Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA
v. 3, n. 2, 2001
EDITOR
Ana Rosa Chait Trachtenberg
CONSELHO EDITORIAL
Elfriede Susana Lustig de Ferrer • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara
Zac de Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Cynara Cezar Kopittke • Denise Zimpek T. Pereira• Geraldo Rosito • Vera
Dolores Mainieri Chem • Vera Maria H. Pereira de Mello
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
SECRETÁRIA
Antonia Iohann Lima
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professora Helena Tot ta Silveira
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – Filiada à International
Psychoanalytical Association (IPA)
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected]
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[email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 281
Capa:
“Balsamarium
87
Etrúria, século III a.C.
Bronze, alt. 9,4 cm
Este recipiente para óleo perfumado, incenso ou ungüento, fundição oca em várias partes, tem a
forma de duas cabeças unidas pela parte posterior. As cabeças são de um sátiro e de uma bacante,
seguidores masculino e feminino de Dionísio, deus do vinho. Os sátiros são criaturas turbulentas e sensuais,
parte homens, parte animais, as bacantes são sua contrapartida feminina, que simbolizam o ímpeto e o
abandono. Ambas as cabeças são cuidadosamente moldadas e bem-acabadas. A bacante usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, uma tira em torno da testa e um colar em volta do pescoço. Suas feições são
simples mas fortemente definidas – um nariz reto, olhos proeminentes, boca larga e queixo cheio. O rosto
do sátiro é caracteristicamente feio, com sobrancelhas agudamente inclinadas, esta fortemente enrugada,
orelhas grandes, nariz arrebitado e cabelos, bigode e barba encaracolados. Ele também usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, e um cacho de uvas pende no centro de sua testa. No lado em que as duas
cabeças se unem há um cacho de uvas sobre uma folha de videira.
Vasos de bronze como este são encontrados comum e regularmente em tumbas etruscas do
século III a.C. Alguns podem ter sido usados para perfumar o ar, pois muitos deles têm correntes ou, como
na peça de Freud, furos para fixação de correntes, pelas quais devem ter sido suspensos. Outros podem
ter simplesmente guardado cosméticos. Alguns dos vasos são moldados na forma de uma única cabeça,
em geral feminina, mas muito freqüentemente apresentam este arranjo com duas cabeças, e a combinação
mais popular era a de cabeças de sátiro e bacante. A atração desta combinação está, talvez, na justaposição
de opostos – belo e feio, feminino e masculino.
Freud, o profundo dualista, tinha várias figuras de duas faces. Já em 1899 ele possuía uma cabeça
de Jano em pedra, e em seus últimos anos mantinha este balsamarium de duas cabeças sobre sua
escrivaninha. O dualismo permeia todo o pensamento de Freud, aparecendo em dicotomias fundamentais,
como o princípio do prazer versus o princípio da realidade, Eros versus Tanatos, libido versus agressão,
assim como na noção do mecanismo de transposição próprio dos sonhos – a representação de uma idéia
pelo seu oposto.
Do mesmo modo, o ponto central deste objeto é a noção da bissexualidade básica de todos os
seres humanos, que Freud discutiu em sua obra fundamental, Three Essays on the Theory of Sexuality, de
1905 (SE, 7, pp.135-243)”
Esta peça pertence ao Freud Museum de Londres e fez par te das exposições da coleção de
Antiguidades de Freud, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1994; está retratada no livrocatálogo da exposição “Sigmund Freud e Arqueologia – sua Coleção de Antiguidades”. Rio de Janeiro,
1994, Salamandra Consultoria Editorial S.A. Direitos autorais pagos ao Freud Museum – The Bridgeman
Art Library – Londres, sob a forma da lei.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 3, n. 2, 2001.
Porto Alegre: SBPdePA, 2001.
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 500 exemplares
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
282 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1110
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA
DIRETORIA
Presidente
Dr. Gley Pacheco Costa
Tesoureiro
Dr. Luiz Gonzaga Brancher
Secretário
Dr. Leonardo A. Francischelli
Secretário Científico
Dr. New ton M. Aronis
Vogais
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
Dr. Marco Aurélio Rosa
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Secretário
Dr. Gildo Katz
Dr. Lores Pedro Meller
Coordenador de Formação
Dr. Antônio Mostardeiro
Coordenador de Seminários
Dr. José Facundo Oliveira
BIBLIOTECA e
PSICANÁLISE – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Diretora – Editora
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 283
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
LIAISON COMMITTEE
Dra. Elfriede Susana Lustig de Ferrer (Chair)
Dr. Samuel Zysman
284 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente
Gley P. Costa
•
289
EDITORIAL
Palavras do Editor • 299
Ana Rosa Chait Trachtenberg
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
História e Pré-História Psíquicas. O “Intergeracional” e seus Fragmentos de
Identidade • 305
Alain de Mijolla
Trabalhando com Adolescentes: Um Analista de Dois Mundos • 331
Arnaldo Smola
Problemas Clínicos do Paciente Narcisista: Um Desafio ao Psicanalista • 345
Gildo Katz e Ivan S.C. Fet ter
Que É isto Chamado Amor? • 371
Gley P. Costa
Teria Édipo uma Irmã? (“A Lei da Mãe”) • 385
Juliet Mitchell
O Complexo de Castração como uma Ética do Inconsciente (Uma Aproximação
Teórico-Clínica) • 409
Leonardo Adalberto Francischelli
“Porque Eu Sonho Eu não o Sou...” • 415
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
O Prazer Perverso nos Descaminhos da Destrutividade • 433
Marco Aurélio Rosa
Tempo e Trauma: Breve Crônica de uma Morte Invisível • 449
Roberto Barberena Graña
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 285
O Fenômeno da Apresentação do Objeto e suas Implicações para o
Desenvolvimento • 463
Vera Regina J.R.M. Fonseca
Influências de Bion na Técnica Psicanalítica • 489
Waldemar Zusman
CONFERÊNCIA na SBPdePA
Angústia • 507
Raquel Zak de Goldstein
ENTREVISTA da SBPdePA
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
ÍNDICE DO VOLUME 3
•
583
•
545
286 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
A Psicanálise,
o Psicanalista
e a Guerra
“A guerra é o homicídio
organizado que se tornou lícito”
Bouthoul
Gley P. Costa
Nos dois números anteriores da
revista, ocupei este espaço para destacar, nas capacidades amorosas do
ser humano, o significado do ato de
escrever e a importância das publicações para a consistência e o desenvolvimento da Psicanálise. Desta forma, procurei ressaltar o brilhante, dedicado e cuidadoso trabalho realizado pelo corpo editorial da
revista, desde o seu lançamento.
Estas palavras marcam minha
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 289
Gley P. Costa
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
despedida como presidente da SBPdePA, cabendo-me, por sorte, a oportunidade de saudar o aumento da freqüência da revista que, a partir do terceiro volume, passa de anual para semestral.
Quem sabe devesse terminar, neste ponto, este texto; contudo, penso
que não podemos ficar indiferentes às exteriorizações da destrutividade
humana com as quais nos defrontamos no momento, levando em consideração as palavras de Nedejda Mandelstam de que “o silêncio é o verdadeiro
crime contra a humanidade”.
Imbuído deste sentimento, em 28 de setembro de 2001, Márcio
Giovannetti, atual presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo, publicou no jornal Folha de São Paulo um artigo intitulado
“Implosão na cultura”, reportando-se ao ataque terrorista ao World Trade
Center e seus desdobramentos. Mais do que oportuna, é indispensável sua
reprodução neste órgão de divulgação da Psicanálise, tendo em mente a
desafiante frase de Hanna Segal em relação ao tema da guerra: “Nós, psicanalistas, que acreditamos no poder das palavras e no efeito terapêutico de
verbalizar a verdade não devemos permanecer em silêncio”. Esta advertência torna-se mais verdadeira se ponderarmos que a Psicanálise, como uma
contribuição à civilização e à cultura, naturalmente se opõe à guerra.
Lamentavelmente, retorno a esse pesaroso assunto, 13 anos após a
organização do livro Guerra e Morte (Imago), em que tive como co-autores os psicanalistas Arnaldo Rascovsky, Bryce Boyer, Cyro Martins,
Donald M. Kaplan, Gustav Bychowski, Hanna Segal, Jean Bégoin, Marcos
Guiter e Matin Wangh, além da antropóloga Ruth Boyer e dos dois ganhadores do Prêmio Nobel, da Paz de 1985, Bernard Lown e Evgueni Chazov.
Os horrores proporcionados pela Segunda Guerra Mundial, culminando com a explosão da Bomba Atômica, haviam levado até os mais cépticos
a imaginarem que os povos ressabiados procurariam encontrar formas mais
civilizadas para resolver suas questões. No entanto, observou-se exatamente o oposto: a maior, a potencialmente mais devastadora e mais perdulária
corrida aos armamentos da história da humanidade. Comparado com a
bomba que destruíra Hiroshima, o poder explosivo do mundo tornara-se
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Gley P. Costa
um milhão de vezes maior. A raça humana, pela primeira vez, encontravase ameaçada de desaparecer e, com ela, a flora, a fauna e tudo que a maravilhosa capacidade criativa do homem fora capaz de materializar
pacienciosamente ao longo de milhares de anos.
Estávamos convencidos de que, como alertara Einstein, era necessário
modificar substancialmente a nossa maneira de pensar se quiséssemos que
a humanidade sobrevivesse, e esperávamos contribuir com a nossa publicação para a tomada de consciência dos riscos de uma guerra nuclear. O
desarmamento, almejado e apelado pelos pacifistas do mundo inteiro, da
ONU e das organizações internacionais de prevenção da guerra nuclear
não ocorreu, mas diversos acordos a partir e entre os países do “clube atômico”, formado pelos Estados Unidos, União Soviética, França, Inglaterra
e China, na época, com cerca de 50 mil armas nucleares, promoveram uma
certa tranqüilidade, ainda que relativa e temporária, como é possível constatar, na atualidade.
Suspeitava-se e, hoje, tem-se certeza de que, além dessas potências,
Índia, Israel e África do Sul também mantinham estocados este tipo de
armamento, e uma série de pequenos países já possuíam a tecnologia necessária para desenvolver armas nucleares, sem grande dificuldade, como
acabou sendo o caso do Paquistão, com mais de 20 bombas atômicas. Na
situação, que não pode ser afastada, de o atual governo paquistanês ser
derrubado pelos fanáticos que apoiam o regime Talibã, nossa sobrevivência voltará a se encontrar tão ou mais ameaçada do que durante os anos da
“guerra fria”. Por esta razão, neste momento, encontramo-nos todos, quando acordados e durante o sono, dominados pelo temor da destruição atômica, podendo ou não reconhecer esta realidade. Freud, em O Mal-Estar na
Civilização, disse: “Os homens adquiriram o controle sobre as forças da
natureza a tal ponto que, com sua ajuda, não teriam qualquer dificuldade de
exterminarem-se uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e
advém disso grande parte de sua atual intranqüilidade, sua infelicidade e
estado de ansiedade”.
O ponto de partida da referida obra foi a pergunta formulada por
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
Einstein a Freud em 30 de julho de 1932: “Existe alguma forma de livrar a
humanidade da ameaça da guerra?”, não desconhecendo, como afirmou,
que o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição que, em
tempos normais, mantém-se em estado latente, mas que é relativamente
fácil despertar esta paixão e elevá-la à potência de “psicose coletiva”. Se a
guerra representa uma tomada de posição psicótica ela é a própria
anticultura, uma verdadeira “implosão na cultura”, como denominou
Giovannetti.
Em setembro do mesmo ano, Freud ofereceu ao físico uma resposta
bastante pessimista ao afirmar que via na agressividade inata da espécie a
raiz biológica da guerra, representando uma expressão natural do ser humano, portanto, inevitável e permanente. Contudo, no final da missiva, não
conseguindo conter a revolta do humanista, enfatizou que “as atitudes psíquicas que nos foram impostas pelo processo da cultura são negadas pela
guerra na mais violenta forma e por isso nos erguemos contra ela: simplesmente não a suportamos mais, e não se trata, aqui, de uma aversão intelectual e afetiva, senão que em nós, os pacifistas, agita-se uma intolerância
constitucional, por assim dizê-lo, uma idiossincrasia magnificada ao máximo”.
O entendimento de Cyro Martins é de que, para Freud, a guerra, em
cujos cenários se esbatem as exigências éticas e estéticas, apuradas ao longo da elaboração da cultura, é sobretudo um processo de desumanização
súbita da espécie. De fato, se considerarmos que, para cada um dos cinco
bilhões de indivíduos existentes sobre a face da terra, encontra-se estocado
o equivalente a três toneladas de explosivos convencionais, que o gasto
mundial médio de um soldado é de vinte mil dólares, enquanto o gasto
médio da educação pública é de 380 dólares por criança e que, para cada
100.000 pessoas, possuímos 556 soldados para matar e 85 médicos para
salvar vidas, somos obrigados a pensar que abrigamos em nosso ser um
impulso constitucional de destruição e morte que se superpõe aos fatores
econômicos, históricos, geográficos, políticos, religiosos ou raciais, geralmente alegados como causa das guerras.
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Gley P. Costa
No desenvolvimento normal, Eros, a força da vida, consegue integrar
e domar os impulsos agressivos e colocá-los à disposição dos interesses da
vida. Não obstante, persiste em nosso inconsciente uma parte destes impulsos destrutivos não integrados, representando nossa parte psicótica que,
em momentos como o que estamos vivendo, exteriorizam-se sob a forma
de onipotência e desejo de morte.
A aceitação da guerra relaciona-se com o fortalecimento dos aspectos
paranóides do grupo, mediante a caracterização do inimigo como um
monstro desumano e desprezível, capaz das mais ferozes atrocidades. Foi
desta forma que Reagan se referiu aos russos: “Temos consideração diferente pela vida do que aqueles monstros. Eles não têm Deus. É este defeito
teológico que lhes dá menos consideração pela humanidade ou pelos seres
humanos”. Mas não são os russos, no momento, aliados dos Estados Unidos na guerra contra o Afeganistão? Mas não foram os Estados Unidos
que, recentemente, apoiaram Osama bin Laden para defender-se dos russos
e que, agora, acusa os Estados Unidos de não terem Deus? O mesmo processo projetivo, de acordo com Money Kyrle, utilizou Hitler: inicialmente
exacerbou e dramatizou as injustiças sofridas pela Alemanha, criando uma
atmosfera melancólica. Depois, responsabilizou os judeus por esse sofrimento, mobilizando com esta acusação os sentimentos persecutórios do
povo alemão. Por último, estimulou o desenvolvimento de um delírio megalomaníaco, mediante a exaltação do poder e da invencibilidade do partido nazista.
Pessoalmente, lançando mão das palavras de Freud, quero dizer que
nós, psicanalistas, “reagimos à guerra porque toda a pessoa tem o direito à
sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos
materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade”. Apesar de
seu ceticismo em relação à possibilidade da humanidade pôr fim às guerras, demonstrado na resposta à Einstein, Freud sempre depositou esperança nas capacidades amorosas do ser humano. Prova disso é que, aos 82
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
anos de idade, gravemente enfermo e sofrido por ter sido obrigado a deixar
sua Viena, tomada pelos nazistas, dedicou parte de seu último trabalho (Esboço de Psicanálise) a uma revisão sobre o amor. Por uma dessas coincidências da vida, este número de Psicanálise – Revista da SBPdePA publica
um artigo de minha autoria intitulado “Que é isto chamado amor?”, um
estudo sobre como se desenvolveu e evoluiu a idéia do amor na obra de
Freud, enviado ao seu Editor, alguns meses antes do ataque terrorista ao
World Trade Center e seus desdobramentos.
Implosão na Cultura
Márcio Giovannetti
No último dia 11, não foi o World Trade Center o alvo. Nem o
Pentágono. Tampouco os Estados Unidos ou Nova York. Nem o sistema,
nem o Ocidente. Aquilo que as imagens televisivas e as fotografias exaustivamente mostraram pode nos levar a pensar que havia um. Da mesma
forma que os responsáveis pelo inqualificável ato o fizeram. Aí, o grande
problema: todo alvo bélico não passa de miragem. Pois aquilo que está
visível, manifesto, tem sempre o poder de sombrear aquilo que está latente.
Mais ainda, quando as imagens carregam a força da explosão e do fogo.
Ainda que seja o de uma lareira, não devemos subestimar a potência hipnótica do fogo, dificultando a percepção daquilo que há por detrás dele.
Ou por detrás da fumaça e da fuligem, como tão bem nos mostrou Sebastião Salgado, em artigo publicado logo após a terrível tragédia,
enfatizando como os novaiorquinos, de lá, se assemelhavam aos mineiros
de Serra Pelada, daqui. Uma lente bem focada é capaz de denunciar ou de
criar ilusões de ótica.
No último dia 11, ficou apenas evidente, pelas imagens terrivelmente
insólitas dos aviões se chocando com as Twin Towers, com seu conseqüente desabamento, o paradoxo básico humano. O paradoxo que está sempre
aí, em nosso cotidiano, em qualquer lugar do mundo, seja ele primeiro ou
terceiro, seja ele ocidental ou oriental. Desde sempre, temos oscilado nós,
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Gley P. Costa
seres humanos, entre o canibalismo violento - a selvageria da guerra- e a
aproximação erótica ao outro diferente de nós mesmos. Toda nossa cultura está calcada em nossa paradoxal miséria. O impacto e a comoção mundiais, advindos daquelas imagens, devem-se apenas ao seu alto poder representacional deste paradoxo básico. É certo que a ficção, através do
cinema, já havia muitas vezes tentado essa mesma representação. Sem sucesso, é claro. Pois sempre havia de nossa parte, espectadores de filmes,
um distanciamento que, ao criar um espaço de alienação, tornava
palatável tão terrível visão.
No último dia 11, nossa imaginação não foi mais capaz de recobrir o
desamparo de nossa nudez com o véu de nossa onipotência. Ou de nossa
arrogância. Twin Towers ou Babel, século XXI ou tempos bíblicos, realidade ou mito, o que ficou evidente é que nossas construções, por mais
portentosas que sejam, contêm sempre, potencialmente, um alto poder
destrutivo. Tanto as torres quanto os aviões visam, manifestamente, aos
céus. Mas ninguém há mais de negar que também visam aos infernos. Pois
tanto os céus quanto os infernos, justamente por nos arrastarem para longe da Terra, são de muito mais fácil figurabilidade que o nosso miserável
cotidiano terrestre. E é ele, nosso miserável cotidiano, que a tragédia dos
últimos dias veio mostrar. Daí seu potencial demarcatório. Daí sua força
simbólica. Pois a única possibilidade humana para a hierofania não passa
de uma louca caricatura de Marte, o deus da guerra.
A Terra não é um lugar seguro ou não há nenhum lugar seguro na
Terra, essa a verdade há muito tempo sabida mas ao mesmo tempo sempre
negada por nós mesmos, com a utilização de nosso bem maior, a cultura,
mais como ferramenta ilusória para nossos escapismos megalômanos e
paranóicos do que como ferramenta básica para o convívio com o outro e
com as diferenças. Justamente por não ser um lugar seguro para nós, a
Terra nos apresenta desafios de tal complexidade que, na maior parte das
vezes, nossa incipiente capacidade para o pensamento tenta resolver de
maneira simplista. O bem contra o mal.
Quando o homem denuncia em um gesto, à luz do dia, que ele mesmo
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
é a mais eficaz das armas de guerra é imperioso que todos os outros homens se detenham para refletir a esse respeito. O único arsenal antibélico
a ser utilizado só pode ser o seu próprio antídoto natural: ele mesmo. Ou
ele mesmo e o seu pensamento. Nenhuma amputação de sua humanidade
vai resolver o problema. Nenhuma reação no mesmo registro, o da violência, vai sanar o problema. Impõe-se que repensemos a cultura. Impõe-se
que os governantes possam se abrir para refletir a respeito de violências
políticas, canibalismos, miséria humana e suas contrapartidas, as megalomanias paranóicas, os “aprimoramentos de raças”, e os
desenvolvimentismos culturais antes que respostas inerciais e automáticas
apertem o gatilho. Pois o poder explosivo da reação sem reflexão é imenso.
Se as Twin Towers, as torres gêmeas, representavam, de alguma forma, o Ocidente e o Oriente, lado a lado, o erro básico em sua concepção
foi o de que eles se espelhavam em sua igualdade. E com isso, as torres, de
forma arrogante e prepotente, camuflaram e negaram as diferenças. Se
olharmos um pouco melhor a natureza, vamos facilmente perceber que
não apenas nem todos os gêmeos são idênticos, como não há, de fato,
gêmeos idênticos. Apenas aparentemente. Democracia é a possibilidade
do convívio na diferença. Seja ela de cor, credo, raça ou de cultura.
É fundamental que os governantes se unam não para, de forma
maniqueísta, decidirem onde está o bem e onde está o mal e tentarem,
ilusória e rapidamente, resolver com mais fogo e fuligem a questão, mas
para reconstruírem, marcando as devidas diferenças e em outras bases,
alguma coisa que seja tudo aquilo que as Torres Gêmeas não conseguiram
ser. E que, por isso mesmo, tiveram tão curta vida.
No último dia 11, nossas culturas implodiram, de alguma forma, lado
a lado.
Gley P. Costa
Porto Alegre, dezembro 2001
296 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Editorial
Y La Nave Va......
“Sempre pensara que os
sonhos eram mensagens divinas, ou que no máximo eram
absurdos murmúrios da memória adormecida em torno de
coisas acontecidas durante o
dia.Percebia agora que se
pode sonhar mesmo sobre livros, e por isto se pode sonhar
até sonhos.”
Humberto Eco – O Nome
da Rosa
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Y la nave va...., mesmo que
“sobre a cabeça os aviões...”, cantado por Caetano Veloso, nos lembrasse o gesto de Freud ao escrever,
laconicamente, nas grandes folhas
de papel branco sempre à sua mesa:
“Finis Austriae”. Nosso eterno mestre se referia ao labirinto infernal
que tomou conta de seu país com a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 299
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
invasão das tropas alemãs. Entretanto, quando os nazistas jogaram seus
livros no fogo ele comentou, simplesmente: “Que progresso nós fizemos;
na Idade Média eles teriam me queimado”.
Quando há quatro anos, com a valiosa companhia aventuresca de um
grupo de candidatos, percebemos que, ali, “onde finalmente se penetra no
labirinto, tem-se estranhas visões e, como acontece nos labirintos, fica-se
perdido nele” (H. Eco), nos lançamos ao desafio da construção da nossa
nave, nossa ave, nosso sonho, dispostos a nos perder, no labirinto das letras
e dos papéis.
Simultaneamente ao processo de reconhecimento da SBPdePA como
sociedade componente (definitiva) da IPA, ocorrido em 2001, construía-se
e amadurecia nossa revista. Tal como entrelaçados caminhos paralelos, trabalhamos ao longo de duas gestões, fazendo aparecer, em 1999, o número
inaugural de Psicanálise – Revista da SBPdePA, com trabalhos da imensa
maioria dos fundadores da “Brasileira”, bem como das autoridades da IPA
que nos acompanhavam. Desbravamos. Logo, no ano seguinte,mais um
número, com nomes, tendências, lugares, etc. ampliados. Neste ano de
2001, nosso barco, já prestes a ser lançado ao mar, apareceu sob a forma de
uma revista dourada pelo sol, o volume 3, número 1. Hum!... estamos chegando lá: metas cumpridas, dois números por ano, e aqui estamos nós –
volume 3, número 2 !!!!! Champanha no casco, e ao mar..... ao mar para
novas aventuras, quizás velhas venturas. Muitos labirintos. Labirintos, sonhos, escrituras, já que “um sonho é uma escritura, e muitas escrituras não
são mais do que sonhos” (H. Eco ). Nosso carnaval de ilusões, nosso trio
elétrico, atrás do qual só não vai quem já morreu..... Fomos,
suamos,brincamos, com sangue, suor e cerveja. Alegres, felizes, saudosos,
porém serenos, nos despedimos,envolvidos com a dor e a delícia do crescimento, da renovação, da transmissão e da sucessão.
Inicialmente, um grupo de trabalho; um grupo de estudos, de risos, de
amigos, logo depois. Por tudo e por todos, não posso deixar de agradecer,
aqui, uma vez mais,pela parceria, aos valentes colegas da comissão editorial: Cynara Kopittke, Denise Pereira, Geraldo Rosito, Vera Chem, Vera
300 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 301
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Mello; à Geisa, nossa bibliotecária, à Antonia, nossa secretária, à prof ª
Helena Totta Silveira, revisora de português, ao Cezar, responsável pela
editoração, à Daniela e à Ivana, ao Conselho Editorial, ao apoio das duas
diretorias que nos confiaram tão honrosa tarefa, nas pessoas dos presidentes Marco Aurélio Rosa e Gley Costa. Seguramente, uma missão impossível sem a inspiração e a transpiração, também, de cada um dos autores que
aqui estiveram. Aos familiares de todos nós, suporte à distância, tolerando
as nossas ausências, muchas gracias.
Falemos, finalmente, um pouco de Psicanálise – Revista da SBPdePA
v. 3, n. 2, 2001: contamos com trabalhos centrados na clínica e suas dificuldades, nas contribuições de Katz e Fetter, assim como no texto de Marco
Aurélio Rosa, apresentado num painel sobre psicose, no ultimo congresso
da Ipa, Nice, 2001. Na área de Infância e Adolescência, encontramos os
primorosos textos de Arnaldo Smola, colega da Argentina, e de Vera Fonseca, de São Paulo. Alain de Mijolla, reconhecido analista francês, nos
brinda com um primoroso texto sobre Pré-História Psíquica, enquanto a
inglesa Juliet Mitchell inaugura a “Lei da Mãe”.
Dois filmes servem de cenário para considerações teóricas: Roberto
Graña nos fala do tempo e do trauma, enquanto Marco Albuquerque revisa
o tema da identificação projetiva. Gley Costa e L. Francischelli abordaram
o tema do amor e da castração, respectivamente, enquanto W. Zusman examinou as influências de Bion na técnica psicanalítica Com a segunda parte
de Angústia completamos a reprodução das conferencias de Raquel Z. de
Goldstein entre nós. Nossa exclusiva entrevista a Marcelo Viñar ilustra a
lucidez deste original pensador e clínico uruguaio, atualmente presidente
da Fepal.
Assim,em tempos de Web e de aviões, recomendo que naveguemos, e
brindemos, com e por nossas letras. Assim, convido: venha se perder,......
nos labirintos das letras e dos sonhos, espalhados nas grandes folhas de
papel branco à nossa mesa.
Ana Rosa Chait Trachtenberg – Editora
Porto Alegre, dezembro 2001
Artigos/Ensai0s/Reflexões
Alain de Mijolla
Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica de Paris – IPA.
Fundador e Presidente da
Associação Internacional de
História da Psicanálise – IPA.
Os efeitos da guerra de 19141918 inspiraram nos romancistas ou
nos homens de teatro, do período
entre as duas guerras, variações sobre o tema do “amnésico”. Em conseqüência de um traumatismo sofrido no campo de batalha, quem foi
dado como morto retorna, dez a
quinze anos mais tarde, em busca de
seu passado esquecido. Assim, o
Siegfried, de Jean Giraudoux, vê-se
reconhecido por um de seus amigos,
mas seu personagem não nos diz
muito pois ele, essencialmente, serviu ao seu autor para fins políticos
de reaproximação franco-alemã.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 305
Alain de Mijolla
História e
Pré-História
Psíquicas. O
“Intergeracional”
e seus
Fragmentos de
Identidade
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
Por outro lado, Le voyageur sans bagages (O viajante sem bagagens), de
Jean Anouilh, está mais próximo de nosso propósito. Seu herói se confronta, de fato, com a recordação do adolescente que ele foi, personagem antipático como é descrito pelos membros de uma família que ele julga igualmente detestáveis e no qual, vinte anos depois, ele não quer se reconhecer.
Renunciando a se reconciliar com o “Jacques” perverso, sádico, escroque,
totalmente amoral de quem lhe descrevem os erros passados, ele enganará
o destino afirmando ser o filho reencontrado de uma outra família que tem
o mérito de não apresentar perigo pois todos seus membros, exceto uma
criança, pereceram em um naufrágio. O viajante sem bagagens recusa, portanto, sua história e a ficção teatral baixa a cortina no momento de sua
partida para uma nova vida, limpa das perversidades cometidas na antiga,
demasiadamente realista, expressão bem conhecida de um devaneio adolescente do qual Jean Anouilh não se cansará de revelar as diversas versões, ao longo de toda sua obra.
Pode-se, no entanto, manter esta ficção da amnésia? É realmente possível realizar a utopia que gostaria de fazer tábula rasa do passado para
construir um mundo novo? Não somente não penso assim, mas parece, ao
contrário, que um dos caminhos utilizados para o desabrochar de todo ser
humano é a tomada de posse de sua história (no sentido amplo que se pode
dar a esta palavra em Psicanálise) e o reconhecimento de que ela o constitui
como indivíduo único, da mesma forma que a reorganização constante das
células que edificam seu corpo, isto sendo, talvez, ainda mais nítido nestes
tempos em que a perspectiva de clonagens humanas vem perturbar nossas
certezas genealógicas passadas.
Cada ser humano sente profundamente a importância do direito à sua
própria história e à uma coerência em sua reconstrução que deve poder ter
valor de verdade. Aprendemos com a técnica da “lavagem cerebral” a que
ponto a violação deste direito constituía um procedimento particularmente
refinado de destruição da personalidade. Pudemos constatar como os agentes das terríveis operações de “purificação étnica” agem para impedir todo
retorno, a não ser o imaginário, daqueles que eles caçavam: eles destróem
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1. Cf. Mijolla-Mellor, Sophie de (1998), Penser la psychose. Une lecture de l’oeuvre de Piera
Aulagnier, Paris, Dunod, cap. 5 “Temporalité et mémoire du Je”, p.185-191.
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os traços de seu passado, queimando as casas e não deixando aos sobreviventes nenhum papel de identidade, nenhum passaporte, nada que ateste
sobre seu direito a uma história ligada a um passado e a um solo. Os psicanalistas devem ser ainda mais conscientes dessas violações ao mais íntimo
e essencial do ser humano, eles que acompanham seus pacientes no trajeto
inverso de uma “auto-historização”, para empregar a bela expressão de
Piera Aulagnier1, que representa uma das características mais originais e
determinantes de todo tratamento psicanalítico.
Uma questão, no entanto, se coloca: em que momento começa nossa
história? Haveria um instante “zero”, além do qual não se poderia ir, momento traumático do nascimento, como insistia Otto Rank, ou momento da
concepção que lança o processo das fantasias parentais que concernem à
criança por nascer? Quais provisões de momentos passados um viajante
sem bagagens deve recuperar e assimilar para reencontrar, no seio de sua
família reconstituída, o que se deve nomear sua “identidade”?
A identidade, isto é freqüentemente repetido, não é uma noção freudiana, e se Freud, por vezes, mencionou “a pessoa”, estamos de acordo em
encontrar apenas uma menção da identidade em seus escritos, quando, em
seu discurso de 6 de maio de 1926 perante a Sociedade dos B’nai B’rith,
ele declarou: “Mas restava muitas outras coisas capazes de tornar
irresistível a atração do judaísmo e dos judeus, muitas forças emocionais
obscuras – tanto mais poderosas quanto mais difíceis de ser expressas em
palavras – assim como a clara consciência de uma identidade interior, o
mistério de uma mesma construção psíquica”. Se a questão da identidade
foi com freqüência tratada pelos filósofos (Leibniz, William James, etc.),
no campo psicanalítico, é sem dúvida C.G. Jung quem primeiro a evocou
com a noção de “persona”, mais ainda que A. Adler com suas concepções
psicossociais.
Freud se recusava a encorajar a tendência de seus discípulos a uma
generalização prematura que reforçaria a tendência natural deles para a
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O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
diretividade e que teria – tivemos muitos exemplos disso – reduzido o tratamento psicanalítico a uma ação educativa, até mesmo “pastoral”, com
conselhos e controle contratransferencial do destino dos pacientes. Ele desconfiava, sobretudo, das sínteses realizadas de maneira demasiado brilhante em detrimento de uma análise mais longa e minuciosa, menos sedutora,
sem dúvida, pelo aspecto exageradamente minucioso de suas investigações e de suas verificações. As reflexões que fez à Lou Andreas Salomé
são testemunho disto: “A unidade deste mundo parece-me tão óbvia, que
não precisa ser mencionada. O que me interessa é a separação e a organização do que, de outra maneira, se perderia em uma massa originária. Em
suma, sou evidentemente um analista e penso que a síntese não apresenta
dificuldade alguma, uma vez que se está de posse da análise” (carta de 30
de julho de 1915).
No entanto, ele abriu, desde a elaboração da segunda tópica, os caminhos que levariam, rapidamente, depois de sua morte, ao aparecimento,
nas teorizações dos psicanalistas, das noções de Self, de sujeito ou de indivíduo. De fato, o aparelho psíquico, descrito em 1923, deixa de ser a imagem de um sistema solipsíquico (o do capítulo VII de A Interpretação dos
Sonhos) ou de uma bola protoplasmática dirigindo seus pseudópodos para
o mundo exterior. O outro – e sabemos o destino teórico que ele terá, com
ou sem um “o” maiúsculo, mesmo sob o nome de “Grande Outro” – entra
em dois níveis na nova construção. Ao nível do ego, uma vez que a identificação narcísica (noção que sucede, então, à identificação melancólica
precedentemente descrita) aos objetos, aos quais o id deve renunciar no
curso da evolução, está na origem do “caráter do ego” (e não do próprio
ego para Freud, o que muitos de seus sucessores, como Theodor Reik, farão questão de esquecer), este “precipitado de identificações”. E, sobretudo, ao nível do superego – talvez não se insista suficientemente no aspecto
revolucionário na teoria dessa proposição e de suas conseqüências. O outro
de que se trata, é “o pai”, ou melhor, “os pais” e recordaremos tudo que eles
carregam em si nesse processo esboçado, na origem da vida psíquica, pelo
instante mítico da “identificação primária”. Por isto, este outro não se limi308 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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ta mais a ser apenas o objeto da pulsão mas se torna, através de uma
intrusão fusional para a qual Freud emprega então o termo de introjeção,
parte integrante e durável do aparelho psíquico daquele que se deve, então,
ser considerado como um todo, uma pessoa, um sujeito, isto é, um indivíduo separado dos outros, portador, portanto, de uma identidade desde uma
visão de si mesmo, como também de seu ambiente.
Após a introdução do narcisismo e as considerações sobre a identificação em Psicologia das Massas e Análise do Ego, a segunda tópica confirma, assim, o ato de nascimento, em Psicanálise, do outro, ainda considerado como objeto na relação dita objetal, o que vai, rapidamente, colocar o
problema do estatuto do ego, interface instrumental, pura união de funções
defensivas ou núcleo percebido como definição de si-mesmo. Assistir-se-á
então, progressivamente, ao nascimento do Self, portanto à consideração
de um Não-Self (ou de um Não-Ego), sob diversas formas teóricas, depois
ao aparecimento, dois decênios mais tarde, da noção paralela, mas não passível de ser sobreposta, de identidade.
Vivemos no período pós-freudiano e é inútil nos entrincheirarmos em
um conservadorismo que pretenderia ignorar, como se fosse um desvio,
esta última noção. É, sem dúvida, mais útil para a nossa prática confrontar
seu uso com o que nos dizem sobre isto nossos pacientes e ajudá-los a ver
mais claro, nas incertezas de que se queixam quanto ao seu próprio sentimento de identidade. É também importante não nos deixarmos levar por
facilidades teóricas e práticas de seu uso e nos darmos ao trabalho de
analisá-la para ficarmos conformes ao pensamento psicanalítico.
Mesmo que existam elos e interações constantes entre elas, é preciso,
de fato, distinguir a identidade biológica, a que é determinada pelo equipamento genético, e a identidade social, cujo testemunho em nossa civilização é a “carteira de identidade”. Elas não dependem diretamente de nosso
domínio. Por outro lado, os psicanalistas são mais concernidos pelo que se
pode considerar como “a identidade psíquica” (os eriksonianos dizem
“psicossocial”). Desde logo, foi definida em termos de “sentimento de
identidade”, ou de “sentimento do ego”, por Paul Federn por exemplo, e
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O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
descrita como uma experiência, a vivência bastante indefinível de um “Eu
sou eu”, em resposta à questão “Quem sou eu?”.
Essa entidade virtual que une o mesmo e a mudança permanente se
mostra igualmente bem real, suas falhas são um testemunho disso, e se
pode isolar, em eco às categorias precedentes, algumas sub-categorias. Primeiro, a identidade ligada às sensações e à representação de nosso corpo. É
sobre ela que Phyllis Greenacre insistiu, particularmente ligando sua origem à separação do corpo fusional mãe-filho. Apesar das mudanças que
lhe infligirão o tempo ou as intervenções externas, traumáticas ou cirúrgicas, é sempre uma mesma continuidade corporal cuja imagem apoia (étaye)
nosso sentimento de identidade, de nosso nascimento à nossa morte. Qual
juventude o velho é o único, às vezes, a perceber em seu espelho? Paul
Schilder, com a noção de “imagem do corpo” ou Robert Stoller, com a de
“identidade de gênero” (gender identity) se referem a isto constantemente.
A identidade ligada ao nosso ambiente psicossocial, portanto ao olhar dos
outros e ao seu reconhecimento, foi sobretudo descrita por Erik Erikson
que, em 1963, inaugurou uma corrente próxima do culturalismo americano
na qual as condições externas, objetais e a impregnação pelo ambiente vieram tomar o lugar que ocupavam o pulsional e o libidinal na teoria freudiana. Ele radicalizou o que, já presente nas teorias de Heinz Hartmann desde
1939, se desenvolveu nas correntes ligadas à Ego Psychology*, cujos vestígios encontramos em Otto Kernberg.
Que haja além disto um “fator X”, ainda desconhecido, que reúna esses determinantes, e talvez outros, para constituir a identidade de um sujeito, nós não sabemos. Mas “alguma coisa” deve existir, uma vez que se
constatam perturbações, questionamentos, a amnésia de nosso viajante é
um exemplo disto, assim como as experiências de inquietante estranheza,
os estados de despersonalização e muitos dos distúrbios psicóticos.
Quanto à identidade ligada à nossa história e aos traços mnêmicos
únicos que ela deixa em nós, acessíveis à consciência ou cobertos pela
repressão, é sobre ela que se volta, mais particularmente, a atenção do psi* Em inglês no original. (N.T.)
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2. Esta concepção da identidade poderia, aliás, ser relacionada com o que Piera Aulagnier descreveu como o “projeto identificatório”, “esta autoconstrução contínua do Eu pelo Eu, necessária em
um movimento temporal, projeção da qual depende a própria existência do Eu”, in La violence de
l’interprétation (A violência da Interpretação), 1975, Paris, PUF, p.193.
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canalista. Sobretudo, se acrescentarmos à locução “identidade ligada à nossa história” o complemento indissociável “e à nossa pré-história”, e se especificarmos que não se pode abordar seu estudo a não ser por intermédio
de um processo psicanalítico que leve em consideração categorias do consciente, do pré-consciente e do inconsciente. Se especificarmos, igualmente, que se trata aqui de história “psíquica”, isto é, levando em conta somente os traços que o acontecido deixa e as elaborações às quais estes são
submetidos – conjunto contínuo no tempo que estrutura a coerência interna
e a relação de si para si – ao menos enquanto a amnésia ligada à repressão
não faz desaparecer partes inteiras, condenando-nos a esse caos que o
Freud dos Estudos sobre a Histeria tentava reorganizar2.
Proponho fazer começar a “história psíquica” de uma pessoa no momento em que é anunciada a gravidez da qual esta pessoa nascerá – o arcanjo Gabriel não se enganou. Tudo, absolutamente tudo que se passou, no
real ou nas fantasias dos dois genitores, antes deste conhecimento consciente, ou melhor, antes de sua expressão verbal, seja ela compartilhada ou
não por outros, além da mãe, diz respeito à “pré-história psíquica” do bebê
em gestação. Esta se revela de uma importância primordial para o futuro
reconhecimento de sua identidade, primeiro pelos outros, e por si mesmo
(depois ou simultaneamente, quem pode saber?) em um momento de sua
evolução que somos incapazes de determinar verdadeiramente, mesmo se
as observações diretas do bebê ou o estudo de sua linguagem, com o aparecimento do pronome “Eu”, pretendam servir de pontos de referência.
A ficção de Jean Anouilh lembra: a identidade está ligada ao fato de
ser identificado como “pertencendo” por um ambiente humano, este mesmo ambiente de onde se originaram, se originam ou se originarão as identificações constitutivas do caráter e da personalidade. Ela está ligada às
narrativas, aos subentendidos que elas comportam, ao sentido latente que
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sua expressão manifesta encobre mas, mas pela qual a “máquina de interpretar o outro” (Totem e Tabu) não se deixará enganar.
Em nossa sociedade ocidental, mesmo que evoluções recentes tenham
confundido um pouco esse esquema, esse ambiente possui um nome e uma
estrutura. É a “família”, ou alguma organização artificial que, com mais ou
menos sucesso, pretenda adotar as suas características. Todo reconhecimento, toda identificação provém dela, de um ou de todos seus membros,
em uma seqüência de relações que oscilam, sem cessar, entre simbiose – é
a própria raiz da identificação, a relação primitiva com o objeto – e
intrusão, imposição deste fator “X” que marcaria a identidade. É preciso
remeter, neste ponto, às descrições que os psicoterapeutas de família fizeram do terreno de sua ação e da importância que eles atribuíram, com razão, à noção de “sentimento de pertinência” a este conjunto que constitui a
família, ou, para ser mais exato, à linhagem genealógica que implica, obrigatoriamente, a própria noção de família. Deve-se também lembrar o papel
da “memória familiar” com as características específicas, positivas ou negativas, que ela armazena, e que se elaboram a partir das mensagens conscientes e pré-conscientes que circulam permanentemente entre seus membros, Theodor Reik, na sua época, já o havia bem sublinhado3.
Cada ser humano vive, no presente, em sincronia com seu ambiente,
mas também, ao mesmo tempo, em uma diacronia com a história familiar,
cuja origem remonta em linha reta à história do mundo. Segundo Freud, “o
indivíduo vive uma dupla existência: enquanto elo de uma cadeia à qual ele
está submetido independente de sua vontade, e, doutra forma, sem a intervenção desta”4. Convém, no entanto, acrescentar que não seríamos “sujei3. “De meu ponto de vista, esta secreta possessão comum dos traços mnêmicos das alegrias e dos
sofrimentos compartilhados liga também os membros de uma família, de um povo e os une em
relação ao exterior mais estreitamente que a tradição consciente. A comunidade inconsciente desempenha um papel maior para o prolongamento e os efeitos ulteriores dos fatores culturais que as
lembranças conscientes da história” in Le psychologue surpris, tradução francesa, Paris, Denoël,
1975, citado in S. de Mijolla-Mellor, op. cit., p. 184. Eu sugeriria utilizar a noção de “comunidade
pré-consciente” no lugar de “inconsciente” para descrever estes processos de um ponto de vista
precisamente psicanalítico.
4. “Sobre o Narcisismo: uma introdução”, 1914c.
312 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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to” sem passar por esse submetimento. Além disso, estar ligado em linha
reta, sem a menor solução de continuidade, a algum mítico “big-bang” original pode ter algo de excitante para a megalomania.
Para voltar ao banal quotidiano, nenhum instante de nossa existência
surge ex nihilo. Cada um remete a uma história constitutiva de nós-mesmos em relação à qual nós temos sentimentos bastante ambivalentes, pois
sua conscientização é um desmentido a nossas ilusões narcísicas, por
exemplo, as de auto-engendramento, de eterna juventude ou de imortalidade. Cada pensamento, cada comportamento, cada ato podem lembrar, na
análise, a “cadeia genealógica” à qual estamos “submetidos”, por bem ou
por mal, esta pré-história, em relação à qual nossa atitude é, por isto mesmo, mais freqüentemente ainda, colorida de rejeição. Por isto, a proposição
que emiti, um dia, de defender que cada ser humano tenha um “direito à
sua pré-história” pois, sem ela e a despeito de nossas reticências em tomar
consciência dela, não me parece que nosso sentimento de identidade possa
realmente desabrochar e se fortalecer.
Sem dúvida, neste ponto é necessário completar a definição da préhistória de um sujeito. Trata-se, inicialmente, de tudo que se refere ao mistério de suas origens: história real e fantasmática de sua concepção, de todo
este “antes” que acompanha os primeiros tempos de sua existência celular
e psíquica e vai encontrar uma expressão fantasmática em suas teorias sexuais infantis. Mas ela é também constituída da história das gerações passadas, em suas relações com o que se tornou sua identidade, história também de sua cultura, das explicações metafísicas (filosóficas ou religiosas)
ou científicas que puderam lhe ser fornecidas sobre esse universo de antes
de sua existência e que, em conseqüência, dirigiram seu olhar para ele mesmo e suas relações com os outros. Nós todos nos encontramos impregnados desse conjunto de crenças e de conhecimentos, de eventos reais ou
imaginários, de sagas reconstituídas ou sabiamente desconstruídas, e
estamos presos, desde que um óvulo e um espermatozóide decidiram que
eles poderiam caminhar juntos um pedaço do caminho, à essa “cadeia” da
qual Freud sublinhava, de forma excessivamente unilateral, o aspecto
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restritivo.
Para um certo número de indivíduos, o constrangimento desse
submetimento é tal que eles não querem saber de nada. Eles pensam em si
mesmos como sua própria origem, ou limitam friamente o universo relacional de sua pré-história à geração que os engendrou. Descrevi a ilusão
que nos faz esquecer que nós nunca fomos o primeiro amor de nossos pais,
mas que nosso lugar na linhagem das gerações condena-nos a ser apenas
um substituto, mesmo que altamente privilegiado devido a suas ressonâncias narcísicas, dos primeiros objetos de amor e de ódio que envolveram
sua própria infância, seu pai e sua mãe5. Nossos filhos, por sua vez, sofrem
o mesmo destino e deverão gerar esta mesma frustração.
Outros aceitam ser o produto de uma loteria genética em que os cabelos do tio Fulano se casam com os olhos da avó Gertrude, mas eles não
querem ir além no domínio dos pensamentos, das fantasias ou das realidades psíquicas, mesmo que, às vezes, eles tenham percorrido, no divã de um
psicanalista, um caminho sobre sua própria história que os levou ao limiar
da peça interdita, aquela onde o conto coloca os cadáveres das mulheres de
Barba Azul, mas onde se coloca, sobretudo, o segredo dos apegos e das
repugnâncias de que cada relação humana inconsciente é tecida.
É preciso respeitar estas reticências e não querer forçar a barreira protetora de uma identidade que, por parecer incompleta, não deixa de ser
menos indispensável àquele que a construiu. As interpretações selvagens
não têm por objeto apenas o reprimido e podem também ferir com revelações brutais de “segredos”, certamente sempre mais ou menos conhecidos
ou adivinhados, mas que convém que permaneçam aparentemente impenetráveis, enquanto um certo trabalho de elaboração não permite àquele que é
portador deles dissipar sozinho os mistérios tranquilizadores. Freud deu
exemplos de interpretações precoces desse tipo, com resultados opostos.
Com Marie Bonaparte, a revelação de sua presença por ocasião dos embates sexuais de sua babá e do cocheiro abre a via de uma investigação tão
5. Cf. Mijolla, Alain de (1981), Les visiteurs du moi, fantasmes d’identification, coll. Confluents
psychanalytiques, Paris, Ed. Les Belles Lettres, 1996, 223 páginas.
314 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
6. Choisy M., Mês enfances, Mémoires 1903-1924, Paris, Éd. Mont-Blanc, 1971.
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fértil quanto investida positivamente na transferência. Com Maryse Choisy,
não será igual e uma intervenção intempestiva impedirá a elaboração cuja
necessidade eu ressaltava mais acima. Em 1924, Freud interpreta-lhe, de
fato, um sonho, desde a terceira sessão de sua análise, declarando-lhe:
“Você é uma filha natural...”. Como ela grita que não é possível, ele lhe
impõe, assim como fez com o Homem dos Ratos, buscar informações. Ela
deixa Viena, imediatamente, para interrogar uma parente e obter a confirmação oficial da intuição de Freud. Em suas Memórias, ela concluiu: “Não
voltei jamais para a Berggasse. Nunca mais. Freud era para mim um pai
mágico, um feiticeiro. Ele via através de mim. Eu tinha medo disto. Eu
fiquei com tanto medo que durante dez anos atravessava para a outra calçada assim que eu via um psicanalista”.6
Assim como alguns totalitarismos teórico-científicos, a interpretação
psicanalítica selvagem é sempre possível e é preciso estar alerta e não negligenciar, em nome de uma hipotética “comunicação de inconsciente para
inconsciente”, o tempo necessário e indispensável a toda perlaboração, atalhando a investigação através de uma explicação preparada previamente,
chave (dos sonhos) pronta para utilização, se assim se pode dizer. O poder
da sugestão permanece sempre considerável, mas o fragmento de “pré-história” que seria assim injetado, e mesmo o segredo abruptamente revelado
ou, às vezes, somente fantasiado por uma interpretação prematura, correria
fortemente o risco, passado o momento do “Ufa! Então não era isto!”, de
funcionar como corpos estranhos, intrusivos, suplementares em uma identidade fragmentada e de não abrir nenhuma verdadeira porta para o desconhecido que jaz em cada um de nós.
Pessoalmente, vivi a situação de ter compreendido, através dos relatos
de uma paciente há pouco em análise, que uma das fontes do comportamento particularmente sádico de seu pai, durante sua infância – ele lhe
anunciava, por exemplo, que ia bater nela e que ela dispunha de alguns
minutos de antecipação para se proteger e fugir, depois perseguia-a até
pegá-la, claro, e bater nela violentamente – provinha do segredo de sua
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
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origem. Parecia-me cada vez mais evidente, à medida que as sessões e as
especificações cronológicas de seu relato se sucediam, que seu pai era o
filho ilegítimo de um ocupante alemão durante a Segunda Guerra Mundial
e que muitas de suas maneiras de agir provinham de uma fantasia de identificação inconsciente com a imagem do soldado nazista, que devia visitálo freqüentemente. Apesar de minhas precauções, e, sem dúvida, porque a
paciente também tomava consciência, ao mesmo tempo que eu, da
iminência da descoberta do segredo absoluto que sua avó tinha guardado
sobre essa origem, e apesar de eu ter evitado dizer qualquer palavra sobre
isso – mas os ruídos da poltrona não são, como nossos suspiros ou nosso
pigarrear, também reveladores de nossos movimentos contratransferenciais? –, ela pretextou que o tratamento ocupava demasiadamente sua
mente, em detrimento de seu trabalho e me pediu para suspendê-lo. Eu não
a revi e continuo lastimando o que eu tinha sem dúvida deixado passar de
minha excitação na construção de minha hipótese e de minha precipitação
mental em formulá-la para mim mesmo em termos de evidência.
Conceber-se-á que não é nesse sentido intrusivo, e mesmo
involuntário, da parte de um terceiro, que entendo defender o direito que
cada um tem à sua pré-história pelo viés de seu percurso psicanalítico. Esta
busca só pode ser uma atitude voluntária, alimentada pelo desejo de saber,
esta pulsão de investigação (Forscherdrang) que se sabe estar na origem
do Sherlock Holmes que jaz em cada criança, se a pressão do meio e de
seus interditos não a condena a se enfraquecer, até mesmo a desaparecer
em uma corrida para a ação que toma o lugar do pensamento e da memória.
O que é importante, no caso presente, não é tanto a descoberta mais ou
menos sensacional de tal evento que explicaria tudo o que acontece ou
aconteceu, ilusão originária da catarse no tempo dos Estudos sobre a Histeria, em que a confissão do segredo das “cenas primitivas” devia, com certeza, provocar a cura, mas a atitude de investigação e a própria busca que
estimula o analisando, quer ela nasça espontaneamente, ou seja autorizada
pelo viés de uma identificação com o analista. Quantos personagens
transferenciais antes do completo desenvolvimento, professores, mentores,
316 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
7. Mijolla, Alain de, Jakob Freud e Goethe, Fantasmes d’identification, Etudes Freudiennes, 910, 1975, pp.167-210 e La désertion du capitaine Rimbaud. Enquête sur un fantasme
d’identification inconscient d’Arthur Rimbaud, Revue Française de Psychanalyse, XXXIX, 3,
1975, pp.427-458). Estes trabalhos são retomados e completados em Les visiteurs du moi,
fantasmes d’identification (op. cit.), depois em: – (1984), “Identifier-être identifié-s’identifier”,
Revue Française de Psychanalyse, XLVIII, 2, março-abril 1984, – (1985), A propos des relations
entre les générations, Dialogues, 1985, 90, 4º trimestre, – (1985), Pulsion d’investigation,
fantasmes d’identification et roman familial, Topique, 14, 34, janeiro 1985.
8. Cabe lembrar a descrição de então: “são construções imaginárias, e mesmo verdadeiros cenários fantasmáticos inconscientes através dos quais um sujeito substitui uma parte de seu ego por um
personagem primordial de sua história familiar, pai, mãe ou sobretudo avós, (continua na p.318)
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médicos ou simples amigos conduziram um sujeito a se interessar pelas
transformações de sua história e de sua pré-história, deram-lhe, de uma
certa maneira, a permissão para saber mais sobre si mesmo, isto é, também
sobre as representações que ele tem de seus pais e dos pais de seus pais,
com seus aspectos positivos ou negativos, o bom e o mau, o crime, bem
como o ato santificador?
Nesse processo, aos psicanalistas foi atribuído um papel de modelos.
Modelos, porque, conscientes do que essa busca pode ter de difícil de suportar, ao lado de momentos de exaltação ou, às vezes, cômicos, graças à
experiência pessoal que precisamente fez deles terapeutas, eles são os mais
capazes de mostrar as aberturas e o caminho a percorrer. Modelos, porque
sua reflexão lhes permite tentar deslindar as situações complicadas que se
apresentam a eles: a adoção (imaginemos o direito à sua pré-história dentro
de alguns anos, de todas estas crianças que as famílias européias vão buscar no sudeste asiático), a morte de pais ou de avós com o que ela implica
de esgotamento mais ou menos precoce de informações, os ódios e as mentiras de alguns divórcios ou a denegação de algumas famílias reconstituídas
sobre o corte de uma parte delas mesmas, a idealização ou a rejeição de
uma cultura abandonada à força por famílias transplantadas, etc.
Propus, há vinte e cinco anos atrás7, a noção de “fantasias de identificação inconscientes” para descrever os processos que marcam a organização dos momentos dessa busca e os resultados de suas descobertas8. Se
insisti e continuo insistindo na noção de “fantasias”, é porque me parece
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
que a verdade à qual remete a exploração de sua pré-história não é forçosamente uma realidade acontecida externamente, reconhecida e datada (mas
por que não, se isto se apresenta?), mas constituída de fragmentos mais ou
menos heteróclitos de representações e de afetos, freqüentemente organizados em “cenas” que preenchem vazios históricos, e cuja assimilação,
introjeção se poderia dizer, no sentido usado por Ferenczi, vem enriquecer
o ego, oferecendo um acréscimo de coerência a seu universo psíquico. Só
mencionarei aqui seu papel na dinâmica pulsional. Eles não são elementos
decorativos, mas servem como qualquer outro tipo de fantasias à uma satisfação libidinal e à realização de desejos.
Mais do que nunca, a metáfora arqueológica cara a Freud se apresenta
à mente, mas levada adiante até a pesquisa paleontológica. Pode-se imaginar um certo número de lembranças relatadas, de impressões sentidas, de
porções de frases mais ou menos claramente percebidas, de subentendidos
observados, de alusões interpretadas, de fotografias ou de objetos transmitidos, como tantos desses vestígios de sílex ou de osso, a partir dos quais
deve-se concluir se eles foram ou não obra humana, e a partir dos quais o
especialista deve determinar a origem e o uso. A verdade da reconstituição
nunca é mais que uma probabilidade e a teoria que o paleontólogo tirará
dela poderá sempre ser colocada em questão ou completada por alguma
nova descoberta ou por uma datação mais precisa. As fantasias científicas
que concernem à vida de nossos mais longínquos antepassados, por exemplo, as hipóteses explicativas religiosas ou profanas a propósito dos
afrescos das grutas, são a imagem bastante fiel do que se pode compreen(continuação da p.317) a fim de fazê-lo viver em seu lugar um fragmento mais ou menos importante de sua própria existência. Somente uma interpretação integrada em um processo psicanalítico em curso, quer dizer, colocando em ação as próprias fantasias de identificação do psicanalista,
permite descobri-las e compreender seu significado atrás dos sintomas, comportamentos ou até
mesmo “delírios”, no sentido em que Freud falava dos “delírios” neste caso de neurose obsessiva
que ele descreveu sob o nome de “O Homem dos Ratos” ”. Esta descrição essencialmente
psicopatológica mereceria ser retomada e estendida a um processo mais geral insistindo menos na
ausência em si mesma que estas fantasias, estes “visitantes do ego” vêm preencher do que em sua
presença constitutiva da bagagem que assinala nossa pertinência à uma linhagem genealógica real
e imaginária. Por isto sua importância na elaboração do “romance familiar”.
318 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 319
Alain de Mijolla
der e interpretar das “fantasias de identificação” que habitam consciente e
pré-conscientemente o ego do sujeito.
Quanto à transmissão e ao seu caráter imprevisível, darei dois exemplos. Um é bem conhecido: é a brincadeira da mensagem que se cochicha
rapidamente na orelha do vizinho, este devendo retransmiti-la tal como a
compreendeu ao jogador seguinte, até que o último da cadeia a anuncie em
voz alta, completamente deformada, com exceção de algumas assonâncias,
em relação ao texto inicial. Tirarei meu outro exemplo de A história dos
Marranos de Philip Roth: um judeu polonês, Samuel Schwartz, capitulou,
em 1917, diante da descoberta de um grupo que, no coração de Portugal,
tinha conservado no isolamento e em segredo absoluto alguma coisa da
tradição judaica, desde as condenações da Inquisição, cinco séculos antes.
“Eles não tinham jamais ouvido falar de outros judeus além deles mesmos
e ignoravam tudo da vasta comunidade judaica que vivia além das fronteiras de Portugal. Sua concepção se limitava à de um grupo restrito, limitado
a uma cidade e aos seus arredores imediatos, e para o qual o segredo representava a condição primordial de uma existência religiosa. Além disso, o
estrangeiro era incapaz de recitar as preces tradicionais portuguesas, próprias dessa comunidade e das comunidades irmãs. Foi em vão que ele tentou explicar-lhes que a língua judaica universalmente adotada para a reza
era o hebraico. Eles nunca tinham ouvido falar dessa língua e duvidavam
de sua existência. Para terminar, uma velha senhora, que a comunidade
tratava com um respeito particular, pediu-lhe em um tom céptico que recitasse uma prece na língua que detinha, segundo ele, esse caráter sagrado.
Sua escolha era evidente: ele recitou-lhes a profissão de fé judia, aquela
que os lábios de Castro Tartas murmuravam quando pereceu na fogueira:
“Escuta Israel, o Eterno teu Deus, o Eterno é Um”. Quando pronunciou o
nome de Deus – Adonai – a velha senhora cobriu os olhos com as mãos, o
gesto ritual destinado a afastar toda distração exterior durante a recitação
do versículo. Quando ele terminou, ela se voltou para os que assistiam:
“Ele é realmente judeu, disse ela com autoridade, pois conhece o nome de
Adonai”. Assim, esta sobrevivência da velha língua hebraica, preservada
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
oralmente ao longo de séculos de subterfúgios e de perseguições, acabou
aproximando os marranos sobreviventes de um representante do mundo
judaico exterior” (p.287-288).
Com freqüência, lembrei o papel primordial que desempenham os
avós na constituição e na reconstituição da pré-história de cada um9. Eles
representam a fonte direta ou sobretudo indireta mais importante dos materiais que permitirão que a criança construa suas “fantasias de identificação
inconscientes”. Quer seja em sua realidade ou no discurso dos pais a seu
respeito, através de palavras claramente expressas ou no que a criança pode
perceber de uma outra figura que se esconderia entre as malhas de falas
oficiais, os traços parciais ou deformados de suas imagens se encontram na
origem de romances familiares ou de identificações que se expressarão
vários decênios mais tarde em um paciente em análise, condenadas a permanecer inexplicadas, se não se teve o cuidado de encorajar sua
rememoração. Se eles vivem tempo suficiente e são bastante próximos da
criança para ter com ela contatos e conversas, os avós representam as testemunhas da infância de seus pais. Somente eles podem lembrar as proezas
ou os erros que pontuam o relato de uma saga familiar que as crianças não
se cansam de ouvir. Somente eles podem pronunciar os termos de comparações como “Tu és como teu pai, ou como tua mãe”, sem que isto tenha
forçosamente valor de reproche, contrariamente aos processos de identificações que, tão freqüentemente, os pais utilizam por ocasião de suas querelas, para notificar que a parte má de uma criança só pode provir da outra
cadeia hereditária.
Mas não é só isso. Esta possibilidade de lembrar de um passado em
que os pais onipotentes não passavam de crianças pequenas estende e confirma o poder que os avós exerceram e continuam exercendo sobre sua
progenitura que se tornou adulta. Não se deve negligenciar o quanto essa
9. Mijolla, Alain de, Le rôle des grands-parents dans l’univers psychique de l’enfant, Le Group
familial, 153, fevereiro 1997, p. 34-40. Cf. também: – (1995), Parents, grands-parents, la chaîne
des identifications, in: D. Brun (dir.), Les parents, le pédiatre et le psychanalyste, Paris, P.A.U., p.
56-65.
320 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 321
Alain de Mijolla
relação prolongada de fidelidade e de submissão, com o que ela pode comportar de ódio inconsciente, pesa sobre alguns destinos, quando, por exemplo, uma mãe abandona seu filho aos cuidados de seus próprios pais, seja
porque ela erigiu seu pai como o único genitor possível, seja porque ela
repara o luto interminável de uma perda sofrida, no passado, por sua mãe,
seja porque ela não consegue ultrapassar a culpabilidade edípica ligada ao
fruto de sua sexualidade. Uma situação comparável é criada quando um
dos pais morre e o sobrevivente fica sozinho, sem formar um novo lar. O
filho do casal assim fragmentado não poderá deixar de suspeitar da verdadeira identidade imaginária do pai ou da mãe que lhe tinha sido, inconscientemente, atribuída por aquele ou aquela que prova, com seu celibato
prolongado, sua incapacidade de encontrar substituto para seus objetos
edípicos.
Diz-se que com a morte de velhos africanos desaparecia, junto com
eles, toda uma biblioteca. Esta reflexão se aplica a todos os avós do mundo,
mesmo que a existência da escrita torne menos insubstituível a ruptura da
transmissão oral. Talvez menos indispensável, mas não menos importante
na medida em que os elementos mais vivazes dessa tradição que se transmite de geração à geração estão ligados a imagens concretas, ao som de
uma voz, à carícia que acompanhava o relato, às cores, aos ruídos, aos
paladares e aos odores que colorem vivamente as recordações. Ou, às vezes, as tornam abomináveis: maus cheiros excrementícios, pêlos eriçados
que espetam, caretas ou disfasias da demência senil, etc.
Os avós e o que eles transmitiram aos seus filhos, consciente e inconscientemente, constituem, sobretudo, um elo com o passado e com costumes que eles herdaram de seus próprios pais e, através deles, de seus próprios avós. Cada criança, no momento de seu nascimento, tem em sua mão
uma corrente genealógica fantasmática que a liga, certamente, à origem do
mundo mas, de maneira mais direta, a uma centena de anos de um passado
partido em fragmentos de preceitos religiosos, de provérbios moralizadores, de brincadeiras bobas, de hábitos alimentares ou de vestuário, de receitas de cozinha, de fragmentos de canção, de preconceitos e de sagas glori-
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
osas onde se mesclam conquistas e derrotas, e até mesmo alusões a esses
“segredos de família” cujos estilhaços caleidoscópicos ela terá, talvez um
dia, que reunir em um conjunto coerente. Esses famosos “segredos” sobre
os quais discute-se tanto, mas que só permanecem como tais com a cumplicidade daquele que os carrega e daquele que não quer ou não pode tomar
consciência deles. Lembremos a observação de Freud: “Quando me impunha trazer à tona tudo o que os homens escondem, sem utilizar para isto o
constrangimento que a hipnose exerce e servindo-me simplesmente do que
eles dizem e deixam entrever, acreditava que esta tarefa era mais árdua do
que ela realmente é. Aquele que possui olhos para ver e ouvidos para escutar constata que os mortais não podem esconder nenhum segredo. Aquele
cujos lábios se calam fala com a ponta dos dedos; ele se trai através de
todos os poros. É por esta razão que a tarefa de tornar conscientes as partes
mais dissimuladas da alma é perfeitamente realizável”.10
No mundo atual, em que a mobilidade dos povos coloca os problemas
de imigração e de assimilação, os avós representam a ponte que liga a criança ao mundo desaparecido no longínquo de sua história, como também de
sua pertinência geográfica. É, com freqüência, em busca de suas reminiscências que, ao se tornar adulta, ela partirá um dia, por exemplo, sob a
forma de um retorno a práticas religiosas que seus pais tinham rejeitado
para facilitar sua integração no país que os acolheu. Isto não tem nada a ver
com o que algumas teorias descrevem como transmissões
“transgeracionais” que se efetuariam pelas vias mágicas de “inconsciente a
inconsciente”. Esta noção de “transgeracional” não é psicanalítica em sua
origem histórica, mesmo se a moda e as facilidades conceituais que ela
representa – uma vez que ela causa um impasse na elaboração psíquica
pré-consciente nas investigações infantis e nas relações objetais que são
ligadas a ela – lhe valeram um certo sucesso. Eu sugeriria, de bom grado,
que ela fosse substituída em nossos escritos, assim como em nossas elabo10. Freud, Sigmund (1905e), Fragment d’une analyse d’hystérie (Dora), in: Cinq psychanalyses,
tradução francesa M. Bonaparte e R.M. Loewenstein, coleção “Bibliotèque de Psychanalyse”,
dirigida por D. Lagache, Paris, PUF, 1954, p.57.
322 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
11. É o próprio Freud, sempre preocupado com a telepatia, que sugeriu a idéia de uma comunicação de inconsciente à inconsciente sobre a qual tantos defensores da parapsicologia se precipitaram. Particularmente em suas “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”: “Em
resumo, o inconsciente do analista deve se comportar em relação ao inconsciente emergente do
paciente como o receptor telefônico em relação ao código de chamada. Assim como o receptor
transforma em ondas sonoras as vibrações telefônicas que emanam das ondas sonoras, o inconsciente do médico consegue, com a ajuda dos derivados do inconsciente do paciente que chegam
até ele, reconstituir este inconsciente do qual emanam as associações fornecidas”(1912c). Freud,
no entanto, corrigirá sua comparação telefônica na resposta que ele dará, em 22 de novembro de
1925, a Ludwig Binswanger que observou sua ambigüidade: “Minha proposição de apreender o
inconsciente do analisando com seu próprio inconsciente, orientando, por (continua na p.324)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 323
Alain de Mijolla
rações psicanalíticas pela noção de “intergeracional” que corresponde melhor ao método de pensar os fenômenos psíquicos que Freud nos ensinou11.
De fato, a transmissão que está aqui em questão ocorre entre, ao menos,
três gerações de seres que falam e passa pelo espaço dos imaginários e das
fantasias dos pais do sujeito, por seus pré-conscientes, portanto, e por aquilo que eles constituíram de seus ideais, esses mesmos oriundos de sua própria origem familiar e que eles projetam assim sobre sua progenitura.
As fantasias parentais desempenham, portanto, nesses processos, o
papel primordial. Não há, em minha opinião, – e jamais conheci exemplo
disso após exame prolongado – transmissão que provoque curto-circuito
dessa geração intermediária. O terceiro transmissor, isto é, o genitor da
criança, é, por intermédio de seu pré-consciente, o elemento através do
qual se efetua, com freqüência sem o saber, a passagem da geração que o
precede àquela que o sucede, o que explica as deformações das quais vimos exemplos. É, aliás, este mesmo lugar e esta mesma função que se deve
atribuir ao psicanalista na situação psicanalítica: através da dupla ação da
transferência e de sua capacidade de deixar falar em si mesmo suas próprias fantasias de identificação, as que ele aprendeu a analisar, ele oferece
ao seu paciente esta ponte entre as gerações, que por vezes faltou ou que
repressão e recusa contribuíram para isolar em um esquecimento
patogênico.
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
Mas a vida, meu caro, é sempre mais complexa que a descrita pelos
psicanalistas, e as imprevisibilidades da transmissão são tão numerosas
quanto suas conquistas. É preciso, portanto, relativisar a importância da
existência real dos “avós” e acentuar a das fantasias dos pais tais como a
própria criança as constrói e reconstrói em função da relação afetiva que
ela mantém com eles e que é vital para ela, assim como, às vezes, para eles.
Para o viajante sem bagagens ou para fins de melodrama, tudo é simples:
uma mancha na nádega direita – hoje se faz uma pesquisa do DNA – é
aparentemente suficiente para assinalar a pertinência e para restabelecer a
identidade em seu esplendor triunfante e reconhecido: “Venha para os meus
braços, minha filha!”. Mas a genética, não mais que o traumatismo, não
consegue fazer calar a fantasia de uma identidade psíquica sexualizada
muito mais complexa e sobre a qual os psicanalistas têm alguma coisa a
dizer. Nisso, a genética não contraria as modas que gostariam de refutarlhes esta competência.
