entendendo o peixe de Boiçucanga

Transcrição

entendendo o peixe de Boiçucanga
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CARAPIRÁS
ENTENDENDO O PEIXE DE BOIÇUCANGA
Carapirá é o nome que o caiçara dá para o
Alcatraz, uma das espécies de aves marinhas que
freqüentam Boiçucanga.
Passam grande parte de seu tempo no ar, seja
plainando
ou
percorrendo
grandes
distâncias,
voando muito alto.
São excelentes pescadores, capazes de enxergar o
peixe de muito longe e descer repentinamente em
vôos razantes para apanhá-lo na superfície da água.
Apelidamos o texto de CARAPIRÁ porque, lá do
alto, ele é o primeiro a saber do peixe.E porque é
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grande companheiro dos pescadores e dos barcos nas
andanças mares afora.
Pescada - Oveva - Roncador - Marialuiza Betara - Bicuda - Betaraçaba - Goete – Cascuda –
Cam-bucu - Banana - Branca - Amarela - Tortinha –
Lin-guado - Corvina - Gordinho - Porquinho - Bagre Sari - Gunguito - Guaivira - Enchova - Espada - Galo
Palumbeta - Carapau - Xarelete - Xaréu - Olhete Bonito - Bacoara - Sororoca - Cavala - Dãodão –
Sardinha - Sabelha Mole - Tainha - Parati - Barbudo
- Garoupa - Sargo - Mero - Salema - Pampo Caranha – Mirasselo - Currupio - Jaguareçá Maimbá – Tiniúna - Sarambiguara - Garabebê Gudião – Frade - Caramuru - Robalo - Pirajica Panaguaiú - Timbale - Agulhão Bandeira - Voador Baiacu - Varanda - Prejereba - Barbudo - Cambeba Cação Anjo - Caçoa
Sanhapê - Babaqueiro -
Tintureira - Anequim – Ra-budo - Trepepô - Machote
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Cabeçachata - Raia Chita -Raia Jamanta – Raia
Manteiga - Emplastro .
...Tantos nomes de peixes da região... e pensar
que até 1987 quando eu vim morar em Boiçucanga,
eu acreditava que aqui só dava uns dez tipos de
peixe ...
Sou paulistana e durante muito tempo só
conheci praias muito urbanizadas como as de
Santos. Conheci Boiçucanga em 1977 e durante dez
anos vim cada vez mais me aproximando, de cabeça
e de coração.
Desde a primeira vinda, alterno
surpresas (com o que há de mais genuíno) com
preocupações (com o tanto que há de ameaça).
Depois que passei a morar aqui, participo mais
intimamente do convívio com os caiçaras. Com
algumas pessoas tenho uma proximidade familiar,
outras conheço por relações profissionais.
Sou
Repórter Fotográfica, o que me proporciona travar
conhecimentos bem variados. Nos primeiros anos
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como moradora fui professora no curso Colegial da
E.E.P.S.G. Valquir Vergani de Boiçucanga, único
colegial da Costa Sul de São Sebastião.
À medida em que venho aprendendo tantas
coisas sobre a história local, vem aumentando dentro
de mim um sentimento, uma necessidade e dever de
informar às pessoas que vêm um pouco do que
aprendi....
A Pesca já foi tudo por aqui. Hoje, ela ainda está
viva para alguns, mas seriamente ameaçada.
Para quem não conhece: Boiçucanga é uma vila
do litoral norte do estado de São Paulo, 60 Km. ao
norte de Bertioga, 35Km. ao sul de São Sebastião, de
cujo município faz parte.
Este trecho do litoral é caracterizado pela
abundância
de
montanhas
próximas
ao
mar,
entrecortadas por praias dos mais variados aspectos.
Em torno de cada praia cresceu uma vila e a maior
delas é Boiçucanga.
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Historicamente, sabe-se que neste lugar houve uma
aldeia indígena, citada no livro do historiador Hans
Staden, um prisioneiro dos índios que conseguiu
retornar à Europa, no século XVI. Tupinambás e
Tupiniquins travavam batalhas; o que restou foram
sambaquis enterrados em algumas áreas e o nome,
Boiçucanga. Aglutinação de M”BOIA (cobra), AÇÚ
(grande) e CANGA (cabeça),entendida por alguns
como "cobra da cabeça grande"e por outros como
"cabeça da cobra grande,a cordilheira vista do
mar".Os poucos índios remanescentes na região são
Guaranis, vindos em épocas mais recentes.
No século passado Boiçucanga era uma fazenda
de café, movida a escravos, que pertencia a uma
família portuguesa de nome Santana. Com o fim da
escravidão, algumas famílias de colonos agricultorespescadores vieram se estabelecendo na área. Os
primeiros foram os Ledo, depois Gurupava, Rodrigues, Furtado, Ferro. Vinham das praias vizinhas,
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inclusive da Praia Brava, cujo acesso é difícil até
hoje. São descendentes de portugueses, índios e
negros e se auto-denominam caiçaras.
A fazenda foi vendida aos Fernandes e Pontes,
de Santos, que nunca moraram aqui, mas mantinham sempre um funcionário responsável por tudo
no local.Para isto chegou Quintiliano de Matos com
sua família, em 1915. Natural de São Sebastião, ele
já conhecia bem a região, pois trabalhara na
instalação das linhas de telégrafo.
As estradas de então eram trilhas que se
percorria a cavalo ou a pé. A alternativa era o mar e
nessa época apareceram na região as primeiras
canoas de voga. Eram canoas enormes, com vários
remos duplos e duas grandes velas: o pano (quadrado) e a mezena (triangular).
A família Matos
chegou numa canoa de voga, trazendo muitas
novidades, como redes de pescar cação. Moravam na
"casa dos escravos", uma casa grande perto do rio e
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da praia, que foi sede da primeira capela de Nossa
Senhora da Conceição, abrigou a primeira escola e
de onde saíram filhos ilustres, como seu Hilarião,
que foi Inspetor de Quarteirão, Capataz da Capitania dos Portos de São Sebastião e durante décadas
assistiu enfermos de todas as vilas próximas com os
conhecimentos de homeopatia que herdou de seu pai.
Nos anos 40 apareceram os barcos de cabotagem. Eram barcos grandes, motorizados, que passavam semanalmente percorrendo a linha Santos-Ubatuba. Transportavam passageiros, animais e mercadorias: banana, farinha de mandioca, peixe seco na
ida; e sal, tecidos, remédios, tintas, na volta. Só não
transportava o peixe fresco - este continuou sendo
transportado nas canoas de voga até o porto de
Santos, onde os pescadores daqui também faziam
parte da Cooperativa de Pesca e vendiam, sem
dificuldade, boas quantidades de peixe. Embora se
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vendesse banana e farinha, o peixe era o fundamento
da economia local.
A vila crescia. As pessoas se alimentavam
basicamente de peixe, farinha de mandioca e
banana,
mas
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criavam
porcos,
patos,
galinhas. As plantações se espalhavam, subiam
morros, entravam pelos interiores, os caiçaras
dominando suas roças, marcando suas posses.
Plantava-se mandioca, abóbora, batata-doce, arroz,
feijão, milho, maxuxo (xuxu), café, cana e muita banana prata, nanica e São Tomé.
Muitas famílias tinham sua própria casa da
farinha, onde produziam farinha de mandioca; era
um processo demorado, que exigia o trabalho da
família toda por dois dias pelo menos.
Os caiçaras visitavam os compadres das vilas
vizinhas nas ocasiões de festas religiosas, Folias,
procissões, casamentos. Iam e vinham de canoa ou a
pé. Andava-se muito.
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Por volta de 1960 chegou a estrada para carros;
de terra, obviamente. Com ela vieram os primeiros
carros, o primeiro armazém (de Bruno Scarpa), o
primeiro coletivo (de Josef Benes, o "Sopa"), os
primeiros veranistas (como Walkir Vergani, que
comprou muita terra). A energia elétrica veio com
um gerador que funcionava somente até às 22:00 h..
Na pesca houve a presença do Padre Alberto, um
francês que morou em Boiçucanga por muito tempo e
tentou organizar os pescadores enquanto cooperativa
local; esta não vingou, mas o padre marcou uma
nova era:
motorizou as canoas e os pescadores
ficaram mais ágeis.
O
número
de
veranistas
foi
crescendo
lentamente, graças à precariedade da estrada, já que
estamos numa região de muita chuva. Os anos 70
ficaram marcados pela chegada dos campistas,
turistas com muita disposição e pouco dinheiro. Por
volta de 79, 80, acampar virou moda. Nos feriados de
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verão a praia ficava lotada de barracas, foi
aparecendo muita gente descuidada, sujavam a praia
e transgrediam as regras da convivência pacífica a
que o caiçara estava acostumado. Foi preciso proibir
o camping livre.
O começo dos anos 80 foi também a época das
primeiras preocupações ambientalistas. Por volta de
84 chegou a Polícia Florestal; quem aguardava sua
chegada para defender a Natureza local logo se
decepcionou, pois os primeiros reprimidos foram os
pescadores que não portavam licença no barco,
canoeiros e marceneiros que já não podiam fazer uso
das madeiras locais, agricultores que já não podiam
roçar a própria plantação. Hoje ninguém quase
planta mais, um pouco devido à repressão, mas
muito, com certeza, porque a vida ficou bem mais
fácil comprando os produtos nas mercearias e porque
as terras foram vendidas. A Polícia Florestal, por
outro lado, está empenhada em reprimir predadores
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de verdade, já entende melhor o Caiçara, esse povo
que sempre soube viver em harmonia com a
Natureza. Algumas proibições foram aceitas e
incorporadas; por exemplo, ninguém mais pensa em
sair para pescar tartarugas.
A década de 80 foi também a da chegada do
asfalto. Aos poucos foram asfaltando as piores serras
e a balsa de Bertioga foi substituída por estrada, com
a ponte sobre o rio Itapanhaú. Em 1985, finalmente,
o asfalto se completou. Não sobre a rodovia planejada, para a qual foram feitos diversos viadutos que
hoje estão perdidos no meio da mata. Mas hoje podese vir de São Paulo em cerca de duas horas. Antes
eram quatro horas de chão, mais os atoleiros, mais a
fila da balsa ... era imprevisível.
As transformações são cada vez mais rápidas.
Como em todos os belos lugares litorâneos do mundo,
o Turismo é hoje a atividade principal. A população
residente em Boiçucanga é de aproximadamente
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4000 pessoas, sendo que os caiçaras devem somar
500 indivíduos. Além dos veranistas, hoje se assiste
a um processo intenso de migração de pessoas
oriundas de regiões mais carentes. Em Boiçucanga,
mais do que nos outros bairros de São Sebastião,
alguns
caiçaras
resistem
em
suas
atividades
tradicionais, a maioria na Pesca.
