Tudo bem, a história da arte já não é compreendida como uma

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Tudo bem, a história da arte já não é compreendida como uma
Messalina (c.1890) de Henrique Bernardelli e Estudo de Reflexos
(1909?) de Carlos Oswald: possibilidades de diálogo e história da
arte
Resumo: A partir da comparação entre duas telas do acervo do Museu Nacional
de Belas Artes (RJ), Messalina de Henrique Bernardelli (1857-1936), e Estudo de
Reflexos de Carlos Oswald (1882-1971), propomos algumas reflexões sobre a
história da arte e o conceito de arte moderna no Brasil.
Palavras-chave: Henrique Bernardelli – Carlos Oswald – Nu feminino
Résumé: à partir de la comparaison entre deux toiles appartenant au Museu
Nacional de Belas Artes de Rio de Janeiro, Messalina de Henrique Bernardelli
(1857-1936), et Estudo de Reflexos de Carlos Oswald (1882-1971), on propose
des réflexions sur l’histoire de l’art et le concept de l'art moderne au Brésil.
Mots clé: Henrique Bernardelli – Carlos Oswald – Nu féminin
Ana Maria Tavares Cavalcanti
Doutora em História da Arte pela Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne
Professora de História da Arte - Escola de Belas Artes da UFRJ
CBHA
1
Messalina (c.1890) de Henrique Bernardelli e Estudo de Reflexos (1909?) de
Carlos Oswald: possibilidades de diálogo e história da arte
O Comitê Brasileiro de História da Arte propôs o debate sobre as “mudanças de
paradigmas para a História da Arte no Brasil”. Pensando sobre a questão, comecei
a folhear catálogos, e o acervo de pinturas do Museu Nacional de Belas Artes
reteve minha atenção. Deixei meus olhos vagarem pelas imagens reproduzidas
nos livros, pensando na possibilidade de uma “redistribuição das cartas no baralho
da história da arte”, conforme sugeriu Yve-Alain Bois em sua conferência A
questão do pseudomorfismo: um desafio para a abordagem formalista que abriu o
XXVI Colóquio do CBHA em 2006.
Quando se trata de revisão historiográfica, um ponto que permanece importante é
o empenho em escapar de uma visão evolucionista que costumava encaixar as
obras em gavetas estanques, em períodos cujas características e pressupostos
teóricos predeterminavam uma interpretação.
No entanto, embora tal desígnio seja hoje lugar comum, sua realização, na
verdade, não é tão fácil. Para ajudar-me nessa tentativa, escolhi duas pinturas que
não dividem a mesma parede no museu, nem ocupam páginas vizinhas nos livros
de história da arte. Comparando-as, proponho um exercício que talvez nos
propicie novos ângulos de abordagem sobre as duas obras. Trata-se de
Messalina de Henrique Bernardelli (1857-1936), realizada por volta de 1890, e
Estudo de Reflexos de Carlos Oswald (1882-1971), normalmente datada de 1909,
mas que, no decorrer da pesquisa, verifiquei ser de 1912. Pouco mais de duas
décadas separam a realização de cada uma delas: vinte anos de grandes
mudanças. Do impressionismo ao cubismo, a virada do século XIX para o XX foi
um dos períodos mais radicais em termos de revolução artística. A transformação
ocorrida no mundo da arte nesse momento aparece nos títulos dos trabalhos que
aqui comparamos - Messalina e Estudo de Reflexos. Em Messalina, a
representação de uma personagem da história romana se insere na prática da
pintura histórica, o gênero mais valorizado pelos artistas formados dentro dos
2
princípios acadêmicos. No segundo caso, a referência a “reflexos” lembra a prática
impressionista, e a denominação “estudo” reforça a idéia de valorização da
execução rápida, um apontamento dos efeitos de luz. As dimensões das telas
corroboram essa primeira idéia (a de Bernardelli mede 207 x 115 cm, a de Carlos
Oswald 76 x 58 cm), indicando diferentes locais de exposição para cada uma – a
sala do museu e a casa particular, respectivamente. E no entanto, quando vemos
as reproduções fotográficas das obras lado a lado, o que de imediato chama a
atenção é a semelhança na posição das figuras femininas, e em seguida,
começamos a perceber que muitas preocupações de Carlos Oswald – os
contrastes de cor, o efeito pictórico – já estão presentes na execução de Henrique
Bernardelli. E o inverso também é verdadeiro – a construção de uma atmosfera
misteriosa e sensual, evidente na Messalina de Bernardelli, não foi desprezada
por Carlos Oswald, pois a lanterna vermelha que ilumina a pele da modelo, além
de produzir os “reflexos” do título, acrescenta um toque fantasioso e oriental à
cena. Contrastes, semelhanças, rupturas e heranças, cada obra tem sua
complexidade. As “impurezas” são também um sinal de vitalidade e riqueza de
significados.
