfrentar o mundo. Tenho uma
mensagem da Teresa, a perguntar como é que está a ser, anterior ao telefonema
dela para a editora. Uma mensagem do Filipe, a saber de mim e a dizer que liga
mais tarde. - Outra mensagem do Filipe, espantado porque não lhe respondi e
não consegue falar comigo. Uma mensagem escrita do Miguel, de hoje de
manhã, a falar de nós, a escorrer mel e doçura e uma mensagem do Nuno, a
dizer que foi passear a chilena pela Baixa.
Apago todas, excepto a do Miguel, e fico a olhar para o ar e a pensar a
quem é que ligo primeiro, porque não me apetece falar com ninguém. Ponho
um disco de jazz no meu leitor de CD's portátil e abro um manuscrito novo que
chegou, recomendado pelo Nuno.
Sexta-feira de manhã. Há três dias que o Miguel não aparece, mas vai
ligando, duas, três vezes por dia, e vai-me contando o que anda a fazer,
133
indeciso entre ir trabalhar para o atelier que dá apoio ao gabinete do pai do Rui,
voltar a trabalhar com o Frederico, ou fazer um atelier pequeno, com mais dois
amigos. Quase inconscientemente, recomendo-lhe o do Frederico, porque ali sei
que está protegido e o deixam trabalhar a sério. O Miguel ri-se, chama-me mãegalinha e diz que talvez apareça no fim-de-semana. Com o Miguel, é sempre
assim. Se ele fosse um animal, era um gato, arisco, orgulhoso, misterioso,
independente. E, se fosse uma palavra, era talvez. Mas eu já entrei no jogo, não
pergunto nem insisto. Se vier vem, se não aparecer, paciência. Nestes três dias,
tive tempo para descer à terra e falar com o Filipe. Mesmo assim, foi mais fácil
do que estava à espera. Deve ser da idade, mas, com o tempo, as pessoas já não
sofrem de forma tão absoluta a perda de alguém de quem gostam. Quando lhe
disse que o fantasma afinal tinha voltado, encolheu os ombros, respondeu que
já estava à espera, agradeceu o facto de ter sido frontal com o assunto, e
combinámos nunca deixar de ser amigos. No fundo, sempre fomos muito mais
amigos que amantes ou namorados, e tudo fica bem quando acaba bem.
A Teresa foi jantar lá a casa, na quarta-feira, e perguntou-me que raio de
relação eu tinha com o Miguel. Mas, agora, percebo que o Miguel tinha razão,
quando me pedia para não falar de nós às outras pessoas. É que parece
incompreensível aos olhos dos outros que eu seja feliz assim.
- Ele leva-te ao cinema? Ao teatro? A jantar fora? Ele leva a tua filha ao
circo e faz-te companhia?
- Não.
- Queres continuar a viver sozinha e apanhar migalhas de um puto que se
está a preparar para vir cá uma vez por semana a casa, molhar o bico e no resto
do tempo fazer a vida dele?
- Quero.
- Então, tu é que sabes. Olha que eu sempre fui um bocado masoquista,
com a merda da história do meu pai e esta vida do Vasco, mas tu andas-me a
bater aos pontos.
Pode ser. Mas, agora, prefiro viver assim, e esperar que o que o Miguel
quer, ou sente, se vá desenhando, primeiro, a lápis, como ele faz nas plantas,
com o medo do desconhecido, depois, a tinta da china, quando já tem a certeza
daquilo que quer fazer. Quero que vá ele gerindo a relação, porque ele é mesmo
assim, e como nunca tive razões para não confiar nele, e o adoro, jogo o jogo
que ele quer, porque é o único que posso jogar.
- As relações vivem-se como se podem, e não como se querem, respondilhe. E a Teresa, que vive assim há anos com o Vasco, não rebateu e foi-se
embora, com aquele ar triste das pessoas que já aprenderam a encolher os
ombros à vida.
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Hoje, apetece-me sair mais cedo, ir buscar a Carolina, pegar no meu
Peugeot azul escuro e ir passear até à praia com a minha menina do Mar. São
quatro e meia, quando me preparo para sair e a Alice entra no meu gabinete,
pede-me para falar comigo e fecha a porta com ar misterioso.
- Posso entrar?
- Claro.
- Posso-me sentar?
Ó diabo, aqui há gato. A Alice cheia de cerimónias. O que será?
- O que se passa?
- É que eu preciso de lhe contar uma coisa...
- O que foi?
- Este tal Miguel Soares... Quem tem ligado para si...
- Sim... O que é que tem?
- A Inês desculpe, eu estar-me a meter na sua vida, e perguntar-lhe isto,
assim, de forma tão directa: mas, por acaso... a Inês anda com ele?
- Porquê? Conheces o Miguel de algum lado?
A Alice está nervosíssima, com a cara contorcida e as mãos em grande
tensão, presas uma à outra como se tivessem cola, e já passou por três tons de
amarelo e quatro de verde, está completamente atrapalhada, e eu não estou a
perceber nada.
- É que... bem... parece-me, pareceu-me pela voz que ele é o mesmo tipo
que eu conheci no Algarve, há uns meses, quando estava cá de férias, e...
- E, o quê?
- Eu... quer dizer... eu tive um caso com ele... foi uma coisa um bocado
estúpida, e...
- E...
Estou estupefacta com tudo o que estou a ouvir. Aliás, estou tão
estupefacta que nem quero acreditar. Por isso, vou sair do meu próprio corpo
como dizem que fazem as almas dos mor tos e vou assistir de camarote a este
pequeno, mas decisivo episódio de telenovela mexicana que a vida me
reservou... Afinal, não é só a Teresa que vive momentos de telenovela de
terceira categoria. Agora, também me toca a mim.
- Eu não sabia que ele tinha namorada... Disse-me que ia fazer uma
viagem grande, daí a uns dias, e perguntou-me se... se queria ir com ele... Eu
tinha que voltar para Londres, mas já estava farta do trabalho lá... e... estava um
bocado perdida... A Inês sabe como são estas coisas....
- ... e foste para a índia com ele.
- Isso.
Isso. Isso é das melhores respostas que já ouvi. Ainda é melhor que mais
135
ou menos. Isso é mesmo muito bom. Só que o Miguel, nessa altura, ANDAVA
COMIGO. E esta CABRA foi com ele para a índia. FOI COM ELE. COM ELE. Se
estivesse no meu perfeito juízo, partia-lhe a cara a ela e a ele, mas, como já me
pus fora de mim e me sinto mais ou menos um detective a trabalhar a soldo por
uma causa alheia, mantenho o sangue frio e continuo a conversa.