Hoje o turista chega aqui num repente, encontra
bonitos hotéis, restaurantes requintados, lanchonetes, sorveterias ... aí vê o pescador vindo da praia,
trazendo o peixe no carrinho de mão e se espanta
com o preço do peixe: "Como é que um peixe que
ainda nem foi pro gelo, não viajou quilômetros pra
cidade grande, não foi revendido do transportador
pro mercado, daí pra peixaria, como pode esse peixe
custar quase o preço de São Paulo?"
Na verdade ele não sabe que o peixe de São
Paulo foi morto há mais de um mês, arrastado no
fundo do mar durante horas com toneladas de outros
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peixes, já foi congelado e descongelado no limite
mínimo de qualidade. E este peixe que vem passando
acabou de sair de um mar bem limpo e ainda está
com sua qualidade máxima. E além disso, o pescador
que vem trazendo este peixe encontra cada vez mais
dificuldade pra continuar trazendo.
Para entender melhor os peixes de Boiçucanga,
vamos saber através de Xixico quais os tipos de
pesca que se faz ou se fazia em Boiçucanga. Os tipos
que ele conheceu e os que soube pelas histórias que
seu avô contava.
Xixico (Celso de Souza Filho) é um boiçucanguense cujo bisavô saiu de Ilha Bela e escolheu
morar em Boiçucanga; ele era do tempo em que ia-se
com os amigos até a ilha de Alcatrazes, a remo, na
aventura de buscar um peixe que não tinha por aqui,
como o cherne.
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O avô, Benedito Rodrigues, pescou de todos os
jeitos que se pescava por aqui e também no litoral
sul, na Praia Grande, com barcos grandes que
arrastavam redes puxadas por bois na praia.
Os irmãos, os tios, os primos, uns mais, uns
menos, estão todos envolvidos na pesca. Xixico
pescou profissionalmente desde os nove anos de
idade, em 1975, até 1991, de quando vem trilhando
outros caminhos.
Ele se lembra que durante sua infância o
envolvimento das pessoas com o mar era muito
maior, mas sempre relacionado com a pesca,
enquanto hoje é mais com o banho de mar. Naquela
época toda família tinha uma canoinha e mesmo os
pais que trabalhavam em terra iam pescar no fim da
tarde. Os filhos tinham o encargo de ir, mais cedo,
pegar um camarão no rio pra fazer de isca. Às vezes
iam pescar de linha no Caraguatá, corricar uma
Espada ou largar uma redinha de espera.
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Ainda pequeno, Xixico foi ganhar dinheiro
pescando cação com Jair, depois arrastando camarão
com Dami, pescando de espinhel com o tio Nino,
caceando com Carioca e Anisio, trabalhando nos
cercos de Filioca, de Zé Banana, de Dito Rita trabalhou com todos com quem teve oportunidade.
Depois veio a própria canoa, as pescadinhas, o barco,
os camarões, embarcou até na pesca de arrastão.
É com muito amor que fala da pesca e dos peixes:
A PESCA EM BOIÇUCANGA
"Muita gente pensa que pescar é só ir ali no
mar, largar uma rede e voltar mais tarde para
colher os peixes. Pescar exige conhecer o mar, os
ventos, as nuvens, as correntezas, o sentido das
águas, os hábitos de cada peixe, os pesqueiros de
cada espécie. E ter a rede certa, o anzol adequado,
a isca especial, o barco de acordo. E arriscar.
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Boiçucanga é uma praia de tombo, voltada para o
sul, um porto excelente para pequenas embarcações.
O lado do rio, a Barra, é o lado mais calmo. No lado
sul da praia, que chamamos de Canto, o mar é aberto
e agitado.
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Em dia de onda alta, é preciso esperar o "jazigo"
para sair ou chegar sem virar a canoa. Para entrar
ou sair do rio de barco, deve-se obedecer o ritmo das
marés. Antigamente o rio era bem mais fundo, só se
atravessava de canoa. Nos anos 70, quando cortaram
muito morro lá para dentro para fazer viadutos, o rio
foi trazendo muita terra e mudou. Agora o pescador
tem que ficar atento pra não perder a hora da maré
alta, se não, fica sem ir pescar.
A costeira entre a praia de Boiçucanga e a praia
Brava é cheia de recortes e pequenas enseadas boas
para se pescar. Atravessando o rio, logo se está na
Pontinha. Segue-se o Pesqueirinho, o Saco do Bolo, a
Poimbéba, o Saco da Banana, o Caraguatá, o Ribeirão d’Água, a Ponta do Calhéu, a Itaboca ou Limo
Verde, onde há a Toca das Andorinhas, depois a
Ponta do Cavalo, em frente à qual há uma Lage.
Depois já é a Praia de Fora, que faz parte da Praia
Brava
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O Saco da Banana é o lugar de água mais calma,
por isso é o único lugar onde se encontra Musarrat,
um molusco saboroso, que vive enroladinho num
caramujo que é um cone prateado.
A costeira do lado de Camburi tem águas
agitadas e é muito boa pra Marisco.
O Parcel de Boiçucanga fica na direção do
Calhéu, que é a ponta mais avançada da costeira.
Parcel é uma região de pedras, submersas, mas de
pouca profundidade (varia de um a quatro metros).
Quando o mar está agitado, a cabeça do Parcel fica
visível, pois ali o mar espuma. Quando está calmo,
temos que localizá-lo usando como referência a
aparição da Ilha das Couves por trás dos Gatos.
As águas correm a Leste ou a Sul. Quando está a
Leste, a água corre do Canto pra Barra,está mais
clara e é bom pra capturar peixes de passagem.
Quando acontece o Vento Leste, aquele que os
surfistas chamam de Terral, suja a água, que passa
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a correr para o Sul, ou seja, da praia para fora. Nos
tempos em que se passava Picaré, o Vento Leste ou o
Lestado era sinal de peixe na praia. Quando
começava a soprar o vento a gente se reunia pra
pegar Tortinhas, Dãodão, Sabelhas.
Águas a Sul é bom para peixes de fundo. Geralmente no inverno as águas são mais agitadas e é
muito melhor pra pesca. Se a água está muito clara,
o peixe enxerga a rede e desvia.
Quando as águas estão muito calmas, até mesmo
os peixes de passagem estacionam sobre o parcel,
que é onde tem mais alimento. Se as águas começam
a se agitar, eles saem fora e acabam vindo em
direção à praia.
O pescador sabe que quando começa a vir muito
peixe ou camarão é sinal que o tempo está ameaçado.
Se Espadas e Raias, que são de fundo, ficam alvoroçadas e começam a aparecer saltando fora d’água, é
sinal de que o tempo já está mudando. Se Toninhas
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(golfinhos) ou Botos (maiores) se aproximarem, é
sinal de mau tempo.
O pescador deve olhar sempre no horizonte para
saber dos ventos antes de sua chegada. Se ele avista
no horizonte um "capelo" de nuvens - um paredão de
nuvens paralelas ao mar, se deslocando por igual - e,
àcima de sua cabeça vê nuvens passando bem alto e
em velocidade, sabe que é um vento forte chegando.
Se for à noite, vê que está "fuzilando" rente ao mar,
isto é, relampejando.
No verão, costuma vir vento Noroeste. Vem da
direção d'As Ilhas, repentinamente. Em questão de
meia hora, chega com força total, o capelo já
disperso. Dura mais ou menos uma hora. Às vezes
deixa chuva, mas o mar volta a ficar calmo.
No inverno costuma vir o Sudoeste. Vem da
direção dos Alcatrazes. Demora horas para chegar.
Permanece de três a quatro dias, o mar fica grosso,
às vezes causando prejuízos, estragando redes.
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Se as águas estão bem calmas, é legal passar a
noite sobre o Parcel, numa canoa, pescando de linha.
Se o mar está um pouco agitado, tem muita
correnteza sobre o parcel, melhor é pescar abrigado
junto à costeira. ou em volta de uma das ilhas. A
Ilha dos Gatos, na direção da Praia da Baleia, é a
mais próxima. A Ilha das Couves e As Ilhas ficam na
direção da Barra do Saí, sendo que As Ilhas é o
melhor abrigo que temos na costa.
Às vezes larga-se a rede de espera junto à
costeira. Ribeirão D'Água e Itaboca são bons lugares
para capturar Enxovas e Bonitos, mesmo com águas
calmas.
Quando o mar está correndo mais, é bom colocar
a rede de espera perto da praia. No inverno se usa
colocar a rede em forma de gancho, muito bom pra
recepcionar Sororocas.
Ninguém tem um ponto fixo pra essas redes. O
pescador planeja um lugar, que ele considera
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propício pra ocasião. Se já estiver ocupado, paciência, procura outro. Pontos fixos só os dos Cercos, que
estão em três pontos estratégicos de passagem de
peixes. Atualmente há um Cerco bem na frente do
rio, na direção da Pontinha, um no Pesqueirinho e
um no Saco da Banana.
Os peixes vêm todos do Sul, subindo a costa do
Brasil. A exceção é o Xarelete, que vem do Norte,
acompanhando correntes de águas quentes.
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OS TIPOS DE PEIXE
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PEIXES DE PASSAGEM
Também chamados de peixes de Comilação, são
espécies que andam em cardumes, perseguindo o
Comedío.
Comedío são cardumes de peixes miúdos que se
deslocam rapidamente, na superfície. São sardinhas
miúdas, manjubinhas e "macarrão", um peixinho
fininho e branco.
Quando
um
cardume
alcança
o
Comedío,
acontece a "comilação", que produz um "sarceiro" na
superfície do mar. De longe se pode ver a água
agitada e é possível cercar o cardume, passando em
volta com a canoa enquanto se larga a rede. Às vezes
o comedio vem fugindo do peixe e acaba pulando na
areia.
No geral, os peixes de comilação são peixes de
pele, isto é, sem escamas, como a Bacoara (ou Serra),
o Bonito, a Sororoca (ou Sarda) e a Cavala, que são
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parentes do longínquo Atum e aparecem mais no
inverno, assim como o Galo, a Palumbeta, a Guaivira, o Xaréu e seus parentes de verão: Carapau,
Xarelete e Xareletão.
Os
Peixes
de
Passagem
são
os
maiores
freqüentadores do Cerco e das Redes de Espera - ou
Redes de Superfície.
Enxovas e Espadas aparecem mais no inverno e
se alimentam tanto na superfície, fazendo comilação,
como no fundo. Podem ser apanhadas de todo jeito:
Cerco, Rede de Espera, de Fundo ou no Corrico.
PEIXES DE FUNDO
Corvinas e Pescadas são peixes que andam em
cardumes mais no fundo, atrás do camarão.
