Aspectos semióticos do empréstimo vocabular

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Aspectos semióticos do empréstimo vocabular
ASPECTOS SEMIÓTICOS DO EMPRÉSTIMO VOCABULAR INTERLINGÜÍSTICO
Resumo: O presente trabalho discute os processos de tradução de vocábulos entre línguas, bem como
procura esboçar uma tipologia dos mesmos, tendo em vista os mecanismos semióticos aí envolvidos,
particularmente do ponto de vista dos metassistemas conceptuais subjacentes, que constituem a estrutura
hiperprofunda dos sistemas semióticos pertencentes a uma mesma macrossemiótica. Analisa-se aqui
particularmente o empréstimo total (significante e significado) e o chamado empréstimo de tradução de
vocábulos, enquanto processos geradores de neologismos léxicos, com base nas interferências e interações
entre as visões de mundo subjacentes aos diferentes sistemas lingüísticos.
Palavras-chave: Produtividade lexical; empréstimo; conceptualização.
Introdução
O estudo dos processos de produção da significação e de transmissão e tratamento da informação
suscita questões extremamente interessantes, que têm constituído o alvo da atenção e das reflexões de
muitos semioticistas, notadamente nos últimos anos. Uma das questões mais inquietantes que se colocam
quando se estudam, por exemplo, os processos de transcodificação interlingüística — e portanto
intermacrossemiótica — é a que diz respeito à transmissão da informação em face da filtragem cultural
inerente a tal processo. Além da problemática concernente à tradução de textos de uma língua para outra,
a qual, por si só, já demanda ingentes esforços de pesquisa, existe um outro tipo específico de tradução,
cujo estudo interessa particularmente à lexicologia: a tradução de vocábulos, isto é, o empréstimo por
uma língua de um conteúdo pertencente a um signo de outra língua, cuja expressão original é substituída
por outra, já existente na língua receptora do empréstimo. Esse fenômeno é particularmente importante
para o estudo da dinâmica neológica da língua, devido à freqüência com que ocorre. No presente trabalho,
pretendemos discutir os principais processos de tradução vocabular interlingüística, tentando esboçar-lhes
uma tipologia, bem como os mecanismos semióticos envolvidos em tais processos, especialmente do
ponto de vista do metassistema conceptual subjacente a toda macrossemiótica.
Concepção dinâmica dos sistemas semióticos: o subsistema léxico
Seja o subsistema léxico do sistema semiótico cujo estudo mais particularmente nos interessa, isto é,
uma língua natural qualquer. Pode-se dizer que existem em tal subsistema três tipos de elementos léxicos:
elementos de alta freqüência e distribuição regular, pertencentes às diversas normas; elementos de
freqüência baixa, porém crescente, que tendem a integrar a norma, aos quais chamamos de neologismos;
e elementos de freqüência baixa e decrescente, que tendem progressivamente a deixar a norma: são os
arcaísmos. Assim, a todo instante, há novas unidades lexicais sendo criadas no interior do sistema, as
quais até então só possuíam existência virtual, e unidades antigas sendo abandonadas, retornando, desse
modo, ao estado de virtualidade, uma vez que podem, posteriormente, ser resgatadas por alguma norma,
além, evidentemente, das unidades que tendem a permanecer de forma mais estável na norma, exatamente
por estarem em constante estado de mudança, isto é, de adaptação às novas necessidades de comunicação,
o que, dialeticamente, lhes garante a conservação. Entretanto, também elementos léxicos estranhos a uma
determinada língua, pertencentes a outros sistemas lingüísticos, podem ser introduzidos naquela língua,
passando assim por um estágio inicial de neologicidade; podem, a seguir, na medida em que sejam aceitos
e constantemente reutilizados pela comunidade sócio-lingüístico-cultural que utiliza tal língua, ingressar
numa norma, ou em várias. Esse processo de adoção, por um sistema semiótico, integrante de uma
determinada macrossemiótica, de elementos provindos de sistemas semióticos pertencentes a outras
macrossemióticas, constitui o empréstimo intermacrossemiótico. No caso das línguas naturais, cumpre
assinalar que o objeto do empréstimo não é a lexia, unidade léxica a nível de sistema, mas sim o
vocábulo, unidade léxica a nível de norma. Segundo Barbosa (1981, p. 293-294), tal empréstimo pode ser
de três tipos diferentes: empréstimo total (significante e significado), empréstimo de significado (com
significante autóctone) e empréstimo de significante (com significado autóctone). Interessa-nos,
particularmente, estudar os dois primeiros tipos de empréstimo, do ponto de vista dos processos
semióticos de produção de significação (semiose) e de adaptação da nova unidade lexical à rede léxica da
língua, em particular tendo em vista os fenômenos que ocorrem ao nível da estrutura hiperprofunda dos
sistemas semióticos (metassistema conceptual).