Infelizmente, não pude ver um documentário televisionado intitulado
Esther et Marianna, d’une rive à l’autre (Esther e Marianna, de uma margem à outra), mas a apresentação que foi feita me interessou muito. Um
cineasta filmou a busca que uma avó, Esther, efetuou de sua neta Marianna,
desaparecida na Argentina quando tinha entre um e três anos, depois que
seus pais uruguaios, que se encontravam ali com o objetivo de agitação
política, foram presos e mortos. A avó acabou encontrando-a, quando ela
tinha dezessete anos. Ela fora adotada e criada com um outro sobrenome
(continuação da p.323) assim dizer, o ouvido inconsciente como um receptor, foi formulada em
um sentido modesto e racional; mas sei que ela dissimula outros problemas importantes. Gostaria
simplesmente de dizer que deveríamos liberar-nos da intensificação consciente de algumas expectativas, portanto criando em si o mesmo estado que é exigido do analisando. Toda obscuridade
desaparece se você admite que nesta frase trata-se do inconsciente apenas no sentido descritivo.
Para se expressar corretamente, dever-se-ia dizer préconsciente ao invés de inconsciente”. Se
levarmos em conta esta correção em favor do “préconsciente” e se substituirmos “analisando” por
“terceiro transmissor” e “médico” por “criança”, teremos uma idéia do mecanismo que pode estar
em ação na organização da transmissão das fantasias entre as gerações.
324 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 325
Alain de Mijolla
por um membro da polícia argentina que, sem dúvida, fora cúmplice no
assassinato de seus pais. Contatada por sua avó que lhe revela sua origem,
se nega a ir para o Uruguai e escolhe permanecer junto à família que a
acolheu.
Na apresentação que li, o cineasta comentava o fato de que ela tinha
sido criada em um clima político ultra-reacionário e que ela não tinha podido suportar a idéia de pais terroristas revolucionários, mortos pela causa
que defendiam. Ele igualmente acrescentava que se tinha anunciado, sem
dúvida um pouco brutalmente a esta moça, em plena crise da adolescência,
os novos dados de sua carteira de identidade e que isto explicava sua rejeição. Poder-se-ia sugerir que as fantasias de identificação inconscientes de
Marianna deviam ser bem contraditórias: por um lado, seus pais adotivos
lhe haviam insuflado os elementos históricos e ideológicos da genealogia
deles, certamente, mas também, com certeza, as deformações conscientes
e inconscientes que levavam implícito no discurso deles o conhecimento
que eles tinham da origem real da criança e das condições do desaparecimento de seus pais biológicos. A imagem destes devia ter um estatuto
fantasmático sem dúvida bastante distanciado, no romance familiar da
moça, da realidade histórica que vinha subitamente lhe impor essa avó estrangeira e desconhecida. Que ela tivesse, além disso, se encarregado da
culpabilidade inconsciente dos pais adotivos comprometidos, real ou
fantasmaticamente, por ideologia, nesse assassinato e nesse seqüestro,
mesmo se eles pensavam tê-lo cuidadosamente dissimulado? Como se encontrar em meio a tantas representações tão violentamente contraditórias,
senão rejeitando as novas – que poderiam ser, ao contrário, acolhidas com
uma falsa alegria, se elas acontecessem em um momento de conflito agudo
entre a adolescente e seus pais adotivos?
Sophie de Mijolla-Mellor lembra: “A história que é necessária para o
sujeito terá, portanto, que se fundar sobre uma pré-história que só dependeu dos outros e sobre um início de história da qual o sujeito só saberá
aquilo que ele pode saber através dos outros. O que acontece quando os
informantes na matéria não transmitem ao sujeito estes “primeiros pará-
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
grafos” de sua história e de sua pré-história pessoal?”12 Nós tentamos dar
uma resposta a esta questão através de processos que atribuem toda a importância às recontruções fantasmáticas dessas porções do passado desconhecidas para sempre. Mesmo “Dolly”, quando ela tiver duas pernas, poderá reconstituir uma história para si que lhe será própria...e única. Já apresentei uma suposição sobre isso13: “Se Dolly é morena em um país nórdico,
não há dúvida de que ela não cessará de elaborar para si um passado feito
de uma mistura de buscas nos países do Sul e de histórias de Vikings, que
virão daqueles que a terão embalado, alimentado e criado até a idade dos
questionamentos. Sua busca não será unicamente centrada em algum “segredo” vergonhoso, mesmo se sua origem “clônica” só possa incitá-la a
isto, pois, como todo ser humano, ela agarrará esses fragmentos de relatos
gloriosos e de descrições idealizadas que constituem igualmente a trama
dos processos identificatórios e das fantasias de identificação inconscientes variadas que nascem disto. Não é, aliás, por esta razão que, à metáfora
um pouco assustadora de “fantasma”, com o que ela comporta de referência a um processo psicopatológico, eu preferi a de “visitantes do ego”, mais
aberta aos devaneios, cuja visita, como na vida, pode ser breve ou, às vezes, se incrustrar como parasitas. Se Dolly não consegue, não mais que
cada um de nós, reconstituir a exata realidade histórica de suas próprias
origens, ela criará uma outra que servirá de base fantasmática para os filhos
e para os netos que ela terá, talvez, um dia. Será assim enquanto houver
homens e enquanto eles procriarem. A transmissão genealógica das fantasias de identificação não pode sofrer nenhuma solução de continuidade.”
Porque nenhum ser escapa das injunções psíquicas de sua história e de
sua pré-história, sobretudo se lhe é interditado ou difícil, devido às circunstâncias externas, reinventá-las para romper a repetição dos destinos impostos pelo discurso familiar (que, é claro, compreende tantos não-ditos, insinuações....) e para poder talhar-se um espaço original de liberdade. En12. Mijolla-Mellor, Sophie de, op. cit., p.191.
13. Mijolla, Alain de, Les fantasmes d’identification et leurs histoires, Symposium “Filiations
psychiques”, Lausanne, 25-27 de setembro de 1997, no prelo.
326 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sinopse
Se cada um tem direito à sua própria história, e se uma grande parte do
encontro psicanalítico tem por função permitir sua reconstrução, assim como sua
construção, é também assim para o que se pode definir como a “pré-história” de
todo ser humano. No mosaico de elementos psíquicos disparates, mais ou menos
perpetuamente agitados de movimentos de tipo “browniano” – pulsões parciais,
defesas, investimentos e contra-investimentos, repetições, etc. – cujo frágil ponto
de equilíbrio constitui o que nomeamos a “identidade”, essa pré-história desempenha um papel importante que os psicanalistas negligenciaram durante muito
tempo. A moda de mágicos ressurgimentos “transgeracionais” teve o mérito de
chamar a atenção deles para a parte que toma, para cada um, o processo de uma
transmissão, em realidade, “intergeracional” que se efetua pelo que os pais de
uma criança deixam conhecer das imagens pré-conscientes de seu passado e das
cenas fantasmáticas que encenam os personagens principais, seus próprios pais
sobretudo – e é este o papel psíquico mais essencial dos avós – ou de seus próximos, através dos relatos que eles transmitiram, de maneira manifesta ou latente,
sobre seus antepassados. Ao lado do geneticista, do biólogo ou do antropólogo, o
psicanalista deve defender o direito que cada ser humano tem de reconstruir os
elementos de uma pré-história pré-consciente, fragmentos importantes de sua identidade.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 327
Alain de Mijolla
quanto psicanalistas, podemos nos tornar os adjuntos do detetive que parte
rumo a essas novas buscas, os advogados desses processos em perpétua
apelação, os partidários que se manifestam em favor da inscrição, na constituição psíquica, de um artigo que proclama o direito à uma pré-história.
Mas de uma pré-história essencialmente psíquica, tragi-comédia com cem
atos diferentes, aglomerado de representações conscientes e pré-conscientes a serviço das pulsões, e que, visando à coerência, tende à unificação do
sujeito, à constituição e à consolidação permanente de seu sentimento de
identidade e se coloca, portanto, a serviço de Eros.
Para um psicanalista, a questão pertinente da identidade é, com freqüência, menos “Quem sou eu?” do que “De quem e de que sou feito?”
HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA PSÍQUICAS.
O “INTERGERACIONAL” E SEUS FRAGMENTOS DE IDENTIDADE
Summary
If each person has a right to its own history and if a large part of the
psychoanalytic encounter has a role to allow its reconstruction, as well as its
construction, this is also valed to what we can define as the pre-history of all
human being. In the mosaic of the disparity psychic elements, more or less
perpetually agitated by movements ... as “brownian”, partial drives, defences,
investments and conter investments, repetitions, etc – in wich the fragile equilibrium
point – constitute what we call “identity”, this pre-historycal has an important
hole wich psichoanalysts neglected for a long time. The fashion of magic
transgenerational findings has the value to call their attention to the place that the
transmition process has to each one, in reality, “intergenerational”, that takes place
by the what the parents let you know about their past pre-concious imagos of the
phantasmatic scenes that play their main characters, mainy their own parents –
and this is the most essential psychic role of the grandparents – or their relatives,
though the report wich they transmited, in a manifested or latented way, about
their ancestors. Next to the geneticist, biologist or the anthropologist, the
psychoanalyst must defend the right that each human being has to reconstruct the
elements of a pre-conscious pre-history, important fragments of its own identity.
Sinopsis
Si cada uno tiene derecho a su propia historia, y si una gran parte del encuentro
psicoanalítico tiene la función de permitir su reconstrucción, así, como su
construcción, es también así para lo que se puede definir como la “prehistoria” de
cada ser humano. En el mosaico de elementos psíquicos disparatados, el
movimiento agitado de pulsiones parciales, las defensas, cargas y contra-cargas,
repeticiones, etc. – donde el punto de frágil equilibrio constituye lo que llamamos
la “identidad”, esta prehistoria tiene un papel importante que los psicoanalistas
descuidaron por mucho tiempo. La moda de los mágicos resurgimientos
“transgeracionais” tuvo el mérito de llamar la atención de ellos para la parte que
toma, para cada uno, el proceso de la transmisión, en la realidad, “intergeracional”
que ocurre con aquello de su pre-conciente pasado que los padres de un niño les
permiten conocer. El esencial de los abuelos – o de sus íntimos, a través de los
informes que ellos transmitieron, de la manera, manifiesta o latente, en sus
antepasados. Al lado del genetista, del biólogo o del antropólogo, el psicoanalista
debe defender el derecho que cada ser humano tiene de reconstruir los elementos
de una prehistoria pre-conciente, fragmentos importantes de su identidad.
328 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Família; Fantasias de identificação; Avós; Identificação; Segredos de família.
Key-words
Family; Identification fantasies; Grandparents; Identification; Family secrets.
Palabras-llave
Família; Fantasías de identificación; Abuelos; Identificación; Secretos de
família.
Artigo
Copyright © PUF
Trabalho publicado na Revue Française de Psychanalyse, LXIII, 4, 1999.
Tradução: Ester Malque Litvin
Revisão da Tradução: Cynara Cezar Kopittke
Dr. Alain de Mijolla
8, rue du Commandant Mouchotte, Bat.A406,
75014 Paris – France
Phone: 33142790382
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 329
Alain de Mijolla
Palavras-Chave
A atividade psicanalítica com
pacientes adolescentes gerou, e continua gerando ainda, reflexões,
interrogantes e polêmicas. Neste
trabalho proponho tratar apenas de
algumas questões, especialmente
das que conduzem aos problemas da
atualidade. Procurarei agrupar os
pontos de interesse.
a) O que se diz sobre
a pessoa adolescente:
Arnaldo Smola
Membro Titular em Função
Didática da APA (Associação
Psicanalítica Argentina). Analista
de Crianças e Adolescentes.
Apresentam-se idas e vindas,
progressão e regressão, sentimentos
de angústia, principalmente
confusional, na maioria das oposições fundamentais do ser humano.
As angústias oriundas da regressão
durante a linha das posições
libidinais, as da dupla relação de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 331
Arnaldo Smola
Trabalhando com
Adolescentes:
Um Analista de
Dois Mundos
TRABALHANDO
COM
ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
objeto-identificação, a reatualização conseqüente do Complexo de Édipo,
os lutos pelo corpo e a totalidade da situação infantil. Isto, naturalmente
assumindo as provenientes de situações sociais e familiares particulares.
Existe uma tendência, felizmente estacionária, entre os terapeutas de
adolescentes, de encontrar com freqüência, entre seus pacientes, a categoria de borderline. Sobre isso, deve-se saber que tratam-se de afecções de
começo precoce, sintomatologia polimorfa, períodos de descompensação.
Na infância apresentam uma multiplicidade de antecedentes sintomáticos,
gerados principalmente pela existência de angústia aguda, impossibilitando de ser instalado o trabalho de latência. Impõem-se uma anamnese cuidadosa e um diagnóstico diferencial, onde deve ser considerado que é neste
período da adolescência quando surgem novos traços de caráter, que podem exibir, inicialmente e até sua melhor organização, formas turbulentas.
Por que, então, se diagnostica borderline com tanta freqüência? Possivelmente o agudo das angústias, os sintomas da depressão adolescente, fadiga, falta de concentração, sintomatologia neurótica variada e talvez
agressividade aumentada conduzam a isto.
Desde o já célebre trabalho de Anna Freud em “O Ego e os Mecanismos de Defesa”, existe preconceito para com os adolescentes na terapia
psicanalítica, em função, principalmente, da acumulação de cargas e
valências narcisísticas e a vida em forte referência ao seu grupo de pares,
que dificultaria a influência da pessoa do analista. Tais prevenções fizeram
com que os analistas se abstivessem das terapias individuais e conduzissem às tentativas de terapia em grupo, na idéia de que a influência do grupo
reforçaria a do analista. Isto produziu enquadres terapêuticos cujo crédito,
no campo das mudanças sintomáticas, foi importante, ainda que uniformizasse os pacientes, reforçando a classificação etária pretendida pelos mesmos. Por outro lado, é necessária uma boa aproximação diagnóstica, considerando que devem ser evitadas, nesses enquadres, pessoas com patologia
“pesada”. As configurações clínicas que estamos vendo hoje fazem com
que estes obstáculos se apresentem freqüentemente.
332 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Com certeza, alguns aspectos da adolescência mostram características
de crise. Não é para menos: nunca se muda tanto em tão pouco tempo.
Muitas das atividades significativas que orientarão a vida das pessoas devem ser encaradas nesse período, que resulta então, breve. O tempo de
formação e as transformações produzidas são amplos e, conseqüentemente, ainda que queiramos evitá-las, a moratória se prolonga. Além disso, o
adolescente demora na sua formação; sempre insistiu-se, para compreender isto, na comparação com a formação individual em tempos antigos, nos
quais o sujeito já estava, geralmente, determinado pelo oficio parental, que
o precedia, pelo qual era a identificação uma ajuda e uma marca, e os destinos individuais, previsíveis. Hoje, porém, vemos se impor a necessidade
de constituir uma “classe” adolescente, que outorgue identidade “por enquanto”, e que tenha moda e modos próprios para cumprir este desejo. Por
outro lado, advém quase sempre de um mundo lastimado, e devem, queiram ou não, se apossar dele.
Às vezes encontramos, em lugar do típico habitante dos grupos, um
jovem com seu Eu dividido entre desdobramentos individuais, um
ensimesmamento abusivo de subjetividade, que denominamos narcisismo,
o errático e dependente de qualquer movimento da realidade objetiva. As
variantes existem, essas e outras muitas, mas, das angústias antes mencionadas, e das soluções defensivas que elas geram, surge uma pessoa que, às
vezes, sem estímulo e, quase sempre com ele, é propícia à introspecção,
porosa para os estratos inconscientes, necessitada de compreender-se e com
capacidade para transformar a ajuda em mudanças de significativa projeção. Se o analista pode deixar de lado prevenções sombrias, derivadas de
uma visão algo vetusta que enfatiza as dificuldades, e vence uma primeira
linha de defesas, encontrará sua tarefa encarrilhada.
De todos os processos que nesse período ocorrem no interior da estrutura, o que parece mais oportuno para a produção de mudanças psíquicas
transcendentes, é a revolução das identificações pós-edípicas, as quais, ao
re-tornar-se relação de objeto, dão lugar a novas identificações, o que reSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 333
Arnaldo Smola
b) A Opinião Oposta, a Grande Oportunidade
TRABALHANDO
COM
ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
sulta na entrada de novos objetos do mundo exterior, novas ligaduras e
renovados argumentos na estrutura do Ideal do Ego.
c) Sobre a Psicologia Evolutiva
O que direi não está relacionado com as críticas que, por outro lado,
são feitas à Psicologia Evolutiva ou para a sua utilização. Acredito que o
analista tem que saber o que ela diz, tem que estar inteirado. Igualmente,
isso não o exime da permanente reflexão de sua própria infância e adolescência, reflexão e elaboração. Construir com o que a Psicologia evolutiva
descreve como um molde, já é diferente. Da categoria ADOLESCENTE
surge uma tendência à homogeneização que não deve ser sustentada a extremos, por duas razões: uma, porque agrupa pessoas muito diferentes, diferença que apagamos sempre ao criar categorias. As crianças parecem ter
conquistado esse direito perante seus analistas, mas ao chegar à adolescência, talvez impressionados pela força que as mudanças têm, voltamos a
considerá-las perdidas. E, porém, não é um período para descuidar-se e
homogeneizar tudo por referida força, não se deve esquecer das diferenças
que sobrevivem, em boa parte ao processo. Entra-se nele “com as diferenças postas”. A outra razão é porque esse agrupamento os separa de nós, os
adultos, e isso reforça a separação em classes e a dificuldade para que nos
entendamos, quando a sustentamos a partir de nós mesmos. Expressões
como “a coisa adolescente”, as considerações de suas angústias, a paciente
tolerância por suas manifestações, não carecem de razão, mas, por não serem totalmente sinceras, oferecem um panorama dominado pelo ar de valentão do adulto, uma ambígua oscilação entre o afeto e o desprezo.
Na verdade, sabemos bem que a adolescência desperta inquietude e
angústias no adulto, nostalgias agudas e referências crescentes à velhice e à
morte. O analista também deverá afrontar essas angústias perante seu paciente e seus avanços no mundo. Se a homogeneização resulta, nesse sentido, uma revanche um tanto hipócrita, é mais importante aperceber-se.
O volume de regressão narcisística, a atividade auto-erótica de alta
voltagem, a intensidade das vivências e a inconstância dos entusiasmos
334 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 335
Arnaldo Smola
fazem da adolescência um período o qual o adulto prefere esquecer; isto se
soma às dificuldades teórico-técnicas mencionadas como obstáculos para a
análise.
Existe ainda outra questão que me parece interessante considerar: enquanto os adultos em análise estão vinculados às escolhas e compromissos
tomados por causa delas, e travados, por conseqüência, nas decisões que,
devido à análise, possam surgir, os adolescentes estão vivendo um momento em que as escolhas são reversíveis e os compromissos mais tênues.
Pode-se dizer que é um momento privilegiado, que somente espera a afinação de seus recursos técnicos para prestar tais serviços. Então, os obstáculos que se apresentam, principalmente os provenientes do escepticismo dos
analistas, não terão origem em uma determinada resistência, um determinado temor de que a análise torne possível determinada tomadas de decisão, que se torne mais ativo nas suas conseqüências?
A crise adolescente, à qual tanta atenção se dá em nossa cultura, é,
essencialmente, uma crise da família como um todo. Existe nisto um aspecto quase risível, caricatural, hollywoodiano, enquanto que em outro plano, também notável, formas de relação, autenticidade de sentimentos e valores são colocados em revisão. O analista, ao intervir no caso, sente também os ecos dessas tormentas no seu desenvolvimento pessoal, e sua conseguinte força perturbadora, à qual convém conhecer e respeitar. Na sua
prolongada vida em comum, a família cria fantasias e gera uma linguagem
comum que serve para sua evolução, para suas defesas e para seu prazer,
com sua correlação de estilo e nível de simbolização. A isto podemos chamar o “Eu familiar” ou “o ar de família”, denominações que têm, ambas,
seus problemas: a primeira, porque contém uma pretensão metapsicológica
que promoveria muitos desentendimentos; a outra, pelo caráter aéreo que
dá às defesas e identificações. Trata-se verdadeiramente de um estilo e fantasia ricamente condensados, e as defesas são sólidas e é por conseguinte
eufemístico chamá-lo “ar”. De todas as maneiras, a entrada de um membro
na adolescência pode arrolar as defesas comuns, (daí o adequado da pala-
TRABALHANDO
COM
ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
vra crise), e tomar o sentido de um crescimento súbito e desparelho, o qual
complica as funções desse Eu familiar.
d) Um analista de dois mundos:
O analista começa sua formação geralmente quando é jovem. Se sua
análise didática “vai bem”, (Winnicott “dixit”), se verá levado para a regressão transferencial, enquanto que nas discussões científicas tenderá ao
progresso, exceto no que se relaciona à competência com seus pares e
maiores. “Responde” a uma teoria com bastante rigidez, mas não existe
outro remédio, no início. Algum autor ou chefe de grupo lhe fornece identidade, e com ela enfrenta-se à tarefa. Se esta incorporação toma funções
egóicas, e em geral com determinado conteúdo de imitação, fará de guia,
de companhia até as profundezas do objeto do seu estudo. Se assume características Superegóicas, será garantia de que a operação terapêutica não
irá constituir uma viagem apenas prazerosa, como satisfação de tendências
voyerísticas, por exemplo, ou outras, mas de direções sublimatórias. Se
operasse como barreira antiestímulo, o defenderia de seu envolvimento em
regressão e rememoração, mas na mesma linha poderia obturar sua
captatividade original. Em todos os casos, será um constituinte ativo dos
mais recentes aportes ao seu Ideal do Eu, dentro do qual deve crescer. Finalmente, as partes comprometidas com o projeto de entrada no mundo
adulto, ainda em processo, o inclinam até essa progressão, obediente aos
amos do saber, e a melhora de seu paciente adolescente pode estar sujeita a
ser prova do seu próprio rendimento e obtenção de autorização. Existem
dificuldades: se seu líder ou herói intelectual é forte ou sedutor, fomentando assim o hábito discipular, será difícil que ele próprio possa dar ao paciente a liberdade mental de que ele necessita.
Como contrapartida compensatória, a juventude do analista pode predispor a um bom contato inicial, uma forma de “reconhecimento de espécie”.
É parte importante da formação conviver com crianças de todas as
idades (entende-se, anteriores à adolescência), seja em um enquadre de
336 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
e) A Identidade e suas Vicissitudes:
Um homem de 46 anos, alto e com presença, casado, dois filhos. Muito inteligente boa posição por causa de uma empresa integralmente baseada em uma invenção própria. Seu pai morreu há pouco tempo e ele cuida da
sua mãe, de avançada idade e doente, atendida por várias empregadas.
Seu motivo de consulta: alguns sintomas somáticos, saturação por sua
vida de empresário, saudade do tempo e a oportunidade daquela sua
criatividade artística dos tempos de juventude. Desentendimentos radicais
com sua esposa, que não entende e não quer acompanhá-lo nas suas novas
buscas e persiste empenhada na vida de cônjuge de empresário.
Sua vida até agora: imaginação, utilização proveitosa de suas
valências obsessivas; uma combinação de severa correção e alegre trampa
convivem nele. A mãe é quem impõe a correção severa, o alarme e a escuridão da vida. O pai foi uma pessoa bastante ausente, algo festeiro, embora
sempre tenha sustentado o lar com seu trabalho. O paciente lembra que,
diante das admoestações e prevenções alarmistas de sua mãe, o pai sempre
lhe dizia: e tu vais dar ouvido ao que ela te disser? Bah…
Chama a atenção o quão diferentes são, pai e mãe, e como, ainda com
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 337
Arnaldo Smola
observação, terapêutico ou da sua própria análise. Isto se refere, fundamentalmente, à necessidade de seguir (isto é, entender) o paciente nas suas
regressões, que são, às vezes, surpreendentemente amplas.
Penso que convém, ainda, uma reflexão: exceto nos casos de isolamento, que sempre são sentidos como de algum grau de perda, a identidade
adolescente é assumida como uma identidade pública, inscrita na agenda
discursiva global, isto é, que enquanto se atravessam estes momentos, sente-se estar “fazendo história”. Daí vêm essas consignas pronunciada ao
passar, como “nos teus tempos” ou “agora… é a nossa vez”. Muito se falou
do “poder adolescente”; o analista deve entender tanto o poder como a
fragilidade: ambos existem, tanto a prodigiosa força do seu crescimento e
beleza como a possibilidade de serem conduzidos e massificados por uma
moda ou uma liderança política.
TRABALHANDO
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ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
meias palavras, estavam em franca oposição, o que debilitava, obviamente,
o valor coesivo da família. Aos 18 anos, porém, concordam diante da ameaça do jovem em abandonar seus estudos de Engenharia: nesta época admirador de Edson; estava já produzindo bons equipamentos de áudio, que
vendia, escrevia poemas, desenhava muito bem e estava, com alguns amigos, tentando construir um helicóptero. O analista consultado na ocasião,
apenas alguns anos mais velho do que ele, parece ter colocado seus melhores esforços em trazê-lo ao redil do estudo tradicional.
Agora, morto o pai, X decreta (para si mesmo) que acabarão as suas
aventuras e suas “vontades”, para dedicar sua atenção e amor para sua
mulher e filhos, sua família. Não deu resultado. Desencadeou-se, a seguir,
uma somatização (cólon irritável) e um estado depressivo e angustioso,
que fazia com que, nos finais de semana, tivesse que telefonar para o seu
analista. Este telefonema obedecia à necessidade de contar com a palavra
paterna que desautorizasse a inoculação materna de alarme, desesperança e
agressão reprimida. Compreendeu que sua impossibilidade de dar amor
para sua mãe, o ódio que surgia nele atravessava sua compreensão solícita
e serviçal, forçava sua identificação com ela. De fato, o convertia nela mesma, dedicada, quando ele era criança, a cuidados primários que ocupavam
toda sua vida em comum.
Quero, com este relato, mostrar o seguinte:
a) A identificação com o pai, ao carecer da realimentação dada pelo
objeto real, se enfraquece no seu acionar defensivo. O pai, que se ausentava durante semanas, deixava a criança em poder de uma mãe amargurada,
crítica e possessiva, que o possuía em um estado inconscientemente vingativo. O “decreto” era um mandato de não ser como o pai com o qual perdia
a possibilidade de contra-atacar a mãe persecutória e afastar-se da mãe
amada e disponível. A interdição paterna mostrou-se fartamente fraca, e
gerou ambivalência, ao dar uma ordem e não permanecer para sustentá-la,
mas “abandoná-lo a sua sorte”. A introjeção (in-corporação, literalmente)
no intestino, da fração persecutória, mostra a precocidade da situação.
b) O jovem analista que o tratou na adolescência, provavelmente aten338 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Psicanálise e Psicoterapia
São necessárias, para tratar este tema, muitas pontualizações. Por
exemplo, sobre os diferentes períodos da adolescência. Concordo com a
opinião de considerar três períodos bem definidos: adolescência precoce
ou puberdade, um período médio, e a adolescência tardia, que arranca, em
casos normais, aos 16-17 até os vinte anos, tudo isso aproximadamente,
como se entende.
Também é imprescindível a definição da Psicanálise, sobre a qual costuma haver bastantes acordos. Por exemplo: a) a situação transferencial
será conservada ao máximo; b) a compreensão disto, no sentido da repetição de conflitos e relações de objeto arcaicas, e; c) a Psicanálise entendida
como a investigação dos processos inconscientes do analisando. Com a
extensão que apresenta os conceitos de contra-transferência e de campo
analítico, compreende-se também que os processos inconscientes do analista estão em jogo.
Existem obstáculos para a realização de uma análise nos dois primeiros períodos de adolescência. O ponto a) que se refere à preservação da
situação transferencial, e que na prática necessita de silêncios, associações
livres do paciente, e estrita utilização da interpretação como instrumento,
tanto da transferência positiva como negativa, pode chegar a constituir-se
uma exigência excessiva para um púber, por exemplo. Como sabemos, a
tolerância para manter-se em planos discursivos da mente é variável em
um mesmo indivíduo, variação maior quanto mais jovem for, e isto pode
conduzir a problemas de tolerância no analista, tanto frente às defesas de
ação, como às agudas ansiedades que as motivam. Por outro lado, a freSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 339
Arnaldo Smola
deu mais ao pedido dos pais, mostrando um desejo de agradar-lhes, como
fez com seus próprios pais, ao conquistar um título profissional. Diria que
construiu uma ponte geracional, mas, olhando para a geração maior, e desconhecendo o desejo do menino, que necessitava de um tempo maior de
exploração das possibilidades do mundo, e desta forma, inclinando a balança e fortalecendo o Self adaptativo.
TRABALHANDO
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ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
qüência que o analista tenha com a análise de crianças lhe será importante
nesses terrenos.
O enquadre de Psicoterapia Analítica, tal como a entendo, não deve
ser confundido com apoio, nem reeducação. Implica a recepção dos conflitos que o paciente “traz” para a terapia, e os que podemos individualizar,
tudo isso para resolvê-los com o paciente, diminuindo a utilização de defesas nas áreas referentes a ele. A integração de conteúdos reprimidos no Eu
consciente será a conseqüência que se espera deste procedimento. O
surgimento da transferência merecerá sua interpretação, cuidando que se
entenda que se trata de uma repetição, com o objetivo de não deixar que se
precipite uma situação emocional massiva. Entre os conteúdos reprimidos,
a interpretação da identificação projetiva terá sua cena predileta nas tentativas de alienar o contrato analítico, com atrasos, ausências, e o silenciar
consciente de material. Também será importante visualizar as identificações e a luta contra elas, em todos os terrenos, mas, especialmente, nas
escolhas: de vocação, de objeto amoroso, etc.
A menor dispersabilidade e a focalização na escolha do ponto de urgência tornam um pouco relativa a neutralidade absoluta da técnica. Naturalmente, se tudo isto se encaminhasse bem, as condições para uma análise
em toda a regra se tornariam factíveis; porém, não acredito que a passagem
de uma Psicoterapia Analítica para uma análise seja um trânsito impossível. O jovem paciente pode deixar expandir seu desejo de “ir a fundo”, uma
zona de interesse de autoconhecimento.
No enquadre de Psicoterapia pode o analista utilizar recursos sobre os
quais devem ser decididas algumas palavras:
As perguntas, ou o perguntar do analista: é mais utilizado neste enquadre, mas não se deve abusar nem sequer através da busca do procedimento
socrático, dado que a análise está desenhada mais para descobrir que para
convencer, e, além disso, as muitas perguntas serão correspondidas com
outras muitas do paciente, que o analista terá dificuldades em responder.
Ocorre nisso o mesmo que com as mudanças de horário de sessão: O que o
analista solicite, lhe será igualmente solicitado.
340 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Analistas e Adolescentes: umas Palavras a Favor de Ambos
O analista, que já atravessou, no seu desenvolvimento, as tormentas
da adolescência, terá, também, feito o possível por esquecer algumas das
suas produções mentais e vivências. Por exemplo, a idealização do futuro,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 341
Arnaldo Smola
A cumplicidade, para facilitar a transferência positiva: complica a relação com os pais, obtura material transferencial, e cria precedentes de “ilegalidade”, que sempre se dirigem aos pais ou aos representantes deles. É,
por outro lado, uma mostra de impotência terapêutica e, para o paciente,
uma decepção silenciada.
O humor: é um recurso que pode ser útil principalmente por estimular
um olhar sobre ele mesmo de outra perspectiva, o mais precisamente, com
perspectiva, com essa pequena, mas imprescindível distância para observar-se. O caso contrário, a solenidade, aumenta a desconfiança e a separação interclasses, um “não irei na tua direção“ por parte do analista pode
trazer uma retração ou provas para ver “de que lado estás”, às vezes, como
conseqüência do anterior: como seja, todas as condições do enquadre servem e serão utilizadas, e em cada uma a decisão será sincera, flexível e
firme, cuidando em não comprometer o lugar do analista. Este, assim
como, segundo o conselho de Bion, não deve deixar-se atacar em alto grau
e preservar-se para outros pacientes, também deve preservar-se para quando seu paciente estiver em melhores condições de análise.
E, para resumir: são condições básicas, para ambos procedimentos: a
tolerância do analista às agudas ansiedades dos pacientes; o apoio dos pais
ao tratamento, o contar com as indicações específicas, e obviamente, as
condições materiais do contrato.
A utilização do divã: a Psicanálise foi aplicada cada vez mais a diferentes condições psicopatológicas, que levaram à renuncia do enquadre
clássico; a dos adolescentes não é a mais chamativa.
Como pode observar-se cada vez que o tema é tratado, a definição de
Psicanálise ou de Psicoterapia costuma requerer resposta à seguinte pergunta: tudo, ou os princípios fundamentais?
TRABALHANDO
COM
ADOLESCENTES: UM ANALISTA
DE
DOIS MUNDOS
compensação do seu descobrimento da finitude da vida, as expectativas de
uma obra notável, de poder, a satisfação da sensualidade, etc. As angústias,
antes mencionadas, também serão esquecidas, desta vez como triunfo do
desenvolvimento. É fácil pensar que exista certa rejeição para sua
reatualização. Porém, esta deve acontecer, talvez com maior detalhe que na
sua própria análise. Neste, as vivências da adolescência aparecem geralmente muito defendidas, nada fáceis de recobrar. Também deverá ser paciente com as manifestações de ação, o isolamento, a soberba, e às vezes, a
inveja com relação ao seu paciente por receber atenções, as quais ele não
recebeu no seu momento. Sua atenção para esses e outros aspectos que se
apresentarem no campo terapêutico será constante: daquilo que acabo de
dizer, podem surgir e acontecer técnicas que devem ser moderadas e ainda
evitadas: entendendo que a técnica será “esticada”, terá que atender a suas
próprias condutas reativas. O tão comentado “acompanhar” ao adolescente
no seu processo não deve ser tomado concretamente, nem levado muito
longe, dando lugar a viagens sem retorno. A elasticidade de enquadre sempre sacrifica algo da neutralidade, e isso parece imprescindível oferta à
condição adolescente, principalmente até que a transferência positiva seja
consolidada; se a perda da neutralidade é grande demais, compromete a
possibilidade de interpretar.
Também o analista deverá cuidar-se para formular interpretações nas
quais se entenda uma crítica aos pais. Uma situação assim serve para
dissociar, para ser cúmplice dos ataques do jovem aos seus pais, ou para
dar ao afastamento que necessariamente acontecerá um sentido menos
depressivo, que dificulte o trabalho de luto.
Entende-se, então, a intensidade do trabalho e a força de atenção que o
analista deve outorgar ao seu paciente adolescente.
O jovem paciente, por outro lado, vencerá os obstáculos que aparecem
desde o primeiro contato: a desconfiança para com aqueles que pertencem
a outra idade e com quem se pode viver, como de outra galáxia. Pode ser
que, desde seu isolamento, esteja necessitando de uma ajuda que seja difícil receber: suas defesas contra a dependência podem ser tão fortes, que
342 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Palavras-chave
Adolescência; Psicoterapia analítica; Crise; Categoria; Formação psicanalítica; Borderline.
Key-words
Adolescence; Analytic Psychoterapeutics; Crisis; Category; Psychoanalitic
Formation; Borderline.
Palabras-llave
Adolescencia; Psicoterapia Psicoanalítica; Crisis; Categoria; Formacion
Psicoanalítica; Borderline.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Traduzca
Revisão da tradução: Denise Zimpek Pereira
Dr. Arnaldo Smola
Arenales 2949, 8º “B”
1425 Buenos Aires – Argentina
Fones: 54 11-4862-5860
54 11-4825-0917
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 343
Arnaldo Smola
impeçam toda boa recepção. Geralmente, as reativações de ansiedades provenientes do Édipo pré-genital e genital o impedem. As fantasias conscientes do complexo de Édipo negativo são as mais influentes para essas resistências, e costumam converter à transferência em um tormentoso redemoinho.
Também lhe será solicitada uma certa vedação à descarga em ato, que
em geral é usada neste período para aliviar a tensão. Compartilhar e revisar
suas teorias sobre a vida e sua avaliação pessoal, geradora da sua novela
neurótica, é uma das obrigações não menores a que sua análise lhe levará.
Tudo isto tem que afrontar o jovem paciente, que, ainda antes de entrar em análise, sabia, de forma pouco clara, que existia alguma instância
como esta, capaz de encontrar explicação para algum de seus enigmas mais
íntimos.
1. Introdução
Gildo Katz
Membro Titular em Função
Didática da SBPdePA (Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre)
Ivan S.C. Fetter
Membro Associado da SPPA
(Sociedade Psicanalítica
de Porto Alegre)
O objetivo deste trabalho é
enfatizar algumas dificuldades que
encontramos na análise de pacientes narcisistas ou naqueles com aspectos narcisistas pronunciados. O
estudo do tema nos obrigaria a, praticamente, revisar todos os conceitos psicanalíticos, tarefa que foge ao
propósito desta exposição. Tendo
em vista a complexidade do assunto, procuraremos nos ater a dois aspectos do paciente narcisista que –
por sua atualidade e conseqüências
– julgamos fundamentais na nossa
atividade clínica: o “encantamento”
e o “estrago” que esses pacientes
provocam, respectivamente, no ana-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 345
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
Problemas
Clínicos do
Paciente
Narcisista:
Um Desafio ao
Psicanalista
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
PSICANALISTA
lista e nas pessoas que com eles convivem.
Neste sentido, convém lembrar um recente filme de Woody Allen –
Deconstructing Harry –, que evidencia bem esses fatos. Nele, um escritor
em crise criativa vai descrevendo várias passagens de sua obra onde aparecem problemas graves criados pelo personagem central a seus familiares,
tais como o de manter um caso com a irmã de uma das esposas, ter relações
sexuais com uma paciente de outra esposa que, por sua vez, havia sido sua
própria analista. Nesse filme, é nítido o ataque a seus objetos internos e
externos, representados pelo desprezo às origens – o judaísmo – e a percepção de figuras paternas cruéis, como um pai que mata e come toda a família. Em um final melancólico, o escritor está só e é admirado apenas por
aqueles personagens que ele mesmo criou (representando aspectos dele
mesmo), sendo incapaz de perceber o amor de uma mulher, do filho e de
um amigo que o acompanha a uma cerimônia em que seria homenageado
na universidade que o rejeitou, no passado. Apesar disso, em um momento
de aguda percepção, ele se dá conta de que, embora tenha talento e sucesso
para as artes, não se sente capaz de viver a vida, isto é, enfrentar a realidade, o que equivale dizer, psicanaliticamente, substituir Narciso por Édipo.
O que buscamos, inspirados nesse recente filme, é chamar a atenção
ao que denominamos de “pacientes de hoje”, cujos valores são calcados
em sucessos materiais e imediatos, em detrimento de vínculos afetivos capazes de auxiliá-los a reencontrar sua vida, sua liberdade, sua importância
para si e para os que os cercam. Muitas vezes, o analista pode se deixar
envolver, ao admirar tal sucesso, reforçando a incapacidade do paciente de
vivenciar uma experiência emocional – tal como a descrita por Bion – capaz de auxiliá-lo a retomar o seu desenvolvimento, ou a nascer para uma
vida mais próxima da sua realidade psíquica. Curiosamente, quando escutamos ou lemos um relato clínico de um paciente, muitas vezes a primeira
e mais destacada capacidade valorizada pelo autor é a de que o paciente em
questão é uma pessoa bem sucedida profissionalmente ou com posses materiais, o que pode ser um indicativo da importância que o analista dispensa
a esses valores.
346 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
O Encantamento
Um primeiro aspecto a ser salientado no paciente narcisista é o grau
importante de sedução que exerce sobre a pessoa do analista. Cria uma
verdadeira situação de “encantamento”, que funciona como uma artimanha muito sutil, com o intuito de desviar o rumo da análise para uma situação perigosa. Esse “encantamento”, um verdadeiro “canto de sereias”, nos
remete à trajetória de Ulisses, na sua volta às origens (como ocorre no
tratamento analítico), descrita por Homero na Odisséia. No Canto XII, há
um diálogo entre Circe e Ulisses, em que ela o alerta sobre os obstáculos
que ele terá de ultrapassar no seu retorno a Ítaca. Um deles é passar pela
“Região das Sereias”, pois poderá perecer, ao escutá-las, se ficar cativo do
seu canto harmonioso. Salienta Circe que, se quiser ouvi-las, para experimentar o prazer das suas vozes, deverá tapar com cera os ouvidos dos companheiros e ser atado ao mastro de seu navio. Enfatiza ela que, caso deseje
ser solto, previna seus homens “que o prendam com o maior número de
ligaduras”.
Parece grande a analogia entre o “canto das sereias” e o “encantamento” do paciente narcisista e entre Ulisses e o analista. Se for assim, o analista poderá ouvir esse canto, desde que atado ao mastro da sua identidade
analítica, para não se deixar envolver por uma armadilha e soçobrar nessa
região destrutiva.
Um outro perigo, na rota de Ulisses, são os rochedos que irá encontrar
a seguir. Circe não lhe aponta o rumo, mas descreve duas possibilidades:
uma rota conduz aos “rochedos errantes”, intransponíveis; na outra rota,
habitam dois monstros: Escila e Caribdes. Apenas lhe assinala que, caso
seguir o último caminho, deverá passar mais próximo de Escila e evitar
Caribdes. Ulisses segue esta indicação e consegue safar-se de mais um obstáculo. No processo analítico, essa passagem poderia representar os perigos que o analista enfrenta quando se depara com o que Freud (1914) denomina “muro narcísico”. Abordá-lo diretamente pode arremessar o trabalho
analítico contra este “muro”, os rochedos descritos por Circe, nos versos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 347
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
2. Narcisismo: uma Breve R evisão
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
PSICANALISTA
de Homero, destruindo as possibilidades de manutenção e progresso da
análise. Pela mesma razão, o analista deverá encontrar uma passagem entre
a Escila devoradora e a turbulência causada por Caribdes.
O Estrago
O “encantamento” nos leva a um outro aspecto a ser considerado no
paciente narcisista: a sua capacidade destrutiva. Isso foi bastante enfatizado
por autores pós-kleinianos, como Rosenfeld (1971, 1972) e Meltzer (1974),
que chamaram de “organização narcisista” um núcleo cindido da personalidade, fortemente impregnado de destrutividade e inveja, que se opõe, na
situação analítica, às tentativas de progresso da parte infantil e dependente
do self. A dependência do objeto implica amor e reconhecimento de seu
valor. Essa dependência estimula, através da organização narcisista, a inveja, que serve para obliterar a percepção do valor do objeto (conhecimento). Meltzer, por sua vez, assinala que, para atingir seus objetivos, esta
organização recorre a técnicas que aparecem como artimanhas para destruir as relações objetais. Cita como exemplos clínicos, entre outros, as
atuações dos psicopatas, do mentiroso, do “homem de confiança”, do jogador e dos perversos manifestos. Nós acrescentaríamos, ainda, os assim chamados pacientes “bem sucedidos”, que também acabam causando estragos
aos seus objetos internos e externos, como o personagem do filme de
Woody Allen.
Salienta Rosenfeld (1971) que foi Abraham quem provocou uma evolução no conhecimento psicanalítico ao estudar a transferência negativa
escondida e ao esclarecer a natureza dos impulsos destrutivos que encontrou em seu trabalho clínico com pacientes narcisistas. Podemos ver esse
aspecto no trecho do trabalho de Abraham, de 1924: “Em tal nível, tudo o
que o indivíduo leva em conta é seu próprio desejo de prazer. Não presta
qualquer atenção aos interesses de seu objeto e destrói esse objeto sem a
menor hesitação” (p.146). Abraham enfatizou que o elemento de inveja
era inegável no comportamento desses pacientes e assim conectou, clínica
e teoricamente, narcisismo e agressão.
348 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Desenvolvimento do pensamento
Como terceiro ponto a ser abordado, podemos dizer que o “encantamento” que leva ao “estrago” tem como conseqüência a obliteração do
desenvolvimento do pensamento (morte psíquica).
Freud (1914), ao explicar que o homem inicia sua vida mental imerso
no narcisismo primário – um ego reservatório de libido – para seu destino
natural – as relações de objeto –, estabelece uma linha de desenvolvimento
que vai de Narciso a Édipo. Dentro desta seqüência natural – do narcisismo
primário às relações de objeto –, ele entendeu a patologia mental nesses
dois níveis (edípico e narcisista), considerando que um seria analisável,
enquanto o outro não. Entretanto, o desenvolvimento da teoria e técnica
psicanalíticas propiciou uma modificação substancial na maneira de
enfocar as patologias de origem narcisista.
Na medida em que um psicanalista não pode falar em Narciso sem
pensar em Édipo, no difícil trajeto de Narciso para Édipo é fundamental
que ele possa entender que esses dois níveis se encontram em interação
constante.
Para Berenstein, Puget e Siquier (1984), os mitos de Narciso e Édipo
proporcionam dois modelos possíveis para a aquisição do conhecimento.
Um é o conhecimento imediato, sensorial, do qual sempre persiste uma
aspiração no ego. O outro é o mediato, simbólico, semelhante ao da consciência como um órgão perceptivo do mundo psíquico, do estado dos objetos internos, das emoções e da realidade, levando ao conhecimento. Narciso segue a primeira maneira, um tipo de conhecimento que se deve abandonar para dar lugar à simbolização, pois, se ele predominar, ocorre, como
assinalamos, uma espécie de morte psíquica que se aproxima da solidão
objetal. Em ambos os mitos, o conhecimento está representado pela figura
de Tirésias, cujas funções – revelar, descobrir, profetizar, predizer, aconseSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 349
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
Este é um dos aspectos centrais do narcisismo destrutivo: ele se opõe
aos vínculos libidinais entre a criança e a mãe e tenta, de todas as formas,
destruí-los.
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lhar – são as mesmas que desempenha todo psicanalista.
Um outro aspecto importante do mito de Édipo é abordado por
Ballesteros, Gómez e Gutiérrez (1984), sobre as origens de seu pai. Laio
foi condenado a ser morto pelo filho por ter roubado um príncipe com quem
manteve relações homossexuais. O roubo e o homossexualismo são entendidos dentro da patologia narcisista, representando uma suplantação do pai
e um funcionamento que tende a reproduzir uma relação diádica, simétrica,
de espelho mãe-bebê. Deste modo, vemos que no mito edípico está previsto um narcisismo prévio perturbado, pois Édipo, assassino do pai e incestuoso, tem sua origem em Narciso-Laio com toda a carga de destrutividade
da figura paterna.
Para Osório (1985), “a imagem de Narciso refletida nas entranhas
maternas (as águas do rio) é o irresistível convite para retornar (regressão
absoluta) à matriz da qual na verdade nunca se diferenciou por negar o
princípio da realidade que impõe o reconhecimento e aceitação das vicissitudes evolutivas. Narciso nega-se a ‘nascer’ psicologicamente, o que
implica abandonar a fusão simbiótica inicial com a mãe e renunciar, assim, à sua posse exclusiva” (p.1).
Ferenczi, em 1912, já abordava o mito de Édipo de uma forma muito
criativa, associando Jocasta ao princípio do prazer e Édipo ao princípio da
realidade. Segundo ele, a Jocasta em nós – ou o princípio do prazer – evita
a busca da origem das coisas e, principalmente, o reconhecimento da própria identidade, o que é, em suma, uma forma de negar o conhecimento e a
verdade psíquica.
Por outro lado, o princípio da realidade – o “Édipo da alma humana” –
não permite que a sedução do prazer o impeça de penetrar na verdade,
ainda que amarga e horrível.
Bion (1957) sustenta que nós nascemos com uma capacidade para
compreender em que consiste a vida sexual dos pais, isto é, com uma préconcepção do mito de Édipo. O neurótico trata de não se fazer portador
desse conhecimento, mas não pretende não tê-lo, destruí-lo (desmentida).
A psicose busca uma solução mais radical: se alguém ataca a pré-concep350 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 351
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
ção do coito dos pais, então não haverá coito dos pais (desestima). O ódio
à realidade é de tal magnitude que leva a atacar o aparato mental capaz de
percebê-la.
Aqui podemos observar a importância que tem, para o desenvolvimento, o papel do pai. Chasseguet-Smirgel (1984) enfatiza que esse papel
é o de representante da realidade, de certo modo também funcionando
como uma barreira à volta ao estado narcisista.
Segundo o casal Portella Nunes (1989), falando sobre o mito de Narciso, todas as versões são unânimes: a loucura – castigo de Narciso – consiste antes, fundamentalmente, no não-reconhecimento de sua própria imagem refletida do que no amor por si mesmo. É a confusão, a
indiscriminação, e não o amor, o elemento essencial do mito.
De acordo com os autores, existe uma incompatibilidade entre o
narcisismo e a forma superior de conhecimento, o conhecimento simbólico. Narciso, enquanto tal, não sobreviveria ao autoconhecimento, e isso
tem estreita relação com o processo analítico. Nesse sentido, é importante
que o analista perceba os momentos de confusão que ocorrem na passagem
da indiscriminação para o conhecimento. Ao perceber a relação diádica, o
analista pode compreender o paciente de outra forma, encontrando possibilidades de aclarar o confusional, promovendo a discriminação que permite
mudanças profundas sem que o paciente se sinta abandonado ou expulso,
como ocorreu com Édipo depois que Laio consultou o Oráculo de Delfos.
Em seu trabalho “O Complexo de Édipo invisível”, O’Shaughnessy
(1988) chama a atenção para o fato de que a impossibilidade de alguns
bebês perceberem a relação dos pais edípicos combinados deixa-os carentes de objetos bons internalizados e, como conseqüência, pouco capazes de
suportar a solidão. Eles precisam estar em um estado de identificação
projetiva com outro objeto. “Para eles, a história edípica começa aí –
expulsos. Afinal, é aí que se inicia o mito original: Laio expulsa Édipo”
(p.226). E a forma como estas crianças lidam com a expulsão ou com o
sentimento de abandono é que determinará o seu desenvolvimento emocional: Édipo será Édipo se puder tolerar a realidade, ou será Narciso se
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não souber lidar com ela. Neste caso, buscará, através do roubo, do homossexualismo, do “estrago”, uma forma de fusionar-se e negar a realidade
para sobreviver psiquicamente. Segundo o mito de Narciso, “Tirésias, ao
ser perguntado pelos pais sobre o destino do menino, disse que ele teria
vida longa, contanto que não se conhecesse”.
3. O Paciente Narcisista de Hoje
Os pacientes que estamos chamando, metaforicamente, “narcisistas
de hoje”, revelam algo que pode ter origem na relação com pais preocupados excessivamente com a parte intelectual e material e pouco com o lado
emocional e com o crescimento do filho como ser humano. Como conseqüência, eles sofreram o que se pode chamar de um retardo emocional. São
como crianças que ainda não puderam emergir de certos estágios, e isso
não é algo simples de ser colocado em palavras. A vida moderna, com toda
sua complexidade, facilita a esses indivíduos um acesso a escolas que mantêm a preocupação com o sucesso profissional, com a educação intelectual,
repetindo, muitas vezes, o que já ocorrera com os pais, delegando para um
plano secundário a valorização dos conteúdos afetivos em sua formação.
Sendo pessoas inteligentes e com elevado conhecimento intelectual,
usam-no apenas como fórmula de sucesso social. Elas procuram repetir
essas fórmulas com o analista e, sendo bem sucedidas, “encantam” o mesmo que, então, corre o risco de olhar apenas para a superfície do paciente.
Porém, se o analista, tal como Ulisses, não se deixa seduzir pelo “canto das
sereias” e conduz sua nau (o processo analítico) por um caminho que evita
os rochedos errantes e coloca-se em um equilíbrio sensato entre Escila e
Caribdes, pode compreender o funcionamento do paciente. Ao se verem
confrontados com uma atitude do analista diferente da que esperavam, esses pacientes, que até então aparentemente se mostravam estruturados, começam a padecer de muita confusão e sofrimento, pois não conseguem
resolver as questões da forma que “sabem”. Neles, é freqüente o distúrbio
de pensamento que Bion chamou de “alucinose”, para manter a dissociação
que esconde a deficiência emocional grave. Por vezes, essa situação pro352 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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duz “objetos bizarros” que afetam os sentidos e conduzem a todo tipo de
atividades perversas: drogas, bissexualidade, corrupção, com prejuízo das
pessoas que os cercam.
Como resultado, incrementam o acting out, pois eles se interessam
apenas pelos benefícios imediatos da análise, ignorando que os benefícios
reais da mesma são provenientes do conhecimento de seu funcionamento
mental e da sua realidade psíquica. Esse problema é mais complexo, pois,
como já assinalamos anteriormente, estamos lidando, aqui, com identificação projetiva excessiva, o que produz uma incapacidade crônica de pensar
e aprender com a experiência.
Diante desses actings, o analista pode reagir com um grande desapontamento ao se revelar a natureza do “encanto”. O tratamento corre o risco
de ser destruído pelos rochedos errantes ou por Escila e Caribdes, por assim dizer, quando o analista utiliza uma interpretação explicativa causal
determinista que, para o paciente, pode soar como critica persecutória à sua
deficiência, ou interpretações hermenêuticas que procuram dar sentido ao
aparente nonsense da dicotomia entre partes boas e más de sua personalidade.
Além disso, esse tipo de intervenção também pode desempenhar uma
função meramente especular, tornando-se apenas eco do paciente. O papel
especular tem, no máximo, uma função repetitiva e redundante, reforçando
as defesas narcísicas. Se, após o relato de um paciente, o analista apenas
colocar um ponto de interrogação em uma expressão do discurso, esse já
estará passando de um contexto narcisista para um contexto edípico. Édipo
pergunta curiosamente, querendo saber (Muniz de Resende, 1999).
Como uma alternativa, pensamos em sugerir a seguinte proposição,
decorrente do que nós experimentamos no contato com esses pacientes.
Freqüentemente, eles evocam no analista construções que estão muito próximas dos mitos, como se esses substituíssem na mente do paciente vazios
decorrentes de traumas primitivos. Será que a descrição, para o paciente,
de sua confusão mental, em termos onírico-poéticos, usando uma linguagem mítica, um mito pessoal, ou uma pergunta, não seria mais eficaz do
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
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que as interpretações de causa-efeito ou hermenêuticas ou, ainda, aquelas
quando o analista indica como eles devem agir, que é o que esses pacientes
sempre buscam?
Essa situação pode ser colocada da seguinte forma: a Psicanálise oferece a oportunidade para experiências que o sujeito nunca pôde ter antes.
Ou, em outras palavras: se o sujeito não percorreu a experiência pessoal
que vai do narcisismo da fase indiferenciada às relações de objeto, então
ele terá de fazê-lo no processo analítico. Essa concepção pode ser dita
como sendo platônica, pois lança mão de “experiências pré-concebidas”,
assim como as idéias pré-concebidas, vislumbradas na parede da caverna.
Essas experiências são como um bebê não nascido. Seu nascimento dá-se a
qualquer momento entre a parte insaturada, invariável da pré-concepção e
uma realização que a satisfaça. Isto é, o bebê nasce (sai da caverna) e encontra uma paisagem enevoada, que oferece experiências que vão do
narcisismo ao socialismo (Bion, 1962a) ou de Narciso a Édipo. Dentro
dessa paisagem, o bebê necessita encontrar a mente social para sobreviver.
A mente da mãe, primeira representante do social, é primordial, o bebê
necessita buscá-la antes do alimento, ou, em outras palavras, sem a mente
da mãe nem pode se alimentar.
Por outro lado, muitas vezes a função materna (continente) do analista
pode ficar perturbada pela urgência que o paciente tem de nascer. Bion
(1965) descreve isso com a expressão urge to exist, uma força que invade o
self, apresentando-se como amoral, implacável, maléfica, impiedosa,
devoradora, sem o menor respeito pelas regras e verdades humanas. Ou
seja, o rompimento com a cisão moral entre o bem e o mal. Podemos ver
isso como a base da organização narcisista que obstaculiza o desenvolvimento do processo analítico pela força invasiva que tem.
Segundo Chuster (1996), a experiência de encontro com a mãe é a
mesma do “Satã”, de John Milton, em Paradise Lost. Portanto, o bebê de
Bion é um bebê satânico que reage contra o efeito da luz inacessível aos
olhos dos mortais. Ele se rebela contra essa luz divina que o censura por
desejar conhecer o mundo, alça vôo e, com suas asas de Ícaro, cai num
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 355
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vazio infinito, sem forma. Na medida em que cai, não só descobre o mundo
que emerge de águas lôbregas e profundas, mas descobre a luz acessível
aos mortais, descobre o dia e a noite e descobre a alvorada: nesse ponto, ele
é Lúcifer, a luz da alvorada, a aurora da civilização. Mas o principal é que,
na medida em que cai, ele cai em si mesmo. Para esse autor, a experiência
da análise é uma queda em si mesmo. Satã é uma mistura de Prometeu e
Ícaro. Ele suscita o herói e o anti-herói, ele é Édipo em sua longa caminhada para descobrir a verdade sobre si mesmo e, por isso, é punido pelos que
estão do lado de Deus. “Mesmo assim, ele não recua e paga o preço para
conhecer o prazer da liberdade: é expulso do Éden. Nesse momento, ele se
sente invadido por dois sentimentos dolorosos que revelam a cortante
vulnerabilidade de seu ser separado de Deus: ele se sente absolutamente
só e dependente. A partir daí, sua consciência nova torna-se cada vez mais
plena de dúvidas e incertezas, mas essa escuridão é o princípio científico
e, é função mesma da vida – tudo se movimenta, tudo fica precário, nada é
dado, nada é estabelecido. Somente a morte é certeza, e a busca de certeza
é, metaforicamente, um desejo de morte. Satã denuncia os que aspiram a
morrer por medo de viver, pois a vida é queda, é percurso de muitos acidentes. Também a queda é paixão, e a paixão é aquilo que proporciona
significado à vida, tornando mais íntima as relações” (p.154-155).
Nesse modelo analítico, não existe nada para explicar. Há muito para
se descrever sobre a realidade psíquica. Essa descrição convida ao pensar
em comum e ocorre num clima onírico, que pode ajudar o paciente a se
sentir aceito e ajudado pela análise, por sentir que dispõe de um espaço
para progredir, o que diminui a inveja, os ataques e a culpa.
Existe um outro tipo de paciente que também pode ser incluído no rol
dos pacientes narcisistas de hoje, embora com uma característica diferente
do anterior, pois, com seu discurso monótono, costuma produzir sono no
analista.
Na maioria dos idiomas existem expressões ligadas à idéia de morte
tal como “estar se matando de tanto trabalhar”, “estar morto de cansaço”,
“estar morto de saudades” ou “morrendo de aflição”, etc. Mas existem pes-
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DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
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soas que fazem dessas expressões o eixo central de suas vidas, seu mito
privado e, portanto, a base de suas personalidades. Constituem um quadro
psíquico que poderia ser chamado de “morte lenta”. São pessoas que procuram a análise com uma série de queixas, algumas um tanto vagas, mas
que podem ser resumidas em fenômenos de “inadaptação” ao trabalho, dificuldades crônicas para estabelecerem relações afetivas e, sobretudo, por
apresentarem sentimentos de desorientação
Esse sintoma principal é revelado gradualmente, pois, geralmente, é
constituído de pensamento não verbalizado e atuações que causam estragos aos objetos próximos e que fazem parte da vida secreta que essas pessoas mantêm. Essa vida secreta esconde uma estrutura frágil, muitas vezes
perversa - sadomasoquista - que estabelece uma ótica primitiva de relacionamento: há uma constante rivalidade surda de superior para inferior, isto
é, o que importa é quem domina e quem é dominado.
Então, quando o analista não consegue evitar o estado de torpor introduzido pela identificação projetiva do paciente, ele não pode perceber que
esses pacientes falam como se estivessem sozinhos na sessão e provocam o
analista a fornecer-lhes interpretações de que eles são vítimas dos outros,
sem perceber que o motivo é outro, que estão solitários porque ninguém os
suporta. Ou, em outras palavras, porque não encontraram um “masoquista
competente” que pudesse sustentar por tanto tempo o seu sadismo.
Por se sentirem desorientados nas suas relações íntimas, esses pacientes recolhem-se a uma vida secreta de fantasias. Ao mesmo tempo, essa
vida é uma condenação à morte, que expressam através de sonhos, em que
estão sendo atacados por armas de fogo, ou, quando estão sozinhos, constantemente se imaginam sofrendo desastres, seguidos de cenas dramáticas
nas quais os parentes ou pessoas próximas ficam sofrendo muito por causa
deles.
É justamente essa solidão e a comunicação de que existem pessoas
sofrendo por causa dele que podem servir ao analista, para que ele vença o
torpor e abra uma porta de entrada para abordar o paciente. Em primeiro
lugar, explicando como o paciente se sente sozinho na sessão e que até
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4. Exemplos Clínicos
Como enfatizamos até aqui, lidar com o paciente narcisista muitas
vezes se torna um desafio para qualquer psicanalista, por mais experiência
que tenha. Muito se tem discutido e escrito sobre o assunto, e gostaríamos
de citar duas situações clínicas, para ilustrar essas dificuldades.
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pode gostar disso, porque, dessa forma, não precisa entrar em contato com
o analista. Em um momento posterior, o analista pode mostrar que essa
atitude esconde uma crueldade por submeter pessoas a assuntos
desinteressantes e que isto é uma forma de causar sofrimento no outro.
Dessa maneira, o paciente, através da identificação projetiva, inverte a posição de carrasco e vítima.
Em geral, essas pessoas respondem melhor a este tipo de abordagem
do que às interpretações dirigidas à sua inveja e à destruição de partes capazes do analista-mãe. Elas substituem suas queixas por relatos de sua história em que um genitor se mostrou cruel, e o outro, indiferente. Embora
refiram que se sentem mal com esse tipo de abordagem, logo percebem que
isto corresponde a um progresso, especialmente porque, até aquele momento, foram insensíveis ou cruéis aos outros, ainda que de forma inconsciente, ou porque disfarçavam sua crueldade pelas queixas de que se “matavam trabalhando”, ou porque incrementavam suas defesas quando eram
interpretadas a inveja e a destrutividade. Nesse caso, mais do que diminuir
as dores fundamentais do viver, nas quais se incluía dificuldades de sentir
prazer trabalhando, o fundamental é que eles possam diminuir a confusão
mental decorrente da cisão, da identificação projetiva e da incapacidade de
pensar.
Muito da evolução da análise desses pacientes depende da instalação
da função continente do analista no paciente, que é resultante da criação
das idéias no inconsciente no paciente e da capacidade do analista de perceber como o paciente narcisista vê o mundo, mais do que encontrar uma
saída rápida, através de uma interpretação correta para as angústias
confusionais do mesmo.
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Oscar tem 40 anos, é solteiro, e sua história se assemelha aos “pacientes de hoje”. Desde cedo, os pais estavam unicamente preocupados com o
seu desenvolvimento intelectual, tanto que, aos os oito anos de idade, foi
colocado em um internato europeu. Mais tarde, seus estudos continuaram
na principal escola de finanças dos Estados Unidos e culminaram com uma
fulminante carreira em Wall Street, quando, aos 30 anos, já possuía uma
fortuna avaliada em milhões de dólares. Quando estava no auge da carreira, envolveu-se com a mulher de seu chefe e que tinha sido o seu mentor na
universidade. O resultado foi o rompimento do casal e a impossibilidade de
Oscar seguir trabalhando nos Estados Unidos, porque também tivera atritos significativos com instituições às quais prestava consultoria e que estavam ligadas ao seu mentor. Ele deu pouca importância ao relacionamento
com essa mulher, pois, logo em seguida, envolveu-se com outra pessoa
comprometida, o que, aliás, era a repetição de outros relacionamentos que
também causaram sérios problemas a todos os envolvidos, o que o paciente
não conseguia perceber. A esta indiferença com as mulheres somavam-se
esporádicas relações homossexuais que terminavam em agressões físicas,
com sérios riscos à sua integridade, que o paciente também não conseguia
avaliar.
Por se considerar jovem, rico e não precisar mais “deles” (os americanos), decidiu retornar ao Brasil e aqui começou a trabalhar freneticamente,
conseguindo, em um breve período, alcançar uma posição de respeito no
meio político e empresarial, o que lhe possibilitou viajar por todo o mundo.
Foi por apresentar um grave problema de saúde que procurou tratamento,
primeiro, em Brasília e, depois, em São Paulo, quando fez análise durante
cinco anos.
Quando procurou análise em Porto Alegre, já havia superado o problema de saúde, e o motivo que alegava para o novo tratamento era o de
encontrar uma mulher e constituir uma família.
Desde o início, procurou impressionar o analista por seus feitos e capacidades. Passava a maior parte do tempo contando fatos que visavam a
demonstrar sua “genialidade”, a quantidade de dinheiro que possuía e ain358 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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da iria conseguir, com o visível interesse de atrair o analista para esse mundo “fantástico”, como ele mesmo denominou a vida que levava. Ao mesmo
tempo, viajava muito e trazia inúmeros presentes, que o analista aceitava
sem perceber que, lentamente, estava se deixando contaminar pelo “canto
de sereias” do paciente. Essa situação, que durou quase um ano, culminou
quando o paciente trouxe um presente que o analista “deveria colocar rapidamente no refrigerador”, pois, caso contrário, “estragaria”. Quase automaticamente, o analista dirigiu-se ao refrigerador e constatou que o presente não caberia ali e que, portanto, seria destruído.
Esta percepção possibilitou que o analista caísse em si, isto é, começasse a se dar conta de que a sua mente estava igual ao refrigerador, frio,
incapaz de pensar e abrigar o presente que representava o paciente, o analista e, o tratamento, que teria o mesmo destino do presente. E, finalmente,
que a análise, até aquele momento, havia se resumido a guardar em um
freezer afetos que deveriam permanecer congelados, pois o calor humano
mataria.
Foi essa a situação que o analista descreveu ao paciente. Este se mostrou aturdido, angustiado, passando a relatar medos hipocondríacos decorrentes da doença clínica anterior.
Surge aqui um mito pessoal, com o que é possível ter acesso a aspectos escondidos do paciente, o mito de Prometeu. Se ele descobrir quem ele
é, gostar de alguém, pensou o analista, descobrirá o calor humano, que o
levará incondicionalmente a ficar amarrado numa pedra (aprisionado e dependente), sofrendo do fígado, que é parasitado por um abutre. O analista
descreveu, então, para ele, o mito, convidando-o a localizá-lo dentro dele.
Aos poucos, foi entendendo a situação, embora, em um primeiro momento,
colocasse o conflito no corpo e depois, por identificação projetiva, em seus
objetos, especialmente na mãe, a quem considerava um “abutre
devorador”. Dizia que essa era uma pessoa implacável, cruel, que não perdoava qualquer deslize e que gostava de torturar com prazer qualquer erro
do marido ou dos filhos ou quando era desobedecida. O paciente, em função desta descrição, que coincide com o seu funcionamento mental, pôde
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DO
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se dar conta da identificação com a mãe e da maneira rechaçante que lida
com aquilo que mais necessita: calor humano. Dessa maneira, defende-se,
atacando, tal como a mãe faz com as pessoas. Descreveu, então, seus tratamentos anteriores. Em um, envolveu-se com uma paciente do terapeuta e,
no outro, fez um vultuoso negócio com a família do analista, que acabou
arruinada.
Esse foi um momento muito difícil da análise, porque o paciente passou a ficar confuso, dando início a uma sucessão de atuações, o que está na
linha do desequilíbrio da configuração edípica, em que o seu desejo era
penetrar analmente nas pessoas, transformar as pessoas em escravos ou
discípulos, transformá-las em um seio, ou ele ser um seio perigoso, espiálas, exibir-se para elas, matá-las, retalhá-las, enfim uma gama variada de
atrocidades e falta de ética. Todos esses elementos se constituíam em fatores de desequilíbrio da contratransferência, e a manutenção do setting dependia da história e da análise pessoal do analista.
5. Mas o que é, Afinal, que o Paciente Narcisista Evita?
Talvez o caso de Paulo possa nos auxiliar a entender. Trata-se de um
homem de 35 anos, que dedica tempo integral ao trabalho, seguindo os
passos do pai e do avô, também homens que conquistaram muito sucesso
na mesma área profissional. Tanto o pai como o avô, podemos dizer, fizeram grandes estragos nos seus relacionamentos afetivos. O próprio pai nasceu de uma relação “clandestina” do avô e foi considerado “bastardo” até a
sua adolescência, quando foi reconhecido como filho legítimo. É importante ressaltar que a linhagem materna desse avô é significativa, pois gerou
o nome conhecido profissionalmente e que, depois, passou para o pai de
Paulo. O nome ficou como uma marca registrada de sucesso. Esse pai, por
sua vez, casou-se e teve uma prole numerosa, da qual Paulo é o filho do
meio. Mesmo durante o casamento, o pai envolveu-se com outra mulher,
com a qual teve mais dois filhos. Hoje, esses filhos “bastardos” seguem a
mesma profissão do pai e lutam na justiça para terem o mesmo “nome que
abre portas”. Paulo, por outro lado, “por descuido do pai e por ter sido
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registrado pela mãe”, não levou o nome “mágico” da família, ficando com
o nome de sua mãe e o último de seu pai. De certa forma, sem esse nome,
sentia-se, também, um filho bastardo. No transcorrer de sua análise, conseguiu se aproximar do pai e, mesmo sem ter o nome prestigiado, é identificado profissionalmente como seu filho. No entanto, nunca quis usar esse
recurso, “fazendo um esforço para vencer sozinho”, o que conseguiu pelas
capacidades que tem. Atualmente, está avaliando se deveria utilizar o nome
do pai, até por sugestões de colegas, pois isso certamente lhe abriria algumas portas que são importantes na sua área de trabalho.