- Então, e depois?
- E depois... aquilo correu muito mal. Nós nem nos conhecíamos bem, ele
tem um feitio insuportável, mal cheguei lá, arrependi-me logo, voltei uns dias
depois para Londres, mas já tinha faltado, e fui despedida... E depois é que vim
para Portugal... Conheci o Duarte e ele falou-me aqui da editora, e... e vocês
contrataram-me.
Sabias que ele tinha uma namorada? Foste para a cama com ele, antes de
irem para a índia, minha porca? Passam-me pela cabeça estas e mais setenta
perguntas, mas enterro as unhas na palma das mãos e concentro toda a minha
fúria na pele esticada dos nós dos dedos, e penso dois segundos antes de
perguntar: - E quando vieste cá, sabias que eu tinha sido namorada dele?
- Não. Juro que não sabia, Inês. Por favor, acredite em mim. Foi uma
coincidência infeliz.
Não há coincidências, minha parva. Não sabes que não há coincidências?
Que nada acontece por acaso?
- Pois foi. E então, porque é que só agora é que estás a contar isto tudo?
- Porque quando ele telefonou, há umas semanas, fiquei a pensar se era o
mesmo Miguel, e achei que era impossível. Mas, hoje, quando ouvi a voz dele
outra vez, tive a certeza. Por isso, liguei ao Duarte, perguntei.... se a Inês tinha
tido um namorado Miguel, que tinha ido para a índia... E o Duarte confirmou
tudo.
Ok. A minha assistente, uma miúda que eu até achava porreira, foi a gaja
que foi com o MEU namorado para a índia. Isto é muito bom. Eu tinha que
viver para isto me acontecer. A sério. Isto é do melhor que já vi,
- E ele nunca te falou de mim?
- Quer dizer... ele falava... falava de uma namorada mais velha, que tinha
uma filha que ele adorava, disse-me que tinha sido a única mulher de quem ele
tinha gostado.... mas nunca disse o seu nome, ou se disse não me lembro.
- Pois.
- Mas, quando eu entrei para cá, percebi que a Inês estava em baixo, até
pensei que a Inês e o Nuno tivessem alguma coisa... sei lá, às vezes, nestas
empresas pequenas, os sócios têm a ver um com o outro mais do que uma
relação de trabalho.... Desculpe dizer-lhe isto, assim, mas foi mesmo o que eu
pensei. Só que depois percebi que a Inês estava a ressacar de um desgosto por
136
causa de um tipo qualquer, e sabe como é, ouve-se um bocado de uma conversa
aqui, outro bocado ali... e soma-se dois mais dois...
E fica calada, especada a olhar para mim. Depois, esconde as mãos
debaixo das coxas e começa a balançar o corpo para trás e para a frente. Não sei
o que pensar, o que dizer, o que sentir, não sei nada, nem quero saber. De
repente, a cadeira onde a Alice está sentada levanta-se pelo ar com a força da
minha fúria e começa a rodopiar muito depressa. A Alice está lá em cima,
amarrada, aos gritos, completamente em pânico: Páre! Páre! E, então, eu lançolhe um raio malvado da ponta das minhas unhas, e a cadeira parte o vidro e
vai-se espetar, num voo de grande efeito plástico, contra uma das torres dos
prédios em frente.
- A Inês está-se a sentir bem? - pergunta, com um ar completamente
enfiado. Afinal, não voou pela janela, nem se partiu toda contra o prédio em
frente. Continua sentada e inteira, era só eu a delirar.
- Sim... mais ou menos. Queres-me contar mais alguma coisa?
- Não... queria só dizer-lhe que lamento imenso esta situação... e que
espero que este azar não ponha em causa o meu trabalho na editora. É que
gosto mesmo de cá estar e estou muito empenhada, por isso...
- Por isso, nem tens que te preocupar - corto, com aspereza - vá, vai lá à
tua vida, depois falamos melhor.
A Alice sai como se fosse para o corredor da morte e eu fico ali, colada à
cadeira, a tentar organizar os meus homenzinhos, que é como a Carolina chama
aos neurónios, mas sinto-me exausta, como se tivesse escalado o Everest num
dia, ou atravessado a nado o lago Vitória. Dói-me tudo, pernas, braços, cabeça e
coração. Doem-me os olhos e os ouvidos. Agora, adormecia durante seis meses,
era tão bom... Punha a Carolina em casa de alguém e desaparecia. Ou, então,
apanhava um avião a jacto e ia ao céu falar com a minha mãe. Outro dia, a
Carolina perguntou se também havia viagens de férias para o céu. Queria
conhecer a avó, que só vê nas fotografias, mas que ama como eu amo, porque os
filhos são mesmo assim: uma continuação de nós até crescerem. Por isso, eu
acho que, às vezes, ela chora com saudades da minha mãe e do Miguel, só
porque eu choro, como agora, completamente confusa com o que a Alice me
contou.
O Miguel não me podia ter feito isto. Nunca, desta maneira. Não me podia
ter mentido desta forma, ou, pelo menos, ocultado a verdade. Não lhe perdoo.
Isto, não lhe posso perdoar. Não pode ser o mesmo Miguel que dormiu na
minha casa, com quem fiz amor daquela maneira. Não pode ser. ISTO NÃO ME
PODE ESTAR A ACONTECER.
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- O que é que foi, mãe? Porque é que está triste?
Pronto. Com a cara feita num croissant amassado, por causa da merda do
ataque de choro, quando chego à escola, a miúda apanha-me logo.
- Não é nada, meu amor... É que fiquei triste com umas coisas, mas já
passou.
- É por causa da avó?
- Não, querida.
- Então, é por causa do Miguel. Quando a mãe chora, é sempre por causa
da avó ou do Miguel.
E olha-me, com o ar mais consternado do mundo, muito empática, à
espera que eu lhe conte, mas fico calada, baixo-me à altura dela e dou-lhe um
abraço gigantesco, infinito.
- Isto passa, querida. Queres ir ao cinema?
- Agora? Agorinha mesmo?
Ir ao cinema durante a semana é um programa tão invulgar que a Carolina
nem acredita.
- Vamos ver aquele filme dos cães e dos gatos que estreou esta semana.