É interessante notar que o empréstimo de significado pode ser sintagmático ou semântico, segundo o
plano da expressão desse neologismo seja resultante da combinação inédita de significantes já existentes
na língua, ou da reutilização de um significante já existente, e já portador de outros significados, como
suporte do semema alógeno. Como em ambos os casos temos a substituição do significante estrangeiro
por outro, autóctone, denominaremos ambos os processos empréstimo de tradução.
Mecanismos semióticos implicados nos processos neológicos de empréstimo total e de tradução
Sabe-se que a significação, enquanto função semiótica, isto é, relação de dependência entre um
plano do conteúdo e um plano da expressão, é uma relação intrassemiótica, que, portanto, não pode ser
transcodificada, ao passo que a informação, enquanto conjunto de recortes culturais operados sobre o
continuum amorfo semântico (Hjelmslev, 1975), pode ser tratada através de qualquer código-filtro.
Tais recortes dão origem a conjuntos de traços distintivos conceptuais denominados lexes,
subjacentes a todos os sistemas semióticos pertencentes a uma mesma macrossemiótica, e componentes
de seu metassistema conceptual. Assim sendo, dado o caráter cultural desse metassistema conceptual,
intimamente ligado à visão de mundo de uma cultura, resulta que a transcodificação intermacrossemiótica
é sempre parcial, uma vez que apenas parte da informação pode ser transposta de um sistema a outro,
havendo necessariamente perda de informação por um lado e ganho de informação por outro, embora a
substância semântica tratada pelos diversos códigos seja a mesma.
Com efeito, dado que cada elemento de uma estrutura não se define senão por oposição aos demais
elementos dessa estrutura, o significado de um vocábulo — o seu semema —, entendido como conjunto
de traços distintivos semânticos, ou semas, se inscreve numa rede de oposições que é o léxico da língua, e
que, em última análise, reflete e, ao mesmo tempo, reproduz a visão de mundo subjacente a essa língua e,
conseqüentemente, aos demais sistemas semióticos pertencentes à mesma macrossemiótica.
Por conseguinte, a transcodificação interlingüística de uma mensagem não traduz um significado,
mas sim um designatum, um sentido. O que pode ser traduzido é a substância do conteúdo, e não a forma
do conteúdo, razão pela qual nos cabe indagar sob que condições dois vocábulos, dois enunciados, e
mesmo dois textos, pertencentes a duas diferentes línguas, se equivalem semanticamente, a ponto de
podermos afirmar que ambos se traduzem mutuamente.