Aparecem mais no verão e são pegas nas Redes de
Fundo ou no Arrasto.São espécies de Pescada:
Bicuda,
Oveva,
Betaraçaba,
Betara
Roncador,
ou
Perna
Maria
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de
Luiza,
Moça,
Goete,
Tortinha,
Pescada
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Cambucu,
Pescada
Branca,
Pescada Banana, Pescada Amarela e Pescada
Cascuda.
Outra espécie que vem no verão, e no fundo, é o
Porquinho, um peixe miúdo que tem um couro
especialmente grosso.
O Linguado é o que chamamos Peixe de Lama.
Anda rente ao chão, mas mais longe da praia. Vem
mais no arrasto, nas vezes em que se passa mais
fora.
O Gordinho é típico do inverno, parente do Galo.
Também anda de cardume, só que no fundo. Vem
muitas vezes no Arrasto.
Inverno também é tempo de Bagres: Bagre
Cabeçudo, Bagre Sari e Gunguito, uma espécie
miúda e mais rara. Andam rente à lama e são pegos
no Espinhel, como alguns cações. O Bagre tem um
ferrão que exige muito cuidado ao pegá-lo, pois
machuca pra valer.
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O Cação Anjo, o Viola, o Babaqueiro, o Trepepô,
o Martelo, o Sanhapê e a Caçoa são espécies de
Cação que andam mais no fundo do que na
superfície. Os menores andam em grupos mais
numerosos. São pescados no Espinhel e nas redes de
Fundo e quase nunca entram no cerco. Machotes e
Cambebinhas aparecem nas redes de Fundo e às
vezes nas redes de superfície. Os Cações mais
perigosos como o Tintureira, o Anequim, o Rabudo e
o Cabeça Chata andam mais fora, longe de nossa
costa e são raros por aqui. A diferença entre Cação e
Tubarão é simples: quando você come, ele é Cação;
quando ele te come, é Tubarão.
As Raias também são de Fundo. Por aqui
aparecem Raias Jamanta, Raias Chita, Raias
Manteiga e uma raia miúda que chamamos de
Emplastro. A Raia Jamanta é enorme, como sugere o
nome; é azulada e tem cauda longa, sem ferrão. A
Raia Chita é também azulada, mas pintada de
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branco em cima e tem um ferrão perigoso na cauda.
A Raia Manteiga é menor, pesa de 5 a 10 Kg e é mais
gostosa; é amarelinha e também tem ferrão na
cauda; aparece no Cerco, geralmente no inverno.
O Emplastro se pega quase sempre no arrasto de
camarão, às vezes na Rede de Fundo.
PEIXES DE PEDRA
São peixes que andam sós ou em pequenos
grupos, habitam muitas vezes territórios fixos -tocase se alimentam de polvos, siris, guaiás, mariscos,
caranguejos, camarões, algas.
São basicamente pescados na linha ou no
Mergulho.
A Garoupa é o peixe mais apreciado. A espécie
local é marrom, diferente das do nordeste e chega a
pesar 25 Kg. No frio quase não sai da toca, portanto
para nós é um peixe de água quente. Depois de pescada, às vezes demora horas para morrer.
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Satiro, Adijute, Crisante e Zé Banana vindo do cerco com Méro
de 230kg.
São parentes da Garoupa: a Caranha, o Méro e o
Mirasselo. A Caranha é enorme e rara, e, ao contrario da Garoupa, aparece no inverno. O Méro também
pode ser muito grande, pesando de 50 a 300 Kg.
Aparece no verão, geralmente em par. O Mirasselo
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também é de verão. É chamado também de Badejo,
mas é uma espécie menor do que os Badejos que se
come nos restaurantes. Come bichinhos e algas das
pedras e sua isca predileta é camarãozinho de rio, de
preferência ainda vivo.
Existe ainda um outro parente da Garoupa,
felizmente raro. É miudinho, mas muito perigoso: o
Currupio. Ele é cheio de lanças fininhas, como
alfinetes, que contém um veneno. Se alguém,
desavisado, o segura, basta uma única ferroada para
ter várias horas de indisposição.
O Sargo, ou Salgo, é o peixe mais populoso
atualmente. Um peixe médio chega a pesar 7 kg. Cai
raramente no cerco, mais fácil é capturá-lo na linha
ou no mergulho, principalmente à noite, quando é
menos esperto. Existe Sargo de Beiço e Sargo de
Dente e são seus parentes a Salema, o Jaguareçá e o
Maimbá.
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A Pirajica é um peixe que se alimenta
principalmente de algas e aparece no Cerco ou na
Rede de Espera principalmente no inverno, em dias
de mar grosso. Com o mar mexido as algas se soltam
e a Pirajica vem atrás. É um peixe de sabor e aroma
muito fortes, nem todos a apreciam, mas é o
preferido de muito pescador!
Pampo,
Sarambiguara,
Garabebê,
Tiniúna,
Gudião são outros tipos de peixes de nossas pedras.
Cherne e Vermelho Chiova são peixes de águas
profundas, típicos de Alcatrazes; por eles nossos
bisavós enfrentavam o alto mar a remo.
Frade é um peixinho colorido, azul e amarelo,
que consideramos ornamental. Não se come, não se
pesca, por respeito.
Caramuru (ou Moréia) é um peixe-cobra que se
pega nas pedras. Não é nada comercial, mas é de
grande valor para o caiçara que aprecia comê-lo seco.
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OUTROS PEIXES DA REGIÃO
O Robalo do mar, que é amarelo e chega a pesar
30 Kg., anda em cardume e geralmente no fundo,
mas às vezes entra no Cerco. É muito encontrado no
mergulho. É um peixe típico de águas limpas e gosta
de ficar em boca de barra, isto é, em lugares onde o
rio deságua.
O Agulhão Bandeira é um peixe muito grande,
tem nadadeiras como asas e um bico pontudo.
Costuma vir no inverno, como seu parente menor, o
Timbale. Menor ainda é o Panaguaiú ou Agulhinha,
que passa no verão, em cardume e costuma cair no
cerco. Voador é o parente sem bico; quando ele começa a aparecer muito, pulando fora da água,é sinal de
águas claras.
Varanda é um peixe mais solitário que aparece
pouco, nas redes de espera; ele tem tanta espinha
quanto uma Traira de rio, não presta para comer.
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Prejereba é um peixe de mar aberto, vem na
superfície e costuma entrar no Cerco. É um peixe
solitário, de proporções médias.
Baiacu é um peixe curioso. Quando é ofendido,
ele se infla instantaneamente, vira uma esfera cheio
de pontas como espinhos grossos.
O Parati e a Tainha são parentes, mas não são
da mesma espécie. Nascem no rio, quando estão com
ovas se deslocam em cardumes, migrando para o
norte pelo mar e quando está na época de desovar
entram num rio. Ao contrário dos outros peixes, que
têm bucho, Paratis e Tainhas têm moela, como as
aves. Alimentam-se de limo, algas, cascalhos e ossos.
É comum abrir uma tainha pra limpar e encontrar
areia e pedrisco. Outro parente deles é o Barbudo,
mas não entra nos rios.
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OS TIPOS DE PESCA
PESCA DE LINHA
É a pesca mais simples que tem. O caiçara nunca
precisou de carretilhas. Pesca só com a linha, na
qual pode amarrar vários anzóis. A garoupa é o peixe
mais cobiçado pela pesca de linha. Em noites de
verão, quando o mar está muito calmo, lá vai o
pescador na canoinha mergulhar suas iscas cuidadosamente escolhidas; podem ser de sardinha,
camarão ou mesmo de polvo. Com a pesca de linha
também de dia, pode-se corricar uma enchova ou
uma espada. Neste caso, joga-se a isca acompanhada
de um pequeno objeto que possa lembrar um
peixinho, com o barco em movimento. Ou ainda, sem
barco, pode-se pescar na costeira, em cima das
pedras, segurando um caniço (vara de bambu).
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AS REDES
O pescador Satiro arrumando a rede
Antigamente as redes eram tecidas por aqui, com
fio de algodão. Os cabos eram feitos com corda de
Imbira, trançados com ajuda de uma roda chamada
Cambixo. Atualmente se compra cabos e panagem de
rede tecida de nylon, industrializados.
A rede de algodão é mais forte, segura mais os
peixes maiores. A rede de nylon é mais frágil, se
rompe facilmente e o peixe mais forte escapa. Mas
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39
captura mais peixe porque é menos visível. Além
disso, pode ter uma malha mais fina e é mais leve.
Compra-se os panos de malha na quantidade
desejada, cabos, chumbos na medida, "cortiças" de
isopor e se entralha a rede no tamanho planejado.
É muito importante que a rede seja bem
entralhada. Com a ajuda de uma "tabuleta" padronizando o intervalo, vai-se prendendo a malha ao
cabo com "arcalas" feitas com fio de algodão. Pode-se
entralhar "duas a uma" ou "duas a duas", isto é,
duas malhas para cada arcala, de modo a deixar a
rede "morta", não esticada. Se o pano da rede ficar
esticado, o peixe bate e volta, não enleia.
Depois se emenda "cortiças" no cabo de cima e
"chumbos" no cabo de baixo, ambos já presos à rede
pelas arcalas. Antigamente se usava como cortiça
alguns pedaços de madeira bem leves, provavelmente Caxeta. Para chumberar, se usava pedras
amarradas com cordas ou se confeccionava pesos de
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cimento. Hoje há um cabo especial, mais liso, que se
pode abrir e prender dentro os chumbos, que já são
vendidos na medida.
Arzelha é o encontro do cabo de cima com o de
baixo. Das arzelhas saem os cabos que prendem os
"ferros" (âncoras) e dos "ferros" saem cabos que vão
para as bóias.
Nossos "ferros" são confeccionados
com cimento, canos de PVC e ferros de construção.
As bóias, que devem ser vistas de longe para se
localizar as redes, são pedaços grandes de isopor com
uma vara alta, de bambu, segurando uma bandeira
de plástico preta. Embaixo do isopor há um
contrapeso para manter a bóia na vertical.
Às vezes pode-se "engaçar" várias redes, juntar
uma rede na outra, economizando-se "ferros" e bóias.
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TRESMALHO de ESPERA
Ou REDE de SUPERFÍCIE
É uma rede que se "larga" perto da costeira de
preferência onde o mar é mais agitado e passa mais
peixe. Pode pegar tanto os peixes de passagem que
passam rente à costeira - enchova, sororoca, bonito -,
como pode pegar os peixes de pedra, que moram por
ali - pirajica, salgo, garoupa.