São seis, deve haver uma sessão às seis e um quarto. E, depois, se quiseres,
vamos ao Mac Donalds.
- Siiiiiiiiiiiiim! - grita a miúda, entusiasmada, - A mãe é mesmo a mais
querida, sabia? és a mais querida e a mais linda.
- Não me trate por tu, que eu não tenho a sua idade
Meia hora depois, estamos refugiadas no escuro com um écran gigante à
frente onde cães e gatos, todos muito inteligentes, se debatem pelo poder no
universo. A Carolina comprou um balde de pipocas do tamanho dela, mas
quase não as come, de tal forma está absorvida no que vê. O filme é
completamente idiota, mas pelo menos tem o mérito de desligar a torneira da
choradeira. Que estupidez, pareço uma criança a quem roubaram o cão. Mas
apetecia-me ter esta idade outra vez, olhar para tudo e ser tudo novo,
adormecer com a cara encostada à mão da minha mãe, e achar que sou a pessoa
mais feliz do mundo porque há restaurantes que servem hamburgers, com
bonecos incluídos. Quando éramos miúdos não havia nada disto, a coisa mais
moderna que o Marcelo e eu podíamos ambicionar, era um Sumol de ananás e
um cachorro. Não falo com o Marcelo há meses, não sei onde vive, nem por
onde anda. Tenho medo de, um dia, receber um telefonema anónimo a avisarme que o encontraram num sítio qualquer, estranho. E nem sequer tenho ido a
casa do meu pai, mas não me parece que ele se importe. A Elsa de certeza não
se importa: quanto menos a vir, melhor. Por isso, dou a mão à minha boneca
articulada que solta gargalhadas deliciosas, daquelas que dá vontade de
138
apanhar com a mão, e penso que a minha família é ela, a Ana e o Frederico, a
Teresa e o Duarte, e que, se pensar bem, tenho os melhores amigos do mundo,
uma vida inteira pela frente cheia de coisas boas. Não me posso ir abaixo por
causa das Alices e dos Miguéis desta vida, tenho que ser superior a tudo,
emprestar ao que sinto uma leveza qualquer, que não sei onde irei buscar,
encolher os ombros à vida e, mais uma vez, conjugar o tal verbo que me parece
tão difícil, em qualquer tempo ou modo: o verbo aceitar. Aceitar que o Miguel
me mentiu, aceitar que, quando se foi embora talvez já nem gostasse de mim,
aceitar que ele já não faz parte da minha vida, que ele voltou, mas não para
mim, e que saber amar alguém também é saber guardar o que fica desse amor
sem mágoa, guardar a doçura, e deixar que o tempo vá limpando tudo.
Enquanto nos empanturramos com batatas fritas e hamburgers, o Filipe
liga, mais uma vez hesito entre atender ou não e, por pouco, a miúda não me
atende o telefone. Ralho-lhe, enquanto o guardo na carteira. Não consigo falar
com ele agora, não consigo falar com ninguém, preciso de fugir, de me isolar,
talvez vá para o Alentejo com o casal perfeito. Qualquer coisa que me tire de
Lisboa e me faça esquecer, nem que seja por uns momentos, este episódio rasca
de série australiana dos anos 80.
- Quem era? - pergunta a Carolina, muito sonsa, a fingir que estava
entretida a montar o boneco, mas atenta a todas as minhas reacções.
- Era o Filipe.
- Porque é que a mãe não atendeu? Ele Já não é seu namorado?
- Mas quem é que te disse que ele era meu namorado?
- Ninguém. Eu é que achei. Era, ou não era?
- Não.
- Que pena. Esse é que era um bom namorado para a mãe. E, pelo menos,
não a fazia chorar...
Já a formiga tem catarro. Vai fazer seis anos, e é isto, já tem opiniões sobre
tudo e mais alguma coisa.
- Mas, porque é que gostas tanto dele?
- Porque ele gosta da mãe, senão não telefonava tantas vezes.
Até pode ser, mas a questão não é essa, minha sereia: é eu gostar, ou não,
dele. Mas tu és muito pequena para perceber estas coisas.
- E o que é que uma menina da tua idade sabe destas coisas?
- Sei muito. Sei que o Miguel nunca mais vai voltar, e que a mãe não devia
ter mandado o tio Filipe embora... Se a mãe se casasse com ele, eu ficava com
mais três irmãs...
Se ao menos na vida tudo fosse assim tão simples.
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As mulheres são mesmo o bicho mais estranho do mundo. Um dia, está
tudo bem e, no dia seguinte, dá-lhes um ataque de estupidez e ficam
transtornadas. Eu sabia que era um erro voltar a ver a Inês, mas há quem
aprenda com os erros e quem os aproveite para criar hábitos. A Inês não foi um
erro. Pelo contrário, tudo o que vivi com ela e que ela me deixou, ajudou a
tornar-me numa pessoa melhor. E em muito mais coisas do que eu próprio
pensava que era possível. Mas não devia ter lá ido, nem devia ter lá ficado a
dormir com ela. Para quê, se sei perfeitamente que não vou voltar a andar com
ela, e depois de tudo o que ela passou por causa de eu ter acabado? Mas eu não
podia resistir, era impossível. Aprendi, desde muito cedo, a resistir tanto ao que
me pode fazer mal como fazer bem. Se calhar, é por isso que nunca me
apaixonei a sério por ninguém, e, para mim, as mulheres sempre foram de
consumo rápido e fácil. Quando se treina o corpo e o espírito a não criar laços, é
muito mais fácil viver. Ascende-se a uma espécie de levitação, onde ninguém
nos toca, e vemos o mundo por cima. A Inês é o oposto de mim. Voa alto, sonha
com tudo e imagina cenários impossíveis e, depois, quando cai, fica totalmente
destruída. Não se sabe proteger, nunca soube, e faz-me impressão a forma
desprotegida como se entrega à vida. Porque merda é que tem o telefone
desligado desde ontem? Já lhe tentei ligar mais de cinco vezes, mas não deixei
recado. Para quê? Se ela quiser, que me ligue.
Não sei o que hei-de fazer. Gostei de falar com o pai do Rui e o atelier tem
bom ambiente, mas gostava muito mais da equipa e dos projectos do Frederico.