A grande contribuição de Pottier nesse sentido foi justamente a de postular a existência de um nível
conceptual, correspondente à estrutura hiperprofunda dos sistemas semióticos, e situado entre o nível da
percepção biológica e o nível da estruturação semiótica num código particular. O metassistema
conceptual, composto de um ‘léxico conceptual’ (conjunto de conceitos, ou lexes) e de uma ‘sintaxe
conceptual’, responsável pela formulação de enunciados conceptuais, os quais operam a análise
conceptual dos dados da experiência, é, como já dissemos, o nível em que se (re)constrói constantemente
a visão de mundo de uma determinada cultura. Assim, toda criação neológica é precedida de um processo
de conceptualização, o qual parte da percepção biológica do mundo referencial1, que constitui a
substância semântica amorfa, operando um recorte cultural dessa substância, e produzindo, assim, dois
objetos, a saber, um designatum, correspondente a um modelo antropo-cultural, e um conjunto de traços
distintivos conceptuais (os noemas), que é a lexe. Deste modo, a lexe configura-se como uma matriz
sígnica, isto é, uma entidade capaz de gerar grandezas-signos nos diversos códigos pertencentes a uma
mesma macrossemiótica, através de um processo denominado lexematização. Pode-se dizer, assim, que a
lexe é uma lexia em potencial.
Quando dizemos que diferentes culturas recortam o mundo referencial de forma diferente, estamos
dizendo que essas culturas conceptualizam diferentemente os dados da experiência. Assim, ao colocarmos
a questão do empréstimo de significado interlingüístico, nos deparamos necessariamente com a
problemática da equivalência semântica entre os termos que se pretende fazer corresponder. Dados o
português casa e o francês maison, observamos que os significantes de tais signos são diferentes, que,
também, seus significados são diferentes, e, sobretudo, as lexes que lhes subjazem são distintas. Por que,
então, se pode dizer que tais vocábulos se correspondem? É evidente que eles possuem uma intersecção
semêmica não vazia, vale dizer, possuem semas em comum. Entretanto, tal condição, embora necessária,
não é suficiente para garantir a equivalência de sentido entre eles. Com efeito, um sem-número de
sememas possuem semas em comum, sem que sejam, por isso, equivalentes (por exemplo, cão e gato,
são, ambos, seres materiais, animados, animais, mamíferos, etc.). Poder-se-ia, então, supor que dois
termos se correspondem quando possuem um núcleo sêmico comum. Infelizmente, tal hipótese também
deve ser abandonada quando se constata que o núcleo sêmico de um semema é um subconjunto de semas
do mesmo, cujo estabelecimento se dá através da oposição desse semema a todos os demais sememas de
seu paradigma. Em outras palavras, estando cada lexia definida por seu lugar na rede de oposições que é o
léxico da língua, seu núcleo sêmico sofre todas as coerções da estrutura particular dessa mesma rede.
Assim, as diferentes oposições em que entram, de um lado, a lexia portuguesa casa, e, de outro, a lexia
francesa maison, fazem que os respectivos núcleos sêmicos possuam, eventualmente, semas diferentes.
Por outro lado, casa, habitação e moradia possuem todas um mesmo núcleo sêmico em português, o que,
no entanto, não nos aconselharia a traduzir maison por habitação, numa frase como “ma maison a un
grand jardin” (“minha casa tem um grande jardim”), por exemplo.
Tendo em vista que a significação, enquanto função semiótica, é intranscodificável, e que a única
coisa que efetivamente pode ser transposta de um código para outro é a informação potencial amorfa, présemiótica, percebe-se que a tradução é um processo de equivalência a nível conceptual: “On peut avoir
entendu une conférence, se souvenir de son contenu, et avoir cependant oublié dans quelle langue
naturelle elle a été prononcée. La rétention mémorielle est d’ordre conceptuel, et réactivée, naturellement,
dans la langue la plus familière au sujet parlant. […] Le phénomène de la traduction d’une langue dans
une autre montre bien comment fonctionne ce schéma. Dans ce cas, la partie commune n’est plus le
message, mais la structure d’entendement. Un même sujet parlant agit d’abord comme récepteur du
message, puis après l’avoir compris, l’émet dans un autre code en langue naturelle” (Pottier, 1974, p. 2122). O mecanismo de tradução proposto por Pottier tem a seguinte configuração:
m1 → LN1 → Co → LN2 → m2, onde
m1 = mensagem em língua natural 1
m2 = mensagem em língua natural 2
LN1 = língua natural 1
LN2 = língua natural 2
Co = conceptualização
Portanto, o sujeito falante inicialmente decodifica a mensagem m1 em termos da língua natural LN1,
chegando, assim, a um esquema conceptual, o qual é, a seguir, codificado na língua natural LN2
(lexematização), resultando na nova mensagem m2, tradução de m1.