O que queremos dizer, na história de Paulo, é que existe uma tradição
de pai para filho, em que é extremamente valorizado o sucesso profissional
em detrimento das relações afetivas, geralmente desastrosas. Já estabeleceu relações com algumas mulheres, ficando clara a sua atitude de desprezo por elas. Ele próprio usa o termo “vampirizar” as relações, ou seja, extrai delas o que pode, mas sem dar nada em troca.
Depois de muito caminho andado em sua análise, um dia traz o grande
dilema de sua vida, provavelmente uma situação que resume o drama do
paciente narcisista: “não sei se devo renunciar ao prazer ou à dor”. Pela
primeira vez – nos seus 35 anos de existência –, parece estar se defrontando com o sofrimento ao perceber o “estrago” que fez nas suas relações
afetivas. Vem de uma separação recente da esposa, com quem teve seu
único filho, e uma conversa com ela desencadeou a reação reflexiva. Ela
lhe falou que sentia que havia nele uma atitude muito agressiva com as
mulheres. Além disso, a esposa envolveu-se com outro homem, e ele sente
que corre o risco de perdê-la, definitivamente.
Paulo vai percebendo o seu mundo interno através de vários personagens com quem se identifica. Apreciador das artes, tem conseguido se ver
em alguns filmes, como no de Woody Allen, já citado, e em Paris, Texas,
de Wim Wenders, em que surge mais intensamente o problema da identidade. Durante uma sessão, refere-se a um conto de um escritor apreciado por
ele, Luiz Vilela, intitulado “Abismos” (traz uma cópia para o analista, que
depois pôde lê-la). É a história de um casal de namorados que sai a passear
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até uma montanha, de onde se descortina uma vista maravilhosa da cidade
(“um lago de luzes no meio do vale”). A moça já conhece o lugar e está
querendo transmitir os seus sentimentos ao parceiro. O rapaz observa a
paisagem, mas desce o seu olhar para mais perto, vendo a sombra negra do
abismo: “uma escuridão sem fundo”. O rapaz resolve ir embora, obrigando
a namorada a ir atrás. Na conversa que se segue, ele confessa estranhos
sentimentos que teve: o impulso de matar a namorada, empurrando-a no
abismo, “fazer com que ela sumisse”. Na seqüência, revela que o impulso
tem a ver com o gostar da pessoa, que esse é um sentimento intolerável.
Diz ele: “Sentir que a vida da gente está muito presa à dessa pessoa, que
tudo o que a gente faça, tudo o que a gente pense, tudo o que a gente sinta,
terá essa pessoa... (...) então é aquela vontade de... de se livrar disso, acabar
com isso, mas acabar de uma maneira total, jogando essa pessoa no abismo, fazendo com que ela desapareça para sempre”. Para ele, o amor tem
relação com “a felicidade e o inferno de sentir sua vida profundamente e,
talvez para sempre, ligada à de alguém”.
O conto pode ser analisado como um mito pessoal, assim como uma
fantasia onírica, em que está envolvida a questão do abismo e, conseqüentemente, da violência com os objetos. Mas também, como foi trabalhado, o
abismo tornou-se uma fonte de conhecimento. Essa mudança de rumo na
análise leva Paulo a tentar algumas reparações internas e externas, à medida que consegue se aproximar da esposa, para se desculpar, e da própria
mãe, uma mulher geralmente vista com desprezo. Está podendo dar-se conta de que o abismo para ele sempre teve relação com o prazer (causar sofrimento no outro).
Podemos pensar no “abismo” com o significado de “Satã caindo em
si”, expulso do paraíso, percebendo o processo das relações. Pode ser o
momento em que Paulo tem a oportunidade de não mais atacar o conhecimento e começar a ter a percepção dele mesmo. Até chegar ao “abismo”,
era como se ele trabalhasse sozinho na sessão, sendo um paciente agradável, mas com um mito pessoal encoberto, de certa maneira paralisando o
trabalho analítico. Muitas vezes, isso ocorreu na contratransferência, quan362 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
6. Comentários Finais
Como vimos ao longo do trabalho, o paciente “bem sucedido”, com
traços narcisistas pronunciados, traz uma série de dificuldades para o tratamento analítico. Além dos aspectos, já citados, de “encantamento” e “estrago”, são pessoas que se protegem na sua atividade profissional, em geral
intensa, ainda que muitas vezes se queixem dela (“morto de cansaço”,
“morrer de tanto trabalhar”). Nesse sentido, o problema aparece na transferência, à medida que costumam ter atrasos e faltas, dificilmente conseguindo manter uma continuidade do processo analítico. Usam racionalizações
(viagem de negócio) que poderão ser aceitas pelo analista, se este não estiver atento às armadilhas. Na verdade, trata-se de um conluio para deixar de
fora o intenso sofrimento subjacente. O risco é de haver uma adaptação do
analista a essas situações, pois ele também pode não suportar tal sofrimenSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 363
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
do o analista se sentiu perdido, sem forças para ajudar uma pessoa tão bem
sucedida. O analista seria levado a uma “morte lenta”, se não visse tudo
isso.
Como conseqüência desse momento da análise, Paulo procura o pai,
encontrando um homem ressentido, que se diz “ter sido gerado em um
momento de luxúria dos seus pais e que não foi convidado”. Através do
pai, Paulo revela muito daquilo com que tem evitado se defrontar, ao longo
dos anos, a percepção do coito criativo dos pais, “um momento de luxúria
não aceito”. Ou seja, poder pensar em Édipo, ter o conhecimento das relações parentais, da verdade psicológica de ser gerado por um casal, independente da sua vontade (“não ter sido convidado”).
O fato de o paciente lutar para não aceitar o nome do pai aparece,
muitas vezes, na contratransferência, na medida em que o analista seguidamente esquece desse nome. Nesse sentido, o problema está estabelecido no
campo analítico e vinculado ao fato de aceitar a presença do pai e, portanto,
entrar no Édipo. Podemos pensar que a difícil trajetória de Narciso para
Édipo é possível, mas às custas de dor psíquica, o que ocorre em todo o
processo analítico.
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
PSICANALISTA
to e tentar se livrar do paciente, aceitando o afastamento emocional proposto.
Como já foi dito, o paciente narcisista traz, para o analista, um verdadeiro “canto de sereias”, ao narrar seus êxitos e conquistas, especialmente
com os negócios e com as mulheres. À medida que sempre deve escutar o
“canto”, sob o risco de não entrar em contato com o paciente, o analista
tem dois caminhos: pode escutar e se deixar seduzir por ele, ou, então,
adotar a postura de Ulisses, sendo amarrado ao mastro da nau (identidade
analítica), para não ceder às tentações das sereias. O problema é qual o
limite de cada analista, o quanto pode suportar sem se deixar levar pelo
canto sedutor?
Os mitos de Narciso e de Édipo mostram relação com a aquisição do
conhecimento psicológico, isto é, com uma experiência emocional que
pode ser traduzida como um constante rompimento com a “Mãe” (matriz
arcaica indiferenciada), para dar lugar a um predomínio dos vínculos. A
experiência emocional surge na ausência dos objetos isolados (objetos que
não se vinculam um com o outro). Quando um objeto isolado (a boca, o
seio, a Mãe) usurpa a significação do vínculo, abre-se caminho para a psicose narcísica. O trabalho mental que leva ao crescimento é, basicamente,
romper com a Mãe (Deus, no mito de Satã), fazê-la desaparecer como objeto isolado e possibilitar que reapareça como “mãe”, vinculada ao pai e à
criança. Essa triangulação é o que se pode chamar de espaço mental
(Britton, 1989). Portanto, nesse espaço mental, a criança pode manter relações diferenciadas com cada um dos pais, reconhecendo, ao mesmo tempo,
a existência dos pais como um casal do qual ela está fora.
Podemos dizer que todo o tratamento analítico terá de criar e transitar
por esse espaço psíquico, sob o risco de não evoluir adequadamente, pois o
par analisando-analista está sempre oscilando entre a verdade da
triangulação edípica e a negação narcísica da mesma.
De um lado, o analisando é, potencialmente, Édipo, na encruzilhada:
tomará o caminho em que deverá suportar o sofrimento da análise para
alcançar o conhecer-se e integrar em si mesmo, vítima e réu, ou o rumo de
364 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 365
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
Narciso, desaparecendo na regressão e prazer absoluto que confere a relação simbiótica com a mãe?
Do outro, também o analista está sempre às voltas com Narciso e
Édipo. Em seu trabalho solitário, tal como Ulisses conduz a sua nau superando os difíceis obstáculos, o analista preside o processo analítico defrontando-se com as inúmeras encruzilhadas decorrentes da constante oscilação entre a verdade e a ilusão.
O navegante segue, inevitavelmente, um caminho que é o desdobramento de um conflito entre a segurança da coisa já pensada (as teorias
sobre o narcisismo) e o investimento arriscado, incerto, vulnerável e de
paciência em criar pensamentos novos que possam entrar em contato com
a mente do paciente. Nos domínios desse conflito, evoca-se um pensar
constante no enigma da realidade psíquica, como guia de uma experiência
de libertação que se encontra nos limites da capacidade humana de suportar a existência da verdade. Ela atemoriza porque rompe com os esquemas
ou as fórmulas de sucesso que o analisando e analista empregaram, até
aquele momento, no desempenho de suas tarefas. Mas, ao mesmo tempo, a
novidade impulsiona porque abre a mente para outras possibilidades antes
não imaginadas. A abertura da mente acontece, ao nosso ver, quando o
analista percebe a impossibilidade de que a interpretação se mantenha atrelada aos textos. Assim, ela já não seria a busca de um sentido que é o
produto de suas causas, mas é a busca de um sentido que é criação de um
sujeito na relação com os outros e com o enigma da realidade psíquica.
Portanto, a função do analista é acentuar – através de interpretações
não atreladas ao texto –, até onde sua capacidade imaginativa permita, o
máximo possível de diferenças no encontro analítico e que tem como propósito ajudar o paciente a nascer, a se discriminar do analista e a se relacionar com ele como objetos individualizados (Caper, 1999).
Um dos obstáculos para o paciente narcisista aceitar as diferenças entre ele e o analista, entre ele e os pais vinculados, reside na dificuldade de
usar a compreensão para se modificar. Ao invés disso, busca, como salientamos anteriormente, o conhecimento obtido da análise, com a única fina-
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
PSICANALISTA
lidade de adquirir um saber que lhe sirva de guia ou de fórmula mágica
“para administrar ou resolver problemas”, como salientou um dos pacientes, repetindo condutas passadas. Essa conduta se opõe à criação de pensamentos novos capazes de auxiliá-los a compreender as comunicações do
analista como uma possibilidade de vir a se conhecer. Isso significa manter
o interesse voltado para o desconhecido, para as inseguranças da vida, para
as hesitações, para as subjetividades, para as meias-verdades e para a ousadia a fim de criar pensamentos novos e se transformar (Bion, 1965).
Podemos observar, nos casos relatados, que os pacientes evoluíram –
no sentido de buscar o conhecimento como fórmula de sucesso – para uma
condição de confiança – no sentido de dar um salto no “abismo” de seu
mundo interno.
Isso indica que as personalidades do analista e do analisando sobreviveram à perda de suas camadas protetoras de mentiras, subterfúgios, evasões e alucinações, sentindo que, de alguma forma, poderiam sair enriquecidos e fortalecidos destas perdas, na medida em que, como salientou Maldavsky (1996), “a cada momento, a dupla tinha a liberdade de se questionar onde estariam se equivocando”.
Para finalizar, gostaríamos de enfatizar que o encontro analítico deveria, sempre que possível e de maneira espontânea, almejar o trânsito nessas
águas turbulentas. Deveria propiciar um espaço maior de interpretação deste grande drama da vida – Édipo –, em que o paciente tem a possibilidade
de chegar a ser o que poderia ter realmente sido em seu processo de desenvolvimento. Se, em um dado momento, o paciente consegue falar das particularidades da situação triangular, ele adquire o que Bion (1970) denominou de Linguagem de Êxito (Language of Achievement). Trata-se de uma
linguagem em que os sentidos da palavra Achievement apontam para o que
está em jogo no movimento de sua realização: é algo que não apenas se
realiza com sucesso (narcisismo), mas, principalmente, por meio de habilidades, experiência, perseverança, esforço e dor. Portanto, a Linguagem de
Êxito é tanto um prelúdio para a ação quanto uma ação. Bion (1970) diz
que ela evolui de uma matriz de amor: “Deve-se procurar uma atividade
366 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sinopse
Neste trabalho, os autores procuram enfatizar algumas dificuldades que encontramos na análise de pacientes narcisistas ou naqueles com aspectos narcisistas pronunciados. Tendo em vista a complexidade do assunto, procuraram ater-se
a dois aspectos do paciente narcisista que, por sua atualidade e conseqüências,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 367
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
que seja tanto uma restauração de Deus (a Mãe), como a evolução de
Deus (o infinito, inefável, sem forma), que pode ser encontrado num estado em que não há memória, desejo e compreensão” (p.142).
A evolução, a partir da matriz do amor nos paciente narcisistas, também poderia ser alcançada através de uma atitude empática, que só é
alcançada nesse estado em que não há memória, desejo, compreensão e
pressa. Maldavsky (1998) assinala que “o surgimento do matiz afetivo,
como primeira qualificação, como base do desenvolvimento da consciência, recupera antigas sugestões referidas a que o sentimento deriva, não só
de uma combinação entre processos pulsionais, neuronais e instintivos
(programação filogenética), mas, também, de um nexo empático com os
interlocutores primordiais de um recém nascido. Sentir um sentimento implica sentir-se sentido. A possibilidade de dispor de uma atenção vivaz
dirigida para o mundo parece vincular-se com esse fundamento da vida
psíquica, que implica uma referência à empatia” (p.169). Dentro desta
perspectiva, não seria a empatia, antes da interpretação, o primeiro movimento do analista para ajudar o paciente narcisista a mudar o rumo do estrago que ele provoca em si mesmo e nos outros? Percebemos isso no personagem do filme de Woody Allen, quando, ao aceitar a ajuda do casal de
amigos (pais vinculados), ele toma consciência de seu despreparo para a
vida e começa a escrever um livro, recuperando sua capacidade criativa. A
possibilidade de recuperar os vínculos objetais perdidos propicia o nascimento de um novo sujeito, mais responsável no processo de construção
interminável de sua mente, antes encarcerada por relações narcisistas. No
fundo, o tratamento de Narciso se faz como uma constante experiência de
um “outro sentido”, no simbólico e de um “outro” afeto, no amor.
PROBLEMAS CLÍNICOS
UM DESAFIO
DO
AO
PACIENTE NARCISISTA:
PSICANALISTA
julgam fundamentais na atividade clínica: o “encantamento” e o “estrago” que
esses pacientes provocam, respectivamente, no analista e nas pessoas que convivem com eles. A partir de dois exemplos clínicos, tentam corroborar a importância do “encantamento” e do estrago” e como imaginam que os analistas possam
trabalhar com eles.
Summary
In this work, the authors try to emphasize some difficulties that we found in
the analysis of narcissistic patients or in those with aspects pronounced narcissistic.
Tends in view the complexity of the subject, they tried to detain to two aspects of
the narcissistic patient that, for his/her present time and consequences, they judge
fundamental in the clinical activity: the “enchantment” and the “damage” that
those patients provoke, respectively, in the analyst and in the people that live
together with them. Starting from two clinical examples, they try to corroborate
the importance of the “enchantment” and of the damage” and as they imagine that
the analysts can work with them.
Sinopsis
En este trabajo los autores buscan dar énfasis a dificultades encontradas en
el análisis de pacientes narcisistas o con marcados aspectos narcisistas. Teniendo
en cuenta la complejidad del asunto, subrayan dos aspectos, que por su actualidad
y sus consecuencias juzgan fundamentales en la actividad clínica: el
“encantamiento” y el “daño” que ese tipo de pacientes provoca en el analista y en
las personas del convivio, respectivamente. A partir de dos ejemplos clínicos,
intentan demonstrar la importancia del “encantamiento” y del “dano” y como
trabajar analiticamente con eso.
Palavras-chave
Psicanálise; Narcisismo; Destrutividade; Agressão; Complexo de Édipo;
Psicanálise Aplicada.
Key-words
Psychoanalysis; Narcissism; Destructivity; Aggression; Oedipus complex;
Applied Psychoanalysis.
368 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Psicoanálisis; Narcisismo; Destructividad; Agresión; Complejo de Édipo;
Psicoanálisis Aplicada.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 369
Gildo Katz e Ivan S. C. Fetter
Palabras-llave
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Artigo
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370 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
“A chama é a parte mais sutil do
fogo,
e se eleva em figura piramidal.
O fogo original e primordial,
a sexualidade,
levanta a chama vermelha do
erotismo
e esta, por sua vez,
sustenta outra chama,
azul e trêmula: a do amor”.
Octavio Paz, 1993.
Introdução
Gley P. Costa
Membro Titular em Função
Didática da SBPdePA
(Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre)
Amor: defrontar-se com este
pequeno vocábulo é como ter diante
dos olhos um caleidoscópio que, ao
menor movimento, modifica totalmente a configuração observada,
decorrência dos múltiplos significados da palavra e dos subsídios de
* Título de uma canção de Cole Porter.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 371
Gley P. Costa
Que É isto
Chamado
Amor?*
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
várias áreas do saber que ampliaram suas dimensões desde os mais antigos
escritos da humanidade.
Contudo, ultrapassa nossa capacidade e nossa pretensão levantar as
pedras do conhecimento universal para saber o que ele tem a nos ensinar a
respeito do amor ou mesmo percorrer o extenso campo das relações amorosas. Nosso objetivo é tão somente abordar este sentimento no restrito
campo da Psicanálise ou, mais especificamente, como se desenvolveu e
evoluiu a idéia do amor na obra de Freud.
O estudo desse desenvolvimento se revela bastante complexo, principalmente por não apresentar linearidade, o que obriga a quem se dedica a
esta tarefa a muitas idas e vindas, consistindo este processo de produção de
idéias numa das riquezas do trabalho de Freud. Como conseqüência, uma
concepção sobre o amor, após inúmeros rodeios, somente foi alcançada no
final de sua vida, mais precisamente em Esquema de Psicanálise, trabalho
inconcluso, escrito em meados de 1938. Considero que esta publicação
póstuma contém uma síntese das elaborações de Freud sobre os impulsos,
incluindo o amor.
Teogonia
Tendo como objetivo discorrer a respeito do amor, portanto, sobre a
força da vida, não poderia omitir o registro de Strachey, na Nota
Introdutória da referida obra, de que “ainda aos 82 anos, Freud nos mostra
que possuia um dom surpreendente para abordar de maneira renovada
temas que poderiam parecer já trilhados” (p.137), ao que poderíamos
acrescentar, mantendo a capacidade de reconhecer ter passado por “um longo tempo de vacilação e oscilação”, como diz no referido artigo (p.146),
até conseguir integrar as sucessivas abordagens sobre as pulsões, inicialmente, divididas em sexuais, representadas pela libido, e do ego ou de
autoconservação, e, posteriormente, divididas em pulsões de vida e de
morte (Freud, 1905,1910 e 1920).
No Esquema, Freud estabelece a existência de duas pulsões básicas:
Eros e pulsão de destruição. Esclarece que a meta da primeira é produzir
372 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
1. O Banquete, de Platão.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 373
Gley P. Costa
unidades cada vez maiores e, desta forma, conservá-las, desempenhando,
portanto, uma função de ligação. Exatamente o caráter atribuído a Eros em
um dos mais antigos escritos gregos sobre o amor, a Teogonia, de Hesíodo
(Século VIII a.C.). Ao contrário, a meta da pulsão de destruição é dissolver
nexos e, assim, destruir as coisas do mundo, possuindo como último objetivo fazer com que o vivo retorne ao estado inorgânico, razão pela qual,
também, pode ser chamada de pulsão de morte. Em Eros, não se observa
esta tendência de voltar a uma condição anterior, confirmando o mito de
Aristófanes1, segundo o qual o ser humano representa a metade partida do
todo, que busca no outro o resgate de sua unidade.
No interior de Eros, correspondendo à pulsão de vida, concentram-se
dois tipos de pulsões: de um lado, as pulsões de conservação, que reúnem
as pulsões de autoconservação e de conservação da espécie e, de outro
lado, as pulsões, antes denominadas sexuais, que, no Esquema, Freud chamou de amor, compreendendo o amor narcisista e o amor objetal.
Os dois grupos de pulsões – Eros e pulsão de morte – representam os
requerimentos impostos pelo corpo à vida anímica, sendo impossível identificar uma atividade mental que reproduza a ação de uma pulsão isolada.
Nas funções biológicas, os dois grupos se opõem e se combinam, como por
exemplo, o ato de comer, que corresponde a uma destruição do objeto com
a finalidade de incorporação, e o ato sexual, uma agressão com o propósito
da união mais íntima entre duas pessoas. Esta ação conjugada entre contrários produz toda a variedade de manifestações da vida, determinando comportamentos desajustados, quando existe um acentuado predomínio de um
em detrimento do outro. Desta forma, um incremento exagerado da agressão no ato sexual transforma o amante em um estuprador, enquanto um
rebaixamento acentuado do fator agressivo pode transformá-lo em um tímido e impotente.
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
Pulsões
Toda energia que se encontra à disposição de Eros, que devemos chamar de libido, provém do id-ego indiferenciado e serve para neutralizar as
tendências destrutivas do impulso de morte, simultaneamente presentes.
No interior do corpo, a ação de instinto de morte é silenciosa, revelando-se
quando se exterioriza sob forma de agressão. Esta exteriorização é necessária para a conservação da pessoa, na medida em que a retenção de quantidades exageradas de pulsão de morte determina a destruição do indivíduo, como ocorre quando sofre a admoestação de um superego muito exigente. De qualquer maneira, uma parte do impulso destrutivo sempre permanece no interior do corpo, acabando por matar o indivíduo, provavelmente, quando sua libido tenha se consumido ou se fixado de maneira desvantajosa. Sendo, assim, acentua Freud, o indivíduo morre por razões
internas, enquanto a espécie se extingue quando o mundo externo se modifica de tal forma que se tornam insuficientes as adaptações adquiridas por ela.
Outro aspecto da teoria das pulsões, abordado no Esquema, diz respeito ao comportamento da libido que, inicialmente, encontra-se, em sua totalidade, armazenada no ego, caracterizando um estado de narcisismo primário absoluto. Essa condição permanece até o momento em que o ego começa a investir com libido as representações de objeto, transformando libido
narcisista em libido objetal. Apesar disto, durante toda a vida, o ego segue
sendo o grande reservatório da libido, investindo e desinvestindo os objetos. Nos casos de enamoramento, ocorre a transferência de uma quantidade
de grandes proporções da libido para o objeto que, de certa forma, passa a
ocupar o lugar do ego. Um caráter de importância vital é a mobilidade da
libido, permitindo que ela passe de um objeto a outro, exatamente o contrário do que ocorre na fixação da libido em determinados objetos que, às
vezes, dura a vida inteira.
Freud conclui, nesse trabalho, sua doutrina das pulsões, afirmando
que “o melhor que sabemos sobre Eros, ou seja, sobre o seu expoente, a
libido, adquiriu-se através do estudo da função sexual” (p.149). Embora
não concordem com a idéia de que Eros e função sexual devam ser consi374 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Fontes de Prazer
Contudo, como destacamos, inicialmente, o Esquema consiste em
uma tentativa de Freud de realizar um resumo das idéias, que foi elaborando ao longo da vida. No que diz respeito, especificamente, à questão do
amor, penso que se possa estabelecer um divisor de águas em sua obra ou,
mais precisamente, um momento organizador deste complexo tema nas
Conferências de introdução à Psicanálise, de 1916-1917, em que se lê:
“Falamos em amor, de fato, quando trazemos ao primeiro plano o aspecto
anímico das aspirações sexuais e empurramos ao segundo plano, ou procuramos esquecer por algum momento, os requerimentos pulsionais de
caráter corporal ou ‘sensual’ que se encontram na base” (p.300). Esta
idéia de Freud sobre a existência de dois planos de compreensão do amor,
remete-nos para os trabalhos: Pulsões e destinos de pulsão, de 1915, no
qual define o amor como a relação do ego com suas fontes de prazer e Além
do princípio do prazer, de 1920, em que desenvolve sua teoria da fonte
pulsional, na qual o corpo é concebido como fonte das pulsões. Esses dois
trabalhos embasam a compreensão do amor nas relações estabelecidas na
intimidade do corpo e nas relações de um indivíduo com outro indivíduo,
correspondendo à passagem do prazer voluptuoso (exclusivamente físico)
ao prazer erótico da vida anímica. Devemos lembrar, neste momento, a
diferença que Freud estabelece, em 1920, entre objetos inertes ou
inorgânicos, objetos animados ou com vida orgânica e objetos com vida
psíquica, um advindo do outro.
Tendo em vista ir mais adiante com este estudo sobre o amor, no
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 375
Gley P. Costa
derados sobreponíveis, destacou que “a pulsão sexual é a encarnação da
vontade de viver” (Freud,1920, p.49).
Sem dúvida, o Esquema representa uma demonstração admirável do
amor de Freud à Psicanálise, principalmente, se considerarmos, além de
sua idade, o estado de grande sofrimento em que se encontrava, tanto pela
ação do nazismo, obrigando-o a deixar sua Viena, quanto por sua doença,
obrigando-o a submeter-se a sucessivas cirurgias, sem sucesso.
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
surgimento da vida psíquica, penso que devemos retomar a oposição que
Freud estabelece no Esquema, entre amor narcisista e amor objetal, assunto desenvolvido, principalmente, em Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, de 1914, e nos dois trabalhos antes citados: Pulsões e destinos de
pulsão, de 1915, e Conferências de introdução à psicanálise, de 19161917, aos quais vou me cingir.
As fontes de prazer do ego podem estar nele mesmo ou no objeto. No
começo da vida anímica, o ego se encontra investido pelas pulsões e procura satisfazê-las nele mesmo mediante uma atividade denominada de autoerótica. Esta etapa é conhecida como narcisista, uma forma de relação amorosa que se caracteriza pelo amor ao próprio ego. Contrariamente, quando
o indivíduo reconhece o amor ao objeto como sendo a fonte principal de
prazer do ego, a libido, que busca satisfazer-se nesse vínculo, é chamada de
objetal. A relação com o objeto, que na fase auto-erótica é indiferente ao
ego, nasce das vivências derivadas das pulsões de autoconservação. O
amor objetal representa a forma de amor mais elevada, o amor por excelência, acompanhando pari passu o desenvolvimento do ego de maneira muito complexa.
Tão logo o amor objetal supere o amor narcisista, as sensações de
prazer e desprazer passam a significar a relação do ego com o objeto. Quando o objeto constitui uma fonte de sensações prazerosas, o ego procura
aproximá-lo e incorporá-lo. Nesta condição, consideramos que o objeto
exerce sobre nós uma atração, e declaramos que o amamos. Contrariamente, quando o objeto se transforma em uma fonte de sensações
desprazerosas, a tendência é se afastar dele, repetindo o modelo primitivo
da substância viva de fuga dos estímulos desmesurados do mundo exterior.
Neste caso, o sentimento experimentado é de repulsão, por parte do objeto,
e manifestamo-nos dizendo que o odiamos. Este ódio pode se intensificar,
transformando-se em inclinação a agredir o objeto no intuito de destruí-lo.
Neste ponto, Freud (1915) faz uma distinção bastante marcada em relação
às origens do amor e do ódio, vinculando o primeiro, estritamente, à satisfação da pulsão sexual, e o segundo, tanto às necessidades não satisfeitas
376 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Surgimento do Desejo
Ao abordar esse fascinante assunto, não podemos ignorar a questão do
desejo, principalmente, do desejo sexual. Embora tenha se referido ao desejo, inúmeras vezes, ao longo de sua obra, Freud não chegou a desenvolver uma teoria sobre este tema, como o fez a respeito da libido e das
pulsões, com as quais, muitas vezes, se confunde. Embora bastante relacionado com a libido, o seu aparecimento segue outro caminho, fundando a
vida psíquica e tornando-se o seu motor. A seqüência é, mais ou menos, a
seguinte: em um primeiro momento, existe apenas descarga pulsional, caracterizando o prazer voluptuoso, depois, a sensualidade se enlaça com o
mundo sensorial, estabelecendo as marcas mnêmicas, de tal modo que,
quando surge novamente a tensão na fonte pulsional, ela já se encontra
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 377
Gley P. Costa
desta pulsão, quanto às do ego. Por esta razão, além de uma evolução diferente, o ódio é mais antigo do que o amor, tendo em vista que, no primeiro
momento, a pulsão sexual se satisfaz auto-eroticamente, sendo, todavia,
indiferente ao objeto, enquanto a pulsão do ego necessita do objeto, desde
o início, para obter satisfação. Quando as pulsões do ego governam a função sexual, elas transferem a esta meta pulsional o ódio que mantêm aderido, como ocorre na etapa sádico-anal.
Apesar dos objetos serem os mesmos, a relação que o ego estabelece
com eles, a partir do impulso de auto-conservação e do impulso sexual, não
coincide, pois, no primeiro caso, ao contrário do segundo, o amor não é
enfatizado, mas a necessidade. Desta forma, como destaca Freud (1915),
“a palavra ‘amar’ se vincula predominantemente à esfera do puro vínculo
de prazer do ego com o objeto, fixando-se definitivamente nos objetos sexuais, no sentido estrito, e naqueles objetos que satisfazem as necessidades das pulsões sexuais sublimadas” (p.132). Nos casos em que ocorre
uma interrupção de uma relação de amor, o ódio, que por motivos reais
passa a ocupar o seu lugar, pode ser reforçado pela regressão do amar à
etapa sádica prévia, o que concede ao odiar um caráter erótico, garantindose, desta maneira, a continuidade do vínculo amoroso.
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
conectada à marca mnêmica. A partir desse momento, a criança não ambicionará repetir apenas o prazer antes experimentado, mas, também, as cenas que o propiciaram, marcando o surgimento do desejo. Inicialmente, as
marcas mnêmicas são inconscientes (representação coisa), depois, tornamse pré-conscientes (representação palavra). A fantasia, para Freud, resulta
da união destas duas representações.
Édipo
Acompanhando o desenvolvimento do ego, observamos que, nos primeiros meses de vida, portanto durante a etapa oral, o amor é ambivalente,
não se distinguindo totalmente do ódio. Da mesma forma, não se distingue
o ser e o ter o objeto, razão pela qual a identificação representa a primeira
forma de laço afetivo. O modelo analógico é o do canibalismo, em que a
relação amorosa com o objeto implica incorporá-lo e transformá-lo em parte do próprio ser. É uma forma de amor que, implicitamente, acarreta a
destruição do objeto como tal. Durante a etapa do erotismo anal, caracterizada pela tendência de apoderar-se do objeto, observamos que a
ambivalência, embora mais evidente, é menor do que na etapa oral, assim
como a indistinção das categorias ser o objeto e ter o objeto. Quando ocorre a integração das pulsões sexuais parciais, na etapa genital do desenvolvimento, o amor sucede ao ódio, coincidindo com a aspiração sexual total.
Este passo desenvolvimental engendra o complexo de Édipo, como o concebeu Freud, uma etapa em que a criança transforma um dos progenitores
em seu primeiro objeto de amor, concentrando nele todas as pulsões sexuais que anseiam por satisfação. Mais tarde, como resultado da repressão,
a maioria das metas sexuais infantis é renunciada, deixando como seqüela
uma profunda modificação das relações com os pais. O vínculo que permanece com eles representa, nas palavras de Freud (1915), um amor de “meta
inibida” (p.118), determinando o surgimento da ternura nos relacionamentos.
Contudo, o amor que busca plena satisfação das pulsões é exclusivista
e anti-social. Uma dupla, unida pelo amor, exige intimidade, não deseja
378 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Escolhas Amorosas
Agora, é oportuno fazer um comentário sobre as escolhas amorosas,
tomando como referência, principalmente, o que Freud estabeleceu no trabalho Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, de 1914, no qual faz a interessante afirmativa de que o ser humano “tem dois objetos sexuais originários: ele mesmo e a mulher que o criou” (p.85), acrescentando que, mais
tarde, esses dois relacionamentos servem de modelo para as eleições de
objeto.
Conforme foi enfatizado, inicialmente, a satisfação das pulsões sexuais se apoiam nas funções vitais que servem à autoconservação e só mais
tarde se independizam. Conseqüentemente, os primeiros objetos sexuais
da criança são as pessoas encarregadas de alimentá-la e protegê-la, geralmente, a mãe e substitutos. Esse vínculo com esses objetos configura o
relacionamento do tipo apoio ou anaclítico. No entanto, nem todos os indivíduos fazem suas escolhas amorosas conforme o modelo da mãe, mas
elegem a si mesmos como objeto de amor, caracterizando o tipo narcisista
de eleição de objeto. No início da vida, todos passam por essa forma de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 379
Gley P. Costa
compartilhar essa experiência com mais ninguém. No entanto, essa forma
de amor tende a se extinguir com a satisfação, persistindo às custas de uma
parcela considerável de ternura. Ao contrário, o amor de meta inibida permite que as ligações entre os indivíduos sejam mais duradouras. Ela se
encontra na base da amizade e, também, da sublimação, consistindo no
fator primordial do desenvolvimento da cultura. No entanto, em 1920,
Freud referiu que essa inibição libera quantidades de impulso de morte,
dominado pela mescla das pulsões sexuais, que ocorre quando suas metas
são atingidas. Essa situação estabelece um paradoxo que consiste no seguinte: a libido dessexualizada ou inibida em sua meta propicia, por um
lado, a ternura e a estabilidade nas relações humanas, além do desenvolvimento da cultura, mas, por outro, libera um excedente de pulsão de morte
que age contra o indivíduo, os relacionamentos e a própria cultura pelos
seus representantes externos: a agressão, a apropriação e a destruição.
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
amar que Freud denominou de narcisismo primário, uma expressão de
Eros que sustenta, na vida adulta, o sentimento que chamamos de amor
próprio.
O tipo apoio, que podemos considerar como característico do amor
objetal, admite duas possibilidades: o objeto eleito pode ser a mulher nutriz
ou o homem protetor, enquanto o tipo narcisista apresenta quatro alternativas: o objeto corresponde ao que o indivíduo é, ao que ele foi, ao que ele
gostaria de ter sido e, por último, à pessoa que foi parte dele mesmo. E,
neste momento, sentimo-nos obrigados a expor uma posição de Freud que
nos parece duvidosa. Diz ele que o pleno amor objetal pertence, caracteristicamente, ao homem, enquanto o amor narcisista é mais genuíno nas mulheres, sendo esta diferença fundamental entre os sexos, embora não regular. De acordo com esta idéia, a superestimação sexual, observada no homem, provém do narcisismo originário do menino, correspondendo à transferência deste narcisismo sobre o objeto sexual. O enamoramento tem sua
origem na superestimação sexual masculina, representando elevado investimento libidinal do objeto em detrimento do ego que se empobrece nesse
processo. Nas mulheres, o desenvolvimento dos órgãos genitais durante a
puberdade determina um recrudescimento do narcisismo originário desfavorável à constituição de um objeto de amor superestimado. Algumas mulheres, especialmente se bonitas, somente amam a elas mesmas, com uma
intensidade que se equipara ao amor que um homem pode lhes dedicar.
Elas não necessitam amar, mas apenas serem amadas, e ligam-se ao homem que se dispuser a atender este anseio. Geralmente, não encontram
dificuldade nesse intento, tendo em vista que o narcisismo costuma despertar grande atração, principalmente nos indivíduos destituídos de amor próprio. Esta característica do narcisismo é observável no fascínio que as
crianças despertam nos adultos com sua inacessibilidade e complacência
consigo próprias.
Uma forma especial de amor objetal se encontra na raiz do ideal do
ego, que corresponde a uma projeção à frente do narcisismo perdido da
infância, durante a qual o indivíduo era o seu próprio ideal. O ideal do ego,
380 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Conclusão
Desde o início, sabíamos que nos encontrávamos diante de um tema
difícil de começar e, não menos, de terminar. Contudo, na medida em que
fomos pesquisando o assunto e procurando estabelecer relações entre diversos aspectos da teoria, percebemos que, na verdade, o amor é um assunto interminável, o que representa sua maior riqueza. Assim, neste ponto,
concluímos nossa exposição, conscientes de ter passado ao largo de outros
recônditos do amor que a obra de Freud oferece aos que a ela se dedicam
com humildade e interesse. Ainda que Freud não tenha dito tudo sobre o
amor, ele, pelo menos, conseguiu captar a complexidade da alma humana,
como evidencia sua conclusão de que “um forte egoísmo preserva a pessoa
de enfermar-se, mas no final ela precisa começar a amar para não cair
enferma, e forçosamente enfermará se, como conseqüência de uma frustração, não puder amar” (Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, p.82).
Por último, considerando a incompletude desta exposição, representando nossas dificuldades de apreender, em sua plenitude, a riqueza do
tema, resta-nos a tentativa de uma saída honrosa, a mesma que Freud utilizou para concluir Além do princípio do prazer, citando os versos do poeta
árabe Abu Harari:
“O que não se pode obter voando
há que se alcançar coxeando.
.............
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 381
Gley P. Costa
assim concebido, apresenta um caráter evolutivo. Essa formação de ideal
difere tanto da sublimação quanto da idealização. A sublimação consiste
na dessexualização da meta pulsional que, dessa forma, torna-se aceitável
pela cultura e pelo seu representante interno, o superego. Como foi referido
antes, representa uma forma de amor de meta inibida, portanto, um processo que se opera na área da pulsão. Diferentemente, a idealização não altera
a pulsão, mas o objeto que é engrandecido e realçado, sendo possível tanto
no campo do amor objetal quanto do narcisista.
QUE É
ISTO
CHAMADO AMOR?
A Escritura diz: coxear não é pecado”.
Sinopse
Trata-se de uma conferência apresentada na VI Jornada de Psicanálise do
Triângulo Mineiro, em 1996, que teve como tema Eros e Psiquê. O autor restringe sua abordagem ao campo da Psicanálise, mais especificamente, como se desenvolveu e evoluiu a idéia de amor na obra de Freud.
Summary
This paper is concerned with a conference presented during the VI Jornada
de Psicanálise do Triângulo Mineiro (VI Journey of Psychoanalysis of the Triângulo Mineiro), in 1996, wich had Eros and Psyche as its subject. The author
restrains his approach to the field of Psychoanalysis, more specifically, about the
way the idea of love was developed on Freud´s work.
Sinopsis
Conferencia presentada en la VI Jornada de Psicoanalisis del Triângulo Mineiro, en 1996, cuyo tema fue Eros y Psiche. El autor limita su abordaje al campo
del Psicoanalisis, más especificamente como evolucionó y desarrolló la idea de
amor en el trabajo de Freud.
Palavras-chave
Eros; Pulsão; Prazer; Objeto; Desejo; Relação narcisista de objeto; Complexo de Édipo.
Key-words
Eros; Instinct; Pleasure; Object; Wish; Narcissist relationship; Oedipus
Complex.
Palabras-llave
Eros; Pulsión; Placer; Objeto; Deseo; Relaciones narcisistas de objeto;
Complejo de Edipo.
382 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Gley P. Costa
Bibliografia
FREUD, S. (1905). Tres ensayos de teoria sexual. Obras completas, V. VII. Buenos Aires, Amorrortu, 1987.
______. (1910). La perturbación psicógena de la vision según el psicoanálisis.
Obras completas, V. XI. Buenos Aires: Amorrortu, 1988.
______. (1914). Introducción del narcisismo. Obras completas, V. XIV. Buenos
Aires: Amorrortu, 1989.
______. (1915). Pulsiones y destinos de pulsión. Obras completas, V. XIV. Buenos Aires: Amorrortu, 1989.
______. (1916-17). Conferencias de introducción al psicoanálisis, parte III. Obras
completas, V. XVI. Buenos Aires: Amorrrortu, 1989.
______. (1920). Más allá del principio de placer. Obras completas, V. XVIII.
Buenos Aires: Amorrortu, 1989.
______. (1940 [1938]). Esquema del psicoanálisis. Obras completas, V. XXIII.
Buenos Aires: Amorrortu, 1986.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Gley P. Costa
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 383
Juliet Mitchell
Quando pensei pela primeira
vez neste título, eu o apresentei
como uma pergunta geral, para todos. Meus amigos, colegas e conhecidos foram incapazes de respondêla e isso deixou-os tão desconcertados que decidi ir direto ao assunto,
respondendo: sim, Édipo tinha uma
irmã, aliás ele tinha duas irmãs:
Ismênia e Antígona, suas filhas.
Também tinha dois irmãos, seus filhos. Apesar disso, apenas uma vez,
na peça “Édipo Rei”, de Sófocles,
foi feita uma referência à dimensão,
entre os irmãos, do caos introduzido pelo crime de Édipo:
Membro Titular da Sociedade
Britânica de Psicanálise – IPA.
Professora de Psicanálise e Estudos
do Gênero – Universidade de
Cambridge – Inglaterra.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 385
(Antígona e Ismenia entram na
sala onde Édipo se encontra,
cegado por si mesmo)
Juliet Mitchell
Teria Édipo
uma Irmã?
(“A Lei da
Mãe”)
TERIA ÉDIPO
UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
“Onde estão vocês, crianças?
Venham, sintam as mãos de seu irmão.
Foi o trabalho delas que escureceu estes olhos claros
Os olhos de seu pai
Como uma vez vocês conheceram
Apesar dele nunca ter visto ou conhecido
O que ele fez quando se tornou seu pai”1
Pelo que sabemos, somente os filhos de Édipo são seus irmãos ou
meio-irmãos. Eles dividem a mesma mãe, mas não o mesmo pai. O crime
de Édipo, o de se relacionar sexualmente com sua mãe, confunde gerações,
mas na peça, assim como no seu desdobramento como o “Complexo de
Édipo”, que é o paradigma central da Psicanálise, o eixo relacional do filho
para com a mãe ofusca, quando não destrói, a dimensão lateral: Édipo e
seus filhos são irmãos e irmãs2. Eu gostaria de utilizar isso como uma metáfora para algo que entendo como uma supressão do significado da
lateralidade, desde uma compreensão psicanalítica da vida psíquica entre
irmãos e seus sucessores, companheiros e afins.
Apercebi-me desse ofuscamento da relação entre irmãos, ao longo de
muitos anos de estudo sobre a histeria, quadro que prevaleceu na minha
prática clínica, mas que se encontra ausente no diagnóstico atual e na literatura teórica. A Psicanálise foi fundada a partir do entendimento da histeria, mas ainda assim, Anna Freud foi capaz de dizer, mais ao final de sua
vida, que não a compreendíamos, e esta observação me parece correta. Da
maneira pela qual a histeria foi definida, ela é vista como uma representação corporal de desejos edípicos incestuosos ilícitos que foram inadequadamente reprimidos.
A referência que faço, aqui, à histeria serve apenas como um recurso
para me aprofundar em algumas propostas sobre o significado dos irmãos.
1. Sophocles, Oedipus Rex. Penguin p.66-67.
2. Talvez o fato de que a peça seguinte focaliza a guerra pela mãe entre irmãos/filhos de Édipo,
pode ser lido como uma mensagem encoberta de que o distúrbio entre irmãos ocorreu.
386 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
3. Ver Colonna, A. E Newman, L. (1983), ‘The Psychoanalytic Literature on Siblings’ in The
Psychoanalytic Study of the Child, vol 38, London.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 387
Juliet Mitchell
O mais recente relatório da NSPCC (National Society for the Prevention of
Cruelty to Children), que ressalta a prevalência de abuso entre irmãos, sugere que não foi somente a Psicanálise que desconsiderou o significado
dessa relação.
Seguirei uma linha básica de pensamento psicanalítico que inclui uma
convicção num tipo particular de teoria clínica em que existem processos
inconscientes, e estes são significativos, organizados e expressados de
maneira diferente dos processos conscientes. Esta postulação da Psicanálise tem sido, é claro, utilizada por outras disciplinas e, por isso, mostra-se
amplamente difundida na cultura em geral, tanto em oposição como em
apoio a ela. Gostaria de argumentar que os irmãos, aos quais irei me referir
como relações laterais, têm importância, tanto no âmbito social, quanto na
construção dos processos inconscientes, através de proibições quanto ao
homicídio e ao incesto entre si.
A importância dos irmãos foi observada, de certa forma, pela Psicologia do Desenvolvimento (na Inglaterra, particularmente, por Judy Dunn e
suas colegas) e por terapeutas que trabalham com terapia de grupo. Mesmo
em Psicanálise, eles são alvo de investigação de tempos em tempos3. O
meu ponto de vista é diferente dessas valiosas, porém esporádicas e dissociadas observações. Elas incluem os irmãos em uma categoria mais geral
no “Complexo de Édipo”, enquanto eu acredito que, apesar dos eixos verticais e laterais serem sempre interativos, cada dimensão tem uma autonomia relativa. A violência e o incesto entre irmãos não são iguais aos que se
dirigem aos pais. A proibição em relação aos irmãos é mais branda do que
o sexo e o homicídio intergeracional. Mais adiante, apresentarei uma razão
possível para esse enfraquecimento no tabu mas, de qualquer maneira, a
proibição existe. Na maioria das culturas, algumas proibições-chave são
internalizadas e desejos são reprimidos, a ponto de tornarem-se inconscientes. Se, como eu sustento, vertical e lateral não são a mesma coisa,
então esses diferentes desejos – ativos ou reprimidos – vão manifestar-se
TERIA ÉDIPO
UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
de formas diversas.
Na teoria psicanalítica, resumidamente falando, um desejo sexual surge contra a proibição e, consequentemente, é reprimido. A repressão falha
em um certo grau e o desejo ilícito retorna, inicialmente, numa forma
irreconhecível. Não pode ser expressado diretamente, sendo ocultado no
sintoma neurótico: os sonhos, as psicopatologias da vida cotidiana, o poder
dos chistes são as várias manifestações de algo que se tornou inconsciente
através da repressão, mas que, em parte, escapou da inconsciência. É a
teoria que enfatiza a importância do desejo sexual infantil e que coloca a
infância no contexto de tabus culturais e processos de aprendizagem. Como
um animal humano se torna um ser humano?
A ênfase que dou à relação entre irmãos e seus equivalentes propõe
uma adição. O desalojamento provocado entre irmãos evoca um desejo de
matar ou ser morto. Mas isso encontra uma proibição: você não deve matar
seu irmão Abel; ao contrário, você deve amar seu irmão como você ama a
si mesmo. A relação entre irmãos põe em cena a questão do igual e do
diferente, o eu e o outro. A proibição do homicídio e, principalmente, a do
suicídio, significa que o desejo também deve ser, de certa forma, reprimido
e tornado inconsciente.
Aqui, assim como na sexualidade infantil, também existe uma rota
alternativa, a sublimação – o uso da pulsão para vias culturalmente aceitas.
A falha na repressão ou na sublimação, em analogia à falha da repressão ou
da sublimação na sexualidade infantil, pode ser representada no que aqui
vou chamar de violência-perversão (como uma perversão sexual), ou pode
ser sublimada em movimentos de competição e rivalidade4.
Dentro desta linha de trabalho mais geral, ofereço duas hipóteses específicas. A primeira é de que o desejo de matar o irmão precede, psiquicamente, o amor e/ou a sexualidade dirigida a esse irmão. A segunda hipótese é de que o amor sexual entre irmãos difere, de uma maneira significati4. Freud, ao final da I Guerra Mundial, formulou uma hipótese sobre a pulsão de morte, argumentando que não poderia haver uma representação de morte no inconsciente. Acredito que essa
representação existe, mas não a percebemos porque suprimimos a importância dos irmãos.
388 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
5. Julia Kristeva explica esse ódio como algo sui-generis que emerge da situação do nascimento
em si. Usa o conceito de “abjection” (estado de inferioridade, desvalimento) para descrever a
resposta da mãe. O ódio não tem história psíquica. O mesmo ocorre em relação aos estados psíquicos que advêm pela primeira vez com a maternidade – i.é., a idéia de que não existe uma história
infantil sobre o estado da maternidade (esse tema aparece, também, no trabalho de Mary Kelly no
Post Partum Document). Essa consideração de Kristeva, assim como a explicação dada por
Winnicott, colocam uma questão: de onde, na infância materna, surge o ódio? Sugiro que o bebê
odiado é uma duplicação do irmão/irmã que a mãe odiou na infância.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 389
Juliet Mitchell
va, do amor parental/edípico.
A primeira hipótese não é baseada numa simples questão cronológica.
Ela explica numerosas observações e nos dá uma dimensão diferente da
teoria psicanalítica. Freud pontuou que “os histéricos amam onde odeiam”.
Existe uma histeria latente ou em potencial dentro de todos nós e a primazia do ódio entre os irmãos pode nos ajudar a explicar a violência sexual.
O grande pediatra e psicanalista Donald Winnicott, na sua argumentação a respeito da noção proposta por Melanie Klein sobre a inveja e a
destrutividade inata, significando aí o ataque do bebê à mãe, enfatiza, através de seu trabalho, que ele tinha conhecimento de que “o ódio da mãe para
com o bebê é anterior ao ódio do bebê para com a mãe” – mas ele não se
perguntava de onde vinha o ódio da mãe, e se ela própria teria odiado enquanto bebê. Porém, Winnicott fez, também de uma maneira casual, uma
colocação na qual ele deixou de relacionar a sua convicção sobre o ódio
sentido pela mãe – ou seja, que os irmãos e as irmãs poderiam amar uns aos
outros desde que eles primeiro tivessem acesso ao ódio sentido uns pelos
outros5.
A ambivalência é uma condição das relações humanas. Mas até mesmo o pensar sobre a ambivalência envolve uma divisão dualista: amor e
ódio. Viver na indefinição da ambivalência é impossível. No trabalho clínico, podemos observar momentos-relâmpago dessa condição. A criança
pequena ama, até mesmo adora o irmão que já existe e a perspectiva do
irmão que está por vir. Eu vejo isso como um estado afetivo que vai se
ocupar do amor que, espera-se, virá. No entanto, é o ódio que faz o que nós
podemos chamar de ‘primeira marca psíquica’ – é o extermínio em poten-
TERIA ÉDIPO
UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
cial de um pelo outro que precisa ser psiquicamente manejado6.
Teoricamente, a observação de que o impulso homicida entre irmãos
seja psiquicamente crucial e precedente ao amor nos dá, eu acredito, uma
nova ênfase, talvez uma compreensão diferente para a controvertida hipótese sobre a “pulsão de morte” que Freud postula a partir da observação
psicanalítica e psiquiátrica da I Guerra Mundial. Eu irei explorar este assunto daqui a pouco.
Minha segunda sugestão é de que o amor sexual entre irmãos é diferente do amor edípico ou parental em uma característica significativa. Todas as crianças querem fazer bebês; todas as crianças tem sentimentos sexuais. É com relação aos pais – “Complexo de Édipo”, Édipo e sua mãe
Jocasta – que o desejo de reproduzir, as fantasias de dar a luz e a pulsão
sexual aparecem juntos. Em relação aos irmãos, existem sentimentos sexuais mas não, eu penso, um impulso reprodutivo. Duas características diversas na histeria ilustram essa diferença. O nascimento histérico, gravidez
fantasmática, o socialmente aceito “couvade”, são, eu tenho sugerido,
exemplos de fantasias de nascimentos partenogênicos – o histérico, assim
como a criança, acredita que pode fazer bebês sozinho. Quando o pai do
Pequeno Hans, a primeira criança da Psicanálise, perguntou onde ele iria
conseguir os bebês que ele insistia em dizer que iria produzir, ele respondeu: “de mim mesmo, é claro”. Eu relaciono isso a uma falha na repressão
edípica, e não, como geralmente se argumenta, a algo ligado ao temor de
castração pelo pai (se insiste em “ter”a mãe). Relaciono isso ao que chamo
de “Lei da Mãe”, que proíbe a criança de “ser” a mãe.
Porém, existe uma outra característica da histeria, igualmente importante, a inexistência de filhos, seja esta real ou psicológica. O histérico é
um Don Juan – aquele Don Juan cujo pai é inimaginável7; se por acaso uma
6. Como frequentemente ocorre, só enquanto escrevia, me dei conta de que isso só reafirma a
idéia de Freud de que “o ódio é mais antigo que o amor”.
7. Como exemplo, vejam-se Eisler (1922), “A Man’s Unconcious Phantasy of Pregnancy in the
Guise of Traumatic Neurosis”, in IJPA, vol.XX, and Brenman, E. (1965), “Histeria”, IJPA,
vol.XX. Eu perguntei, ao Dr.Brenman, se era relevante que seu paciente casado não tivesse filhos
e ele confirmou que isso era extremamente relevante.
390 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
8. Roy, A. (1997), “ The God of Small Things”, London, Flamingo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 391
Juliet Mitchell
criança é produzida, então o genitor, seja este do sexo feminino ou masculino, não sabe, psicologicamente falando, se esse filho é do pai ou da mãe.
A sexualidade entre irmãos envolve relacionar-se com alguém que é
vivenciado como o mesmo, uma continuação do gêmeo imaginário, uma
irmã ou irmão imaginário, o que é muito freqüente nas fantasias infantis.
Uma espécie de conforto inocente para a solidão, assim como é para os
gêmeos no romance premiado de Arundhati Roy, “The God of Small
Things”8. Entretanto, também pode significar relacionar-se com alguém
cuja diferença se quer destruir; sob este outro ângulo, isso pode ser um
precursor da raiva testemunhada nos estupros, durante as guerras. Nesse
caso, os irmãos continuam a ameaçar a existência do self de tal forma que
o impulso homicida e a sexualidade tornam-se maneiras de lidar com essa
ameaça. ‘O Homem dos Lobos’ de Freud é um exemplo das terríveis consequências disso para a vítima. As fantasias intrusivas e as agressões sexuais da irmã mais velha do ‘Homem dos Lobos’ conduz o pequeno menino e futuro paciente de análise a uma situação que ele não compreendia. Os
relatórios da NSPCC evidenciam o quão freqüentemente essas situações
são negligenciadas. Eu penso que esse descuido tem a ver com a ausência
de relato das fantasias sexuais entre irmãos.
O tabu do incesto entre irmãos é mais brando do que o do incesto
intergeracional. Na maioria das culturas, o relacionamento sexual do filho
com a mãe ou até mesmo com o pai é dificilmente pensado, porque o desejo não é apenas reprimido, ele é destruído; o mesmo não ocorre com o
incesto entre irmãos. O jogo sexual, na infância, não é apenas normal como,
de certa forma, consentido.
Muitos terapeutas relatam o predomínio do relacionamento sexual
entre irmãos adolescentes e observam, com freqüência, a ausência de um
sentimento de culpa frente a isso ou, até mesmo, a ausência de uma noção
de que há algo de errado nisso. Esta falta de preocupação é freqüentemente
repetida através da negligência do terapeuta, pois ele mesmo não dá importância para essa questão. A ocorrência do incesto completo entre irmãos é
TERIA ÉDIPO
UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
usualmente referida como uma negligência dos pais. Nesses casos, é a negligência que recebe atenção, não o incesto9. Penso que somente quando a
concepção de um filho entre irmãos realmente acontece, é que o horror e o
medo de uma prole monstruosa ocorrem e o terapeuta passa também a se
preocupar.
Com isto, pode-se dizer que o incesto entre irmãos não é levado a
sério a menos que uma gravidez ocorra, e é quando advém a fantasia de
uma criança monstruosa. Definitivamente, existe uma atração sexual lateral, tanto homossexual como heterossexual, mas a distinção entre elas não
é importante. A sexualidade lateral difere dos desejos incestuosos verticais, porquanto naquela a reprodução não aparece como parte das fantasias, e a diferença sexual entre meninos e meninas não é amplamente reconhecida. Isto se distingue das fantasias edípicas onde, como a história original torna clara, ter bebês com a mãe (ou pai) é o componente chave do
desejo.
As crianças podem brincar de “papai e mamãe”, mas esta é uma imitação vertical, como a brincadeira de ser um bombeiro ou uma enfermeira, na
vida profissional. O desejo sexual entre as crianças, provavelmente, é aquele que vem vinculado à fantasia masturbatória de uma “criança sendo
espancada”, geralmente um irmão. A natureza não reprodutiva da fantasia
sexual entre irmãos está, então, relacionada a minha primeira hipótese que
diz respeito à prioridade do impulso homicida sobre o amor. No entanto,
que é que faz com que esse impulso homicida, assim como o incesto, seja
tão freqüentemente abrandado com algo menos importante como, por
exemplo, a rivalidade, e que sua importância seja, então, perdida?
Breve e esquematicamente, construirei uma história que sublinha o
significado do homicídio entre irmãos: nascido prematuramente, o bebê
humano é sempre submetido a algum trauma, a algum excesso de
estimulação; o mundo é demais para conosco (bebês), o que, com uma
9. Ver meus comentários em “Mad Men and Medusas”, sobre um caso de incesto entre irmãos
exemplificado por Enid Balint (1962) “On Being of Oneself”, in: Mitchell,J. And Parsons,M.
“Before I Was I”, Londres: FAB.
392 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
10. Aqui, eu estou seguindo as observações de D.W.Winnicott e Anna Freud, e não aquelas de
Melanie Klein.
11. Estou pensando no trabalho feito com mães e bebês prematuros nas favelas de Lima, no Peru,
que foi descrito por E. Piazzon.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 393
Juliet Mitchell
estreita analogia ao trauma físico, quebra as faixas proto-físicas protetoras,
e é experienciado como uma explosão, uma aniquilação do proto-sujeito,
uma lacuna em sua existência. Todos nós podemos imaginar a experiência,
lembrando-nos de um grande choque, algo que nos tenha ocorrido de forma completamente inesperada. Isso é aceito como uma hipótese sobre o
começo da vida. As implicações disso são entendidas de formas diferentes.
Eu penso que esse buraco negro, assim como o centro de um remoinho,
atrai coisas para si.
Uma manifestação disso, seria a maneira pela qual uma pessoa, ao
sofrer um trauma, posteriormente, após o choque inicial, falará repetidamente sobre o mesmo assunto. Esta é uma característica do que Freud chamou de “pulsão de morte”, algo que impulsiona a pessoa de volta a um
estado de “estase”, ao inorgânico. Para mim, ‘o inorgânico’, como um estado psíquico, é o trauma internalizado, a experiência de aniquilação, a ausência do sujeito que está por existir. O trauma se torna a morte, o nódulo
ou núcleo da morte10.
Entretanto, para a vida continuar, o buraco do trauma é lacrado e todos
os elementos ativos da vida e o impulso de sobrevivência contribuem para
a diminuição de sua importância.
Algumas vezes, assim como nos bebês prematuros, essas pulsões de
vida não são suficientes e o trabalho clínico tem mostrado que, somente a
intervenção extremamente ativa da mãe ou de seu substituto podem evocar
suficiente “pulsão de vida” no bebê para ele sobreviver11. No entanto, uma
fusão bem sucedida da “pulsão de vida” com a “pulsão de morte”, capaz de
apagar a experiência passiva de violência, vai se manifestar como
destrutividade e agressão, ambos essenciais para a vida.
Esta descrição traduz minha interpretação (que cheguei através dos
meus estudos sobre histeria) da hipótese das “pulsões de vida” e das
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UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
“pulsões de morte” que Freud propôs em 1920, após o final da I Guerra
Mundial. Isto é apenas um pano de fundo para o próximo estágio, que vem
a ser o foco de meu interesse. Eu sugiro que, nesse período que vai da
neonatalidade à infância, um segundo trauma ocorre: a descoberta de que
não somos únicos, que outra pessoa está na mesma posição que nós e que,
apesar de se ganhar um parceiro, a perda da sensação de ser único, ao menos temporariamente, é equivalente à aniquilação. Isso é mais fácil de
visualizar quando um irmão menor nasce, mas eu acredito que ocorra de
ambas as partes, em épocas diferentes. A segunda, terceira ou quarta criança não vai experienciar o irmão mais velho como uma ameaça, no início;
seu amor vai se transformar em ódio aproximadamente na mesma idade
em que o irmão mais velho se sentiu ameaçado pela chegada do recémnascido. Onde, para todas as crianças, a experiência precoce foi de morte
acompanhada da demanda para viver, em um estágio posterior, teremos o
impulso homicida como uma resposta ao perigo de aniquilação e, mais
adiante, o amor e a sexualidade.
Quando Carl Jung perguntou a sua filha pequena o que ela faria se seu
irmão nascesse naquela noite, ela prontamente respondeu: “eu iria matar
ele”. Eu não penso que essa experiência com irmãos substitui as adversidades e aflições do Édipo vertical, do complexo de castração e da sensação de
aniquilamento subjacente à chamada cena primária, fantasia da relação
sexual dos pais em que, desde a própria concepção do sujeito, ele está ausente.
Mas eu também não acredito que a idéia da criança de ser substituída
por um irmão possa ser simplesmente decorrente de sua ausência na cena
primária. A vivência interrelacional dos irmãos promove uma estrutura
própria. Agarthli Jung, simplesmente, não tem permissão de matar seu
irmão.
Com uma provocativa referência à noção de Jacques Lacan sobre a
“Lei do Pai”, que é a lei da castração, eu gostaria de colocar o que considero necessário operar na interdição do impulso homicida e do incesto entre
irmãos: “A Lei da Mãe”. Enquanto que, para Lacan, a “Lei do Pai” é
394 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
12. Estas são algumas das idéias de Freud contidas em “Totem e Tabu” (1912) e em “Psicologia de
Grupo e Análise do Ego” (1923).
* Mantido conforme o texto original. (N. do T.)
13. Quando críticos como Elaine Showalter reavaliam essas doenças e suas equivalências modernas, como a “Síndrome da Guerra do Golfo”, e argumentam que depois de (continua na p.395)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 395
Juliet Mitchell
cognato com “O Simbólico” e o acesso da criança à linguagem, à “Lei da
Mãe” cabe introduzir uma disposição em série: um, dois, três irmãos, amigos, colegas... existe lugar para você, assim com existe um lugar para mim
– algo que o histérico, em todos nós, desconhece. Dentro do grupo de irmãos existe, então, um contrato que amplia o narcisismo de cada um, para
formar um grupo social, no qual se ama porque se é um igual e se encontra
outro grupo para odiar, porque neste estão os diferentes12.
Esta é a base de meu esquema, o qual eu gostaria de colocar, de forma
breve, dentro do contexto da histeria (a fonte material deste esquema). Em
particular, gostaria de situar os irmãos dentro do contexto da histeria masculina e dos debates ocorridos imediatamente após o final da I Guerra
Mundial. Conclusões similares surgiram durante a II Grande Guerra Mundial, mas existia aí menos interesse em definir a categoria como histeria.
Isso também se mostra válido para reações a guerras, nos dias de hoje.
Como eu penso que a categoria da histeria ainda é útil, a I Grande Guerra
Mundial serve muito bem para meu argumento.
As doenças não-orgânicas que afetaram os combatentes de guerra têm
muitas semelhanças, em todos os seus sintomas, com manifestações histéricas: uma ansiedade esmagadora, anestesia física, paralisia de partes do
corpo, mutismo e, em nível do comportamento, identificação mimética e
manipulação – pareceria ter menos sedução indissimulada e desonestidade
e mais pesadelos do que na histeria. As condições foram bem descritas na
trilogia de Pat Barker “The Ghost Road”. Essas doenças, oficialmente chamadas “shell shock”*, foram definidas como neuroses traumáticas e, dentro do influente paradigma psicanalítico, a ausência de conflitos sexuais,
no que se refere, especificamente, à sexualidade edípica mal resolvida, foi
utilizada como um argumento de que esses homens não eram histéricos13.
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UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
Eu argumento que a conexão entre ambos, a neurose traumática (p.ex.
“síndrome da Guerra do Golfo” como um equivalente contemporâneo) e a
histeria, é desconsiderada. Além disto, sustento que essa conexão tem dois
lados: tem mais sexualidade nas neuroses traumáticas e mais “morte” na
histeria do que é usualmente percebido. No primeiro caso, acredito que
aceitamos, sem análise, a compulsão sexual que, caracteristicamente, segue os choques excessivos; por exemplo, os estupros que ocorrem durante
a guerra ou até mesmo a promiscuidade que é racionalizada dentro da idéia
de que “amanhã nós poderemos morrer”.
Por outro lado, as tendências suicidas que se estabelecem na histeria
são notadas, mas sua motivação não é incluída como parte da etiologia do
estado. Nos casos mais sérios de histeria, existe uma grande probabilidade
de que a conclusão seja o suicídio. Existe uma pulsão marcante para a
morte. Como a poeta e histérica diagnosticada Ann Sexton escreveu sobre
si mesma e Sílvia Plath: “seguidamente, muito seguidamente, Silvia e eu
falávamos longamente sobre nossos primeiros suicídios; amplamente, em
detalhes e em profundidade entre um prato de batata frita e outro... Nós
falávamos de morte com intensidade, nós nos sentíamos impulsionadas a
isto como uma mosca para uma lâmpada elétrica”14.
Essa pulsão de morte é o resultado da internalização de algo chocante
ou traumático. Outras doenças mentais não são caracterizadas por esse
impulso para o suicídio. Parece, então, existir mais sexualidade na neurose
traumática e mais núcleos de morte internalizada na histeria do que se tem
considerado. Ainda assim, existe uma diferença entre as duas.
As observações de W.H. Rivers (psiquiatra em cujo trabalho, no Hospital Craig Lockhart em Edimburgo, Pat Barker baseou-se para estudar sua
trilogia sobre a histeria) me parecem ter percorrido um longo caminho na
descrição, senão na explicação, da importante diferença entre neurose trau(continuação da p.395) tudo elas são histeria, eles, então, redefinem a histeria como uma resposta
impotente às condições insustentáveis, deixando de fora as tendências sexualizadas e compulsivas
da histeria.
14. Middlebrook, op cit. p.107.
396 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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Juliet Mitchell
mática e histeria. Rivers observou que, com o tempo, muitos dos sintomas
sentidos pelos soldados simplesmente extinguiam-se. No meu esquema, a
neurose traumática é a reedição, na vida madura, de uma resposta neonatal
e infantil. Inicialmente, há um choque que aniquila o sujeito e, gradualmente, a “morte” que é internalizada, mas que se fusiona com a pulsão de
vida, de sobrevivência, agora que o sujeito é um adulto, pode tornar-se
sexual. A sexualidade pode ser sobrecarregada com a destrutividade do
componente de morte – o estupro, ao longo das guerras, presta testemunho
disso. A condição do trauma está em que as respostas serão compulsivas e
repetitivas, mas elas se desgastarão com o tempo.
Podemos fazer a mesma reinvindicação para aquelas reações frequentemente descritas como “histéricas”. Embora a histeria estabelecida siga o
mesmo modelo, é diferente, porque nela está presente o estágio de aniquilação e o impulso homicida entre irmãos, ao invés do estágio primário do
trauma aniquilante. Certamente, os traumas do complexo de castração vão
ocorrer, mas eu acredito que aqueles da situação entre irmãos serão dominantes.
Para uma resposta traumática desgastar-se, alguns ajustamentos precisam acontecer: a perda da casa em um terremoto, de um amigo em uma
batalha ou, de uma forma mais comum a dificuldade de aceitar o passado
como passado, devem ser superados. Um histérico não consegue enlutar;
seus sintomas representam algo a que não pode renunciar. Se o processo de
luto não pode ocorrer, em seu lugar surge a “assombração”, que é algo
muito observado, em diversas culturas, através de estudos da histeria e de
suas expressões (por exemplo, o transe).
A neurose traumática repete o estado afetivo primário pré ou protopsíquico. O evento do reconhecimento do irmão (e dos amigos) vem a
transformar esse estado numa condição psíquica. A experiência entre irmãos envolve poder e sexualidade.
Antes de voltar-me para o incesto entre irmãos e sua interdição, descreverei uma situação na qual a hipótese do impulso homicida entre irmãos
e sua proibição é uma abstração. É uma história engraçada, não de um
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(“A LEI
DA
MÃE”)
paciente, mas de duas crianças que eu conheço. Eu não tenho intenção de
testar se a minha explicação interpreta corretamente o comportamento delas; pretendo, somente, ilustrar minha hipótese.
Emmi tem três anos e 9 meses. Desde quando tinha um ano, ela brincava constantemente com “bebês”, principalmente com bonecas, mas também com animais, pedaços de tecidos, qualquer coisa era utilizada por ela.
Era uma criança muito comunicativa e atenciosa e dizia que a coisa que
mais queria era achar um bebê real na rua e trazê-lo para sua casa para
cuidá-lo. Emmi não expressava nenhum interesse em que sua mãe tivesse
outro bebê – ela monopolizava totalmente essa área – queria cuidar, ao
invés de conceber.
No entanto, sua tia, recentemente, deu a luz a sua prima, e Emmi se
mostrou extremamente interessada nela, particularmente no nascimento
em si.
Uma criança predominantemente feliz, chegara a hora de Emmi ir para
a escola maternal, local freqüentado por todas suas amigas do vilarejo. Sua
irmã mais velha tinha três anos e freqüentava a pré-escola, sem problemas.
No entanto, toda vez que Emmi chegava perto da escola maternal, acompanhada de sua mãe, ela começava a berrar sem parar e brigava para ir embora. Ela era bem-sucedida nisso. Quando chegava em casa, já mais calma,
ela explicava, repetitivamente, a todos que estivessem dispostos a ouví-la,
que “ela era realmente muito pequena, ela não havia nascido ainda”. Era
esta formulação que me intrigava. Apesar da fixação e da repetição, havia
indícios de que algo traumático estava sendo experienciado ao invés de
algo apenas desagradável.
Quando Emmi nasceu, depois de uma gravidez e parto muito difíceis,
sua irmã mais velha, Marion, que tinha 3 anos, ficou horrorizada. Marion
passou a brincar exclusivamente com dinossauros, expressando nada além
de seu horror aos bebês – expressava esse horror fisicamente. Seu repúdio
e revolta para com a irmã continuam até hoje, apesar de classificá-la como
uma criança, não mais um bebê, e de brincar com ela.