Uma Rede de Espera tem até cinco braças de
altura (uma braça é a medida de um homem de
braços abertos). É bem encortiçada e leve no chumbo, para ficar estendida na vertical, mas rente à
superfície. O cabo do ferro mais próximo à costeira
tem que ser fino e frágil. Se vier mau tempo ele
arrebenta e a rede “sai para fora”. O cabo de fora tem
que ser capaz de sustentar, sozinho, a rede toda. Se o
pescador tiver que colher a rede com mau tempo, é
bom estar mais afastado da costeira.
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Pescador indo largar o tresmalho
REDE DE PESCADA ou REDE DE FUNDO
É a maior fonte de renda de muitos pescadores
de hoje, superada somente pelo cerco. A pescada é
um peixe muito procurado pelo "povo de fora". Para o
caiçara a pescada é apenas um peixe que pode ser
consumido
mesmo
quando
se
está ferido ou
indisposto.
As redes de pescada têm malha fina e não são
muito grandes, têm uma braça e meia de altura, por
isso não são muito caras e por serem "largadas"
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próximo à praia são menos roubadas (mas houve
caso de até sete redes roubadas numa só noite).
A rede de pescada deve ser "visitada" pelo menos
duas vezes por dia, pois a pescada é um peixe frágil,
se passar um pouco mais de tempo fora do gelo,
apodrece. Acontece muito no verão, quando as águas
estão mais quentes, ter que jogar fora grande parte
da pescaria.
PESCA DE ESPINHEL
O espinhel é uma corda com uns 350 anzóis onde
são colocadas iscas de peixe, geralmente sardinhas,
sabelha mole ou uma isca especial que é uma cobra
do fundo do mar e que às vezes vem arrastada com o
camarão.
Antigamente fazia-se o espinhel para cação, mas
tinha que ser colocado muito fora da praia e por
causa do roubo atualmente só se faz espinhel para
bagre, no inverno.
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Vários pescadores têm espinhel atualmente. É
um tipo de pesca que tem matado muito peixe,
embora o bagre não tenha muito valor comercial.
O Espinhel
A PESCA DO CAÇÃO
Há
quinze,
vinte
anos
atrás
era
uma
característica de ßoiçucanga a pesca de cações de
grande porte (entre 50 e 150 Kg). A ela se dedicavam
praticamente todos os pescadores daqui.
As redes eram feitas aqui mesmo, com fio grosso
e malha bem grande. Eram chamadas Redes de
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Malhão e apelidadas de "Mata Diabo". Todo mundo
sabia fazer essas redes, desde os meninos até os
mais velhos.
Os pescadores "iscavam" as redes com pedaços de
corvina, peixe-espada, marialuiza. Embarcavam as
redes de malhão em suas canoas motorizadas, às
vezes sete, oito redes de uma vez e saiam à tarde
para "largar" as redes longe da costa.
Era uma pesca que exigia muita força dos
pescadores. Acordavam muito cedo para ir "visitar" a
rede. Iam em dois ou três companheiros. Era comum
encontrar até três cações realmente grandes ou então uns trinta cações médios (mais ou menos 30 kg)
emalhados na rede. Os que tinham caído há mais
tempo estavam mortos, outros estavam vivos e
furiosos. Neste caso tinha-se que fisgar o peixe com o
bicheiro, que é uma espécie de anzol grande, com
cabo de madeira; daí jogar o peixe pra dentro da
canoa e dar cacetadas no seu focinho até morrer.
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Visitando a rede de cação
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Pescava-se muito Maxote, Babaqueira, Caçoa,
Cação Anjo, Cambebas (cação-martelo).
O cação era um peixe de muita procura e pouco
preço, isto é, era procurado pelos peixeiros das
cidades que vinham buscá-los de caminhão, mas
pagavam pouquíssimo. Era uma época em que
circulava muito pouco dinheiro por aqui e qualquer
quantia parecia muito.
Às vezes o mar "virava", vinha o mau tempo e
ficava impossível navegar. Então se demorava muito
para visitar a rede e acontecia de encontrar o peixe
já podre. Outras vezes o mau tempo retardava o
comprador, pois a estrada era de terra e ficava-se
isolado por dias. Ninguém tinha freezer. Nesses dias
estragavam peixes enormes, que precisavam ser
enterrados.
O cação é um peixe fácil de limpar, às vezes o
pescador
vinha
limpando
desde
o
pesqueiro,
arrancando cabeças e barrigas. Mas sabia que se
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jogasse as cabeças ali mesmo, afugentaria os outros
cações e estragaria o pesqueiro. Jogava no pesqueiro
das garoupas, perto das pedras, para engodá-las; ou
no rio, onde cabeças e tripas eram rapidamente
devoradas pelos "corvos" (urubus) que sempre foram
bem quistos pelos pescadores.
Muitas vezes se via o pescador levando a cabeça
do cação grande para comer a mutacanga (guelra),
muito apreciada.
Certa época apareceram compradores de barbatanas de cação vindos de Santos. Eles as revendiam
para virarem sopa no Japão. Levavam uns 40 kg de
cada vez e pagavam bem.
Há coisa de quinze anos este tipo de pesca foi
diminuindo, começaram a ficar comuns as redes
arrebentadas pelos barcos de arrasto, depois ficou
comum o roubo de redes. Os cações grandes cada vez
mais longe da costa e os ladrões cada vez mais perto.
Hoje se pesca cambebinha e outros tipos de cação
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miúdos (até 5 kg) nas redes mais arriscadas, cerca
de duas horas afastadas da praia.
As canoas grandes foram se acabando, foram
substituídas por barcos de fundo chato, as redes de
malhão substituídas por redes menores, de malha
fina, que são "largadas" bem mais perto da costa e já
não esperam grandes cações e sim as famosas
pescadinhas.
Tempo de canoas grandes com redes de malhão embarcadas
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PESCA DE CACEIO
É um tipo de pesca que já não se faz. Um outro
jeito de matar cação. O barco sai à tarde com dois ou
três homens e vai até encontrar uma correnteza.
"Largam" a rede, que fica presa ao barco, desligam o
motor e não ancoram. O barco vai navegando "na
correnteza das águas", "à rola", até amanhecer o dia.
Geralmente quando colhiam a rede havia algum
cação. Mas era uma pesca muito arriscada, ficar
solto no mar num barco sem estruturas.
PESCA DA TAINHA
Até 1985, junho era o mês da tainha. Nesta
época a praia era da pesca, "Deus o livre" se um
menino fosse brincar na água, pois a tainha é arisca,
qualquer barulhinho afugenta.
Bem cedinho ia o "espia" para a praia e ficava de
olho no mar. Esperava o dia inteiro se fosse preciso,
mas às vezes era contemplado até três vezes num só
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dia pela visão de uma "manta". É uma visão que só
os mais experientes conseguem perceber, um pedaço
de mar encrespado diferente, denunciando o cardume.
Nos últimos anos em que aconteceu esta pesca,
podia-se ver o finado Manoel Rita com seu
cachimbinho, embaixo do abricoeiro ali em frente ao
posto de saúde. Andava ao longo da praia, voltava,
outra vez, até avistar uma manta que prometesse
uns mil peixes. Então ele soava a "buzina" – uma
corneta de chifre de boi, que se ouvia das casas. Todo
mundo largava o que estava fazendo e ia à praia
ajudar, fosse velho, criança, mulher, mesmo quem
era estranho participava.
Uma canoa das grandes, sem o motor, já estava
preparada no meio da praia com uns cinco homens.
O espia ia comandando da terra e a canoa ia cercando o cardume. Soltava uma ponta da rede amarrada a uma corda na praia, ia entrando no mar, dava
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a volta colocando o peixe dentro da rede e levava a
outra ponta para a praia.
Cercando a tainha na praia
Na canoa, uns remavam, outros soltavam a rede.
Uns caiam no mar – eram os "chumbereiros", que
tinham que pisar no chumbo da rede, levá-la no
fundo, rente à areia, ainda mais no lugar aonde a
onda quebra e forma um vão, se não cuidar a tainha
escapa. Era emocionante ser o chumbereiro e ficar
nadando no meio do cardume, as tainhas pulando na
cara.
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Na praia, nas duas pontas, todo mundo puxava a
corda. Já na areia as tainhas eram amontoadas. Um
"lanço" grande podia ter entre 1000 e 5000 peixes,
um lanço pequeno só 50. Daí os peixes eram
divididos e cada um tinha seu "quinhão": primeiro o
do dono da rede, depois o do Espia, depois dos
pescadores da canoa, depois os dos homens da praia
e depois os das mulheres e crianças. Era normal
haver um pouco de confusão nesta hora, mas no fim
sempre tinha peixe pra todo mundo.
PESCA DE TRESMALHO DE RODA
É um tipo de pesca usado hoje pra se pegar
tainha. Um barco a motor reboca duas canoas com
sete homens pra longe da praia, "espiando", procurando a manta. Então desliga o motor e as duas
canoas se aproximam do cardume, e vão cercando até
juntar as duas pontas. É uma rede menor do que a
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que era usada na praia. Dito Rita faz este tipo de
pesca, mas tem encontrado pouca tainha, provavelmente porque tem muito barco transitando.
Usa-se a mesma técnica para cercar os peixes de
Comilação.
PESCA DE TRÓIA
É um tipo de pesca que já ninguém mais faz,
quem fazia já morreu. Iam os pescadores em duas
canoas e cercavam o peixe, parecido com o tresmalho
de roda, só que esta pesca era à noite. Tinha que ser
noite escura, sem lua, quando é possível ver os
"cinzeiros".
"Cinzeiro" ou "incêndio" é uma luminosidade
provocada no mar pelo cardume em movimento.
Os "Antigos" contavam muitas estórias de como
era possível escolher os peixes e as noites certas,
mas também de tempestades repentinas que fizeram
desaparecer canoas.
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PESCA DE XUXAR A COSTEIRA
Este é um outro tipo de pesca que já não se faz.
Era feito também nas noites escuras. Cercavam as
pedras da costeira com redes. Cortavam uns varejões
de bambu e com eles ficavam "xuxando" (cutucando)
nas tocas das pedras, o que espantava os peixes.
Esses saiam de suas tocas e se emalhavam na rede.
Assim
se
matava
garoupas,
salgos,
pirajicas,
pampos. Era uma pesca mais pro consumo próprio,
raramente para a venda.
PESCA DE CERCO
A pesca de cerco é um tipo de pesca não muito
antigo;foi trazido nos anos 30 por uns japoneses à
Ilha Bela, de onde se espalhou por todo o litoral
norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro.
É uma pesca totalmente artesanal, não usa
motor, só canoa a remo.
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Visitando o cerco
Em Boiçucanga existem três cercos. São redes
fixas num lugar especial de passagem de peixes. As
malhas podem ser levadas para a praia para serem
reparadas ou pra serem protegidas dos temporais.
Mas a estrutura do cerco, formada de um círculo e
uma trilha de bóias e âncoras, permanece sempre lá,
tem só que ir renovando os bambus a cada três
meses mais ou menos.