Para que possa haver a tradução, é preciso, portanto, que exista, entre ambas as línguas naturais, um
esquema conceptual comum. Ora, sendo a lexe e o enunciado conceptual exclusivos de uma dada
macrossemiótica, jamais encontraremos duas línguas LN1 e LN2 nas quais, dadas duas mensagens
(palavras, enunciados ou textos) m1 e m2, subjaza a ambas uma mesma conceptualização. Eis por que
entendemos que o mecanismo de tradução proposto por POTTIER deve ter a seguinte configuração:
m1 → LN1 → Co1 → Co2 → LN2 → m2
onde Co1 e Co2 são, respectivamente, as conceptualizações subjacentes às mensagens m1 e m2. Tais
conceptualizações devem ter, obviamente, uma intersecção não vazia, porém, mais uma vez, tal condição
por si só não bastará a uma tradução que se pretenda a mais perfeita possível. Será preciso que os
esquemas conceptuais Co1 e Co2 tenham, no mínimo, um núcleo noêmico comum. Esse núcleo noêmico,
constituído de noemas universais, isto é, não privativos de uma determinada cultura, corresponde ao
conceptus da semântica cognitiva de Rastier. Assim, podemos dizer que o conceptus, enquanto modelo
mental, está na intersecção dos núcleos noêmicos das lexes em questão. Se a condição de existência desse
núcleo noêmico comum não for satisfeita, a transcodificação será impossível. Contudo, as mais das vezes,
os conceitos intertraduzíveis possuem, a mais de um núcleo noêmico, outros noemas em comum.
Diremos, então, que a tradução será tanto melhor quanto maior for o conjunto intersecção entre os
conceitos traduzidos. É isso que nos leva a dizer que, na já mencionada frase francesa “ma maison a un
grand jardin”, a melhor tradução portuguesa para maison é casa, e não habitação, moradia, etc.
Visto que não há sinônimos perfeitos entre vocábulos de diferentes línguas, toda transcodificação
interlingüística se dá sempre em termos de uma paramorfia, e não de uma isomorfia entre as mensagens
intertraduzíveis. Isso se deve ao fato de que, mesmo quando dois sememas possuam um grande conjunto
intersecção, resta sempre um conjunto diferença considerável, composto de semas virtuais (virtuemas,
para Pottier), conotativos e associativos, e variáveis segundo o contexto, o que, aliás, garante a isotopia da
mensagem. Quando da transformação da lexe em lexia, no âmbito de uma determinada semiótica,
mediante o processo da lexematização, ocorre uma primeira filtragem, na qual toda informação potencial
não compatível com o tipo de tratamento informacional inerente ao código é bloqueada ou profundamente
modificada. A seguir, ocorre nova filtragem, em que o sobressemema — semema polissêmico da lexia —
sofre uma restrição sêmio-táxica em função de sua atualização num determinado universo de discurso,
ganhando, em troca, semas contextuais, específicos de um contexto discursivo determinado, convertendose, assim, em epissemema. É proveitoso insistir no fato de que, dada a situação particular de enunciação,
o contexto lingüístico, o universo de discurso considerado, a situação temática específica, dentre outras
variáveis discursivas, a tradução se dá sempre entre vocábulos, e não entre lexias. Assim, o processo de
transcodificação põe em jogo as possibilidades de compatibilização semântica entre epissememas, e não
propriamente entre sobressememas polissêmicos. A lexe, pois, enquanto lexia em potencial, constitui-se
em matriz de um feixe de vocábulos, cada um com sua acepção específica, monoisotópica. Embora a
redução sêmio-táxica, própria de cada atualização em discurso, se dê já ao nível da semiótica-objeto —
em nosso caso, ao nível lingüístico —, é válido supor que a lexe seja formada de subconjuntos noêmicos,
correspondentes às conceptualizações particulares de cada universo de discurso. Assim, dado o conceito
de estrutura, por exemplo, somos levados a pensar que o mesmo, enquanto feixe de traços distintivos
conceptuais, admita subconjuntos correspondentes às diferentes conceptualizações do objeto estrutura
nos diversos domínios da experiência (no domínio da engenharia, da geologia, da lingüística, etc.).
