O Cântico dos Salmos no Culto a Deus

Transcrição

O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
G. I. Williamson
O propósito deste livreto é apresentar evidências no apoio da
seguinte proposição: no culto a Deus, deve-se usar apenas o livro inspirado dos
Salmos, excluindo-se as composições não inspiradas dos homens. Repare que
não está em questão o uso de cânticos não inspirados em outras ocasiões e
circunstâncias que não sejam o culto divino. De forma alguma queremos
sugerir que seja sem nenhum valor ou fútil o uso de cânticos não inspirados.
De fato cremos que há um lugar apropriado para os cânticos não inspirados em
outras ocasiões da vida humana. Mas aqui estamos considerando uma
atividade bem especial na qual o homem está engajado (e à qual não se
compara nenhuma outra atividade), ou seja, o culto a Deus. É nossa esperança
que, ao estabelecermos claramente o propósito deste artigo logo no início, o
leitor não deixe de considerar as evidências antes de examiná-las.
1. O Princípio Regulador do Culto
Qual deveria ser a maneira apropriada de cultuar a Deus? Essa é
uma questão antiga, e historicamente tem havido duas respostas divergentes:
1ª) Uma é a resposta da Igreja Católica Romana (seguida em princípio pelos
Gregos Ortodoxos, Luteranos e Igrejas Anglicanas): a forma própria de cultuar
a Deus é qualquer coisa, desde que não haja nenhuma proibição direta nas
Escrituras. 2ª) A outra resposta é a das Igrejas Reformadas: a única maneira
apropriada de cultuar a Deus é a maneira que Ele quer, e isso significa
somente da forma como Ele ordenou, instituiu ou prescreveu em Sua Palavra.
O contraste é claro. O primeiro grupo diz: aquilo que não é proibido é
permitido; o outro diz: aquilo que não é ordenado é proibido.
É inegável que a última afirmação é a posição sustentada pelas
Confissões Reformadas e seus Catecismos, como as citações seguintes irão
mostrar. Vamos ouvir primeiro o testemunho da Confissão Belga: “Cremos que
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a Sagrada Escritura contém perfeitamente a vontade de Deus... Nela está
detalhado e escrito cabalmente o modo de adoração que Deus requer de nós...
Não nos é permitido considerar nenhum escrito de homens, por mais santos
que tenham sido, como de igual valor ao das Escrituras Divinas; nem devemos
considerar que costumes, maiorias, antiguidade, sucessão de tempos e de
pessoas, concílios, decretos ou estatutos tenham o mesmo valor da verdade de
Deus, porque a verdade está acima de tudo” (Art. VII). Outra vez, distinguindo
a Igreja verdadeira da falsa, essa Confissão diz: “numa Igreja verdadeira, todas
as coisas são feitas de acordo com a pura Palavra de Deus, em contraste com a
Igreja falsa, que ‘acrescenta e subtrai’, como lhe convém, coisas que “Cristo
ordenou em sua Palavra...” (Art. XXIX). E em outro artigo nós lemos que
“aqueles que governam a Igreja devem diligentemente cuidar para não se
desviarem daquelas coisas que Cristo, nosso único Mestre, nos ordenou... Por
isso, rejeitamos todas as invenções humanas que se queiram introduzir no
culto a Deus, mas que venham, de qualquer maneira, comprometer e
constranger a consciência” (Art. XXXII).
Com o mesmo objetivo, a Confissão de Fé de Westminster diz
precisamente: “... o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído
por ele mesmo, e está tão limitado pela sua vontade revelada, que não deve
ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens ou sugestões de
Satanás, nem sob nenhuma representação visível ou de qualquer outro modo
não prescrito nas Santas Escrituras” (Cap. XXI, 1). E outra vez lemos: "Só Deus
é senhor da consciência, e ele a deixou livre das doutrinas e mandamentos
humanos que em qualquer coisa sejam contrários à sua palavra ou que, em
matéria de fé ou de culto, estejam fora dela” (XX, 2).
Os Catecismos das Igrejas Presbiterianas e Reformadas ensinam esse
mesmo princípio. O Catecismo de Heidelberg diz: “Que não façamos a imagem
de Deus em hipótese alguma, nem O adoremos de nenhum outro modo
diferente do que nos ordenou em Sua Palavra” (Perg. 96). O ensino dos
Catecismos (Maior e Breve) de Westminster é o mesmo: “Os pecados proibidos
no segundo mandamento são: estabelecer, aconselhar, mandar, usar e aprovar
de qualquer maneira qualquer culto religioso não instituído por Deus “
(Catecismo Maior, 109). "O segundo mandamento proíbe adorar a Deus por
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meio de imagens, ou de qualquer outra maneira não prescrita na sua Palavra"
(Breve Catecismo, 51).
Zacarias Ursinus, um dos dois autores do Catecismo de Heidelberg, nos
dá uma clara indicação do que significa a Questão 96: “Aqueles que adoram a
Deus de maneira diversa da que Ele deseja ser adorado, imaginam outro deus,
um deus que é diferente daquilo que o verdadeiro Deus é; e dessa forma eles
não adoram a Deus, mas adoram o fruto da sua própria mente, com a qual eles
persuadem a si mesmos"; e outra vez diz: “imaginar um culto a Deus diferente
daquele que Ele mesmo prescreveu é imaginar uma outra vontade de Deus”.
Mas quando fazemos somente o que Deus tem ordenado, Ursinus diz: “A
obediência a esses mandamentos é e será chamada culto a Deus, porque não
são preceitos humanos mas divinos”. Como disse o grande reformador Calvino:
“As pessoas que introduzem novos métodos inventivos de cultuar a Deus
realmente cultuam e adoram a criatura, fruto da sua destemperada
imaginação, pois eles nunca teriam coragem de desprezar dessa maneira ao
próprio Deus, se eles não tivessem primeiro imaginado um deus que se
conforma às suas falsas e tolas noções” (Institutas, I, iv).
Dizem, algumas vezes, que essa é uma posição “extremada”. Alguns
opinam que nossos Pais Reformados tomaram essa decisão como uma forma
de reação exagerada contra as posições do Catolicismo Romano. Nosso
objetivo é mostrar que, ao tomarem essa posição, os nossos Pais Reformados
não estavam tendo uma reação exagerada contra os erros de Roma, mas
estavam agindo de forma apropriada ao ensino claro das Escrituras. Deixe que
as Escrituras falem por si mesmas!
Em Deuteronômio 12.32, lemos: “Tudo o que eu te ordeno,
observarás para fazer; nada lhe acrescentarás nem diminuirás”. A história da
Bíblia confirma o fato que — no que concerne a Deus — esse é o princípio
regulador de todo culto verdadeiro. Quando Caim trouxe uma oferta ao Senhor
que não era “as primícias do rebanho e da gordura deste”, Deus não o aceitou:
“Mas para Caim e para a sua oferta não atentou” (Gn 4.5). Caim decidiu adorar
a Deus segundo a sua própria vontade, e não segundo a vontade de Deus. Mas
Deus não será adorado exceto como Ele ordenou. De novo, em Levítico 10.1,2,
lemos: “E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário
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e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo
estranho perante o SENHOR, o que não lhes ordenara”. As palavras “que não
lhes ordenara” significam que Deus não lhes havia ordenado fazer o que
fizeram. Eles deviam adorar como Deus lhes ordenara, e não como eles
mesmos quisessem. Por esse critério, Deus rejeitou o culto deles.
Quando o Senhor condena o culto corrupto e desviado de Israel, Ele
pergunta (através de Isaías): “Quando vindes para comparecer perante mim,
quem vos requereu isto de vossas mãos?” (Is 1.12). Eles cultuavam como lhes
agradava, e não como Deus requeria. Como poderia Deus aceitar o culto
oferecido? “Mas não deram ouvidos, nem atenderam, porém andaram nos seus
próprios conselhos e na dureza do seu coração maligno; andaram para trás e
não para diante” (Jr 7.24). Por essa razão, o Senhor declarou (por Jeremias):
“Este povo maligno, que se recusa a ouvir as minhas palavras, que caminha
segundo a dureza do seu coração e anda após outros deuses para os servir e
adorar, será tal como este cinto, que para nada presta” (Jr 13.10). E outra vez,
a razão para essa forte condenação é que eles adulteraram o culto, “... e
edificaram os altos de Baal, para queimarem seus filhos no fogo em
holocaustos a Baal, o que nunca lhes ordenei, nem falei, nem me passou pela
mente” (Jr 19.5). A apostasia de Israel do culto verdadeiro pode ser resumido
nestas palavras: “que não lhes ordenara”. Eles não estavam satisfeitos em
fazer o que Deus ordenara, e somente aquilo que Deus ordenara, por isso
foram condenados.