Eu sugiro que a fixação de Emmi nos bebês está protegendo seu self398 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
15. Após eu escrever o que está dito acima eu ouvi o que Michael Rutter falou na “8th John
Bowlby Memorial Lecture “, quando ele descreveu alguns dos resultados de seus estudos sobre
crianças romenas órfãs e que foram adotadas neste país. Ele disse que estas crianças gostam de
estar entre bebês, como se os bebêss dessem a elas o seu bebê-perdido.
16. Eu fiquei bastante impressionada, relendo o trabalho de Helen Deutsch sobre maternidade,
como os ovos freqüentemente caracterizam a curiosidade sexual. A noção desta autora sobre a
personalidade “como se” é, eu acredito, um refinamento e uma especificação da noção geral da
histeria. Os ovos aparecem predominantemente no estudo de Eisler da gravidez histérica de um
homem. Os ovos são imagens fáceis tanto do nascimento anal como da partenogênese.
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bebê15 do desejo real de sua irmã de aniquilá-la. Emmi tem uma forte
“pulsão de vida”, mas considera que ainda precisa da proteção de sua mãe
(“ela não nasceu ainda”). Ela nega-se a ser exposta a sua irmã ou a amigos
da mesma idade sem a presença de sua mãe.
Marion teve dificuldades sérias de linguagem. Quando Emmi nasceu,
ela conseguia expressar a sensação de sua própria aniquilação psíquica –
por deixar de ser quem ela era: o bebê dos pais – apenas através da violência física. Talvez ela tenha se sentido como um dinossauro (existe um parque de dinossauros perto de sua casa) grande e poderoso, mas extinto. Desde o filme “Jurassic Park”, os dinossauros tornaram-se brinquedos populares. Mas, aqui também, a fixação de Marion tem uma qualidade insistente
e, de certa forma, desesperada. Em particular, ela beija avidamente e expressa seu amor a um embrião de dinossauro que se mantém em uma substância gelatinosa dentro de um ovo plástico que pode ser aberto – o extinto
também pode vir a nascer16.
A experiência entre irmãos introduz uma dimensão social – é um trauma social, no qual o enorme medo em relação àquele que recoloca ou desloca rompe as barreiras protetoras. Na maioria dos casos, isto é superado, e
o medo primitivo, o trauma e o vínculo adesivo se transformam em ódio e
amor, rivalidade e amizade.
Na maioria das discussões sobre “a experiência do outro”, seja quanto
ao sexo, raça, classe ou etnia, o ódio ao outro é explicado pelo fato de que
o “outro” é diferente. A experiência entre irmãos sugere o contrário: a posição ocupada pelos irmãos é, primeiramente, experienciada como “a mes-
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DA
MÃE”)
ma” – o ódio é contra aquele que é o mesmo, e é este ódio pelo mesmo que
gera a categoria do ‘outro’ que pode, então, ser odiado ou amado.
Irmãos e irmãs são sempre filhos de um ou dois genitores, apesar de a
categoria ser freqüentemente mais ampla que isto. No concubinato, uniões
adúlteras e, em alguns casos, de poligamia urbana, irmãos podem não se
conhecer. Entretanto, crianças nascidas da mesma mãe tendem a ficar juntas e são sempre consideradas irmãs. A relação entre irmãos é especialmente importante na matrilinearidade.
Ao longo do Século XX, observou-se um movimento de mudança,
uma transição da importância do pai, para uma maior importância da mãe
na teoria psicanalítica. A intervenção de Lacan em favor do “Simbólico” e
da “Lei do Pai” foi feita deliberadamente contra essa transição. A ênfase na
mãe é frequentemente tratada como se fosse um produto da justiça – reparar um desequilíbrio. E, apesar de ter se originado de um conhecimento
clínico diferente, freqüentemente proposto por analistas mulheres e pela
transferência maternal17, a ampla significância desse fator clínico não recebeu muita atenção.
É sempre difícil correlacionar o material psíquico insconsciente com
fatores sociais. O social se torna insconsciente e emerge, manifestando-se
no pré-consciente, totalmente transformado. Entretanto, eu vou me aventurar a ir onde os anjos temem pisar. Mudanças sociais demoram gerações
para afetar a psicologia do ego e do super-ego inconscientes, mas, mesmo
assim, elas tem o seu lugar ao final. Da “maternidade moral” do final do
Século XIX, houve uma transição para o que eu chamo de “mãe psicológica” da II Guerra Mundial que, com suas conseqüências, práticas, legislação
e ideologias trouxe iminência à mãe. De um tempo onde a criança pertencia ao pai, até chegar ao mundo ocidental do SéculoXX, onde os cuidados
e a custódia foram para a mãe, ocorreram mudanças. Só recentemente, num
momento em que o significado da paternidade deixou de ter um limite comum com a autoridade, reverteu-se a questão da custódia, que passa a valer
para qualquer dos genitores. Para ambos, analista e paciente, o interesse
17. Idéia trazida por Karl Abraham e comunicado a Freud por volta de 1912, que não a refutou.
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inicial na mãe é, provavelmente, algo tanto ideológico quanto consciente
ou, no máximo, pré-consciente (como claramente foi para Karen Horney,
Helene Deutsch, Melanie Klein, Ernest Jones e outros). Mas a importância
da mãe, como Karl Abraham já havia observado em 1912, deveria mostrarse igualmente presente nas manifestações dos processos inconscientes.
Essas manifestações têm alguma relação, certamente uma relação
distorcida, com a mudança social. No entanto, quando falamos das teorias
psicanalíticas sobre a mãe – e nas concepções populares também –, que
mãe é esta que está sendo apresentada?
O que se encontra na teoria é a mãe pré-edípica ou, nas formulações de
Melanie Klein, uma mãe edípica bastante precoce. Em todos os casos, trata-se duma imago extremamente primitiva cujo poder é taliônico, não
organizador. Não existe uma mãe que, posteriormente no desenvolvimento, será uma mãe representante da lei (“lawgiver”).
O que transparece deve ser, mais uma vez, referido tanto a uma ideologia geral, por exemplo, a Antropologia em que Engels baseou seu trabalho, quanto a modalidades de “setting” clínico.
Na minha opinião, a mãe representante da lei (“lawgiving mother”)
não existe na teoria psicanalítica porque os analistas falam posicionados
desde a “Lei da Mãe”. Existe, então, um “enactment” da “Lei da Mãe” e
sua atuação no “setting”, como todo “acting-in”, impossibilita o pensamento e, consequentemente, a teoria... Se o tratamento clínico põe em cena
a “lei materna” – e eu vou chegar no que isto implica em um momento –
então, uma outra mãe será percebida no material transferencial do paciente. Essa outra mãe é a mãe pré-edípica.
O matriarcado existe sempre antes do patriarcado; a ligação com a
mãe ocorre primeiro. Entretanto, o que deveria ser enfatizado é que este
conceito de mãe pré-edípica deriva sua definição do pai edípico.
Em todos os casos, a mudança de ênfase na lei paterna e na noção da
diferença sexual como dependente do complexo de castração, em favor de
um foco na mãe, tem acontecido, apesar das intenções, nos termos da lei
paterna – isso é verdade mesmo quando (ou, particularmente quando) os
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UMA IRMÃ?
(“A LEI
DA
MÃE”)
pais, aparentemente, não querem ver. O patriarcado define o matriarcado
como algo sempre mais primitivo ou precoce; a ordem simbólica lacaniana,
similarmente, posiciona uma ordem imaginária anterior que é preenchida
pela mãe.
Um filósofo e psicoterapeuta como Luce Irigaray pode vir a explorar,
exclusivamente, as relações da filha com a mãe ou da mulher com a mulher. Julia Kristeva pode mostrar a variedade, o poder e a riqueza da relação
com a mãe. O feminino e o maternal vem primeiro; primeiro significa mais
cedo, e mais cedo significa mais primitivo. Mary Jacobus, na introdução de
seu livro “First Things”, uma crítica literária de orientação psicanalítica,
desenhou um mapa desse espaço maternal primitivo.
O meu sujeito (tanto quanto a imago materna pode variar, ser
multiforme e penetrante) é a mãe fantasmática que pode possuir, ou não,
partes reprodutivas, funções de cuidado, e manifestações históricas ou
materiais, específicas. É quem existe primeiro no domínio das imagens ou
imagos (sejam percebidas ou imaginadas), espelhando identificações e figuras; é associado, algumas vezes, com a nostalgia feminista, em outras,
com uma mistificação ideológica; aparece em conexão com a melancolia e
o matricídio, e tem uma parte chave nas teorias do significado propostas
por Kristeva; figura primariamente nos escritos de Melanie Klein, onde
termos como cisão (“splitting”), identificação e projeção analisam um repertório de atividades que envolvem fantasias de ataque e reparação ao
corpo materno; é aquele que dá ao seio o seu poder cultural; as primeiras
coisas (“first things”)... as precoces, deformadas, mas vitalmente informativas fantasias que levam à emergência do bebê como um sujeito; a primeira “coisa” (thing) é o que Julia Kristeva coloca como a coisa materna, o
“ainda-não” objeto a emergir, o “ainda-não” sujeito caótico18.
Eu argumentaria que existe ainda uma outra ‘mãe’; uma mãe que foi
deixada de fora, uma mãe que é um sujeito e cuja lei contribui para o estabelecimento da subjetivação de seus filhos. A “Lei da Mãe” tanto diferencia as gerações no sentido de quem pode ter bebês de quem não pode ter
18. Jacobus, M. (1995), ‘First Things’, London: routledge, pp. iii-iv.
402 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 403
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bebês, quanto introduz a disposição em série lateral entre as crianças: aquele que pode ficar acordado até mais tarde; aquele que pode escolher o pedaço de bolo que quer comer; o sobreviver às rivalidades homicidas para
ganhar o amor dos irmãos e dos amigos; o admitir um espaço para aquele
que é o mesmo e é o diferente. Essa mãe tem sido obstruída por uma relegação patriarcal da maternidade à ‘primeira mãe’, bem como pelo
“enactment” dos ‘analistas-mãe’ que ensinam seus ‘pacientes-bebê’ que é
o analista, sozinho, que pode ter todos os bebês/pacientes e que os pacientes devem dar-se conta que eles são apenas um de uma série.
A “Lei da Mãe” opera tanto verticalmente, entre ela e o filho, como
lateralmente, diferenciando os filhos entre si. Verticalmente, decreta que as
crianças não podem ter bebês. É exatamente esta lei que é censurada na
histeria. A gravidez fantasmática, o nascimento histérico, os homens
“couvade”, são todos testemunhas da fantasia de dar à luz partogenicamente, ou com alguém que é igual a si próprio (as mamães e os papais idênticos
das brincadeiras das crianças). Na fantasia histérica, nada fica de fora, nenhuma possibilidade é perdida e por isto não há nada para ser sentido como
perda. Não havendo o abandono, o sepultamento da fantasia do nascimento
gerado pelo self, o nascimento real, bem como o bebê que nasce não podem ser simbolizados. Se o homem histérico ou a mulher histérica têm
uma prole de fato, eles não sabem que os filhos não são eles próprios e,
portanto, surge um campo fértil para o abuso.
Através da diferenciação entre as crianças, a mãe e sua lei permitem
que o conceito de série lateral seja internalizado: a criança, na mesma posição que seu irmão/ irmã em relação a um dos genitores ou a ambos os pais,
assim como crianças da mesma idade em relação ao professor ou chefe,
mas sendo, ao mesmo tempo, diferentes (existe lugar para dois, três, quatro
ou mais). Disso, o histérico em todos nós, não tem conhecimento.
A “Lei da Mãe” opera entre irmãos, ou entre irmãos e seus amigos.
Sem ela, haveria homicídio ou incesto. A observação da negligência
parental nos casos de abuso entre irmãos, deveria ser especificada como a
ausência da operação dessa lei.
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MÃE”)
O horror da ocorrência do incesto entre irmãos indica como, sem a
intervenção da “Lei da Mãe”, mães e irmãs se confundem. Aqui, mais uma
vez, a análise perde a dimensão da confusão entre irmãos. Os kleinianos,
em particular, escrevem sobre os estados confusionais, mas os objetos que
se confundem são sempre os pais, ou os pais e o ego infantil. Na verdade,
Melanie Klein postulou que o bebê, em primeiro lugar, fantasia sobre um
genitor combinado – e de fato pode.
A confusão entre mãe e irmã é predominante na mitologia – mas é
interessante que aqueles que comentam sobre essa questão repitam a confusão ao invés de analisá-la.
Retornando ao início, isso é o que Geiza Roheim, psicanalista e antropóloga escreveu em 1934: “Os autores clássicos não identificam Jocasta
com a Esfinge, mas eles registram uma relação próxima. A Esfinge aparece
como a irmã do Édipo. Hesiod refere-a como filha de seu irmão com sua
mãe Echdina”.
No entanto, tendo observado esta relação entre irmãos, Roheim continua: “Esta criatura ambígua, perigosa e sedutora, que ama para devorar, é,
portanto, a mãe do herói”19.
A irmã se confunde com a mãe e somente a “Lei da Mãe” insiste nessa
diferenciação. Com a diferenciação vertical, existe uma lateral: irmãos,
meninas e meninos, não são genericamente diferentes; mas um dos pontos
de diferenciação entre eles surge porque irmãs podem se tornar mães.
As crianças não são apenas participantes no mundo; elas também são
observadoras tentando adquirir categorias e demarcações. Recentemente,
meu neto de quatro anos anunciou para minha filha de vinte e dois anos que
ele era um “humano”, mas quando pressionado a dizer quem ela era, ele
respondeu firmemente que “não, ela não era humana, ela era “uma menina
crescida”.
Clínicos e teóricos têm observado a criança pequena antes que ela se
diferencie dentro das relações laterais e entre as relações laterais e verti19. Geiza Roheim, 1934, ‘The Riddle of the Sphinx or Human Origins’, International
Psychoanalytic Library, London. p.17.
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20, 21 e 22. Os termos “matrifocal”, “patronymics” e “matronymics” parecem ter sido criados
pela autora, pois não se encontrou tradução para os mesmos. (N. do T.).
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cais. A relação lateral tem sido abordada dentro de uma ideologia de um
matriarcado primitivo, ele mesmo como um conceito de uma ideologia
patriarcal que prefere pagar o tributo à fantasia da mãe toda-poderosa do
que à mãe que também dá leis (law-giver). A real importância da ameaça
no relacionamento entre os filhos e filhas é ainda mais extensamente
desconsiderada.
Antropólogos têm, há muito tempo, questionado a universalidade do
“Complexo de Édipo” na sua forma monolítica. Usualmente, (como
Malinowski nas Ilhas “Trobriands”), eles têm o pai e sua lei, e esta é, algumas vezes, substituída pela lei do irmão da mãe. No entanto, como observadores participantes (tendo uma prática diferente), eles têm reconhecido a
importância de uma estrutura independente dos afins laterais. Antropólogos também tendem a adaptar tudo a um paradigma vertical: por que o
irmão da mãe não deveria ser apenas isto, um irmão importante? O que está
em questão é a descendência: ela é a mãe. Mas ela é também a irmã de seu
irmão e essa relação é desconsiderada.
É nas matrilinearidades que a herança ocorre, através da irmã do homem. Podemos especular que, nas sociedades ocidentais, as relações entre
irmãos ou quase-irmãos tornam-se proeminentes em uma crescente situação matrilinear ou “matrifocal”?20
Existe uma relação clara entre a “Lei da Mãe” e a importância dos
irmãos. Uma matéria recente escrita no jornal francês “Le Monde” anunciou que a legislação deveria acompanhar as mudanças nas práticas familiares: a lei da herança deveria respeitar parceiros laterais antes de descendentes; crianças de relações adúlteras deveriam ter o mesmo status das
crianças nascidas de casamentos registrados – eles são, apesar de tudo,
irmãos; “patronymics”21 poderia ser “matronymics”22 com a criança usando o sobrenome de um dos pais.
Hoje em dia, o Édipo tem uma irmã – não Antígona, não a Esfinge,
mas a irmã que vem por si própria, em tempos em que as interações verti-
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(“A LEI
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MÃE”)
cais estão ameaçadas, como acontece em muitas guerras (por exemplo nas
duas grandes guerras), ou diretamentes desafiadas, como nas revoluções.
São tempos, talvez, de um declínio nos nascimentos, na qualidade da relação entre irmãs, bem como do feminismo.
Sinopse
O artigo examina a omissão quanto às relações incestuosas e de ódio entre
irmãos dentro da teoria psicanalítica. Propõe o conceito denominado “A Lei da
Mãe”, que proibe as fantasias infantis de procriação, e a transgressão disso na
histeria. A “Lei da Mãe” estabelece a disposição em série – pode-se ser igual ou
diferente nas relações laterais.
Summary
The article examines the omission of sibling relations of incest and hatred in
psychoanalytic theory. It proposes a so-called “Law of the Mother” that prohibits
the child’s fantasies of procreation and the transgression of this in the hysteria.
The “Law of the Mother” instantiates seriality – one can be the same and different
from lateral relations.
Sinopsis
El artículo examina la omisión en cuanto a las relaciones incestuosas y de
ódio entre los hermanos dentro de la teoría psicoanalítica. El autor propone el
concepto que denominó de la Ley de la Madre, que prohibe las fantasías infantiles
de procreación, y de la transgresión en la histeria. La “Ley de la Madre” establece
la disposición en la serie – se puede ser igual ó diferente en las relaciones laterales.
Palavras-chave
Édipo; Disposição em série; Irmãos; Relacionamentos laterais; Ódio; Fantasias do nascimento; A Lei da Mãe; Histeria.
406 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Oedipus; Seriality; Siblings; Lateral relationships; Hatred; Birth fantasies;
“The Law of the Mother”; Hysteria.
Palabras-llave
Édipo; Disposición en serie; Hermanos; Relaciones laterales; Odio; Fantasías de nacimiento; La Ley de la Madre; Histeria.
Artigo
Trabalho apresentado na ‘London School of
Economics’ em 8 de março de 2001.
Tradução: Elisabeth Kuhn Deakin
Revisão da Tradução: Cynara Cezar Kopittke
Dra. Juliet Mitchell
Jesus College,
Cambridge, CB5 8BL
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 407
Juliet Mitchell
Key-words
(Uma Aproximação
Teórico-Clínica)
“Geralmente se expõe a
questão como se a exigência
ética fosse o primário e a renúncia do pulsional sua conseqüência. Mas deste modo, permanece sem explicação origem
da eticidade. Na realidade, parece suceder o contrário: a primeira renúncia do pulsional é
imposta por poderes exteriores
e é ela que cria a eticidade, que
se manifesta na consciência
moral e exige novas renuncias
do pulsional”1.
Leonardo Adalberto
Francischelli
Membro Titular em Função
Didática da SBPdePA (Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre)
1. FREUD, S. (1924). El problema económico
del masoquismo, A.E. XIX – p.176.
Tradução do autor.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 409
Leonardo Adalberto Francischelli
O Complexo de
Castração
como uma Ética
do Inconsciente
O COMPLEXO DE CASTRAÇÃO COMO UMA ÉTICA DO INCONSCIENTE
(UMA APROXIMAÇÀO TEÓRICO-CLÍNICA)
I
Se dissermos que a nossa cultura, ou melhor, “os meios” deste início
de século procuram, a todo custo, tapar a falta, muitos estarão de acordo.
É claro que falamos da “falta” no sentido psicanalítico: a falta que
mortaliza o sujeito, ou também “o buraco” promovido pelos “poderes exteriores”, que determina uma limitação pulsional, visto que, sem um exterior
impositor, seguramente o homem tornar-se-ia o lobo de si mesmo: “Homo
homini lupus”2.
Ao mesmo tempo, esse limite à pulsão humaniza o homem, fazendo-o
mortal e sexuado, portanto finito e desejante.
Há um esforço coletivo no sentido de ignorar essa imperfeição. Toda a
sociedade prefere pavonear-se, ou melhor, o narcisismo, esse perfume sedutor. Dentro desse contexto, somos “assaltados” por novas nosografias,
como os distúrbios narcisistas vinculados por amplos setores da Psicanálise e patologias como a “doença do pânico”, oferecidas pela Psiquiatria.
Também, como querem alguns, Rudinesco, por exemplo, referencia a
melancolia e o desenvolvimento de um individualismo sem sujeito, fundado num dobrar-se sobre si mesmo narcísico; seria a patologia que nos preocupa nesse início de século.
II
Diante dessa realidade clínica, queremos colocar uma problemática
do nosso próprio artesanato diário, para discutir como trabalhamos com a
teoria contida no complexo de castração.
Nosso entender, desse “complexo”, nasceria uma determinada ética
que apoiaria nossa práxis. A ética do inconsciente, ou como prefere Nasio
(1999): “Se, por fim, definimos o inconsciente do ponto de vista ético,
iremos chamá-lo desejo” onde, continua ele, “o desejo é o inconsciente em
busca do incesto”3, que, em nossa perspectiva, nasce, como já o dissemos,
2. FREUD, S. (1930). El malestar en la Cultura, A.E., XXI – p.108.
3. NASIO, Juan David. (1999). O Prazer de ler Freud, Jorge Zahar Editor, p.39-40.
410 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 411
Leonardo Adalberto Francischelli
dos “poderes exteriores”, que operam como diques frente à interioridade
pulsional.
Ética que sustenta e dá consistência ao nosso trabalho clínico.
Com essa condição ética, estaríamos colocando uma possibilidade,
talvez a melhor, para darmos conta das dificuldades da época, que não são
poucas, já que ainda contamos com uma certa tendência da imagem a subjugar a palavra e a “realidade virtual” à psíquica.
Vamos, portanto, colocar uma problemática interna da Psicanálise
como possível causa do comprometimento externo da nossa terapêutica. E,
para tanto, recorremos a um exemplo simples, do cotidiano de nossa clínica: um analizando que rompe com uma das normas do contrato, promovendo uma alteração.
Nesta perspectiva, o paciente alterou/rompeu um “artigo” contratual,
e é necessário restituí-lo; do contrário, a palavra do analista ficará comprometida em sua possibilidade de lapidar a possível verdade inconsciente.
Se a palavra perde a força como Sansão perdeu as suas, o analizando
gozará de um “plus” de prazer pela transgressão contratual. E, à medida
que isso acontece, o capital do terapeuta, localizado na palavra, diminui.
Então, será preciso restituir, às suas origens, esse acordo. Para tanto, o analista empregará sua principal arma: a interpretação.
Agora bem, admitamos que esse recurso se esgote por si mesmo, já
que o o analisando, pelas razões as mais variadas, entre elas não perder
esse “plus” – o gozo –, resistirá.
Isso determinará ao analista jogar todas as suas cartas na mesa, levando o analisando a pensar na possibilidade de que a análise se encontra
ameaçada, na medida em que o contrato vem sendo violado.
Resistência que obrigará ao analista colocar em cena a ameaça de castração, isto é, levando o analisando a conjeturar a possibilidade de que sua
análise seja suspensa, caso aquele aspecto do contrato adulterado não seja
respeitado pelo paciente.
Caminho inescusável para retomar o valor da palavra no tratamento
analítico, atravessado pela transferência, além do que será nessa medida
O COMPLEXO DE CASTRAÇÃO COMO UMA ÉTICA DO INCONSCIENTE
(UMA APROXIMAÇÀO TEÓRICO-CLÍNICA)
que o analista trabalhará na restituição dos termos do contrato; ele mesmo
apresentará em si as marcas de castração, ou seja, o analista também estará
subordinado a combinações, tanto quanto o paciente.
III
Nesse caminho, depois de iniciado, não há retorno. É preciso sustentar
essa colocação até o fim: a interrupção ou a volta aos termos contratuais.
A isso, também chamaríamos interpretação em ato, levando a uma
radicalidade profunda, onde ambas as partes são jogados numa incerteza
instantânea e momentânea e o complexo de castrado é levado até às últimas conseqüências como limitador desse “plus” de prazer, desse gozo ilegal.
Essa “interpretação em ato” poderá ser examinada em distintas perspectivas; uma delas seria ligá-la a esses “poderes exteriores” que vão limitar o gozo ilegal pulsional. “Poderes exteriores” que nascem no analista
como aquele que exercita a limitação da força pulsional, portanto, agindo
como o interdito do incesto e do parricídio. Ou, ainda, essa operação,
mediatizada pela “interpretação em ato”, vai provocar a passagem do euideal para o ideal do eu, onde o narcisismo arcaico é transformado em
narcisismo de vida.
Narcisismo que implica a renúncia objetal pela opção de uma escolha
narcisista, ou seja, “prefiro preservar minha integridade corporal e, para
tanto, renúncio à minha escolha objetal incestuosa”, diria o paciente; isto
se materializaria no tratamento, na medida em que o cliente optasse pela
preservação da análise em lugar de rompê-la. Aí, situaremos, também, a
teoria do Complexo de Castração, trabalhando na técnica da clínica psicanalítica.
Em situações assim, de deslizes de enquadre, caso não sofra a ação
dessa radicalidade, e sendo substituída por outra solução “mais humana”,
esse tratamento poderá continuar, inclusive por muitos anos, porém sem
análise. Pois o novo contrato, novo no sentido de que foi modificado pelo
paciente, compromete a palavra do analista – seu valor maior, e daí o casa412 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
IV
Caso se tergiverse com esse dispositivo do Complexo de Castração,
promotor da entrada da menina no Édipo e saída do mesmo pelo menino,
no horizonte freudiano, que é trabalhar analiticamente no sentido do prazer
possível, não haverá ética, estritamente falando, e, conseqüentemente, análise, ainda que ambos permaneçam juntos por muitos anos.
Talvez pudéssemos expressá-lo de outra forma: toda vez que abrimos
mão de algum termo no contrato analítico, estamos nos colocando fora do
amparo do Complexo de Castração e colocando em jogo todo nosso edifício teórico-técnico, comprometendo nossa comprovada eficácia terapêutica no processo de libertar o sujeito do seu próprio desejo, libertando-o do
sofrimento aprisionante.
4. HOLANDA, Chico Buarque de. Letra e Música, p.158.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 413
Leonardo Adalberto Francischelli
mento poderá seguir “até que a morte os una”4 como diz o Chico, contudo
sem matrimônio em vida.
Nessa radicalidade, imposta pelo complexo de castração, assim compreendida, é que se joga a ética de uma análise e o prestígio da nossa clínica
na comunidade.
Essa radicalidade não implica dizer que o analista não disponha de
nenhuma liberdade na sua condução da análise. A radicalidade significa
que, em algum momento, no horizonte de um tratamento, se defrontará
com ela – a radicalidade.
Esclarecemos, ou pretendemos fazê-lo, que esse sentido da
radicalidade não pressupõe, ou contempla, autoritarismo ou que o terapeuta
se encontre acima do complexo de castração, bem ao contrário.
Então, radicalidade e ética se encontram dentro de um percurso analítico: representam aquele preciso momento em que o Complexo de Castração opera com toda sua força, naquele instante em que cabe ao analista
“cortar” a onipotência do paciente, marcando-o, com os limites da finitude,
mas, ao mesmo tempo, liberando-o em seus desejos.
O COMPLEXO DE CASTRAÇÃO COMO UMA ÉTICA DO INCONSCIENTE
(UMA APROXIMAÇÀO TEÓRICO-CLÍNICA)
Daí nasce nossa proposta de que o Complexo de Castração promove
uma ética: a ética do inconsciente, ou seja, o Complexo de Castração operando como aquele “poder exterior” que se impõe à desordem pulsional,
organizando-a em seus limites. Agora, então, fica o lugar para o desejo
que, desde Freud, é a força de trabalho para o aparelho psíquico.
A ética do inconsciente está vinculada ao Complexo de Édipo, na medida em que este é determinado pelo complexo de castração. Portanto, essa
ética é sempre triangularizada, ou melhor, o terceiro nunca estará ausente.
À medida que nós mesmos – e por que não? – burlamos os contratos
clínicos com nossos pacientes, perdemos de vista o terceiro, e nos comprometemos perante a sociedade a qual servimos: em lugar do progresso simbólico, estaremos oferecendo a peste como na velha Teba, ou ainda, como
se diz hoje, em linguagem do nosso tempo, a diminuição da função paterna.
Palavras-chave
Ética do inconsciente; Contrato analítico; Complexo de castração.
Key-words
Unconscious ethic; Analytic contraet; Complex of castration.
Palabras-llave
Ética del inconsciente; Contrato analítico; Complejo de castración.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Agosto/Setembro/2001
Dr. Leonardo Adalberto Francischelli
Rua Tobias da Silva, 267/206
90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
414 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Introdução
Marco Aurélio
Crespo Albuquerque
Médico Psiquiatra, Candidato do
Instituto de Formação Analítica da
SBPdePA (Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre).
A psicanálise de crianças foi
uma possibilidade intuída, mas deixada inexplorada por Freud, cujos
insights criativos e originais sobre
esse período foram fruto principalmente de inferências sobre a infância, a partir da análise de adultos e
de sua auto-análise. Mesmo o pequeno Hans não foi tratado diretamente por Freud, que supervisionava seu pai à distância, daí extraindo
informações valiosas para a formulação de hipóteses sobre a sexualidade infantil, a partir dos sintomas
do menino (Freud, 1909).
Com a evolução da teoria e da
técnica psicanalítica, esse vasto
campo foi também se desenvolvendo, tendo como pioneira Melanie
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 415
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
“Porque Eu
Sonho Eu
não o
Sou...”
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
Klein, que tratou crianças dentro da técnica analítica freudiana1 , com o
auxílio do brincar como forma de obter da criança comunicações e compreensão sobre seus conflitos, mesmo em idades bem precoces, onde havia
o predomínio da comunicação não-verbal, ou extra verbal como se poderia
chamar. Anna Freud também dedicou-se a esse campo, porém com uma
concepção teórica muito diferente de Klein, propondo um processo que se
poderia chamar de mais educativo do que analítico, motivo de grandes e
conhecidas controvérsias, entre elas e suas diferentes abordagens.
A partir do que observava no tratamento analítico de crianças, Klein
formulou algumas hipóteses sobre as ansiedades e mecanismos mais arcaicos da mente humana, presentes em estágios muito iniciais do desenvolvimento, desde os primeiros meses de vida do bebê. Para ela estas ansiedades
primitivas têm características encontradas nas psicoses (daí a origem da
expressão “ansiedades psicóticas”), e a presença delas força o ego a desenvolver defesas para lidar com elas, e processá-las. M. Klein descreve estas
defesas mais típicas do ego primitivo, como a cisão (de impulsos e de objetos), a idealização, a negação da realidade (interna e externa), a onipotência
e o abafamento de sentimentos. Essa constelação defensiva pertencia ao
que Klein chamou de posição esquizo-paranóide, um estado mental onde
predominavam – além das defesas citadas acima – os sentimentos
paranóides, oriundos de uma ansiedade e de uma culpa com características
basicamente persecutórias.
Tentando, nessa época, ser fiel à idéia de Freud a respeito dos pontos
de fixação da libido, ela situou nesta fase inicial da vida humana os pontos
de fixação das doenças mentais mais graves. Sabemos que essas, por sua
vez, têm se tornado cada vez mais uma demanda significativa nos consultórios psiquiátricos e psicanalíticos, o que reforça a importância de atentarmos para essas ansiedades e defesas mais primitivas no atendimento de
nossos pacientes, sob pena de, sem sua compreensão e abordagem adequa1. Com o estabelecimento de um setting analítico, com o uso de interpretações, com atenção
flutuante do analista às produções das crianças na forma de brincadeiras, equivalentes à associação livre de Freud.
416 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 417
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
da, não tocarmos em aspectos decisivos para o tratamento. Nesse trabalho
ela também lançou o conceito fundamental de identificação projetiva, verdadeira revolução na teoria e na técnica, conceito que levou à Psicanálise
onde Freud tinha dúvidas que ela pudesse chegar, especialmente na compreensão e tratamento do psicótico – tido até então como não analisável –
bem como, nos dias atuais, dos elementos psicóticos presentes nos pacientes neuróticos, especialmente nos mais graves.
Da riqueza desse conceito decorrem desenvolvimentos posteriores,
tais como a compreensão renovada e ampliada que se tem da transferência
e contratransferência, esta última agora entendida como ferramenta de
manejo essencial na análise (Racker, 1948; Heinmann, 1950) até idéias
mais atuais sobre o papel da intersubjetividade no encontro analítico
(Ogden, 1994), entre outras novas visões do processo analítico que privilegiam o papel do par analítico, e não apenas de um de seus pólos. A idéia
sobre os aspectos comunicativos da identificação projetiva permitiram a
Bion uma expansão considerável do conceito e a formulação de um novo
modo de se entender a relação do bebê com a mãe, bem como a importância dele para o desenvolvimento da vida mental e para a formação do pensamento (Greenberg, 1991).
No entanto, a despeito da importância incontestável das idéias de
Klein para a Psicanálise, a resistência a elas continua forte e ativa no meio
psicanalítico. As razões para isso são muitas e algumas conhecidas e compreensíveis, porém examiná-las aqui não é o objetivo deste trabalho. Cumpre apenas destacar que – com ou sem oposição – essas idéias estão incorporadas ao patrimônio do saber psicanalítico, e como tal devem ser respeitadas, estudadas e reavaliadas de tempos em tempos.
Com essa premissa em mente achei oportuno reestudar e aprender um
pouco mais com um trabalho fundamental seu, chamado Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides (Melanie Klein, 1946), um clássico da Psicanálise, moderno e útil após mais de 50 anos de sua publicação. Para fazêlo, lancei mão – à maneira de um caso clínico – de uma história que muito
me impressionou, roteiro de um filme chamado Léolo, que contém ele-
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
mentos autobiográficos do autor do livro no qual o roteiro se baseia. A
história retratada no filme se presta excepcionalmente bem ao estudo das
ansiedades primitivas, as defesas contra elas e o desenvolvimento infantil
que daí pode decorrer quando elas predominam, de tal forma que o resultado final acaba sendo a doença mental.
Uma História (In)Comum
Num subúrbio de Montreal, Canadá, em alguma época do final dos
anos 80, um menino nos conta sua história: “Todos acham que sou francocanadense... porque eu sonho eu não o sou... as pessoas que só acreditam
na sua própria verdade me chamam de Léo Louzeau.” Apresenta seu pai,
trabalhando pesado numa fundição, feio, sujo e suado. “Dizem que este é o
meu pai, mas eu sei que eu não sou seu filho, porque este homem é louco, e
eu não sou... Porque eu sonho eu não o sou... Como ele sempre se escondia, eu nunca conheci o rosto do meu verdadeiro pai.”
Ele tem 12 anos e se diz italiano, já que sua mãe teria ficado grávida
dele através do sêmen de um italiano que se masturbara e ejaculara sobre
tomates, na Sicília. Mais tarde, sua mãe, no Canadá, caiu sobre os tomates
importados da Itália, e um dos tomates cobertos com o sêmen do agricultor
entrou na sua vagina, fecundando-a, e assim ela engravidou. “Desde que
tive este sonho exijo que me chamem de Léolo Lozone”. Sonho e realidade
se misturam e se fundem na gênese de sua peculiar história transgeracional.
“Entre a Sicília e a minha casa tem 6.800 km, entre o meu quarto e o
de Bianca tem 5,80 m, mas no entanto ela está muito mais longe”. Assim
ele introduz, na narrativa, o objeto idealizado de seu desejo, uma
italianinha que mora na casa em frente a sua, e por quem ele está apaixonado perdidamente.
Em sua casa, simples e rústica, havia um único livro, sintomaticamente intitulado: “A Devorada dos Devorados”. Ele o lê, escondido, várias
horas, todas as noites, sentado na frente da geladeira, com a porta aberta,
com a luz desta iluminando-o por detrás. Diz que nunca viu ninguém em
casa lendo ou escrevendo, e nem sabe como este livro foi parar lá, mas está
418 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 419
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
todo sublinhado e os trechos, marcados por alguém, são os que ele lê primeiro. Um dos trechos diz: “Minhas únicas alegrias estão na solidão, minha solidão é o meu palácio, é nela que tenho minha cadeira, minha mesa
e minha cama, meu vinho e meu sol. Quando estou sentado fora da minha
solidão estou sentado em exílio, estou sentado em terras impostoras.” A
depressão se insinua em sua história tal qual um arrepio nas costas, uma
geladeira com a porta aberta, num abraço frio e mortal.
Na história de Léolo há um outro personagem importante, um homem
já idoso, de cabelos brancos, óculos, de aspecto afetivo e compreensivo.
Ele é um contraponto a essa família de analfabetos, ele é “o domador dos
versos”, aquele que junta nas latas de lixo cartas e fotos de pessoas, e,
através delas, procura imaginar, reconstituir e compreender a vida daqueles
que aparecem nelas. É nas latas de lixo do bairro que ele encontra as folhas
escritas e logo jogadas fora por Léolo. Em certo momento ele diz carinhosamente a Léolo: “É preciso sonhar”. Léolo gosta muito dele e o sente
como um protetor, como se fosse a reencarnação de Dom Quixote, que o
ajuda a lutar contra os moinhos do isolamento depressivo, “me proteger do
precipício que é a minha família”. Este homem, tal qual um terapeuta, é
uma figura ao mesmo tempo da realidade e da fantasia, transita nas duas
realidades interessado nas palavras, nos sonhos e nos afetos.
Léolo tem um irmão mais velho, chamado Fernand. Numa viela em
que trabalham juntando jornais, um marginal bate neste seu irmão, e o fato
tem uma conseqüência que será muito importante para ambos, daí em diante: “O medo tornou-se uma razão de ser para meu irmão”. Este começa a
praticar fisiculturismo, e Léolo diz, projetivamente, que quando o irmão
ficar uma montanha de músculos, ele também não terá mais medos, e irá
para as ruas do mundo dizer para os desgraçados da terra o que acha deles,
e todos terão que baixar a cabeça quando eles passarem. O irmão, magicamente, aumenta de idade e de tamanho, enquanto ele continua um menino,
assustado por inimigos interiores poderosos, que tenta vencer com sua onipotência.
Num hospital psiquiátrico estão internadas suas irmãs, Nanette e Rita,
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
seu irmão Fernand e o pai, junto com o avô. “Como se a herança de meu
avô tivesse atingido toda a família, e a pequena célula a mais tivesse se
alojado no cérebro de todo mundo”. Em dado momento, durante uma visita, a psiquiatra pergunta a eles quem da família vai falar primeiro, todos
levantam a mão menos ele, “porque eu me chamo Léolo Lozone, e não me
venham falar de pessoas que eu não conheço.” Em outros momentos a
negação protetora diminui e ele, triste com a percepção da realidade da sua
família, diz: “Minha família parecia uma família de verdade. Meu pai era
um homem como muitos outros, um pobre coitado que morde em sua vida
de cão... ... Às vezes chegavam ao mesmo nível de delírio, e era fácil visitálos aos domingos na grande sala.” Mas às vezes eles internavam em quartos separados e era difícil caminhar pelos corredores do hospital para vêlos todos. “Eram os belos domingos de inverno!”, diz ele com ironia e
raiva, encobrindo sua tristeza.
“Estranha, angustiante, malcheirosa, sem amigos, sem luz, escondida nas profundezas da terra, minha irmã, a Rainha Rita”. No porão da
casa, cercada de velas acesas por todo lado, Rita guardava a coleção de
insetos de Léolo, em vidros. Ficava lá embaixo, acompanhada por cobras,
aranhas, baratas, olhando-se no espelho e se penteando autisticamente,
completamente alheia à realidade. Quando o pai descobre isso, tranca a
entrada do porão, e como Rita não podia mais buscar refúgio em seu reino,
surta violenta e definitivamente. Léolo constata melancolicamente: “A
Rainha Rita se abandonou à deriva.” Apenas a mãe cuida dela, carinhosamente, no hospital.
Enquanto isso Léolo espia Bianca pela fechadura do banheiro. “Meu
único amor, minha Itália.” O que ele vê pela fechadura, no entanto, é
Bianca nua no banheiro, com seu avô, que paga a ela. “Uma noite entendi
de onde vinha esta luz, era Bianca que cantava para mim, no fundo do
armário, há muito tempo.” Enciumado e com raiva, ele sonha com Bianca
e segue indo à escola, onde acha que aprende coisas inúteis, mas onde ninguém lhe fala “deste rabo que incha entre as minhas pernas”, ninguém o
ajuda a entender o despertar adolescente de suas pulsões sexuais.
420 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 421
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
“Eu não vejo mais tudo rosa, um rosa sujo, um rosa morto, não sinto
mais a minha carne, não estou mais aqui.” A conseqüência deste aumento
progressivo da ansiedade e da raiva é que ele se isola mais, pára de prestar
atenção às aulas e fica obcecado por sexo. “Até onde me lembro, minha
primeira ereção foi causada por Bianca.” Curioso com a cena sexual vista
antes, novamente ele vai espiar, por uma abertura no teto do banheiro e vê
Bianca com o avô, que lhe paga para cortar as unhas dos seus pés com os
dentes. Ele fica muito excitado e confuso com a visão desta cena, tem vontade de se masturbar, matar o avô ou vomitar. Opta por se masturbar, mas
com ódio crescente prepara um plano para enforcar o avô. Antes de pôr seu
plano em prática, ele vai com o irmão a um rio, onde este o usa para mergulhar e resgatar anzóis dos pescadores, presos no lixo do fundo. Ele mergulha em meio a dezenas de objetos afundados, estragados, enferrujados que
jazem no fundo do rio e que sua fantasia transforma em um baú de tesouros
preciosos. Na outra margem há um cachorro morto, em estado de putrefação. A raiva de Léolo o mergulha em águas podres e mortas.
Na volta para casa encontram o marginal que havia batido em Fernand,
aquele que o motivou a fazer musculação e ficar forte. Fernand o enfrenta
apenas mostrando-lhe seus enormes músculos, como se isso fosse suficiente, porém não tem nenhuma coragem e apanha novamente, e fica encolhido no chão, em posição fetal, chorando como um bebê. Léolo fica entre
surpreso e frustrado com a incapacidade e a fraqueza do irmão. Percebe
que de nada adiantou o irmão ficar forte externamente. “Nesse dia entendi
que o medo vivia dentro de nós. E que uma montanha de músculos ou
milhares de soldados não mudariam nada”.
Leva, então, a cabo seu plano, e tenta matar o avô, enforcando-o no
banheiro, mas não tem sucesso na tentativa, e ainda fica seriamente ferido
ao cair de uma altura considerável. Vai para o hospital, muito machucado,
e é visto pela psiquiatra que atende a família, que lhe diz ter estranhado sua
atitude, já que ele nunca foi violento, e lhe pergunta se ele sabe o que é uma
tentativa de assassinato. Mas ele não fala com ela, apenas a olha. “Você
nunca foi violento, vai se destruir se continuar a achar que seu avô é o
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
responsável por tudo que acontece em sua família. Sua mãe é forte, muito
forte, é uma força da natureza, ela nunca perdeu a razão apesar de todas
as dificuldades que ela atravessou. Léo, você é muito parecido com ela.
Conheço seu medo mas não posso fazer nada, se não quiser falar comigo.” Mas ele continua mudo, sua raiva não o deixa receber a ajuda oferecida.
Léolo escreve: “Um vendedor ambulante grita no vazio: ainda há
bastante sangue esta manhã para manchar 100 páginas, ainda há gente o
bastante que compra para saciar sua raiva. Tiro minha pistola e atiro nos
carros. Miro meu fuzil e aponto para meu pai, tenho vontade de meter uma
bomba no seu traseiro...”. Sentado na mesa da cozinha, sozinho, ele escreve: “Talvez seja a hora de meter um cano na minha narina e espalhar meu
pensamento por todo o lado. Desgraçados! Eles teriam um susto ao me ver
estourado antes de receber a minha pensão.” Neste momento a porta da
cozinha se abre e uma luz intensa entra, tudo fica de um branco ofuscante e
ele não vê mais nada, só cegueira e nada mais. Ódio parricida, homicídio,
suicídio: o instinto de morte brilha intensamente e o cega.
Em seguida, cada vez mais só, vai ao hospital psiquiátrico visitar Rita.
“Mesmo se o instinto me conduz diretamente até lá, no quarto dela, perguntei o número de seu quarto, eu me senti estranho ao dar o sobrenome
dela, pois afinal era o meu também.” A irmã está amarrada ao leito, contida, fortemente sedada, ele afasta sua roupa e faz um tímido carinho nas
costas dela. “Foi a única vez que ousei fazer carinho em minha irmã. Neste
momento só pude pensar numa bela seqüência de um filme, e como sempre
eu me via representando a vida.” Ele leva para ela, como um melancólico
presente de despedida, o seu vidro de insetos vivos. Porém a mãe descobre
e depois, em casa, mata com água fervente todos os insetos e briga com ele
por tê-los levado para o hospital. Ele fica triste e leva os insetos mortos
para seu quarto e chora por eles. Pega o livro que sempre lê e, surpreendentemente, acha dentro dele o triângulo que faltava num disco quebrado que
havia juntado do lixo há uns tempos, quando catava jornais com seu irmão.
Ele cola o disco cuidadosamente, como se assim ele pudesse ser tocado
422 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 423
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
novamente. Infelizmente essa colagem das partes quebradas não funciona,
o disco não toca, de novo, a mesma música de sua infância.
Já em processo de desintegração psicótica passa noites em claro, lendo ou escrevendo, sem ver Bianca. Acha que ela se tornou muito exigente
e o está castigando porque sabe que ele a engana com Regina, uma putinha
do bairro. Delirando, ele se vê numa cidade da Sicília, chamando desesperadamente por Bianca, mas já é um chamado sem resposta. É encontrado
por seu irmão, no chão de seu quarto, todo vomitado. A mãe, logo que o vê
percebe o pior e lhe diz, chorando: “Não faça isso comigo, você não, você
é forte, não vá embora, não faça isso comigo!”. Sua invocação protetora
não mais o protege, “Porque eu sonho eu não o sou, porque eu sonho, eu
sonho, porque de noite me entrego a meus sonhos, antes de acolher o dia,
porque eu não amo, porque eu tive medo de amar eu não sonho mais... eu
não sonho mais.”
Por fim ele vai parar no hospital psiquiátrico, em estado catatônico, nu
e deitado numa banheira cheia de cubos de gelo, atendido pela psiquiatra
que cuidava de sua família. Ela o examina, entristecida e impotente, e pede
que aumentem a medicação antipsicótica. “Amanhã o levem para junto
dos outros membros de sua família.” O sentimento é de fracasso total, de
um mergulho definitivo no gelo e no isolamento da psicose familiar. As
luzes do hospital se apagam e começa uma noite densa e interminável,
porque Léolo já não sonha mais.
Nessa mesma noite, em sua casa, o domador dos versos lê, à luz de um
candelabro, o que Léolo havia escrito, por último, seu epitáfio: “A você
minha dama e audaciosa melancolia, que com um grito solitário me rasgou a pele, que oferece ao desgosto, a você que assombra minhas noites
quando não sei mais que rumo seguir, eu paguei cem vezes o que lhe devia... Das brasas dos sonhos só me restam as cinzas, da sombra da mentira
que você mesmo repetira para ouvir, e a plenitude branca não era como
um velho interlúdio e sim uma morena de canelas finas e malignas, que me
picou com o bico de pena de seu seio, em quem acreditei e só me deixou
remorso, de ver o dia nascer sobre minha solidão.”
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
Ele desce então com o candelabro na mão a um porão cheio de objetos
de arte, e pega numa estante o livro que Léolo tanto lia, A Devorada dos
Devorados. Antes de ser devorado Léolo havia escrito na primeira página:
“Irei descansar com a cabeça entre duas palavras, no vale dos devorados.” Ele guarda definitivamente os escritos de Léolo junto com o livro,
num nicho na estante, enquanto repete tristemente: “Léolo, Léolo.” A história de Léolo fica para sempre guardada junto às outras histórias no porão
do domador dos versos. Enquanto isso Léolo corre, descalço e sorrindo,
por um ensolarado vale italiano, finalmente livre das amarras da sua dolorosa realidade.
Ansiedades Psicóticas, Mecanismos Defensivos
Primitivos e Identificação Projetiva
O que procurei traduzir em palavras acima fica, infelizmente, bastante
longe da beleza plástica e da força das imagens do filme, difíceis de serem
transcritas sem perda considerável da fruição estética, e, principalmente,
do impacto emocional profundo, que o filme produz no espectador. Que
esta limitação possa ser transformada em incentivo a que se assista ao filme é o máximo que posso propor.
Na triste história de Léolo podemos ver com transparência as ansiedades mais primitivas assim como os mecanismos defensivos empregados
para dar conta delas, e por fim a história de seu fracasso, que resultou na
perda do contato com a realidade da psicose.
Estas ansiedades no entanto não são exclusivas de pacientes
psicóticos, e podem ser encontradas em fases normais do desenvolvimento
das crianças, e na vida adulta podemos experimentá-las, eventualmente,
em certas situações. Por outro lado, nos pacientes neuróticos mais graves
ou psicóticos, elas são rotineiras, ou melhor dizendo, uma forma rotineira
de funcionamento mental. O que vai fazer a diferença em cada caso é a
natureza, a intensidade e a freqüência do uso de tais defesas, sua adequação
ou não à situação ou ao contexto, e as limitações trazidas por elas.
Em Léolo predominavam intensas ansiedades psicóticas, contra as
424 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 425
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
quais lutava empregando defesas primitivas, como a cisão de impulsos e
objetos, e a projeção, na forma como utilizava a família para representar as
suas partes psicóticas, postas no avô, no pai, na irmã, suas partes frágeis e
incapazes, no irmão Fernand e suas partes idealizadas, novamente no
Fernand forte e musculoso, na mãe e em Bianca. Quando ele negava ser
filho de seu pai porque ele era louco, ou quando dizia ser filho do paitomate italiano, havia uma forte negação da realidade usada como defesa
contra uma desintegração temida ou já adivinhada. Defesas obsessivocompulsivas – ler compulsivamente, escrever compulsivamente, colecionar insetos – eram outras manobras defensivas importantes, através das
quais tentava controlar sua raiva e organizar, reunir em palavras ou em
insetos, os fragmentos de seu self que estavam sendo perdidos pelo uso
excessivo da cisão e da identificação projetiva.
Léolo intimamente sabia que convivia com a psicose, que colocava
como algo fora de si, mas ao mesmo tempo se sentia impotente diante do
que lhe estava fadado. Inconscientemente já sabia que a psicose não estava
apenas na família, mas dentro dele também, no mais profundo de seu ser,
exigindo mais e mais defesas contra ela.
Para M. Klein, a importância das ansiedades primitivas está no impacto que tais ansiedades e defesas vão ter sobre o desenvolvimento emocional futuro, a partir do desenvolvimento do ego, do superego e das relações
de objeto. Para ela o seio bom introjetado constitui uma parte fundamental
do ego, um ponto focal em torno do qual o ego se desenvolve e se organiza,
e assim contribui para o processo de desenvolvimento deste bem como
para as relações objetais. No entanto, ódio, frustração e ansiedade excessivas podem abalar a confiança no seio bom introjetado, que pode ser sentido
como se despedaçando.
Um ponto importante da teoria kleiniana é que a ansiedade se origina
da atuação da pulsão de morte, sob a forma do medo de aniquilamento.
Este impulso destrutivo é parcialmente defletido mas uma parte dele fica
no indivíduo, fazendo com que a ansiedade de ser destruído a partir de
dentro persista, produzindo importantes sintomas hipocondríacos. Daí tal-
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
vez a necessidade de Léolo repetir insistentemente a invocação “Porque eu
sonho eu não o sou...”, como uma reza protetora contra o instinto de morte
que o ameaçava desde dentro de si.
A projeção é um importante mecanismo para a deflexão do instinto de
morte para fora do sujeito, ajudando o ego a lidar com a ansiedade e livrando-o do perigo e de coisas más. Também a introjeção é uma defesa contra a
ansiedade (que diminui quando um objeto bom é introjetado). Ele usava
maciçamente a projeção, especialmente a identificação projetiva; todavia,
a introjeção de bons objetos não estava ao seu alcance, pois se sentia tão
cercado e invadido por objetos destruídos ou mortos que seus raros objetos
bons (a mãe, a psiquiatra, o velho leitor), eram impotentes para ajudá-lo,
pois não podiam ser adequadamente introjetados.
“...Conheço seu medo mas não posso fazer nada, se não quiser falar
comigo.”, diz a psiquiatra. Talvez o que ela não tenha percebido é que a ele
faltavam palavras para descrever ansiedades tão aterradoras, vivenciadas
antes mesmo das aquisições verbais. Ele estava falando, ao seu modo, mas
esta outra forma de linguagem ela não conseguiu ou não pôde escutar.
Idéias de homicídio (especialmente contra o pai e o avô) e de suicídio
estavam constantemente presentes, numa tentativa desesperada de fugir da
psicose através da destruição violenta dos objetos portadores das partes
psicóticas de seu self, projetados ou introjetados. Na verdade seu pensamento já estava espalhado por todo o lado, via cisão e projeção maciças.
Cada membro da família portava, por assim dizer, uma parte do self de
Léolo, e era por ele sentido de acordo com o elemento predominante dessa
projeção, dependendo do momento.
Outros mecanismos se ligam a estes citados acima, notadamente a
idealização e a negação, que se ligam à cisão. A idealização está intimamente ligada à cisão do objeto, para manter a salvo os bons objetos, tornando-se, assim, o corolário do medo persecutório. Assim Léolo cindia e idealizava Bianca, ignorando a prostituição dela com seu avô, e na parte idealizada dela colocava a salvo suas partes amorosas e sexuais, mas por fim
imaginava (de forma persecutória) que ela o estava abandonando proposi426 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 427
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
tadamente, por ter sabido da traição dele, e a idealização transformou-se
em perseguição, o objeto idealizado também tornou-se o objeto perseguidor e, com a perda deste último refúgio, seu frágil ego se desintegrou definitivamente.
Após a cisão uma parte do objeto é negada, assim como são negados a
dor e a frustração. Esta negação se dá através da onipotência, uma característica da forma arcaica da organização da mente. Isto empobrece o ego
pois toda uma parte sua, da qual emanam sentimentos pelo objeto, é negada. Neste processo Léolo perdeu, por exemplo, o contato amoroso com o
pai, pois tentava negar a dor e a frustração de amar aquele pai, atacado e
desvalorizado por ele, no qual colocava apenas seus sentimentos mais
destrutivos. Onipotentemente triunfava sobre o pai, ao não se considerar
louco como ele, cortava as ligações com ele para se proteger mas assim
também o pai perdia qualquer valor identificatório, capaz de fornecer a
Léolo a possibilidade da percepção e introjeção dos aspectos amorosos do
pai.
Através do uso excessivo desse mecanismos o ego fica debilitado, porque o componente agressivo perdido também está ligado ao poder, potência, força, aquisição de conhecimentos. Isto ocorre porque também são perdidas partes boas do self nesse processo (quando a expulsão é excessiva).
A projeção e a identificação com estas partes boas projetadas do self é útil
ao bebê para ajudá-lo a desenvolver boas relações de objeto e para integrar
o ego, mas, quando o processo é excessivo, as partes boas são sentidas
como perdidas e a mãe se torna o ideal do ego, aquela que detém tudo que
há de bom. Ocorre, então, uma identificação narcisista com essas partes
projetadas, e o resultado disso leva a uma dependência exagerada dos outros, que são tidos como os que contêm estas partes boas de si próprio. A
capacidade de amar parece estar perdida, pois o objeto amado é predominantemente amado por ser um representante do self, e não pelo seu valor
intrínseco. Por isso Léolo, mais do que amar, necessitava de Bianca vitalmente próxima a si.
Um outro traço característico da relação mais primitiva com o objeto
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
bom é a tendência a idealizá-lo e a mantê-lo separado do objeto frustrante.
Assim Léolo não tolerava, por exemplo, a proximidade de Bianca com seu
avô, que considerava o causador da desgraça familiar, e tentava matá-lo,
evidenciando, assim, que ele tinha em si os mesmos impulsos assassinos
do avô. Estas várias formas de cisão do ego e dos objetos têm, por resultado, o sentimento de que o ego está despedaçado, num estado de desintegração. A projeção de um mundo interno hostil leva à introjeção de um mundo
externo hostil e vice-versa. Neste processo não só o corpo, mas também a
mente pode ser controlada por outras pessoas de forma hostil, com uma
conseqüente retirada acentuada para o mundo interno (como se vê nos traços do caráter esquizóide) e uma necessidade muito grande de controle do
objeto (como se vê nos pacientes com fortes traços fóbicos e obsessivos).
Um exemplo dessa retirada é a descrição que Léolo faz de sua solidão:
“...minha solidão é o meu palácio... Quando estou sentado fora da minha
solidão estou sentado em exílio, estou sentado em terras impostoras.”
O objeto interno também é sentido como correndo o mesmo perigo de
destruição do objeto externo, e assim o resultado é um enfraquecimento do
ego, com a sensação de que não há nada que o sustente, e um correspondente sentimento de profunda solidão. A capacidade de reparação foi perdida também mas, num esforço desesperado e patético, ele tenta ainda uma
tosca forma de reparação dos objetos quebrados ao colar o fragmento do
disco que encontrou, mas é tarde demais, nenhuma música será ouvida, daí
em diante.
As várias formas de cisão do ego e dos objetos têm por resultado o
sentimento de que o ego está despedaçado, sentimento que corresponde a
um estado maior ou menor de desintegração (predomínio das partes
psicóticas), o estado em que Léolo fica no final, deitado numa banheira
cheia de cubos de gelo, estes representando, plasticamente, os inúmeros
fragmentos de seu self, congelados ao seu redor.
428 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
A tentativa de entendimento que procurei fazer do material acima,
utilizando para isso as idéias de Klein sobre aspectos do desenvolvimento
emocional primitivo, obviamente não esgota a riqueza de conteúdos e de
detalhes da história de vida de uma pessoa, nem dos diversos modelos teóricos que podemos lançar mão em nosso trabalho para melhor compreender nossos pacientes. Procurei apenas renovar a atenção para a existência
de ansiedades e defesas mais primitivas contra elas, e aspectos do que Bion
chamou de a parte psicótica da personalidade (Bion, 1957), que estão presentes em todos os nossos pacientes, mesmo os que, pelo menos à primeira
vista, não sejam tão graves quanto Léolo.
Hoje em dia não pensamos mais apenas em termos de seguir e desvendar a rota dos impulsos instintuais reprimidos, de fixação da libido ou de
regressão da libido a estes pontos de fixação, mas também em termos de
conflitos intrapsíquicos entre diferentes instâncias mentais ou diferentes
partes do self, de problemas originados de falhas na maternagem e da não
progressão para etapas mais amadurecidas de funcionamento mental, bem
como de um desenvolvimento deficitário do pensamento, da subjetividade
e da intersubjetividade, o que exige um outro tipo de escuta e de técnica
mais sofisticados. Sem uma acurada percepção e uma cuidadosa abordagem destes aspectos no processo terapêutico, nosso trabalho corre o risco
de ficar paralisado, sem rumo ou se perder na superficialidade de uma tradução simplista dos efeitos dos instintos em sua busca por descarga.
Apesar das críticas em contrário, Melanie Klein sempre se considerou
seguidora de Freud, mesmo quando ampliava, discordava ou oferecia novos ângulos de visão para criações dele (Édipo precoce, formação do superego, etc.). Como ela, devemos seguir Freud também nisso, lembrando
que ele não se deteve na primeira tópica quando descobriu, na prática clínica, que novos problemas exigiam novas soluções e ousou ir adiante, repensando constantemente sua criação.
Para concluir, penso que precisamos ser, como terapeutas, também
nós um pouco “domadores de versos”, aqueles que buscam e juntam palaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 429
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Conclusão
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
vras, imagens e sonhos com os sentimentos, e através disto procurar
reconstituir e compreender a vida daqueles que estão diante de nós, pedindo ajuda. Precisamos ter também em nós um pouco de Dom Quixote, ajudando nossos pacientes a lutar contra o isolamento e o precipício da doença
mental, e dizer aos nossos pacientes, mesmo aos mais graves que: “É preciso sonhar...”.
Sinopse
O autor, utilizando-se da rica história de um filme sobre um pré-adolescente
que luta contra o adoecer mental numa família psicótica, retoma o clássico artigo
de Melanie Klein de 1946, onde ela estabelece o conceito seminal de identificação projetiva e discute o papel das ansiedades primitivas sobre o desenvolvimento
psicológico e suas conseqüências para a saúde e a doença mental. Ressalta esses
conceitos como uma evolução da teoria e da técnica psicanalítica clássica, e não
um rompimento com ela, permitindo a abordagem de pacientes até então considerados não analisáveis, assim como a análise de crianças com uma técnica psicanalítica próxima da que se emprega com adultos, sem a necessidade de recorrer
a medidas não analíticas.
Assinala também os desenvolvimentos permitidos por esses conceitos para
o campo analítico, em termos de um novo entendimento da contratransferência,
da intersubjetividade e do papel do par analítico, entre outros.
Summary
The author, through a film about a pre-adolescent who fights against mental
illness in a psychotic family, studies the classical report of Melanie Klein, 1946,
where she sets in the seminal concept of projective identification and discusses
the role of primitive anxieties on psychological development and its consequences
on mental health and illness.
He states this concepts as an evolution in theory and technic, not a rupture
with the classical one, permiting the approach to patients until then considered
without possibilities of psychoanalysis, and treatment of children with a classical
technic, without extra-analytical measures, and shows how this concepts allow a
new light and understanding to the analytical field, in terms of a new
430 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sinopsis
El autor, utilizando la rica história de una película donde un pre-adolescente
lucha por no enfermar-se mentalmente en una família psicótica, retoma el clásico
trabajo de Melanie Klein de1946, cuando ella establece el seminal concepto de
identificación proyetiva, y discute el papel de las ansiedades primitivas en el
desarrollo psicológico y sus consecuencias para la salud y la enfermedad mental.
Subraya los referidos conceptos como una evolución de la teoria y de la técnica
psicoanalítica clásicas y no una ruptura, permitiendo el abordaje de pacientes
considerados como no analisables, bien como el análisis de niños, con una técnica psicoanalítica cercana a la que es empleada con adultos, sin tener que recurrir
a medidas no analíticas.
Destaca los desarrollos permitidos por estos conceptos para el campo analítico, en lo que se refiere a una nueva comprensión de la contratransferencia, de la
intersubjetividad y del papel del par analítico, entre otros.
Palavras-chave
Ansiedades primitivas; Psicose; Psicanálise infantil.
Key-words
Primitive anxieties; Psychosis; Children psychoanalysis.
Palabras-llave
Ansiedades primitivas; Psicosis; Psicoanalisis infantil.
Bibliografia
BION, W. Diferenciação Entre a Personalidade Psicótica e a Personalidade NãoPsicótica in “Estudos Psicanalíticos Revisados (Second Thoughts)”, Cap. 5,
p.55-77. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994.
FREUD, S. Análise de Uma Fobia Em Um Menino de Cinco Anos in Edição
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 431
Marco Aurélio Crespo Albuquerque
compreehension of countertransference, intersubjectivity and the role of analytical
pair, among others developments.
“PORQUE EU SONHO EU
NÃO O
SOU...”
Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud;
Volume X. Rio de Janeiro: Imago Editora, em CD-ROM.
GRINBERG, L.; SOR, D.; BIANCHEDI, E. Pensamiento in “Nueva Introdución
a las Ideas de Bion”; Cap. 3; págs. 53-66. Madrid: Julián Yébenes S.A. Editores, 1991.
RACKER, H. “Estudos Sobre Técnica Psicanalítica”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
HEIMANN, P. On counter-transference; Int. J. Psycho-Anal. 31:81-84, 1950.
KLEIN, M. Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides in “As Obras Completas de Melanie Klein; vol. 3; Inveja e Gratidão e outros trabalhos (19461963)”; Cap. 1; págs. 20-43. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991.
LÉOLO. Les Productions du Verseau and Flach Film; Le Studio Canal Plus with
the participation of The National Film Board of Canada; Director: JeanClaude Lauzon; 1992.
OGDEN, T. The Analytic Third: Working with Intersubjective Clinical Facts, in
“Subjects of Analysis”; Cap. 5; págs. 61-95. London: Jason Aronson Inc.,
1994.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Marco Aurélio Crespo Albuquerque
Rua Tobias da Silva, 85/506
90570-020 Porto Alegre – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
432 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Marco Aurélio Rosa
Membro Titular em Função
Didática da SBPdePA (Sociedade
Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre)
Inicialmente, os psicanalistas
se mantiveram afastados do tratamento das patologias graves, as
neuroses narcísicas, que englobavam o narcisismo patológico, e as
psicoses. Os parâmetros teóricos
iniciais afirmavam que, se nas neuroses narcísicas não ocorria o vínculo transferencial, elas seriam inacessíveis à Psicanálise. Contudo, o
interesse de Freud e dos primeiros
psicanalistas por essas patologias
era grande; significava um verdadeiro desafio. O trabalho sobre
Schreber, de 1911, atesta este fato.
O interesse em enfrentar essas dificuldades envolveu, cada vez mais,
os psicanalistas na pesquisa e tratamento das patologias graves.
Vou abordar um vértice desta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 433
Marco Aurélio Rosa
O Prazer
Perverso nos
Descaminhos da
Destrutividade
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
questão, o que Freud chamou de fusão e desfusão pulsional. Uma perturbação na economia pulsional, que provoca um desequilíbrio nos componentes de Eros e Tanatos e altera os critérios de operatividade das forças de
autoconservação.
Em seu “Vocabulário da Psicanálise” (1970), Laplanche e Pontalis
afirmam:
“fusão e desfusão são termos usados por Freud, no quadro de
sua última teoria das pulsões, para descrever as relações das pulsões
de vida e das pulsões de morte, tais como se traduzem nesta ou naquela manifestação concreta. A fusão é uma verdadeira mistura em que
cada um dos dois componentes pode entrar em proporções variáveis,
e a desfusão designa um processo cujo limite redundaria em um funcionamento separado das duas espécies de pulsões, em que cada uma
procuraria atingir o seu próprio alvo de forma independente”
(p.266). “Desfusão designa o fato de a agressividade ter quebrado os
laços com Eros” (p.267). Mais adiante, afirmam os autores: “a
desfusão poderia definir-se como o resultado de um processo que forneceria a cada uma das pulsões a autonomia de seu alvo” (p.268).
Em 1920, em “Além do Princípio do Prazer”, Freud antecipou o conceito de fusão pulsional em termos de “mitigação” e mescla de pulsões de
Eros e Destrutividade. A teoria biológica das pulsões inclui a noção de que
as duas pulsões estão inerentemente fusionadas. O Ego faz uso da libido e
a energia agressiva neutralizada também é usada pelo Ego em suas funções
(Hartmann, 1948; 1955).
Em 1923, em “O Ego e o Id”, Freud afirmava:
“uma vez que tenhamos admitido a idéia de uma fusão das duas
classes de pulsões, uma com a outra, a possibilidade de uma desfusão
– mais ou menos completa – se impõe a nós. O componente sádico da
pulsão sexual seria o exemplo clássico de uma fusão pulsional útil, e
o sadismo que se tornou independente como perversão seria típico de
434 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Em 1933, Freud retomou a discussão, afirmando que:
“as fusões podem desfazer-se, e podemos supor que o funcionamento será afetado de forma muito grave por desfusões desta espécie.
Estas concepções, porém, ainda são demasiado novas; ninguém ainda tentou aplicá-las em nosso trabalho” (p.131).
Em 1937, em “Análise Terminável e Interminável”, Freud discutia a
formação do conflito psíquico e indagava se não se deve, a partir de um
novo ângulo, compreender a questão em termos de um elemento de
agressividade livre (p.278).
Em 1938, no “Esboço da Psicanálise”, Freud discorria:
“o poder do Id expressa o verdadeiro propósito da vida do organismo do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas necessidades
inatas. Nenhum intuito tal como o de manter-se vivo ou de proteger-se
dos perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao Id. Essa é
tarefa do Ego, cuja missão é também descobrir o método mais favorável e menos perigoso de obter satisfação levando em conta o mundo
externo” (p.173). Mais adiante, no mesmo trabalho: “Existem alguns
neuróticos em quem, a julgar por todas as suas reações, a pulsão de
autopreservação na realidade foi invertida. Eles parecem visar a nada
mais que a auto-lesão e a auto-destruição. É possível também que as
pessoas que, de fato, terminam por cometer suicídio pertençam a este
grupo. É de se presumir que, em tais pessoas, efetuaram-se desfusões
de pulsões de grandes conseqüências, em razão do que houve uma
liberação de quantidades excessivas de pulsão destrutiva, voltada
para dentro” (p.208).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 435
Marco Aurélio Rosa
uma desfusão, embora não conduzida a extremos... e viemos a compreender que a desfusão pulsional e o surgimento pronunciado da
pulsão de morte exigem consideração específica entre os efeitos de
algumas neuroses graves” (p.56-7).
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
O Ego investido de tensões destrutivas pela desfusão pulsional tornase inapto para proteger a vida. As forças de autoconservação, derivadas de
Eros, são prejudicadas ou anuladas em sua função primordial.
O Superego tem três funções: auto-observação, consciência moral e
formação de ideais. Estas três funções podem ter uma conotação sádica ou
protetora, dependendo de como tratam o Ego. A ação sádica se deriva, de
modo importante, da agressão voltada para o interior, investindo a
estruturação do Superego.