Com que cara é que apareço lá, agora, depois de tudo o que aconteceu? Ainda
por cima, ele e a Ana estiveram de certeza com a Inês, estes meses, a ouvi-la
queixar-se de mim, como se nunca a tivesse amado, nunca me tivesse entregue
a ela, e nunca a tivesse tratado bem. É injusto. Eu dei-lhe tudo o que na altura,
podia dar, mas queria ter a minha vida só para mim, não me podia agarrar a
alguém tão cedo. Se calhar, é esse o meu problema: conheci a mulher da minha
vida cedo demais, mas paciência. Não preciso de amor, não preciso de nada
nem de ninguém, a não ser do meu irmão, dos meus amigos. Laços sem nós,
gratuitos, que nada me impeça de viver como quero e de fazer o que me
apetece.
Mas não percebo o que aconteceu, quero falar com ela, ouvir a voz dela,
perceber como se sente, o que é que se passa. Passo por casa dela ao fim da
tarde e não está ninguém, nem o Peugeot novo está à porta. Talvez já tenha ido
para o Alentejo com o casal maravilha. Que enjoo!... Ainda por cima, agora com
uma criancinha a caminho, ninguém tem paciência para tanta felicidade.
Ligo ao Duarte e combinamos ir jantar e beber um copo. É um tipo
porreiro, pelo menos não toma partido. No fundo, é um tipo como eu. Tem bom
140
coração, mas só faz o que lhe apetece.
Encontramo-nos às nove e vamos a uma tasca do Bairro Alto, daquelas
onde uma dose dá para três, abrimos uma garrafa de vinho e falamos de
futebol, e claro, de gajas. Da minha amiga Mariana, a quem ele acha uma piada
do caraças, das miúdas com ar de empregadas de centro comercial que estão a
jantar na mesa ao lado da nossa, e claro, da Inês.
- Tu sabes que ela ficou na merda quando te foste embora, não sabes? pergunta o Duarte.
- Sei. Mas não penses que tenho remorsos, ou uma merda dessas. Eu
nunca lhe prometi nada.
- Mas ela adorava-te.
- E eu também era doido por ela. Só que, olha, não deu mais.
- E agora?
- Agora, não sei. Mas não vou voltar.
- E já lhe disseste?
- Porquê? Achas que ela não sabe?
- Acho que não. Sobretudo se continuas a ir para a cama com ela.
Foda-se. Ela não sabia estar calada?
- Foi o que ela te disse?
- Não foi preciso ela dizer-me. Mas ouve, meu, eu não tenho nada a ver
com isso, percebes? Só que ela é das minhas melhores amigas e é chato vê-la na
merda.
- Pois claro, pá, tens razão.
- Eu gramava à brava arranjar uma miúda a sério. Isto de andar a comer
gajas também, às tantas, cansa um bocado.
- A mim, não me cansa nada.
- Mas uma namorada é outra coisa.
- Pois é.
Ficamos um bocado calados. Mulheres. São mesmo o bicho mais estranho
do mundo.
- Eu acho é que tu lhe devias contar a história da Alice.
- Qual história da Alice?
- Que foste com ela para a índia.
- Mas como é que tu sabes essa merda?
- Veio-me parar aos braços, quando voltou.
- Quando voltou de onde?
- Da índia, pá. Depois de ter estado contigo.
- Não é possível!!!
- Pois não. Mas é verdade.
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- Ouve, tu sabes como são as gajas, inventam merdas e têm a mania de
romancear a realidade. Eu não fui com ela para a índia. Ela é que se pendurou,
e, ao fim de dois dias, já nem a podia ver, essa gaja é uma chata.
- Pois é. Mas é boa como o milho.
- Puta de vida!
- Podes crer.
- Esta merda não pode ser verdade! Mas conheces a gaja, de onde?
- Ora, de onde é que há-de ser? Da noite, como às outras todas!
- Claro. Mas andaste com ela?
- `Tás parvo? Demos umas voltinhas!
- Mas o que é que ela tem a ver com a Inês?
- Nada...
E começa-se a rir, com cara de coelho estúpido. Este gajo está-me a gozar.
- Porque é que te estás a rir, cabrão?
- Porque a Alice é assistente da Inês na editora.
- Não!
- Sim!
Foda-se. Estas merdas não me podem acontecer. Isto não é possível.
- E, a esta hora, a Inês já deve saber....
Ok. Isto vai de mal a pior, mas se calhar eu até mereço esta merda. Se
calhar sou mesmo um filho da puta e vou-me lixar à força toda.
- Porquê?
- Porque me ligou a perguntar se eu conhecia um tal de Miguel Soares,
que ligava para a Inês, e percebeu que era o mesmo com quem tinha ido para a
índia.
- E porque é que lhe há de ter contado?
- Eu não sei se contou, ou não, mas a Inês é chefe dela e ela já se lixou uma
vez por tua causa.
- Calma aí, eu não tirei a menina do trabalho dela em Londres. Ela é que se
baldou para ir comigo. Se foi despedida, o problema é dela!
- Seja como for, sabes como são as mulheres, têm aquela mania da merda
da frontalidade.
Pronto, estou fodido. Agora é que estou mesmo fodido. Se a outra puta
contou à Inês, ela nunca mais olha para a minha cara e acabou-se tudo. TUDO.
MERDA, MERDA, MERDA. E agora? Agora aguento-me à bronca. Não era a
Inês que dizia que eu tinha uma capacidade de abstracção tal que aguentava
tudo? Isto não é o fim do mundo.
- Pode não ter contado.
- Pois pode. Mas tu podias ter-lhe contado. Assim, poupavas-te a esta
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merda.
- Mas para que é que eu lhe ia contar? Tu não sabes como é? Quando uma
gaja não tem importância nenhuma, um gajo conta aos amigos, não conta à
namorada. Só ia servir para ela ficar ainda mais furiosa comigo, e já lhe fiz mal
suficiente, merda, merda, merda.
- Mas se, por acaso, a Alice já lhe contou, então é que ela se chateia mesmo
contigo.
Pois é. Que merda! Porra, dói-me a cabeça. O copo de vinho que está à
minha frente começa a dançar sozinho.
- Estás bem, pá?
- Estou, claro que estou, meu. Esta merda também não é o fim do mundo.
- Pois não. E é como diz o Manuel João Vieira - e começa a cantar, com o
ritmo e a entoação certas - se bates com a carola / na parede, por uma mulher /
não partas mais a tola / mata a sede com outra qualquer...
Porra, este cabrão tem piada, mas não estou com vontade nenhuma de rir.