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A rede do Cerco forma uma espécie de viveiro
dentro do mar. Os peixes que por ali passam são
conduzidos pelo "caminho do cerco" para dentro da
grande rede, mas permanecem ali soltos e vivos.
Quatro vezes por dia, chova ou faça sol, as
canoas vão visitar a rede. Geralmente vão às 6:00, às
10:00, às 14:00 e às 18:00 horas. Vão três homens
numa canoa grande e um na canoa pequena, este
com a missão de "fechar o cerco". Os homens vão
puxando a rede até reunirem os peixes ao alcance
das mãos. Então viram a rede por cima da canoa e
novamente colocam a rede em seu lugar. E podem
devolver os peixes pequenos também!
É uma pesca muito boa porque é feita durante o
ano todo e pega uma variedade enorme de peixes:
sororoca, bonito, xarelete, guaivira, bacoara, enchova, galo, espada, porquinho, curuvina, caçonetes ... E
é uma rede impossível de ser roubada porque é
muito grande e fica muito perto da praia. Só mesmo
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o mar numa grande viração pode estragar esta rede,
mas isso é raro porque a sabedoria dos pescadores
faz com que eles se previnam, recolhendo o cerco
quando prevêem uma tempestade.
Quem freqüenta a chegada do cerco na praia
sabe que às vezes pode não vir nenhum peixe e
noutro dia vem um cardume inteiro.
REDE DE PICARÉ
É uma rede que é passada na praia, geralmente
à tarde ou à noite, muitas vezes pelas crianças,
buscando peixe para consumo do dia.
A rede é passada na beira do mar; uns seguram
a rede em terra e outros dentro d'água. Vão
arrastando, a rede vai por baixo, pelo fundo, não
chega à superfície como a rede de praia, da tainha.
Ela tem um "saco" no fundo que segura o peixe.
É
uma
rede
boa
pra
pegar
pescadinha,
marialuisa, roncador, tortinha, sabelha mole, dãodão
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(manjuba) e outros peixes pequenos ou parati em
maio, quando costuma subir o rio.
Embora o picaré não seja uma pesca ofensiva,
hoje ela é proibida por lei. Alguns ainda têm sua
rede guardada como lembrança, outros ainda arriscam uma passadinha naqueles dias em que ninguém
tem um peixe para comer.
Arrastando o Picaré
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PESCA DE TARRAFA
A tarrafa é uma rede miúda; uma pessoa só, já
dentro da água - no rio ou na beirinha da praia solta a rede, que imediatamente cerca uma pequena
área. O que estiver por ali, já está pego. É bom pra
Parati, também.
PESCA DO CAMARÃO
O camarão é pescado no pequeno arrasto. Um
único barco lança a rede pro fundo do mar, com
bastante chumbo. A rede é presa em duas "portas" –
pranchas de madeira – uma de cada lado do barco
para manter a rede aberta. O peso é tanto que
mesmo com o motor ligado na potência máxima, o
barco quase nem se move, a impressão que dá é que
o barco está parado. Tem-se que arrastar às vezes
horas até conseguir uma quantidade razoável de
camarão.
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Por ser um tipo de pesca mais predatório, esta
atividade é suspensa todos os anos, de fevereiro a
maio: é o "defeso", um período de trégua para os
camarões crescerem e multiplicarem-se.
PESCA DE ARRASTÃO
É a pesca em escala industrial, que não é feita
aqui a não ser quando os barcos desobedecem a Lei e
vêm arrastar perto da costa. Mas de qualquer forma
deve ser registrada aqui por seu papel na atual
escassez de peixes.
Esta pesca é feita com dois barcos, cada um
segurando uma extremidade da rede, que vai varrendo o fundo do mar. Nesta operação vai matando
peixes grandes, peixes miúdos e até a vegetação do
solo que até então servia de alimentação para várias
espécies. A rede arrasta horas e então é erguida por
guindaste. São toneladas de peixes. Os que têm valor
comercial são colocados no gelo imediatamente. O
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restante, que muitas vezes é mais da metade, é
jogado de volta pro mar, só que agora são toneladas
de lixo.
O PEIXE SECO
Dona Rosalina seca uma variedade de peixes
Quando não havia eletricidade e tinha peixe em
quantidade, o único meio de conservar o peixe era
salgá-lo e secá-lo no sol.
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Cabia às mulheres o trabalho de "escalar" o
peixe, isto é, limpar, abrir e fazer sulcos onde se
passa bastante sal grosso. É importante salgar todos
os sulcos, caso contrário pode acontecer do peixe ser
visitado por moscas, que depositam ovos onde não há
sal. Depois de escalado e salgado, estende-se o peixe
no sol, sobre uma rede suspensa ou pendurado no
varal. São precisos pelo menos três dias de sol forte
para secar o peixe, que tem que ser exposto de
manhã e recolhido no fim da tarde.
Este peixe, depois de seco, pode ser conservado
durante meses. Separava-se uma quantidade para o
consumo da família e o restante levava-se para
vender em Santos.
Hoje já não há necessidade de secar peixe, pois
todo mundo tem freezer e também porque raramente
tem excesso de peixe, mas ainda se faz porque é
muito saboroso.
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AS CANOAS
A canoa, esculpida num tronco só, é um dos
meios de locomoção mais perfeitos que existem.
É preciso muita sabedoria para se fazer uma
canoa. A começar por escolher a árvore certa, que
nunca o canoeiro saiu por aí derrubando qualquer
árvore em qualquer tempo.
O canoeiro corta o pau no meio da mata e ali
mesmo começa a moldar a canoa. Ele tem que
considerar o lado em que ela tomava sol, pra depois
não ficar pensa. Tira uma primeira fatia, deixando
reta a face que será côncava. Aí cuidadosamente
calcula toda a geometria da canoa, riscando na
madeira as linhas do corte, com o auxílio de um
barbante tingido. Então começa a cavocar, fazendo
sulcos diagonais. É muita madeira, são necessários
bem uns três ou quatro dias de trabalho brabo até
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que a canoa tenha começado a tomar forma. Isso se
for uma canoa pequena, para uma ou duas pessoas.
Quando a tora já está mais leve, arrasta-se a
quase canoa até o rio e pela água se desce até a vila,
para continuar o trabalho por aqui. E lá se vão mais
alguns dias, moldando, lapidando ...
Cada praia tem um feitio de canoa ideal para a
forma das ondas do lugar. As canoas genuínas de
Boiçucanga são bastante arredondadas, assim como
a enseada.
Biló,
Seu Guilherme, Seu Benjamim e Seu
os irmãos canoeiros,
desenvolveram um
desenho típico para Boiçucanga.
Canoeiro Benjamim fazendo remo
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Hoje, com as leis que protegem as matas, é muito
difícil para o canoeiro conseguir a liberação da árvore adequada. A Lei permite trabalhar em troncos
que caíram acidentalmente, mas o canoeiro precisa
provar à Polícia Florestal antecipadamente, senão
corre o risco de ser preso. Tem casos tão complicados, madeiras em lugares tão complicados da
Florestal chegar, que acabam estragando.
Houve o tempo das canoas de voga, imensas, dois
metros de boca (largura). Eram movidas por seis
remadores, auxiliados por duas velas diferentes,
usadas de acordo com os ventos. Era o meio de
transporte coletivo até a década de 30 e foram
substituídas pelos barcos de cabotagem.
Até uns dez anos atrás eram muitas as canoas
motorizadas, grandes, com um metro, um metro e
meio de boca. Foram sendo substituídas pelos barcos
de fundo chato. Hoje a maioria das canoas são
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pequenas e, do jeito que vai indo, em poucos anos só
vendo em museu.
Acredito que a pesca tem que ser mais
valorizada,
a
pesca
artesanal
tem
que
ser
defendida.
Pescar é fundamental, a melhor parte da
alimentação está dentro do mar.
Se o homem perder o conhecimento dos
“antigos”, vai demorar muitos e muitos anos para
aprender de novo. Esse pessoal antigo aprendeu
como pegar o peixe, como preservar, como não
deixar acabar.
Hoje o homem inventou métodos destruidores.”
(Celso de Souza Filho, XIXICO)
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ALIMENTAÇÃO
Na fala do caiçara, quem come demais ou com
avidez é TIANHO. Tinhaeza de lado, o caiçara sempre se alimentou bem, tendo como básico o Peixe, a
farinha de mandioca e a banana.
Variava-se na proteína comendo, vez ou outra,
carne de caça - paca, tatu, cotia, coati, porco do mato,
raposa, jacu, macuco - ou carne de criações - porco,
pato, galinha e ovos. Até chegar a estrada, se tomou
muito pouco leite e raras vezes se comeu carne de
vaca.
Além das bananas e da mandioca, cultivava-se
arroz, milho, feijão, batata-doce, cará, abóbora,
maxuxo, uma variedade de verduras e frutas - limão,
laranja, mamão, jaca, abacate, ameixa, jabuticaba,
carambola,.goiaba, araçá, abricó, canito. E tinham as
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frutas silvestres, algumas difíceis de encontrar hoje
em
dia,
abiu,
papaguela,
jambolão,
bocupari,
maracujá do mato, amora, pitanga.
AS BANANAS
Sempre se plantou muita banana por aqui e o
clima quente e úmido sempre favoreceu.
A Banana Branca ou Prata é a que mais tem.
Uma banana leve, já engrossou a alimentação de
muito nenê.
Mais pesada, apesar de seu pequeno tamanho, é
a Banana Ouro, que também se come crua.
A Banana Nanica além de ser comida ao natural
é excelente para o Azul Marinho, que pode ser
preparado também com a Banana São Tomé, uma
banana grande.
A Banana Cinza e a da Terra devem ser cozidas
ou fritas. Podem ser fritas e comidas junto à refeição,
acompanhando peixe frito, ou serem cozidas e
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acrescidas de melado na hora do lanche, pra
acompanhar o café.
Celso colhendo banana
A FARINHA DE MANDIOCA
Atualmente ninguém mais planta mandioca por
aqui. As "Casas da Farinha" foram sendo desativadas, mas até há poucos anos atrás cada família
tinha a sua. Um cômodo destacado da casa, com um
enorme forno à lenha - com uma chapa grande de
metal, especial pra se torrar a farinha-, uma prensa
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de madeira parecendo um enorme parafuso, uma
roda ou catitu, sevadeira, gamelas, tapitis, peneiras,
serengas.
A Produção da farinha era trabalho de dois dias,
envolvendo a família toda: homens, mulheres, crianças, e se repetia uma ou duas vezes ao mês.