A inversão da força de autoconservação, descrita por Freud, se observa no suicida, melancólico, em pacientes que desenvolvem severos quadros de reação terapêutica negativa. Maldavsky sugere que estes problemas não ocorrem só por sentimentos inconscientes de culpa, mas por inversão da pulsão de autoconservação. Também, em sua opinião, quanto
mais o corpo é envolvido (graves perturbações psicossomáticas, adição a
drogas pesadas, acidentes repetidos por condutas de risco), mais se deve
pensar em algo além da interferência do Superego.
Quando a pulsão de morte, representada pela destrutividade, apresenta-se livre e se volta contra o sujeito, investindo o Ego e Superego, corrompe as forças de autoconservação. A resistência do Superego assim investido e o funcionamento degradado das forças de autoconservação decidem,
então, a gravidade e o prognóstico do paciente.
Rosenfeld (1971) lembra que a pulsão de morte não pode ser observada em sua forma original, mas ela se torna manifesta como tendências
destrutivas contra os objetos e o Self e afirma que estes processos parecem
operar, em sua mais virulenta forma, nas severas perturbações narcisistas.
Ele também afirma que:
“o bebê tem de desenvolver um Self ou um Ego, o meio para lidar
com os impulsos e as necessidades oriundas das pulsões de vida e de
morte e arranjar um modo de se relacionar com objetos e de expressar amor e ódio. Neste contexto, a teoria formulada por Freud a respeito da fusão e desfusão parece crucial (...). Ao analisar sintomas
clínicos, tais como desejo de morrer ou de recolher-se a um estado de
436 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Observa-se, nestes casos, como já acentuei em trabalho anterior (Rosa,
1983), seguindo uma linha de pensamento de Meltzer, uma verdadeira submissão à tirania interna, aos aspectos destrutivos do Self, que aprisionam o
paciente e impedem os laços amorosos que possam gerar confiança e aceitação de vínculos e entre estes, especificamente, os de ligação ao analista,
com possíveis sentimentos de dependência a ele. Configura-se uma maneira de viver, uma verdadeira adição à tirania.
Kernberg (1975) fala em “autodestrutividade primitiva” como uma
síndrome de pacientes fronteiriços (p.19). São pacientes que apresentam
uma descarga indiscriminada de agressão contra o mundo externo ou contra seu próprio corpo ou sua mente. Pessoas com marcada
autodestrutividade, sem um Superego bem integrado. São aqueles pacientes que conseguem certo alívio de sua ansiedade e culpa ferindo-se,
acidentando-se com facilidade ou vivendo em situações de grande perigo,
físico ou moral. Kernberg afirma que, sob o ponto de vista dinâmico, prevalecem nesses pacientes conflitos pré-edípicos, com fusão e desfusão bastante primitivas das pulsões agressivas e libidinais.
Podemos pensar as patologias graves como inseridas nessa linha de
pensamento. São os pacientes que se nos apresentam como casos
desesperadores, em que nossa empatia e nosso senso psicanalítico de ajudar podem ficar prejudicados. Pessoas que se apresentam em constante
namoro com o sofrimento intenso ou com a morte. São os casos mais graves que nos chegam ao consultório, que vivem fora de hospitais. Constituem os pacientes narcisistas severos, borderline esquizoparanóides, melancólicos, perversos e psicossomáticos graves. Deixo de lado propositalmenSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 437
Marco Aurélio Rosa
vazio ou apatia, que à primeira vista poderiam ser considerados manifestações da pulsão de morte definida por Freud como uma pulsão
primária para a morte, descobri, realizando uma investigação mais
detalhada, que geralmente há uma destrutividade ativa envolvida, a
qual foi dirigida pelo Self não apenas contra objetos, mas contra partes do próprio Self” (Rosenfeld, 1987, p.142-3).
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
te os psicopatas transgressores, porque esses comparecem para tratamento
com extrema raridade.
Que fazer? A psicanálise pode curá-los? Ou somente ajudá-los em
resoluções, evitando que se destruam? Sem uma postura pessimista, esta é
a nossa dúvida frente às patologias graves.
Todos os psicanalistas que se dedicam a tratar esses pacientes sabem
que vale a pena. Não há saída, a psicanálise é o recurso heróico.
Vou apresentar um exemplo clínico que ilustra esta abordagem. João é
um paciente de 34 anos, solteiro, profissional liberal que ocupa posição
importante na comunidade onde vive e trabalha. Procura-me por se sentir
muito infeliz, incapaz de obter satisfações em qualquer esfera de sua vida.
Sente-se dominado por raiva, que o leva a um retraimento social e desconfiança das pessoas. Sua conduta é desafiadoramente agressiva e perigosa
para si. Queixa-se de um pai hostil, castrador, que sempre o desprezou, e de
uma mãe que não era má, mas indiferente, porque nunca o defendeu adequadamente do pai. Sua avó materna era o único objeto de amor e confiança. Tem irmãos com quem sempre rivalizou e em quem não confia. Mas
tinha, no passado, uma admiração grande por uma irmã muito bonita.
Seu pai era descrito como extremamente sádico, que se comprazia em
agredir física e moralmente o filho. Aplicava-lhe surras que deixavam hematomas e ferimentos. Com freqüência o envergonhava frente a outras
crianças. Certa vez, por uma pequena travessura que o paciente praticou, o
pai foi tomado de uma fúria descontrolada, pegou um chicote e foi procurálo. Encontrou o menino em frente da casa, em uma roda de crianças, e
começou a gritar e chicotear o chão para fazê-lo pular. Gritava, desvairado:
“canta e dança, sem-vergonha; vais aprender a não mais praticar
safadezas”. O paciente tinha, então, sete ou oito anos de idade. Cantava e
dançava sob as gargalhadas dos meninos e meninas de sua roda. A opressão paterna se tornou tão insuportável, segundo suas palavras, que, por
essa época, tentou fugir de casa. Saiu na companhia de um pequeno circo
que visitou sua cidade. Queria se livrar de qualquer maneira da agressão
mortífera do pai e da indiferença da mãe, fugir de um lar desprovido de
438 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 439
Marco Aurélio Rosa
amor e proteção (palavras suas). Foi encontrado, três dias depois, em um
acampamento do circo, à beira de uma estrada.
Outra atitude freqüente de seu pai era atacar a imagem corporal do
filho. Pelo simples fato de ele ter algumas proeminências ósseas no tórax e
de ser muito magro, o pai o chamava de aleijado e dizia que nunca seria
igual aos outros meninos. Ou ficaria atrofiado no seu físico ou não poderia
sobreviver, morrendo precocemente. Estes são os diálogos com o pai que o
paciente mais recorda. Disse-me, várias vezes, não se lembrar de nenhuma
aproximação amigável ou amorosa do pai.
Iniciou a análise com humor irritado e tristeza. Muito intolerante, não
aceitou, de início, que eu tratasse de questões que ele ainda não admitia
debater. Por vezes, gritava nas sessões, ofendia-me, ameaçava-me, dizendo-se mais forte do que eu e que eu deveria temê-lo. Ficava ofendido e
raivoso quando eu interpretava ou tocava em algo que o contrariava. Realizava o que Kernberg (1975) chama de exoatuações transferenciais (p.85):
em lugar de expressar verbalmente sua raiva e desconfiança, ele gritava e
acusava, ameaçava se retirar, se sentia atingido, como se a atitude do analista fosse nefasta e perseguidora. São ações diretas ao invés de
verbalizações.
Isto não se constitui em reações exclusivas dos pacientes fronteiriços,
mas os pacientes neuróticos só realizam esses quadros de descontrole em
situações especiais de intensa regressão e respondem mais prontamente ao
trabalho interpretativo. O paciente fronteiriço tende a atuar, na transferência, estas situações, sempre que o analista esteja trabalhando em pontos
que mobilizem sua angústia, o que pode desorganizar seu Ego frágil em
que predominam mecanismos dissociativos e projetivos intensos e persistentes. Estas atuações transferenciais ligam-se a descargas pulsionais representadas pela agressão pré-edípica. Quando são frustrados os desejos,
ocorre como reação uma raiva acusatória, pela pequena capacidade de frustração que apresentam e pela identificação do analista com os objetos sádicos e frustradores do mundo interno do paciente. Além das atuações
transferenciais, o paciente psicótico, borderline ou narcisista pode atuar,
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
intensa e perigosamente, fora do consultório.
Voltando ao paciente citado no início, quando sentia que suas atuações na transferência não surtiam efeito, partia para ameaças contra sua
vida, um antigo hábito, em atitudes desafiadoras de alto risco. Fazia apostas consigo mesmo para ver se, “naquela curva, o carro conseguiria dobrar
ou capotaria”, dirigindo em alta velocidade. (Há muitos anos, caiu em um
despenhadeiro com o carro, viu que iria morrer, sentiu-se bem, pensou
“agora acabou, vem a paz”. O carro esbarrou em uma árvore, e ele foi
resgatado pelo guincho da polícia rodoviária, sob a vista de inúmeros transeuntes.)
Quando estava muito angustiado, sentia necessidade de atuar (palavras suas). Começava a beber, aplacava sua crítica e seu controle e saía às
ruas, à procura de parceiros para relações homossexuais. Essas se constituíam em carícias, admiração pelo corpo dos homens jovens que buscava,
felação e relações anais. Procurava parceiros em vilas de marginais, onde
sabia que o perigo era muito grande, e, por duas vezes, quase foi morto.
Chegou a levar um marginal para sua casa, ocasião em que foi agredido e
roubado. Sentia um prazer diferente (palavras suas) nessas condutas de
alto risco.
Nesse momento de sua análise, foi necessário um trabalho exaustivo
de interpretação sobre sua conduta autodestrutiva. Ele respondia com raiva
ou com risos debochados, dizendo que eu estava assustado. Mostrava-lhe
que procurava tornar impossível o trabalho analítico, pois, frente a qualquer contrariedade, ameaçava-me com uma conduta de alto risco contra
sua vida. Que pretendia que eu aceitasse na íntegra sua atitude desafiadora
de grande perigo ou não tocasse em pontos sensíveis. Compreendeu a reação esterilizante que usava contra a análise e arrefeceu as atuações
autodestrutivas.
É difícil para o analista trabalhar com o paciente, sabendo que ele
corre risco real de vida, quando as interpretações o angustiam de maneira
desorganizadora. Por isso, é preciso ir devagar nos pontos dolorosos para
ele, mostrando sempre sua reação constrangedora para o processo de análi440 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 441
Marco Aurélio Rosa
se. Com os pacientes fronteiriços, as atuações, que são toleradas nos neuróticos como fazendo parte de sua evolução, tornam-se potencialmente perigosas. Devem ser contidas no seu aspecto mais destrutivo, através de um
atento trabalho interpretativo, porque, se não for assim, terminam por atingir o analista, que passa a se preocupar em demasia com o destino do paciente. João tem de chegar ao limite do desastre, é assim que lida com as
pulsões autodestrutivas. E sente um grande prazer e alívio nessas atitudes.
Na evolução desses pacientes, é preciso observar suas oscilações analíticas e o perigo advindo disto, que se deve a atuações limítrofes em termos de periculosidade. Nesses momentos, parece que estamos diante da
falência das forças de autoconservação.
O analista trabalha no conflito primitivo, mas, com esses pacientes,
nos momentos críticos, é obrigado a operar também no plano das tendências autoconservadoras. Porque a vida é que está em risco. Então, sua
conduta interpretativa oscila de níveis.
João busca socorro, procura se analisar, faz um grande sacrifício para
isto, mas sua parte cooperadora é anulada pela parte destrutiva, dinamizada
por seu desespero, o sentimento de vazio, de ausência de esperança, segundo palavras suas. Procura conter seu homossexualismo, atuando em zonas
escolhidas, para evitar ser descoberto. Mas isto é só racionalização, o que
faz é para ser desmascarado e denegrido por todos. Quando não tem alguém para odiar (o pai, por exemplo), parte para atuações destrutivas. Elimina a parte crítica preservadora do self com o álcool, as pulsões tanáticas
ficam liberadas, e a conduta assume a forma destrutiva. Suas pulsões
destrutivas se voltam contra si e o levam para a loucura ou para a morte,
segundo sua crença.
Com a desfusão pulsional, as pulsões tanáticas agem isoladamente,
desligadas da ação mitigadora de Eros. Não havendo esta ação de Eros, a
autoconservação entra em falência.
Periodicamente, tem de beber muito para “poder descarregar” (sic),
porque sente uma tensão interna enlouquecedora, que deve ser deslocada
para o exterior, mesmo que seja sob a forma de conduta de alto risco. Arris-
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
ca-se loucamente para exorcizar a loucura. O que dramatiza, então, é que,
exercendo uma conduta “quase” psicótica e “quase” suicida, evita a loucura e a morte. Caminha na beira do precipício.
Em uma descrição fenomenológica, observamos uma verdadeira submissão a um tirano interior, que o conduz para a vergonha e o perigo, do
que vem a se arrepender depois, deprimindo-se e se acusando. Por exemplo, está com uma amiga num bar, bebe, fica embriagado, larga a mulher e
sai em busca de marginais. Ocorre-lhe, neste momento, esta idéia: “larga
essa mulher, canalha, e vai procurar um marginal, que é só o que consegues, só a escória social pode gostar de ti”. O paciente sente como que uma
voz interior, representante do pai odiado que o oprimia. Parece-me que os
ataques sádicos do pai desorganizaram sua economia pulsional, liquidando
com seu self amoroso e liberando, em certos momentos, seu self destrutivo.
Sempre há um argumento sedutor e canalha da parte tirânica do self para
dominar a parte mais sadia. É o que ocorre com o drogado e o alcoolista:
“esta noite é a última vez, não faz mal que eu beba só mais nesta ocasião,
será a última”. É como a voz de um Superego arcaico e perseguidor que
engana o Ego, segundo Angel Garma expressa em um dos seus trabalhos.
O paciente é muito sensível a qualquer resposta de minha parte que
possa interpretar como desconsideração. Não pode acreditar em qualquer
manifestação carinhosa ou empática de parte do pai ou do analista. Disseme certo dia: “tu podes trabalhar em cima da seguinte idéia que meu pai
tinha de mim: ‘tu não vales nada, és lixo, não fazes falta para ninguém’ ”. A
mãe não é tão odiada, mas é uma mulher inconfiável, porque nunca se opôs
ao pai. A avó idealizada era o único objeto de amor. Mas João relata que
esta avó teve dois surtos de psicose puerperal. A mãe teve um surto
psicótico, com despersonalização e idéias delirantes de referência e perseguição, quando o paciente tinha 10 anos de idade. Seu destino trágico se
ligava ao fato de ser filho de um paranóico e de uma provável
esquizofrênica.
Certa vez, o paciente trouxe um diálogo entre um soldado e o médico
do quartel: “o que pensas disto?”, pergunta o médico; “eu não penso, eles
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 443
Marco Aurélio Rosa
pensam por mim”; “mas o que achas disto, de pensarem por ti?”; “nada,
eles pensam e fazem e pronto”. Esta idéia associativa surgiu vinculada à
sua conduta perturbada, a seus ódios e queixas. É um diálogo fechado, sem
saída, entre a parte tirânica destrutiva e o lado dominado, entre o pai opressor e a criança indefesa. De mim sempre espera aplauso e aceitação como
única maneira de se sentir melhor. Por ele, não consegue alcançar a esperança.
Nestes casos, é preciso encontrar-se acesso aos aspectos amorosos do
self, como afirma Rosenfeld (1971), resgatar o self amoroso cooperador,
capaz de formar bons vínculos e restaurar a estruturação danificada do
mundo interno. Este paciente já consegue trabalhar melhor e conter parcialmente sua conduta autodestrutiva, às vezes ri na sessão, mostrando alegria, fato inexistente no passado. Mas é um caso de prognóstico muito reservado.
Conseguir vínculos com o self amoroso do paciente melhora a relação
analítica com o desenvolvimento de um grau de confiança, com conseqüente desinvestimento da parte agressiva do self. Começa a ocorrer uma
modificação na economia psíquica.
Os pacientes narcisistas graves sentem-se em perigo ao colaborar com
o analista. Por isso, atacam seu lado cooperador, encarando como fraqueza
“se dobrar” ao analista. O lado amoroso e cooperador é capaz de formar
vínculos, e, assim, podem ocorrer modificações. Isto põe em risco a
hegemonia do “self grandioso narcisista”, onipotente e pleno de fantasias
de poder. Rosenfeld (1971) afirma que o “self narcisista” traz uma impressão de segurança ao paciente. A agressividade do self narcisista se manifesta, francamente, com seu potencial de ódio e desprezo aos objetos e a
toda manifestação de realidade que constitua uma ameaça de ruptura da
fantasia primitiva de um Ego de prazer puro, base primordial da conjuntura
narcisista.
A aproximação vincular analítica através das interpretações tem de
ser paulatina, porque senão o paciente se retrai ou foge. As interpretações
devem se dirigir não só aos conteúdos destrutivos, mas sempre, também, à
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
parte amorosa cooperadora do self, responsável pela presença do paciente
no consultório psicanalítico. Esta dupla direção de objetivos tende a diminuir as dissociações, favorecendo a integração de um self dissociado. Modifica, passo a passo, as falsas crenças (“misconceptions”, expressão de
Money-Kyrle) do paciente sobre a vida e os objetos. Uma ação
interpretativa muito intensa leva a um retraimento; o paciente teme perder
a aura protetora narcísica, sua maneira de se defender. Teme também cair
em uma dependência escravizante do analista.
A contratransferência é atingida na análise com estes pacientes. Ou
contemos certas interpretações, para não provocar situações difíceis ou
limítrofes, ou realmente somos tocados por preocupação excessiva. Então,
torna-se difícil tratar estes pacientes, não só por sua patologia grave, como
também pela contratransferência sobrecarregada.
O sentimento de vazio que João relata é a conseqüência do predomínio do ódio frente ao amor. O vazio é “vazio de amor”. O velho ditado
popular “falem mal de mim, mas falem” significa: “não me esqueçam, que
exista um vínculo”.
Como regra geral, a interpretação de conteúdos angustiosos pode ser
feita sempre que o analista sinta que o vínculo analítico seja capaz de sustentar reações de angústia ou agressividade resultantes da interpretação. A
interpretação mais profunda, que desperte angústias primitivas
persecutórias, deve ser preparada por intervenções interpretativas. Se for
possível, é bom que o paciente consiga chegar ao insight da situação sozinho ou junto com o analista. Isto evita o impacto ao seu Ego frágil.
É necessário sempre buscar e ter em vista, na relação, o self colaborador amoroso do paciente.
A entonação da voz é fundamental. Os pacientes borderline e narcisistas, devido à presença de ansiedades paranóides, com facilidade levam uma
manifestação do analista para o lado de uma agressão.
São os momentos extremos do trabalho analítico, em que o analista é
mais exigido. É necessário suportar, por longo tempo, uma situação grave
que não se modifica, em que somos tratados como um simples apêndice do
444 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sinopse
O autor apresenta uma abordagem realçada por Freud em alguns trabalhos
para a compreensão teórica e aproximação terapêutica de patologias graves como
narcisistas, borderline e psicóticas. Em 1920, 1923, 1933, 1937 e 1938, Freud
apontou a importância de valorizar o fenômeno da fusão e desfusão pulsional
para a compreensão de algumas patologias graves. A desfusão provoca uma alteração na operatividade das forças de autoconservação, nas relações internas do
self e com os objetos. A inversão das forças de autoconservação se observa no
suicida, no melancólico, nos quadros de severa reação terapêutica negativa e graSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 445
Marco Aurélio Rosa
paciente. Tudo que dizemos é sentido como algo desvalorizado ou perseguidor. Pode nos parecer que estamos frente a uma tarefa de Sísifo.
Lentamente, quando se consegue tocar o self amoroso, vai se formando um processo de insight e modificação.
Nos períodos iniciais, a angústia sobrepaira nesses vínculos analíticos. Se o analista procura apressar o processo, o paciente não suporta e
abandona o tratamento.
O confronto do self destrutivo com o self amoroso, da parte psicótica
da personalidade com a realidade da vida e das relações, é, no início, frustrante. Parece que Tanatos sempre vence Eros. Porém, com o tempo, vão se
formando pequenos núcleos vinculares no paciente, de aceitação da análise.
A cada conquista destas, por pequena que seja, o paciente sente que
avançou um pouco, e sua vida se torna mais tolerável.
Do lado do analista, a persistência e a crença no valor fundamental da
Psicanálise é um dado basilar. Para isto, é claro, o analista precisa estar
com seus núcleos residuais narcisistas bem analisados, porque, senão, ele
não suporta um longo período de riscos e frustrações, como ocorre na análise desses pacientes graves.
Mas, no fim e ao cabo, se o paciente persiste na análise, sentimos que
valeu a pena a longa e tempestuosa travessia.
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
ves perturbações psicossomáticas. A pulsão de morte representada pela
destrutividade quando desfusionada de Eros leva a atuações limítrofes. A Psicanálise é apresentada como um recurso heróico no tratamento destas perturbações.
O material clínico refere-se a um paciente gravemente enfermo, cujas atuações
extremas eram um verdadeiro flerte com a morte. A transferência destes pacientes é sempre muito perturbada e a contratransferência sobrecarregada. Uma atitude de tolerância, paciência, empatia e confiança no trabalho psicanalítico é fundamental na pessoa do analista.
Summary
The author presents an approach enhanced by Freud in some works for the
theoretical understanding and therapeutic approach of serious pathologies such
as narcissistic, borderline and psychotic. In 1920, 1923, 1933, 1937 and 1938,
Freud pointed to the importance of valuing the phenomenon of fusion and defusion
of drives for the understanding of some serious pathologies. The defusion provokes
an alteration in the operativeness of the self-preservation forces, in the internal
relations of the self and with objects. The inversion of the self-preservation forces
is observed in the suicide, in the melancholic, in the frames of severe negative
therapeutic reaction, and serious psychosomatic disturbances. When the death
drive, represented (performed) by the destructiveness, is defused of Eros it leads
to bordering acting. The Psychoanalysis is presented as a heroic resource in the
treatment of these disturbances. The clinical material refers to a seriously ill patient whose extreme actings were a true flirt with the death. The transference of
these patients is always very disturbed and the countertransference is overburden.
An attitude of tolerance, patience, empathy and trust in the psychoanalytic work
is fundamental in the analyst’s person.
Sinopsis
El autor presenta un abordaje destacado por Freud en algunos trabajos para
la comprensión teórica y aproximación terapéutica de patologías graves como
narcisistas, borderline y psicóticas. En 1920, 1923, 1933, 1937 y 1938, Freud
señaló la importancia de valorar el fenómeno de fusión y defusión pulsional para
la comprensión de algunas patologías graves. La defusión provoca una alteración
en la operabilidad de las fuerzas de auto conservación, en las relaciones internas
del self y con los objetos. La inversión de las fuerzas de auto conservación es
observada en el suicida, en el melancólico, en los cuadros de severa reacción
terapéutica negativa y de graves perturbaciones psicosomáticas. La pulsión de
446 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Palavras-chave
Prazer perverso; Fusão e desfusão pulsional; Economia pulsional; Forças de
autoconservação; Pulsão de morte; Autodestrutividade primitiva; Tirania interna;
Atuações limítrofes; Atuações transferenciais; Self amoroso, cooperador; Self
narcisista, destrutivo.
Key-words
Perverse pleasure; Fusion and defusion of drives; Driving economy; Selfpreservation forces; Pulse of death; Primitive self-destructiveness; Inner tyranny;
Border acting; Transferential acting-outs; Loving, cooperating Self; Narcissistic,
destructive self.
Palabras-llave
Placer perverso; Fusión y defusión pulsional; Economía pulsional; Fuerzas
de auto conservación; Pulsión de muerte; Auto destructividad primitiva; Tiranía
interna; Actuaciones limítrofes; Actuaciones transferenciales; Self amoroso,
cooperador; Self narcisista, destructivo.
Bibliografia
FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1972. v.XVIII.
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______. (192033). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Obras
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v.XXII.
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Marco Aurélio Rosa
muerte representada por la destructividad cuando defusionada de Eros lleva a
actuaciones limítrofes. El Psicoanálisis es presentado como un recurso heroico en
el tratamiento de estas perturbaciones. El material clínico se refiere a un paciente
gravemente enfermo, cuyas actuaciones extremas eran un verdadero flirteo con la
muerte. La transferencia de estos pacientes es siempre muy perturbada y la
contratransferencia sobrecargada. Una actitud de tolerancia, paciencia, empatía y
confianza en el trabajo psicoanalítico es fundamental en la persona del analista.
O PRAZER PERVERSO
NOS
DESCAMINHOS
DA
DESTRUTIVIDADE
______. (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras Completas. Rio de
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______. (1987). Impasse e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA.
Trabalho apresentado no 42º Congresso Psicanalítico
Internacional, no painel “Problems of Technique with
Severely Ill patients”. Nice, França, julho de 2001.
Dr. Marco Aurélio Rosa
Rua Annibal Di Primio Beck, 265
90480-180 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone: (0xx51) 3328-5828
E-mail: [email protected]
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“Am I changed?” she
wondered. “I was myself
yesterday, but things are not
the same today. If I’m not me,
who am I?”
(Alice in Wonderland,
Lewis Carrol)
Atravessando o Espelho
Roberto Barberena
Graña
Membro Titular da IPA (Associação
Psicanalítica Internacional).
Membro Convidado da SBPdePA
(Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre)
O espelho é um filme de Jafar
Panahi, jovem e talentoso diretor
iraniano, que impacta intensamente
o espectador por apresentar de forma cruelmente realista o esgaçamento ad extremum da situação de
espera, com o movimento agônico
que a acompanha, num episódio de
desencontro entre uma menina de
seis ou sete anos e sua mãe, nas in-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 449
Roberto Barberena Graña
Tempo e
Trauma:
Breve Crônica
de uma Morte
Invisível
TEMPO
E
TRAUMA: BREVE CRÔNICA
DE UMA
MORTE INVISÍVEL
termináveis ruas de uma grande cidade oriental, Theran.
Bahareh conclui seu turno escolar e prepara-se para voltar para casa,
como todas as colegas da segunda série que, junto com ela, aguardam a
chegada de suas mães. Ela veste um longo casaco, traz um lenço branco na
cabeça e tem o braço esquerdo engessado. As outras meninas vão sendo
levadas, uma a uma, e ela, algo apreensiva, olha, ao redor, sem conseguir
localizar ninguém familiar que ostente a responsabilidade de apanhá-la.
Encosta-se, então, à grade da escola e aguarda, conversando ainda com
uma última colega retardatária, até o momento em que, com a chegada da
mãe desta, Bahareh se vê sozinha.
Aos 8’ de filme, com o despovoamento da escola, Bahareh começa,
então, a sua terrível odisséia (a fita desenvolve-se em aproximadamente 87
minutos, que poderíamos supor editarem o tempo total da ação numa escala de aproximadamente 1:3).
Agarrando-se furtivamente ao casaco de uma mulher, ela tenta chegar
ao outro lado da avenida de intenso trânsito, onde a presença de uma cabine telefônica sugere sua intenção de contatar com a casa. Bahareh entra na
cabine e, com muito sacrifício, consegue alcançar o local onde deverá depositar a ficha. O telefone chama, mas não atendem. Ela faz ainda uma
tentativa, e logo o abandona, aos 10’. Atravessa, então, novamente a rua,
retornando ao portão da escola, apoiando-se num velho homem de bengala
que não chega a aperceber-se do favor que lhe presta. Ao ver que uma
funcionária da escola prepara-se ainda para sair, pergunta a esta por sua
mãe; a mulher responde-lhe algo que é logo interrompido pela aproximação de um homem de motocicleta que lhe faz um convite para uma festa de
casamento na qual conta certamente com sua presença. A conversa animase, com uma discussão acerca das roupas a serem utilizadas em tal situação
pela mulher e sua filha, e Bahareh acaba sendo esquecida.
Por fim, aos 16’ o homem apercebe-se dela e, sabendo que espera a
mãe que não veio, oferece-lhe uma carona até o próximo ponto de ônibus.
No caminho a menina conta-lhe que a mãe está esperando um bebê, e que
a “fotografia” já permitiu saber que se trata de um menino. Ela ganhará um
450 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 451
Roberto Barberena Graña
irmão. Temos assim um primeiro indício do que poderia ter ocorrido de
forma a que a menina não fosse esperada na escola, pela mãe, no horário
habitual. Poderia, inclusive, estar, nesse momento, dando à luz um novo
bebê.
Subitamente, aos 20’, Bahareh supõe ter visto sua mãe em um ônibus
e pede ao homem da motocicleta que a deixe ali. Ao aproximar-se, porém,
percebe haver-se enganado e, ao olhar ao redor, tentando localizar novamente o homem da moto, constata que este fora atropelado por um ônibus
urbano, num grave acidente, em que pouco restou da moto, havendo sido o
acidentado imediatamente removido. Aos 23’ ela sobe em outro ônibus e
desce logo por imaginar novamente ter visto a mãe; como mais uma vez se
equivocara, volta a subir no ônibus, mas é barrada pelo cobrador, que lhe
diz estar na porta errada, a das mulheres é a de trás. Aos 26’, a contragosto,
após insistência de uma idosa que viajava a seu lado, cede o seu assento
para uma mulher grávida, sendo logo criticada pela idosa por ter relutado
em fazê-lo: – Os jovens de hoje são muito mal-educados, resmunga a velha
mulher.
Aos 33’ o ônibus que Bahareh supôs a levaria para casa chega ao fim
da linha, e ela, desolada, olha ao redor, buscando localizar algumas das
suas referências habituais, mas o lugar é estranho, não avista ali a “praça
com uma fonte e uma árvore” que lhe atestariam estar em sua parada e
próxima de casa. Nesse momento, e pela primeira vez até então, o desespero estampa-se em seu rosto. Busca informar-se com o motorista, que a
reconhece e diz-lhe que de fato este é o ônibus que ela costuma tomar com
a mãe, mas no sentido contrário. Recomenda-a, então, a um colega que
está prestes a retornar ao outro extremo da linha. Como o homem parece
prestar-lhe pouca atenção, ela faz menção de afastar-se, desistindo uma
vez mais, mas o homem a alcança e coloca-a no ônibus, algo irritado; ela
começa a choramingar e este lhe ordena que não chore. Bahareh fica de pé,
a seu lado, junto do guidão, quando escutamos, então, uma voz que lhe diz:
– Não olhe para a câmera Mina! Ela reage irritada, gritando que não vai
mais filmar, e começa a tirar o casaco rosado que vestia, o lenço que trazia
TEMPO
E
TRAUMA: BREVE CRÔNICA
DE UMA
MORTE INVISÍVEL
à cabeça e o falso gesso do braço. O diretor manda o câmera cortar e um
figurante logo se aproxima dela perguntando-lhe o que houve.
Neste momento, aos quase 40’, perto da metade da fita, descobrimos
que tudo se tratava de uma filmagem. Bahareh/Mina desce do ônibus e o
figurante a segue tentando saber com ela o que houve e procurando dissuadi-la de seu desígnio. Ele lança mão de argumentos sentimentais, como o
de que perderá o emprego se ela desistir da filmagem, etc. Mina, a pequena
atriz, mostra-se irredutível e decide agora ir realmente sozinha para casa.
Alguém pergunta se sua mãe foi avisada. A menina afasta-se, caminhando,
e volta então a aventurar-se pelas ruas movimentadas. O diretor, no entanto, decide continuar a filmá-la, seguindo-a de dentro do ônibus. O desamparo e o sofrimento são agora reais. A engenhosa ficção converte-se em
dura realidade (resta-nos a dúvida sobre se se trata ainda de um segundo
filme, dentro de um terceiro, ou se há uma filmagem da vida que será posteriormente editada e apresentada como um texto cinematográfico, tão
magnífico quanto cruel).
Aos 48’ a agora Mina continua caminhando pelas ruas e indagando às
pessoas sobre “uma praça com uma fonte no meio”. Aos 52’ Mina tenta
tomar um táxi mas não consegue dizer ao motorista onde deseja ir. Como o
microfone segue com ela, podemos escutar perfeitamente seu diálogo com
o motorista. Ela lhe diz que quer ir a um lugar onde ele deverá “fazer a
curva e entrar numa grande avenida”. O chofer indaga o nome da avenida,
e apesar de alvitrar alguns possíveis, Mina não sabe dizer-lhe de qual delas
se trata. Ao indagar-lhe, porém, se está perdida, ela responde prontamente
que não, que está apenas voltando para casa. Ao longo de todo o seu “retorno” ela se esforçará tenazmente para desmentir esta inesperada e avassaladora realidade, a de perda, do desamparo.
Ao 54’ um homem idoso preocupa-se com ela e a conduz a um policial que, logo após ser informado do desencontro, atende a uma chamada
telefônica que se prolonga fazendo com que mais uma vez a menina seja
preterida em nome dos problemas mais urgentes e mais importantes que
pertencem ao mundo adulto. Ela se afasta, caminhando, sem que o policial
452 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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Roberto Barberena Graña
se dê conta e aproxima-se de um banco de praça onde está sentada, casualmente, a velha senhora que, no ônibus, obrigou-a a ceder, contrariada, seu
lugar para a gestante. Revela, então, à velha, que desistiu do filme porque
queriam que ela chorasse o tempo todo, que vestisse um chale de bebê e
usasse um gesso falso. Pergunta, ainda, para a velha senhora se ela também
decorara o texto que falou no ônibus e se estava também participando do
filme, ao que esta lhe responde: – Filme? Quem dera fosse filme! Queixase de seu abandono pelos filhos e de sua solitária infelicidade, aconselhando Mina a ir para casa porque seus pais já deveriam estar preocupados.
Seguindo este conselho ela faz parar um outro táxi. O chofer, porém, recusa-se a levá-la porque ela não possui dinheiro suficiente para a corrida.
Pergunta-lhe, também este, se está perdida, ao que ela responde mais uma
vez: – Não! Parece que neste momento essa mentira a faz viver. Ela não é
um bebê, não está perdida e não sente medo nenhum.
Aos 60’ Mina faz uma nova tentativa de telefonar para casa, desta vez
com sucesso. Fica, então, sabendo que sua mãe não se encontra, mas seu
irmão, que a atende, diz-lhe que irá buscá-la de moto, em seguida. Ela,
porém não sabe dizer onde está, e ele lhe sugere que vá até o correio da Av.
Vitória, mas o telefone é desligado sem que o irmão explique exatamente
sua localização, o que impede o resgate, não alterando, portanto, significativamente, a situação. Com a interrupção do telefonema, Mina vê-se de
novo às voltas com aquele inferno de carros, ônibus, bicicletas e gente,
surda, cega e apressada. Ao ver uma mulher tomar um táxi com seu filho,
ela se apressa e consegue entrar com eles no automóvel. Ocorre, porém,
um desentendimento entre a mulher e o motorista, o que a leva a descer do
veículo, furiosa, Mina insiste em continuar sozinha até a Av. Vitória, dizendo ao motorista que seu irmão estará lá e irá pagar-lhe quando chegar. Este,
porém, recusa-se a levá-la sem dinheiro. Ela sobe logo em outro táxi, juntamente com algumas pessoas, e oferece ao motorista todo o dinheiro que
tem, procurando explicar-lhe onde necessita chegar. Ele recusa o dinheiro
e diz que a levará de graça. Segue-se, então, um longo diálogo entre uma
das passageiras e o motorista de táxi, que retrata ironicamente a absurda
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DE UMA
MORTE INVISÍVEL
situação das mulheres e das crianças no mundo islâmico.
Aos 65’ Mina decide descer do táxi subitamente e insiste em pagar o
motorista que recusa o dinheiro que ela lhe oferece. O lugar parece-lhe
agora familiar e ela demonstra orientar-se um pouco melhor. Não sabe ainda, porém, como poderá chegar logo em sua casa. Encontra-se, então, com
um senhor que já a conhece, um músico, antigo dublador da voz de John
Wayne para o cinema, e que havendo-a visto filmar a cena na frente da
escola, cumprimenta-a pelo desempenho perfeito. Ele a conduz até o local
onde supostamente o irmão deverá vir apanhá-la. Ele, porém, não aparece,
e Mina, aos 76’ recomeça sua busca de casa, pedindo, agora, orientação a
um policial que reconhece por havê-lo visto, dias antes, multar o carro de
seu pai. Ele não se lembra dela, e ela se esforça em fazê-lo recordar. Este,
por fim, leva-a a uma oficina do bairro visto ela dizer que seu pai costuma
consertar o automóvel num mecânico próximo a sua casa. Mina explica,
então, a alguns mecânicos que ali se encontram que o carro de seu pai é um
Renault branco e que havia sido consertado por eles há alguns dias. Como
não lembram, ela lhes pede por fim que a levem, então, de volta à escola,
pois acredita que, partindo dali, saberá agora como chegar em sua casa.
Embora Mina lhes diga o nome de sua escola e a descreva, dizendo que
fica num cruzamento próximo a uma loja de brinquedos e que tem uma
placa azul na frente, eles não conseguem certificar-se do local; mesmo
assim a auxiliam a orientar-se assinalando-lhe um possível caminho até lá.
Mina retorna a sua caminhada e, de repente, já aos 84’, avista a loja de
brinquedos e miudezas cujo proprietário a havia recomendado para a equipe de filmagem, dizendo tratar-se de uma menina muito talentosa. Ela entra na loja e lhe diz irritada que não irá mais filmar. Deixa ali o microfone
e sai dirigindo-se, enfim, para sua casa, a qual já pode dali avistar, sem
escutar as últimas palavras do senhor Habibi que adverte que ela deixará
de ganhar dinheiro se interromper a filmagem. Em seguida alcança a porta,
toca a campainha, alguém abre e ela entra. A equipe de filmagem insiste
ainda com o senhor Habibi para que leve o microfone a Mina solicitandolhe que retorne ao set. Ela, porém, lhe diz, entreabrindo a porta, que não
454 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Considerações Preliminares
As categorias tempo e espaço em Psicologia e em Psicanálise, como
bem o demonstram as pesquisas de Piaget sobre o desenvolvimento
cognitivo, de Winnicott sobre desenvolvimento emocional primitivo e de
Betelheim sobre o psiquismo de autistas, não constituem categorias a
priori tais como as conceberíamos filosoficamente para o sujeito do conhecimento conforme nos é proposto pelo transcendentalismo kantiano.
Tempo e espaço são categorias a serem construídas que estão antecipadamente presentes apenas no outro e projetam-se, como possibilidades
experienciais futuras do self do infans, uma vez que a mãe ou substituto
conceda a este uma efetiva oportunidade para tais aberturas, através de sua
pontual presença, carnal e anímica (a empatia cenestésica, de Spitz),
devindo esta a mediadora de tais referentes ou organizadores experienciais/
conceituais de toda exterioridade possível.
Se tempo e espaço são, porém, distensores do campo vivencial
(Merleau-Ponty) que contam com um favorecedor externo para estas aberturas propiciadoras de uma plenificação do ser, há de se supor que o outro
necessitará ocupar-se de apresentar ao self primitivo (o que é diferente de
inculcar) os iniciais sinalizadores de tais dimensões da existência, num
primeiro momento, pela antinomia presença/ausência, através da qual o
tempo se deverá inscrever na protopsique da criança originariamente como
“espera” e o espaço como “distância”. Nesse contexto fenomênico dos começos, os marcadores da exterioridade irão, portanto, dar-se a conhecer
sobretudo pelo viés da negatividade (hiância), negatividade que deverá,
neste momento inaugural, reduzir-se ao mínimo, permitindo, assim, que a
experiência de plenitude esteja ab initio assegurada ao self.
Que pretendemos, porém, em princípio enunciar com tal formulação?
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Roberto Barberena Graña
retornará e que ele é o culpado por ela estar metida nisso. Desolado, o Sr.
Habibi volta ao grupo, dizendo que Mina recusa-se terminantemente a filmar, promete indicar outra menina de talento e indaga-lhes por fim: – Que
fizeram com ela para deixá-la assim tão chateada?
TEMPO
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MORTE INVISÍVEL
Primeiramente, sustentamos que o mundo externo prenuncia-se ou anuncia-se ao self por uma insuperável precariedade que irá sempre acompanhar os esforços maternos no sentido de satisfazer pontual e plenamente as
necessidades iniciais do seu bebê. Se esta especial capacidade da puérpera
a que Winnicott denominou preocupação materna primária e Bion chamou de reverie, foi a seu tempo conquistada – pois trata-se de algo que não
está “naturalmente” dado, embora existam na mãe como potencialidade –
ao longo do processo gestacional, as sutis soluções de continuidade no
cuidado, que acompanham qualquer oscilação do humor, qualquer alteração tônica e qualquer flutuação da atenção materna, serão absorvidas pelo
conjunto dos procedimentos de sustentação suficiente que alicerçarão o
ser, em sua integridade, no contínuo fluxo da duração (Bergson).
Se, de outro modo, as dessincronias empático-cenestésicas são de tal
intensidade que descompassam a oscilação regulatória da presença/ausência, o que implica a introdução prematura de demasiada espera ou de demasiada distância no contexto da experiência inicial do bebê, quando este
contata pela primeira vez com o objeto, tal descomedimento poderá determinar uma desfiguração precoce da experiência do ser, submetendo o self
a um processo de torção traumática que implicará numa alteração, talvez
permanente, das dimensões de temporalidade e espacialidade e que poderá
evidenciar-se mais ou menos segundo a eficácia defensiva das estruturas
compensatórias (Kohut) ou transacionais (Prego Silva) a que o bebê recorrerá para sobreviver a tais catástrofes. Essas verdadeiras catástrofes
ontológicas, se assim nos for permitido denominá-las, embora repercutam
mais massiva e lesivamente sobre o self nos estágios iniciais da vida, estarão também facilitadas sempre que uma criança se veja de alguma forma
constrangida a encarregar-se de responsabilidades pessoais ou de funções
psíquicas para as quais, na ocasião, encontra-se ainda subjetivamente incapacitada. As organizações defensivas, ou estruturas suplementares, com
potencialidade patógena, a que nos referimos, constituem-se de distintos
modos e assumem diferentes feições, conforme poderemos ver mais adiante. Suponho sejam já suficientemente conhecidas as investigações de
456 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sincronias, Dessincronias e Traumatização
A excelência do cuidado materno não se reduz à regularidade,
ritmicidade ou pontualidade; há certamente mais coisas que estão aí
implicadas, mas neste estágio inicial da vida a manutenção de certas freqüências determina em grande parte a qualidade do cuidado que está sendo
dispensado ao bebê. Winnicott demonstrou como a presença/ausência dosada da mãe, no estágio em que o sentido do tempo se está estabelecendo,
é crucial para o desenvolvimento da convicção da existência do objeto e do
self. Escreve ele: “O sentimento de existência da mãe dura x minutos. Se a
mãe se afasta mais de x minutos, a imago dissipa-se e junto com isso perde-se a capacidade do bebê para usar o símbolo da união. O bebê torna-se
agoniado, mas essa agonia é logo remediada, porque a mãe retorna em x+y
minutos. Em x+y minutos o bebê ainda não está alterado. Mas em x+y+z
minutos o bebê torna-se traumatizado. Em x+y+z o retorno da mãe não
remedia o estado alterado do bebê. O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida; assim, defesas primitivas são
organizadas para defendê-lo contra uma repetição da ‘ansiedade
impensável’ ou contra um estado de confusão aguda que pertence à desintegração da estrutura nascente do eu”. Se a traumatização acontece na prolongada ausência do objeto, por excessiva postergação, havemos de considerar que ocorrem também conseqüências traumáticas quando este é
hiperpresente – em tal caso falaríamos de invasões. Não é incomum que
estas apresentações intempestivas se complementem, impedindo um
ressincronização, embora saibamos, como diz Winnicott, que uma vez interrompida a fluência do ser no tempo, esta ruptura se inscreverá como
uma experiência que pode ser, mais tarde, referida como morte ou loucura,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 457
Roberto Barberena Graña
Ferenczi, Winnicott, Green e Khan sobre a psicopatologia materna e a estrutura do traumatismo precoce para que eu não precise, nos breves tempo
e espaço de que disponho, revisá-las uma vez mais; apoiar-me-ei, no entanto, parcialmente, em tais contribuições, para propor-lhes a reflexão que
pretendo desenvolver a seguir.
TEMPO
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aludindo ambas as palavras à supressão de algo (o objeto ou o self) que
poderia haver existido em determinado momento, assegurando a continuidade da experiência do ser no tempo. Aqui, o que aconteceu de grave é,
extamente, o que não aconteceu.
Tais situações poderão ser melhor visualizadas se as representarmos
graficamente utilizando os seguintes diagramas. Na figura 1 encontramos
uma situação ideal, onde ocorre uma pontual confluência entre a demanda
do bebê e a ação materna, de forma que o objeto não é mais que um detalhe
da fantasia onipotente do bebê. Com a sustentação desta ilusão no tempo
deverão estabelecer-se as bases ontológicas do self pessoal. Este
solipsismo neo-natal (Spitz) necessitará, porém, ser contrastado, no devido tempo, pela inclusão do cuidado negativo (negative care) que introduzirá, não as dimensões de tempo e espaço, mas a apercepção subjetiva destes.
Fig.1
Na segunda figura observamos a ocorrência do traumatismo por uma
excessiva postergação da presença, sendo que as posteriores
ressincronizações self-objeto não eliminarão as produções traumáticas que
originaram fraturas precoces na linha de continuidade do ser.
458 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
O terceiro gráfico mostra a ocorrência de traumatismo por antecipação; a impossibilidade de significar pontualmente a demanda do bebê conduz a mãe a apresentar-se prematuramente e, às vezes, a nem mesmo retrair-se, propiciando ao self o intervalo de tempo necessário para a reconstrução e evocação imaginária da relação com o objeto, o que oportunizaria
condições favoráveis ao engendramento das formas mais elementares de
uso dos primeiros símbolos ou imagens elacionais por parte do infans.
Fig.3
A travessia do espelho, tal como nos é espetacularmente apresentada
por Jafar Panahi no seu pungente e cruel “Yaneh”, ocorre quando a resposta especular não possui o vigor, a consistência e a precisão que a satisfação
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 459
Roberto Barberena Graña
Fig.2
TEMPO
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DE UMA
MORTE INVISÍVEL
pontual das necessidades primárias do self irá legitimamente exigir. A mãe,
num primeiro momento, deverá ser “perfeita”, nos diz Winnicott; falhará
se não for capaz de oportunizar ao bebê tal ilusão. Posteriormente, ela deverá ativamente falhar, frustrando-o gradativamente, dosadamente, e, se
assim não for, falhará por não falhar. Como a Alice de Lewis Carrol,
Bahareh sofreu de início uma grande queda, e sua ação ao longo do filme
será uma busca aflita de chegar ao fim desta, o que para ela significa, ilusoriamente, retornar à superfície, ou recompor ainda a situação anterior. O
desencontro, a inesperada perda do seu principal sustentáculo ontológico,
irá impeli-la a repetidas e inexitosas tentativas de restituição do
espelhamento perdido. Há, porém, uma persistente opacidade nas respostas que recebe do mundo adulto; ninguém parece aperceber-se de que
Bahareh agoniza. Todos pretendem impor-lhe um outro tempo, o do relógio, uma outra ordem, a dos sexos, da polidez, das gerações. O mundo
adulto parece não poder significar seu sofrimento infindável como um processo de necrose de parte importante de seu self e de sua espontaneidade
vital. O que ela repete para os outros e para si mesma, incessantemente, é
que não está perdida, consistindo isto num recurso extremo, numa recusa
útil que mantém ativa a casca quando o núcleo feneceu (Abraham e Torok);
serve-lhe este como um enunciado sustentador que dará suporte a uma
pseudomaturidade que freqüentemente atesta, como um tecido cicatricial,
a ocorrência de tais abalos no continuum vivencial. Bahareh não é mais um
bebê; possui, por isso, recursos subjetivos que lhe permitem de alguma
forma sobreviver ao colapso potencial; ela se esforça maximamente para
manter a tranqüilidade e, mesmo, poupar os outros do seu pânico iminente.
Ao longo do filme deixa de ser a pequena criança desamparada que vemos, num primeiro momento, a olhar ansiosamente as ruas, buscando a
mãe, para converter-se numa pequena adulta obstinada, firmemente determinado em suas inabaláveis convicções. Suas últimas palavras para o senhor Habibi, que a havia indicado para o papel, poderiam ser ditas por
qualquer adulto minimamente capacitado a garantir seus direitos individuais: – Não retornarei, e você é o responsável por eu estar metida nisso!
460 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Para Finalizar
Condenados ao tempo, inclusive aqui e agora, estamos todos permanentemente agrilhoados na fatídica sentença de Jorge Luís Borges: “Negar
la sucesión temporal, negar el yo, negar el universo astronómico son
desesperaciones aparentes y consuelos secretos. Nuestro destino no es espantoso por irreal; es espantoso porque es irreversible y de hierro. El tiempo es la sustancia de que estoy echo. El tiempo es un río que me arrebata,
pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un
fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente
es real; yo, desgraciadamente, soy Borges”.
Sinopse
Partindo de um filme Iraniano, O espelho, o autor propõe uma reflexão sobre
o efeito das rupturas prolongadas do contato com o objeto durante os anos de
infância, e sobre as perturbações disto resultantes, no desenvolvimento das dimensões de tempo, espaço e sentido e no estabelecimento autêntico do self no
mundo.
Summary
Taking for start pointing an Iranian film, The Mirror, the author proposes a
reflection about prolonged object lacks during the years of childhood and
consequent disturbances, as a result of it, concerning to the development of space,
time and meaning dimensions and relating to the self-establishment in the world.
Sinopsis
Partiendo de una película iraniana, El espejo, el autor propone una reflexión
sobre los efectos de las rupturas tempranas del contacto con el objeto durante los
años de infancia y las perturbaciones resultantes, en el desarrollo de las dimensiones
de tiempo, espacio y sentido y en el establecimiento auténtico del self en el mundo.
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Roberto Barberena Graña
Bahareh parece, pois, sobreviver bravamente, e isto é de fato o que em
parte acontece; sabemos, no entanto, que Bahareh também morreu, sem o
saber, e sem que ninguém mais pudesse disto aperceber-se
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TRAUMA: BREVE CRÔNICA
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Palavras-chave
Traumatização; Sincronias; Dessincronias.
Key-words
Traumatization; Synchrony; Dissynchrony.
Palabras-llave
Traumatización; Sincronias; Disincronias.
Bibliografia
ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casa e o núcleo. São Paulo: Escuta, 1995.
BERGSON, H. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Opera Mundi, 1973.
BETELHEIM, B. A fortaleza vazia. São Paulo: Martin Fontes, 1987.
BORGES, J.L. Nueva refutación del tiempo. Obra Completa, Nova Aguilar.
FERENCZI, S. Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
KANT, E. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
KHAN, M. The privacy of the self. London: Hogart Press, 1974.
KOHUT, H. Análisis del self. Buenos Aires: Amorrortu, 1977.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenología de la percepción. Barcelona: PlanetaAgostini, 1984.
PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1978.
PREGO SILVA, L. Comunicação pessoal.
SPITZ, R. O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1973.
WINNICOTT, D.W. Trough Paediatrics to Psycho-Analysis. New York: Bruner/
Mazel, 1992.
______. Playing and Reality. London: Tavistock, 1971.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Dr. Roberto Barberena Graña
Av. Taquara, 353/501
90460-210 Porto Alegre – RS – Brasil
E-mail: [email protected]
Fone: (0xx51) 3332-6449
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Vera Regina
J.R.M. Fonseca
Psiquiatra, Membro Efetivo da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de São Paulo
Estou em uma colina onde algumas vacas pastam. Quero chegar
mais perto, talvez para tocá-las,
mas, assim que eu me aproximo,
elas se afastam, desconfiadas, como
se sentissem que a minha presença é
perigosa. Ao perceber isso, sento no
chão e espero, totalmente parada.
Há pedras no pasto, e tento me misturar a elas, na esperança de que as
vacas pensem que sou apenas mais
uma pedra no contexto da paisagem. Permaneço imóvel e, depois
de certo tempo, algumas vacas começam a pastar perto de mim. Espero um pouco mais até acreditar
que a minha presença tenha sido totalmente assimilada. Então, movo
meu braço com cuidado em direção
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Vera Regina J.R.M. Fonseca
O Fenômeno da
Apresentação do
Objeto e suas
Implicações para o
Desenvolvimento
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
à vaca mais próxima; ao tocar sua cabeça, ela se afasta imediatamente.
Começo tudo de novo e, em minha terceira tentativa, o carinho é finalmente aceito como um gesto previsível e não-assustador.
Introdução
Independentemente da motivação por trás do comportamento desses
animais, tive, com freqüência, uma experiência emocional muito semelhante ao trabalhar com um tipo particular de criança psicótica. Elas me
demonstravam as dificuldades em relação à aceitação do objeto. Isso me
levou a formular a hipótese de que, como sugeriu Winnicott, a apresentação do objeto é, de fato, uma questão crucial. Parecia haver uma técnica de
aproximação que se fazia necessária, e que, às vezes, incluía uma tentativa
de me reapresentar de uma forma que não parecesse brusca ou repentina.
Isso acontecia porque a própria percepção da minha existência física podia
levar a uma intensa reação de choque, seguida de retraimento e comportamento desorganizado e/ou violento. Tustin (1972) fornece várias descrições de reações catastróficas em crianças pequenas psicóticas, encarando o
não-eu.
A importância dessas questões foi-se tornando cada vez mais clara,
quando comecei a observar crianças normais e, também, a discutir as observações de colegas. Alguns desses bebês ficavam assustados quando a
mãe aparecia subitamente em seu campo visual. Outros bebês demonstravam uma profunda surpresa, quando beijados com muito carinho por suas
mães. Por exemplo, Andrew, uma criança normal de 11 meses descrita em
“Closely observed infants” (Shuttleworth et al., 1995), estava brincando e
ouvindo música. Então, sua mãe chegou para lhe dar banho. Ele reagiu
com surpresa, sem entender o que estava acontecendo. Aqui, é interessante
observar o comentário dos autores: “O fato de estar envolvido na música
pode tê-lo levado naquela direção [um estado mental em que ele se perde
dentro do objeto e não existe mais o senso de serem dois], de forma que,
quando sua mãe se aproxima para pegá-lo, ele não está preparado para a
transição; ele não consegue conectar imediatamente sua relação interna
464 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
As Implicações das Idéias Kleinianas
sobre o Início da Vida Mental
As afirmações da escola Kleiniana sobre a cisão com o objetivo de
proteger o ego imaturo da sobrecarga – e conseqüente separação entre experiências boas e ruins na mente da criança – mostram-nos uma forma de
abordar a questão central deste trabalho: por que o encontro físico e emocional com o objeto (por exemplo, sua súbita percepção no campo visual
da criança) deve ser sentido por alguns bebês, em alguns momentos, como
uma experiência negativa? Qual, nesses casos, seria a experiência
intersubjetiva e intra-subjetiva que leva à expressão de repulsa ou de perigo (desta forma impedindo que a criança se beneficie da atenção parental)?
Seria uma deficiência temporária (ou mais permanente, no caso de
crianças psicóticas) na função necessária de cisão, de forma que as lemSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 465
Vera Regina J.R.M. Fonseca
com a mãe, que chega na realidade externa” (p.124).
É evidente que a mãe é a pessoa ideal para cuidar, animar e consolar o
bebê. Mas minha hipótese é a de que, no momento em que ela aparece no
campo de visão do bebê – quando ele não está preparado ou esperando que
isso aconteça –, a existência autônoma da mãe é mostrada ao bebê de forma crua. Além do mais, ele tem que enfrentar a tarefa de conectar a representação primitiva interna da mãe com a mãe que acabou de chegar na
realidade. As implicações disso para a aceitação da alteridade são bastante
claras. As questões centrais são: (1) como o bebê lida com a percepção do
objeto externo, particularmente na passagem da ausência para a presença,
de forma que consiga tolerar a alteridade implícita nessa percepção; e (2) o
que impede essa aceitação.
Tentarei apresentar algumas reflexões sobre o fenômeno da apresentação do objeto. Primeiro, iniciarei pelo que se poderia chamar de “abordagem kleiniana” a alguns aspectos desse assunto e, mais adiante, levarei em
consideração as idéias originais de Winnicott, lembrando que ele foi o primeiro autor a chamar a atenção sobre a importância dessa questão para o
desenvolvimento.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
branças perturbadoras estão sempre presentes, sabotando a receptividade
às boas experiências, o objeto ruim obstruindo a chegada do objeto bom?
Ou seria uma hipersensibilidade constitucional que impede o bebê de mudar o foco dos aspectos perturbadores da experiência, tornando-o mais vulnerável às falhas ambientais e à imprevisibilidade? Ou, ainda, seria uma
violência inata que, projetada no objeto, o torna tão perigoso e violento?
Ou, finalmente, seria culpa do objeto externo, por sua falta de empatia, de
continência e de “holding”?
Acredito que se adquira uma confiança básica, através de uma apresentação que começa no nascimento, obtida de acordo com uma técnica em
particular que habilita o bebê a se ajustar, entender e aceitar as ações da
mãe.
“Parece provável que sejam precisamente a previsibilidade e a continuidade das experiências de objeto parcial do bebê, que forneçam a
precondição que o habilita a começar a reconhecer e antecipar eventos e,
assim, a integrar um senso de si mesmo e de sua mãe” (Shuttleworth et al.,
1995, p.48).
Sem tentar responder a essas perguntas agora, farei um desvio para
outra estrutura teórica, a qual não é totalmente incompatível com as idéias
que acabei de apresentar.
A Teoria de Apresentação de Objeto de Winnicott
Como a mãe pode se apresentar à criança de forma que sua presença
seja não só aceita, mas também passível de ser utilizada pelo bebê?
Essa questão normalmente nem é levantada, já que se presume que o
bebê não só aceita, mas anseia pela mãe.
Uma pesquisa infantil atual (Stern, 1985; Brazelton e Cramer, 1990)
indica que o recém-nascido está altamente preparado para envolvimento
em relacionamentos humanos. Mas, por que a questão de apresentação do
objeto é tão crucial para algumas crianças, enquanto, para outras, ela desaparece sem ser percebida?
O processo normal de apresentação do objeto descrito por Winnicott
466 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Materiais Clínicos e Comentários
Alex
Alex é um menino de quatro anos que iniciou sua psicanálise há seis
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 467
Vera Regina J.R.M. Fonseca
(1962) é mais ou menos o seguinte: a mãe e a criança experimentam uma
certa intimidade mesmo antes do parto, já que compartilham de diversas
experiências em sua ligação fisiológica. Ela estará preparada para suprir as
necessidades da criança, de tal forma que tudo acontece como se as suas
ações emanassem do bebê e não dela. O resultado final será a criação de
algo que pode ser usado pelo bebê como se tivesse surgido dele próprio,
não sendo, portanto, estranho para ele. De fato, é possível observar que
algumas mães tomam cuidado para não dar todos os passos na interação
com o bebê, deixando espaço para as ações da criança, ou, então, insinuam
seus gestos com delicadeza como se eles tivessem partido da criança. Esse
fato se torna claro em jogos de imitação, quando a mãe finge ser o bebê e
depois apresenta algo de si própria (Brazelton e Cramer, 1990; Fonseca,
1997). Davis e Wallbridge (1981) sabiamente afirmaram a importância de
acrescentar coisas novas à vida do bebê, dentro de um contexto de
previsibilidade.
Essa atenção materna é uma parte básica do que Winnicott (1971) chamou de “ilusão”: o objeto materno é percebido pela criança como uma
posse, ou uma parte de si mesma, como uma criação dela, e essa ilusão é
promovida e mantida pela mãe. Somente depois de essa ilusão ter sido
experimentada de forma consistente, o bebê conseguirá tolerar a realidade
compartilhada.
A desilusão causaria uma noção crescente de si próprio e, como conseqüência, uma percepção do espaço externo ao “eu”, isto é, o “não-eu”.
No entanto, a demarcação entre o “eu” e o “não eu” causaria também um
sentimento persecutório agudo, frente ao que não é mais “eu” e se tornou
“não-eu”. A continuidade do estilo do cuidado materno, demonstrando a
constância do ambiente, pouparia o bebê de ansiedades profundas e recolhimento defensivo, assim como da completa rejeição do “não-eu”.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
meses. Quando seus pais procuraram auxílio médico, ele não havia ainda
desenvolvido linguagem comunicativa: seus balbucios se restringiam a
sons suaves e partes de diálogos de desenhos animados de Disney.
Quando iniciamos, ele costumava quebrar seus brinquedos e jogar os
pedaços em volta, sem olhar para mim. Nessas ocasiões, quando ele via
meu rosto, me agredia com violência. Quando eu lhe dizia “não”, ele atirava os pedaços de brinquedo em mim, e era inútil mandar que parasse. Ele
me olhava bem nos olhos e parecia ter medo, não de minha reprimenda,
mas de minha existência autônoma.
Quando se torna claro que eu sou um corpo diferente, irrompendo em
seu campo perceptivo, interrompendo suas atividades autísticas, e que eu
também tenho uma mente diferente, falando e fazendo coisas completamente opostas as suas ações, eu me torno o foco de sua ansiedade
persecutória. Posso descrever o seu estado emocional como persecutório,
pois sua expressão é semelhante à de um animal amedrontado que ataca
para se defender. O “não”, aqui, claramente, identifica o meu status como
um não-eu, o não eu que rompe a continuidade da experiência autística.
Em outras circunstâncias, quando ele não estava tão envolvido nessas atividades e eu disse “não”, ele simplesmente virou as costas para mim, ou
teve um acesso de fúria, sem me agredir. O outro que se revela dessa forma
parece ser o equivalente ao objeto ruim, que deve ser combatido ou do
qual se deve fugir.
Em outra sessão, transformei sua atitude autística de subir na mesa e
escorregar em uma forma de jogo compartilhado. Ele riu, e quando nos
encontramos em baixo da mesa, ele olhou para mim com atenção.
Além da possibilidade de que ele estivesse mais receptivo a mim naquele momento em particular, por outras razões, acredito que ele agora
conseguisse me olhar, uma vez que eu, entrando suavemente para dentro
de sua atividade, me apresentei como se surgisse dele próprio, de uma
forma rítmica e mais previsível. De fato, essa parece ser uma técnica amplamente usada pelas mães, durante interações normais com os filhos.
Um dia, ele encontrou um pequeno pente no chão. Penteou o meu
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Vera Regina J.R.M. Fonseca
cabelo suavemente, depois entregou-me o pente, dizendo: “Pegue!” Parecia que ele estava gostando muito de estar perto de mim por sua própria
iniciativa. Foi como se eu tivesse me transformado numa boa mãe e não
mais a dona do leão horrível. Ele me olhou por mais algum tempo. Tentou
colocar o coração de ouro da minha gargantilha em sua boca, depois moveu sua cabeça em direção à minha, dando-me a impressão de que queria
entrar em minha cabeça. Ao final da sessão, eu havia imitado seus sons e
gestos, diversas vezes, um jogo do qual ele participou com alegria.
Agora ele pode ter um relacionamento com os objetos suaves que descobriu aos poucos (o pente, depois o cabelo e sua textura, o coração, os
olhos). Talvez esteja buscando um estado de fusão com esses objetos, cujos
atributos físicos são os mais importantes, uma espécie de não-discriminação fluída que vem a se tornar cada vez mais violenta (morder meu coração, entrar em minha cabeça) por causa de sua dificuldade em modular as
emoções. No entanto, dessa ilusão fusional, pode nascer uma diminuta
discriminação. Quando imitamos um ao outro, começamos com eu sendo
ele, depois ele sendo eu, e esse processo confirma que cada um de nós está
fazendo o papel do outro, separadamente. É uma negociação que suaviza
o caminho para a alteridade.
Mais adiante, na mesma sessão, ele quebrou um boneco e colocou um
pedaço em cada mão e um terceiro em sua boca, parecendo completamente
preenchido com essas partes. Falei com ele sobre isso e ele sentou no meu
colo, de costas para mim. Olhou para mim rapidamente, quando eu falei:
“Oh! O bebê de Alex está todo quebrado! Que pena!” Então ele colocou a
cabeça do boneco em sua boca, fazendo-o grudar em sua língua como uma
ventosa, de forma que sua boca ficou bem saliente. Chamei a atenção para
o fato de que a sua boca estava cheia. Ele olhou para mim e, de repente,
deu-me um chute no rosto.
Suas mãos vazias são como a boca vazia, um buraco (Tustin, 1972)
que ele tenta preencher através de suas atividades de fragmentação, com
fragmentos sem sentido, mas com a função defensiva de não se deixar cair
na temida situação de ficar indefeso. Uma vez preenchido, ele se senta no
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
meu colo (talvez para neutralizar minha presença), de costas para mim, de
forma a não me olhar no rosto. Talvez isso permita manter a ilusão de que
eu não sou um ser diferente. Depois, ele consegue até mesmo me olhar
quando falo com ele. No entanto, nesse momento, minhas palavras foram
de ruptura, já que enfatizei o bebê quebrado, em vez de apoiá-lo na tarefa
de obter uma sensação de coesão. Então, ele tenta engolir a cabeça do
bebê, uma figura da plenitude fingida, mas minha voz invade a redoma
ilusória, e eu sou agredida porque, mais uma vez, me tornei o objeto de
seus terrores, isto é, o outro que quebra a sua ilusão de ser completo.
Mais tarde, fizemos mais jogos de imitação. Ao final da sessão, Alex
pegou o cobertor e se deitou. Parecia querer que eu o cobrisse. Então, brincou de esconder o rosto e sorria quando eu o achava. Mas todas essas seqüências tiveram que ser feitas suave e lentamente: uma vez, ao se assustar com a minha descoberta, ele reagiu com violência, chutando-me no
rosto.
Podemos ver as flutuações de sua aceitação ou rejeição do objeto,
dependendo, em parte, da técnica que uso para me apresentar e, em parte,
do estado do seu mundo interno, a cada momento. Tenho que procurá-lo,
que descobrí-lo aos poucos, e assim, seguindo seus próprios propósitos,
posso habilitá-lo a familiarizar-se com meu rosto discriminado; por outro
lado, essa descoberta mútua pode gerar tal estado de excitação que leva a
uma ameaça súbita de desintegração.
Um dia, tendo jogado tudo na varanda, Alex descobriu o espaço por
trás da porta-janela. Confuso, ele se trancou entre a parede e a folha da
porta. Então, puxou-me pela mão, de forma que ele ficou do lado de dentro,
mas olhando através do vidro para mim, que estava do lado de fora. Puxoume para mais perto, depois empurrou, várias vezes. “Legal!”, ele disse,
parecendo gostar da brincadeira.
Tendo jogado fora e perdido tantas coisas, ele descobre uma fronteira
física para o seu self, dentro de um espaço protegido em minha sala. O
vidro permite que não se sinta preso dentro desse novo espaço descoberto.
Podem ser feitas transações entre o lado de dentro e o lado de fora. Assim
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como eu posso entrar e sair, ele pode regular minha posição espacial em
relação a ele e controlar os meus movimentos. Então, consegue expressar
sua alegria de forma surpreendentemente adequada.
Mais tarde, ele ainda está interessado no vidro da porta. Percebi que,
quando ficou fechado dentro do pequeno espaço, queria ter algo com ele
que pertencesse a mim. De fato, puxou a minha mão em sua direção, mas
empurrou meu corpo. Eu tentei lhe dar apenas dois dedos, repetindo um
jogo de que ele tinha gostado bastante, no qual meus dois dedos caminhavam e falavam com ele, com uma voz fraca. Mas, na verdade, ele queria
tirar esses dedos da minha mão.
Como um corpo completo, eu sou persecutória. Ele precisa me assimilar gradualmente, em partes que possa manipular e controlar. A propósito, como um bebê deitado em seu berço poderia perceber um adulto em
sua completa dimensão corporal? Alex me cobiça, mas um pedaço de mim
que ele consiga engolir, uma parte que não ocupe por completo o seu diminuto espaço interno. Igualmente, isso indica uma tendência patológica à
fragmentação.
Duas semanas depois, ele subiu, como sempre, olhando, com atenção,
uma revista tirada da sala de espera. Eu o avisei que iria colocar a revista
dentro de meu armário. Ele tentou fugir, segurando a revista. Quando eu
não desisti, olhou para mim e disse: “Casinha!” Já havíamos brincado assim antes, então fiquei feliz com sua proposta ativa. Quando montei a casa,
ele, de bom grado, levou as almofadas para dentro e deu-me o cobertor.
“Fecha!”, disse. Então, deslizando o cobertor, ele me viu. Não evitou meu
olhar, mas, quando me deu o cobertor para fechar a entrada novamente,
fechou os olhos.
O mergulho em um objeto autístico de qualidades suaves (a revista e
os seus suaves balbucios, enquanto a olhava) é uma defesa frente à percepção da ruptura na continuidade dos eventos, e mudanças conseqüentes
(sua chegada, sua separação da mãe, a minha chegada). Ele traz a revista
para se manter estável, focalizando sua atenção nas páginas. No entanto,
ele consegue lembrar nossos jogos compartilhados, de continência, e to-
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
mar a iniciativa de recomeçá-los. Depois consegue me fazer perguntas,
consegue olhar para mim, mas em certo ponto ele tem que “esquecer”
tudo o que eu sou, fechando seus olhos. Parece que não é o caso de precisar de uma ilusão constante de fusão, mas uma necessidade ocasional de
embaçar os contornos da intensa presença física do objeto. Seria essa uma
necessidade psicopatológica ou uma necessidade normal para crianças
pequenas?
Alex foi para trás da casinha e apareceu no espaço entre a parte de trás
da casa e a parede, sorrindo e olhando abertamente para mim, como se me
olhasse pela primeira vez.
Enquanto mantém um espaço entre nós, ele consegue olhar para mim
de uma certa distância e agora eu não sou tão perigosa.