Antes de mais nada, é necessário esclarecer que Messalina foi inicialmente
exposta com o nome de Dicteriade. Essa mudança de nome pode confundir os
que buscam informações sobre a tela nos jornais da época, catálogos de
exposições e documentos da Academia. Dicteriade é o nome que consta no
catálogo da Exposição Geral de 1890, na qual o pintor expôs numerosos
trabalhos, o que foi registrado pelos professores da Academia na ata da sessão de
30 de Abril de 1890:
Das 209 diversas produções de pintura descritas no catálogo da Exposição,
cerca de 69, das quais pertencem 49 ao laborioso Sr. Henrique Bernardelli
feitas durante a sua residência de mais de 10 anos na Itália, são trabalhos
executados fora do país.1
1
- Atas das sessões da Congregação da AIBA. Arquivos do Museu D. João VI – EBA - UFRJ
3
Henrique permaneceu na Itália de 1879 a 1888. Se em 1886, ainda vivendo na
Europa, realizou uma grande exposição na Academia, o Salão de 1890 era o
primeiro do qual participava após seu retorno ao Brasil em 1888.
Dicteriade causou sensação, agradando tanto ao público em geral, quanto aos
professores, que a recomendaram para ser adquirida pelo governo para integrar a
Pinacoteca da Academia.
A prova irrefutável de que Messalina é Dicteriade se encontra no jornal Vida
Fluminense, de 8 de março de 1890, que reproduziu nas páginas 4 e 5 o quadro
de Bernardelli, numa charge que o enaltece como um jovem herói. A primeira
página dessa mesma edição, mostra outra ilustração que alude à agitação que
tomava conta dos alunos e parte dos professores que ansiavam pela reforma da
Academia, estimulados pela mudança de regime político no Brasil, de Império para
República.
De fato, se na historiografia posterior, Messalina foi enquadrada como uma pintura
convencional e nada revolucionária, em 1890 foi aplaudida pelos críticos como um
sinal de renovação e frescor da arte brasileira da nova geração que vinha
substituir os mestres, cujos representantes mais famosos, e por isso mesmo mais
atacados, eram Pedro Américo e Victor Meirelles. Em artigo na Gazeta de
Notícias de março de 1890, um articulista anônimo, após criticar os “quadros (...)
em tempo classificados na Academia como constituindo a arte nacional”, dentre os
quais cita “a Morte de Sócrates, S. João Baptista no cárcere, a degolação do
referido S. João, a flagelação de Cristo”, estimulava o leitor a visitar a Exposição
Geral recém inaugurada:
E se quer que o guiemos, se quer ter logo desde o primeiro dia uma
impressão que o obrigará a voltar, embora não seja de arte nossa pelo
assunto, ao entrar na galeria nova procure um quadro que fica ao fundo, à
direita, a Dicteriade, de Henrique Bernardelli; vá caminhando até o meio da
sala, fitando-a sempre, e quando estiver bem no seu ponto, no ponto em
que cada um vê melhor, diga-nos se já viu uma tela mais voluptuosamente
quente, se não tem tentações de tocar o sedoso daqueles tecidos, e se não
é aquilo o atestado bem eloqüente do quanto vale a permanência de um
artista de talento em um meio verdadeiramente artístico.
4
Aí está a verdadeira arte italiana moderna em toda a sua perfeição, e como
a tela é de um artista nosso, ali está o que é preciso para termos arte
nacional, se o governo e o público entenderem que vale a pena cultivar a
preciosa planta, que também enriquece as nações, influindo sobre os
costumes, pois nem só de café vive o homem.2
A pintura de Henrique Bernardelli era, segundo seus contemporâneos, um
exemplo do que eram capazes os artistas brasileiros em contato com a moderna
arte européia. A idéia de uma evolução das artes era familiar e a atualização,
desejável. Mas em 1890, estamos muito distantes da idéia de uma “pintura pura”,
que será muito falada, e mesmo questionada por Carlos Oswald, décadas mais
tarde.
