Almanaque on-line entrevista - Instituto de Psicanálise e Saúde

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Almanaque on-line entrevista - Instituto de Psicanálise e Saúde
Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais - Almanaque On-line no 10
Janeiro a julho de 2012
Almanaque on-line entrevista
Marcelo Veras: AME da EBP/AMP, Diretor do XIX EBCF, Diretor Adjunto da EBP.
Almanaque on-line: Publicamos, neste número de Almanaque on-line, um belo artigo de Silvia
Tendlarz, no qual ela se remete à “mascarada feminina” de Joan Rivière e à pergunta sobre a diferença
entre a feminilidade como disfarce e a verdadeira feminilidade. Diz Rivière: “Que a feminilidade seja
fundamental ou superficial, é sempre a mesma coisa”. Para Silvia, no entanto, a criação da mascarada
não sutura a pergunta acerca de “o que é ser mulher”. Que resposta (ou respostas) podemos esperar
encontrar nas “Figuras do feminino”?
Marcelo Veras: Há mais de um modo de responder à questão. Tomarei o caminho aberto por Lacan a
partir da diferença entre identificação simbólica e imaginária. É fato que a figuração remete ao
imaginário e ao simbólico: percepção da privação e aplicabilidade da função castração. Aqui não se
trata apenas do imaginário da relação especular, presente em Freud, no texto sobre a diferença
anatômica entre os sexos, mas do modo como a ereção permite localizar o gozo sexual através das
culturas e dos tempos. Basta caminhar pelas ruas de Pompeia ou presenciar as festividades do solstício
na Suécia até hoje — o Midsommar, festa familiar popular em torno de um enorme pênis — para
perceber o triunfo do falo ereto. O gozo feminino, por sua vez, mobiliza o corpo de um modo
totalmente distinto. Não deixa de ser relevante que o XIX Encontro se passe na Bahia, terra onde o
transe místico tem uma função fundamental para o Candomblé. O transe não tem nada a ver com a
histeria. Na histeria, os eventos corporais passam pelo corpo mapeado pela castração e pela falta
simbólica, tal como podemos perceber na descrição que faz Freud da terceira modalidade de
identificação, chamada de identificação pela falta ou histérica. No transe, o que está em questão é o
gozo do corpo que escapa à lógica fálica, em conexão direta com os deuses politeístas que, no
Candomblé, se inscrevem de um modo muito particular na lógica da sexuação.
Para a psicanálise, o desafio é maior. Não basta ser tomado pelo gozo que escapa à lógica
fálica, é preciso um bem dizer sobre isso. Um ponto que tem sido colocado em relevo constantemente
nos passes é o acontecimento de corpo, no final de análise, que não se conecta com a castração. O
bem dizer implica poder falar desse acontecimento e não apenas experimentá-lo. Meu mestre de
psiquiatria na Bahia, o falecido Professor Rubim de Pinho, dizia que as boas Ekedis, no Candomblé,
sabem muito bem separar o que é uma manifestação de transe da loucura. As Ekedis, também
chamadas, em alguns terreiros, de mães, assim como os Ogans, não entram em transe, pois devem
estar acordados para orientar e assessorar os rituais. Arrisco-me a dizer que há algo da posição do
analista nas Ekedis, elas aprenderam a organizar o mundo para além da lógica da castração.
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Janeiro a julho de 2012
Almanaque on-line: O que é uma verdadeira mulher? O que distingue a histérica e a mulher quanto
ao gozo?
Marcelo Veras: Retomo um pouco a pergunta anterior. Quando fazemos a pergunta sobre a
verdadeira mulher, nós já a inscrevemos no binário verdadeiro/falso, que nada tem a ver com o real.
Desse modo, não há incompatibilidade em afirmar que “A” mulher não existe e, ao mesmo tempo,
falar de uma verdadeira mulher. Sabemos que apontar para essa inexistência, na análise, muda o
cerne da questão feminina, passando de uma impotência a uma impossibilidade. Há, nesse ponto, uma
subversão do dispositivo da demanda que é crucial na clínica. É necessário um consentimento à
castração para não perpetuar uma demanda que esgota o sujeito na busca de máscaras. Máscaras que
nunca se adequam perfeitamente, sem restos. Podemos dizer que há uma mulher verdadeira, já que
verdadeiro e falso são proposições constantes na relação do falasser com o Outro, quando seu dizer
não se escora na rivalidade fálica e avança sem a garantia de que esse Outro obture sua falta com a
castração. Ou seja, a mulher verdadeira não institui o Outro da castração como parceiro.
Almanaque on-line: Como retomarmos e discutirmos hoje a expressão de Lacan: "para o homem,
uma mulher pode representar a hora da verdade"? O que quer dizer isso hoje? De que forma o XIX
EBCF, com o tema "Mulheres de hoje: figuras do feminino", atualiza e aborda essa questão?
Marcelo Veras: Com Lacan, aprendemos que a verdade não é algo que se alcança pelo saber. Eis um
ponto que faz com que a psicanálise não seja uma forma de filosofia. A leitura das fórmulas da
sexuação nos ajuda a ver como o homem acredita que a mulher pode ser inscrita em seu desejo. Para
construir esse espaço, ele se serve da fantasia fundamental; é pelo aparelho da fantasia que ele
acredita na existência da mulher. Ocorre que o feminino aponta para algo fora da cena, algo que faz
com que ela, desculpem se repito um bordão, esteja não-toda no campo da realidade. Então,
respondendo à pergunta, para um homem, a verdade irrompe na parceria quando se ultrapassa o
verdadeiro/falso da castração. É quando a parceira recusa a posição que lhe é assegurada pela fantasia
masculina. Ela recusa a fantasia que a fixa na zona de conforto fálica, para fazer valer sua demanda de
outra coisa, que não se relaciona com o falo e sim com um gozo suplementar, que escapa
precisamente a esse gozo do falo. Musas, Medusas ou Medeias, as figuras do feminino que serão
tratadas no XIX Encontro elevam, cada uma à sua maneira, o parceiro masculino a uma dimensão
mais além do que pode ser obtido pela sua fantasia, é aí que se situa a hora da verdade.
Almanaque on-line: O tema da Seção Clínica do IPSM-MG, para este semestre, é "O fracasso em
psicanálise na feminização do mundo". Esse tema articula fracasso e sucesso, se pensarmos a
feminização como uma valorização e prevalência da posição feminina no mundo de hoje. Se tomarmos
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a ideia de Lacan de que o sucesso da psicanálise seria seu fracasso, que correlação podemos fazer em
relação ao sucesso feminino?
Marcelo Veras: Eu diria que há muita semelhança entre as duas formulações. A feminização do
mundo ocorre naquele ponto em que o mundo recusa a ordem totalizadora e homogeneizadora dos
mestres antigos ou atuais. Ela ocorre quando as formas de gozo se desprendem do Édipo e vão mais
além. Assim é também a psicanálise. Já o sucesso, no mundo contemporâneo, é uma exigência
onipresente em todos os setores da vida. Nesse sentido, não tem nada a ver com o feminino ou com a
psicanálise, que recusam uma solução universal. Há uma certa vocação à segregação da psicanálise e
da mulher, que é de estrutura. Daí o papel importante de uma Escola de Psicanálise, pois não são
muitos os que suportam sustentar essa condição de exceção.
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