E se a Inês a esta hora já sabe da merda da Alice? Se calhar é por isso que tem o
telefone desligado. E agora? O que é que eu faço? O QUE É QUE EU FAÇO?
- E o que é que eu faço, meu?
- Nada. Falas com ela. Ou, então, se ela não quiser falar contigo, esperas
que ela acalme e depois falam os dois. Mas não estejas com esse ar de pânico,
também não mataste ninguém.
- Não estou nada com ar de pânico, pá. Gostava é que esta merda não
tivesse sido assim. Agora, ela vai pensar que eu a enganei e, quando lhe
explicar que me estava cagando para a outra, vai achar que sou um pulha.
- Pois vai. Mas depois passa-lhe. Sabes como é a Inês, tem um coração do
tamanho do mundo e, além disso, adora-te.
- Merda.
- Podes crer. Não me apetecia estar na tua pele. - Nem a mim..
Já sei. Escrevo-lhe um mail. As palavras escritas são mais sérias, mais
sinceras, mais certas e ouvem-se melhor. Ela está habituada a falar comigo por
palavras escritas. Conto-lhe como tudo aconteceu, explico-lhe como me sinto, e
que nunca lhe quis fazer mal, que a guardo comigo para sempre, que, se
pudesse, dava-lhe tudo o que ela quer e merece, mas não posso porque não sei.
Porque não é isso que eu quero, porque sou feito de outra matéria, e só sei viver
avulso, por mim e para mim. Mas que isso não quer dizer que não a tenha
amado, que, de certa forma, não a ame ainda. Nunca desejei tanto uma mulher,
nunca me senti tão amado e protegido, nunca dei e recebi tanto, nunca vivi um
amor assim. Talvez a Inês seja mesmo a mulher da minha vida, mas não posso
abdicar da minha vida para ficar com ela, e ela tem que perceber isso. Ela
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merece mais e melhor, merece um tipo que seja dedicado, o que eu não sou, que
tenha espírito de família, que eu não tenho, que lhe dê segurança, uma casa, um
projecto de vida, talvez mais um filho.
Agora que penso nisto tudo, tenho tantas coisas para lhe dizer que nem sei
por onde começar. Talvez comece pelo fim, pelo prazer enorme que é estar com
ela, esta ansiedade quase incontrolável que antecede os nossos reencontros, de a
ter, de a agarrar, de ficar horas e horas na cama com ela, a descansar encostado
ao peito dela, a ouvir as batidas dos nossos corações até se encontrarem no
mesmo tempo e modo. Como eu gostava de poder ver crescer a Carolina e darlhe beijos todos os dias! Como ela me encheu a vida e o coração, e me mostrou
uma forma completamente nova de ser e de estar, me emprestou uma luz que
não conhecia, como ela sempre foi a mais querida e mais linda, a melhor pessoa
que conheci, apesar dos seus medos, das suas tristezas e das suas infantilidades.
Como o seu nome, escrito nos vidros do comboio, quando atravessava a terra à
procura de mim próprio, me fazia companhia e me guiava como uma bússola,
como sonhava com ela e a desejava e tantas vezes a via, sem saber, em outros
corpos com quem apenas trocava fluidos e desespero, ainda e sempre à procura
de mim, dela, não sei já bem de quê. De como ela me ensinou a conhecer-me
melhor, a ouvir-me melhor, a procurar em mim os defeitos em vez das
qualidades. Do legado imenso de doçura e paixão que ela me emprestou para
sempre. Do seu olhar de menina pequenina, das suas mãos claras, do tamanho
das minhas, da sua pele com cheiro a bebé, igual à da Carolina, da sua cara
mimada quando dormia ao meu lado, do seu jeito especial para falar comigo e
me suavizar o coração. De como eu gostava, daqui a uns anos, que nos
voltássemos a encontrar, de ter um filho com ela e dar-lhe o que agora não
posso, não quero, ou não sei.
- Estás cá, Miguel? Sentes-te bem?
- Claro que me sinto bem, meu. Estava só a pensar aqui numas merdas.
- Queres sobremesa?
- Não, só um café.
- E onde é que vamos?
- Acho que não vou.
- Então?
- Tenho que ir para casa.
- Para casa? Numa sexta-feira à noite, em que isto deve estar cheio de
material novo?
- Não estou numa de saque. Não me apetece ver gajas.
- Bem, como queiras. Mas eu, vou prá guerra, que a noite é um depósito.
- E tu estás a precisar de mudar o óleo, não é?
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- Podes crer. Há coisas fundamentais para a saúde de um tipo, e mandar
uma trancada é uma delas.
- Então, pede a conta. E boa caçada, meu.
- Olha... Não entres em stress por causa daquela merda da Inês. Fala com
ela, vais ver que vocês se vão conseguir entender. - Isto é uma merda, Duarte.
Eu gosto mesmo dela, percebes? Eu gosto dela como pessoa, a última coisa que
queria era magoá-la.
- Mas já magoaste. Olha, eu amanhã vou ao Alentejo almoçar com ela e
com a Ana e o Frederico.
- Então tu sabes onde é que ela está e não me dizias nada? - Pensei que
soubesses, mas isso agora também não é importante. Deixa estar. Eu amanhã
falo com ela e tento perceber o que é que se passa. Mas tem calma, meu. Ela vai
ter que te ouvir e vais resolver isso.
Gajas. Fodem-nos mesmo a vida. Mesmo quando gostamos delas e elas de
nós, dá sempre merda. Estou mesmo chateado com isto tudo. Nunca contei à
Inês a história da Alice, fui cobarde e estúpido. Omiti-lhe uma coisa que não
tem importância nenhuma e, agora, passo por mentiroso e filho da puta. Mas
ela vai perceber. Ela é inteligente, ela TEM que perceber que isto não interferiu
em nada do que eu senti ou sinto por ela. Eu só gosto mesmo dela, bolas. Só
soube gostar, ao longo da vida, de meia dúzia de pessoas, mas a Inês é uma
delas, está à frente de todas as outras mulheres, é uma referência obrigatória na
minha vida e eu só lhe quero bem, só lhe quero fazer bem.