Voltando para dentro da casa, ele deitou, sorrindo, e apontou para o
espaço interno que se havia formado. Assim, podemos resumir isso da seguinte forma: “Olhe! Agora há um espaço fechado ao meu redor que me
mantém unido!”
Tito
Tito tinha dois anos quando começou a fazer psicoterapia comigo. Ele
era um menino assustado, e a sua linguagem consistia em repetir o que os
adultos lhe falavam. Também parecia ter medo de cair. Quando conhecia
alguém, ele se tornava bastante tímido e usava os seus pais para negar a
existência de outras pessoas.
Durante a avaliação, ficou encabulado quando viu os brinquedos que
ofereci para ele. Evitou-os, escondendo-se e acenando para despedir-se.
Ele apenas fez o carro de brinquedo correr por sobre os pés do pai dele. No
dia seguinte, também fez o carro de brinquedo correr sobre minha cadeira
vazia, talvez tentando fazer uma ponte entre mim e o pai. Na primeira sessão, um caminhão de brinquedo quebrou. Ele me trouxe os pedaços para
consertá-lo e virou o rosto, como se estivesse evitando a percepção do objeto que ajuda.
Tito ainda não consegue se relacionar comigo. Move o seu carro so472 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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mente sobre superfícies que pertencem a ele: a superfície do corpo do papai. Depois, com cuidado, ele tenta outra superfície, estranha mas bastante previsível, uma vez que não está viva. Minha existência é perturbadora,
pois me coloca na categoria de estranha, imprevisível, o outro. Ele precisa
da minha ajuda, mas evita tomar ciência de minha ajuda efetiva, já que eu
não pertenço a ele.
Na segunda sessão, Tito subiu sozinho, embora muito encabulado. Na
terceira sessão, começou a pular no colchão, apertando seus lábios, claramente constrangido, mas com um indício de diversão. Subitamente, tornou-se bastante ansioso, respirando com dificuldade, coçando o seu corpo
inteiro, em desespero frenético, de forma que fui obrigada a interromper a
sessão.
A pele de Tito, que deveria fornecer uma sensação de separação física, em uma unidade psicossomática, é um local de agressões, dores, rupturas e desespero. Talvez ele sinta que, deixando-o sozinho comigo, seus pais
assinaram sua expulsão do bloco unitário (pai, mãe e filho como um só) ao
qual ele acredita pertencer, deixando-o totalmente indefeso, ameaçado
com a perda do ar que respira.
Em nossa quarta sessão, ele começou a bater com os carros na mesa e
ficou encantado por me ver bater suavemente meus dedos no mesmo ritmo.
Portanto, se eu me apresentar de uma forma previsível e rítmica, seguindo-o, podemos chegar a uma certa sintonia.
Em algumas sessões, ele ficava bem feliz ao ver minha cadeira preta
vazia. Movia o carrinho (que nós chamávamos carro-bebê) para a frente e
para trás, na cadeira, e falava corretamente: “Subiu! Desceu!” Depois, ele
se sentava cuidadosamente em minha cadeira e passava as mãos, lentamente, sobre ela, adaptando seu corpo ao feitio da cadeira, sorrindo. Ficamos parados por algum tempo. Uma buzina se ouviu do lado de fora e ele
me perguntou, com um pouco de ansiedade, se o vovô estava chegando (ele
gostava muito dele), se era a buzina do vovô que estava tocando. Às vezes
ele fechava os olhos, como se estivesse tentando afastar uma visão assustadora.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
A “corporeidade” do objeto externo (a terapeuta) pode ser explorada
através de uma representação dele (a cadeira que a ela pertence), assim
como a representação do indivíduo (o carro de bebê). No entanto, essas
representações são pré-simbólicas, cheias de elementos sensoriais (a sensação de deslizar, a textura do tecido da cadeira). Mas Tito só conseguirá
se aproximar do objeto externo através dessas representações que suavizam sua alteridade. Mesmo assim, quando ele experimenta a sensação do
seu corpo ser contido pela minha cadeira e me vê olhando para ele, sentese vulnerável de novo, prestando atenção a sinais externos, de forma a se
sentir mais seguro. Ele evoca o vovô-Tito; fecha seus olhos como se estivesse em perigo, tentando me fazer desaparecer (além do mais, essa é a
única maneira que o bebê” tem de evitar cenas assustadoras, já que ele
não pode fugir). Seria o constante medo de cair manifestado por Tito equivalente à percepção da separação corporal dos pais?
Às vezes, Tito brincava com seu rosto virado, de forma que não pudéssemos nos ver. Quando eu não entendia o que ele falava, fechava os
olhos. Se eu fizesse qualquer comentário sobre o seu desejo de apagar minha fala, ele dizia, em tom de gemido: “Mamãe! Mamãe vai chegar?”
Um dia ele estava movendo os carros sobre minha cadeira e, subitamente, exclamou: “Papai! Papai vai chegar?”.Parecia estar contente. Então
eu pronunciei estas infelizes palavras: “Você está lembrando do Papai e da
Mamãe que não estão aqui agora, não é?” Ele repetiu, com uma expressão
de profunda dor: “Papai vai chegar? Cair?” Eu disse: “O Papai segura o
carro de bebê e, quando o carro de bebê está sem o papai, ele vai cair?”,
apontando para o buraco sob o braço da cadeira que ele havia me mostrado,
alguns minutos antes. Nesse momento, ele olhou para mim de forma estrábica.
Agora, estamos discutindo um encontro doloroso com o objeto discriminado o estranho, o não-eu, ao contrário de Mamãe e Papai, que parecem funcionar como uma extensão do “eu”, tão íntimos que a comunicação verbal não é necessária. No entanto, se lhe for assegurada a continuidade da existência de Mamãe e Papai, conseguirá desfrutar de alguns
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Iuri
O último exemplo clínico que citarei refere-se a um menino de 11
anos que faz psicanálise desde os quatro, quando foi feito o diagnóstico de
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Vera Regina J.R.M. Fonseca
momentos desse encontro. Mas, ao invés de apoiá-lo, indico a ausência, e
assim fazendo, eu, subitamente, coloco em perigo sua capacidade de ficar
junto comigo, enquanto diferente de mim. Então, ele manipula a sua percepção de mim, de forma autística, ficando vesgo.
Mais tarde, ele estava batendo na porta-janela; eu lhe disse para não
fazê-lo, mas ele insistiu. Eu disse não novamente. Então, ele olhou para
mim assustado: “Véa [era sua forma infantil de pronunciar meu nome],
Véa chegou?”
O “Não!” vem do não-eu e, por esse motivo, é uma fonte de medo. Eu
chego com o meu “Não!”, mostrando-lhe minha alteridade. Não acredito
que esse medo advenha de frustração ou ódio. É algo muito maior: demonstra que eu tenho propósitos que são diferentes dos dele, eu quebro a
ilusão de continuidade entre nossas mentes. Isso me torna má e assustadora.
Meses depois, ele tentou tirar as roupas do boneco, mas não conseguiu. Ficou olhando fixo para a frente e ficou lívido, como se estivesse
prestes a ter uma crise comicial. De repente, ele se virou para mim, sorriu e
disse, em um tom de quem pede ajuda: “Véa, Véa tira?”
A falha na tentativa de negar a condição de ser separado do objeto (e,
como conseqüência, ser confrontado com a situação de estar indefeso, com
a dependência e a necessidade de se comunicar) quase leva a uma total
perda de integração das funções mentais. Felizmente, no entanto, Tito conseguiu superar essa situação, aceitando a realidade, que, nesse caso, significa reconhecer sua necessidade e a necessidade de se articular para ser
compreendido e obter alguma ajuda. Talvez, pela primeira vez, ele consiga
considerar o outro como não necessariamente ruim, mas como potencialmente bom e providencial. Essa percepção leva a usar as capacidades do
objeto e a continuar no curso do desenvolvimento.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
psicose simbiótica. Ele falava muito pouco durante a sessão e era bastante
fechado. Embora bilíngüe, não se expressava bem em nenhuma das línguas.
Iuri havia dito, recentemente, que eu era o “carrasco” (aquele que enforca as pessoas). Na época, ele estava passando muito tempo totalmente
absorto na tarefa de criar diferentes tipos de monstros extraterrestres, em
argila. Quando eu fazia qualquer comentário sobre como era difícil para ele
ter consciência do fato de eu estar viva, ele respondia com uma raiva
incomum: “Agora, chega!” No entanto, fiquei pensando, ele estava usando
a argila e o material de pintura que lhe dei, depois trancava-os em meu
armário (onde, a propósito, ele queria dormir).
Eu sou persecutória quando me apresento com meus pensamentos e
palavras individuais, as quais quebram a ilusão de que Iuri, meu armário
e minha argila estão em um estado de continuidade. Ele pode usar as coisas concretas que lhe dei como se fossem dele, mas os sinais de minha
existência autônoma são percebidos como agressões.
O mundo externo é um mundo de terremotos: Iuri se cobriu completamente com os cobertores, construindo uma espécie de casa com as cadeiras. Usou seus pequenos brinquedos para fechar os espaços entre os cobertores. Colocou as almofadas e o tênis para dentro. Quando perguntei por
que fez isso, respondeu em sua sintaxe pobre: “Pra não pegar terremoto”.
Então, ele me mostrou como a apresentação de mim mesma, como um
objeto externo, tinha que ser parcial, cuidadosa e lenta para ser assimilada.
Disse-me que iria entrar na casa para dormir e “sonhar desenho animado”.
Eu fiquei do lado de fora e, mesmo que tentasse falar, não obtinha resposta.
Estava me sentindo sonolenta e encostei o meu pé contra o dele, que apareceu sob a coberta. Ele, imediatamente, pegou o meu pé, mantendo o contato. Subitamente, empurrou meu pé para longe, depois pediu que eu o colocasse novamente perto do dele e que dissesse palavras na sua segunda língua.
Iuri procurava abrigo do mundo exterior, que é ruim (o mundo nãoeu), envolvendo-se suavemente em uma nuvem de desenhos e sonhos co476 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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nhecidos. Eu tinha que manter o contato físico e falar sua língua, para
perder minha qualidade de “não eu”. Então, tornei-me um objeto sensual,
causando uma espécie de comunhão física entre nós.
Iuri voltou das férias há uma semana, comportando-se de forma agitada, quase enlouquecida. Ele pretendia desenhar, mas ria e falava bem alto,
em sua segunda língua. Quando tentei chegar mais perto, ele se afastou.
Pegou um espelho de duas faces e começou a brincar de misturar nossos
rostos: ao alinhar o espelho com o seu nariz, ele olhava em meus olhos e
juntava-os com a parte de baixo do seu rosto. O que eu via eram seus olhos
misturados com a minha boca. Ele ria bastante, balbuciava alguma expressão de desdém e girava o espelho para tentar ver o que eu estava vendo. Eu
lhe disse que, talvez após o meu desaparecimento durante as férias, ele
estava tentando nos reunir (embora de uma forma bastante confusa).
A essa altura, ele estava bastante agitado, sendo impossível estabelecer contato. Naquele momento, lembrei-me da história de um desenho que
ele costumava contar, sobre como Abel perdeu sua querida Saori, e compartilhei essa lembrança com ele, que se deitou, pedindo que eu o cobrisse.
Então, disse: “Abel é o rei do sol”. Eu falei que não era grande coisa para
Abel ser o rei do sol se ele havia perdido Saori. Ele, gentilmente, tocou a
minha mão por baixo da coberta. Continuei falando sobre a tristeza de Abel
por ainda não ter encontrado Saori. Então, ele disse: “É Shiriu [outro personagem da mesma estória]. Ele está cego, olho sangrando.” “Está escuro e
ele não consegue ver Saori”, eu disse. Nesse momento, ele imediatamente
recolheu suas mãos, fechou seus olhos e riu. Eu disse que poderia tê-lo
machucado com minhas palavras. Mas isso era inútil, pois ele ainda estava
agitado e continuou rindo e falando sem parar até a sessão terminar.
O afastamento, por longo tempo, faz com que a percepção da separação seja novamente traumática. Minha presença não é apenas uma fonte
de excitação, mas, também, de perturbação aguda. Através de seu jogo
com o espelho, ele tenta misturar nossas imagens, de forma a embaçar
nossa separação, mas à medida que eu me mantenho viva, falando com
ele, mostrando a ele (talvez demais, para esse momento em particular) que
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
eu tenho mente própria, que funciona em seu próprio ritmo, ele me trata
com desdém. Nesse momento, eu lembro os estados idílicos de fusão entre
Abel e Saori (que, na estória real, são irmãos) e, em seguida, faço uma
referência à dolorosa perda dessa ligação. Parece que consegui evocar
uma emoção real, viva, tão intensa que ele tem que se cobrir. Protegido
sob as cobertas, procura abrigo em um estado narcisista, mas vem a conseguir encontrar palavras para expressar “o olho que sangra quando perde a luz do sol”, resultante da ruptura do estado de fusão. Separado, o que
resta para ele é nada mais do que excitação, sem direção. Quero enfatizar
que é exatamente essa ruptura, sentida violentamente, que traz a rejeição
de tudo que é ligado ao não-eu.
Conclusões
Tentei apresentar, através de exemplos clínicos, as vicissitudes do encontro físico e emocional com o objeto externo, focalizando o aspecto
crucial da apresentação de objeto. No contexto de crianças gravemente perturbadas, isso pode nos ajudar a avaliar a intensidade da rejeição e também
o tipo de tratamento que permite que se (re)estabeleça alguma interação.
Gostaria, também, de enfatizar minha impressão de que as vicissitudes da
apresentação de objeto, ora discutidas, também pertencem ao chamado
desenvolvimento normal, embora nem sempre sejam aparentes sem uma
microanálise das seqüências interativas. Espero voltar a essa questão mais
adiante. Tentarei fazer uma breve revisão dos principais pontos em cada
caso e, depois, extrairei minhas conclusões.
O ponto crucial, para Alex, é sua violenta ansiedade persecutória, na
presença do outro, determinada particularmente pelos traços faciais. Na
verdade, o rosto humano é tão móvel e imprevisível! Parece que o seu
medo da outra pessoa se baseia não no seu poder de infligir dor física, mas
no poder psicológico de romper o bloqueio perceptivo, o que significa que
o medo é do estado mental que se coloca no interior no outro. Então, de
forma delirante, ele procura pedaços suaves do outro, que possam ser transformados em pedaços “eu” (o toque, os beijos sensuais que ele dá a sua
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mãe, etc.) e tudo o mais é sentido como o “não-eu”; isto é, a parte má do
objeto, com o qual ele não pode se fundir: o “dragão” (ou leão, baleia,
monstro, que são os nomes que ele usa para se referir a esses objetos assustadores). No entanto, é improvável que isso seja o mesmo que um mau
objeto, uma vez que a cisão normalmente gera o objeto bom e o ruim,
assim como o self bom e o mau. Não é o caso aqui: a cisão parece ser entre
eu (objeto bom) e não-eu (objeto mau).
Se eu o protejo da percepção de mim mesma como um corpo completo, cheio de alteridade (isto é, provavelmente, um predador), se eu o cubro
e me mostro aos poucos, de forma que ele possa regule meu aparecimento,
ou em um ritmo que prediga o que vai acontecer, então conseguimos estabelecer algum contato. No entanto, como ele não consegue modular seus
sentimentos, esse contato o faz enfrentar outro dilema: o desejo violento e
excitado dirigido a mim e o risco de mergulhar dentro de mim e talvez ser
destruído lá dentro. Na verdade, parece que o interior do objeto se equaliza
com o seu estado mental e é percebido como um lugar perigoso, a ser evitado, apesar do desejo de entrar. Então, em vez disso, ele adere aos atributos físicos do objeto, e mesmo esses têm que ser apresentados de forma que
ele possa assimilá-los aos poucos.
Sua prejudicada capacidade de se manter estável é ameaçada pela turbulência mencionada acima. A desintegração constante parece ser defensiva (a estratégia de guerrilha de espalhar as partes do self frente ao inimigo,
como foi apresentada em uma exposição oral por Sonia Abadi) ou o resultado de uma falha em adquirir, durante o desenvolvimento, uma capacidade mínima de coesão. Provavelmente, os dois aspectos se realimentam.
Nesse cenário, infelizmente, Alex não consegue registrar e integrar de forma adequada em sua mente os aspectos geradores de confiança do nosso
relacionamento, de modo que parece estarmos sempre começando do zero.
A tendência de usar partes do objeto (dedos, brincos, etc.) como substitutos do objeto, e transformá-los em objetos suaves com os quais ele possa criar um vínculo adesivo, enfatiza e, ao mesmo tempo, advém de sua
incapacidade de construir um objeto completo ou self-como-um-todo.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
Talvez, um registro traumático da desproporção corporal entre o adulto e o bebê pequeno desempenhe um papel nessa situação ou, talvez, tenha
sido um estilo intrusivo de cuidado que não deixou espaço para Alex agir
como um bebê.
Finalmente, gostaria de enfatizar o quanto Alex me lembra uma criança que Meltzer (1975) descreveu como não tendo nenhum espaço interno,
onde um objeto com espaço interno poderia ser mantido; daí sua grande
dificuldade de estabelecer um processo de formação de identidade.
A intensa adesão de Tito a uma representação fusional do objeto impede a aceitação do mesmo, que se apresenta como vindo do mundo externo. A “vergonha” (isto é, os sentimentos mistos de estranheza e curiosidade) coloriu os encontros, produzindo tal tensão que a ameaça de um surto
de terror estava sempre presente. Os pais de Tito não são como objetos
internos e externos para ele; em vez disso, são uma extensão que lhe permite ser física e psicologicamente apoiado. E eu sou o objeto externo, o outro.
Mais uma vez, o ritmo, os jogos previsíveis que me apresentaram, aos poucos, a ele, permitiram uma mudança da desconfiança tímida para a possibilidade de usar meus atributos, quando ele finalmente conseguiu me pedir
ajuda.
No caso de Iuri, a presença física do objeto até pode ser aceita, embora
mais através do toque do que visualmente, sinalizando sua forte preferência por ligações sensuais. É a existência psicológica autônoma do objeto,
sua capacidade de pensar e estar vivo, que é persecutória. Assim, ele extrai
benefícios das ofertas e posses do objeto real e as incorpora, como se fossem dele, deixando a mente do objeto no esquecimento. Esses pedaços
tomados por empréstimo se organizam dentro de seu mundo interno, adquirindo um tipo bizarro de vida autônoma, à qual é muito difícil sintonizar-se. Se tentássemos penetrar no frágil invólucro dessa colcha de retalhos, viríamos a nos transformar em monstros ou gigantes persecutórios, e,
mais uma vez, não se estabeleceria contato. Mas, se encontrarmos uma
forma suave e paciente de nos apresentar (na verdade, se conseguirmos nos
tornar um desses personagens bizarros, por algum tempo), e se tivermos a
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sorte de encontrar as palavras certas, que não machuquem, mas se encaixem em sua experiência emocional, podemos ser usados, ao menos por
breves momentos.
Podemos abordar de diversas maneiras os fenômenos associados com
a apresentação do objeto, e estão implícitas importantes questões teóricas
nesse assunto. Uma delas se refere à ilusão da fusão e à chamada simbiose.
Tentarei montar algumas idéias sobre essa questão.
Representando uma idéia amplamente difundida em atuais pesquisas
infantis, Stern (1985) enfatiza que não há estado de não-diferenciação durante o período pós-natal, afirmando que não se pode sustentar uma idéia
de simbiose normal, o que levaria a uma afirmação semelhante sobre a
ilusão de fusão como parte do desenvolvimento normal.
Na verdade, Klein e seus seguidores sempre mantiveram que, a partir
do nascimento, haveria uma percepção da separação da mãe, assim como
um ego rudimentar que extrairia benefícios de recursos inatos de comunicação para alcançar o objeto. Somente através da identificação projetiva,
seja na sua função comunicativa ou defensiva, pode-se atingir um estado
de união ou confusão com o objeto.
Por outro lado, Winnicott afirma, diversas vezes em seu trabalho, que
é necessário um estado inicial de não-percepção da separação para que um
espaço transicional possa, mais tarde, substituir a união primitiva. A dualidade não pode ser percebida no começo, já que isso iria colocar em perigo
a construção da subjetividade. O objeto deve ser apresentado através daquela ilusão para vir a ser aceito em sua alteridade.
Ogden (1985) acrescenta algumas idéias interessantes aos conceitos
de Winnicott. Ele escreve sobre uma “unidade invisível”, talvez um estado
virtual, que seria o ponto de partida para uma dialética da união-separação,
cujo desenvolvimento também construiria um relacionamento dialético
entre a realidade externa e interna, em que um dos pólos estaria continuamente informando e constituindo o outro pólo. A patologia seria resultante
da falha em criar e manter esse relacionamento, determinando imobilidade
em um dos pólos.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
Em “Splitting and projective identification” (“Cisão e identificação
projetiva”), Grotstein desenvolve uma tese engenhosa, o “teorema da dupla trilha”, conforme o qual a separação existe lado a lado, com um estado
de identificação primária ou narcisismo primário (também chamado por
ele de “simbiose”). O bebê poderia se manter em uma ou outra dessas duas
trilhas, de acordo com a necessidade psicológica do momento.
Os esforços de Ogden e Grotstein para reconciliar os dados clínicos
aparentemente conflitantes sobre a existência ou não do chamado estado
de fusão no início da vida, têm a vantagem de ser compatíveis com a forma
com que o processo ocorre no desenvolvimento, alimentando-se mútua e
progressivamente, continuamente mudando a configuração do todo.
Vamos considerar, brevemente, outra fonte de informação sobre o desenvolvimento normal, focalizando o objetivo deste trabalho. Em seu trabalho com duplas formadas pelo bebê e sua mãe, Brazelton e Cramer descrevem como, durante os primeiros meses, a interação é determinada por
indícios e iniciativas da criança. Por exemplo: o bebê olha para a mãe e
então a mãe começa a olhar para ele, e cria-se um ciclo de interação. Esses
ciclos mostram certas características, como períodos de atenção mútua seguidos por períodos de retração (geralmente de parte do bebê). Isso significa que o bebê pode ter experiências de estar em uma espécie de “união”,
mas depois se afastar, para o seu próprio self (longe do adulto) e depois
voltar. Tanto a alteridade quanto a união estão embutidas no mesmo ciclo,
contanto que o adulto permita que a seqüência siga o ciclo. Além disso,
desde o começo, o objeto tem que se apresentar com uma distância, velocidade e expressão ótimas para atrair a atenção do infante e disparar os dispositivos inatos para a interação humana; do contrário, podemos obter o
afastamento do bebê.
O respeito do adulto pelas indicações da criança para dar forma à
interação permitirá que ela regule a apresentação de objeto. Então, em um
momento, constrói-se um padrão de relacionamento, em que a “dualidade”
é alternada com a “unidade” na forma dialética descrita por Ogden. Em
minha opinião, esse padrão tem fortes ligações com a construção de repre482 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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Vera Regina J.R.M. Fonseca
sentações internas do objeto e o self e com a aceitação da alteridade.
Por outro lado, se o estado mental do adulto não permitir que o infante
tenha espaço na interação, o resultado será uma experiência de intrusão e
talvez de perigo. Nas descrições de Brazelton e Cramer de um relacionamento normal, é enfatizado o quão suave, observador e calmo o adulto
deve ser para prestar atenção ao verdadeiro bebê e seus reais recursos, assim como a suas limitações. Sabemos que nossos pacientes não tiveram
tanta sorte. Como as interações iniciais, em geral, não foram bem sucedidas e não podem ser corrigidas rapidamente, aparecem amplas manobras
de defesa, mudando fundamentalmente o curso do desenvolvimento. Em
vez de simples retardos, encontraremos distorções, embora ambos possam
aparecer em um complexo padrão combinado.
Por um lado, não é possível afirmar a existência, no começo da vida,
de um estado normal de fusão no qual o bebê é poupado da percepção da
separação. Por outro, a criança normal – com variações individuais – parece necessitar de um certo grau de previsibilidade. Tal necessidade, em sua
forma extrema, é característica de patologia. Na verdade, na patologia, há
uma forte adesão defensiva à crença na onipotência, assim como uma intolerância à realidade externa. Por exemplo, Iuri deita sob a mesa e se fecha
dentro desse espaço, com cobertores. Ele diz que vai estar “amando Saori”.
Quando o “pano” cai, por acidente, e ele vê que eu estou do lado de fora e
não dentro com ele, parece decepcionado e imediatamente me pede para
fechar as cortinas novamente, tentando negar sua limitada capacidade de
mudar a realidadede acordo com suas necessidades e desejos.
Existe ainda outra questão: no caso de crianças muito doentes, parece
haver mais pré-requisitos de desenvolvimento para tolerar a presença física
do objeto como um todo. Talvez seja necessário um mínimo senso de coesão interna e de um self delimitado. Darei outro exemplo: Alex estava muito agitado e desligado, correndo ao redor da sala. Decidi fazer uma casinha,
usando o cobertor para cobrí-la. Ele, imediatamente, levou a almofada para
dentro da casa. Por baixo da coberta, procurou a minha mão e, subitamente, beijou-a. Contido, ele consegue aceitar e fazer uso do objeto. Então,
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
pegou minha caneta que estava ao meu lado e colocou-a dentro da casinha,
através de um pequeno orifício nas cobertas. Estaria ele se sentindo completamente exposto e, por isso, incapaz de aceitar qualquer coisa? Se isso é
verdade, uma vez protegido, fisicamente (e psicologicamente) contido, ele
obtém orifícios e pode regular o que entra e o que sai de si mesmo.
É evidente o quanto Iuri e Alex anseiam por uma completa união com
os elementos físicos do objeto, como rejeitam atributos mentais, uma vez
que esses atributos não podem ser fisicamente apreendidos e controlados
(e eles contam bastante com esse tipo de experiência). Tenho que me apresentar fisicamente, de forma a me tornar aos poucos um ser psicológico,
um ser com uma mente. Gradualmente, eles conseguem fazer contato com
as peculiaridades de funcionamento da minha mente, o que significa um
começo de crescimento de suas mentes.
Finalmente, se pensarmos sobre os casos discutidos acima, podemos
concluir que, ainda que algumas crianças possam ter alguma agressividade
inata, com maior tendência a reações violentas, ou algum tipo de
hipersensibilidade psicológica, certamente houve um grave desencontro
entre a “técnica” do adulto ao cuidar da criança e a constituição pessoal do
bebê, prejudicando o surgimento da tolerância à alteridade.
Com relação a essa questão, o que interessa para Winnicott é o estabelecimento de uma base sólida de ilusão, por causa da vulnerabilidade do
recém-nascido à invasão por parte do ambiente. Para Klein, seria a qualidade e a intensidade das identificações projetivas que poderiam transformar o
objeto ausente em mau determinando a rejeição do objeto real. Devemos
lembrar o papel que Bion atribuiu ao objeto ao modificar essas projeções, e
um dos aspectos dessa transformação pode ser, precisamente, a “técnica”
de se apresentar que Winnicott discutiu.
Do ponto de vista do desenvolvimento, a tragédia consiste em que o
fato de repelir o objeto que é apresentado impede tanto a formação de um
eu contido e discriminado, quanto a internalização de um objeto continente, e a tendência à fragmentação alimenta esse ciclo maligno, obstruindo o
espaço em potencial, onde os símbolos – chaves para as portas infinitas da
484 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Créditos: Gostaria de agradecer à Dra. Izelinda Garcia Barros, à Dra.
Sonia Abadi, que fizeram valiosas sugestões, e a Mr. John Robert Delaney,
Jr, que gentilmente revisou a tradução.
Sinopse
Com base em sua experiência com crianças psicóticas que sofrem dificuldades graves em tolerar a existência autônoma de um objeto externo, a autora discute o conceito de Winnicott de apresentação do objeto, perguntando quais são os
pré-requisitos para a aceitação e uso de objeto por parte dos bebês; isto é, para
assimilação de sua alteridade. Faz-se uma tentativa de estabelecer uma ligação
entre as idéias de Winnicott e Klein sobre o assunto, e indica-se uma possível
importância dessas questões no desenvolvimento normal. Três exemplos de crianças psicóticas são usados para ilustrar, com detalhes, diversas manobras para evitar a percepção do não-eu, no padrão de pensamento tão bem examinado por
Tustin. Após a discussão clínica, a autora conclui que algumas crianças podem
ser, de forma inata, mais suscetíveis a reagir de forma negativa à percepção da
alteridade da pessoa que cuida delas, e que essa característica se combina com as
condições ambientais, particularmente com o estilo do cuidado materno, para
produzir ou evitar outras patologias. O ritmo, os jogos de imitação e a apresentação gradual e parcial do objeto externo, e também alguns métodos possíveis para
controlar o objeto, parecem pertencer ao conjunto de “técnicas” maternas que se
usam, espontaneamente, durante as interações. Esse estilo, por vezes, pode também ser útil no trabalho de psicanálise com crianças com graves perturbações.
Summary
On the basis of her clinical experience with psychotic children who suffer
from severe difficulties in tolerating the autonomous existence of the external
object, the author discusses Winnicott’s concept of object-presenting, asking what
the prerequisites ate for infants’ acceptance and use of the object; that is, for its
otherness to be assimilated. An attempt is made to establish a connection between
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 485
Vera Regina J.R.M. Fonseca
realidade compartilhada – devem surgir do encontro emocional com um
objeto vivo.
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
Winnicott’s and Klein’s ideas on this subject, and the possible importance of such
issues in normal development is indicated. Three examples of psychotic children
are used to illustrate in detail several manoeuvres for avoiding the perception of
the not-me, in the pattern of thinking that Tustin examined so well. After the
clinical discussion, the author concludes that some children may be innately more
susceptible to reacting negatively to the perception of the caretaker’s otherness,
and that such a characteristic combines with the environmental conditions,
particularly to the style of maternal care, to produce or prevent further pathology.
The rhythm, the imitative games, the gradual and partial presentation of the external
object, and also certain possible methods ofcontrolling the object, seem to belong
to the set of maternal “techniques” that are used spontaneously during the
interactions. This style can also be useful at times in psychoanalytical work with
severely disturbed children.
Sinopsis
Con la base en su experiencia con niños psicóticos que sufren las dificultades
serias tolerando la existencia autónoma de un objeto externo, el autor discute el
concepto de Winnicott de presentación del objeto, mientras preguntando qué son
los requisitos previos para la aceptación y uso del objeto por parte de los bebés; es
decir, para la asimilación de su alteridade. Es hecho un esfuerzo de establecer una
conexión entre las ideas de Winnicott y Klein en el asunto, y se indica una posible
importancia de esos asuntos en el desarrollo normal. Se usan tres ejemplos de
niños psicóticos para ilustrar, con detalles, varias maniobras para evitar la
percepción del no-yo, en el modelo del pensamiento tan bien examinado por Tustin.
Después de la discusión clínica, el autor aborda que algunos niños pueden ser, de
una manera innata, más susceptible para reaccionar de una manera negativa a la
percepción del alteridade de la persona que cuida de ellos, y que esa característica
combina con las condiciones medioambientales, particularmente con el estilo del
cuidado maternal, producir o evitar otras patologías. El ritmo, los juegos artificiales
y la presentación gradual y parcial del objeto externo, y también algunos posibles
métodos para controlar el objeto, parezca pertenecer al grupo de “técnicas”
maternales que se usan espontáneamente, durante las interacciones. Ese estilo,
por tiempos, también puede ser útil en el trabajo del psicoanálisis con los niños
con las perturbaciones serias.
486 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Psicose infantil; Trastornos globais do desenvolvimento; Pesquisa em desenvolvimento; Apresentação do objeto.
Key-words
Childhood psychosis; Global upset of development; Researches in
development; Object-presenting.
Palabras-llave
Psicosis infantil; Transtornos globales del desarrollo; Investigaciones del
desarrollo; Presentación del objeto.
Bibliografia
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Infants, and the Drama of Early Attachment. Reading, MA: Addison-Wesley.
[As Primeiras Relações, trans. Marcelo Cipolla. São Paulo: Martins Fontes,
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trans. Eva Nick. Rio de Janeiro: Imago, 1982.]
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 487
Vera Regina J.R.M. Fonseca
Palavras-chave
O FENÔMENO DA APRESENTAÇÃO DO OBJETO E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO
[O Mundo Interpessoal do Bebê, trans. M. Adriana and V. Veronese. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1992.]
TUSTIN, F. (1972). Austin and Childhood Psychosis. London: Hogarth. [Autismo
e Psicoses Infantis, trans. Isabel Casson. Rio de Janeiro: Imago, 1975.]
WINNICOTT, D.W. (1962). Ego Integration in child development. In The
Maturational Processes and the Facilitating Environment, pp.56-63. [A
integração do ego no desenvolvimento da criança. In O Ambiente e os Processos de Maturação, trans. Irineo C.S. Ortiz. Porto Alegre: Artes Médicas,
1982, pp.55-61.]
______. (1971). Playing and Reality. London: Tavistock. [O Brincar e a Realidade, trans. José O.A. Abreu & Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975.]
Artigo
Copyright © Institute of Psychoanalysis,
London, 1999.
Dra. Vera Regina J.R.M. Fonseca
Al. Jauaperi, 1413
04523-010 São Paulo – SP – Brasil
E-mail: [email protected]
488 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
O pensamento de Bion, expresso em seus trabalhos conceituais e
técnicos, exemplificado em seus estudos clínicos e metodológicos e
nas múltiplas supervisões registradas e publicadas ao longo de sua
vida, aprofundou e ampliou inúmeros conceitos e regras técnicas da
Psicanálise, para além dos limites
em que foram originalmente criados
e definidos.
Quando o pensamento de Bion
chegou ao campo psicanalítico, a
metodologia e o acervo conceitual
da ciência criada por Freud já estavam enriquecidos pelas “contribuições afinadas” 1 de muitos outros
Waldemar Zusman
Membro Titular em Função
Didática do GEP – Rio 3 (Grupo
de Estudos Psicanalíticos Rio 3)
1. Tomo emprestada a expressão de Carlos
Doin, utilizada em seu trabalho “Psicanálise e
as neurociências” (2000).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 489
Waldemar Zusman
Influências
de Bion na
Técnica
Psicanalítica
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
autores, dentre os quais destaco especialmente Melanie Klein, pelo volume
e profundidade de suas contribuições.
Como qualquer outro ramo do conhecimento humano, a Psicanálise
se organiza em torno de alguns conceitos básicos e originais, que lhe conferem uma identidade própria. Alguns são centrais, como o Complexo de
Édipo, a Transferência, o Inconsciente Dinâmico e as Séries Complementares. Tomados em sua totalidade, a soma destes conceitos centrais e a de
outros periféricos terminam por se constituir numa Concepção de Mundo2,
cujos pilares essenciais, ou Princípios Ordenadores, como prefiro chamálos, são esses mesmos conceitos.
A operacionalização da Psicanálise como recurso terapêutico dependeu, essencialmente, das regras criadas por Freud: a “livre associação de
idéias”, a “atenção flutuante”, a “neutralidade e abstinência”. Entre elas,
talvez, nenhuma tem maior significação do que a “atenção flutuante” (regra do analista), que funciona como par complementar da “livre associação
de idéias”, recomendada ao paciente.
Esses dois recursos, que tanto o analista quanto o paciente devem
cumprir, desorganizam, no paciente, o discurso lógico e, no analista, a busca direcionada, essencial ao processo secundário. Se as regras se cumprem,
a livre associação de idéias fica mais próxima do processo onírico do que
aquele tipo de relato metódico e constante que muitos pacientes adotam
para falar de seus males, contando histórias selecionadas, defendidas. A
“atenção flutuante”, por sua vez, instala na mente do analista um estado de
percepção que não escolhe alvos definidos, como ocorre ao sonhador, enquanto sonha. Assim, o campo mental resultante ganha mais similitude
com um rebaixamento de consciência capaz de conduzir a um “sonho de
vigília”, ainda que não necessariamente ao sono3 .
2. Emprego este conceito (Weltanschauung) com um sentido diferente que o fez Freud em seu
artigo The question of a Weltanschauung (1933, p.158-182). Prefiro o conceito de Money Kyrle,
em Man’s picture of the world (1961). Entendo que a Psicanálise tem uma Imagem de Homem
peculiar, e isto gera uma Concepção de Mundo própria, mais intuitiva do que racional.
3. Em um trabalho meu, intitulado “Transferência como mecanismo de defesa” (1974), chamei de
Estado Transferencial a este estado de consciência.
490 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 491
Waldemar Zusman
Após esses achados de Freud, nada de mais significativo foi acrescido, ao longo do tempo, aos recursos metodológicos, facilitadores do fluxo
transferencial. A esses elementos metodológicos do processo psicanalítico
que acabo de referir, Bion acrescentou contribuições de extraordinária significação, que decorrem da qualidade original de suas investigações.
Bion é essencialmente um psicanalista epistemólogo, profundamente
interessado na elucidação dos processos do conhecimento da vida mental
do analista, dentro e fora das sessões. Sua Grade, como se sabe, é um exercício de após sessão, e a Capacidade Negativa da Mente, um estado a ser
alcançado e utilizado dentro e fora do consultório, uma tolerância com o
não saber. Em Attention and interpretation (1970), Bion, tendo amadurecido e ampliado seu conceito de “memória e desejo”, enfatizou uma recomendação técnica que otimiza a postura do analista perante seu paciente. O
analista, diz Bion, deve se submeter a uma disciplina de abstenção de memória e desejo, até mesmo do desejo de compreender o paciente e de curá-lo.
Alguns analistas não compreenderam a extensão e a profundidade da
sugestão de Bion, embora ela, na verdade, pouco difira do que Freud recomendava, ao falar “atenção flutuante” e seu par correlato, a “livre associação de idéias”. A disciplina de abster-se de desejo e memória, no entanto,
representa um ângulo de abordagem e reconhecimento da relação do analista com os elementos de que se compõe o seu estado mental dentro do
consultório, enquanto ouve o paciente.
É um conceito que estende e desdobra a recomendação de Freud, o
preceito de “atenção flutuante” ou igualmente suspensa. Ao ouvir o paciente, com a mente saturada pelas lembranças da sessão da véspera ou
pelas teorias com as quais pretende captar o sentido das comunicações, ou
ainda, movido por qualquer tipo de desejo de compreender ou curar, a escuta analítica fica opacificada.
A abstenção de memória e desejo, como condição da boa escuta psicanalítica, procede da assertiva de que o objeto psicanalítico que se pode
captar nas sessões não deriva de impressões sensoriais e de seus equivalentes mnêmicos.
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
A intuição que capta o objeto psicanalítico só se revela capaz de fazêlo quando, no analista, o exercício de supressão de memória e desejo teve
êxito. Não se pode duvidar de que Freud e Bion captaram o aspecto essencial do acesso ao funcionamento da mente, por distintos caminhos. O de
Freud (atenção flutuante) levou-o a ter que criar o conceito complementar
de “neutralidade”, mal compreendido e mal utilizado ao longo dos tempos.
O de Bion (sem memória e sem desejo) trazia já implícito o tema da “neutralidade”.
Na recomendação metodológica de Bion se inclui, ainda, uma forma
de o analista lidar com a sua própria transferência frente ao paciente, na
sessão, já que memória e desejo definem formalmente a substância dos
conteúdos transferenciais. A disciplina de abster-se de memória e desejo
que libera simultaneamente, no analista, a capacidade intuitiva e neutralidade, possibilita a interpretação que transita de O para C e de C para O.
Ainda que Bion tenha iluminado, com notável perspicácia, muitos
outros campos da personalidade humana, creio que nada excede sua teoria
do pensamento, uma área da Psicanálise que carecia de uma investigação
em profundidade. O passo inicial e mais importante dentro deste emaranhado território do pensamento coube a Freud, como assinala Zimerman,
ao descrever o “processo primário” e o “processo secundário”, com suas
perturbações derivadas do interjogo entre o “princípio do prazer” e o “princípio da realidade”.
Bion não se afasta da concepção freudiana que toma a frustração por
móvel principal da criação de recursos alternativos no plano da mente.
Coerente, também, com os pontos de vista kleinianos, que tomam a relação
com o seio como a fonte primária da gratificação e da frustração, ele formula um de seus magníficos trocadilhos aforismáticos e causalistas: no
thing, therefore a thought. A esta expressão retornaremos mais adiante.
Sua teoria do pensamento se sustenta em dois modelos. Um deles, de
todos sabido, é o do aparelho digestivo. O pensamento deve criar um sistema capaz de pensá-lo, ou, por fidelidade ao modelo, digerí-lo. Esta é a
tarefa de que se incumbe a função α, responsável pela produção dos ele492 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 493
Waldemar Zusman
mentos α, que, uma vez digeridos, se prestam ao exercício do sonhar e do
pensar. Já os elementos β, indigeríveis, para nada mais servem, senão para
serem evacuados.
Ainda no terreno de sua teoria do pensamento, inscreve-se seu controvertido conceito de “pensamento sem pensador”, de mais difícil assimilação. Instado a esclarecer esse conceito, Bion afirma, na 4ª Conferência de
New York (1980), que existem pensamentos errantes em busca de quem os
queira alojar, tal como os seis personagens de Pirandelo, que andavam em
busca de um autor. A metáfora utilizada na resposta tem qualidades estéticas inegáveis, mas o modelo utilizado, nesse momento, é o das ondas eletromagnéticas que estão presentes à nossa volta, mas só podem ser captadas por instrumentos sensíveis, adequados a esse fim. Freud, em seu tempo, tomou a transmissão telefônica por modelo adequado para tornar inteligíveis os fenômenos telepáticos, hoje mais bem entendidos como “identificação projetiva”.
Castro (1999) entende que o “pensamento sem pensador” ganha melhor entendimento à luz do conceito de geistzeit, o “espírito da época”, que
abriga idéias latentes até que alguém seja capaz de formulá-las, como ocorreu com Mendel e Darwin, Bion e Krishnamurti; algumas dessas descobertas foram feitas, simultaneamente, por autores que nem se conheciam.
O “pensamento sem pensador” continua sendo matéria de muitas reflexões. No momento presente, eu o considero como algo que surge em
nossa mente e nos surpreende porque não estávamos direcionados por nenhuma busca pessoal, tendo a considerá-lo como descoberta que procede
de uma área da mente não obstruída por memórias, desejos, juízos e julgamentos.
Num trabalho anterior (1985), chamei esta área da mente de “área do
análogo”, para dar expressão topográfica ao fenômeno de paciência e segurança a que Bion se refere, quando diz que as interpretações psicanalíticas fazem na mente do analista um percurso semelhante ao percurso de PS
para D.
Só depois de evoluir da fase de paciência para a de segurança é que a
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
interpretação deve ser comunicada ao paciente.
O conteúdo das posições esquizo-paranóide e depressiva circula pela
área do Id, do Ego e do Superego, uma representação topográfica da mente
que os analistas costumam chamar de segunda tópica. Para distinguí-la da
“área do análogo”, proponho chamá-la de “área egóica”.
Dentre as muitas funções que o Ego desempenha em nossa personalidade, uma facilmente reconhecida é a tendência de apropriação e o sentimento de autoria, algo que se anuncia neste fácil trânsito do eu para o meu.
O “pensamento sem pensador”, em sua própria enunciação, já se define como um pensamento que escapou da apropriação egóica. Ele emerge
da “área do análogo” e se mantém, por algum tempo, desapropriado, sem
dono (como os personagens de Pirandelo), até que alguém o tolera e acolhe.
Só a abstenção de memória e desejo abre espaço para que a interpretação evolua de O para K, ou que aí, nesse mesmo espaço, um “pensamento
sem pensador” se apresente, disponível para a apropriação de quem a acolha.
A teoria do pensamento de Bion, a meu ver, de notável repercussão na
comunidade psicanalítica, modificou o equilíbrio temático da maioria dos
meetings científicos e das revistas de Psicanálise. O pólo pulsional da imagem de homem lançada por Freud cedeu lugar ao pólo cognitivo, sem que
isso implicasse reduzir a importância do inconsciente, cuja investigação o
pensamento de Bion realiza mais amplamente. Dizer que isto se resume à
introdução do vínculo K para uma coexistência mais constante com H e L
é demasiadamente conciso. Outro passo na mesma direção da ampliação
cognitiva foi o giro dado por Bion à interpretação do Complexo de Édipo,
que pôs entre parênteses a trama sexual e, sem negá-la, iluminou os fenômenos de arrogância, estupidez e curiosidade, uma conjunção constante
que permite suspeitar de um desastre ocorrido na área pulsional, que, em
maior ou menor grau, perturbou o processo evolutivo e distorceu a Concepção de Mundo e a Imagem de Homem numa incidência maior que o que
suspeitava.
A Grade (Bion, 1977) é também uma peça de substancial importância
494 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
No Thing Therefore a Thought
O famoso trocadilho de Bion dá por assentado que o pensamento se
origina em decorrência da frustração (suportada) imposta pelo seio ausente.
A meu ver, o que ocorre neste encontro entre o bebê e o seio ausente
(no thing) não chega a ser um pensamento, é antes uma representação
imagética do seio, ou uma alucinação, que cumpre as funções de uma equação simbólica, como descreveu Segal (1957). Daí, desses momentos iniciais da existência até que adquira a capacidade simbólica plena, o bebê
terá que fazer múltiplas evoluções da posição esquizo-paranóide para a
posição depressiva, até que a representação simbólica, que se traduz pelo
pensamento verbal, ganhe maior força de abstração e perca a concretude
sensorial, imagética.
A brincadeira do Fort/Da, observada por Freud em seu próprio neto de
18 meses, assinala Isaacs (1952), acompanhava-se de sons expressivos,
aos quais Freud, corretamente atribuiu o sentido de “foram-se embora”.
Para Freud e sua filha (a criança dizia “o o o oh”) esses sons significavam
algo, mas é certo que ainda não eram palavras, eram sons expressivos, interjeições, eram signos.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 495
Waldemar Zusman
na aumentada ênfase do interesse pelos processos cognitivos, embora o seu
uso recomendado a situe fora das sessões. Não creio que um estudioso de
Bion tenha se furtado a alguns exercícios, ainda que só para testá-la e testar-se. Ela funciona como uma dessas pedras de afiar lâminas e agudiza a
percepção dos elementos que se busca categorizar.
A trajetória que assinalei acima, de que a Psicanálise caminhou do
pulsional para o cognitivo, não me parece um extravio. Começando pelo
destino das pulsões em Freud, a Psicanálise mergulhou na apreensão dos
objetos internos e externos impregnados pela vida afetiva das posições
depressiva e esquizo-paranóide, definidas por Klein, e chegou, com Bion,
aos elementos da Psicanálise e à teoria do pensamento. O caminho percorrido cumpre a direção marcada pelo já consagrado aforismo de Freud: “o
que era Id, terá de ser Ego”.
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
Havia um carretel amarrado a um cordel. O bebê podia jogar o carretel
para fora do berço e puxá-lo de volta. Ao completar a operação, emitia o
som da. O controle que o bebê tinha sobre o carretel e a distância rigidamente garantida entre o carretel presente e, em seguida, ausente talvez possa ser considerado a primeira evidência de uma “equação simbólica”, como
descreveu mais tarde Hanna Segal (1957).
A rígida conexão de proximidade entre o representante e o representado é o que define a ‘equação simbólica’, ao tempo em que a distingue da
‘representação simbólica’, que supõe a ausência do representado, quando o
bebê já suporta a ausência do objeto, por já ter alcançado com maior estabilidade a posição depressiva.
Para o bebê; em lugar do seio ausente, o que se apresenta é uma imagem do seio, de caráter mnêmico ou alucinatório, com o que a criança se
tranqüiliza por algum tempo, durante o qual ela sente ou crê que controla o
seio. A brincadeira do Fort/Da do neto de Freud, uma “equação simbólica”, equivale à sucção do polegar ou de outros dedos, ou da ponta do lençol, o que Winnicott definiu, mais tarde, como objeto transicional.
Dos momentos iniciais da existência, até que adquira a capacidade
simbólica plena, o bebê terá de percorrer muitos ciclos ps⇔d até que a
representação simbólica, expressa no pensamento verbal, perca a
concretude da equação e ganhe progressivas qualidades de abstração.
Transcorre um longo período, variável para cada criança. O neto de Freud,
de 18 meses, já estava bem mais próximo do seu ingresso na capacidade de
simbolização do que um bebê, nascido há pouco tempo. Sua linguagem
podia conter alguns elementos simbólicos, mas o contingente sígnico,
interjeicional era mais forte.
Langer (1989), discípula de Cassirer (1964), situa esse período de ingresso no campo do simbólico ao redor dos dois anos de idade, quando
começa a fase da “lalação”, época em que a linguagem é onomatopéica e
interjeicional, numa palavra: expressiva, denotadora4.
4. Depois de instalada a capacidade simbólica, imagens e gestos também podem ser usados como
símbolos, quando o representante está ausente.
496 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Até que se dê o ingresso no mundo dos símbolos verbais, a representação mental é imagética e bem mais dotada de concretude sensorial do que a
palavra.
Os termos mais freqüentemente usados por todos os psicanalistas,
quando querem se referir à vida mental do bebê dotada de sentido, são
fantasias ou idéias. Ambas as expressões têm vínculos definidos com a
imagem. Eidos (em grego, significa forma, figura) se traduz comumente
por idéia, mas, no uso corrente, termina por se confundir com pensamento.
O que se apreende na vida mental infantil é traduzido, por nós, em pensamento verbal, como Freud o fez com seu neto de 18 meses, e Melanie
Klein, com os desenhos de seus pacientes mais jovens. Com o termo fantasia passa-se o mesmo, porque fantasia tem nítidos compromissos com a
imagem e claras ligações com a percepção visual. A vida mental do bebê é
essencialmente imagética, imagens de todos os órgãos sensoriais. Pode ser
captada por inferências empáticas e intuições, mas não é pensada no nível
simbólico. Mesmo a vida mental do adulto tem dominância imagética
quando estamos sós, mas ganha o campo da expressão verbal no ato da
fala, quando se torna linguagem, comunicação.
O que o bebê faz na hora da fome e da angústia pela ausência do seio
tem certa semelhança com o hábito adulto de guardar e emoldurar retratos
de quem se ausenta, recurso tipo “equação simbólica”, que atenua a saudade.
Por todos esses fatos assinalados a expressão mais próxima do que
ocorre na mente do bebê seria: No thing therefore an image5. A representação imagética tem mais concretude que a representação verbal6.
A vida mental transcorre no campo das representações. A representa5. No relato bíblico, o povo judeu, aos pés do monte Sinai, já não suportava mais esperar pela
volta de Moisés, que subira o monte para receber as Tábuas da Lei, e reinstalou o culto da imagem, proibido pelo monoteísmo.
6. No Brasil, circula uma expressão, freqüentemente dita de forma jocosa, por pessoas de baixa
instrução. A frase é usada em abordagens eróticas, nos programas humorísticos, quando a mulher
não cede aos primeiros galanteios, e o homem quer introduzir uma pressão maior na demanda. Diz
ele: “não tem tu, vai tu mesmo”. Lida no seu aspecto lógico, a expressão não (continua na p.498)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 497
Waldemar Zusman
Idéia, Fantasia e Pensamento
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
ção simbólica é uma aquisição recente do ponto de vista filogenético e
marca um salto que distingue a espécie humana de todas as que a precedem. A aquisição da linguagem verbal se inscreve no processo evolutivo,
que os antropólogos qualificam como Hominização, ao lado da
bipedestação, da oponência do polegar, do coito face a face, do aumento da
capacidade craniana e da redução do maciço facial.
A Psicanálise costuma se referir aos fenômenos que precedem à instalação da fala de forma englobada como período pré-verbal.
A expressão faz crer que a cesura, que separa o verbal do pré-verbal,
tem plenas justificativas. Aqui também, no terreno das representações e da
linguagem, há mais continuidade entre o que precede e o que vem depois,
do que se quer crer.
A capacidade simbólica inaugura na comunicação humana uma forma
de representar, na mente, alguma coisa que não necessita estar fisicamente
presente.
A vida mental é provida de significados desde os seus primeiros momentos, já o sabemos por Freud. Os estímulos pulsionais, sensoriais ou
cinestésicos fazem uma trajetória, do inconsciente ao consciente, deixando
uma memória visual, olfativa, auditiva, gustativa ou sonora, ou, ainda, uma
combinação de várias. Se não são toleráveis (por excesso de intensidade), a
criança os expele por todos os meios à sua disposição: movimentos de toda
ordem, secreções de todos os tipos, expressões como choro, grito ou qualquer outro ruído. Evacua. Se a estimulação é fraca ou insuficiente, o bebê
os representa por evocação imagética, re-atualizando estímulos ou produzindo alucinações no plano da “equação simbólica”, o plano sígnico.
Na vida do bebê tudo deve ser imediato, de rápida resolução. O representante e o representado devem ter proximidade máxima. A representação
se confunde com a apresentação. É o campo do pré-verbal. Langer (1989)
prefere chamá-lo de mundo sígnico. Um exemplo de representação sígnica
(continuação da p.497) faz sentido. Tomo-a como expressiva da necessidade de que a nova conquista não se distinga da primeira, que fracassara. A mulher terá que se submeter, tanto quanto o
seio alucinado está submetido pelo bebê, ao se estabelecer a primeira “equação simbólica”.
498 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 499
Waldemar Zusman
é o provérbio “onde há fumaça, há fogo”. No mundo animal rege a representação sígnica. Se se diz o nome do dono, o cão se volta de imediato para
localizá-lo no espaço à sua volta. E o bebê, até que adquira capacidade
simbólica, vive totalmente no plano sígnico. O salto para o simbólico costuma ser exemplificado com a vivência de Helen Keller, que era cega, surda e muda. Sua relação com as coisas era no nível de suas necessidades
fisiológicas (sígnicas). Quando aprendeu que o que matava sua sede se
chamava água, percebeu, num só golpe, que tudo no mundo tinha nome. E
mais, uma só palavra podia se referir a todas as águas do mundo: sujas ou
limpas, internas ou externas.
Os animais não alcançam este tipo de representação simbólica. A representação sígnica é singular, carece de abstração, tende para o concreto.
A comunicação do bebê com a mãe é sígnica, expressiva, como a dos
animais. A linguagem humana, no nível simbólico, é proposicional.
O trânsito entre a representação sígnica e a simbólica é uma oscilação
constante no adulto e corresponde ao que Bion assinalou, ao sinalizar a
oscilação constante entre as posições esquizo-paranóide e depressiva. No
consultório, no trabalho analítico, nossa comunicação com os pacientes se
dá nos dois níveis. Toda comunicação humana transmite o conteúdo verbal
(simbólico) lastreado na melodia da voz (sígnico). A música transmite ao
corpo o ritmo dos movimentos e das melodias, fenômeno sígnico, de observação cotidiana.
Na teoria do pensamento de Bion, os elementos β, que são as representações sensoriais e as emoções brutas ou pressões instintivas,
correspondem aos elementos sígnicos que aguardam por uma transformação em elementos α, que, em última análise, já se introduzem no plano
simbólico para uma gradual aquisição de abstração e generalização. O caminho se faz pela progressiva transformação da “equação simbólica” em
símbolo, do concreto (imagético) para o abstrato (verbal), do interjeicional
para o proposicional. Parafraseando Freud, poder-se-ia dizer que tudo que
era sígnico terá de ser simbólico.
A direção desta transformação do sígnico ao simbólico se harmoniza
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
com o salto para o simbólico, um outro mysterious leap que se inscreve no
processo hominizador.
Nesta perspectiva, a Psicanálise, ao definir seus vínculos com o processo hominizador, ganharia o necessário distanciamento da Medicina,
como Bion o sugere. O que se nomeia como enfermidade, na terminologia
médica, nada mais é que um desvio do processo hominizador, como ocorre
nas esquizofrenias, que resultam numa destruição dos vínculos e da capacidade simbólica, até uma regressão final, que extingue essa capacidade
simbólica por completo.
Creio que a influência de Bion sobre o método psicanalítico resulta da
maior pressão epistemológica (pólo cognitivo) sobre o pensamento dos
psicanalistas sem minimizar os demais vínculos. A exploração do inconsciente para além dos domínios investigados por Freud (o inconsciente dinâmico) abre um campo de pesquisa de extraordinária riqueza, que permite
compreender algumas dimensões psicológicas da experiência mística, passíveis de serem percebidas na relação do analista com o seu paciente, sem
o temor de que esse reconhecimento implique uma conversão religiosa.
Sinopse
O autor passa em revista alguns dos conceitos psicanalíticos clássicos que
sofreram influências e tiveram seus significados ampliados e aprofundados pelas
investigações originais de Bion. Para além da Grade e do Conceito de Capacidade
Negativa da Mente o artigo destaca a recomendação técnica de abstenção de memória e desejo, que, embora mal compreendida por alguns analistas, nada mais é
que uma versão mais aguda e penetrante, daquilo que Freud chamou de Atenção
Flutuante. O controvertido conceito de Pensamento sem Pensador ganha nova
formulação após um exame crítico das hipóteses que o situam no mundo externo.
É a partir da Área do Análogo (por oposição à Área Egóica) que a noção de
Pensamento sem Pensador ganha origem e circunstância. O já famoso aforismo
de Bion, No thing therefore a thought, passa por um inevitável confronto. Uma
vez que a ausência do seio usualmente ocorre quando o pensamento ainda não é
simbólico (verbal), o mais correto seria dizer No thing therefore an image. O
artigo aborda, por último, num exame crítico, as categorias do signo, da equação
500 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Summary
Some classic psychoanalytic concepts have been touched, deepened and
amplified by Bion’s original investigations. Beyond The Grid and the Mind’s
Negative Capability the article stresses the importance of Bion’s recommendation
on the abstention discipline of memory and desire. Although some psychoanalysts
couldn’t understand the real meaning of it, the mentioned discipline is rather a
new and deeper version of Freud’s technical recommendation, the evenly suspended
attention. Bion’s controversial concept on Thought without a Thinker is given a
new understanding, more related do the internal world than to the external one,
like the current explanations. The famous aphorism No thing therefore a thought
is also examined and confronted with the time of its firsts occurrences. As the
baby still doesn’t think thoughts are not available yet. That is why No thing therefore
an image would sound more appropriate. The article also deals with the parallel
meaning of Sign, Symbolic Equation, and Symbol to alpha and beta elements
inherent to Bion’s thought theories.
Sinopsis
El autor revisa algunos conceptos psicanalíticos clásicos que sufrieron influencias y tuvieran sus significados ampliados y profundizados por las originales
investigaciones de Bion. Más allá de la “Grid” y de la “Mind’s Negative Capability”,
el artículo destaca la recomendación técnica de abstención de memoria y deseo
que, pese a ser mal compreendida por algunos analistas, no es más que una versión
más aguda y penetrante de lo que Freud denominó Atención Fluctuante. El controvertido concepto de Thought Without a Thinker gana nueva formulación, más
ligada al mundo interno que ao mundo externo. El famoso aforisma No thing
therefore a thought es también examinado y confrontado: cuando el bebê todavia
no tiene pensamento simbólico disponible, lo más adecuado seria decir No thing
therefore an image. El presente trabajo también muestra las categorias de signo,
equación simbólica y símbolo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 501
Waldemar Zusman
simbólica e do símbolo, para nomear alguns aspectos fundamentais do funcionamento da mente, fazendo um paralelo entre estas categorias citadas e aquelas que,
em Bion, se designam como funções alfa e beta.
INFLUÊNCIAS
DE
BION
NA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
Palavras-chave
Memória e desejo; Pensamento sem pensador; No thing therefore a thought;
Signo; Equação Simbólica; Símbolo.
Key-words
Memory and desire; Thoughts without a thinker; No thing therefore a thought;
Sign; Symbolic Equation; Symbol.
Palabras-llave
Memória y deseo; Pensamiento sin Pensador; No thing therefore a Thought;
Signo; Ecuación Simbólica; Símbolo.
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502 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Trabalho apresentado no Congresso Internacional da
IPA, em Nice, França (título original: Bion’s
perspectives on psychoanalytical technique).
Dr. Waldemar Zusman
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Fone: 55 21 521.0597
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 503
Waldemar Zusman
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Conferência na SBPdePA
Angústia
Raquel Zak
de Goldstein
Médica. Membro Titular em
Função Didática da APA
(Associação Psicanalítica
Argentina)
O dogmatismo é uma maneira
de defesa; está relacionado com a
ideologia, que é a base sobre a qual
nos sustentamos. Não existe ser humano sem uma ideologia. Não é
verdade dizer que não se é
dogmático nesse sentido, mas a Psicanálise nos prepara para relaxar os
limites da nossa ideologia. Não destruí-Ia, relaxá-la para que seja permeável, assim como as células do
organismo que envelhecem quando
perdem a permeabilidade; nós, médicos, sabemos, e os psicólogos
também o sabem. O psiquismo, da
mesma forma, também pode “envelhecer”. O oposto do dogmatismo é
o intercâmbio. Sempre desenho,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 507
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Raquel Zak de
Goldstein
na SBPdePA
ANGÚSTIA
com alguns grupos de estudo, uma metáfora para o intercâmbio, com a
finalidade de apoiar a teoria do pluralismo.
Lembram da ameba freudiana? A ameba narcisista. Aqui se aproxima
um corpo estranho, uma ideologia diferente – Que faz a ameba?: Aproxima-se, curiosa, avança; a isto chamamos vacúolo alimentício; essa curiosidade começará a bombardear o corpo estranho com substâncias digestivas,
pegará o que lhe servir, fragmentará, permeabilizará essa cápsula, incluirá
aquilo que lhe interessa, seja para o protoplasma ou para o núcleo, e expulsará aquilo que não lhe serve.
Primeiro será constituído um vacúolo, um vacúolo de resíduos. Após
expulsar aquilo que não incorpora, a ameba recupera sua unidade. Mas,
alguma coisa aconteceu. Aqui existe algo novo, ou seja: por fora é a mesma, mas por dentro já não o é.
Espero que, após minha visita, vocês, por fora, possam se sentir com
uma identidade coerente, e, por dentro, que tenham problemas para resolver. Não disse assimilações, problemas a resolver porque este processo, o
conhecimento, a curiosidade vai com o conhecimento.
De onde vêm a curiosidade e o conhecimento? Da curiosidade sexual.
Sexualidade = vida, vida e sexualidade = crescimento permanente. Isto é o
pluralismo, não existe outra forma, mas, conservando uma identidade.
Ontem falei do “corpus freudiano”, esta é a nossa identidade, por isso,
todos podemos falar no mundo, uns com os outros, 5, 4, 7, 6 elementos do
corpus freudiano nos identificam, e não é que sejam arbitrários, não são
arbitrários, são a descrição da nossa natureza, nada além, nós vivemos, de
tal modo que um corpus que explica nosso funcionamento como natureza
humana nos permite falar daquilo que nos acontece. No final das contas,
estamos falando do ser humano no mundo, não é outra coisa, nem estamos
falando de moléculas, nem de cérebro, nem de fenômenos físicos ou químicos, nada. Estamos falando entre seres humanos, e ao falar entre seres
humanos e do humano, falamos do mundo, conforme as representações
que temos do mundo e conforme a nossa biologia, que é o que nos permite
entender. Por que podemos supor que este foi assim e continua sendo as508 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
* “Arquivos de Psiquiatria, Psicoterapia e Piscanálise”. Fundação Mário Martins, 1º semestre
1996 vol. 3, nº 1 ano 3.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 509
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
sim? Quando disse humanos e falamos, isto é uma unidade, que é o tema
do discurso.
Quero dizer que para mim não foi fácil chegar ao pluralismo, é absurdo acreditar que sou superdotada. Para mim significou amor e compromisso com mestres e preocupação, mas a verdade, o segredo pelo qual podemos viver, madrugar, tresnoitar, fazer, é isto. Não sou uma santa, tenho
prazer, isto é, as fontes do prazer, dor e angústia trabalham todas relacionadas à sexualidade.
Bibliografia para este assunto: na revista da Mário Martins foi publicado o artigo “Caos, petrificação”. É um paper que preparei para o précongresso didático de 1991, em Buenos Aires. O assunto era aquele que
Green apresentou: Dogmatismo, Ecleticismo, ou Babel? Então, Green,
com a grande criatividade que tem, apresentou uma idéia: “vamos estudar
se é caos ou petrificação”. Convidaram-me, e eu coloquei o título: “Caos,
petrificação”*. Eu perguntei: “O quê?”, “Não existe uma terceira possibilidade?”. Parece-me que sim, é a possibilidade de produzir incerteza graduada, não, catástrofe interna.
Que significa incerteza? Um grau de dúvida, a dúvida que permite a
curiosidade sexual. Quando for resolvida a curiosidade sexual e quando
tivermos o conhecimento total, quando, supostamente, tenhamos a resposta total para a curiosidade, nesse dia o ser humano terá acabado.
Mas, isso não é possível porque, permanentemente, está determinado
na cabeça neurótica que o que existe é triângulo, e o triângulo não tem
solução, felizmente, outro motivo pelo qual escapamos dos dogmas. Os
dogmas obturam a curiosidade e o conhecimento, e, quando cortados a
curiosidade e o conhecimento, no lugar de uma curiosidade sexual existe
uma organização obsessiva que protege contra a incerteza, mas a incerteza
precisa estar acompanhada de um núcleo de certeza. Este núcleo de certeza, na Psicanálise, é o corpus freudiano. O núcleo de certeza, para não ser
psicótico, é o discurso compartilhado. Falamos porque compartilhamos
ANGÚSTIA
uma língua universal. No encontro falido, errado, com transtornos, ao invés de ser instalado o discurso falado que o torna humano, este discurso
nesta senhora mãe falida não chega, há ruído na linha. Não escutamos,
fragmentos de autoritarismo, um alto-falante que fala, blá, blá ... Hitler que
fala, o discurso militarista que fala, o pai de Schreber. As três macacas de
Haslow, mãe de arames, corpo de arames, não existe corpo carnal. Não
existe encontro de corpos carnais no discurso do amo.
Este é o pensamento dogmático, não estrutura, é anti-estruturante.
Mussolini, Hitler, o discurso do amo é muito sedutor. Charmoso meu discurso; teu discurso não é sedutor, o discurso sedutor é o da propaganda. A
propaganda é uma manipulação sobre o aparelho psíquico, que o esmaga e
obtura a sexualidade e o conhecimento e produz uma entrada através do di
porre, eu transmito através do di levare, ficarão preocupados, irão me odiar
porque terão que ler, ler, ler, mas, acreditarão em mim porque irão despertados, sexuais, curiosos e vivos, não por uma câmara impessoal.
Por quê? Porque eu sou um outro, castrada, que significa que eu necessito que vocês me escutem, para transmitir, então eu tenho que inventar.
Aqui, viva, não posso ler, vocês podem ler de um livro, é melhor um livro
do que um discurso autoritário, pois com o livro você pode debater o discurso autoritário, seduz, hipnotiza, anula, organiza obsessivamente.
Pergunta: Por que você diz que o discurso autoritário seduz? Pareceme que o discurso autoritário violenta.
Resposta: As duas coisas, tem razão, mas, para poder violentá-lo e
entrar, é necessário ser seduzido, da violência pura você pode se defender,
traz-lhe angústia. O problema é que o discurso autoritário seduz e anula o
sinal de angústia.
O que menos suportamos é a incerteza. Por quê? Nosso assunto de
hoje é “Angústias”. Ontem, falei da fobia fundamental, de Einstein.
A incerteza produz angústia, a angústia é o ponto fundamental, do
início, quando com o complexo do semelhante, experiência de satisfação,
510 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Freud o descreve assim: são duas metades, após a experiência de satisfação; a segunda vez, ele descobriu que isto é apenas uma coisa e que também vamos e voltamos. Aqui começa a angústia. Ela não está registrada
pelo Ego, porque não existe Ego.
Porém, essa é a origem do sujeito, surgimos daí e, por esta razão, vamos e procuramos permanentemente este semelhante e somente o encontramos, por sorte, coisas, que já são as coisas do mundo, as que escondem
o diferente.
As ideologias são o pior do mundo que tampam o diferente, nossa
origem e nos fazem acreditar que estamos inteiros, que temos a verdade,
que tudo está claro, que não é mais necessário pensar. O problema com isto
é que matamos o triângulo, porque já não existe mais pai, mãe, filho. Existe Deus. Qualquer forma de Deus que apareça; também Freud pode ser
Deus. Pobre Freud. Então, se temos que nos preparar para a incerteza, sem
cair aqui, temos que aceitar trabalhar com as coisas do mundo. As coisas
do mundo, nunca a coisa, a coisa é isso, por isso Lacan se mata dizendo que
a verdade não existe. Ou o falo, a coisa é o falo. Hoje entenderam de outro
ângulo, o que é o falo. É isso, é a coisa, é um símbolo para dizer que existe
algo no mundo que resolve tudo. Desaparece a angústia, porque a angústia
provém da impossibilidade de resolver o triângulo; sempre alguém fica de
fora, sempre se deve matar alguém para evitar que o triângulo seja um
triângulo.
Não é um bom negócio matar o pai. Não é um bom negócio matar a
mãe. Não é um bom negócio matar-se, mesmo assim, não é um bom negócio. Id, Ego, Superego, mundo exterior, é necessário enfrentar; então, ao
invés de buscar uma fórmula de solução, vamos tolerar a incerteza.
Mas, como? Com um eixo freudiano e com coisas do mundo que nos
permitam, sempre, olhar de outro ângulo, e isto fazem os físicos, os matemáticos, os antropólogos.
Bibliografia referente ao tema: Freud, “Escritores criativos e devaneio” e Winnicott.
Existem dois tipos de sedução: uma que é o discurso erótico, que é
ANGÚSTIA
diferente do hipnótico, mas não porque eu o diga. Porque não falo de apenas um conceito. Existe um artigo, de um amigo muito querido que vocês
conhecem, Christopher Bollas. No livro Being the character (“Sendo um
personagem”), no capítulo “O estado mental fascista”. Cito porque a sedução do discurso do amo, é uma sedução hipnótica e simplificadora.