Argumenta-se, algumas vezes, que as Igrejas do Novo Testamento
não
estavam
debaixo
desse
mesmo
princípio
rígido.
Admite-se
que
anteriormente Deus requereu esse culto estritamente como ordenou, mas
agora, dizem, não é mais o caso. Deus não é mais tão rígido como costumava
ser, dizem eles. Uma breve pesquisa sobre o ensino do Novo Testamento
mostra que essa é uma visão totalmente errada.
Jesus disse: “Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações,
batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a
guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.19,20). Não é esta
uma solene exigência para que a Igreja ensine todas as coisas que Cristo
ordenou, ao mesmo tempo que é uma proibição solene contra ensinar algo que
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Ele não ordenou? Jesus disse que os fariseus cultuavam a Deus “em vão” (Mc
7.7). E por que foi o culto deles rejeitado por Deus? Porque, “deixando de lado
o mandamento de Deus”, preferiram “suas próprias tradições” (Mc 7.7,8). Eles
cultuavam em vão porque adoravam a Deus da forma como eles queriam, em
vez de adorá-lo como Ele requer. Da mesma maneira, o apóstolo Paulo exortou
os crentes de Colossos: “Ninguém se faça árbitro contra vós outros,
pretextando humildade e culto voluntário…” 1 (Cl 2.18). Ao dizer “culto
voluntário”, o apóstolo simplesmente se refere ao culto oferecido pela vontade
(isto é, como o homem quer oferecer) em lugar de um culto como Deus
ordenou (Cl 2.22,23). Essas “coisas têm, na verdade, alguma aparência de
sabedoria, em devoção voluntária, humildade…", mas ele diz: "elas não têm
valor algum”. O culto da vontade é o culto oferecido pela vontade dos homens
em vez de ser conforme o mandamento de Deus. Mas, no que diz respeito a
Deus, eles preferem não adorar a Deus, mas à sua própria vontade.
Sem dúvida alguma, Jesus foi rude ― para os padrões modernos ―
quando disse à mulher do poço: “vós adorais o que não sabeis, nós adoramos o
que sabemos, pois a salvação vem dos judeus” (Jo 4.22). Mas Jesus estava
apenas sendo verdadeiro. “Pois Deus é espírito”, Ele disse, “e aqueles que o
adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade” (verso 24). O culto dos
samaritanos era inadmissível porque eles adoravam a Deus da forma como O
concebiam. Eles deveriam cultuar a Deus como Ele mesmo ordenou, ou não
seriam aceitos. “Pois o Pai procura tais adoradores", disse Jesus (verso 23). “Os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”. Mas quando
os homens insistem em adorar a Deus como eles querem, e não como Ele
quer, eles não são “verdadeiros adoradores”.
Em Rm 1.21-25, o apóstolo Paulo condena todo tipo de falso culto
que tem sido inventado pelos homens. Ele também revela a fonte de tais
cultos. Ele diz que os homens se tornaram “nulos em seus próprios
raciocínios”. Inventaram aquilo que imaginavam ser “uma boa maneira” de
cultuar. Adoraram como quiseram, e não como Deus ordenou. Mas ao fazerem
isso, na realidade, estavam “adorando a criatura em lugar do Criador”, e por
essa razão, “são indesculpáveis”. São indesculpáveis porque não há desculpa
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Versão King James
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para a regra que diz: “não podemos cultuar a Deus de nenhuma outra maneira
que Ele não tenha ordenado em Sua Palavra”.
No Antigo Testamento, nós temos o assunto apresentado de uma
forma inesquecível. "Se me levantares um altar de pedras, não o farás de
pedras lavradas; pois, se sobre ele manejares a tua ferramenta, profaná-lo-ás"
(Êx 20.25). Se um israelita pensasse que poderia melhorar o culto ordenado,
esculpindo um altar mais bonito, ele deveria saber que, ainda que fosse uma
pequenina marca feita pela mão humana, acrescentando algo àquilo que havia
sido ordenado por Deus, seria completamente condenado pelo próprio Deus.
Quando os homens tentam melhorar o culto a Deus conforme Ele ordenou
(mesmo sendo o menor acréscimo), eles arruínam o culto, em lugar de
melhorá-lo. Quando nossos pais Reformadores recusaram-se a “adorar a Deus
de qualquer outra forma que Ele não houvesse ordenado em Sua Palavra”, eles
estavam apenas fazendo o que as Escrituras claramente lhes haviam ensinado
fazer.
Como tem sido verdadeiramente afirmado: “Deus, que é um
Espírito puríssimo e absolutamente soberano, é o único objeto de culto. Nada
que não venha dele mesmo como fonte é apropriado para dar a Ele em
retorno. A razão humana autônoma, sua vontade, sensações, emoções e
imaginação não são competentes para originar os atos e formas de culto.
Deus, como o supremo doador da Lei, reivindica para Si mesmo a prerrogativa
de apontar as ordenanças para o Seu culto. Oferecer como culto outra coisa
que não seja aquilo que Deus mesmo prescreveu nessa questão absoluta e
soberana não é outra coisa senão presunção! É contrário às Escrituras pensar
que Deus permite um culto que Ele próprio não tenha prescrito” (Orthodox
Presbyterian Minutes 13, pág. 106).
É por causa dessa convicção, de que o princípio do verdadeiro culto é
somente aquilo que foi ordenado por Deus, que as Igrejas Presbiterianas e
Reformadas usaram originalmente os Salmos como hinário para o culto divino.
A Assembleia de Westminster declarou “o cântico dos Salmos” como uma das
“partes do culto normal a Deus” (West. Conf. XXI, 5) e supervisionou a
preparação de uma versão do saltério para esse propósito. O Sínodo de Dort
havia também excluído do culto divino as composições não inspiradas de
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homens. E essa era não somente a prática das Igrejas Reformadas e
Presbiterianas, mas como diz o Dr. George W. Robinson: “o cântico dos Salmos
continuou a ser a prática geral das Igrejas Reformadas até o século dezoito,
quando os hinos começaram a ser introduzidos e, com o tempo, praticamente
os superaram na maioria dessas Igrejas” (Os Salmos no Culto, pág. 511).
A questão, então, é a seguinte: Estava correta essa posição original
das Igrejas Presbiterianas e Reformadas? Ou a prática dos nossos dias é
melhor, mais bíblica do que a prática dos tempos passados? Tem sido
reconhecido que “a Confissão de Fé de Westminster não oferece nenhum outro
material além dos Salmos para cantar no culto a Deus” (O. P. Minutes 13, pág.
105). Será que as Escrituras requerem uma revisão da nossa histórica
Confissão de Fé nesse ponto?
2. O Mandamento de Deus
Se o culto verdadeiro é o culto ordenado por Deus (como nossas
Confissões e Catecismos afirmam), o ponto crucial da questão se torna o
seguinte: Será que no Novo Testamento existe alguma ordem para que, junto
com os Salmos inspirados, a Igreja use salmos, ou hinos ou cânticos não
inspirados no culto a Deus? Será que o Novo Testamento nos dá provas claras
e concretas de ordens e requerimentos divinos para a produção e o uso de
composições não inspiradas, da mesma forma que apresenta com provas
claras que Deus requer o uso dos Salmos inspirados?
Nós dizemos que Deus “certamente nos dá evidências a respeito do
uso dos Salmos inspirados no culto divino”, pois tanto quanto sabemos isso
não é negado pelas Igrejas Presbiterianas Ortodoxas. Até essas Igrejas, quando
introduziram os hinos não inspirados, reconheciam essa exigência. A Igreja
Cristã Reformada, por exemplo, quando pela primeira vez apresentou vários
hinos não inspirados, admitiu que durante os “77 anos passados da existência
desta Igreja, não cantamos outra coisa senão os Salmos no culto público”
(Psalter-Hymnal, 1934, pág. iii). E, revisando o Artigo 69 da ordem da Igreja,
para permitir essa nova introdução de hinos não inspirados, ainda reconhecem
que “é requerido o cântico dos Salmos no culto divino”. Semelhantemente, a
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Igreja Presbiteriana Ortodoxa, ao adotar a recomendação da Comissão, de usar
hinos não inspirados, ainda admite que “os Salmos são divinamente inspirados
e totalmente apropriados para o propósito do louvor” (O. P. Minutes 14, pág.