A caminho de casa, paro numa loja de conveniência e compro uma
embalagem de cervejas, algumas revistas e um maço de cigarros. Espera-me
uma noite longa, e quero que não fique nada por dizer. Quero que ela perceba
tudo, mesmo que não aceite. Mesmo que nunca mais me fale, quero que me
oiça. As palavras estão do meu lado. E o tempo, também. Abro o computador e
demoro alguns minutos antes de mergulhar no teclado. Vai-me doer escrever
esta carta, mas a tristeza de a saber a sofrer por minha causa já me está a
destruir. Não posso, não quero, não vou deixar que, por uma merda destas, eu a
perca como pessoa. A Inês está acima de tudo isto, está acima de tudo.
Lisboa, meia-noite e um quarto Minha querida Inês...
- Então? Vais ficar o fim-de-semana todo calada?
- Não. Deixa-me estar que eu já falo.
A última vez que estive aqui, com o Frederico, a Carolina e a Ana, o
Inverno estava a chegar ao fim. Andámos a passear, o Miguel estava no Algarve
e tudo parecia bem. A Ana já devia estar à espera de bebé, mas não sabia e eu já
devia estar à espera que o Miguel me trouxesse problemas, mas também não
145
sabia. É sábado à tarde e desliguei o telefone para o Miguel não conseguir falar
comigo. Desde ontem que não o atendo. Fiquei de tal forma em estado de
choque com a história da Alice que nem sei o que pensar. Por isso, depois do
cinema, cheguei a casa, deitei a Carolina e enfiei um calmante pela boca abaixo,
à espera que o sono viesse. Não sei se o Miguel ligou ou não, porque desliguei
tudo e, hoje de manhã, só liguei o telefone para combinar a que horas é que a
Ana e o Frederico me vinham buscar e depois desliguei logo. Não foi fácil, tive
que me controlar e não ouvir as mensagens recebidas, mas nem sei o que pensar
de tudo isto. Só a ideia de ouvir a voz do Miguel dá-me vómitos. Ontem à noite,
depois de tudo, ainda me enfiei debaixo do duche meia hora, esfreguei a pele,
mas a sensação de nojo continuava entranhada e chorei até ficar rouca e com a
cara marcada. Acho que só o tempo vai resolver esta história, mas a tristeza
voltou outra vez e agora agarro-me a ela para não ter que pensar. Não sei se a
Carolina percebeu, ou não, alguma coisa, mas estou-me nas tintas. Não consigo
ser sempre perfeita, a mulher impassível, a editora competente, a super-mãe e
uma pessoa cem por cento bem disposta, calma e equilibrada todos os dias,
sobretudo naqueles em que descubro que a minha assistente se meteu debaixo
do meu namorado e foi com ele para a índia. Há limites para tudo, e eu estou a
chegar ao meu. Por isso, decidi fazer como as avestruzes: enterro a cabeça por
debaixo da realidade, à espera que passe. E o pior é que não estou sequer em
estado de ouvir recriminações e o clássico, eu bem te disse, que tanto me irrita.
Não me arrependo de ter estado outro dia com o Miguel. Ele traz à minha vida
uma luz que me faz sentir uma pessoa diferente, como se emprestasse à minha
existência uma dimensão totalmente nova, mas até que ponto isto é mesmo real,
e não um sonho adolescente que vou alimentando à custa da minha sanidade
mental, porque simplesmente não consigo aceitar a ideia de viver sem ele?
O Miguel não foi um caso, não foi mais um namorado, uma tentativa, um
acidente de percurso. Foi só e apenas a pessoa que mais amei em toda a minha
vida, com quem me dei melhor e com quem fui mais feliz. E esquecê-lo é agora
o meu maior desafio. Como e quando é que não sei. Mas vai ser muito difícil
falar com ele sobre isto tudo, confrontá-lo com a história da Alice - que eu sei
que nem sequer teve importância nenhuma, mas que me recuso a engolir - e
sobre tantas outras coisas que nos unem e nos separam.
A Ana convida-me para ir dar um passeio, mas tacitamente recuso,
esperando que o Frederico perceba que quero desabafar um bocado com ele. Ele
percebe imediatamente e a Ana também, por isso enfia um chapéu de palha na
cabeça e outro na da Carolina, dá-lhe a mão, e diz:
- Só voltamos daqui a um bom bocado - com aquele sorriso doce que as
mulheres oferecem umas às outras, quando percebem que não as podem ajudar
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de outra maneira. E sai porta fora, muito orgulhosa, de mão dada com a
Carolina, a brincar às mães.
O Frederico senta-se ao meu lado, dá-me a mão e fica muito quieto, a olhar
em frente, porque ambos sabemos que quando os nossos olhares se cruzarem
desato a chorar. Mas ele conhece-me como ninguém. É o irmão que nunca tive:
desde o liceu que me ouve e me entende. São quase vinte anos de convivência e
proximidade. A ele posso dizer tudo o que penso e sinto, porque ele ouve tudo,
percebe tudo, ou, pelo menos, aceita tudo, mesmo que não perceba e as suas
palavras são sempre de conforto e alento.
- Estás quase a ser pai.... - começo, timidamente.
- Pois é. Agora é que a minha vida vai mudar. Só espero é que corra tudo
bem. Depois do que a Ana passou....
- Claro que vai correr. Vocês merecem.
- E tu também merecias, não achas? - Merecia o quê?
- Ter alguém ao teu lado, que gostasse mesmo de ti, te tratasse bem, te
protegesse e te fizesse companhia...
- Mas já te tenho a ti! - e rimo-nos os dois. O Frederico olha para mim, e é
então que começo a chorar.
- Quando é que isto pára? - pergunta - Quando é que deixas de te meter
em situações que só te podem fazer mal?
- Não sei.
- E, desta vez, o que é que aconteceu?
Então, conto-lhe a história da viagem, a conversa com a Alice, a noite que
o Miguel passou lá em casa, antes de eu descobrir esta coincidência
completamente estúpida, e como me sinto uma idiota perante o absurdo e o
ridículo da situação, e o Frederico ouve-me sem me interromper, até que me
esgoto nas descrições, considerações e especulações a que o tema me leva. - E já
falaste com ele?
- Não. Achas que devia falar?
- Não sei. Se calhar, era melhor nunca mais falares. Assim, cortavas o mal
pela raiz e afastavas-te definitivamente dele e desse tipo de situações, percebes?
Pode ser muito doloroso agora, mas depois vais ver que é mais fácil. Ou menos
difícil.
- Mas não achas que eu lhe devia, ao menos, perguntar o que é que se
passou e porque é que ele fez isto?