Primeiro, Hitler dizia, mintam, mintam, mintam, mentir, mentir, mentir, desenvolvimento propagandístico, insistir, insistir, insistir. Fórmulas
simples. Aí está o segredo da diferença quando digo Eu charmosa, digo
charmosa complicada, multireferencial, colocando minhas próprias dúvidas ou, em todo caso, minhas próprias articulações e algumas dúvidas,
manifestando quais são os nós. Este vai com este e este e aqui cruza com
este. Melanie Klein, Rosenfeld e Winnicott, com Lacan. Onde se cruzam?
Estágio do espelho. Diferente, porém, o olhar, a queda do olhar, a queda do
outro, pensa o mesmo, do medo do desmoronamento. É uma das clínicas
da angústia, o medo do desmoronamento, a queda ao referencial. Se é apenas um referencial estamos perdidos, obediência absoluta, submissão ao
amo. Se existe mais de um referencial, um Freud que é um dos nossos
suportes transferenciais, por exemplo, após 1920, outro Freud com o
“Fetichismo”, outra sexualidade. Com a “Clivagem do Ego no Processo de
Defesa”. Entre “Fetichismo” e “Clivagem do Ego” temos novamente a
dupla “Winnicott, Lacan”.
Querem que Ihes conte por quê? Para poder justificar o motivo do
discurso para a câmara.
O discurso do pluralismo é um discurso antidogmático, fundamentado
em um conhecimento preciso a partir do corpus teórico freudiano para sustentar os entrecruzamentos dos grandes descobridores da Psicanálise posteriores a Freud. Para sustentar aqueles pontos de entrecruzamentos que,
ou questionam algum ponto de Freud, ou o justificam de outra perspectiva.
Por quê? Porque Freud, como todo criador, é um criador que avança
do começo da histeria, 1920, até “Fetichismo” e à “Clivagem do Ego”,
passando por um assunto que também muito nos interessa, que é “Análise
terminável e interminável”. Por que é tão importante esse outro ponto?
512 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 513
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Porque a análise interminável, quando ele apresenta a roupa da castração,
abre algo como se fosse um leque para a investigação, novamente, do falo,
ou seja, da certeza daquilo que queremos encontrar, quando nos defrontamos com a castração. Se nos equivocamos, buscamos o falo, se não nos
equivocamos, buscamos a nós mesmos, e, então, algo do narcisismo
tanático é freado. E, mesmo que por aí em alguma coisa que alguém diga
ou eu diga, meu narcisismo pode querer se impor e atacar. Meu desejo de
sobrevivência e meu narcisismo libidinal preferem a investidura, então,
irei me complicar, deixando que parte do meu ego autoritário, que também
tenho, e detenha e dê lugar a outra coisa. E a ameba aparece novamente. E
como ele pensa e como diz, e como não diz, e é assim.
Freud não era dogmático, mas nós temos um outro Freud, um Freud
polifacético, humano, que queria curar a si próprio, que queria auto-análise, que queria pesquisar o que lhe acontecia com sua história, e agora, quase após os 100 anos da sua morte, teremos mais sobre Freud e continuaremos tendo. Freud que fez algo que rompe com o diagnóstico moral. Freud
fez algo muito importante. Ele disse que somos repressão inconsciente,
assim que não existe qualquer certeza porque no momento no qual eu encontro algo, nesse mesmo momento, desde o inconsciente, lhe será questionada a plena verdade, a verdade redonda; o sujeito socrático se acaba
sempre com Freud.
Vou contar-lhes algo sobre o que estou escrevendo há um ano e meio.
Se eu proponho sustentar a incerteza como oposição à certeza dogmática, o
discurso do amo, então, podemos nos perguntar, que faço com a angústia
que é criada com a incerteza? Ainda que esteja muito constituído. Embora
investigue muitos esquemas referenciais, confusão, incerteza, não proteção. Quem me protege aqui? O Superego já não me quer. O professor de tal
instituto me odeia porque não sigo seu estudo, sua escola, a professora de
tal matéria já não me quer porque lhe questionei tal ou tal conceito.
Quem me protege? Freud, porque eu, alguém aqui tem, se está em
análise, uma transferência para a obra de Freud, sólido, principalmente o
corpus freudiano: inconsciente, repressão, transferência, sexualidade in-
ANGÚSTIA
fantil, complexo de Édipo, isto é forte porque se explica um com o outro,
um se sustenta no outro. Complexo de Édipo e sexualidade infantil explicam a repressão, a repressão explica o inconsciente, o inconsciente explica
o sintoma, o Ego explica a presença do Ego em relação ao mundo externo,
para o Id. Segunda tópica, primeira teoria da angústia, quantitativa, segunda teoria qualitativa, o Ego, a sobrevivência. Isto explica tudo. É uma
caixinha que explica um pelo outro. Acredito que está demostrado que se
sustenta. Cem anos de psicanálise. Uma transferência. Transferência um.
Transferência dois, o outro para não cair no dogmatismo, no dogma. Transferência dois, ao outro na instituição fazemos uma transferência. Por quê?
Como disse Bion, e principalmente Jacks, a instituição ajuda-nos a conter
nossas angústias psicóticas, por ser sujeito amarrado e coloca o outro da
instituição em uma posição suficientemente estável. Transferência três,
gente como eu, para a comunidade psicanalítica ampliada, porque é um
outro alheio, porque sustenta a diferença, senão está isto, rapidamente isto
se transforma em uma prisão. Porque ninguém pode evitar, todos somos
bons, eu também sou parte de uma instituição, também posso me transformar em autoritária, tirânica.
Por quê? Voltemos ao esquema de Abraham. Fase oral primária, secundária, anal primária e secundária, que acontece entre anal primária e
secundária? Nem mais nem menos que a diferença entre a expulsão, paranóia, retenção, controle, neurose. O preço de uma neurose é uma organização relativamente obsessiva que pode ser transformada em uma couraça de
caráter ou pode ser transformada em uma instituição que, sozinha, sem mal
para as pessoas, se transforma em uma prisão. Prevenção disto? O terceiro
diferente. Vem e causa impacto, como eu hoje, se é que vem a causar impacto.
Esse outro transforma-se facilmente no Superego se esse outro da instituição não suporta a diferença. Agora, da mesma forma, as instituições
são protetoras difíceis, por isso deve ser sustentado um equilíbrio entre
obediência que significa a aceitação adequada de um fundo comum, certeza comum, o mínimo necessário e um entorno, isto é, o comum, um
514 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
* “O brincar e a realidade”. Winnicott, D.W. (1975). Rio de Janeiro: Imago.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 515
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
patrimônio de certeza; eixo, Freud, o corpus e uma zona relaxada de incerteza.
O que proponho. Temos um núcleo de certeza freudiana por que fala
da condição humana e justifica-se a si próprio e, por sua vez, não é um
corpus tirânico, porque sustenta a ruptura constitutiva do sujeito, consciente, inconsciente, isto é, sempre está esse sujeito barrado, exposto a uma
subversão que irá romper qualquer dogmatismo do Ego.
Se a repressão é permeável, sempre está em perigo de transformar-se
em uma couraça caracterológica, mas não importa. Deste ponto de vista
temos um núcleo de certeza e uma zona de incerteza tolerável para poder
fazer o intercâmbio que desenhei na ameba. Se a ameba não tem um núcleo
que a governe para reproduzir-se, não existe a ameba, mas se a ameba se
fecha, o intercâmbio é chamado cístico e parece que sobrevive, mas, na
realidade, não vive, calcifica. Isso acontece com as instituições, mesmo
quando têm dentro pessoas muito boas.
Bibliografia para este problema: o capítulo 11 de “O brincar e a realidade”*.
Por quê? Porque o assunto do adolescente dentro de cada um de nós é
um problema de salvação, o adolescente sempre é subversivo, mas não
pode ser subversivo se não tem também a tranqüilidade de que existe um
pai que vai se deixar gastar, mas não matar.
O inconsciente subversivo, o Ego. A repressão, o inconsciente como
uma modificação disso, o mundo externo, as instituições, o núcleo de certeza, a incerteza, a ameba, o núcleo, o núcleo de certeza é isto que não pode
ser mexido para que se possa reproduzir, inclusive para modificar Freud,
que seria o núcleo da ameba; é necessário que o que estiver aqui não seja
tóxico mortal.
Que a instituição cuide do que entra aqui está muito certo.
Vamos ao outro assunto. O pai, a relação entre o pai, o núcleo, a instituição, pode-se questionar, a subversão pode tocar o mundo externo, ou a
ameba, mas não destruir totalmente, o anarquismo triunfou, porque o
anarquismo seria, nesta metáfora, destruir o piso que sustenta o sujeito.
ANGÚSTIA
Isto serve para pensar no pequeno Hans, Juanito; vocês, certamente,
com este esquema entenderão e poderão explicar-me por quê.
Vamos ler no texto de Freud: Juanito, diz Freud, tinha uma atitude
como tem os fóbicos, muito inteligente, “demais”, sua curiosidade sexual,
sua pesquisa, seus ciúmes eram “demais”, um pouco “demais”. Este é o
enfoque da psicopatologia, este “demais” porque tudo é normal até um
ponto. Este “demais” na função de pesquisa ataca o núcleo, questiona-o,
questiona o pai, o núcleo de certeza pode ser chamado de discurso, o
psicótico ataca o discurso: por que vocês dizem que isto é branco? Um
bom pai responde porque é branco. Assim como para uma criança quando
o pai ou a mãe comparecem a uma consulta de crianças, o analista lhes diz:
“existem coisas que você vai responder “não, porque não”. O “não” está
administrado desde o pai, então, se o “não” é administrado pelo pai e este
“demais” não é demasiado, este “não” limita esta pulsão que é um “demais”.
Por que é um “demais”? Porque existe alguma coisa que impede ou
que luta contra a repressão do incesto. Este “demais” é uma interdição do
incesto, pode-se entender perfeitamente desse ângulo. Um grau pequeno,
neurose, um grau maior, psicose.
Por quê? Porque rompe, ataca o patrimônio comum mínimo de certezas. Este “demais”, quando é muito grande, ataca a célula, a unidade de
funcionamento psíquico. Núcleo igual triângulo edípico, igual
psicossexualidade, igual a interdição do incesto.
Aí desata-se a grande angústia. A grande angústia porque começa
muito cedo, começa no começo da psicossexualidade. Se seguimos Lacan,
temos um primeiro tempo que tem três passos, um segundo tempo edípico
de três até cinco anos clássico e após o tempo de derrota ao rei, ao presidente da instituição, mas que não deve se deixar matar porque viriam caos e
anarquia. Deve-se deixar questionar, deixar que alguma zona se modifique
e não mudar para não mudar. Não gatopardismo, mas uma real modificação em todo o corpus amplo, mas nunca o fundamento porque não deve
acontecer o que aconteceu com Leclaire e Laplanche que eu contava on516 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 517
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
tem. O que aconteceu com Lacan, não a ele, mas a alguns que o seguiram
foi que ele questionou os fundamentos; para os demais, era questionar os
fundamentos. Ele tinha outros fundamentos dentro de si: Filosofia, Kant,
etc., etc., ele tinha um projeto, ele tinha um chão sob seus pés, um núcleo,
mas quando ele questiona bruscamente, as instituições, o Freud de determinado momento e ataca seus colegas da instituição não existe chão sob
seus pés para muitos de seus seguidores.
Isso não aconteceu com todos, mas aconteceu com muitos. Ele se propôs, como o chamou Green: “ele, pai onipotente”, não o disse, mas digo
siga-me, vamos armar uma instituição que não seja uma instituição, vão
propósito. Continuamente cada grupo e cada escola se transformava em
uma instituição que ele havia prometido que não teria que ser.
Aí temos um propósito adolescente muito saudável transformado em
um “demais” que ataca o chão. Você sabe como é definida uma fobia, um
panic pela Psicanálise? Exatamente assim, quando é destruído o chão sob
os pés, porque esse “demais” ataca ao pai, é o mentor que fala do discurso
que é aquele que auxilia que o núcleo seja permanente e eterno, é o transmissor, pai, discurso, transmissão e a transmissão que faz o pai através do
discurso não é do amo. Amo não, aqui coloca-se a palavra de Lacan correta
que diz “o grande outro barrado”. Que significa? Para ele também falta
algo, não está completo.
Não falta algo somente para mim, para Lacan falta algo. Por que lhe
falta algo? Porque está quebrado, debilitado, machucado, fraturado, desgarrado. Não, porque sem o outro não pode falar, desaparece, colapso. Não
porque é mau, nem porque é frágil, senão porque somos, porque transitamos, nessa forma, com o outro. O discurso vai e volta, o erotismo vai e
volta, as endorfinas se alimentam e aí estamos.
Eu sou jovem. Igualmente faz 42 anos que estou na Psicanálise e me
encantou, desde o início, a sorte de ter bons professores que me provocaram esta curiosidade ao invés de castrá-Ia. Isto é o resultado de trabalho,
nada mais, muito trabalho com muito entusiasmo, com coragem, como
adolescentes, por isso dizíamos, revisamos a idéia do pai e quando temos
ANGÚSTIA
que voltar e dizer “o pai tinha razão”, podemos fazê-lo, por exemplo. Eu
me analisei com Angel Garma, e Garma falava do Superego de uma determinada forma, claro e me fez bem, o Superego, Superego, Superego. Um
dia me encontro dentro do pensamento de Lacan com a idéia do Superego
sádico e cruel e vi que era exatamente o que dizia Angel Garma.
A Relação do Superego com a Angústia
Freud disse: o Superego é um puro cultivo de instinto de morte; também disse: o Ego é a sementeira da angústia.
Que disse o Superego, segundo Lacan?: Goza e arrebenta; isso é o que
propõe o Superego, segundo Garma. Lembro, como exemplo desta situação, um artigo de Garma intitulado “Alegria masoquista do Ego pelo triunfo, mediante enganos, do Superego”. Que vocês acham? Trata-se do Discurso do amo. Hitler, propaganda, hipnose, paralisação do ego; o ego acredita que já está paralisado, come aquilo que não deve, droga o que não tem,
o que não serve, e sente-se feliz, porque o amo o ama, esse é o Superego
que o leva ate a morte: heroína, cocaína, sedução. Anestesia da droga, acionar da pulsão de morte. Por quê? Porque é uma parte da nossa estrutura a
que está disponível para que a propaganda nos “venda” produtos no supermercado da vida, produtos que não nos servem. Os únicos com que brigo
francamente são determinados publicitários, porque acredito que não
agem, às vezes, de boa fé, quando, por exemplo, dizem que não vendem
nem seduzem, mas que oferecem o que o humano está disposto a comprar.
É um engano disfarçado, porque o humano também está comandado pela
pulsão de morte que Lacan define como o gozo, e não importa como se
chame, sabemos que é assim. Estas e outras questões são a base para trabalhar, com razoável grau de incerteza, em uma instituição, sustentando para
esta adolescência interna permanente, que transitamos, e em um processo
de dissidência criativa, que se sustenta em um Freud cujo corpus segue
sendo a resposta.
Pergunta – Juanito veio a ser o maestro da Orquestra Filarmônica de
518 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Resposta – Muito interessante tua pergunta. Conforme a posição prévia do pai na estrutura de Juanito do “demais” da insistência incestuosa do
gozo, o destino desse “demais”, conforme fique, depois, colocado o pai na
estrutura de Juanito, poderia ser um “demais” do delinqüente, ou eventualmente uma neurose grave ou um artista. Pensa-se isso, porque Freud, no
“Mal-estar na cultura”, deixa bem claro o que pensa sobre o que faz o
artista que se nega a reprimir como lhe exige a cultura esse “demais”; nesse
ponto se joga o destino de Juanito..., e Juanito se cura.
Meu pensamento me leva a enfocar esta idéia no desenrolar da cura.
Este “demais”, o plus do gozo que, colocado aí, é antes de tudo uma rebelião contra a interdição ao incesto, refere-se de um lado a riqueza e curiosidade, atrevimento, adolescência e subversão criadora, mas, se Juanito continuasse nessa linha, já sem a possibilidade de cura, é provável que tivesse
permanecido com essa organização fóbica, ou outros quadros complementares, que sempre são produzidos, quando não é produzida uma cura da
primeira organização sintomática. Mas, não foi assim; foi um sucesso
terapêutico, e com um famoso tratamento “atípico”, como todos sabemos.
E quanto nos ajuda hoje! Ao depurar os vários enquadramentos da cura
psicanalítica, na sua relação com as variedades da angústia, conforme minha percepção (RZG: 1997, 1998, 1999, 2000).
Freud, no “Mal-estar na cultura”, está muito convicto sobre a quota de
mal- estar que se deve aceitar, pela repressão que se deve aceitar para participar da cultura, o que implica organizar-se no triângulo edípico. Assim
se instala a lei, a interdição do incesto, a ordem geracional e a exogamia.
Esses três eixos radicais para o funcionamento mental.
O mal-estar, essa certa forma de angústia, é o preço daquilo que deve
ser sustentado, para poder participar da cultura como sujeito de discurso,
sujeito protegido pela cultura e sua legalidade de tal forma a conseguir
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 519
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Nova York porque se curou. Mas, eu havia interpretado esse “demais”
como o futuro do maestro da Filarmônica de Nova York. Quero saber se
exclui a idéia de que o “demais” também pode ser o maestro da Filarmônica?
ANGÚSTIA
estar “isento” de neurose, no sentido grave do termo. A cultura protege. A
tal ponto que quando ameaçamos –por nosso proceder – nossa inserção na
cultura, estamos expostos a uma angústia maior, que é falha diante da “expulsão ou marginalização” da cultura. Então, o custo da ação estruturante
da cultura resulta em aceitar a interdição do incesto, aceitar apenas um
sexo, e aceitar a exogamia e o trabalho psíquico que isto implica. Aceitar o
trabalho pela cultura, e aceitar a ordem geracional, resulta em um certo
grau de renúncia pulsional; cada um no seu lugar, não existe Macbeth possível. Não existe Hamlet, não existe Lear que pretenda deixar de sustentar
a ordem geracional. Insistimos que tudo isto seja colocado, transmitido, ou
pela mãe que transmite a ordem e a lei do pai e/ou pelo pai. O pai, “na
cabeça da mãe”, ou o pai diretamente. Às vezes, é o pai da mãe, na cabeça
da mãe, se o pai na realidade é insuficiente. Podemos dizer que tudo isto
gira em torno daquilo que Freud definiu como a posição do homem, em
“Moisés e o monoteísmo”. O homem remete-se à espiritualidade, e é quem
determina a ação da lei dos homens.
Relendo Freud, e voltando para Juanito, está magnificamente claro
que o desenrolar da cura de Juanito é ativado quando Freud lhe diz: “Muito
antes de você vir ao mundo, eu sabia que um dia nasceria um pequeno
Juanito que amaria tanto a sua mãe, que, devido a isso teria medo do seu
pai e contei ao seu pai”.
Na verdade, Freud descreve o mecanismo curativo no que disse ao pai
de Juanito, como vetor da cura; e diz o comentador: “O que Freud chamou
com humor, sua fanfarronada gozação” (porque Freud disse “disso lhe fiz
uma brincadeira”), corresponde, ao meu ver, a uma intervenção analítica
profunda e magistral. Pensa o autor, e eu também; e vou dizer algo a respeito porque é uma interpretação chave. Não é uma predição, nem é religiosa.
Freud não estava falando de religiosidade. Mas, o pequeno Juanito quando
soube isso que Freud lhe mandou dizer – perguntou ao pai – sobre o “Professor”, seus títulos, Universidade, etc. Enfim, situando sua posição no discurso do saber, no discurso autorizado, formulou de maneira fascinante
para nós, atualmente, na Psicanálise da seguinte forma, com palavras do
520 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
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Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Juanito: por acaso o professor fala com o “bom Deus”? E por que não lhe
pergunta para saber tudo e com antecedência? Isso é que curou Juanito.
Seu pai – sustenta Freud e sustentam todos, e Lacan também – foi insuficiente. Além da sua mãe problemática, sedutora e incestuosa, seu pai foi
insuficiente para dizer claro e firmemente: “não, porque não”. O segundo
tempo do Édipo, para Lacan, é este. É efetivado quando o pai diz ao menino “saia daqui, esta mulher é para mim, não é para você”. Que faz, com isto
que lhe diz? Interdição crua do incesto. Crua. É cirúrgico, e lhe faz bem.
Juanito não é religioso. Freud não é religioso. Neste ponto, sem dúvida, todos sustentaram que existe “alguém” por trás de cada um, e que está
além, e dita a lei do “não tudo”. Essa é a lei. Esta é minha resposta. Da
vontade circunstancial ou individual do pai, surgiria o desastre para o infantil sujeito, porque estaria sujeito à imprevisibilidade, a produzida, por
exemplo, com um pai paranóico, dono de tudo, do centro e do saber. Como
exemplo notável, temos a história de Schreber e seu pai.
Esta cura freudiana é uma intervenção cujo fundamento é imprescindível na técnica, e se vocês lembram, tem, além de um valor teórico, uma
localização na clínica, para pensar a clínica de crianças, e os problemas
práticos com a interdição do incesto, a categoria do não, a sobrevivência do
peito bom, da lei, e do pai como tal, etc.
Bibliografia adequada para este processo, de assunção da castração:
“O caso do cordão”, no capítulo 1 do livro “O brincar e a realidade”, trata
da história da criança que usa cordões para reter a mãe que adoece, para
simbolizar a necessidade de união, de que não desapareça. Mas, a mãe
adoece novamente; nova depressão, nova internação, nova ausência, e
Winnicott, que parece nada freudiano, nem sonhar lacaniano, diz: “o cordão transforma-se no falo e a criança – cujo histórico teve um seguimento
prolongado – desenvolve uma estrutura perversa”, isto é, termina-se de
organizar como estrutura perversa.
Que aconteceu? Ao invés de poder sustentar a angústia da incerteza, e
ao outro aí, a conquistar, – nunca totalmente conquistável – e com quem
deve transar, transar de tramitar, tramitar o desejo com o desejo do outro, e
ANGÚSTIA
escutar meu desejo, (e tramitar é sempre um limite à onipotência, sempre
um grau – “suavizado” – de angústia e de destinos de pulsão), e como o
outro, neste caso, se foi muito cedo e não deu tempo para desenvolver
egoicamente os processos de tramitação da angústia, desampara-se de forma precoce, e a criança fica desprovida dos processos da transicionalidade;
segundo Winnicott, deve aferrar-se a um elemento de certeza e fazer outra
coisa. No que me sustentarei, diz-se? Não encontro nada consistente, logo,
será o falo imaginário. Com o qual “solucionou-se” a castração, “solucionou-se” a ausência do outro, “solucionou- se” a dúvida e a incerteza. A
certeza “é” completa e não existe castração... mas, perde-se o motor, e
aquela que denomino angústia motriz do desejo.
Vou contar, rapidamente, uma experiência – que podemos considerar
um momento histórico, e de novidades relacionado à clínica atual e estes
eixos da angústia – que vivemos na APA (Associação Psicoanalítica Argentina), durante o 8° Encontro Latino-Americano, sobre o pensamento de
Donald Woods Winnicott. Foi durante a videoconferência ao vivo e
interativa, que tivemos com André Green: Buenos Aires-Paris-Buenos
Aires. Foi uma idéia minha, que com sorte e muitíssimo trabalho de uma
magnífica equipe, pudemos realizar. Um “time” maravilhoso; e com André
Green, além de termos uma grande amizade.
Green esteve muito contente em aceitar esta primeira
videoconferência. Para ele, também a primeira. Ele estava em Paris, combinamos para o sábado, 27/11/1999; para ele eram 13h30min; para nós,
09h30min. Às 09h15min o senhor André Green apareceu pontual na tela
gigante que estava colocada na frente do salão principal da APA, contra a
janela. Havíamos colocado em diagonal nossa mesa e nosso estrado, diante
das poltronas da sala; ali, uma filmadora nos olhava e retransmitia para
Paris, focando-nos. Rodeados de colegas com muita experiência em
Winnicott, então falamos com ele. Ali estávamos, olhando tudo com assombro e concentração. Duas tradutoras.
A tradutora estava com suas duas orelhas “independentes”, recebendo-nos e escutando-o, todos nós escutando André, e também víamos o que
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 523
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
ele via lá. Ele nos via aqui, e nós a ele em Paris, e ambas as partes vendo e
escutando como circulava a vinculação em tempo real. Às vezes, os técnicos colocavam duplo quadro na tela, então estávamos Green e todos nós.
Ele via em uma tela de televisão, eu via isto que acontecia aqui, e com certa
autoridade de condução ao vivo (e com pouco autoritarismo) dirigimos
algo assim como uma boa composição musical, porque organizávamos
como criar aí as condições para as conversações e monólogos – resposta
“em tempo real” – escutando tudo o que Green mostrava de suas experiências e pensamentos sobre a Psicanálise, para a platéia.
Começamos em tempo exato, hora internacional. Três linhas telefônicas, não por satélite. Por satélite custa milhares e milhares de dólares. Não
Internet. Telefone e fibra ótica. Um canhão projetava aqui, recebendo a
imagem via telefone. O custo é comparativamente baixo. Somos pobres, os
psicanalistas. As instituições também, sempre somos pobres, em função
desses projetos. Custou o mínimo possível porque, realmente, pelo contato
de um de nós a empresa telefônica teve um gesto incrível de consideração
para conosco ao disponibilizar três linhas telefônicas, porque se tivéssemos apenas duas, as conexões seriam interrompidas por qualquer problema nas vias de comunicação que interferisse em alguma das linhas telefônicas. E foi praticamente perfeito. Cumprimentamos Green, dando as boasvindas, conscientes do momento, ele estava muito tranqüilo, muito contente, muito claro. Muito, muito tudo, digamos. Ainda mais na clareza e compromisso com que se manifestou nas questões candentes da Psicanálise
que continuamente abriu e reabriu.
Duas horas e dez minutos, 130 minutos sem interrupção, a sala em
completo silêncio. Graça me olhava feliz, e todos nós cada vez um
pouquinho mais tranqüilos. E Green começou a falar. Os outros o viam
aqui, e nós aqui, e ele nos via ali. Às vezes a câmara dava voltas e filmava
o público, e mandava aqui e ali alguma saudação especial. Às vezes, como
disse, víamos o que Green via. E começamos a falar. E ele falou. Às vezes
nos avisávamos, em off, detalhes das seqüências, quase “editando em câmara” e junto com cada diálogo seguiam as imagens. Fenomenal...
ANGÚSTIA
Nas duas horas e dez minutos, ele disse tudo, falou de tudo. Tudo o
que pensa da Psicanálise, atualmente. Bem, e profundo, e também cruamente crítico, e comprometido. Por exemplo, perguntaram-Ihe por
Winnicott na França e ele disse “Winnicott entrou como antídoto para o
veneno lacaniano”. Assim o disse. Veneno significa que isso foi na França,
em Paris. É outra coisa, quando Lacan chega a outros países. O pensamento, neste caso, de Lacan, já passou por filtros, situações, e interpretações. E
além disso, a Clínica Lacaniana, em Paris, tem uma história. Em Buenos
Aires, é outra, no Brasil é outra; e assim...
Graça conta: Primeiro, ele começou falando da dor cardíaca que
Winnicott sentia quando abandonava seus pacientes para ir a um congresso, e que ele, Winnicott, contou para Green que falava de seu coração, para
tentar lidar com essa questão.
Alguém perguntou para Graça: Por que ele fez este comentário?
Graça – Porque lhe perguntamos qual foi seu primeiro encontro com
Winnicott, e qual foi sua impressão. E contou onde o encontrou. Foi a um
congresso, e sua impressão foi que além disso, para ele importava escutar
outro tipo de contratransferência, um pouco diferente da habitual.
Graça – Falou da experiência mais importante, que segundo Winnicott
é a separação. A separação da mãe. Para poder começar a criar aquele espaço da falta.
Raquel – Separação, falta, espaço, angústia – nosso assunto –,
simbolização. Para Winnicott, os fenômenos e objetos transicionais são
criados – poderia eu dizer – para sustentar a angústia.
Bibliografia a respeito, também para constatar como se articula
Winnicott com Lacan: “Seminário 10, A Angústia”, de Lacan. Existe uma
versão apócrifa, na qual se pode situar esta questão, creio que é na página
93 ou 94. Aí está. E Lacan disse mais ou menos assim: o objeto transicional
524 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 525
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
é um objeto de fabricação humana, (pelúcia, urso, manta) que sustenta o
“objeto a”. Lacan usa esta designação para situar o que para ele é o começo
da angústia, em tomo do “Sinistro”, a ausência e a falta; poderíamos dizer:
o espaço do nada representacional, e logo, representar aí “o ausente”.
Voltemos um pouco atrás. A primeira grande angústia, “a vivência de
desamparo” que, às vezes, se apresenta como sentido de vazio, é angústia
diante da ausência. Um “nada” muito breve, porque imediatamente, sobre
a marca da “experiência de satisfação”, a marca volta-se em representaçãocoisa – até representação-palavra. O vazio como tal, se existe, não pode
permanecer demasiado tempo, tempo de relógio. A angústia catastrófica
ameaçaria com o domínio do quantitativo, que o Dr. Newton Aronis assinalava com razão, em uma chave freudiana, para o tema da angústia. O
quantitativo não deve “avançar” ou permanecer demasiado, “além” de determinado nível, porque as marcas do percurso da experiência de satisfação, mesmo pensando em termos de neurônios, deformam-se, o percurso é
rompido.
Ontem falávamos da Síndrome de depressão anaclítica de Spitz. Podemos falar do trauma relacionado a este risco: rompem-se as marcas da
experiência vivida. Para falar de vazio podemos falar de trauma, podemos
falar de gap – o termo de Winnicott. Podemos falar de algo mais complicado, “el derrumbe”, ou colapso, em português, e podemos falar de melancolia, porque na melancolia Freud já definiu o eixo: a persistência de uma
escolha narcisista de objeto. É o que a diferencia do luto, é o que impede o
luto. É a presença patogênica de uma escolha – dupla escolha recíproca,
diria eu! Narcisista de objeto. Porque se é narcisista “não se pode arriscar,
nem soltar nem perder”. Porque esse vínculo simbiótico narcisista constitui a base da “minha identidade”.
Sem identidade, sem estabilidade da identidade de base, começa esta
ameaça de colapso apresentando o que ontem descrevi, seguindo D.W.W.
Como “os quatro elementos da angústia psicótica”: desmanchar-se, cair
para sempre, perder a relação com o próprio corpo e perder a orientação.
Os quatro elementos de Winnicott e Melanie Klein compõem a perda mo-
ANGÚSTIA
mentânea (ou definitiva) da coesão como identidade, e esta identidade é
psique soma, é sexualidade, psicossexualidade, e soma como corpo
erógeno. Em suma, identidade de sujeito. Então, para Green, pensar na
ausência, na separação é mais fácil com Winnicott, para nós também.
E por que o fenômeno e o objeto transicional são, aqui, essenciais?
Porque sustentam estes estados, sustentando-os contra o aumento da angústia, seja chamado ”objeto a”, seja chamado “angústia”, seja chamado
“estado de desmoronamento”, seja chamado “angústia psicótica”, seja chamado “desorganização” ou “estado de desamparo” segundo Freud...
Tipos de Angústia
As angústias, classicamente, podem ser: depressivas, persecutórias:
esquizóides, de desintegração ou fragmentação, ou confusionais.
Por quê? Porque acompanham à instalação dessa identidade de sujeito, essa coesão, essa aquisição de unidade, primeiramente ortopédica, dada
por uma imagem que vem “de fora e sustenta”. Como a ortopedia para uma
perna. E esta ortopedia provém daquele olhar de reconhecimento que provém da mãe, a pessoa que deseja um filho/filha e o cria. A que dou uma vez
mais a meu amigo quando o olho e digo: Olá, como vai você?
Minha imagem, minha representação dele, devolve a ele e ele me devolve. Este intercâmbio é absolutamente permanente, com os outros externos, e com os objetos internos, que, se estão bem, nos “olham” bem. Nesta
reciprocidade existimos. E a angústia vai se estabilizando em sua função
essencial benéfica – no meu entender – de angústia motriz de busca, de
desejo. É o objeto transicional o que sustenta a angústia até que se consegue sua estabilização – no processo constitutivo, como angústia motriz,
como “desejo de” –, na manta, no lenço do qual você gosta, na lembrança
de, pois sempre nos movemos com algum objeto especial para nós, a mão.
Pode ser um lenço, para alguns uma almofada, uma caneta escolhida e
habitual. Quase tudo pode ser assim investido, basta que nos seja familiar.
Se é familiar, “isso” faz ponte para o momento em que ameaça aumentar a
angústia depressiva, de separação.
526 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Pergunta – Qual é a diferença entre o objeto transicional e o fetiche?
Resposta – A utilização da renegação como defesa. O caso do cordão
de Winnicott é, para mim, a questão freudiana máxima. Em Winnicott,
sendo freudiano do seu jeito profundo, e sem ser lacaniano, descreve algo
muito simples mas definidor, tomando o caso do cordão. Diz que quando a
mãe se ausenta dramaticamente da vida de uma criança mais velha, não nos
primeiros dias ou semanas, e já estando representado o objeto externo, e o
objeto interno já consistente, nesse tempo, quando teria que acontecer a
percepção da diferença dos sexos e a organização genital, o trauma altera
esse passo na estrutura, e o objeto transicional torna-se fetiche-falo, que
assim conseguiu obturar o fracasso do processo da castração liberadora (ou
simbólica) evitando o maior perigo de desmoronamento, e instalando no
seu lugar uma forma de sobrevivência e de desejo, na perversão, de acordo
com as noções de fetichismo e perversão em Freud, como foi o caso.
A criança do cordão tem entre 4 e 5 anos, e a época das fobias, entre 3
e 5 anos. A época do Édipo, da posição latente, da diferenciação mais acentuada dos sexos. A triangulação e a interdição trabalham, mas essa criança,
ao invés de poder tolerar e aceitar a ameaça de castração, a angústia de
castração, e a falta da mãe –a qual daria lugar à necessidade de uma organização para desejar, buscar e aceitar sub-rogados –, tem que segurar “um
salva-vidas” – o falo – e toma qualquer objeto familiar que para ele tenha
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 527
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
Qual é o momento crucial, neste trabalho com a angústia? O momento
no qual o objeto privilegiado se vai; mamãe se vai com papai. E o “não”, aí
é “Não”. É o “Não” que corta a díade e salva da psicose; mas, entra a
galope a angústia. Terá que domá-la.
Primeira condição de surgimento da angústia: perda do objeto. Diante
da vivência do gap como rachadura deste “entre” que apareceu, as duas
margens, a vivência de desamparo ameaça com o colapso representacional... Existem duas saídas: avançar no submissão ou o retrocesso e as manobras de sobrevivência (RZG: 1998).
ANGÚSTIA
aproximação com o fantasiado pênis da mãe. É o tema paradigmático:
Juanito.
O “pênis da irmã” e “o pênis da mãe” postergam a diferença dos sexos, a angústia diante da ameaça de castração e o risco de desamparo.
Toma, então, qualquer objeto que tenha servido para a união e o transforma
em uma posição absoluta, garante contra a perda do controle sobre o objeto
indispensável... e assim passou de objeto transicional – usado como ponte
para a união, neste caso a corda, o cordão – a ser “a possessão”, o fetiche
perverso que brindando outra proteção e outra sexualidade nunca mais foi
abandonado. Isto significa erigir um monumento que cobre a falta, o buraco. É outra forma de Lacan descrever o falo: o pênis como monumento. Já
não se renuncia a que esteja presente em todos. E este é o obelisco. Lacan
também o chama “Osíris Embalsamado”. O Osíris dos egípcios. Esse monumento mostra – quando estudamos um caso clínico – como uma marca
no cemitério: aqui morreu definitivamente a pessoa na mãe boa. Aqui morreu a vida do objeto interior, e em lugar do objeto interior vivo, peito bom,
núcleo do Ego para Melanie Klein, esta personalidade teve que estruturar
(e pode fazê-Io) uma forma de neo-sexualidade, uma perversão; graças a
isso pode salvar do naufrágio, o monumento de um pênis imortal.
Sustentamos que é vital poder construir esse monumento salvador
para sua vida. Do contrário teríamos que deixar afundar na angústia traumática que acompanha os fracassos da constituição primitiva... para não
“ser perverso”? Essa é a oscilação que assinala Freud entre perversão e
psicose. Por quê? Baseando-se no fetichismo, (não no fetichismo neurótico, nem em “A clivagem do ego no processo de defesa” neurótico, aquele
que acredita e não acredita no falo), assinala – na minha opinião – que
existe uma absoluta diferença em todos os mecanismos psíquicos quando
no lugar de uma neurose, que joga para o “tem, não tem”, diz: “todos têm,
e aquilo que eu não gosto, não existe”. E uma parte da realidade se perde, e
já começamos a estar no terreno da psicose. A perda da realidade na neurose... é diferente na psicose.
Fort-Da é a seguinte etapa ou período de uma criança que sim, funcio528 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
A Angústia e os Sexos
Se a mulher não se angustia, não progride. O homem progride, porque
está permanentemente exposto à falha. A mulher pode recorrer a capturar o
filho, para obturar a falha. Isto seria uma base no problema da melancolia.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 529
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
na e brinca, mais ou menos bem, com um determinado grau – não “demais”
– de rebelião contra a castração, contra a evidência de “minha irmã não
tem” e “sua mamãe não é para você”. Esta é uma castração possível, uma
imposição da cultura que lhe diz: assim vai ser algo neurótico e viver bastante bem no mundo, em troca de aceitar a lei, a gramática de nossa língua,
as leis em geral, as leis do direito romano universal.
Se existe uma rebelião relativa, existirá um fetichismo mais ou menos
apto para a vida sexual, como pródromos da sexualidade, pré-genitalidade
da genitalidade, e o jogo da busca do falo da mãe dará lugar ao “jogo do
chamariz” no jogo dos sexos, em torno da incompletude de um único sexo
que busca ao outro, e assim se habilita o desejo, o coito e o orgasmo. (RZG:
1983, 1994, 1995, 2000).
São os “jogos prévios’” que sempre jogam na faixa neurótica, (não
psicótica nem perversa) faixa de “não existe pênis – talvez sim – em uma
mulher”. O homem, de forma alguma, busca que a mulher apareça com
pênis, mas tampouco toleraria que se mostre danificada, machucada ou
quebrada. Não sabemos como chamá-Io. Não a busca como castrada. Bom,
este tema é para outra dissertação futura sobre a sexualidade feminina. E o
misterioso lugar, impossível? Para a mulher e a feminilidade, conforme o
homem a vê.
De fato, acredito entender que nestas vicissitudes do encontro dos sexos, a mulher parece proteger o homem da angústia da castração, e como é
dialético, se a mulher não protege o homem da angústia da castração absoluta, o homem não a reconhece mulher, assim é que ela se protege, ao acionar como fator anti-angústia. E isto é o que se pode dizer atualmente das
angústias e mecanismos em jogo no campo da sexualidade feminina e masculina e no pacto entre os sexos.
ANGÚSTIA
Joga-se uma breve escolha, narcisista e recíproca, fatal às vezes, conforme
sua evolução. Por isso, sempre digo, quando pesquiso “Luto e melancolia”,
e insisto, em que se pergunte na Psicanálise, escolha narcisista de objeto ...
de quem?
Primeiramente, de quem e para quem? Quem está antes nestes processos psíquicos, o filho ou a mãe? É a mãe que está primeiro na vida, esperando o filho que está por vir, desejado. Quando o filho vem, a mãe já pode
“ajudar” ou falhar na reedição da sua própria incompletude. E aqui está
presente a angústia do puerpério da mulher, colocada na equação peito,
fezes, pênis, bebê, está forçada a jogar, somente “jogar” “como se” esse
jogo do preenchimento como breve período de “escolha narcisista”. Acredita, porém, e durante décadas, que o pai/homem sim o é...
É bom que possa acreditar que o homem, sim, tem preenchimento,
porque isso lhe permite amparar-se sob a asa protetora de um homem, indo
do braço do homem como deslocamento do pai protetor. Assim se vê que a
angústia – de castração, ou incompletude – da mulher está aí, nesse ponto,
além de piadas feministas ou machistas. E, esse ponto de angústia faz com
que a mulher – forçosamente um primeiro tramo – fantasie que se completará com o menino ou menina na margem de risco de uma escolha narcisista de objeto. Mas, uma mulher não deixa de escutar o chamado do homem,
o chamado da sua sexualidade, e isso é o que a arranca da relação
simbiótica inicial onde habita esse breve “microdelírio universal de
completude”.
Angústia e Puerpério
Os que me conhecem, aqui e em outros locais, escutarão insistir que,
nessas operações, sempre remeto ao pai, pensado conforme Lacan. Devemos saber que se alguma mãe não deixa passar por sua cabeça a presença
de um homem, tudo isto falha. Se, por exemplo, está alterada em seu
narcisismo, bem pode engravidar, mas talvez não possa desejar um bebê, e
mesmo que não seja psicótica, pode padecer esses transtornos narcisistas,
ou esquizo-autistas – como penso em denominar certos estados – que le530 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
O Jogo e as Angústias
E depois vem a cena das angústias o fenômeno do Fort-Da que estuda
Freud, jogo que assinala o momento no qual o jogo protetor já está consolidado na utilização do objeto transicional. Jogá-lo, recuperá-Io no espaço,
na palavra, no objeto e como modo de resolução da ausência.
Entre os pontos mais destacados marcados por Green naquele vídeo –
conferência, um deles – que me serve para esta idéia da melancolia e o
narcisismo patológico – é a intimidade erótica proibida, mas imprescindíSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 531
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
vam a que essa mãe não possa tolerar que seja somente uma relação temporária com essa possessão, porque quando entra nesse estado, diante dessa
possessão que a garante por esse suplemento narcisista, não permite que
suas cabeças se separem, porque já é fundamental para seu equilíbrio psíquico e narcisista, e nem muito menos permitirá que o homem/pai lhe diga:
“Basta, deixa essa criatura aí”.
Outro ponto de referência na clínica da angústia é este, e aparece em
Winnicott referente a que um bebê é uma entidade somente, porque é bebê
para uma mãe. Isso significa, (para nós): porque “está pensado” pela mãe
como tal, como alguém outro, e é a mãe a chave mestra, porque é ela quem
deixa ou não passar a libertadora função paterna.
Desenvolvi este tema no livro “Da erótica” – que deixei aqui, para a
biblioteca –, no capítulo intitulado “A função paterna”.
Também podemos – sobre estas bases – repensar a “Ana O”, podemos
repensar a “Dora”, e, conseqüentemente, repensar a bissexualidade da histeria, relacionada à interdição que falha, ou que flutua como a entendo. A
posição da mãe de Schreber é um desafio pendente. Mas, eu acredito que
com o Dr. Schreber nenhuma mulher seria capaz de fazer algo, porque é
estruturalmente o Amo da relação e da angústia. Lembrarão que o pai do
Dr. Schreber era – como educador e professor reconhecido – um amo absoluto, não um amo relativo. Refiro-me a isso. Nem existe esboço possível de
rebelião para o filho, nem angústia motriz que se acenda diante do amo,
que é amo gozador.
ANGÚSTIA
vel, porém breve, como teria que ser. E aí se articula a angústia de castração primeira, em torno desse encontro psicossexual, que é intimidade e é
prazer para ambos. Insistia Green, questionando determinados enfoques
ingleses, que não é “psicológica”, porque nada pode ser somente psicológico. Entretanto, ainda nos perguntamos, por que alguns temos que insistir
em lembrar que Psicanálíse é psico-sexualidade, e não psiquismo e sexualidade? Porque Green se pergunta no IJPA: “Tem a sexualidade relação
com a Psicanálise?”. Tende a perder-se do panorama psicanalítico a noção
de que desde o começo não existe estruturação psíquica sem prazer, sem o
predomínio do princípio de prazer, e o prazer como tal, é prazer de zona
erógena, prazer efetivo, de satisfação de uma moção pulsional.
Não é um prazer em abstrato, não é um simples equilíbrio de tensões,
não é a metapsicologia do Nirvana versus pulsão; é prazer do corpo como
grande zona erógena, como corpo que experimenta carnalmente, como
soma e prazer de órgão. Então, a precisão que lembra Graça sobre o que
disse Green nos faz compreender um pouco mais sobre o que é a castração
desse “pré-começo arcaico”, é uma perda no erotismo completo com suas
conseqüências psíquicas.
Um exemplo, e bibliografia sobre isto está em Gisela Pankow, que
trabalha com psicóticos e utiliza desenhos. Apresenta histórias de mães
esquizofrênicas, e crianças de mães esquizofrênicas, e ilustra em alguns
desenhos esse vazio do qual tanto falamos, em função do trauma precoce,
diria, como um buraco negro literalmente desenhado, onde, no desenho do
esquema corporal da zona erógena onde o objeto foi perdido, existe um
desgarro negro, sem representação, e, conforme a situação que apresenta a
esquizofrenia da mãe, esta desaparece como objeto pensante-desejante dessa criança, conjuntamente com o desaparecimento da zona erógena correspondente, e aparece um buraco negro no desenho, na zona da boca. O que
aconteceu? A unidade de prazer da qual fala Angel Garma está aí: boca,
bico do seio, onde cai um blackout.
Nem rastros projetáveis do registro do prazer, o necessário para voltar
a ativar uma e outra vez a marca da experiência de satisfação e constituir
532 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Comentário – O choro de uma criança é uma angústia motriz?
Claro; no primeiro choro/grito, a mãe é ativada pela angústia – de
ambos – e lhe dá um sentido ao dizer: “coitadinho, já vou, já vai”, lhe diz,
e a criança esperando, alucinando, vai carregar a marca da experiência de
satisfação. Neste ponto Freud é bem preciso. Tudo isto é hipotético, mítico,
do tempo lógico inicial, mas é a teoria que fundamenta Freud em “Projeto
de uma psicologia para neurologistas”. Baseada nessa marca alucinatória,
primeiro, vai alucinar acordado, com a boca desejosa, talvez com uma chupeta, um pirulito ou uma roçada de algo a sua volta. E aí, como disse, se
afiança o fenômeno psíquico central na teoria de Freud sobre o que é o
sonho: sustenta-se uma realização alucinatória de desejo. Claro que, junto
à teoria de Garma, aqui se situa o que assinalávamos há pouco, um estado
de pré-trauma que exige um alucinar para esperar, para dormir; existe uma
dimensão traumática eficaz que forçou primeiro a alucinação protetora, e,
se as condições são positivas, haverá uma satisfação alimentícia nesse primeiro momento. Já, já estão habilitados para sempre dois caminhos: a satisfação alimentícia junto à presença que garante a sobrevivência, e o outro
caminho definitivamente consolidado: a alucinação gratificadora, o desejo, o sonho dormido, e o jogo e o viver. Enfim, segundo o artigo de Freud,
“Escritores criativos e devaneio”, e como se deduz destas primeiras instânSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 533
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
imagem inteira de si mesma.
Se a ausência não chega ao estatuto de trauma, contamos com o eixo
ausência-angústia-presença, como motor de estruturação. A relação entre
ausência-angústia e trauma consiste em um estado de equilíbrio sobre a
separação como experiência da ausência, que não chegue a trauma, e isto
faz com que esse estado seja – como pré-trauma – aquele que instala a
angústia motriz da qual Ihes falo. É o grau quantitativo, que coloca a necessidade de simbolizar e a possibilidade de utilizar a marca da experiência de
satisfação, e a alucinação gratificadora. E daí surge também o acesso a
desejar como produção dos sonhos.
ANGÚSTIA
cias articuladoras, isso é também o caminho e a condição da cura, e vislumbra-se aí, em transferência, a evolução da função do fenômeno transicional,
segundo Winnicott.
Um autor do qual gosto muito é Octave Manonni. Dentro de um texto
dedicado a Winnicott, desenvolve o problema – que também ele vê como
Winnicott – o da psicotização precoce, quando a angústia do bebê – voltando para a angústia inicial – é mal registrada pela mãe, desde o grito inicial,
porque ela não está bem, e devido a esse estado “ausente”, a mãe – quando
o bebê necessite olhar, para ser olhado pelo olhar que o reconhece, ou quando o bebê necessita um corpo a corpo carnal ou quando o bebê necessite de
um pequeno jogo de “esconde-esconde”, como prática da oscilação presença, ausência, ou quando já for o tempo da apresentação de um objeto
que logo possa utilizar, para apropriar-se e praticar a função do objeto
transicional –, ao invés de toda essa riqueza de desdobramento, essa mãe
carente, que carece, melancólica ou narcisisticamente danificada, ou prépsicótica, irá apoderar-se do bebê, desconhecendo-o como um outro, e lhe
dará, por exemplo, comida como recurso “calmante”/anti-angústia, como
se fosse somente um animalzinho que come e dorme – “somente come e
dorme” –, costuma dizer essa mãe. Já não come para a sobrevivência e o
prazer, já não pode contar com o “espaço” para sonhar e estar acordado,
esperando, para logo amar e olhar e jogar o erotismo e os destinos
pulsionais, e não somente depender para isso, inutilmente, da alimentação
e alguma regressão calmante.
Nesse ponto exato, são introduzidas as adições. As pequenas, medianas e as passionais e irreversíveis. Gosto de Manonni, também porque ele
coloca claramente essa idéia, que eu defino como um enfoque psíquico; no
enfoque – que consiste em movimento típico do jogo do xadrez, na qual a
peça importante é protegida e uma peça menos importante é colocada em
risco –, a mãe, não por uma intenção premeditada, mas por sua própria
psicopatologia, acaba por colocar a necessidade no lugar do desejo, e obtura-se, diria eu, com Winnicott, a organização e a consolidação do jogar e do
desejar. Por exemplo, notamos na mãe que diz: “só brinca comigo”; a rigor
534 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 535
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
é porque é ela que está sozinha, abandonada, divorciada, ou viúva, solteira,
traumatizada, melancólica, ou doente; enfim, tudo o que pode acontecer a
uma mulher como ser humano. Quero dizer, que não estamos culpando a
mãe, estamos investigando os componentes do estado de “encontro”, como
denomina P. Aulagnier; o tempo do contexto fundante, como o descrevi
(RZG; 1992, 1997), porque das características psíquicas dos dois participantes desse encontro depende, quase, a resultante. Ali história dessa estrutura é decidida, porque é daí que surgem os tipos de mecanismos que
cada infans usa logo para enfrentar a angústia.
Agora vamos entender melhor porque digo aqui, ao falar das angústias, que existem grandes articuladores na Psicanálise. Os shifters, que servem para ser colocados como prismas, que permitem refletir os 360° do
contexto do encontro fundante do funcionamento psíquico. Situo a angústia como um shifter fundamental, para a clínica e para a teoria. O
narcisismo é outro shifter central. Sempre voltamos e recorremos a estes
elementos decisivos. A angústia é um elemento decisivo no funcionamento mental, e o narcisismo é outro.
Para situar – pensando a bibliografia que já temos – as patologias, seja
do lado da neurose, ou das outras, denominemos mistas ou inclassificáveis
(somatose, narcisismo patológico, quadros mistos, etc.) temos que pensar
mais especificamente no processamento, da angústia nesses tempos. Aqui
ocorreram fragmentos de experiência, que adquirem uma função ortopédica, dando certa unidade, como base de uma contenção interior. Sustentados
estes fragmentos de experiência através de uma complexidade de mecanismos específicos, estas pessoas conseguem ativar alguma coisa que pretende ser suficiente para permitir-Ihes um estado de sobrevivência, fortemente dependente e em luta contra a dependência horrorizante, que, ao mesmo
tempo, se mostra frágil e muito rígida, e se evidencia difícil de “tocar” pelo
analista em busca de algo de angústia motriz. (RZG: “Síndrome de fragmentação e sobrevivência”, 1998). Por outro lado, quero tocar de modo
inapreensível este estado de contenção, e desarmá-lo sem ter desejado, seria expor a situação do analisando, a que este estado de coisas se desman-
ANGÚSTIA
che em mil pedaços.
Nestes tempos sociais, quando essa patologia é abundante, podemos
pensar que seria esta a zona de gozo e horror primitivo, que permaneceu
não integrada, como efeito das experiências de fragmentação precoces que
viemos considerando, e como conteúdos emoldurados de angústias variadas e pulsantes. Em todo caso, é esta região psíquica a que fica para revisar
hoje em dia, em busca de mais exatidões teóricas, para um melhor sustento
frente à difícil clínica atual.
Se tivesse que dizer o que penso da análise, atualmente, penso que sua
vigência e refinamento é uma benção maravilhosa, porque nos permite,
cada vez mais, integrar, por exemplo, outros fragmentos dessas experiências fragmentárias, a partir da contratransferência e da análise do analista, e
dispor, assim, dessas ampliações no campo analítico cotidiano. É um tema
atual, e como disse, maravilha constatar o potencial da obra freudiana que
sustenta também esses avanços.
É oportuno um título: “A última análise de um analista”, trabalho que
foi apresentado na APA e que não se refere ao último, porque este vai morrer depois, mas porque é a última tentativa, a última esperança, digamos. O
paradigma desta situação é a experiência de Guntrip, que faz uma análise
com Winnicott, após muitos anos de análise com Fairbairn. Relata Guntrip,
em um texto publicado que muitos conhecem, esta análise – curativa – de
sua experiência traumática com sua mãe e um irmão, tema que nunca
Fairbairn havia chegado a tocar naquela análise. Uma experiência penosa e
traumática que poderíamos entender como uma zona não integrada. Reside
ali um companheiro de angústias de outra índole, mecanismos de outra
índole e alterações do Ego que, com o tempo, afetam, a meu ver, o resto da
personalidade. E isto é água para meu moinho. Digo isto, porque, quando
ontem comecei a falar, e creio que era eu que não conseguia que me entendessem, ao referir-me à idéia de Leclaire de uma fobia fundamental à qual
se tem que chegar no campo da cura (porque estas experiências primeiras
são experiências de abandono, de corte quase improcessável), devíamos
ainda situar esse outro elemento central do contexto do encontro: as va536 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 537
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
riantes da noção “mãe morta” de A. Green. A “mãe morta” seria a qualidade da mãe da criança do cordão, porque foi embora sem retorno, e ali foi
alterado o devir de seu processo de sexualização e o marco ou holding
tornou-se inanimado, situação reeditada na situação analítica.
A categoria mãe morta pode ser entendida, atualmente, como o efeito
de qualquer ocasião na qual a mãe se deprime e “vai embora”, às vezes, por
algum fator que nem sequer seria gravíssimo, mas, é esse o momento específico que adquire qualidade traumática porque quebra o trabalho psíquico
na sua continuidade, mesmo que no tempo cronológico passe a ser apenas
um dia, ou apenas uma semana. Pode ir para ter um irmão ou porque um
irmão adoeceu. Isto representa para a criança defrontar-se com um luto, às
vezes, patológico, que não pode ser elaborado como tal, portanto, apresenta-se, às vezes, como psicose branca e contém um outro tipo de angústia,
da qual nem sequer falamos, porque implica aprofundar ainda mais um
pouco essas idéias de Green. Hoje, pelo menos podemos relacionar isto
com um luto impossível de ser vivido, sem representações, e com esse tipo
de angústia, que não é angústia registrada nem registrável, porque não existe ainda um Ego adequado, isto é, que perceba a qualidade dessa angústia.
Essa angústia, nesse tempo, podemos dizer: é puro quantitativo, talvez essa seja uma chave para a violência desta modalidade de sobrevivência, e impulsione no Ego um desgarro, algo que Freud, na “Análise
terminável e interminável”, chamou alterações do Ego. As patologias e os
sofrimentos residuais dos analistas, que também Freud enfrentou – e quanto! – por si mesmo. Também os encontramos atualmente na desesperança
como sintoma nos analistas, que, às vezes, entram em um forte ceticismo
com a Psicanálise, o que não é facilmente modificável neles próprios.
Por isso, atualmente, nos perguntamos, um pouco desorientados, talvez, a Psicanálise, como especificidade e como técnica específica, poderá
tratar as alterações do Ego e essas angústias e modalidades correlativas, de
outro tipo que habitam nas consultas “impossíveis”? Faço referência, aqui,
ao começo desta transcrição, quando falamos de dogmatismos e certezas.
E de sua presença defensiva no analista, como baluarte... às vezes, insolú-
ANGÚSTIA
vel, ou quase. E, entretanto, tão vitais uma vez superados, para a análise do
analista e o presente da Psicanálise.
Então, volto a comentar sobre “A última análise de um analista”, que
geralmente é buscada porque o analista ainda arrasta uma esquizoidia insuperável, e sofre sua produção pessoal, ou suporta uma fobia que em determinado grau, e gradualmente, o mantém inabilitado ou semi-inválido. E
um ser humano tem direito a dizer: por que a Psicanálise não resolve esta
faixa de minha personalidade? Deve ser dito: essa pessoa que se prepara
para tentar atravessar, com sucesso, a vivência da castração, como separação fundante falida que previamente não foi suficientemente elaborada,
terá que enfrentar a angústia (encapsulada?) no que chamamos fobia fundamental. Para o que terá que se perguntar, a essa altura da vida, sobre seus
referentes identificatórios, para enfrentar o trabalho pendente de
desidentificação daquelas identificações patógenas que o transitaram nesses tempos constitutivos. Quem o olhou, quem o sustentou, e logo, a ideologia que se estruturou aí (ou a organização teórica, se é um teórico), deverão ser questionadas, para permitir – se possui o necessário – que esse novo
projeto de experiência analítica ponha em questionamento esse baluarte
pessoal (W. Baranger), de dogma e certeza, indispensável, durante anos,
mas já transformado “medieval” mortífero.
Abrir o Baluarte Pessoal... e a Angústia?
As vezes, se alguém que sofre, o faz muito preparado(a) pela vida.
Abre-se para a análise de seu baluarte pessoal. Outras vezes, é demasiado o
medo, ou percebe que sua experiência interior é demasiado caótica, confusa e travada por mecanismos. Outras vezes percebe ou intui que sua capacidade de amar está debilitada ou que o ódio está muito presente ou se antecipa, já compulsivo e anulando a incipiente investidura de amor. Que o
ressentimento está por diante e anula, que os costumes neurótico/autistas
são muito fortes, que o benefício secundário é sedutor. E, então, não irá
decidir analisar-se novamente, Mas, continuará a nos perguntar, talvez venha e diga, como esse senhor do qual lhes falei: “tento analisar-me?”, “fal538 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 539
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
ta-me algo, falta-me paixão. A análise serve para isso? É correto que queira
sentir paixão?”. Eu respondi que sim, soube depois que em uma parte teve
êxito e na outra não. Teve êxito porque não se deteriorou, e não teve êxito
porque desembocou em, novamente, utilizar seus antigos recursos para
sentir-se vivo.
Precisamente, trata-se dessas outras angústias das quais Ihes falei,
lembram?; do sentimento de futilidade. Winnicott disse que o sentimento
de futilidade é uma angústia profunda e insuportável, O oposto de sentir-se
vivo. Muito interessante para nós, perante a clínica e seus desafios atuais
poder ir em busca da teoria que nos sustente, como fazemos com Freud
atualmente. O sentimento de futilidade é a forma clínica da angústia que
estamos descrevendo nos estados de sobrevivência, nos estados
dogmáticos e deriva do sentimento de estar morto em vida ou enterrado,
como as crianças que têm o temor à catalepsia, como experiência fantasiada de serem enterradas vivas, como se tivessem morrido, e acordar no caixão, e não poder sair. É nessa fantasia que captamos mais precisamente – e
registram aqui as explicações – uma das vivências da futilidade. E não é
por acaso que falamos de caixão, de morto, de morto vivo, diria W.
Baranger. Está envolvida em algo da psicose branca. A “mãe morta” está
aí, faltando como coração, segundo Green. E está na própria carapaça do
autismo neurótico do qual havia falado. Ou seja, que entendo isto como o
marco ou caixão que brinda – fria como um morto – a “mãe morta”. Ou
seja, que é o destino evolutivo de uma personalidade que teve que apelar
definitivamente a mecanismos rígidos precoces, talvez a introjeção do
marco inanimado ao modo do autismo neurótico, descrito por Tustin, ou na
construção de um baluarte pessoal... irreversível? Outro estado diferente,
reversível, são os momentos de autismo neurótico, que talvez muitos possam construir como estados transitórios.
Não podemos esquecer, na nossa atitude clínica, que os quadros são
diagnosticados conforme sua permanência e conforme afetam a vida da
pessoa. Para o diagnóstico é importante, e deve-se ter cuidado com isto,
considerar a evolução de um quadro instável de autismo neurótico, que
ANGÚSTIA
costuma ser – se não existe uma figura no papel de auxiliar que
complemente e que insista e resgate – de um empobrecimento gradual, mas
sistemático da conexão com a vida. Já que é autismo, evidencia-se uma
diminuição da capacidade de amar, e conseqüentemente de nomear a realidade e os objetos, e isso conduz a um quadro interior muito semelhante à
melancolia, mas não de tipo melancólico, porém existem elementos de
melancolia que implicam empobrecimento e ressecamento gradual. Às vezes este “envolvimento” leva até praticamente desaparecer da vida de relação e organizar-se em algo similar ao que vemos em alguns quadros de
adolescência patológica. Transformam-se, no desenvolvimento crônico,
em um ser que vai se esfriando e vive dentro de uma virtualidade crescente.
É um dos nossos analisandos atuais, e faz parte do conjunto heterogêneo
daquilo que chamarei neuroses mistas, dentro das patologias de margem
(RZG: revista “A peste de Tebas”, 2000).
Fico contente de ter lembrado esta clínica, porque é gráfico dos momentos atuais e reposiciona o pensamento psicanalítico em função das relações entre as modalidades da angústia e os sofrimentos de hoje. A
tecnologia tem seu lado maravilhoso e, como sempre, seu lado diabólico; o
diabólico está relacionado à pulsão de morte que pode florescer, buscando
o idêntico ao invés de dar lugar ao diferente. É esse o acionar característico
da pulsão de morte, precisamente apagando a vital diferença em todas as
suas manifestações: de sexo, de geração, de interior/exterior... Nesse apagar da diferença, a ação da pulsão de morte tende a diluir a tensão do desejo, e em seu lugar, irá se instalar a repetição do idêntico, que irá homologar,
e irá descendendo o nível da excitação e da diferença, da qualificação e da
psiquisização. E, assim é como tende a instalar-se (inadvertida e paralelamente – alterada a angústia sinal e os indícios da pulsão, e diante do incremento visível do bem-estar no mundo –), o viver “à margem”, muito próximo das regressões do humano, em busca do todo e da felicidade sem angústia e sem trabalho. Mas ... já se está margeando apenas o buraco do
lugar do outro, sem poder dispor das riquezas sublimatórias necessárias,
perdas ao escapar dos sempre insatisfatórios compromissos com o outro
540 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Breve Apresentação da Conferencista
Raquel Zak de Goldstein é argentina, médica e psicanalista; é membro
didata da Associação Psicanalítica Argentina, onde é professora titular do
Instituto de Psicanálise. Tem participado, com suas exposições, em congressos da Associação Psicanalítica Internacional e ministrado seminários
e conferências nos Estados Unidos, Europa e América Latina. Fundadora
dos Encontros sobre o Pensamento de Winnicott, que se realizam, anualmente, na América Latina, e criadora do “Espaço Winnicott” da Associação Psicanalítica Argentina. Publicou “El objeto en psicoanálisis” (em colaboração), “Artesanías psicoanalíticas” (em colaboração), “La
psicosexualidad” (em colaboração), “And then, why Lacan?” e “De la erótica”.
Conferência
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA.
Conferência proferida na Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre, em dezembro de 1999.
Esta conferência é a segunda de um ciclo sobre o tema
angústia, ministrado pela Dra. Raquel em nossa Sociedade.
A primeira conferência encontra-se em Psicanálise –
Revista da SBPdePA vol. 2, n. 1, 2000.
Tradução do original em espanhol: Martha Mintegui
Revisão da tradução: Dra. Vera Maria H. Pereira de Mello
Dra. Raquel Zak de Goldstein
Ramon Castilla 2943
1425 Buenos Aires – Argentina
Tel. office: 54 18028554
Fax: 54 18053245
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 541
Raquel Zak de Goldstein na SBPdePA
humano, o da diferença que dói (Freud, “Mal-estar na cultura”). Mas, faz
andar a angústia motriz, e dá lugar à pulsão, e ao desejar. Esse viver à
margem é rigorosamente ir aproximando-se, às vezes demasiado, às margens do nível zero. Mesmo assim, estamos aqui hoje, como sempre, buscando tolerar o intolerável, em companhia.
Muito obrigada.
Entrevista da SBPdePA
Marcelo Viñar
Membro Titular em Função
Didática da APU (Associação
Psicanalítica do Uruguai).
Presidente da FEPAL (Federação
Psicanalítica da América Latina
Entrevista realizada em Porto
Alegre, abril de 2001,
exclusivamente para Psicanálise –
Revista da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre.
Participaram da entrevista:
Ana Rosa Chait Trachtenberg,
Cynara C. Kopitke, Denise Zimpek
Pereira, Geraldo Rosito, Vera M.
Chem, Vera M.H. Pereira de Mello
SBPdePA – O senhor hoje nos
visita através do intercâmbio da
Federação Psicanalítica da América Latina, da qual o senhor é Presidente desde junho de 2000. Poderia
nos brindar com algo, como uma linha do tempo, situando-nos a respeito de sua formação, experiências
que o senhor considere marcantes
de sua vida pessoal e/ou profissional, até a presidência da FEPAL?
Viñar – É uma pergunta tão
grande que assusta! Eu penso que as
histórias pessoais, mais que autobiográficas, importam como uma
trajetória, em grupo, de uma associação dos momentos históricos
culturais de um país. Eu egressei da
Faculdade de Medicina, no ano
1965, e nesse mesmo ano ingressei
no Instituto de Psicanálise. Sou da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 545
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
SBPdePA
Entrevista
Marcelo
Viñar
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
terceira ou quarta turma-geração dentro do grupo uruguaio que tinha sido
reconhecido pela Associação Psicanalítica Internacional em 1960, creio,
cinco anos antes de que eu iniciara. Os pais fundadores foram Willi e
Madelein Baranger. E a IPA era, nesse momento, a Associação Psicanalítica Argentina, o grupo mais antigo, mais vigoroso e mais importante, tendo
por liderança Raskovsky e Garma, por um lado, Pichón-Rivière, por outra
parte. Parece-me que ali os nomes revelam um estilo de pensar a Psicanálise. Pichón-Rivière é o avô mítico das genealogias analíticas a que eu
pertenço. Eu não o conheci, portanto, a palavra “mítico” também importa
nesse sentido. Mas conheci Willi, José Bleger, David Liberman, conheci
Emílio Rodrígues, Arrola, que são os herdeiros do pensamento desse fundador da Psicanálise na Argentina, junto com Langer e os outros. Mas ele
marcou, com seu ensino escrito e sobretudo com seu ensino oral, a curiosidade pela Psicanálise Kleiniana. Nesse momento a capital da Psicanálise
era Londres, com Melanie Klein e sua escola, que era um lugar de vanguar546 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 547
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
da e de ponta dentro do movimento internacional. E quando eu ingressei na
Psicanálise, pelos anos sessenta, havia uma preeminência do pensamento
kleiniano da época. As pessoas viajavam a Londres para supervisões. As
viagens eram menos freqüentes que agora e talvez 60% de nossas leituras
no seminário se referiam à obra de Klein e da escola de Melanie Klein.
Eu assisti a uma transição que começou com a visita ao Rio da Prata e
à América Latina de Serge Leclaire e Octave Manoni, que estiveram no
Uruguai pelos anos 1972 e 1975. Nesse momento, aconteceu algo muito
marcante na minha vida, que foi a minha prisão. Minha prisão por razões
políticas, por razões de instalação da ditadura de um período pré-ditatorial
e fui acusado de ajudar a um paciente tupamaro e não tê-lo denunciado ...
Isto é acessório, mas dá a idéia de um momento muito convulsivo. E de um
momento que depois foi marcante pelas ligações e rupturas que houve na
história de um grupo psicanalítico e a cultura e as instituições de seu país.
Porque desde esse momento tinha havido uma grande aproximação dos
analistas com a Universidade da República, que era a Universidade estatal,
que tinha o monopólio do ensino superior. E muitos dos nossos mestres em
Psicanálise ensinavam algo e tinham uma presença muito importante em
ambas as instituições. Havia um debate, sobre a conveniência de ser analista em tempo integral ou fazer a metade do tempo na universidade, e a
Psicanálise teria que ser uma segunda vocação. Mendilarsu era professor
em Neurologia e os dois Mendilarsus eram professores em Psiquiatria.
Outros eram professores titulares, também psicanalistas. E se assistia muito às palestras da clínica psiquiátrica. Havia um ensino de Psicanálise na
Faculdade de Humanidades e sobretudo havia a presença de figuras psicanalíticas na instituição em docência pública superior. A ditadura rompeu
tudo isso e as pontes, depois, foram difíceis de estabelecer. A ditadura rompeu o espaço público, as pessoas se recolheram nos seus lares, fechou-se a
Faculdade de Psicologia durante muito tempo e se empobreceu algo que
estava nascendo, que estava na infância, e se criaram escolas privadas.
Escolas privadas dos Garbarino, escolas privadas do Grego. Esses 15 anos
marcaram um movimento do espaço público, o da privatização. Eu me fui
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
para o Exterior. Houve uma meia dúzia de psicanalistas uruguaios que foram ao exílio. Alguns ao México, alguns à Europa, alguns por razões políticas e outros por outras razões. O grupo ficou meio disperso, um setor
ficou e outro ... Apesar da ditadura, a Psicanálise seguiu crescendo e o
grupo seguiu trabalhando. Seguiu trabalhando intensamente e crescendo
numericamente, adaptando-se às circunstâncias.