58). Parece, então, não haver dúvida de que, quando o apóstolo Tiago diz:
“cante salmos” (5.13), ele se refere aos Salmos da Bíblia. Por “salmos” Tiago
entende o que a Bíblia mesma indica por esse termo. Isso é muito claro. Mas
quando consideramos textos nos quais “hinos” e “cânticos” são mencionados
(isto é, Cl 3.16 e Ef 5.19), começa a dificuldade, pois existem aqueles que
argumentam que esses textos não somente requerem o uso de salmos
inspirados, mas também permitem a criação e o uso, no culto divino, de
cânticos e hinos não inspirados. A esse assunto vamos agora voltar toda nossa
atenção.
Quando o apóstolo Paulo foi pregar o evangelho aos gentios, ele
não encontrou o caminho despreparado. Pela providência de Deus,
havia
sinagogas em todo lugar. Nelas as Escrituras eram lidas e expostas a cada
sábado. E era costume de Paulo, onde quer que fosse, procurar primeiramente
essas sinagogas. “Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três
sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras” (At 17.2, 13.14 etc.). A
tradução do Velho Testamento que Paulo encontrou pronta para o seu uso
nessas sinagogas foi a “Septuaginta” (cuja abreviação é LXX). Essa versão
grega vinha circulando já havia quase trezentos anos (quase o mesmo tempo
que a versão King James é conhecida pelo mundo de língua inglesa). Foi essa
Bíblia grega que os
judeus bereanos examinaram todos os dias com toda
prontidão de mente enquanto testavam o ensino de Paulo (At 17.11). E nós
podemos ter certeza que o ensino de Paulo estava de acordo com essa versão
do Antigo Testamento, pois ele diz: “Porém confesso-te que, segundo o
Caminho, a que chamam seita, assim eu sirvo ao Deus de nossos pais,
acreditando em todas as coisas que estejam de acordo com a lei e nos escritos
dos profetas” (At 24.14). Mas isso indica algo muito importante, como disse o
Dr. B. B. Warfield: “Os escritores do Novo Testamento… todos tinham em mãos
a versão da Septuaginta do Antigo Testamento, e… dela derivaram sua
terminologia religiosa grega” (The Person and Work of Christ, pág. 443). Paulo
usou palavras da versão grega da Bíblia, palavras que os seus ouvintes
conheciam. Ele usou a linguagem da Escritura que lhes era familiar, com o
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significado determinado por essa Escritura. Portanto o ponto preciso de nossa
investigação vem disto: O que o apóstolo quis dizer quando instruiu a Igreja a
cantar “salmos, hinos e cânticos espirituais” no culto a Deus? O que esses
termos significam na linguagem da própria Escritura?
Os textos em questão são os seguintes:
"E não vos embriagueis com vinho, no qual há dissolução, mas
enchei-vos do Espírito, falando entre vós com salmos, entoando e
louvando de coração ao Senhor com hinos e cânticos espirituais" (Ef
5.18,19); “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos
e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus,
com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso
coração” (Cl 3.16).
A interpretação própria dos termos da Escritura requer que
descubramos não o que esses termos significam nos nossos dias, mas o que o
autor inspirado quis dizer na época em que os empregou. E é uma coisa
esquisita, na interpretação bíblica, que essa regra seja comumente observada
com referência ao termo “salmos”, mas não com referência aos termos “hinos”
e “cânticos”. Mas o fato é que todos os três termos são usados na Bíblia para
designar várias seleções contidas no próprio Saltério do Antigo Testamento. Na
versão grega do Velho Testamento, familiar aos efésios e aos colossenses, o
saltério inteiro é chamado de “Salmos”. Em sessenta e sete títulos do livro dos
Salmos usa-se a palavra “salmo”. No entanto, em sessenta títulos usa-se a
palavra “hino” em vez de “salmo”, e em trinta e cinco aparece a palavra
“cântico”. E ainda mais importante, doze títulos usam os dois termos, “salmo”
e “cântico”, e dois usam as palavras “salmo” e “hino”. O Salmo 76 é designado
pelos três termos: “salmo, hino e cântico”. E no final dos primeiros setenta e
dois salmos lemos: “findam-se os hinos de Davi, filho de Jessé” (Sl 72.20). Em
outras palavras, não há motivo para pensar que o apóstolo referiu-se mais aos
salmos quando usou a palavra “salmos” do que quando disse “hinos” e
“cânticos”,
pela simples razão de que, no livro dos Salmos, todos os três
termos eram termos bíblicos usados para designar os salmos. Nós estamos
acostumados a usar os termos “hinos” e “cânticos” para aquelas composições
que não são salmos. Mas Paulo e os cristãos de Éfeso e Colossos usaram esses
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termos como a Bíblia mesma os usava, isto é, como títulos para vários Salmos
no Saltério do Antigo Testamento. Para nós pode soar estranho, ou mesmo
desnecessário, que o Espírito Santo tenha usado essa variedade de títulos para
designar Suas composições inspiradas. Mas o fato é que Ele fez assim. Da
mesma forma como o Espírito Santo fala de Seus “mandamentos e seus
estatutos e juízos” (Dt 30.16 etc.) e de “milagres e maravilhas e sinais..." (At
2.22), assim Ele fala dos Seus “salmos, hinos e cânticos”. Como mandamentos,
estatutos e juízos são leis divinas na linguagem das Escrituras, e milagres,
maravilhas e sinais, são todos obras sobrenaturais de Deus na linguagem das
Escrituras, assim salmos, hinos e cânticos são as composições inspiradas do
Saltério na linguagem das Escrituras. As evidências do Novo Testamento
sustentam essa conclusão. Na noite da última Ceia, Jesus e Seus discípulos
cantaram um “hino” (Mt 26.30). Os expositores bíblicos afirmam que esse hino
era “a segunda parte dos Salmos Hallel (Salmos 115 a 118) que era sempre
cantada na Páscoa (New Bible Commentary, pág. 835). Mateus chama esse
Salmo de “hino” porque, na terminologia da Bíblia, um Salmo é um hino. Nesse
mesmo sentido, é feita a citação do Antigo Testamento no livro de Hebreus
2.12, em que a palavra grega “hino” é citada do Salmo 22.22. Nessa citação de
um Salmo do Antigo Testamento, a palavra “hino” é usada para indicar o
cântico de Salmos, porque o Antigo Testamento não faz distinção entre os dois.
Mas se a própria Escritura diz que Salmos são hinos e hinos são Salmos, por
que deveríamos fazer distinção entre eles? Assim como é ponto pacífico que o
apóstolo usou linguagem bíblica com sentido bíblico, assim também é ponto
pacífico que ele não estava falando de hinos não inspirados nesses textos (ou
seja, Cl 3.16 e Ef 5.19). Ele não falou de salmos não inspirados, já que nas
Escrituras os hinos são Salmos inspirados.
Mas consideremos também o contexto em que essas palavras
aparecem.
(1) Nos dois textos é ordenado que sejamos “cheios do Espírito”, e
que “habite a Palavra de Cristo” em nós, “ricamente, em toda a sabedoria”.
Uma afirmação evidentemente interpreta a outra. Ser cheio do Espírito Santo
requer a habitação da Palavra de Cristo. Ninguém pode ser cheio do Espírito
sem que esteja cheio da Palavra. Se as palavras com as quais nós somos
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cheios não são as mesmas do Espírito, como podemos ser cheios do Espírito? E
como o Espírito pode nos encher com outra coisa senão com as Suas palavras?
(2) Notem a instrução de como devemos encher-nos do Espírito e
da Palavra de Cristo. Devemos fazer isso “falando” a nós mesmos, ou
“ensinando e admoestando-nos uns aos outros”. É importante observar que
isso é algo muito diferente de autoexpressão. Quando nós mesmos criamos
composições, expressamos nossos próprios sentimentos e convicções. Mas
aqui nos é dito para ensinar e admoestar uns aos outros falando a Palavra de
Cristo. ”Autoexpressão” é bem diferente de “autoinstrução”. Expressar o que
está em nós é exatamente o oposto de ser instruído e admoestado.