O primeiro dia começava logo cedo, na roça,
arrancando as raízes da mandioca. Trazia-se para
casa e o primeiro passo era raspar as raízes, usando
uma faquinha especial, a serenga. As crianças ficavam sentadas em círculo, raspando, enquanto os
adultos iam cuidar do serviço mais pesado. Lavavam
as raízes e colocavam no Catitu ou numa Roda
maior, para ralar. Eram precisos dois homens fortes
para girar a Roda. Do outro lado, uma mulher
sentava na sevadeira, um banco alto ao lado do
balaio onde estavam as mandiocas lavadas. A mulher colocava uma quantidade no colo, protegido da
umidade por um pano limpo, e, aos poucos, ia
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introduzindo as raízes na roda. Ralava-se de quatro
a cinco balaios.
Quando ralada, a mandioca ia virando uma
massa depositada no Cocho, um recipiente grande,
geralmente um pedaço de canoa velha. Daí ia sendo
colocada, aos poucos, no tipiti ou tapiti, uma cesta
trançada com palha de Timbó Peva, que olhando de
cima tem o formato de um pneu.
O tapiti era levado ao Fuso, uma grande prensa,
na ponta do qual se enroscava o "Queijo", uma tábua
circular, de madeira. O queijo prensava o tapiti,
descendo à medida em que o fuso girava, apertando
bem a massa e fazendo escorrer dela um caldo. O
caldo ia caindo na gamela, um recipiente de madeira
semelhante a uma canoa.
O segundo dia começava ainda mais cedo, bem
antes do sol raiar. Preparava-se o fogo, aquecendo-se
o forno cuja temperatura ia sendo regulada durante
todo o dia.
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Da gamela, que ficara em repouso desde a
véspera, tirava-se cuidadosamente o caldo, que podia
ser jogado fora ou aproveitado mais tarde, azedo,
como veneno contra saúvas nas plantações.
fundo
da gamela,
depositado,
encontrava-se
No
a
tapioca, um polvilho grosso e branquinho. Acrescentava-se água limpa e ficava como um leite.
Deixava-se novamente a gamela em repouso, pra
assentar mais o polvilho.
A massa da mandioca que ficara no tapiti era
passada numa peneira de bambu ou de taquara,
quadradinha. A massa mais fina que passou, era
levada ao prato do forno e ali, com a ajuda de um
rodo de madeira, era mexida incansavelmente,
torrando até ficar uma farinha toda solta. Com uma
Apá feita de Ubá, ia se jogando a farinha para cima,
para não embolar, e com o rodo se mexia de um lado
para o outro.
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A farinha que ia ficando pronta ia sendo colocada
numa caixa de madeira, padrão de medida, chamada
de Meio Alqueire e daí ensacada para a venda, ou
reservada para o consumo próprio. (Meio alqueire
correspondia a 25 litros de farinha). Guardava-se um
pouco da massa sem tostar, para fazer o bolo mais
tarde.
Na peneira restavam os resíduos mais grossos da
mandioca, a quirera, que era torrada no fim de tudo
quando o forno já esfriava e depois era dada às
galinhas.
Já no meio da tarde, quase no final do processo
da farinha, voltava-se à gamela. Jogava-se fora a
água e se coava o polvilho num pano até ele ficar
bem seco. Com ele se fazia o Bolo e o Biju.
Para o bolo, se misturava o polvilho com o pouco
da massa que não fora forneada. Amassava-se bem,
temperando com sal ou com açúcar e erva-doce.
Cortavam-se pedaços de folha de bananeira e em
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cada pedaço se colocava um pouco desta mistura.
Fechava-se a folha, embrulhando bem e se colocava
no forno, já não tão quente. Assava-se de um lado,
virava e assava do outro.
O biju era feito com o restante do polvilho,
misturado com coco e temperado com açúcar ou com
sal. Faziam-se bolinhos quadrados e se assava direto
no forno.
Dona Maria Pequena fazendo farinha
75
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A PICUTA
Picuta era outra espécie de bolinho pra se comer
acompanhando o café, feito à base de Mandioca
Puba.
Enterrava-se a mandioca na areia do rio por uma
semana. Aí se tirava toda a casca, já apodrecida e se
ficava com a raiz mole. Lavava-se muito bem, depois
se amassava e peneirava. Depois se misturava com
ovo, manteiga, erva-doce, canela, coco e açúcar.
Separava-se em bolinhos que eram enleados em
pedaços de folha de bananeira, com as pontas
torcidas.
As trouxinhas, postas num caldeirão com água,
ferviam por uma hora.
As picutas podiam durar dias... se não fossem
comidas antes.
76
77
PEIXES E FRUTOS DO MAR
Tem muito caiçara que não come um peixe que já
esteve na geladeira, porque sente que alterou o
sabor.
Pode-se preparar o peixe de todo jeito: frito, às
vezes. Ensopado, muito. Na brasa, quando possível.
DICAS PARA CONSERTAR UM PEIXE
O segredo para consertar (ou limpar) bem um
peixe é ter uma faca muito bem amolada, uma pedra
de amolar -que vai sendo usada durante a operação
para manter o corte- e uma tábua firme onde se
apóie o peixe. Nunca limpe um peixe sobre pedra
porque estraga o corte da faca.
Segure o peixe pelo rabo e comece retirando os
ferrões, depois as escamas ou o couro.
Peixes com escamas devem ser escamados
raspando-se a faca no sentido rabo-cabeça. Peixes de
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coura devem ser descascados também no sentido
rabo-cabeça, introduzindo-se a faca sob o couro e
apertando-a para cima, de modo a tirar o couro bem
rente, sem carne. Os peixes de graxa são os mais
fáceis de limpar, pois já têm a pele lisa.
Continue a segurar o peixe pelo rabo e corte fora
as nadadeiras, depois a cabeça e o rabo se quiser. Aí
abra a barriga e retire as vísceras. Lave bem,
tirando todo o sangue. Depois corte em filés ou
postas, no tamanho que desejar.
Se a intenção for assar, deixe o peixe inteiro. Em
vez de abrir um corte na barriga, abra-o pelas costas.
Corte o peixe desde perto da cauda até a cabeça com
um talho profundo no dorso, rente à espinha,
cuidando para não atravessar toda a barriga,
deixando a pele de baixo inteira. Um novo talho do
outro lado da espinha e retire toda a espinha central
e as vísceras. Lave bem e está pronto para ser
recheado com os temperos e assado.
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79
A Garoupa é um peixe especialmente difícil de se
limpar. Ela tem escamas, mas é um peixe "liso", tem
uma gosma que a faz escorregar da mão. A dica é
passar um pouco de areia na mão e segurá-la firme
pelo rabo. Ela pode ser só escamada, se for assar, ou
"dicascada" para ensopar. Neste caso, aperte a faca
sob as escamas, mas rente à pele e tire uma fatia
desta, com todas as escamas juntas. Ela vai ficar
ainda com uma pele branquinha. Aí corte em postas,
de preferência com uns dois dedos de altura e dê
talhos nas laterais, para penetrar bem o sal.
Os cações são peixes que têm um fígado muito
grande, o que é altamente perecível, por isso suas
vísceras são tiradas imediatamente após serem
pescados, na praia ou ainda no barco. São peixes de
couro e precisam ser "dicascados" antes de se
cozinhar. O couro do cação é uma lixa, se cozinhar
ela se espalha e o cozido parece cheio de areia. Se
não se conseguir tirar o couro com a faca, pode-se ir
79
jogando
água
80
fervente e
raspando
com
uma
faquinha, até resultar uma pele fina e lisa.
Mutirão de limpar cação
A Guaivira é um peixe delicioso, mas de pouco
valor comercial. Na verdade existem dois tipos de
Guaiviras. A mais comum é amarelo-esverdeada com
uma espécie de couro que, se cozido, resulta em
infinitas espinhas minúsculas. Ela pode ser comida
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de todo jeito: é boa de fazer filé e fritar, melhor ainda
assar inteira na chapa, com couro e tudo. Ela tem só
espinhas grossas, depois de assada dá para descolar
tudo de uma vez como se fosse uma só espinha, e o
couro também se descola da carne.
O outro tipo é a Guaivira de mar grosso. Aparece
raramente, só em ocasiões de mar revolto. É mais
branca e não tem couro. É uma delícia de se fazer
ensopada.
Consertando peixe na beira do rio
81
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PEIXE FRITO
Para fritar, o método é tradicional: tempera-se
com sal, passa-se na farinha de mandioca ou então
no ovo e na farinha de trigo antes de fritar. É
acompanhado de arroz, feijão, Banana Branca ao
natural ou Banana da Terra frita e limão pra dar o
tempero final.
Qualquer tipo de peixe serve. Peixes bons para
se fazer filé são: Linguados, Corvinas, Guaiviras,
Pescadas, Bicudas. Peixes miúdos são fritos inteiros: Dãodão, Sardinhas e parentes da Pescada.
Peixes de carne mais firme são fritos em postas:
Cações, Sororocas, Enxovas, Cavalas.
PEIXE ENSOPADO ou ESCARDADO
Pode-se ensopar todo tipo de peixe. Alguns são
consumidos quase sempre ensopados : Bagres, Pirajicas, Méros.
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Corta-se o peixe em pedaços ou postas e se
tempera com sal, de preferência horas antes de
cozinhar. Pode-se temperá-lo também com limão mas
há quem prefira colocar o limão só na hora de comer.
Refoga-se com pouco óleo, cebola e tomate; depois
acrescentam-se água, cebolinha, salsinha e coentro
de folhas largas. No Cação se coloca Alfavaca em vez
de Coentro.
O AZUL MARINHO
O azul marinho é um prato à base de peixe
ensopado com banana. Tem esse nome por causa da
cor resultante da banana cozida no molho.
É o prato típico de toda a costa, mas em cada
lugar é feito de modo um pouco diferente. Veja como
se faz o de Boiçucanga:
Pegue três ou quatro bananas São Tomé ou
nanicas. Descasque-as, corte-as em rodelas e leve
para cozinhar numa panela com água.
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Quando começar a amolecer, pode começar a
preparar o peixe em postas noutra panela. Pode ser
qualquer peixe de carne firme, como Garoupa,
Cavala, Enxova, Tainha. Refogue as postas na
cebola, tomate, cheiro-verde, coentro. Acrescente sal
e água, depois junte a banana e cozinhe por alguns
minutos, tomando cuidado para queo peixe não
desmanche.
Em dias comuns, já se serve assim: cada um
mistura a farinha no caldo, fazendo o pirão no
próprio prato. Mas para uma “apresentação”, quer
dizer, uma ocasião especial, depois de cozido separe
as postas do peixe e reserve. Na panela ficam o
caldo, os temperos e a banana. Acrescente aí a
farinha de mandioca, lentamente, mexendo sempre
até formar um pirão cremoso. Coloque numa
travessa e, por cima do pirão, as postas do peixe.