O exílio e o fato de ter vivido na França, entre Paris e Boulois, numa
clínica psiquiátrica, foi outra experiência muito marcante na minha vida. O
contato com o pensamento francês tinha começado com as visitas de
Leclaire e de Manoni. Não é uma transformação de uma religião em outra.
Quando a gente estuda a primeira teoria analítica, estuda como uma verdade única e congruente. Quando começa com a pluralidade teórica, não é
que haja o estouro e a fragmentação da verdade única da Psicanálise, começa que a gente tem que procurar soluções a uma verdade fragmentada e
múltipla. E como bem dizem muitos colegas, as teorias analíticas pósfreudianas não são todas compatíveis e congruentes entre si. Não é que a
gente possa traduzir a terminologia kleiniana; as correntes atuais da Psicanálise têm divergências. Parece-me, que essa afirmação que saiu em algum
Congresso de Psicanálise, de que há uma clínica para muitas teorias não é
verdadeira. Eu creio que, em Psicanálise como prática e teórica, sua clínica
está bem marcada e influenciada pelas teorias. Então, como uma marca
kleiniana muito forte, uma ênfase numa psicanálise de 4-5 vezes por semana, 50 minutos. Desde a ortodoxia, de privilegiar o aqui e agora comigo na
transferência e desde o privilegiar o arcaico e os fenômenos mais de psicose transferencial e de simbiose transferencial, houve um choque, um período de desadaptação para mim, ao mesmo tempo difícil e muito
enriquecedor. No Uruguai, por influência dos fundadores e por uma convicção, sempre foi um grupo analítico de lealdades teóricas múltiplas e
diversas. Eu acredito que a coexistência, de várias linhas, inclusive com os
membros mais kleinianos, se lia Freud e se lia alguma coisa da Psicologia
do Ego. Há quase um mandato em não ler somente, não aprofundar um só
código, senão vários, várias linhas referenciais, seguir adaptando-se. Diz548 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – Vamos editar essa parte! (Risos)
Viñar – Aí tenho que fazer um divórcio entre o grupo ... não sei se lhes
interessa muito que lhes conte minha experiência na França ou ...
SBPdePA – Podia ser interessante.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 549
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
se que isso depende da preferência e dos estilos pessoais. É uma coisa
interrogativa.
Eu penso que muitas vezes as instituições analíticas criam, criam
agrupamentos e instituições de uma única fidelidade teórica e que são poucas no movimento analítico as que admitem uma convivência, senão pacífica, ao menos uma convivência confrontacional ativa. E eu acredito que a
diversidade de lealdades teóricas pode criar um diálogo enriquecedor. Espero que o intercâmbio de ontem que tive com vocês, eu apontei nessa
direção, eu possa aderir a muitas coisas que se falaram ontem. Mas queria
sobretudo marcar diferenças, criar uma questão confrontacional de preferência, escolher o que é relevante num material clínico, o que é relevante
num relato de um paciente e seguir sempre explorando o que é esse lugar
tão necessário, que é definir como se posiciona o analista para que sua
escuta seja analítica. Como se posiciona o analista para construir o espaço
analítico, é uma tarefa como construir a Torre de Babel, é uma tarefa sempre procurada e sempre frustrada. Não é que a gente diga “agora eu já sei”.
Isso é a morte da Psicanálise. E quando o psicanalista tem um repertório de
respostas a cada modalidade clínica do paciente, isso é a morte do pensador analítico que sempre tem que estar aberto, que sempre tem que explorar o desconhecido. E o não ter uma teoria segura me parece uma das condições. Por isso a mim me irrita muito, e sempre o digo quando a gente se
define pelo “ano” (ânus), (Winnicottiano, kleiniano, etc...). Há parte mais
nobre do corpo para definir-se, digo sempre! É uma piada que tenho repetido. Isso o estudam como querem ou o censuram por palavrões!
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
Viñar – Eu me defino como um latino-americano de passagem na Europa.
SBPdePA – Perdão, se define hoje ou se definia naquele tempo?
Viñar – Não, hoje me defino como um parisiense nostálgico, mas no
momento em que estava lá me definia não somente como um nostálgico,
visto que nunca pude pensar que ficaria para sempre. Sempre pensei que
voltaria para a América Latina, que tinha muitas raízes aqui, que tinha
muitas filiações e lealdades como para usar o exílio como uma longa bolsa
que já vem, durou 14 anos ... e que começou sendo uma experiência muito
dura e uma experiência difícil, mas enriquecedora. Essa lição de transitoriedade fez com que na França eu não aderisse a nenhuma instituição analítica formalmente. E que me fizera um nômade de instituições da IPA e de
instituições lacanianas. Então pude meter o nariz em várias capelas ... Sempre era ... Os franceses têm uma longa tradição de hospitalidade e de terra
de asilo. Eu creio que a França é uma terra de asilo desde muitos anos, de
acolher o estrangeiro. Há muito racismo, muita xenofobia e tudo isso, mas
também há vocação para receber o diferente. É um dos riscos que temos na
América Latina hoje e amanhã. O problema de como legitimizar as diferenças e as transformações e de não voltar à coisa de “anos”, de que o meu
é bom e o estrangeiro e o estranho é estúpido, expulsar como disse Freud ...
Na França eu me senti de modo geral muito acolhido. E a prisão de
estrangeiro me permitiu vagar, em abismo entre grupos de filiação
lacaniana fora da IPA e grupos da IPA. Não lhes vou fazer a história do
movimento psicanalítico francês porque a ninguém importa, mas há quatro
grupos dentro da IPA e dois grupos importantes fora da IPA. Agora o
lacanismo estourou em muitas partes, mas nesse momento eram quatro ou
cinco. Eu visitei e conheci pessoas dentro dos quatro ... A experiência do
nomadismo é interessante. Ontem usei, com um colega, numa janta uma
expressão de Montesquieu que diz: “eu viajo não somente para conhecer o
mundo, senão também para fazer as pazes ou saldar contas com minha
550 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – Escapar da circularidade.
Viñar – Escapar da circularidade, escapar das endogamias que se reproduzem naturalmente por amores e lealdades ... enfim ... A boa mãe é a
que não deixa marcas e deixa partir. Bom, então foi uma experiência
enriquecedora. Já nomeei meus mestres daqui, e seguiram sendo lá. Fiz
uma experiência muito rica em Psiquiatria Institucional na Clínica da
Chasnaie. Foi o primeiro salário de subsistência que me conseguiu Serge
Leclaire. Ali, eu quase sem compreender a língua, quase sem entender o
francês! A experiência de não entender a língua durante um ano foi muito
penosa, muito difícil, muito angustiante e me fez reavaliar a penúria de
nossos avós ou bisavós imigrantes na América. A terra e a língua desconhecidas. Ensinaram-me os loucos, me protegeram os loucos, os
esquizofrênicos. A clínica era numa fazenda, num castelo onde se fazia o
tratamento institucional de 100, 120 pacientes graves que não haviam respondido bem aos tratamentos que se lhes dava; uma modalidade que aqui
se conhece mais como comunidade terapêutica ... Não é uma associação
onde há psicanalistas, senão a instituição se pretende psicanalítica. E a
instituição se pretende psicanalítica porque não procura somente a cura
dos pacientes, não procura um ativismo terapêutico, senão que se procura
que a instituição viva. Pensa-se que na psicose há um esvaziamento e uma
morte do desejo e ... Bom, isto seria muito lerdo, mas me foi muito
marcante entender como ... para conseguir entender alguém não há que
focalizar seus sintomas, em seus aspectos mórbidos, senão em sua condição de sujeito. Sujeito desejoso ou de sujeito morto ao desejo. Então, quanSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 551
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
própria cultura”. Esse movimento de descentralização, esse movimento de
errância, importa para um psicanalista ... Eu creio que cada grupo gera
seus próprios repertórios de trabalho e ... tanto individual como corporativa
e grupalmente vamos gerando nossos escotomas e pontos cegos. Então
convém gerar movimentos pontuais para ver o que de dentro do bosque
não se vê e somente se vê de fora.
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
do um louco diz “me dói aqui” ou “tenho tais alucinações”, se lhes contestava, por exemplo, “temos que jogar bola” ou “tenho que fazer tua cama”...
O paciente é ativo, todas as atividades se fazem em grupos mistos de
enfermeiros e psiquiatras: cozinhar, lavar, limpar, passear, organizar a criação de porcos, organizar a cozinha, organizar as excursões, criar campeonatos esportivos ... O lugar mais importante da clínica não é o dormitório e
sim a sala onde se joga pingue-pongue, carteado ou as atividades realizadas durante o dia. Ou seja, que há uma estimação pelo trabalho ... E onde,
depois que o sujeito é parte de uma grande família, de uma grande comunidade interna, se começar a ver quem é e o que lhe acontece. E se vê as
transferências múltiplas que ele logrou com diferentes pessoas. E onde um
dos que está na reunião é sempre alguém que não conhece o paciente. Onde
se pede a quase todos, desde o encanador até o enfermeiro, até o cozinheiro, que façam uma experiência psicanalítica de divã. Esse é um dos critérios mais importantes do recrutamento e de seleção de pessoal. E onde,
ainda que não se cure a psicose, há uma mudança na vida e no destino dos
pacientes que me parece admirável. Se eu mesmo, ou um ser querido, me
torno louco, queria ser hospitalizado na clínica da Chasnaie e não num
hospício tradicional.
Parece-me um modelo de vanguarda a desenvolver na América Latina
e me parece sensato e compatível as consignas que têm, além disso, raízes
rio-grandense. Raízes no Rio Grande, dessa utopia de uma sociedade sem
hospício. Todos temos, a sociedade tem uma dívida com seus
esquizofrênicos de criar algo menos sinistro que é o hospital psiquiátrico,
menos terrível, menos corrupto, menos parecido a um cárcere. E que em
Porto Alegre e no sul do Brasil ou todo o Brasil, há lugares onde esses
movimentos pós-asilários existem. Essa experiência me enriqueceu muito.
Eu não pude apontar nada à Psiquiatria, mas apontei duas coisas, e já que
me perguntam a mim, sou um pouco auto-referente na entrevista. Eu apontei duas coisas essenciais. Uma é que as rivalidades no grupo eram muito
grandes e não podiam começar um projeto de escola por conflitos entre
eles. E que por lealdade com o refugiado latino-americano que chegava ...
552 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 553
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
lograram criar um grupo que permitiu deslanchar, o qual resolveu uma
situação da clínica e fez com que meu emprego que era por ano durasse
dez. Assim, pois, organizamos um lugar que não é como um instituto, no
sentido que a transmissão da experiência é fundamental. A segunda foi que
minha tarefa docente se organizou, não somente sob o esquema da
docência tradicional, senão sob o esquema do ensino ativo de grupos
operativos de José Bleger e de Pichón. Havia atividades docentes que se
chamavam “Reflexão sobre a prática cotidiana”, onde os jovens que trabalhavam com pacientes esquizofrênicos contavam suas dificuldades. Partiase, com dificuldade, essa projeção massiva, essa projeção pegajosa, essa
projeção que o esquizofrênico ... E grupalmente trabalhamos em resolver
essas transferências massivas, adesivas, hostis, de como jogava de outra
maneira porque algo se desbloqueara na relação terapêutica. E isso foi, não
digo exitoso, mas útil como trabalho da clínica.
A experiência do exílio foi forte. A experiência do exílio é a troca de
país, a troca de língua, a troca de clima, a troca de código de convivência,
o adaptar-se a outro universo. Para alguém que vive num país pequeno,
acolhedor, numa cidade que tem um milhão de habitantes e todo o país tem
três milhões, como ocorre no Uruguai ... Tudo no pessoal e familiar, foi
uma experiência forte ... E me fez repensar muito no que era ser psicanalista. E no que é a função da teoria psicanalítica. Em todo debate das análises
condensadas, em todo debate da freqüência de sessões, que devem ser quatro por semana e que devem ser de 50 minutos. Na França, as práticas são
muito mais diversas. Há analistas que trabalham 50 minutos, outros 45,
outros 30, 40. Há mais diversidade, há lacanianos partidários de corte nas
sessões, e do tipo móvel que eu não pratico porque não sei usar e me parece
que se presta a muito engano. Mas há um debate que em algum lugar se faz
com isso. Participei no College de Psicanalistas que era um grupo
multiinstitucional, que discutia, não somente a Psicanálise, senão as relações interdisciplinares. A questão inicial que fundava a instituição era “que
faz ao psicanalista estar num país como a França?”, que se preocupavam
com a relação psicanalítica do pensamento psicanalítico com as institui-
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
ções, com as culturas, com o atual, com as ciências humanas, com o direito, com a genética. Onde havia debate sobre a procriação assistida, as mães
portadoras desses problemas que têm agora, a filiação, o travestismo e todas essas coisas. E aí opinavam sociólogos, opinavam juristas, se opinava
em termos epistemológicos, também me parece que na abertura ... me parece também que a abertura é importante, que tenhamos ocasiões de falar.
Tive uma experiência muito marcante que foi um encontro que realizou Leclaire no qual se pedia que científicos de diferentes áreas (especializações), alguns matemáticos, físicos, algum sociólogo; excluiu os filósofos porque dizia que os filósofos sabem tudo; onde iam psicanalistas, cada
um tinha que se arriscar a explicar para uma comunidade de diferentes
horizontes em que consistia sua prática e o fundamento de sua prática. Em
que se baseava o paradigma de seu trabalho, os referentes teóricos de seu
trabalho e qual é o horizonte entre o conhecido e o que se procurava progredir. Essa era a proposta e como se formulam as questões hoje, que me
parece uma transformação de vocábulos muito importante ... Para mim, o
que hoje é um descobrimento e uma mudança na relação com as teorias da
modernidade, na história das idéias na metade do século XX, o saber do
psicanalista consistia em ter um sistema teórico congruente. Freud incentivava a teoria das pulsões, inventava teoria do aparelho psíquico, inventava
congruências e modelos abrangentes e explicativos.
Hoje se pensa diferente e se pensa que teorizar é, sempre, não a procura de um paradigma, senão saber fragmentário que possa demonstrar a relação entre o casuístico e o teorema que se está explicando, mas em termos
parciais, em termos de um saber fragmentário e de um saber onde a relação
entre o determinístico e a incerteza são cruciais. Ou seja, o que é importante saber e o que se assegura é saber o que se está ignorando. A mais conhecida das teorias da complexidade Morelli e Prigozini, todas essas coisas
são modelos que ... Eu não sou um especialista, mas que me ajudam hoje
em minha clínica, que sempre no paciente que vemos existe uma opacidade, há algo cognoscível sobre o que sempre trabalhamos parcialmente. Parece-me uma coisa de conseqüências muito importantes nas maneiras de
554 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – A própria terceirização da maternidade e da paternidade
também como fator determinante. O fato de as mães não se envolverem
tanto com seus bebês, que são delegados às creches. É a terceirização da
maternidade e da paternidade ...
Viñar – Por exemplo, há um saída muito mais precoce do lar para a
creche, para a educação extradoméstica porque a mulher trabalha, o tempo
em que estavam com as avós e com a “babá” agora é um tempo em que se
está frente à televisão e temos mais questões do que respostas dos efeitos
disso ... É um mundo onde a noção de que o apocalipse volta pelo deterioro
ecológico, pela explosão demográfica e porque ninguém aceita facilmente
em ir ao analista quatro vezes por semana., 50 minutos ... Pois faria uma
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 555
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
teorização atual em todas as ciências, nas ciências “duras”, sem dúvida,
nas ciências humanas e também na Psicanálise. Por isso também sou rival
e adversário da investigação empírica que tende a confundir a investigação
empírica com a investigação total e que volta aos modelos de ciência de
antigamente, não aos atuais, onde a opacidade e o fragmentário são decisivos. Não sei se paro aqui ou se eu sigo ... Então, hoje, no Uruguai, em
Montevidéu, os problemas ... Sim, para terminar esta primeira parte ... Eu
informo ao mesmo tempo coisas que estamos pensando, é uma proposta de
tema para o próximo congresso. Eu penso que estamos num momento de
uma mutação civilizatória, por tudo que todos sabemos. Neste momento a
Informática invade nossa vida, os tempos acelerados invadem nossa vida.
A vida cotidiana e doméstica têm mudado muito. A incidência em nossa
mentalidade de fatos como o computador e a televisão, ou as taxas de divórcio e os atuais modelos de família. As taxas de divórcio em crescimento
exponencial e as famílias recompostas, a reivindicação dos homossexuais
e gays em poder ter um parceiro e poder educar crianças são questões propostas em Psicanálise. Desafios para os quais eu creio que não temos respostas e que tampouco podemos iludi-los. Como problemas para serem
pensados num futuro.
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
psicanálise muito de laboratório ... Eu creio que o essencial não está na
freqüência senão nas possibilidades que tenha esse paciente. Que não são
com regras formais que esse problema se conserta, senão discutir em cada
caso concreto como se constrói um espaço de análise com adolescentes,
com pessoas que somente podem pagar ou vir duas vezes por semana, ou
uma ou três. São todas mudanças que nós temos que fazer ... Que mexem
nos parâmetros aos quais estamos acostumados. Então, é um momento que
se pode viver com desesperação ou como catastrófico, que se pode viver
como um momento de mudança e não adjudicar-lhe à mudança necessariamente aspectos apocalípticos, senão de esperança, mas que nos obrigam a
pensar ...
É o tema do próximo congresso que vamos propor à FEPAL. Que há
de permanência e que há de mudanças na prática e na experiência psicanalítica. Esse é o assunto que vamos propor, “Permanências e mudanças na
experiência psicanalítica”, na clínica, na teorização, na relação com as instituições e na relação com a teoria geral das idéias. E que uma tarefa de
rever tudo é uma tarefa sobre-humana para um grupo, mas que além disso
temos, que começar a pensar como um mundo que muda a um ritmo muito
acelerado. E que não podemos seguir ... toda prática tem que ver com a
época e com a cultura em que se desenvolve e que a relação da Psicanálise
com a época, com o político, com a cultura, e essas condições nos obrigam
a uma flexibilidade, a uma coisa de estar atento. E não tem que ver ali o
apocalipse nem o estouro. A perda de uma religião única de que já tudo
estava compelindo aos padrões da IPA, nos obriga a ser mais inventivos e
mais criativos e a pensar mais. Isso me parece o desafio da Psicanálise para
evitar o que alguns anunciam como o fim da Psicanálise, que a crise da
interioridade e do espaço subjetivo da época atual chama a uma prática
como a que a da Psicanálise propõe. Este resgate de um lugar onde o sujeito possa pensar-se, um espaço de sossego onde o relato se possa restabelecer. É neste tipo de organização da vida cotidiana mais pertinente que antes
e que os pacientes muitas vezes agradecem a possibilidade de que o analista tenha uma disponibilidade que cada vez é menos freqüente no mundo
556 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – Estamos escutando com muita atenção, nos deleitando
no debate e com essa possibilidade de transitar não somente por uma história pessoal senão por uma história da Psicanálise.
Viñar – Eu creio que cada homem é testemunha de seu tempo. Testemunha e protagonista de seu tempo. A fórmula de Edgar Morin é que cada
homem é feito de seu tempo e agente do seu tempo. Um dos problemas da
época atual é dizer “isto vai ser resolvido pelos especialistas”. A economia
vai ser resolvida pelos especialistas, a ecologia ... Vai-se perdendo um
compromisso com o cidadão. E há que se inventar um cidadão para o terceiro milênio, e de sua responsabilidade possam dizer: qual é o fundamento da democracia? Qual a solução democrática básica? Antigamente os
homens tinham tempo de assembléias porque tinham escravos e as mulheres. As mulheres e os escravos resolviam a subsistência e os cidadãos falavam na ágora*. Já não se pode fazer porque há que se inventar em que
forma podemos trabalhar, subsistir mas também sendo membros ativos de
... Para onde ir ... A crise do coletivo ... A crise do coletivo que agora há é a
crise do projeto, o que se chama a morte das utopias ou a morte dos discursos de utopia, que são transitórios e vão voltar. Que forma o projeto e o
local, o regional, o que é próprio do lugar onde se está, se está revitalizando
em muitos lugares do mundo, na América Latina e fora da América Latina.
Dentro da globalização, resgatar o específico e o próprio e não fazer um
mundo uniforme e homogêneo porque não é pensável o mundo uniforme e
homogêneo se o mundo cria uma diversidade.
SBPdePA – O senhor questiona aqueles que vêem os adolescentes de
hoje com muito ceticismo, em função de sua intimidade com o mundo virtual: computador, Internet e ... O senhor poderia falar do seu modo de ver
* praça das antigas cidades gregas, na qual se fazia o mercado e onde se reuniam, muitas vezes, as
assembléias do povo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 557
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
cotidiano das cidades grandes. Fui muito extenso? Peço desculpas ...
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
o futuro desses jovens? Pareceu, que o senhor tem uma visão um pouco
mais otimista! Alguns afirmam que os jovens querem tudo, é a cultura do
instantâneo, do paradise now, mas o senhor falou de uma criatividade dos
jovens, não é?
SBPdePA – Nem é complementar, mas para introduzir também uma
outra face que parece que se pode complementar essa questão. Que tem a
ver com a violência social. Que é uma outra grande realidade nossa, no
Brasil pelo menos. E de preocupação relativa aos jovens. Não só o que diz
respeito a questões pessoais ou familiares, mas de questões mais amplas e
da própria clínica psicanalítica. No sentido de que, por um lado, os jovens
estão no paradise now, mas são vítimas de uma violência a conta-gotas,
diria. De uma violência social a conta-gotas, os adultos também. Mas especificamente os jovens. Sofrem um processo de limitação em suas vidas,
como uma forma, uma tentativa de se proteger, se defender preventivamente da violência social, assaltos, roubos. Então os nossos jovens se limitam a fazer cada vez menos coisas e não têm um exercício pleno de sua
liberdade, de seu crescimento. Mas por outro lado nós somos ... Também
nos surpreendemos com a questão de uma banalização dessa violência
nas nossas mentes, nas mentes de nossos jovens e quase uma indiferença a
isso, que é o mais assustador e preocupante. Como sabemos que o senhor
é um estudioso da questões da violência e das implicações com o
psiquismo, da questão da violência de um modo geral, pareceu-me que
isso poderia se vincular com a questão anterior. Se podemos escutá-lo a
respeito.
SBPdePA – Uma perspectiva futura dessa juventude. Que visão teria
para nos colocar frente a esses conflitos atuais internos e sociais de limitações.
Viñar – O assunto da sexualidade nos jovens, se é agora melhor ou
pior do que antigamente ... Os dois temas são sexualidade e violência so558 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 559
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
cial. Seguramente estão vinculados, mas eu, para poder falar, vou começar
por separá-los. O fato de como as pessoas na nossa idade fala dos jovens ...
Exemplo é o problema de por que nós temos que falar deles? E um dos
problemas é de se ao fazê-lo não lhes cortamos a palavra, não lhes subtraímos a palavra. O temor de que os jovens corrompam e arruinem a sociedade tal qual é, que tragam costumes escandalosos, é uma velha preocupação
da humanidade. Um colega citava uma frase de muita atualidade, dizendo
que “os jovens como corruptores dos bons costumes”, e a citação era de
Sócrates. Era muito divertido porque a gente o lia como algo que podia
dizê-lo um eminente professor atual e depois revelava ... Isso demonstra
que essa preocupação que o mundo adulto tem pela invasão dos jovens na
sociedade não é um problema só de atualidade, senão que é um problema
de todas as épocas da humanidade. Eu penso que cada época produz suas
expressões de sexualidade e de comportamento sexual, que são diferentes.
A de meus pais não foi como a de minha geração e a de meus filhos não é
como a da minha. Parece que agora as mudanças são mais radicais e sobretudo que os fenômenos mediáticos ... Um dos fatores fundamentais é que
passamos muitos séculos em que o tema da sexualidade era silenciado. Era
um tema condenado ao segredo, condenado à clandestinidade e a “disso
não se fala”.
A Psicanálise contribuiu para levar o assunto da vida e o comportamento sexual das pessoas de seu lugar de clandestinidade e segredo, a um
lugar mais público. Talvez agora o excesso vá num sentido diferente. Na
época atual, basta ir ver os filmes e a televisão. Eu me lembro de que quando ia ao cinema, sendo jovem, o cinema de Hollywood, quando a boca do
protagonista e a da jovenzinha iam se juntar, se cortava o filme e terminava
ali. Terminava quando começava a atividade sexual. Agora, em geral, não
é tanto, o coito, a nudez ... E a TV como um lugar de imagem e espetáculo
doméstico ... Por mais que tenha um aviso que diga “Proibido para crianças” é muito difícil. E as crianças são muito espertas. Meus filhos assistiam a todas as atividades eróticas perversas porque escaneavam no computador, e em Meditel; na França, o diálogo, a venda do comércio sexual é
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muito difundido por computador e se pode ter acesso e muito cedo conhecem tudo o que nossa inocência ... Essa história da inocência e do terrível
atual ... Então ... Eu penso que um problema é como a gente se posiciona,
se se posiciona em termos catastróficos também de que o mal começou ou
se se começa por conhecer os fenômenos e como pensam os jovens.
É verdade que esta não é a época do tabu da virginidade, que não se
costuma nem se valoriza socialmente, o tabu da virgindade, de que a mulher chegue virgem ao matrimônio; em alguns aspectos, eu diria que eu
admiro e invejo a liberdade ou uma disposição de menor censura, de menor puritanismo e dissimulação que há desde e puberdade. O assunto é que
tínhamos pautas e agora as referências nos movimentam. Quando é a época da defloração? Quando perde a castidade o jovem hoje? Eu não tenho
uma resposta. Se eu tivesse filhos ou filhas, primeiro que não iam me perguntar, eu não perguntei aos meus pais, que eles não me perguntem. Mas
eu posso pensar o que é o desejável, o que é o temível. Eu posso pensar que
a defloração é desejável aos 18 ou aos 16 ou aos 14. Quando é prematura e
quanto é traumática. Me parece que temos que ver mais em termos de
qualidade que em termos de normas físicas. O assunto é se a iniciativa
sexual na vida dos adolescentes é criativa e luminosa ou se é sórdida e
amaldiçoada. Não é verdade que a liberdade sexual tenha resolvido os conflitos sexuais. A consulta com adolescentes mostra que os conflitos sexuais, não os resolve aquela solução que diminuindo a censura à sexualidade
precoce vai haver mais liberdade e, portanto, vai haver mais saúde. É uma
equação não necessariamente verdadeira. Eu creio que apesar de agora
haver menos censura, há menos condenação, igualmente há dificuldade e
conflito apesar de que a monogamia ... Não sei se deve haver mais condutas promíscuas, deve haver mais sintomas de transtornos sexuais.
É verdade que há mudanças culturais muito importantes. Que a homossexualidade, sendo um delito condenável em algumas culturas com a
morte ou pelo menos com a prisão e o tratamento do homossexual como
delinqüente e como doente, hoje, nas legislações dos países mais dominante, na cultura como nos Estados Unidos foi proscrita a inscrição da homos560 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 561
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
sexualidade como doença. E os homossexuais reivindicam a eleição de sua
liberdade sexual como um dos direitos humanos básicos, como uma escolha. Eu não estou seguro da verdade. Tampouco estou seguro de uma guerra contra. Não estou seguro de que a legitimação social de condutas, de
vínculos sexuais resolva o assunto da sexualidade. Eu creio que esse ponto
freudiano de que a sexualidade descentraliza o homem, de que a sexualidade tem alguma coisa que sempre é desestabilizante no heterossexual e no
homossexual, segue sendo verdadeiro. Ninguém tem uma relação pacífica
com sua própria sexualidade. A relação com a sexualidade própria individual e dos grupos é sempre problemática e é sempre conflitiva. E há muitas
soluções melhores e muitas soluções piores. A ótima não existe quase nunca. Ou é fugaz, é transitória. Então eu creio que a função dos psicanalistas
é ver o que acontece, não estar em posição de pregadores, de dizer se deve
isto sim, se deve isto não. Se podemos pregar alguma coisa, se deve seguir
pensando e seguir dizendo que a sexualidade é um problema e vai seguir
sendo um problema nesta cultura e nas outras. E que os psicanalistas tentamos pensar esse problema com os sujeitos que são os protagonistas dos
problemas. E que agora temos menos ... Eu comecei a analisar e meus
superiores me diziam que a Psicanálise podia curar a homossexualidade,
de fato, nós não éramos freudianos, éramos bastante pavlovianos no sentido de uma posição normalizante e engenista nisto de ... Eu soluções não
tenho. Me parece que não é o momento de se precipitar nas respostas, senão de formulá-las com as questões. Ou seja, a partir de verificar o que está
acontecendo com a sexualidade nos jovens e nos adultos hoje, ver que tipo
de problemas existem e tratar esses problemas tratando de discuti-los. A
Psicanálise tem contribuído em que esse espaço secreto seja um espaço de
ventilação e de tramitação. Não acredito que necessariamente, no âmbito
público, não acredito que o debate televisivo seja o lugar onde isto se deva
fazer. Tampouco acredito que a solução seja transformar o tema da sexualidade em espetáculo público, espetáculo televisivo. Creio que tem que
haver grupos que tramitem em cada cultura e cada subcultura, onde estão
os pontos sintônicos e criativos e onde estão ... O que eu creio que se tem
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
que procurar é como se estabelece a linha diferencial entre a sexualidade
como criação e sexualidade como patologia ou como conflito, como problema. E que isso já é muito trabalho para muito tempo e não tem solução.
Que temos que trabalhar para entender como é a sexualidade desta época,
em que dá satisfação, em que dá insatisfação aos jovens. Mas não podemos
negar que a realidade dos anticoncepcionais, a realidade dos controles
hormonais dá um ... A realidade da AIDS, a realidade da promiscuidade,
esses são problemas atuais. Mas também antes havia problemas. Não é que
estejamos em posição mais grave que antes, senão em posição de mudança. Em posição de mudança e que cada adolescente encontre a sua solução
mais criativa seria a fórmula desejada. O problema da violência social ... O
pouco ou muito que tenho lido ultimamente é que a situação piora. Porque
depois de um século em que se procurou, mesmo que se fracassasse, um
maior equilíbrio, uma maior harmonia, um maior equilíbrio de ingressos
entre os mais ricos e os mais pobres, uma maior equanimidade na distribuição de bens produtivos, uma maior eqüidade e justiça social, a tendência
vai exatamente no sentido oposto ao que se procurava. Eu não falo como
esquerdista que eu sou. Senão que muitos discursos liberais de direita,
muitos discursos progressistas dos esquerdistas chamados reacionários, já
apontavam na direção para um mundo mais equilibrado, em nível planetário, em nível nacional, em nível regional. Apesar de todos os esforços que
se têm realizado, dos discursos que vocês têm escutado, que havia países
desenvolvidos e países sub-desenvolvidos. O grande mérito era transformar os países subdesenvolvidos em países em vias de desenvolvimento.
Hoje estamos totalmente ao inverso e ... Na Alemanha se fala na
“brasileirização” do ocidente. Ou seja, que em países que têm ingressos
menos igualitários que os nossos ... Na América Latina isso sim é o ...
Informam as Nações Unidas que a América Latina é o continente de ingressos mais desiguais. África e Ásia são mais pobres, mas há desigualdade, ou seja, que há um setor muito rico com acesso aos bens materiais de
consumo e os mais pobres que estão fora da área de pobreza, a diferença; o
continente que tem a maior diferença nisso é a América Latina. Uruguai
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 563
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
está menos mal nisso. Brasil é um desastre, mas também Colômbia e também Peru. Ou seja, como enfrentar a desigualdade no terceiro milênio é um
problema ... Digo isto para situar desde onde falamos de violência social,
porque creio que esse é o fato, é o ponto de partida. E que a única solução
racional para encarar o problema de assaltos, de crimes, de segurança cidadã, é diminuir que os ricos tenham tanto e que os pobres tenham tão pouco.
A história mostra e eu creio que se pode manter como princípio lógico
elementar.
... a desigualdade é tão grande e em direitos que ... A história mostra
que a violência social vai seguir sendo um problema grave. Este talvez seja
um dos maiores problemas do planeta neste momento: como resolver para
uma população tão grande, desigualdades tão grandes. Maiores que as dos
últimos séculos. O que é lido dos jornalistas é que as desigualdades aumentam. Nos últimos 30 anos os países ricos aumentaram seu ingresso,
seu PIB em 80%. Os países pobres não aumentaram nada, diminuíram 3%.
O abismo aumenta e a tendência é a que siga aumentando no mundo, tal
qual está proposto no mundo de mercado. O mercantilismo neoliberal, por
esse caminho, não tem solução. E o problema vai ser a solução que se
encontre ao problema ... Que tipo de organização do comércio internacional e nacional ... Eu creio que o modo de resolver os temas de violência
urbana, de violência nos jovens é trabalhar sobre as causas de exclusão. Eu
creio que as causas de exclusão são ... a ausência ... a pobreza, a falta de
oportunidades ... É possível que o mundo chegue a uma solução ... a uma
solução assassina, a uma solução genocida e que simplesmente a AIDS e a
malária e todas essas coisas resolvam o problema ... Porque a doença sempre vai atacar mais aos pobres. Sempre a solução genocida e de eliminação
de uma parte, e que somente sobrevivam os mais fortes ... Essa idéia de
Malthus de que o planeta não é para todos ... É verdade que a explosão
demográfica mundial vai diminuindo. Mas com os jovens que temos, me
parece que o melhor modo de trabalhar com a violência é não lutar com
medidas repressivas, senão procurando oportunidades. Eu vejo que vocês
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
aqui no Brasil estão criando centros de ... Invenção da Informática em áreas populares ...
A crise do trabalho é um dos problemas do terceiro milênio. A população desempregada e com empregos precários era menos de 10% na Europa
há 40 anos; cresce 10% por década ... Eu li na semana anterior por isso falo
como um economista, e aprendi de memória, aumenta 10% a cada 10-15
anos. Nesse momento, na Alemanha, que ara modelo social-democrático e
de país rico, o emprego precário que se desejava diminuir 10% cresceu
20%, depois 30 e agora está em mais de 40%, de empregos precários. Isso
era impensável há 50 anos e é a realidade, não somente dos pobres, senão
das classes médias, na Europa, neste momento. Se é assim na Europa, e eu
penso não com os afãs messiânicos para todo o mundo, senão que eu penso
nos meus filhos e vocês pensam nos filhos de vocês. As oportunidades
trabalhistas dos jovens, hoje, são menos otimistas. O que vou fazer para
ganhar a minha subsistência, hoje, é mais complicado que há 30 anos. Eu
dizia creio num dos artigos, que nós tínhamos a crença, no fundo de nós
mesmos, de que se remássemos bem e forte, haveria um lugar na sociedade
que nos esperaria. Os rapazes de hoje estudam ou trabalham e pensam que,
ainda que remem forte, quem sabe se terão um lugar que os espere. Eu
creio que nos jovens esse sentimento de um mundo que não os espera no
plano trabalhista e de realizações vocacionais ou laborais, é um problema,
e eu não tenho respostas. Mas é um problema e tem que ser enfrentado.
Que há que inventar novos tipos. Ulric lhe chama o problema de segunda
modernidade. Sempre vivemos como que o trabalho é o referencial fundamental. O trabalho remunerado, o tempo do trabalho remunerado, é um
referencial de organização individual e social que dividia o cidadão do
marginal. Hoje temos que inventar um modo em que a atividade humana ...
Não é necessário o trabalho humano ou manual ou intelectual para que a
sociedade funcione ... Está funcionando ... O progresso da robótica, o progresso da Informática, o progresso ... O que a informatização está fazendo
perder em horas de secretária, em horas de funcionário de banco ... Um
carro novo na Europa necessitava para se fabricar, há 30 anos atrás, da
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 565
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
intervenção de 400 horas humanas. Hoje, o mesmo carro se faz com 40
horas humanas, é um guindaste, que submerge o carro numa piscina e sai
pintado. E há um senhor que aperta os botões de um robô ...
Tem que haver uma reinvenção das atividades humanas remuneráveis.
Eu, como psicanalista pouco sei dizer; sei que o problema existe e sei que
isto está nas raízes da violência. Tenho a convicção, mais que como cidadão, como psicanalista, de que isto está nas raízes do problema. E que
temos que inventar outras coisas, criar mais centros formativos, mais centros criativos. A música tem uma expansão entre os jovens que não tinha
antes, as drogas também e outras coisas também. Inventar atividades onde
o trabalho remunerado não seja o referencial organizador. Há que incentivar novos tipos de convivência que serão próprias do terceiro milênio. A
mim este assunto me pegou muito velho e não tenho inventos nem soluções para aportar; sei que tem gente que está pensando nisso, ou senão a
violência vai seguir aumentando. Em outras épocas da história também a
violência tinha aumentado. Resolveu-se por guerras, por pragas ... Parece
que o que vai faltar mais é a água em certos lugares do planeta. E os povos
sem água vão matar para obter essa água. Não é uma resposta muito rica
enquanto as soluções, me parece bem que o pensemos ... Mas creio que ...
Os temas das crianças de rua, o tema de crianças sem família, as medidas
preventivas vão organizar a marginalidade e ... De qualquer maneira, há
atividades que são repressivas, ou de reformatórios ou de cárceres. Todos
vemos na TV o que é a instituição para crianças: igual ou pior que um
hospício. E há atividades onde os psicanalistas podemos fazer alguma coisa e é o que estamos fazendo. E é entender como é a organização subjetiva
da geração. Freud dizia, e isto temos que entender, que o que humaniza o
homem é sua socialização, porque, em sua origem é um animal perverso
polígamo. Parece-me ... Nenhum humano isolado é alguém humano. Nenhum filhote de homem libertado a si mesmo se humaniza sozinho.
Humaniza-o a socialização e as socializações culturais, a instituição familiar, a instituição escolar. Quando tudo isso não acontece, inventamos soluções de escolarizações e soluções de re-humanização. E temos que ver
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
como é a organização subjetiva e como é a estruturação subjetiva quando
não há referenciais parentais, quando não há referências fraternais, quando
não há códigos de inserção na cultura. Não é um problema de
Psicopatologia. Creio que estamos mal quando o que criamos é um legista,
um psicólogo para os garotos delinqüentes. Temos que inventar instituições como os colhoz, os kibutz, como lugares onde as crianças ... Temos
que inventar lares institutos, instituições onde se lhes ofereça esse apoio
humanizante quando a família é inexistente, quando o referencial
identificatório familiar está carente, está omisso, e orientar o esforço econômico nessa direção. E os analistas ... Na instituição do hospício
(manicomial) e na instituição da casa de correção (reformatório) para o
que servimos é como tramitar o conflito entre adultos e crianças. Temos
uma ferramenta, os psicanalistas, para poder suportar e tramitar o conflito,
e que a instituição não se converta numa guerra, uma instituição carcerária
onde haja- uma guerra entre os funcionários ou cuidadores.
SBPdePA – Voltando agora para a relação analítica, naquele seu artigo sobre “Ser analista hoje”, de 1980, o senhor salienta o caráter fascinante, ou cativo, da relação do analista com sua prática. Inclusive remete
ao sentido tóxico de uma adicção ...
Viñar – Eu creio que ninguém pode ser só psicanalista, e que se possa
fazer psicanálise algumas horas do dia. Para ser psicanalista tem que estar
na disciplina da atenção flutuante e na atenção da associação livre. E que
isso é como o cirurgião que não pode ser cirurgião todo o tempo. Nesse
sentido, o consultório do analista me parece como um bloco cirúrgico onde
a gente se prepara para ser alguém diferente, não o cidadão habitual. Eu
creio que para ser pais, para ser amigos, temos que tratar de deixar o divã e
a cadeira dentro do consultório. E tenho visto muitos colegas que vivem a
vida como se tivessem a bunda grudada à cadeira e olham o mundo dando
interpretações psicanalíticas em todo lugar. Talvez agora menos, não sei
como serão, mas eu tenho visto muitos psicanalistas onde a verdade do ser
566 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 567
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
psicanalista se traslada a todas as áreas. Eu creio que cada psicanalista tem
que procurar lugares cidadãos, onde possa esquecer. Como nosso ofício é
difícil, como nosso ofício é atraente e nos absorve muitas horas!... Tem um
caráter tóxico no sentido de que não é fácil desprender-se disso e me parece que é uma exigência de equilíbrio mental de nós mesmos. A gente tem
seus motivos: tenho que ganhar a vida, tenho que ... Mas existem analistas
com horário de trabalho durante muitos anos, de 12-15 horas diárias, com
atividades analíticas nos fins de semana. E que transformam o mundo num
espaço onde somente existe a psicanálise. Isto me parece muito alienante,
muito empobrecido e que tem que se inventar outras tarefas, outros lugares. Isso depende de cada um. O que faz cada um. Não somente é um tempo de ócio. Alguns gostam de literatura, outros de pintura, outros de história, outros dos esportes. A questão é diferenciar dentro de si mesmo um
tempo em que a gente trata de pensar como analista e outro tempo em que
se esquece ou trata de se desligar das exigências muito rígidas do ser analista. Ou seja, detectar a causalidade inconsciente que é algo que ativamente fazemos no consultório e que tem que, ao mesmo tempo, poder entrar e
poder se desligar. Às vezes tão absorvente, como um polvo que nos abraça
... Digo somente isso, simplesmente, quando falo da função tóxica ... Que
os analistas temos uma agorafobia profissional, um medo de lá fora, um
medo de olhar o mundo, de tocar o mundo, de opinar sobre Collor, sobre a
corrupção, de Magalhães ... Agora creio que há mais consciência disso ...
O fato de que há crise no trabalho para os profissionais ajuda isso. Antes,
havia um trabalho ilimitado, uma demanda grande. Então se podia estar
todo o tempo cobrando dinheiro, ganhando tanto por hora. Agora a mesma
crise do trabalho psicanalítico leva a que a gente tenha que inventar o que
fazer quando não se tem pacientes. Isso me parece saudável. Me parece
que já não é uma postura ativa, do psicanalista, de que todas as semanas
possa dizer: bom, nesta semana, que outra coisa fiz radicalmente diferente,
onde me esqueci de que sou psicanalista? Ser psicanalista não é como ser
padre, que não se pode esquecer nem sequer por um minuto, senão que ...
Posicionar-se de outro modo na vida e no mundo esquecendo-se da exi-
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
gência de somente ser o profissional competente. Não é muito novo o que
lhes digo, mas é nesse sentido.
SBPdePA – Vou fazer uma pergunta mais da área clínica, assim a
questão da intrusão e de apropriação de crianças pelo desejo dos pais,
impedindo de constituir sua subjetividade é um fenômeno observado em
crianças e em adolescentes em patologias graves. Como poderíamos pensar a questão da transferência dos pais com o analista e da dificuldade da
constituição do espaço para que se dê a análise dessas crianças ou adolescentes em questão?
Viñar – Me parece que não sou muito competente para lhe responder,
porque não tenho ... Me parece que é uma pergunta que corresponde mais
a analistas de crianças, eu não tenho experiência clínica com crianças. Tenho experiência e gosto muito de trabalhar com adolescentes. Estou muito
zangado com a IPA, e estou muito zangado com uma falsa tradição que
diz: setor de crianças e adolescentes, trabalho com a criança e adolescente.
São duas práticas diferentes as crianças e os adolescentes. Eu penso que a
sexualidade infantil, o mundo da criança, as etapas da vida, a infância termina aos 6-8 anos e depois há uma etapa de transição até a crise da puberdade. Tenho experiência clínica a partir da crise da puberdade. Nas patologias graves, o ter vivido num mundo de jovens esquizofrênicos, e o lugar
da família nas patologias graves ... É questionar o lugar da família nas
patologias graves ... É questionar o lugar do exógeno e do interno na geração mórbida dos processos ... Eu creio que não tem respostas ... Eu não
estou seguro de se um esquizofrênico se faz sozinho ou o faz a sua família.
Não há necessariamente uma correspondência entre a patologia familiar e
a patologia individual.
Na experiência que tínhamos em nossa clínica onde tratávamos 120
pacientes graves, havia famílias muito perturbadas onde se podiam associar os processos mórbidos do rapaz esquizofrênico ou do rapaz borderline,
à patologia familiar e, outras vezes, famílias não tão diferentes do que po568 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 569
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
demos chamar uma família normal ou com patologia corrente, igualmente
desenvolviam esquizofrenia. Eu acredito que temos que seguir trabalhando para ver como se relaciona o mundo intrapsíquico com o mundo da
intimidade transpessoal. Que agora estamos menos dogmaticamente
posicionados numa definição do endógeno ou do exógeno da patologia
mental. Definir o que é endógeno intrapsíquico e do mundo pulsional, ou o
que vem da influência vincular e da patologia das identificações, que requer investigar ambos os segmentos com menos prejuízo possível, e pelo
momento, eu diria que tem que ser visto caso por caso. Muitas vezes aconselhamos o afastamento do paciente de sua família e muitas vezes provocamos a aproximação do paciente com sua família, em patologias mais
graves. E isso era caso por caso. Eu creio que não há uma resposta nítida e
suficiente para ver a influência ... Todos os pais influímos nos nossos filhos de modo saudável e de modo nocivo. O fato de como se transmite o
bom e o terrível entre as gerações me parece um tema de investigação
pertinente. Eu creio que damos aos nossos filhos coisas boas e coisas terríveis misturadas. Não existem pais puros de boa qualidade ou de má qualidade. Todos temos de ambos os pais ... Então a investigação
transgeracional me parece um espaço privilegiado para o pensar psicanalítico. O que me dá a experiência clínica não é homogêneo, a dizer se o
interior é o decisivo, me inclino a pensar que a casuística leva às duas
pontas. E às vezes há alguma coisa onde a determinação intrapsíquica é
mais importante e às vezes a influência da patologia familiar é mórbida. Às
vezes se vê em estudos de irmãos, onde a gente parecer ver que um paciente tem pais terríveis que o tem deixado doente e há um irmão muito perto,
nas entrevistas familiares, com quem tudo funciona de modo radicalmente
diferente. Como se produzem as depositações mais terríveis num membro
familiar e porque num núcleo familiar um é o emissário do mais regressivo
e patológico desse núcleo. O saudável é quando o papel do mais doente
num grupo familiar é móvel. Quando, às vezes, o mais louco é o pai ou a
mãe ou o filho ou o irmão. Muitas vezes o poder movimenta estruturas
multiplicadas no bom filho e no mau filho ... Em abordagem múltipla de
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
patologias familiares, eu não sou um especialista, mas tenho essa experiência, de uma diversidade casuística que não permite dar uma resposta
homogênea para dizer se a influência se deve à transmissão doméstica.
Agora apareceu esse conceito de “recipiência”, de quem escapa das
más influências paternas. Nas práticas se vê uma diversidade. O exílio serve para isso. Os filhos de exilados têm um ... Não necessariamente são uma
patologia ... Digo o exílio porque eu tenho muitos colegas que ficaram na
Europa, ou amigos e seus filhos têm, em relação ao país de origem, alguns
uma história de devoção às origens, e outros são histórias de rejeição. São
os mesmos pais, que teoricamente transmitem as mesmas coisas na mesa
familiar. Nas histórias das famílias judaicas, não sei se se tem estudado,
mas também se vê que tem algumas famílias que se empenham muito em
transmitir à la tradição cultural judaica e outras são mais liberais, mais
tolerantes de assimilação. Nem sempre na transmissão entre gerações se
colhe por aposição ou por oposição. Às vezes a definição dos pais funciona
na linha direta do desejo e às vezes funciona numa linha de desejo onde a
resposta é diametralmente oposta. Eu tenho lido alguns estudos dos filhos
de exilados, de segunda e terceira gerações, e os percentuais são sempre
metade e metade. Metade tradicionalistas e metade culturistas com a tradição. As cifras estatísticas ... Se vê uma dispersão nos efeitos. É ser concordantes ao desejo consciente dos pais e de ser oposicionistas e discordantes
ao desejo ... Eu creio que essa disposição e essas respostas em direto ... Ou
em oposição estudando esse tema difícil da identificação em Freud, da
identificação com as figuras da cultura. Por exemplo, em estudos de alta ...
Em estudos demográficos sobre ... Quem se casa dentro da mesma etnia?
Armênios entre armênios, italianos entre italianos, nas migrações à América. Se vê que, em cifras muito altas, são constantes os que seguem a tradição e os que a rompem. Quanto mais cresce o universo estatístico mais
constante ele é. Se a gente mesmo se lembra de sua própria adolescência
nós tínhamos respostas de ”eu vou ser como minha mãe ou meu papai”, a
resposta é que eu vou fazer diferente ou o contrário ... Isso dá uma idéia da
diversidade humana que também ... Me parece que sabemos pouco da me570 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – Surgiu-me uma questão sobre a memória: que é que o
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 571
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
mória social e da transmissão entre as gerações ... Que é um assunto de
historiadores de mentalidades de sociólogos e que os psicanalistas temos
muito para dizer e para estudar nisso ... Que nossos estudos em profundidade ... Penso que ainda nos falta aprender, mas o que se transmite, o que a
gente quer e que se transmite e o contrário do que a gente quer. E como se
apropria o destinatário da mensagem, se é por adesão ou por oposição ...
Na patologia e noutros perfis culturais é estocástico, é ... Não se pode ordenar se não tiver um leque de respostas diversas. É o que eu posso presumir
... Haveria que questionar investigações e metodologias que o estudem
epistemologicamente, ou seja, com números e quantitativamente e coisas
que estudem em profundidade um caso e o sigam para ver os porquês, para
ver a análise qualitativa, de quando a gente procede na direta coisa da linhagem. Na transmissão das teorias e das crenças também acontece o mesmo. Eu creio, por exemplo, na França que certas tradições do melhor Lacan
não são os lacanianos que as seguem, senão são alguns hereges que estudamos nós, que nada têm a ver com Lacan, mas que têm colhido, ou seja ...
Há um movimento de ... Em todo movimento das povoações humanas ...
Por algum motivo as palavras tradição e traição têm a mesma etimologia.
Cada geração se apropria da história para tomá-la tal qual ou para ... Eu
não lembro, mas em alguma oportunidade o li, a etimologia de tradição e
traição. Vem de raízes fonológicas comuns. Então o movimento que é
numa mensagem proposital que transmite a tradição sagrada, o que os estudiosos da memória falam da “halaca”, ou seja, os que seguem o verbo e
o mandato ... o que se chama memória sagrada e os que são transgressores
dessa memória ... Em todas as comunidades humanas há um certo
percentual de fidelidade e de transgressão, e em cada indivíduo ... Com os
traços parciais também ... Eu posso ser como meu pai nisso, mas não nisso
outro. Todo intento de reduzir a uma monocausalidade é falso. Há que
admitir uma multifatoriedade e combinações que levam a causalidades não
lineares senão a causalidades eróticas.
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
senhor pode nos dizer? O senhor fala de uma concepção freudiana de
memória que não propõe semelhanças entre marca e objeto. O que se inscreve não é a realidade factual. Mas há algum resultante da relação
dialética sujeito-objeto, interior-exterior, frustração-satisfação. Essa
perspectiva, a memória não é um arquivo e o modelo arqueológico fica
questionado. O senhor fala, inclusive, que a marca mnêmica é essencialmente a memória do que não foi. Do que quis ser e não pôde. Então como
o senhor pensa as implicações dessa concepção para a nossa clínica? E
que tipo de realidade está em jogo, ou interessa para nossa prática analítica? Confesso que fiquei intrigada com essa idéia que, para mim, foi nova.
Viñar – Vamos pensar um pouquinho. O ser humano tem um modo de
funcionar autoteorizante, disse Laplanche. Me agrada muito isso. O homem não é como os animais que vivem o dia-a-dia. Nós, além dessa posição espontânea de viver o dia-a-dia, temos uma pergunta impossível desde
que temos memória e para sempre e de perguntarmos quem somos. A pergunta pode ser implícita ou pode ser explícita. Quem sou eu? O que eu
quero? O que procuro? Que aponto? Quer dizer, que é a minha vida, de
onde venho, aonde vou. Na maioria dos seres humanos, em forma mais ou
menos insistente, há momentos cruciais de sua vida que estão encerradas
nessa interrogativa. Com psicanalista ou sem psicanalista. Não faz falta o
psicanalista para que este auto-interrogatório se formule. Isto se diz que o
sujeito procura ser consciente de si próprio, que uma consciência
autocrítica e auto-reflexiva. Eu posso intentar lhe dizer quem sou, eu posso
perguntar a você e você me fazer uma história e falar meia hora, ou uma
hora, ou cinco horas, respondendo à pergunta “quem é você?”. Se fazemos
a mesma pergunta aqui a cinco anos e comparamos as duas, possivelmente
os dois textos coincidam em algumas partes e tenham diferenças em outras
partes. Quer dizer que não há uma só memória sobre si próprio senão que
há muitas memórias que vão se sucedendo, algumas se apagam, outras se
enfatizam. É dizer que há algo onde permanência e mudanças estão constantemente ... A noção de identidade, a noção de ser eu mesmo ...
572 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 573
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
Há um biólogo francês que disse “Eu ainda me surpreendo que à resposta de meu próprio nome quando dizem: ‘o senhor Jacob’, eu começo a
pensar na minha infância, na minha adolescência, em mim em minha vida
adulta. Aparecem-me tantos personagens – disse – quando trato de evocarme que me surpreendo, às vezes, a mim mesmo”. Ou seja, não há uma só
memória, senão que há muitas memórias. A relação dos homens com seu
passado, ou quando, em análise, tratamos de saber como foi o alfa, como
foi o ponto de partida original que me fez desta maneira. Essa pergunta
sobre a infância, como pensar a relação que nós temos com nosso passado
fundador. Bom, os psicanalistas dizemos que a infância é uma etapa decisiva na vida do ser humano. Isso não é um registro como o faz um
radiogravador. Isso sempre é uma construção, e uma construção que às
vezes insiste, e às vezes muda. A gente tem relatos múltiplos sobre si mesmo que nem sempre são congruentes, senão que às vezes são ... Isso levou
alguns psicanalistas e alguns novelistas a dizer “eu sou outro”. “Moi et a
n’outre”, dizia Lacan. E há um artigo de Melanie Klein muito bonito que
trata este mesmo problema em termos ... Como a gente é uma multidão de
personagens. Até agora tudo o que é dito fala de memória consciente. Da
memória que eu posso ser responsável pela minha palavra. Mas existem
outros aspectos de si próprio que o podem ver os outros e nós mesmos sem
nos questionarmos. Ontem dois colegas de vocês me disseram mil vezes
que quando eu ia começar a falar, 10 minutos antes, começava a mexer o
pé de forma insistente como para testar minha musculatura para falar. Me
diziam porque é isso. Ou porque alguém tem um cacoete ou se pode ficar
quieto ou se mexer muito. Isso é a gestação de um estilo corporal que nem
sempre é consciente. A hipótese freudiana do inconsciente faz com que um
outro ser humano, neste caso o analista, possa deduzir lógicas causais das
quais o sujeito mesmo nunca é consciente. Ou que possa deduzir numa
construção de fenômenos pretéritos de falhas no vínculo ... Porque insistem de determinada maneira no relato ... Não são conscientes no sujeito,
mas o analista percebe ... que tem que ver com uma dificuldade na identificação com a mãe ou na identificação com o pai. É uma construção hipo-
SBPDEPA ENTREVISTA MARCELO VIÑAR
tética do analista. Daí a teoria da marca mnêmica. De uma marca que se
fixa, porquê de certos itinerários. É a invenção freudiana de porque cada
ser humano configura seus próprios automatismos de repetição. E não sabemos porque em condições tão distintas da vida, o estilo e o repertório
reacionário de cada um ... Reacionamos frente a situações diferentes com
uma certa tendência a repetirmos a nós mesmos, ou seja, que além da memória consciente da qual eu possa tentar falar e dar conta no meu discurso,
há outra memória inconsciente da qual eu não posso dar conta. A essa outra
memória inconsciente Freud chama marca mnêmica. A marca é algo que
não é consciente no sujeito e que o marca em determinado perfil, o marca
em determinado estilo.
SBPdePA – Pensando nessa memória inconsciente, a gente pensa em
alguma coisa inacessível, que se vai reconstruir ou construir a partir dessa relação hipotética, é isso? Nunca vai se saber se isso que a gente está
construindo junto é aquilo da realidade histórica do sujeito?
Viñar – Antes se acreditava que havia uma correspondência entre o
que descobrimos e o passado que existia. Os historiadores acreditavam que
podiam descrever o que tinha havido no século passado, em outra época, e
os psicanalistas acreditávamos que podíamos voltar o referente da infância
tal qual ela foi. Hoje sabemos que tudo o que falamos do passado pode ser
algo próximo, mas o que aconteceu pertence a algo perdido e nunca poderemos reconquistá-lo, nunca poderemos ter a certeza de que o resgataremos tal como foi, senão que resgatamos algo que podemos olhar agora e
desde agora.
SBPdePA – E pode-se pensar que além desse sentido de algo que não
se acessa, se pode pensar que esse dinamismo, que essa constante mutação de significados também dá esse caráter de algo novo, de passado atualizado como está nesse texto? Pode-se pensar por aí também?
574 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
SBPdePA – Uma rede de significados, que não é algo linear que posso acessar e chegar lá. A gente está sempre podendo ressignificar ou significar, dar outras versões?
Viñar – Nunca é linear, sempre é quebrado, sempre é labiríntico, O
que há são pontos de repetição e da insistência.
SBPdePA – Não há uma reconstrução e sim uma construção ...
Viñar – Ou seja, que o passado (pretérito) por ser passado (pretérito)
se volta enigmático. O que hoje eu posso reconquistar é uma relação hipotética entre um passado enigmático e pequenos elementos de
intelegibilidade, de compreensão, de algo que creio que foi e me ilumina o
que está passando hoje e de um modo diferente. Uma historiadora disse:
“sempre se interrogar o passado desde o fogo do presente”. E há uma recuperação que sempre é fragmentária. Toda construção do passado é parcial e
desaproximativa.
SBPdePA – A repetição é sempre diferente.
Viñar – Sempre diferente, apesar de algumas insistências. Não é ilimitada também, é sempre diferente, mas não é qualquer coisa. Vê-se coisas que se repetem, e o que se repete em um é diferente do que se repete em
outro. São algo assim como padrões que definem o estilo. Ponha-se a falar
com sua irmã de como era sua mãe e verão como têm versões diferentes.
SBPdePA – E ao longo da vida também.
Viñar – E ao longo da vida também.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 575
SBPdePA Entrevista Marcelo Viñar
Viñar – Sim, sim.
SBPdePA – Já para terminar queria dizer em nome de todos, em primeiro lugar, muito obrigada. Desculpe que tenhamos tentado tirar o máximo possível em duas horas. Nós temos preparado com muito carinho esta
entrevista, com dedicação, que é a característica do grupo.
Viñar – Eu lhe agradeço ter-me dedicado um domingo e como terminei ontem a jornada lá, não vou poder dizer o que disse hoje, ontem.
SBPdePA – Estamos muito agradecidas, de coração, muito obrigadas. Para nós tem sido grande hora tê-lo aqui como pensador, como colega, de um país vizinho ... Como alguém que tem seguramente muitas contribuições importantes para a Psicanálise e que ademais ocupa um lugar
tão importante na atualidade dentro da política latino-americana.
Entrevista
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA.
Entrevista realizada em Porto Alegre, abril de 2001, exclusivamente para Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre (SBPdePA). Participaram da entrevista: Ana Rosa
Chait Trachtenberg, Cynara C. Kopitke, Denise Zimpek Pereira,
Geraldo Rosito, Vera M. Chem e Vera M.H. de Mello.
Tradução: Marta Mintegui
Revisão da tradução: Denise Z. Pereira e Vera M. Chem
Dr. Marcelo Viñar
Joaquín Nuñes, 2946
1130 Montevideo – Uruguai
598-2711-7426
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 577
578 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES
NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS*
1.
Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns
requisitos formais:
a.
O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de
Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna
b.
c.
de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas);
O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem
ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em
relatos clínicos;
d.
O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor;
e.
ofensivo ou difamatório;
f.
O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado
O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo
automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela
lei;
O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra
publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do
Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a
divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente.
Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de
responsabilidade exclusiva do autor.
* Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 579
2.
Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a
sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista.
3.
Os conceitos emitidos são da inteira responsabilidade do autor.
4.
Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas:
a.
b.
Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao
Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Em três vias e cópia em
disquete (gerado em Word for Windows);
c.
serão consideradas;
Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço
duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página
30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas gráficos,
desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser
enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de
ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções
d.
Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome
do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português, Inglês e
espanhol) e endereço do autor;
5.
Referências Bibliográficas:
A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir
ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar.
As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International
Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise.
As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e
necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no
decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano
de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918).
Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados,
por exemplo Marty , de M’Uzan (1963) ou (Marty, de M’Uzan, 1963). Se
580 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por
exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983).
A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências
bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder
exatamente às obras citadas, sem referências suplementares.
Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem
cronológica de publicação.
(para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre
parênteses na Standard Edition).
Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à
data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado
individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde
ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os
nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço.
Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão
escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor
serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição
que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência.
Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira
palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da
abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da
primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas,
poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de
dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
6.
Procedimentos de Avaliação:
a.
Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios
padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
b.
O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o
mesmo seja mantido pelo próprio avaliador.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 581
c.
d.
Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado,
em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de
sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa
editorial estabelecido;
Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua
aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha
liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
PS. Para mais detalhes consultar revistas.
582 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Revista da SBPdePA
ÍNDICE DE TÍTULOS / VOLUME 3, 2001
Algumas reflexões sobre a história da técnica psicanalítica • Etchegoyen, R.
Horácio – v. 3, n. 1, p. 175-197, 2001
Análise terminável e interminável: algumas reflexões • Aronis, New ton – v. 3,
n. 1, p. 153-160, 2001
Angústia/CONFERÊNCIA na SBPdePA • Goldstein, Raquel Zak de – v. 3, n. 2,
p. 507-541, 2001
Compartilhanho a experiência clínica • Junqueira, Maria Regina e Franch, Nilde
J. Parada – v. 3, n. 1, p. 111-128, 2001
O Complexo de castração como uma ética do inconsciente (uma aproximação
teórico-clínica) • Francischelli, Leonardo Adalberto – v. 3, n. 2, p. 409-414,
2001
Encaminhando o encaminhamento • Kunzler, Fernando e Trachtenberg, Renato
– v. 3, n. 1, p. 101-109, 2001
O Fenômeno da apresentação do objeto e suas implicações para o
desenvolvimento • Fonseca, Vera Regina J.R.M. – v. 3, n. 2, p. 463-488, 2001
História e pré-história psíquicas. O “intergeracional” e seus fragmentos de
identidade • Mijolla, Alain de – v. 3, n. 2, p. 305-329, 2001
A Impor tância da obser vação de bebês para a formação de psicanalistas •
Borensztejn, Claudia Lucía – v. 3, n. 1, p. 89-99, 2001
Influências de Bion na técnica psicanalítica • Zusman, Waldemar – v. 3, n. 2,
p. 489-503, 2001
Entrevista: Etchegoyen, R. Horácio/ENTREVISTA da SBPdePA – v. 3, n. 1, p. 257268, 2001
Entrevista: Viñar, Marcelo – v. 3, n. 2, p. 545-576, 2001
O Papel do Antepassado • Eiguer, Alberto – v. 3, n. 1, p. 17-33, 2001
“Porque eu sonho eu não o sou...” • Albuquerque, Marco Aurélio Crespo – v. 3,
n. 2, p. 415-432, 2001
Por trás do véu (sobre uma viagem ao Irã) • Asnis, Nelson – v. 3, n. 1, p. 145-152,
2001
A Posição fóbica central • Green, André – v. 3, n. 1, p. 35-70, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 583
O Prazer perverso nos descaminhos da destrutividade • Rosa, Marco Aurélio –
v. 3, n. 2, p. 433-448, 2001
Problemas clínicos do paciente narcisista: um desafio ao psicanalista • Katz, Gildo
e Fetter, Ivan S.C. – v. 3, n. 2, p. 345-370, 2001
“Psicanálise e ciência: parentes, amigas ou estranhas? bases científicas da psicanálise”/CONFERÊNCIA na SBPdePA • Sandler, Paulo Cesar – v. 3, n. 1,
p. 213-254, 2001
Psique e cultura • Arbiser, Samuel – v. 3, n. 1, p. 199-209, 2001
Que é isto chamado amor? • Costa, Gley P. – v. 3, n. 2, p. 371-383, 2001
Sobre as primeiras inscrições • Pereda, Myrta Casas de – v. 3, n. 1, p. 129-144,
2001
O Sonhar e o brincar, simbolismo do mundo interno da criança • Gómez-Roch,
Olga Santa María de – v. 3, n. 1, p. 163-174, 2001
Tempo e trauma: breve crônica de uma morte invisível • Graña, Roberto Barberena
– v. 3, n. 2, p. 449-462, 2001
Teria Édipo uma irmã? (“A lei da mãe”) • Mitchell, Juliet – v. 3, n. 2, p. 385-407,
2001
Trabalhando com adolescentes: um analista de dois mundos • Smola, Arnaldo –
v. 3, n. 2, p. 331-343, 2001
Winnicott e neurociência cognitiva: atual e transicional • Doin, Carlos – v. 3, n. 1,
p. 71-87, 2001
ÍNDICE DE AUTORES / VOLUME 3, 2001
Albuquerque, Marco Aurélio Crespo • “Porque eu sonho eu não o sou...” – v. 3,
n. 2, p. 415-432, 2001
Arbiser, Samuel • Psique e cultura – v. 3, n. 1, p. 199-209, 2001
Aronis, New ton • Análise terminável e interminável: algumas reflexões – v. 3, n. 1,
p. 153-160, 2001
Asnis, Nelson • Por trás do véu (sobre uma viagem ao Irã) – v. 3, n. 1, p. 145-152,
2001
Borensztejn, Claudia Lucía • A Importância da observação de bebês para a formação de psicanalistas – v. 3, n. 1, p. 89-99, 2001
Costa, Gley P. • Que é isto chamado amor? – v. 3, n. 2, p. 371-383, 2001
584 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001
Doin, Carlos • Winnicott e neurociência cognitiva: atual e transicional – v. 3, n. 1,
p. 71-87, 2001
Eiguer, Alberto • O Papel do Antepassado – v. 3, n. 1, p. 17-33, 2001
Etchegoyen, R. Horácio • Algumas reflexões sobre a história da técnica psicanalítica – v. 3, n. 1, p. 175-197, 2001
Etchegoyen, R. Horácio: Entrevista/ENTREVISTA da SBPdePA – v. 3, n. 1, p. 257268, 2001
Fetter, Ivan S.C. e Katz, Gildo • Problemas clínicos do paciente narcisista: um
desafio ao psicanalista – v. 3, n. 2, p. 345-370, 2001
Fonseca, Vera Regina J.R.M. • O Fenômeno da apresentação do objeto e suas
implicações para o desenvolvimento – v. 3, n. 2, p. 463-488, 2001
Franch, Nilde J. Parada e Junqueira, Maria Regina • Compartilhanho a experiência clínica – v. 3, n. 1, p. 111-128, 2001
Francischelli, Leonardo Adalberto • O Complexo de castração como uma ética
do inconsciente (uma aproximação teórico-clínica) – v. 3, n. 2, p. 409-414,
2001
Goldstein, Raquel Zak de • Angústia/CONFERÊNCIA na SBPdePA – v. 3, n. 2, p.
507-541, 2001
Gómez-Roch, Olga Santa María de • O Sonhar e o brincar, simbolismo do mundo interno da criança – v. 3, n. 1, p. 163-174, 2001
Graña, Roberto Barberena • Tempo e trauma: breve crônica de uma morte invisível – v. 3, n. 2, p. 449-462, 2001
Green, André • A Posição fóbica central – v. 3, n. 1, p. 35-70, 2001
Junqueira, Maria Regina e Franch, Nilde J. Parada • Compartilhanho a experiência clínica – v. 3, n. 1, p. 111-128, 2001
Katz, Gildo e Fetter, Ivan S.C. • Problemas clínicos do paciente narcisista: um
desafio ao psicanalista – v. 3, n. 2, p. 345-370, 2001
Kunzler, Fernando e Trachtenberg, Renato • Encaminhando o encaminhamento
– v. 3, n. 1, p. 101-109, 2001
Mijolla, Alain de • História e pré-história psíquicas. O “intergeracional” e seus
fragmentos de identidade – v. 3, n. 2, p. 305-329, 2001
Mitchell, Juliet • Teria Édipo uma irmã? (“A lei da mãe”) – v. 3, n. 2, p. 385-407,
2001
Pereda, Myrta Casas de • Sobre as primeiras inscrições – v. 3, n. 1, p. 129-144,
2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 585
Rosa, Marco Aurélio • O Prazer perverso nos descaminhos da destrutividade –
v. 3, n. 2, p. 433-448, 2001
Sandler, Paulo Cesar • “Psicanálise e ciência: parentes, amigas ou estranhas?
bases científicas da psicanálise”/CONFERÊNCIA na SBPdePA – v. 3, n. 1,
p. 213-254, 2001
Smola, Arnaldo • Trabalhando com adolescentes: um analista de dois mundos –
v. 3, n. 2, p. 331-343, 2001
Trachtenberg, Renato e Kunzler, Fernando • Encaminhando o encaminhamento
– v. 3, n. 1, p. 101-109, 2001
Viñar, Marcelo: Entrevista – v. 3, n. 2, p. 545-576, 2001
Zusman, Waldemar • Influências de Bion na técnica psicanalítica – v. 3, n. 2, p. 489503, 2001
586 Psicanálise v. 3, n. 2, 2001