(3) E observe, finalmente, a instrumentalidade pela qual devemos
fazer isso: por meio de “salmos, hinos e cânticos espirituais”. Devemos ensinar
e admoestar uns aos outros com “salmos, hinos e cânticos espirituais” para
podermos ser cheios do Espírito de Cristo e da Palavra. Isso nos leva à
conclusão de que necessariamente são os Salmos e cânticos da Bíblia, pois
nada além deles pode ser chamado adequadamente de espiritual, ou dizer que
são a Palavra inspirada de Cristo. Somente palavras inspiradas são apropriadas
para ensinar e admoestar a Igreja de Deus. Receber instrução ou admoestação
de palavras não inspiradas é errado. “Devemos obedecer antes a Deus que aos
homens” (At 5.29). Às vezes é dito que não cantamos para ensinar ou
admoestar, mas para expressar nossos sentimentos em resposta à Palavra de
Deus. Mas Deus não nos ordena que expressemos nossos próprios sentimentos
em resposta à Sua Palavra, antes Ele nos ordena a instruir-nos e admoestarnos pela Sua Palavra. Dessa forma, tanto o contexto como os próprios termos
usados (ou seja, salmos, hinos e cânticos) nos levam à conclusão de que
somente as palavras inspiradas dos Salmos bíblicos correspondem às
exigências, e são autorizadas para o canto de louvor a Deus no culto divino.
Que não se diga que estamos exagerando neste caso. Até mesmo
os que advogam o uso de cânticos não inspirados no culto admitem nosso
argumento básico. Por exemplo, a Igreja Presbiteriana Ortodoxa — ainda que
tenha decidido usar hinos não inspirados — reconhece o fato que, nas
Escrituras, “salmos”, “hinos” e “cânticos” são termos sinônimos. “É possível
que cada um desses termos possa referir-se a tais Salmos, uma vez que são
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usados na LXX (Septuaginta) como títulos dos Salmos” (O. P. Minutes, 1947,
pág. 54). E também: “na linguagem da Escritura a palavra ‘salmo’ e ‘hino’ pode
ser usada de forma sinônima” (Ibid.). Em outras palavras, mesmo aqueles que
advogam o uso de hinos não inspirados não conseguem provar que Deus tenha
ordenado isso em algum lugar de Sua Palavra. Eles não são capazes de provar
que Colossenses 3.16 e Efésios 5.19 sancionam outra coisa mais que os
“salmos, hinos e cânticos” inspirados pelo Espírito Santo, e que estão contidos
no livro dos Salmos.
Mesmo se considerarmos a interpretação descuidada usual desses
títulos que as Escrituras dão aos Salmos, a conclusão é, na prática, a mesma.
Até mesmo se arbitrariamente dissermos que os “salmos” se referem às
seleções do Saltério, mas os outros termos se referem a outra coisa, ainda
assim nos é ordenado cantar somente cânticos inspirados das Escrituras. O
apóstolo cuidadosamente afirma que devemos cantar somente “cânticos
espirituais”. E não há dúvida de que o termo “espiritual” significa “inspirado”.
Como disse o Dr. B. B. Warfield, de Princeton (The Presbyterian Review, de
julho de 1880): “Das vinte e cinco ocasiões em que a palavra (espiritual) ocorre
no Novo Testamento, em nenhum caso ela desce tão baixo para ser
considerada como espírito humano; e vinte e quatro delas são derivadas de
‘espírito’ (pneuma), o Espírito Santo. No sentido de pertencer ao Espírito Santo,
ou ser determinado por Ele, o uso no Novo Testamento é uniforme”. A tradução
apropriada para o termo, em cada caso, é “dado pelo Espírito” ou “guiado pelo
Espírito” ou “determinado pelo Espírito”.
Não há dúvida de que essa expressão, aparecendo dessa forma
com tripla designação no Saltério, qualifica todos os três termos como sendo
“salmos, hinos e cânticos inspirados”. Mas mesmo se passarmos por cima
disso, nós ainda temos que reconhecer que os cânticos entoados no culto
cristão devem ser divinamente inspirados. E se os salmos têm de ser
inspirados (como exige essa qualificação do termo), seria necessário assumir
que os hinos também devem ser inspirados. Não teria sentido o apóstolo fazer
distinção entre os salmos inspirados e os hinos e cânticos não inspirados. E
seria absurdo também pensar que Paulo poderia afirmar que salmos e cânticos
seriam inspirados, e os hinos não o seriam. É possível conceber uma distinção
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
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entre salmos inspirados e outro tipo de composição não inspirada. Mas não se
pode conceber uma discriminação que exija que salmos e cânticos sejam
inspirados e hinos não o sejam. Para Paulo e para os cristãos de Colossos e de
Éfeso a palavra “hinos” necessariamente deve ter tido o significado qualitativo
igual ao significado das palavras “salmos e cânticos inspirados”, com as quais
está classificada. A palavra “hino”, assim como a palavra “salmo”, deve ser
reconhecida sem ressalva, designando o mesmo tipo de composição inspirada
que as outras palavras com as quais é mencionada.
Vamos resumir o firme ensino desses versículos:
1º) Devemos nos encher com a Palavra e com o Espírito de Cristo.
2º) Realizamos isso através da instrução e admoestação mútua
pelo cântico.
3º) A regra para essa instrução e admoestação é o Saltério, porque
contém os salmos, hinos e cânticos inspirados.
Ou colocando o assunto de forma negativa:
1º)
Não recebemos ordem para compormos nossos próprios
cânticos, nem para encher-nos com palavras do espírito humano.
2º) Não recebemos ordem para expressarmos nossos próprios
pensamentos e sentimentos, nem para sermos instruídos ou admoestados por
pensamentos e sentimentos originados de outros.
3º) Não recebemos ordem para recebermos ensino e instrução por
nenhuma outra regra ou instrumentalidade senão aquela provida pelo Espírito
Santo no livro dos Salmos, hinos e cânticos inspirados chamado Saltério.
3. O Testemunho da História
A Escritura é a única regra de fé e prática. Como diz a Confissão de
Westminster:
“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas
necessárias para a glória dEle e para a salvação, fé e vida do homem,
ou encontra-se expressamente declarado na Escritura ou pode ser
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
14
lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará
em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por
tradições dos homens” (I, 6).
O testemunho da história antiga e da tradição não podem ser fonte
de doutrina ou prática na Igreja, pois doutrina e prática devem ser
determinadas pela Escritura somente. Contudo, o testemunho da história não
deixa de ter valor. E isso é especialmente verdade com respeito à história da
Igreja primitiva. Pois o fato é que o testemunho da história confirma a
compreensão de que Deus ordenou somente os Salmos para serem cantados
no culto divino. As evidências são as seguintes:
1ª) Primeiro, é digno de nota o fato que não há nenhum salmo, hino
e cântico (além daqueles da Bíblia) preservados desde o tempo dos apóstolos e
do período pós-apostólico da história da Igreja. Também não há nenhuma
evidência daquilo que era usado naquele tempo. Como diz o Professor Shaff:
“Não temos nenhum cântico que tenha permanecido desde o
período da perseguição (i.e., os primeiros três séculos) exceto o
cântico religioso de Clemente de Alexandria ao divino Logos, o qual,
no entanto, não pode ser chamado de hino e, provavelmente, nunca
foi destinado ao uso público” (The Psalms in Worship, pág. 111).
Mais recentemente, o Professor K. S. Latourette admite que “desde
a mais antiga data, talvez desde o começo, os cristãos empregavam em seus
cultos os Salmos encontrados nas Escrituras judaicas, do Velho Testamento
cristão. Desde o início, o cristianismo era predominantemente de fala grega e
esses Salmos estavam na tradução grega” (A History of Christianity, pág. 206).
E “até o fim do quarto século, nos cultos da Igreja Católica, somente os Salmos
do Antigo Testamento e os hinos ou cânticos do Novo Testamento eram
cantados; os outros hinos eram para uso pessoal, familiar ou privado” (Ibid.,
pág. 207). Se Paulo tivesse ordenado ou autorizado o uso de hinos e cânticos
não inspirados, parece estranho que eles não tenham sido usados no culto da
Igreja primitiva. É digno de nota que ainda que a Igreja tenha começado — em
algum lugar nesses primeiros quatro séculos — a cantar certas passagens do
Novo Testamento, juntamente com os Salmos do Antigo Testamento, contudo
nem de longe se supõe que usassem algum material fora da Bíblia. Por outro
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
15
lado, se a ordem do apóstolo foi que somente os salmos, hinos e cânticos
inspirados fossem cantados no culto a Deus, então isso é exatamente o que
deveríamos esperar. Foi somente muito gradualmente que a Igreja se afastou
de fazer o que Deus ordenou, para começar a fazer o que agradava aos
homens.