- E o que é isso te adianta? Não percebes que é essa maneira de ser e de
estar que está toda ela errada? Quer dizer, não sei se está, ou não, errada... e eu
não sou ninguém para julgar os outros, mas não achas que isso demonstra que
ele não tem valores, nem princípios?
147
- Ele pode ter agido mal comigo, mas, no fundo, é bom. Ou vais-me dizer
que nem tu nem eu nunca fizemos mal a outras pessoas? - respondo, em tom de
protesto.
- Não, não é: pode não ser má pessoa, mas não é uma pessoa pura. As
pessoas nunca são nem completamente boas, nem totalmente más; mas há
pessoas com princípios, e outras que vivem ao sabor dos instintos e dos desejos
mais primários. E ele é desses. Não que eu o ache um tipo mau, mas não lhe
vejo nenhuns princípios. Ele andou contigo um ano, vivia praticamente em tua
casa, brincava com a tua filha, dizia que gostava de ti e, de um dia para o outro,
foi fazer uma viagem, só porque ganhou dinheiro com um prémio que eu
incentivei a concorrer! Que tipo de pessoa é esta que, mesmo gostando de ti, se
vai embora de um dia para o outro? Ainda por cima, sabemos agora, com uma
tipa qualquer, que conheceu uns dias antes, na noite? Não sei, se calhar sou eu
que não vivo neste mundo. Mas não quero viver neste mundo em que as
pessoas agem sem pensar, sem o mínimo de responsabilidade.
-- Eu também não quero.
- Eu sei, por isso é que toda esta história me revolta. Eu vi-te, nestes meses
todos, a sofrer por uma relação que, no fundo, tu sabes que é inviável. O que é
que um miúdo de vinte e cinco anos te pode dar? E por mais coisas boas que ele
te dê, - e que acredito que até foram algumas e importantes - não tem um
projecto de vida contigo, não está ao teu lado para o que der e vier, não te apoia
incondicionalmente, não te leva leite com mel à cama se tu ficares doente, não te
protege, não está contigo, percebes?
- Mas eu gosto tanto dele!
- Eu sei. Ele é que não gosta de ti da mesma maneira, e tu tens que
aprender, duma vez por todas, que não se pede amor a ninguém, nem se dá a
quem não merece. Mais vale estares sozinha do que prolongar essa tristeza.
Livra-te disso, aproveita este episódio triste e caricato para arrumar o assunto
de vez e recomeça da estaca zero, mas recomeça por ti e para ti, sem bengalas,
nem Filipes, nem Trutas, nem nada. Tens uma filha que te adora, tens um
trabalho óptimo, tens-nos a nós, tens 35 anos e a vida toda à tua frente. Mas és
tu que tens que dar o salto e livrar-te do que te faz mal. Senão, daqui a uns anos,
estás cansada, sozinha e, pior do que tudo, amargurada com a vida. E aí é que
vais envelhecer.
- Tens razão.
O Frederico abraça-me com cuidado e encosto a cara ao ombro dele. Aqui,
sinto-me protegida, tranquila, a salvo. É estranho, não me lembro da última vez
que abracei o meu pai...
- Eu não quero ter razão. Quero que penses um bocado em ti; que isto te
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sirva de pretexto para mudar alguma coisa. Se não te sabes proteger, arranja
alguém ao teu lado que te proteja, como eu fiz com a Ana. A nossa relação nem
sempre é uma loucura de paixão, mas sabemos que podemos contar um com o
outro para tudo, e isso, minha querida, é que é amor. O homem certo não é o
que te faz declarações e te dá flores, e te escreve do outro lado do mundo, e que
te diz que és perfeita. O homem certo é o que quiser estar mesmo ao teu lado,
incondicionalmente. O que gostar de ti sempre, que te acompanhe para o que
der e vier. Não é o que olha todos os dias para ti e te diz que és linda e que és o
amor da vida dele, mas alguém que olha por ti todos os dias, percebes? E é esse
homem que merece todo o amor que sentes agora, não é um miúdo convencido
que é o maior, que nem sequer te sabe tratar bem. Tens que ser mais sensata e
mais cautelosa. É só isso.
É só isso. Como se isso fosse pouco.
- E onde é que ele está?
- Não sei, mas não está de certeza na faixa dos 25 anos. Nessa idade, ainda
se viveu pouco, ainda não se perderam as pessoas suficientes para se dar valor
às coisas mesmo importantes.
Por um momento, pára de falar, vai à cozinha buscar dois copos de sumo e
estende-me um. Depois bebe, respira fundo e recomeça.
- Sabes, quando a minha mãe morreu, eu tinha dezasseis anos. Talvez não
tenha sofrido da mesma maneira que tu sofreste, quando te aconteceu o mesmo.
Ou talvez sim, mas de forma completamente diferente porque, com dezasseis
anos, sentes tudo, mas há imensas coisas que não percebes, nem queres
perceber. Tu acompanhaste tudo e sempre te espantaste com a minha calma,
mas eu fartava-me de pensar porque é que não conseguia chorar. E sofria, era
impossível não sofrer. Mas não conseguia chorar e era uma sensação
estranhíssima. Criei defesas muito fortes. Tão fortes que demorei quase vinte
anos a interessar-me por alguém, e agora sei porquê. O meu subconsciente deve
ter decidido que não queria voltar a sofrer a perda de ninguém.
- Se calhar, foi o que o Miguel fez, quando a mãe dele morreu.
- É estranho, os dois homens mais próximos de ti terem uma história de
família semelhante entre eles, e parecida com a tua, não achas?
- Talvez.
Pois é. Nunca tinha pensado nisto. Será que, no fundo, sou como a Teresa,
procuro nos outros o que já me fez mal? Será que também só sei viver em
sofrimento? Tenho mesmo que pensar nisto tudo com calma. Há-de haver um
caminho. Há sempre um ou mais caminhos. O que é preciso é segui-los. Claro
que é mais fácil apanhar um comboio qualquer, ou fazer como a Dorothy, o leão
medroso, o espantalho e o homem de lata, mas não foi esse o caminho que a
149
levou a casa...
- Ouve, há sempre maneiras diferentes de encarar os problemas. Eu tive
sorte, tenho algum bom senso e equilíbrio inatos e, por isso, é que dizias sempre
que eu era uma rocha, mas as rochas perdem o melhor da vida porque
endurecem, não sentem e por isso não vêem nada. A tua fragilidade e
intensidade a viver tudo foi uma das coisas que me trouxe outra vez à vida, em
vez de a ver de fora.