Quando uma língua, integrante de uma determinada macrossemiótica, e operada por uma
determinada comunidade sócio-lingüístico-cultural, efetua um empréstimo, quer seja ele total ou de
significado, toma simultaneamente emprestado um recorte cultural produzido por uma outra comunidade
sócio-lingüístico-cultural, instaurador e, ao mesmo tempo, vetor de uma visão de mundo própria daquela
comunidade, recorte este inserido num outro metassistema conceptual, vale dizer, numa outra rede de
oposições paradigmáticas. Assim, cabe perguntar até que ponto essa introdução de um elemento
ideologicamente estranho ao sistema não vem representar um fator de distúrbio ao mesmo.
Cada nova atualização em discurso de uma lexia já existente no sistema se dá de forma única, em
condições exclusivas àquele discurso e àquela situação de enunciação particular. Assim, a colocação de
uma lexia em combinatória inédita, no percurso sintagmático do discurso, provoca o surgimento de semas
contextuais, que, conjugados aos semas já integrantes de seu semema, podem dar origem a uma nova
função semiótica, a qual, por sua vez, pode ser recuperada pelo sistema, configurando o neologismo.
Quando, no percurso sintagmático do discurso, se produz um neologismo, tem-se, a nível
conceptual, a realização simultânea (na verdade, prévia, do ponto de vista crono-lógico) de uma nova
conceptualização, isto é, de uma nova análise dos dados da experiência.2
Por outro lado, quando se dá um empréstimo total (significante e significado), cria-se
automaticamente uma nova lexia, inicialmente monossemêmica, e, conseqüentemente, monoisotópica, e,
ao nível conceptual, surge uma nova lexe. Quando ocorre o empréstimo de significado, introduz-se no
metassistema conceptual o novo conceito, o qual, mediante um processo de semiotização, vai produzir, ao
nível semântico da língua, o surgimento de um novo semema. Este, por sua vez, vai ser integrado ao
sobressemema de uma lexia já existente, cuja polissemia fica, assim, aumentada. Mais raramente, um
empréstimo de significado pode dar origem a uma nova lexia. Isso ocorre quando a um significante já
existente na língua se atribui um significado importado, que não possua um núcleo sêmico comum aos
demais significados daquele significante.
De todo modo, o que se tem é a introdução, no subsistema semântico da língua, de um elemento que,
para integrar-se nesse mesmo subsistema, terá de sofrer um processo de adaptação que implica a filtragem
de semas incompatíveis com os dos demais elementos do subsistema, especialmente os virtuemas,
simultaneamente ao acréscimo de novos semas, necessários ao enquadramento dessa nova unidade
semêmica nos paradigmas semânticos (classemáticos) e sintáxicos (categoriais) da língua. Resulta daí a
criação de uma nova forma semêmica. Ocorre, entretanto, que muitos traços semântico-conceptuais,
embora incompatíveis, ou apenas parcialmente compatíveis com o novo sistema, não podem ser filtrados,
pois pertencem ao próprio núcleo noêmico da lexe; são, por assim dizer, o arcabouço daquele conceito.
Tais traços são necessariamente integrados ao metassistema conceptual, modificando-o.