2ª) O segundo fato digno de nota é que quando os hinos não
inspirados apareceram pela primeira vez, isso não foi entre as Igrejas
ortodoxas, mas sim entre os grupos heréticos. O Professor Latourette diz: “Os
bardesanitas (seguidores de Bardesanes), suspeitos de heresia desde o
segundo século, tinham uma coleção de cento e cinquenta hinos” deles
próprios (Ibid., pág. 207). Foi Ário, o maior herético dos tempos antigos, que
disse: “Deixa-me fazer uma canção popular, e não me importarei com quem
faz as leis”. Ário espalhou sua doutrina nociva escrevendo hinos que apelavam
ao povo dos seus dias. E esse parece ter sido o padrão da prática entre os
movimentos heréticos. Agostinho, já no ano de 430 d.C., testifica o seguinte:
“Os donatistas consideram como algo reprovável que nós, na Igreja, cantamos
com sobriedade os cânticos divinos... enquanto eles inflamam e intoxicam a
mente cantando salmos de composição humana” (Confissões, IX, 4). Se a
Igreja desde o princípio tivesse recebido autorização do apóstolo para fazer uso
de hinos não inspirados, era natural que ela fizesse assim, mas não foi isso que
ela fez. Ao contrário, foram os que se desviaram da fé aqueles que
primeiramente o fizeram. A Igreja que permaneceu na fé também permaneceu
no cântico dos Salmos da Bíblia. Certamente não devemos crer que isso tenha
sido algo acidental.
3ª) Em terceiro lugar, é um fato que, no passado, mesmo quando
os hinos não inspirados dos homens começaram a ter aceitação entre as
Igrejas cristãs, houve uma forte e persistente oposição à introdução deles no
culto divino. O Sínodo de Laodiceia (343 d.C.) proibiu “o cântico de hinos não
inspirados na Igreja”, como também foi proibida “a leitura de livros não
canônicos da Escritura” (Canon 59). Mais tarde, no Concílio de Calcedônia (451
d.C.), reafirmou-se essa oposição à introdução de hinos não inspirados. Se o
apóstolo tivesse encorajado a composição e o uso de hinos não inspirados
desde o início, seria difícil explicar como esses Sínodos se opuseram de tal
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
16
forma a essa nova e perigosa inovação. Mas se o apóstolo autorizou e ordenou
somente o uso do cântico dos Salmos inspirados, não há mistério em todos
esses eventos.
Para resumir:
(i) Não há evidência que cânticos, hinos e salmos não inspirados
tenham sido usados no culto da Igreja Apostólica e pós-apostólica. Até mesmo
historiadores não simpáticos ao cântico exclusivo dos Salmos admitem que
isso é verídico.
(ii) Eles também admitem que os primeiros hinos não inspirados
foram introduzidos pelos heréticos com o propósito de conduzir o povo de Deus
ao erro (por causa do apelo popular de suas composições, eles frequentemente
obtinham grande sucesso).
(iii) A despeito do gradual enfraquecimento contra essa inovação,
houve persistente oposição na Igreja ortodoxa à introdução de salmos, hinos e
cânticos não inspirados no culto divino.
Agora perguntamos: Como é possível explicar esses fatos sem
concluir que, originalmente, a Igreja Apostólica usou apenas Salmos no culto
divino? Por que a Igreja Apostólica não compôs hinos não inspirados que
fossem preservados para nós? (De fato, por que eles não criaram outros hinos
inspirados, se os Salmos do Velho Testamento não eram suficientes?) Por que
os hereges abriram o caminho para a composição e o uso de cânticos não
inspirados? E por que a Igreja resistiu tanto tempo em imitar os heréticos
produzindo ela mesma cânticos não inspirados? Como se explica tudo isso? Há
uma só maneira: “não foi assim desde o princípio”. A única explanação
razoável é que Paulo havia ordenado que se cantassem apenas salmos, hinos e
cânticos inspirados, e que Deus por um longo tempo deu à Sua Igreja força
para resistir à tentação de cultuá-lO “de qualquer outra forma que não tivesse
sido ordenada na Sua Palavra”.
4. Objeções aos Salmos
Não é de pouca monta o fato de que o uso de cânticos não
inspirados no culto nunca tenha sido demonstrado através de prova textual.
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
17
Ninguém jamais encontrou um único texto bíblico provando que Deus tenha
ordenado que Sua Igreja deve cantar no culto outra coisa que não sejam os
Salmos da Bíblia. E isso não é por falta de busca diligente! Alguns anos atrás,
uma Comissão da Igreja Presbiteriana Ortodoxa fez essa tentativa. Mesmo
após alguns exaustivos anos de busca, não foi possível encontrar a tal prova. O
relator da Comissão admitiu que é “impossível provar que cânticos não
inspirados tenham sido autorizados nas Escrituras”. Ele ainda disse: “desejar
tal prova para em sã consciência entoar cânticos não inspirados é desejar o
impossível” (The Presbyterian Guardian, Vol. 17, pág. 73). Admitir isso é algo
gravíssimo. Mas não é admitir mais do que aquilo que os fatos evidenciam. A
realidade nua e crua é que ninguém jamais encontrou um único texto que
ordene os cânticos não inspirados no culto divino. E lembre-se: não podemos
cultuar a Deus “de nenhuma maneira além daquela que foi ordenada em Sua
Palavra”.
Essa é a razão por que os argumentos para cantar hinos não
inspirados no culto realmente têm sido apenas argumentos contra o canto dos
Salmos. Esse fato importante é constantemente desconsiderado. Mas é bom
que tenhamos isso em conta, quando vamos
examinar alguns argumentos
apresentados por aqueles que advogam o uso de cânticos não inspirados no
culto divino.
(1) Um dos argumentos mais comuns apresentados por aqueles
que são a favor do uso de cânticos não inspirados no culto é que “sob o Novo
Testamento nós temos uma medida maior de liberdade com relação ao
conteúdo do culto, do que quando estávamos sob o regime do Antigo
Testamento”.
Tal afirmação parece coerente, mas seria ela de fato
verdadeira? Não seria o caso que no Novo Testamento, assim como no Antigo,
Deus não deve ser adorado “de nenhum outro modo que não tenha sido
prescrito nas Santas Escrituras”? A Confissão de Fé, na verdade, diz que “a
liberdade dos cristãos foi ampliada” no Novo Testamento, além da que tinham
os crentes no Antigo Testamento, “achando-se eles livres do jugo da lei
cerimonial a que estava sujeita a Igreja Judaica, e tendo maior confiança no
acesso ao trono da graça e mais abundantes comunicações do Espírito de
Deus, do que aquelas que os crentes debaixo da lei normalmente alcançavam”
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
18
(XX, 1). Mas isso não quer dizer uma liberdade maior ao ponto de permitir que
os crentes do Novo Testamento cultuem a Deus como bem lhes agrade. No
entanto, essa é a verdadeira intenção de todo esse argumento. A Igreja não
pode decidir por si mesma o que irá cantar no culto a Deus!
Pode parecer estranho dizer isso, mas longe de ser liberdade isso parece
mais tirania. E tirania da pior espécie. Verdadeira liberdade, como a Confissão
diz, é confessar que “Só Deus é senhor da consciência” e Ele “a deixou livre
das doutrinas e mandamentos humanos que, em
qualquer coisa, sejam
contrários à Sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto estejam fora
dela” (XX, 2). Quem é que decide quais hinos não inspirados serão cantados na
Igreja? São os homens que decidem! Geralmente é uma pequena comissão de
homens, em nome de um Sínodo ou de uma Assembleia. Tendo esses homens
feito sua escolha, o Sínodo ou a Assembleia impõe essa escolha à Igreja. Dessa
forma, os crentes se sujeitam à autoridade de uma decisão puramente humana
quanto àquilo que vai ser cantado no culto a Deus. E nem sequer existe
unanimidade entre eles. Os hinos não inspirados impostos ao povo de Deus por
um Sínodo via de regra não são aceitos por outro Sínodo. Um hinário de uma
Igreja Reformada difere do outro. Aquele que é aprovado em um tempo e em
algum lugar, é rejeitado e até condenado por outro noutro tempo e noutro
lugar. As contínuas mudanças de conteúdo dos hinários simplesmente provam
de forma clara que os Sínodos podem errar e frequentemente erram! E tudo
isso é tido como a pretensa “liberdade dada por Deus”! Como se Ele
concedesse à Sua Igreja liberdade para escolher por meio de tentativa e erro,
mudando de um hinário para outro numa sucessão interminável.
Isso não é liberdade! Há liberdade somente quando a Igreja faz o
que Deus ordenou. Quando a Igreja impõe aos seus membros aquilo que Deus
não ordenou, mas o que ela mesma decide, ela se torna culpada de tirania.