- Por sermos tão diferentes é que somos tão amigos.
- Claro. Mas sabes, eu só percebi isto tudo há muito pouco tempo, já
depois de ter casado com a Ana. Percebi que podia ter sido como o Miguel,
podia nunca mais me ter aberto para alguém, e isso assustou-me, fez-me
impressão.
- Mas o Miguel abriu. O Miguel adorava-me e foi felicíssimo comigo.
- Pois abriu. Abriu o que soube, o que pôde, o que conseguiu. E isso não
chegou, pois não?
- Não.
Talvez o Miguel tenha dado tudo quando esteve comigo e se tenha
esgotado. Talvez ele próprio seja o primeiro a sofrer com a sua pobreza
emocional. Talvez nisto ele seja mesmo diferente de mim. Por isso é que se foi
embora, apesar de ainda ter laços comigo. Talvez o que ele fez, e da forma como
o fez, seja legítimo do ponto de vista dele. Mas o Frederico está-me a abrir
caminhos, a mostrar pistas e, a pouco e pouco, sinto-me mais calma, mais
lúcida, com uma visão mais perceptível da realidade.
- Eu não sou muito bom nestas coisas afectivas. Até acho que sou um
bocado primário, mas vê isto do ponto de vista pratico: uma relação não deve
servir para nos trazer nem angústia, nem tristeza, nem ausência, nem
sofrimento, pois não? E o homem certo para ti, se é que isso existe - e vocês, as
mulheres, precisam de acreditar no príncipe encantado, por isso eu prefiro
dizer-te que ele existe mesmo -, é aquele para quem tu também fores a pessoa
certa.
- Mas ainda não me disseste onde é que ele está!...
- Querida, isto não é o jogo da caça ao tesouro! Não interessa onde é que
ele está. Interessa que saibas viver em paz, independentemente dele aparecer,
ou não. Achas que consegues?
- Não sei.
E não sei mesmo.
- Mas tens que conseguir. Senão, pessoas como o Miguel vão continuar a
atropelar a tua existência e nunca a viverás plenamente. E tu tens esse direito,
essa oportunidade, esse dever. Por ti mesma e pela tua filha.
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Bendito Frederico. Devia gravar esta conversa e ouvi-la todos os dias
numa cassete à noite, tipo mentalização progressiva, como os vendedores
ouvem a caminho do emprego, de manhã. Sei que entre a realidade que sempre
quis para mim e aquela que me vejo agora obrigada a enfrentar, vai um mundo.
Um mundo de abnegação e vontade férrea. Mas talvez consiga. Talvez.
- Bem, esta conversa já está muito longa, mas sabes o que é que eu acho?
Que tu no fundo ainda não cresceste, ainda vives o amor de uma forma lírica,
muito adolescente. Eu espero que tu nunca percas essa frescura e entusiasmo
pela vida e pelos outros, mas tens que crescer um bocado, Inês, não podes
continuar a achar que és a Gata Borralheira...
- Ou a Dorothy, a correr pela estrada dos tijolos de ouro.
- Olha, eu não sou o leão, nem o homem de lata, nem o outro... Quem era o
outro?
- O espantalho.
- Pois, esse então não sou de certeza. Por isso, não posso ir contigo. Mas, se
quiseres mudar de história, posso ser o teu grilo falante.
Devagar, muito devagar, começo a perceber uma série de coisas. Que a
metáfora do Feiticeiro de Oz me assenta como uma luva, que os meus
companheiros de viagem são todos o Miguel, as suas limitações e fragilidades.
- Também já tenho um espantalho, um leão medroso e um homem de lata
que quer ser uma pessoa, mas ainda não percebeu.... - Pois tens. Mas tens que te
ver livre disso. Não é dele, percebes? É disso tudo.
Pois tenho. E, quando voltar do fim-de-semana, vou falar com o Miguel.
Vou ter calma, ouvir o que ele tem para me dizer e explicar-lhe tudo o que
nunca lhe disse, tudo o que sempre quis e que ele nunca me soube, ou quis, ou
pôde dar.
- Mas vou falar com ele. E vou ser sincera. Já não tenho nada a perder.
- Isso. Abre-lhe o teu coração. Ele já não te pode magoar mais, pois não? E
talvez, de alguma forma, isto tudo o ajude a suavizar o dele.
- Ajuda, com certeza.
- Mas tu queres mais, não queres?
- Não sei, mas de certeza que quero melhor.
- Pois queres. E queres receber mais e dar menos. Olha que receber
também é difícil!
Como se eu não soubesse.
- Mas não te zangues com ele, nem te entristeças contigo mesma. Se calhar,
daqui a uns meses, depois da desordem do amor, talvez possam ficar amigos e
ter uma relação tranquila. Mas agora afasta-te um bocado, protege-te, fala com
ele, mas resguarda-te.
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- Eu sei. Mas tenho que guardar a doçura disto tudo, senão fico com a
sensação de que nada valeu a pena.
- Claro que valeu. Vale sempre a pena gostar de alguém a sério, como tu
gostaste dele. Um dia destes aparece alguém que vai gostar de ti da mesma
maneira, com a mesma grandeza e a mesma doçura. É sempre assim: recebemos
o que damos. Por isso é que eu comecei esta conversa a dizer que tu mereces.
Bendito, abençoado, adorável Frederico. Adoro-te, adoro-te, adoro-te, dás-me
paz e segurança, és o meu melhor amigo e nem imagino o que seria a minha
vida sem ti. Mas também não preciso, porque estás aqui comigo, dentro do meu
coração, e és de certeza uma das cinco melhores pessoas que conheço. E, sem
dizer nada, porque o nó na garganta é do tamanho de uma bola de futebol, doulhe um abraço imenso, infinito, maior do que o mundo.
- Olha que eu sempre disse que tens aqui dois ombros, um para rir e outro
para chorar, mas agora fecha a torneira, que eu já não sei o que te hei-de fazer.
A Ana e a Carolina entram em casa com ramos de alfazemas e alecrim. A
Ana olha-me longamente, dá um beijo ao Frederico e diz, como se nada fosse:
- Então, seus preguiçosos, vamos fazer o almoço, ou quê? O Duarte
telefonou a avisar que vem aí e está cheio de fome. - Deve estar estafado por
causa de uma Cláudia qualquer que sacou ontem na noite.
- Claro. Não sabes que há coisas que nunca mudam???
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