Uma geração mais novo que Henrique Bernardelli, Oswald nasceu em Florença
em 1882, e tinha fortes ligações com o Brasil, mesmo antes de vir conhecer o
país, aos 24 anos. Filho do músico Henrique Oswald, desde criança Carlos ouvia
falar da terra brasileira onde seu pai nascera. Instalado na Itália e sem pretender
emigrar, Carlos Oswald realizou duas viagens ao Brasil. Chegando ao Rio em
meados de 1906, retornou a Florença em outubro de 1907. Em 1913, veio ao
Brasil pela segunda vez e, não fosse o início da Guerra em 1914, pretendia voltar
para a Itália. Trouxe para o Rio vários quadros, dentre os quais Estudo de
Reflexos. Conforme o próprio Carlos Oswald relata, a recepção do quadro foi
muito boa entre nós. Esse tipo de estudo de efeitos de luz era uma novidade para
os brasileiros:
A minha segunda chegada ao Brasil foi bem diferente da primeira (...).
Logo ao chegar organizei, em sociedade com o meu amigo, pintor Eugênio
Latour, uma exposição na Escola Nacional de Belas Artes, na qual
reunimos grande número de telas e gravuras.3
Descreve então várias obras de sua autoria expostas na ocasião, ressaltando as
2
Anônimo. Belas Artes. Gazeta de Notícias - Segunda-feira, 31 de março de 1890, p.1.
3
OSWALD, Carlos. Como me tornei pintor. Petrópolis: Vozes, 1957, p.41.
5
“academias” (assim são chamados os estudos de nu) [explica], que
despertaram a atenção dos artistas e amadores por serem mais
propriamente efeitos de luz do que estudos anatômicos.4
Ainda em 1913, envia Estudo de Reflexos para a Exposição Geral, juntamente
com mais nove pinturas. Mais uma vez, o público admira a tela que é comprada
para integrar o acervo do Museu Nacional de Belas Artes.
Curiosa é, no entanto, a compreensão que Carlos Oswald tinha dessa pintura de
fatura impressionista. Eclético, para ele a técnica empregada era apenas uma
opção entre outras, que podia ser facilmente substituída por uma fatura clássica,
se o assunto “pedisse” outro tratamento. Escreve ele, recordando-se do ano de
1911, quando passou temporada em Paris preparando as pinturas decorativas do
Pavilhão do Brasil para a Exposição Universal de Turim:
Começa nesse período, posso afirmar, minha maturidade artística. A
experiência parisiense foi necessária para me pôr em contacto com o
turbilhão das atividades de artistas do mundo inteiro (...). Com a minha
formação clássica acrescentada ao estudo atento dos impressionistas e
dos pós-impressionistas (Besnard, Henri Martin) fiquei dono de várias
técnicas e ideologias artísticas que me guiariam posteriormente em todos
os meus trabalhos.5
Os primeiros resultados da estadia em Paris foram os “efeitos de luz” que passa a
estudar e dos quais pinta numerosos quadros. Em seu livro de 1957, Como me
tornei pintor, Oswald menciona as variações desses estudos:
(...) contrastes de luz natural e artificial: lâmpadas, reflexos de toda
espécie, concretizados em assuntos profanos e sacros. Meninos brincando
com balões, meninas com lanternas venezianas, mulheres cosendo ou
escrevendo ou jogando na penumbra de ambientes onde a luz da tarde se
entrelaça com luz de velas, ou de lâmpadas, etc.6
Porém, revela:
Nunca reneguei o clássico para me entregar completamente ao
impressionismo e vice-versa, mas as duas estradas, e a do sintetismo,
tenho seguido a vida inteira, às vezes obedecendo as três tendências
contemporaneamente, conforme o gênero de pintura que fazia. 7
4
- Idem, ibidem.
- Idem, p.33.
6
- Idem, p.35.
7
- idem, p.33.
5
6
Sua atitude é comparável a dos artistas da geração que o antecedera. É o próprio
Carlos Oswald quem menciona uma tela de Rodolpho Amoedo, Desdêmona de
1892, como próxima a seus efeitos de luz8.