Deixe-me ilustrar. Quando a Igreja canta somente salmos, hinos e cânticos da
Bíblia, como foi ordenado por Deus, nenhum membro da Igreja pode dizer que
a sua consciência foi ofendida. Mas quando a Igreja lhe diz que deve entoar
cânticos não inspirados, contra os quais alguns se opuseram, aí existe violação
de consciência. Ninguém deveria ser levado a adorar a Deus de uma maneira
que viole a sua consciência, a menos que se possa provar que Deus ordenou
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
19
aquilo. Quando Deus dá uma ordem à consciência, nós temos liberdade.
Quando os homens impõem o que Deus não ordenou, o que temos é tirania.
(2) Outro argumento para entoar cânticos não inspirados no culto chamase “a analogia da oração”. Como se pode observar, esse argumento também é
negativo. Ele não oferece prova alguma de que Deus tenha ordenado cantar
hinos não inspirados, mas apenas procura provar que Deus não nos ordenou
como cantar porque também não nos ordenou como devemos orar. Em
resumo, o argumento é este: uma vez que Deus não ordenou que oremos
apenas as orações que estão na Bíblia, então não nos devemos sentir presos a
usar os cânticos da Bíblia como nossos cânticos.
Aparentemente, esse é um argumento de peso, contudo a verdade não é
assim. Pois a verdade não é “que Deus não ordenou” como devemos orar, mas
sim “que Deus nos manda orar as orações feitas com o auxílio direto do
Espírito Santo”.
Não é verdade que Deus não nos tenha ordenado orar de
determinada forma particular e por isso não temos também de cantar de forma
determinada, pois Deus nos mandou orar de uma forma determinada:
“Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque
não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós
sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações
sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele
intercede pelos santos” (Rm 8.26,27). Deus nos proveu com um hinário de
Salmos e assim nós podemos cantar de acordo com a Sua vontade. Ele nos
proveu com a promessa da assistência do Espírito Santo para que possamos
orar de acordo com a Sua vontade. A provisão de Deus para a oração é
diferente da sua provisão para o cântico. Mas Ele proveu aquilo que nos
habilitaria a fazer ambas as coisas de acordo com a Sua vontade. Dessa forma,
existe lei e liberdade tanto em um elemento do culto como no outro. Em
ambos os elementos do culto Deus proveu aquilo que é necessário para
capacitar-nos a fazer a Sua vontade e não a nossa.
A chamada “analogia da oração” é um princípio falso, porque a
oração e os cânticos de louvor não são análogos. (A) Na oração pública uma
pessoa fala por todos, então não há necessidade de um livro de orações, uma
vez que o Espírito Santo é prometido para nos capacitar a orar de acordo com
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
20
a vontade de Deus. Mas no louvor público todos cantam juntos e nos foi dado
um livro inspirado de louvor para que possamos cantar juntos aquelas palavras
de Deus que estão de acordo com a Sua vontade. (B) Na oração nós falamos
das nossas várias necessidades. Mas no louvor nós exaltamos o Deus imutável.
Cada oração deve ser diferente, mas os cânticos de louvor apropriados são os
mesmos de século em século. Nossas necessidades mudam, mas o Deus que
deve ser louvado não muda. (C) Se a oração e o louvor realmente fossem
análogos, seria razoável admitir que somente as orações da Bíblia deveriam
ser usadas (porque temos ordem de cantar somente os Salmos da Bíblia) como
se argumenta no lado reverso do assunto. Mas o argumento da analogia não se
justifica. E para evitar tal confusão, Deus claramente ordenou o que é próprio
para cada elemento do culto. E para cada elemento do culto aplica-se o mesmo
princípio: Aquilo que Deus não ordenou é proibido.
(3) Um terceiro argumento para cantar hinos não inspirados é que
“não há realmente nenhuma diferença entre hinos não inspirados e as versões
dos Salmos que estão em uso”. Notem, outra vez, que o argumento é negativo.
Não se diz que Deus não ordenou o cântico dos Salmos e nenhuma prova se dá
para mostrar que Deus nos ordenou entoar cânticos não inspirados. É somente
um argumento de que na verdade não existem cânticos inspirados, mesmo que
Deus tivesse ordenado que tais cânticos fossem entoados. As versões dos
Salmos, dizem eles, não são realmente inspiradas.
É claro e verdadeiro que nada é inspirado por Deus, exceto os
originais dos textos das Escrituras em hebraico e grego. Como a Confissão de
Fé de Westminster afirma: “O Velho Testamento em hebraico (língua vulgar do
antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em grego (a língua mais conhecida
entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo inspirados
diretamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência conservados
puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas as
controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como supremo
tribunal..." (I, 8). Mas a Confissão também diz: “não sendo essas línguas
conhecidas por todo o povo de Deus, que tem direito e interesse nas Escrituras
e que deve no temor de Deus lê-las e estudá-las, esses livros têm de ser
traduzidos nas línguas vulgares de todas as nações aonde chegarem, a fim de
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
21
que a Palavra de Deus, permanecendo nelas abundantemente, adorem a Deus
de modo aceitável e possuam a esperança pela paciência e conforto das
Escrituras” (I, 8). Em outras palavras, ainda que somente os textos originais
hebraico e grego sejam inspirados e infalíveis, Deus mesmo ordenou que todos
os homens em toda parte os leiam e lhes obedeçam; por isso é necessário que
sejam traduzidos. Isso é verdade, ainda que as traduções não sejam
diretamente
inspiradas
por
Deus
e
nem
absolutamente
infalíveis
em
comparação com os textos hebraico e grego. Mas as versões que não são
absolutamente infalíveis são absolutamente necessárias por causa da ordem
expressa contida no texto hebraico e grego, o qual é absolutamente infalível.
Alguém pode argumentar que, uma vez que nenhuma versão da
Bíblia é perfeita, então nenhuma versão é necessária. Também se poderia
dizer que, considerando que nenhuma versão da Bíblia é perfeita, então não há
diferença entre as traduções da Bíblia e os textos não inspirados escritos pelos
homens. Mas o argumento é falso pela seguinte razão: uma tradução da
Palavra de Deus é, num sentido real, a Palavra de Deus. É a Palavra de Deus
traduzida. Mesmo sendo traduzida, não deixa de ser a Palavra de Deus. O
mesmo pode ser dito das metrificações dos Salmos. Quando os Salmos são
poeticamente traduzidos do hebraico para o português, eles não deixam de ser
cânticos inspirados por Deus. Eles não se tornam cânticos não inspirados dos
homens, meramente porque foram traduzidos para uma versão em português.
Existe o que se pode chamar de tradução fiel dos Salmos e metrificação fiel
dos Salmos.
Essas pessoas se opõem a cantar Salmos porque dizem não ser
necessário cantar somente Salmos inspirados, já que não existe versão perfeita
desses Salmos. Mas isso é o mesmo que dizer que não necessitamos fazer o
que Deus ordenou porque não podemos fazê-lo de modo perfeito. Esse
argumento é falso. Os deveres não são determinados pela habilidade daquele
que deve cumpri-los. Deus nos ordena que sejamos perfeitos (Mt 5.48).
Sabemos que não podemos ser perfeitos nesta vida (1 Jo 1.8,10), mas isso não
anula, de forma alguma, o dever de sermos perfeitos. De fato, a marca do
verdadeiro discipulado é esforçar-se para ser perfeito, ou, em outras palavras,
tentar com todas as forças fazer aquilo que Deus requer. Dessa mesma forma,
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
22
Deus nos ordena que entoemos cânticos inspirados. Nós não podemos fazer
isso perfeitamente, mas isso não é desculpa para não tentar. Se alguém
dissesse que precisamos de versões melhores dos Salmos, com isso eu posso
concordar, mas se alguém disser que, uma vez que nossas versões dos Salmos
são imperfeitas, temos razão de usar o que não é inspirado, com isso não
podemos concordar. Nossas metrificações dos Salmos estão longe de serem
perfeitas. Mas o remédio não é adicionar ao pecado de fazer imperfeitamente o
que Deus ordena também aquilo que Deus não ordenou nunca. Devemos
procurar, renovadamente, fazer da maneira mais perfeita possível o que Deus
ordenou. E é preciso lembrar que as pessoas que estão cantando salmos, hinos
e cânticos de um Saltério imperfeito podem pelo menos dizer que estão
tentando fazer o que Deus ordenou.
(4) Um quarto argumento para o uso de cânticos não inspirados no
culto divino pode ser chamado de “argumento dispensacionalista”. Deve-se
observar, novamente, que esse é um argumento negativo. Esse argumento
insiste em dizer que os Salmos do Velho Testamento são inadequados para a
Igreja do Novo Testamento. Argumenta-se que esses Salmos pertencem a uma
dispensação imperfeita, e que eles não refletem a luz da revelação completa.