84
O
Azul
85
Marinho é considerado um prato
completo, que não necessita complemento, mas pode
ser comido também com arroz
.
O COZIDO DA VÓ JULíA (mãe de Dona Zilá)
Corte um peixe de carne firme, de preferência
Tainha, Sororoca ou Xarelete, em postas e coloque
sal. Numa panela com um litro de água fervente
coloque pedaços grandes de cebola, um punhado de
coentro de folha larga, alguns tomates redondinhos,
nativos. Ferva por alguns minutos. Passe o peixe na
água corrente para tirar o excesso de sal e coloque-o
na panela. Tampe e cozinhe em fogo brando.
Na hora de comer, já no prato, misture farinha
ao caldo pra fazer pirão.
O PEIXE ASSADO NA BRASA
Quando o clima permite, o peixe assado na brasa é
motivo para confraternizações. Um bom lanço de xa85
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reletes pode virar uma festa. Assim como com outros
peixes assados na brasa, não se usa descascar ou
descamar. Tire apenas a barrigada e faça alguns
talhos no peixe, para penetrar o tempero. Sal, limão
e pronto.
Um bom lanço de xareletes
O PEIXE ASSADO NO FORNO
Para assar no forno, os melhores peixes são
Enxovas, Baquaras, Bonitos, Sororocas, mas Corvi-
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nas, Pescadas, Garoupas e tantos outros são também
ótimos. O ideal é que o peixe seja aberto pelas costas
quando for limpo. Prepare uma mistura de cebola,
tomate e cheiro verde picadinhos com suco de limão
e sal e recheie o peixe. Coloque um pouco de óleo
numa assadeira e leve ao forno. Esborrife água de
vez em quando.
TAINHA ASSADA
No forno ou na brasa, uma Tainha com ova
merece um tratamento especial: mantenha as
escamas, abra-a pelas costas, tempere com sal e
deixe um tempo pra pegar o tempero. Numa panela
pequena, cozinhe uma posta de uma outra Tainha,
acrescente a ova picada, cheiro verde, cebola, sal,
bastante água; quando estiver desmanchando a
posta, coloque farinha de mandioca ou de milho,
sempre mexendo até secar e virar farofa. Coloque
esta farofa dentro do peixe e costure com um
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aramezinho de pesca ou agulha e linha. Leve ao
forno ou à brasa e coma com arroz.
PIRUMÁ e OVAS
Pirumá é a moela da Tainha, que tem carne
tenra como a moela de galinha. Tem gente que faz
um prato ensopado só de Pirumá. Difícil é conseguir
juntar vários pirumás prá fazer essa iguaria. Melhor
aproveitar o pirumá na farofa, junto com a ova.
Mas, em vez de farofa, você pode preferir a ova
da tainha frita, que é uma delícia. Neste caso, muito
cuidado na hora de “consertar” o peixe. Abrindo-o
pelas costas ou pela barriga, atenção para não furar
a ova, que deve ser frita inteira, protegida por sua
própria pele e temperada só com sal.
PEIXE SECO ENSOPADO
Geralmente o peixe seco é ensopado, cozido com
banana verde, abóbora de vez (madura), mandioca
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ou batata doce. Coloque o peixe de molho na água
logo de manhã. Ao meio dia já estará bom pra ser
cozido. Ferva e jogue fora a água, para tirar o
excesso de sal.
Desfie o peixe e refogue na cebola, cheiro-verde,
tomate; cozinhe junto com um dos vegetais acima,
cortado em pedaços.
PEIXE SECO NO FORNO
Deixe o peixe seco na água por algumas horas.
Jogue fora esta água e coloque o peixe em água
fervente. Escorra.
Corte o peixe em pedaços e refogue com cebola.
Depois coloque-o numa assadeira com batatas e
azeitonas, bastante azeite e leve ao forno.
COZIDO COM BANANA MADURA
Deixe o peixe seco de molho na água por cerca de
quatro horas. Depois afervente e jogue fora a água.
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Corte o peixe em pedaços. Numa panela, refogue um
pouco de tomate e cebola no óleo. Acrescente os
pedaços de peixe e um pouco de água. Quando já
estiver fervendo, cubra tudo com bananas maduras,
inteiras. Pode ser qualquer banana: prata, ouro,
nanica, contanto que estejam maduras. Tampe a
panela e deixe cozinhar em fogo brando.
Cozinhe por um quarto de hora, aproximadamente. As bananas se abrem, o caldo engrossa e o
excesso de sal é cortado.
BOLINHOS DE PEIXE SECO
Assim como o bacalhau, qualquer peixe seco se
presta muito bem pra virar bolinho.
Deixe-o na água pelo menos por quatro horas.
Leve ao fogo, quando ferver jogue fora a água.
Desfie o peixe, jogando fora todas as espinhas.
Para um quilo de peixe, faça uma mistura com
três colheres de arroz cozido, duas batatas cozidas,
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dois ovos frescos e farinha de trigo suficiente para
dar liga. Amasse tudo até ficar uma mistura
homogênea. Vá tirando de colherada pequenas
porções e fritando numa frigideira com bastante óleo.
SOPA D'ÁGUA
Um outro jeito de se comer o peixe seco, muito
usado pelos antigos era a "sopa d'água". Usavam
muito em dias de mutirão, quando iam "barrear"
uma casa, isto é, quando se juntava várias pessoas
para ajudar a fazer uma casa de "pau-a-pique".
O mutirão ocorria em clima festivo, num
domingo seco, de sol, condição necessária para o
barro secar e o pau-a-pique dar certo. Famílias
inteiras participavam: homens, mulheres e crianças.
A sopa d'água era um prato rápido e prático de
se fazer: assava-se o peixe seco direto na brasa e
cada um misturava no próprio prato um pouco do
peixe, farinha de mandioca e água fervente. Como o
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peixe já era salgado, a água fervente se encarregava
de misturar o sal à farinha. Pronto.
Nos dias em que a família toda almoçava na
roça, no meio do dia de trabalho, se fazia a sopa
d'água com água fria mesmo, e, em vez de prato,
comia-se numa folha de caetê.
FIOS DE CAÇÃO
Como o cação é um peixe sem espinhas, ele era
cortado em tiras compridas, e assim salgados por
três dias no sol. Depois de secas, essas tiras muitas
vezes eram assadas diretamente no fogão à lenha e
comidas enquanto se tomava café. Salgadinhas, um
excelente tira-gosto.
ESCARDADO DE PEIXE SAPRESO
Comum na mesa dos pescadores, o sapreso é um
peixe que já foi escalado, salgado e exposto ao sol,
mas apenas por um dia.
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No dia seguinte é colocado na água fervente,
escorrido e cortado em postas. Em seguida é refogado
com vários temperos, cozido com um pouco de água,
resultando num escardado maravilhoso.
CAMARÃO À MODA CAIÇARA
O camarão típico de Boiçucanga é o Sete-barbas
miúdo. Mal chega à praia já é descabeçado, por que
se for guardado com cabeça fica preto rapidamente (a
menos que seja tratado com uma química, como os
camarões de peixaria).
Na cozinha, ele deve ser mais uma vez muito
bem lavado (lembre-se de que o camarão vem
arrastado no fundo do mar, chega na praia
misturado com algas, águas vivas, peixinhos, siris,
pedrinhas, conchas e lodo). Depois de limpo, pode ir
ao fogo com casca.
Misture o camarão no sal e pingue um pouco de
limão. Refogue no óleo juntamente com pedaços de
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alho, de cebola e de tomate. Ele solta um pouco de
água. Vá remexendo tudo até ver o camarão mudar
de cor e a mistura secar. Coma com arroz.
LULAS BOIÇUCANGUENSES
As lulas aparecem em Boiçucanga sem nenhuma
regularidade. Pode passar ano sem aparecer, de
repente vem de montão.
Se a lula for grande é bom deixá-la inteira, quer
dizer, dividida em duas partes por causa da limpeza.
Pra se limpar a lula, arranca-se a parte dos
tentáculos e vira-se a outra parte do avesso. As lulas
têm uma bolsinha de "tinta" preta, que expelem à
sua volta quando precisam se esconder. O ideal é
tirar esta bolsinha sem derramar a tinta, mas se
derramar não há mal algum. Em outros lugares "lula
en su tinta" é um prato apreciado, mas aqui não se
usa.
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A lula tem um esqueleto que parece uma pena de
plástico transparente e que deve ser tirado.
Uma vez limpa, bom é salgá-la e colocá-la numa
chapa quente sobre carvão em brasa.
Se a lula for pouca e pequena, melhor é cortá-la
em rodelinhas, fazer com elas um molho de tomate
bem forte, de se comer com macarrão.
LAGOSTAS
As lagostas dessa região são grandes, de uma
espécie diferente das nordestinas, que são mais
conhecidas
comercialmente.
São
apanhadas
no
mergulho ou, muito raramente, se deixam enlear
numa rede de fundo.
O mergulhador que se preza sabe respeitar uma
lagosta de pouca idade. Ele deixa a lagosta pequena
em sua toca e volta meses depois no mesmo lugar.
O preparo da lagosta é fácil. Uma vez limpa, é
colocada num caldeirão para ferver na água com um
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pouco de sal, por cerca de quinze minutos. Daí é
saboreada com o molho que se desejar.
CUIDADOS COM A SAÚDE
Os caiçaras conhecem muitas ervas nativas que
curam doenças, como Pariparoba, Erva-de-Madre,
Erva-Baleeira,
Sete-Sangrias,
Picão,
Carqueja,
Mentruz, Quebra-Pedra e muitas outras, usadas em
infusão ou maceradas em emplastros.
Do mar, sabem que a gordura da tartaruga,
derretida,
era
um
excelente
bálsamo
contra
reumatismo. E a gordura do peixe Prejereba - um
peixe meio raro de aparecer perto da costa e que tem
a particularidade de ser encontrado em alto mar
instalado dentro de barris ou pneus velhos - até hoje
é reservada. Depois é derretida e guardada num
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vidro para ser usada contra ferimentos causados por
queimaduras.
Quando é hora de comer, o caiçara tem muito
respeito consigo próprio. Se ele tem um machucado
feio, um corte de operação em convalescença ou uma
ferida exposta, por exemplo, ele sabe que não pode
comer peixes de graxa. Peixes de graxa são aqueles
que têm uma gordura ou óleo muito forte na pele e
em geral não têm escamas. Por experiência, sabe que
a graxa ativa a infecção.
Os mais carregados são os Bagres, o Bonito, a
Espada, a Sardinha - que até tem escama mas também muito óleo - as Raias, os Xareletes. Camarão e
outros moluscos também pedem muita saúde.