Longevo, Carlos Oswald testemunhou mudanças muito mais radicais que as
vividas por Henrique Bernardelli. Em 1961, escreveu em seu diário pessoal:
(...) amo a natureza e a arte que a interpreta, fico às vezes com medo de
ser pagão, ao constatar que todos, aos poucos, em volta de mim, estão se
tornando de uma “pureza plástica” terrivelmente incompreensível para
mim.9
Esse mesmo processo ele registra anos antes no mesmo diário. Em 14 de abril de
1940, escreve:
Andam me informando que vários colegas meus estão me denegrindo, (...). Em
geral são artistas do Grupo Bernardelli dos quais (...) vários, aliás, (...) estimo
muito. O chefe do grupo, o Manuel Santiago [...] anda afirmando (...) que minha
pintura não é pintura (...). (...) o Santiago e Cia. enxergam numa tela só a 'pintura'
e pode ser que, de fato, em muitos quadros meus não tenha aquela exclusiva
preocupação de fazer 'pintura pura', quer dizer, harmonia de tons e cores, arte
pela arte. Não, não tem, até sou contrário a isto [...] pode ser que eu não seja um
verdadeiro pintor, como o entende o Santiago, porém é certo que em minhas telas
há vida, presença real, uma espécie de eucaristia. E é unicamente isto que quero,
e isto é arte verdadeira mesmo se não for verdadeira pintura [...]. Vida, e é isto que
quero na minha arte.10
Ao ler esses trechos do diário de Carlos Oswald, observo que, embora a história
da arte, hoje, já não seja compreendida como uma evolução em direção à
conquista da autonomia da arte, de uma arte pura ou qualquer outro fim
determinado, é verdade que houve um tempo em que os artistas assim
compreenderam a história da arte, e julgaram as obras de seus pares a partir
desses critérios.
Carlos Oswald foi muito sensível às mudanças de seu tempo, mas nunca abraçou
as idéias de uma arte pura, mais evoluída que a arte do passado. De fato, se a
comparação de Estudo de Reflexos com Messalina, num primeiro momento, pode
8
- Idem, p. 42.
- MONTEIRO, Maria Isabel Oswald. Carlos Oswald (1882-1971), Pintor da Luz e dos Reflexos.
Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2000, p. 197.
10
- Idem, p. 176-177.
9
7
induzir o espectador a identificar Carlos Oswald ao início da arte moderna no
Brasil, e Henrique Bernardelli a uma resistência tradicional, talvez em suas
intenções tenha ocorrido exatamente o inverso. Quando voltamos aos textos da
época de cada um dos quadros em foco, surge um Henrique Bernardelli
interessado em inovar e trazer modernidade para a arte brasileira, enquanto
Carlos Oswald aparece como um artista menos preocupado com inovações, ou
com a arte moderna.
Bibliografia:
ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES. Catálogo da Exposição Geral de
Bellas Artes. Rio de Janeiro, Typografia de J. Villeneuve, 1890.
ALVAREZ, Reynaldo Valinho; CAMPOFIORITO, Quirino; XEXEO, Pedro. A Luz
da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Centro da Memória da Eletricidade no
Brasil, 1994.
BOIS, Yve-Alain. A questão do pseudomorfismo: um desafio para a abordagem
formalista. In: RIBEIRO, Marília Andrés; RIBEIRO, Maria Izabel Branco (Org.)
Anais do XXVI Colóquio do CBHA, São Paulo, Outubro de 2006. Belo Horizonte:
C/Arte, 2007, p.13-27.
CAMPOFIORITO, Quirino. História da Pintura Brasileira no Século XIX. Rio de
Janeiro: Pinakotheke, 1983.
Catálogo da XX Exposição Geral de Bellas Artes. Rio de Janeiro, 1913.
GONZAGA DUQUE. Contemporâneos. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza,
1929.
LUSTOSA, Heloisa Aleixo (Coord.). Acervo Museu Nacional de Belas Artes.
São Paulo: Banco Santos, 2002.
MONTEIRO, Maria Isabel Oswald. Carlos Oswald (1882-1971), Pintor da Luz e
dos Reflexos. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2000.
Mostra do Redescobrimento: Século XIX. São Paulo: Associação Brasil 500
Anos Artes Visuais, 2000.
OSWALD, Carlos. Como me tornei pintor. Petrópolis: Vozes, 1957.
8
Henrique Bernardelli (1857-1936)
Messalina – c.1890
óleo sobre tela – 207 x 115 cm
MNBA – RJ
Fonte: http://columbus.gl.iit.edu/
9
Vida Fluminense. Rio de Janeiro, 8 de março de 1890, pp. 4 e 5
“Os homens do Dia”
XI
H. Bernardelli
É o heroe da exposição da Academia de Bellas Artes que o capricho
10
governamental ainda conserva fechada.
Elle ahi está com o seu grande quadro que provoca os mais ruidosos
applausos.
Hurrah! Por Bernardelli!
Assinado: Pstl
Fonte: Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro.
Carlos Oswald (1882-1971)
Estudo de Reflexos – 1912
óleo sobre tela – 76 x 58 cm
MNBA - RJ
Fonte: http://www.pr.gov.br/
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