Dizem que a revelação do Novo Testamento trouxe novas verdades que
deveriam ser expressas no louvor, e portanto são necessários novos cânticos
(embora não sejam inspirados). Mas não é oferecida nenhuma prova para
mostrar que Deus ordenou fazer uso de hinos não inspirados. Esse argumento
visa tão-somente condenar os Salmos inspirados que Deus ordenou que
cantemos. E a base dessa condenação é que os Salmos foram escritos antes de
Cristo vir ao mundo.
Esse argumento contém um pressuposto muito perigoso. É o
pressuposto de que o Velho Testamento é inferior ao Novo Testamento. Ele
presume que o mais antigo é inferior ao que veio depois, e que este é superior.
Mas a Bíblia não ensina tal doutrina. Ela ensina, ao contrário, que toda
Escritura é de igual valor. A revelação de Deus é progressiva, mas é um
progresso do parcial para o completo, e não do inferior para o superior. Como
disse Agostinho: “O Novo está escondido no Velho, e o Velho, revelado no
Novo”. É um erro a noção modernista de que a religião do Novo Testamento é
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
23
uma evolução de uma forma mais primitiva de religião contida no Antigo
Testamento. A religião que Deus começou a revelar no Gênesis é a mesma que
ele terminou revelando no Apocalipse.
Portanto é parte desse falso
pressuposto imaginar que aquilo que foi escrito no Antigo Testamento foi
escrito
primariamente
para
o
tempo
do
Antigo
Testamento.
Isso
é
categoricamente condenado por Pedro que, falando dos profetas do Velho
Testamento, declara: “... investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais
as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles
estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a
Cristo e sobre as glórias que os seguiriam. A eles foi revelado que, não para si
mesmos, mas para vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos foram
anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram
o evangelho, coisas essas que anjos anelam perscrutar ” (1 Pe 1.11,12). O
Espírito que inspirou o Velho Testamento foi o Espírito de Cristo. E Ele não
testificou verdades inferiores, mas exatamente os sofrimentos de Cristo e Sua
glória que se seguiria. Os que argumentam dessa forma contra os Salmos
insistem que o Velho Testamento não revela plenamente os sofrimentos de
Cristo. Mas Pedro diz que eles testificaram dessas coisas — não para si
mesmos — nem para aqueles que estavam vivendo em seus dias — mas para
nós. Se os escritores do Velho Testamento escreveram sobre os sofrimentos de
Cristo e sobre as glórias que se seguiriam, e se eles escreveram essas coisas
expressamente para nós, então é evidente que não necessitamos de autores
de hinos não inspirados para fazer esse trabalho que já foi feito.
Às vezes se afirma que, quando se cantam apenas os Salmos,
nega-se o privilégio de cantar do Salvador que agora veio. Em outras palavras,
é o mesmo que alegar que os Salmos não contêm Cristo de forma suficiente.
Isso é uma coisa impressionante. Pois o próprio Cristo disse que o livro dos
Salmos foi escrito a Seu respeito (Lc 24.44). Suas últimas palavras foram
tiradas do Salmo 22. Sua última comunhão com os discípulos aconteceu
cantando o grande Hallel (Salmos 115 a 118) na última Ceia. E, então, pela
boca do seu servo Paulo, Ele ordenou às Igrejas que continuem a cantar os
Salmos. E por que não? Se Ele mesmo, pelo Espírito Santo, foi o autor deles! E
a verdade é que existe mais de Cristo em cada Salmo escrito por Ele antes da
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
24
Sua vinda ao mundo, do que em qualquer dos hinos escritos por meros homens
depois que Ele veio.
Esse argumento também diz que há na experiência do crente uma
necessidade de responder às revelações do Novo Testamento, o qual trouxe à
tona pensamentos e meditações que são expressos de modo inadequado nos
Salmos. Mas é interessante notar que grandes homens de Deus têm testificado
exatamente o contrário. Atanásio, o campeão da divindade de Cristo, no quarto
século, disse: “Eu creio que um homem não pode encontrar nada mais glorioso
do que esses Salmos; pois eles abrangem toda a vida do homem, as afeições
da sua mente e as emoções da sua alma. Para louvar e glorificar a Deus, ele
pode selecionar um Salmo próprio para cada ocasião, ao ponto de achar que
eles foram escritos especificamente para ele” (Tratado sobre os Salmos).
Basílio de Cesareia disse: “ O livro dos Salmos é um compêndio de toda a
divindade; um depósito de medicina para a alma, um manual universal de boa
doutrina, útil para todos em qualquer condição”. Agostinho perguntou: “O que
é que não pode ser aprendido no Saltério?” Ele o chamou de “um resumo de
toda a Escritura”. Lutero também chamou os Salmos de “minha pequena
Bíblia”. Enquanto João Calvino disse: “não é sem boas razões que eu costumo
chamar este livro de uma anatomia de todas as partes da alma, uma vez que
ninguém pode experimentar emoções a não ser que possa ver sua imagem no
espelho". Estariam enganados esses homens? Existe algo que falta nos
Salmos? Ou haveria, talvez, alguma coisa faltando mais em nós, do que nos
Salmos inspirados, que nos faça preferir os hinos não inspirados feitos pelos
homens?
(5) O quinto argumento em favor do cântico de hinos não
inspirados é o seguinte: “Deus ‘inspira’ homens, hoje, para escrever
composições adequadas para o uso do culto divino”. Observemos mais uma
vez: esse é um argumento negativo. Ele não oferece provas de que Deus nos
tenha ordenado entoar cânticos não inspirados. Ele meramente alega que os
Salmos da Bíblia não são os únicos cânticos inspirados pelo Espírito Santo.
Frequentemente se diz que Shakespeare era “inspirado” nesse mesmo
sentido. Mas se nós formos usar essa palavra “inspirado” para descrever o
enlevo poético natural do espírito humano, então teremos de encontrar outra
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
25
palavra para descrever a obra sobrenatural do Espírito Santo, pela qual Ele
capacitou certos homens a escrever as Escrituras. “... porque nunca jamais
qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens [santos]
falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo ” (2 Pe 1.21).
A
inspiração pela qual Davi escreveu os Salmos era miraculosa. Assim como o
termo “milagre”, o termo “inspiração” significa alguma coisa sobrenatural
quando considerado no sentido bíblico. As pessoas mortas não mais
ressuscitam dos túmulos (e não o farão até o último dia), e nem mais se
transforma água em vinho, e nem se anda mais sobre as águas. Os milagres,
nesse sentido, cessaram. É assim também com relação à inspiração no sentido
bíblico. A revelação de Deus está, agora, completa. Deus não irá mais inspirar
homem algum para escrever palavras infalíveis. Na verdade, Deus declara que
será maldita qualquer pessoa que tente fazer isso (Ap 22.18). Mas se alguém
pudesse realmente ser “inspirado” no sentido bíblico original, o que escrevesse
poderia ser acrescentado à Bíblia. Foi exatamente isso que os apóstolos
inspirados fizeram, e nós podemos ter certeza que, se houvesse necessidade
de algum salmo, hino e cântico além desses que nos foram dados, Deus teria
inspirado Seus apóstolos para escrevê-los e os teria colocado na Bíblia. Não
podemos afirmar esse assunto com melhores palavras do que as da Confissão
de Fé de Westminster: “Todo o conselho de Deus concernente a todas as
coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou
é expressamente declarado na Escritura, ou pode ser lógica e claramente
deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por
novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens” (I, 6).
(6) Um sexto argumento para o uso de cânticos não inspirados no
culto divino é o argumento da inferência. O argumento afirma que “existem
algumas coisas que fazem parte do culto a Deus, que não podem ser provadas
diretamente nas Escrituras, mas são
logicamente deduzidas delas”. Os
exemplos que frequentemente são citados são o batismo dos infantes, e a
admissão das mulheres à Ceia do Senhor. Os defensores desse argumento
dizem que nenhuma dessas coisas é ordenada no Novo Testamento, mas todas
são plenamente justificadas através de boas e inevitáveis inferências. Eles
dizem que, se essas coisas são aceitas no culto divino, então da mesma forma
a entoação dos hinos e cânticos não inspirados deve também ser aceita.
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
26
Esse argumento também é negativo. O que ele realmente afirma é
que não podemos provar pelas Escrituras que as crianças devem ser batizadas
ou que as mulheres devem receber a Santa Ceia e que, portanto, não
precisamos provar que as composições não inspiradas podem ser cantadas no
culto divino. O que dizem é que, se o culto sem tais provas é aceitável numa
instância, então não pode ser condenado em outra.