Vejamos o que ocorre quando se dá o empréstimo de um vocábulo estrangeiro. O significante
(glossema) do mesmo pode sofrer adaptação imediata ao sistema fonológico da língua receptora do
empréstimo (por exemplo, latim natione → português nação) ou posterior (por exemplo, inglês football
/f»utbōl/ → português futebol /futeb»çl/). Pode, também, manter-se na forma original, provocando, então,
uma mudança desse sistema fonológico. Foi o que aconteceu em inglês com a introdução de vocábulos
franceses como point e vigne (inglês vine)3: o vocalismo inglês se viu acrescido de um novo ditongo, /oj/,
e o fonema /v/ passou a ocorrer em posição inicial, tendo sua distribuição alterada e entrando em novas
oposições. Semelhante processo ocorre, mutatis mutandis, ao nível semântico e conceptual. Vê-se, assim,
que, embora todo sistema semiótico esteja em constante estado de evolução, em virtude da permanente
tensão dialética entre as forças de conservação e de mudança que atuam sobre o mesmo, decorrente da
necessidade de dar conta da própria evolução social, tal evolução se dá de forma lenta e, mesmo,
imperceptível à consciência dos sujeitos semióticos. A recuperação, pelo sistema, da significação e
informação produzidas em discurso garante, através do metassistema conceptual, a auto-alimentação e a
auto-regulagem dos sistemas semióticos que operam numa mesma macrossemiótica, e,
conseqüentemente, a coerência e compatibilidade de todos os discursos produzidos por esses sistemas
entre si e em relação à visão de mundo da comunidade sócio-lingüístico-cultural que os utiliza. Já o
empréstimo, por uma macrossemiótica, de elementos provenientes de outras macrossemióticas provoca,
por vezes, uma mudança brusca dos sistemas semióticos aí operantes, com conseqüentes reflexos a nível
conceptual-ideológico, afetando a visão de mundo dessa comunidade. Em casos extremos, em que o
elemento introduzido seja totalmente estranho à visão de mundo do grupo cultural que o importa, tal
empréstimo pode levar à ruptura da identidade cultural desse grupo. Pense-se, por exemplo, no impacto
da introdução de objetos culturais como o rádio, a televisão, o álcool, em sociedades ditas primitivas, o
que tem levado, por sinal, à desintegração dessas sociedades.
Conclusão
No presente trabalho procuramos abordar, de forma muito geral, os principais aspectos do fenômeno
do empréstimo vocabular interlingüístico, particularmente na modalidade habitualmente denominada
empréstimo de tradução, destacando os processos semióticos aí envolvidos, sobretudo no que concerne ao
nível conceptual, correspondente à estrutura hiperprofunda dos sistemas semióticos. Procuramos,
também, estudar as interações e interferências entre os diversos sistemas semióticos lingüísticos, devidas
ao empréstimo de unidades lexicais, e suas implicações ao nível do metassistema conceptual, enquanto
lugar de produção e transformação da visão de mundo das comunidades sócio-lingüístico-culturais
usuárias de tais sistemas.
Tal ordem de indagações é, a nosso ver, relevante não apenas para os estudos semióticos e
sociossemióticos, como também — e principalmente — para os estudos e investigações no campo da
lexicologia e lexicografia, onde já não é mais possível empreender nenhuma pesquisa sem o recurso aos
subsídios teóricos fornecidos pela semiótica.
Referências bibliográficas
BARBOSA, M. A. (1981) Léxico, produção e criatividade. Processos do neologismo. São Paulo, Global.
HILL, A. A. (org.) (1974) Aspectos da lingüística moderna. São Paulo, Cultrix/EDUSP.
HJELMSLEV, L. (1975) Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo, Perspectiva.
POTTIER, B. (1974) Linguistique générale. Théorie et description. Paris, Klincksieck.
Notas
1. Por mundo referencial devemos entender não o mundo fenomênico, ontológico, cuja apreensão
imediata (isto é, não mediatizada) nos é, aliás, impossível, mas sim o plano de expressão da semiótica
natural.
2. Na verdade, só não ocorre uma nova conceptualização quando o neologismo se restringe ao
significante (quando se cria, por exemplo, uma nova denominação para um conceito já existente).
Entretanto, tal circunstância é relativamente pouco freqüente, visto que a grande maioria das criações
lexicais visa exatamente dar conta de novos recortes culturais.
3. Cf. Kurath, apud Hill et al. (1974, p. 76).

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