Acontece
que
podemos
provar,
pelo
claro
testemunho
das
Escrituras, que as crianças devem ser batizadas, e que as mulheres devem ser
recebidas à Mesa do Senhor. E a prova não é menos contundente pelo fato de
encontrar-se no Velho Testamento. Em Gênesis 17.10, Deus ordenou que as
crianças recebessem o sacramento da circuncisão. Esse mandamento nunca foi
revogado. Quando Paulo diz que somos circuncidados quando somos batizados
(Cl 2.11), ele simplesmente estende ao Novo Testamento a ordenança do Velho
Testamento. Não há necessidade de um novo mandamento para que as
crianças recebam o batismo, porque já existe um mandamento claro em vigor.
Pelo fato de ser da vontade de Deus alargar a ordenança do Velho Testamento
(i.e., aplicando esse sacramento às mulheres e meninas), o Senhor proveu a
necessária afirmação no exemplo claro de Lídia (At 16.25). Onde um
mandamento já existe, os apóstolos não fornecem nenhum outro, porque não é
necessário. Onde um mandado adicional é necessário, então é fornecido, e é
dado porque não podemos cultuar a Deus exceto da forma como Ele ordenou.
Da mesma maneira, não é necessário procurar no Novo Testamento um
mandamento admitindo as mulheres à Ceia. A razão é que o Velho Testamento
já diz: “Toda a congregação de Israel o fará” (Êx 12.47). Os apóstolos não
forneceram um mandamento para as mulheres participarem de “Cristo, nossa
Páscoa”(1 Co 5.7) porque no Velho Testamento já havia essa afirmação.
Esse argumento, tão apelativo à primeira vista, depois de ser
examinado mais de perto, na verdade, prova exatamente o oposto do que a
princípio parecia. Pois uma coisa é dizer que certas coisas não são ordenados
no Novo Testamento, mas são apropriadas para o culto porque já foram
ordenados no Velho Testamento. E outra bem diferente é dizer que certas
coisas não foram ordenadas nem no Velho nem no Novo Testamento e ainda
assim devem ser consideradas próprias para o culto. O batismo dos infantes e
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
27
a admissão das mulheres à Ceia do Senhor não provam que os hinos não
inspirados possam ser cantados no culto, sem autorização divina, mas provam
que a clara afirmação do ensino no Velho Testamento é suficiente e não
necessita de repetição para o Novo Testamento. Mas isso é precisamente o
que nós não temos, não há nenhuma afirmação nem no Velho nem no Novo
Testamento para usarmos hinos não inspirados no culto. A única coisa que é
provado pelo batismo dos infantes e a admissão de mulheres à Santa Ceia é
que nada é próprio no culto de Deus sem uma afirmação clara das Escrituras.
Os infantes são batizados e as mulheres admitidas na Santa Ceia precisamente
porque é isso que Deus ordenou. Da mesma forma, requer-se que apenas os
Salmos sejam cantados no culto divino, porque, na verdade, somente isso foi
ordenado por Deus.
(7) Um sétimo e último argumento para o uso de cânticos não
inspirados no culto divino é o que se pode chamar de argumento do
“progresso”. Afirma-se que, através da história da redenção, novas situações,
novos desenvolvimentos e novas revelações trazem à tona novos materiais
para o culto. E isso é verdade. O elaborado culto do Tabernáculo incluía muitas
coisas que Abraão não conhecia. E o ainda mais elaborado culto do Templo de
Salomão, por sua vez, incluía muitas coisas não encontradas no Tabernáculo.
Assim, certamente o culto da Igreja do Novo Testamento marca um avanço
muito maior do que o do Templo de Salomão.
Mas há uma coisa que esse tipo de argumento desconsidera
completamente.
Ele desconsidera o ensino claro da Escritura de que, para
cada um desses “avanços” na complexidade e forma do culto divino, cada
mínimo detalhe foi instituído pela expressa ordem de Deus. Assim, quando o
culto do Tabernáculo foi instituído, Deus disse a Moisés: “ Vê, pois, que tudo
faças segundo o modelo que te foi mostrado no monte ” (Êx 25.40). “Segundo
tudo o que eu te mostrar para modelo do tabernáculo e para modelo de todos
os seus móveis, assim mesmo o fareis ” (Êx 25.9).
Até mesmo os homens
empregados por Deus para fazer os instrumentos e as decorações foram
inspirados pelo Espírito Santo a fim de poderem fazer isso (Êx 28.3, 31.6 etc.).
Nada foi inventado por eles mesmos, mas unicamente pelo Espírito Santo (Êx
35.30-35). E, contrariamente à opinião comum, o mesmo é verdadeiro quanto
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
28
ao Templo de Salomão. “ Deu Davi a Salomão, seu filho, a planta do pórtico
com as suas casas, as suas tesourarias, os seus cenáculos e as suas câmaras
interiores, como também da casa do propiciatório. Também a planta de tudo
quanto tinha em mente, com referência aos átrios da Casa do SENHOR, e a
todas as câmaras em redor, para os tesouros da Casa de Deus e para os
tesouros das coisas consagradas; Tudo isto, disse Davi, me foi dado por escrito
por mandado do SENHOR, a saber, todas as obras desta planta ” (1 Cr
28.11,12,19). Nem uma única coisa proveio da cabeça de Davi. Tudo lhe foi
inteiramente revelado pelo Espírito Santo. Cada coisa nova que foi introduzida
foi pela expressa ordem de Deus.
Da mesma forma, o culto da Igreja do Novo Testamento foi
ordenado por Deus. Como Paulo diz: " Se alguém se considera profeta ou
espiritual, reconheça ser mandamento do Senhor o que vos escrevo ” (1 Co
14.37). Nada é feito na Igreja do Novo Testamento sem a ordem de Cristo. A
nova revelação que veio através da encarnação de Cristo trouxe muitas
mudanças. A lei cerimonial foi abolida por ordem divina (At 10.9-18). O culto
verdadeiro não se restringe mais ao Templo de Jerusalém (Jo 4.21). A
circuncisão e a Páscoa foram transformados em Batismo e Santa Ceia. Mas em
nenhum lugar Cristo forneceu novos cânticos inspirados, nem deu Ele algum
mandamento para que os homens fizessem uso de cânticos não inspirados no
culto. Ao contrário, Ele ordenou, por meio do apóstolo Paulo, que deveríamos
fazer uso dos salmos, hinos e cânticos inspirados que já haviam sido
providenciados.
Costuma-se dizer que novos cânticos são mencionado no Livro do
Apocalipse. E de fato o são (Ap 5.9, 14.3). Mas isso era de esperar. Quando
chegarmos ao céu, vamos precisar de novos cânticos, pois então teremos nova
revelação. Mas não nos esqueçamos que esses novos cânticos não serão
composições não inspiradas feitas por homens. Eles serão novos cânticos
inspirados pelo Espírito Santo, pois lemos: “ Entoavam novo cântico diante do
trono, diante dos quatro seres viventes e dos anciãos. E ninguém pôde
aprender o cântico, senão os cento e quarenta e quatro mil que foram
comprados da terra” (Ap 14.3).
Aprender um novo cântico ensinado pelo
Senhor é muito diferente de escrever cânticos por nós mesmos. Certamente
O Cântico dos Salmos no Culto a Deus
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devemos ansiar pelo dia no qual iremos aprender esses novos cânticos. Mas
enquanto isso, devemos estar contentes em entoar os cânticos que o mesmo
Espírito Santo escreveu para aprendermos na terra. E qualquer que seja a
maravilha desses cânticos que vamos aprender no céu, eles não serão mais
perfeitos do que aqueles que estão contidos no livro dos Salmos. Como o
salmista mesmo disse: “Quão grandes, SENHOR, são as tuas obras! Os teus
pensamentos, que profundos!” (Sl 92.5). “Quão doces são as tuas palavras ao
meu paladar! Mais que o mel à minha boca. A revelação das tuas palavras
esclarece e dá entendimento aos simples. As tuas palavras são em tudo
verdade desde o princípio, e cada um dos teus justos juízos dura para sempre ”
(Sl 119.103,130,160).
“De que maneira o jovem poderá sempre guardar bem puro o seu
caminho, observando-o sob a Tua lei. A Ti busquei de coração inteiro,
peço que não me deixes desviar, nem me afastar dos Teus bons
mandamentos” (Sl 119.9,10 – metrificado pela Comissão Brasileira
dos Salmos - CBS).

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