Em compensação, há peixes que se pode comer
em qualquer situação: Linguado, Pampo e qualquer
tipo de Pescada. A Oveva, em especial, é o primeiro
peixe que uma mulher que teve nenê pode comer.
Atualmente
as
mulheres
97
que
deram
à
luz
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recentemente não têm consigo próprias os mesmos
cuidados que as nativas tinham nos tempos em que
não havia por aqui farmácias nem Posto de Saúde.
Além de se resguardarem do frio, respeitavam a
dieta,
por 40 dias só comiam como mistura
ensopados de Pescadinha, Oveva ou Bicuda. Comiam
galinha, se tivesse.
Peixes mais carregados nem
pensar. Carne de porco, só depois de um ano.
Comiam farinha, banana, legumes e verduras
normalmente e enquanto amamentavam comiam
muita taioba.
A taioba é uma folhagem nativa que tem uma
folha grande e bonita, com o formato de coração e
talo verde. Sua parente de talo roxo chama-se
taierão e é altamente venenosa. Com ela se faz um
remédio para matar bicheiras em animais.
98
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A FALA DE BOIÇUCANGA
Por ser uma comunidade razoavelmente isolada
até vinte anos atrás, Boiçucanga tem nos seus
habitantes
mais
tradicionais
várias
expressões
lingüísticas próprias, algumas semelhantes a outras
de toda a Costa Sul, outras a todo o litoral. Até hoje
pode-se distinguir os habitantes das vilas vizinhas
pelo jeito de falar, em cada vila um sotaque, apesar
dos poucos quilômetros de distância entre si.
Comum nos caiçaras mais idosos de todas as
vilas é o uso dos pronomes de tratamento na
segunda pessoa, isto é, tratando-se por tu e vós –
principalmente o vós -, com todo o respeito.
Separei algumas expressões que tenho escutado,
muitas delas usadas no texto, outras talvez inéditas:
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À rola = solta
100
Apresentação = Cerimônia
Ardentía = Clarão do mar em noites muito escuras
Arrelá = Exclamação para exprimir pena
Arriar ou Largar a rede = colocar a rede no mar, no
local de captura
Arrumar a rede = Consertar os furos causados pelo
uso
Barrear = Encher de barro uma parede de pau-apique. No sentido figurado: faturar, se dar bem
Bicheiro = instrumento para retirar peixes grandes
da água - um cabo de madeira com um gancho de
ferro como um anzol enorme
Boca de barra = local onde o rio deságua no mar
Burgal = Fundo do mar cascalhado na divisa entre a
costeira ou parcel com a areia
Cadijubar = acobertar alguém ou ato mal feito,
inocentar o culpado
100
101
Caiçara e Caipira = Na origem tupi-guarani Caiçara
seria “pra cá da cerca” e caipira “pra lá da cerca”.
Quem conservou o saber da língua de origem explica
a “cerca” como sendo a Serra do Mar e, assim,
caiçara é o povo das praias e caipira o povo da serra
pra lá
Cambixo = Peça de fazer cabo, torcendo corda
Caniço = Vara de pesca grande, para adulto
Capelo = Uma formação de nuvens, formando uma
muralha no horizonte
Casas de farinha = Cômodo separado da casa,
destinado exclusivamente à fabricação de farinha
Chumberar = Colocar pesos nas redes, ou, durante o
ato da pesca, prender a rede no fundo
Cinzeiro ou Incêndio = ardentía muito forte, uma
claridade no mar à noite, provocada por um cardume
em movimento
Comedío = cardumes de peixes minúsculos, que
servem de comida a peixes maiores
101
102
Comilação = comilança, ato de um cardume de peixes
maiores comer um cardume de peixes menores
Consertar o peixe = Limpar o peixe tornando-o
comestível
Coxar = enroscar, rosquear
De vez = (a fruta) no tempo de ser colhida, a
caminho do amadurecimento
Dicascar = descascar
Emalhar ou enlear = Ficar preso na rede (o peixe)
Engaçar = engatar uma rede na outra
Entralhar = transformar o “pano” em rede, colocando
pesos e bóias
Escalar o peixe = Fazer muitos sulcos no peixe, onde
se passará sal antes de colocá-lo ao sol para secar
Escamar = tirar as escamas
Escardado = ensopado. No sentido figurado:
experiente, calejado
Estar fora = estar no mar
Estar pândega = estar engraçado, fazer palhaçada
102
103
Fornear = torrar a massa de mandioca no forno ao
fazer farinha
Fuzilar = relampejar
Imbira = fibra de madeira usada para fazer corda
Jazigo = momento de calmaria no mar, entre uma
série de ondas e outra
Léi! = Olhai! Veja!!
Mar doente = mar calmo demais, anunciando que o
clima mudará de repente
Mar grosso = mar revolto
Mar novo = alto-mar, longe da costa
Mar “puxou” = mar virou, ficou agitado
Maxuxo = xuxu
Misgalhar = esfarelar
Mutacanga = guelra do cação
Nó cego = nó que não se consegue desatar; sentido
figurado: pessoa incompetente
O espia = pescador que observa o movimento da
superfície do mar para localizar cardumes
103
O Quá!!! = o quê !!!
104
O que é isso vosso??? = expressão de espanto muito
usada
Os Antigos = Caiçaras mais idosos, que mantém
hábitos tradicionais
Peixe de graxa = peixe sem couro nem escama, que
tem oleosidade forte na pele lisa
Peixe sapreso = peixe salgado mas ainda semi-seco
Picumã = fuligem pendurada no teto, sobre o fogão
de lenha
Pinchar = jogar fora, se desfazer
Pirumá = moela de tainha
Povo de fora = turistas
Quidélhe? = onde está?
Quinhão = parte da pescaria que pertence a cada
pescador que trabalhou na captura
Rede de malhão ou “mata-diabo” = rede grande para
capturar cações
104
105
Rede morta = rede frouxa, não esticada, que não
prende peixes
Samburá = balaio de palha trançada, ideal para
carregar peixes
Sapopema = madeira da táboa de lavar roupa; cada
mulher tinha a sua, estacionada no rio
Sarceiro = movimento de um cardume pulando para
forta da água; sentido figurado: confusão,briga
Tianho = guloso, afobado
Trepar nas grimpas = subir no galho mais alto da
árvore
Tresmalho = rede de pesca
Um lanço = quantidade de peixe do mesmo cardume,
capturada de uma só vez
Uma manta = um cardume em movimento, visto
sutilmente
Visitar a rede = colher os peixes capturados e tornar
a deixar a rede no mar
Xuxar = cutucar
105
106
VOLTANDO AOS CARAPIRÁS
Fêmea
Macho
Os Carapirás são aves com asas enormes, sua
envergadura (medida das asas abertas) é igual a
uma braça (medida dos braços abertos de um
homem). São muito leves, pesam menos de meio
quilo.
Não podem pousar em lugares planos pois têm as
pernas curtas e as asas arrastariam no chão.
Pousam somente em penhascos, de onde podem
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107
decolar tranqüilamente, e é aí que fazem seus
ninhos. A Ilha dos Alcatrazes, no arquipélago do
mesmo nome, é o seu habitat essencial, pois lá as
encostas são paredões muito íngremes. A Ilha lhes
dá abrigo e eles lhe dão o nome.
Além de Alcatrazes, também são chamados,
cientificamente, de Fragatas (Fregata magnificem) e,
mais popularmente, de Tesoureiro, porque têm a
cauda dividida em duas pontas como uma tesoura.
As crianças de Boiçucanga costumavam cantar, ao
vê-los sobrevoar a vila:
"Tesoureiro, Tesoureiro
Cortai o meu cabelo."
A fêmea tem a barriga branca e o macho é todo
negro, com um papo vermelho que infla na época de
acasalar, para chamar a atenção das fêmeas. Tanto
o macho como a fêmea levam, no bico, quantidades
de peixe para alimentar os filhotes nos ninhos. Estes
ficam lá, gordos, esperando a asa crescer.
107
108
Os pescadores dos tempos em que se ia até a Ilha
de Alcatrazes a remo para pescar, contavam que
muitas vezes iam se abastecer de isca nos ninhos.
Como naquela época não existiam geladeirinhas de
isopor pra transportar a isca fresca, desenvolveram
um método de irritar o filhote do Carapirá com
pequenas ameaças até ele "vomitar" os peixes
trazidos pelos genitores, ainda fresquinhos. Alguns
filhotes cuspiam até um quilo de peixe!
Os Carapirás não pousam nem mergulham na
água. Dão vôos rasantes para pescar, mas molham
somente o bico. Percebem os cardumes dos peixes de
passagem quando o mar está borbulhando na
superfície e descem certeiros para pescar o peixe
escolhido.
Para pescar um Bagre, peixe que tem três
ferrões muito grandes, mergulha no ar quatro vezes:
na primeira apanha o peixe, sobe com ele bem alto e
solta; mergulha de novo no ar para apanhar o peixe
108
109
em queda livre, na posição certa que lhe permite
quebrar o primeiro ferrão; sobe novamente, larga o
peixe e, por duas vezes, repete a operação quebrando
os outros ferrões.
Quando os pescadores visitam suas redes e vão
jogando na água os peixes não desejados, são
cercados por Carapirás que fazem a maior folia.
Os Carapirás são capazes de permanecer horas a
fio planando nas correntes de ar quente. Imagina-se
que até dormem no ar. Cruzam grandes distâncias,
rapidamente,
voando
muito
alto
no
céu.
O
Arquipélago de Alcatrazes, único lugar onde já foram
vistos pousados, dista no mínimo 34 quilômetros da
terra firme, em linha reta.
Dona Rosalina, nativa de Boiçucanga, nos conta
um fato curioso que lhe aconteceu há cerca de
cinqüenta anos: Certo dia, lá na Soca, um lugar de
Boiçucanga que hoje chamamos de Maquininha,
estava
ela
trabalhando
109
na
roça
quando
de
110
repente...paff...bem na sua frente
surgiu
uma
pescada, bonita, fresca, vinda do nada. Olhou para o
alto e teve dificuldade de localizar o Carapirá
distraído que perdera parte de sua bagagem, tão alto
ele estava. Ficou um tempo ali, atônita, tendo nas
mãos uma pescada que caiu do céu.
Há cerca de 50 anos, vários moços de Boiçucanga
trabalharam na Ilha dos Alcatrazes, colhendo guano,
excremento das aves, um ótimo fertilizante que
estava sendo comercializado por um italiano no
interior de São Paulo. Moraram lá por uns meses,
mas a ilha não é adequada para seres humanos. Da
parte da Marinha, que tem o controle Legal da Ilha,
também nunca foi possível estabelecer ninguém.
Em compensação, a Ilha é o paraíso dos Carapirás e dos Atobás.
Também chamados de Mergulhões ou Patos do
Mar, os Atobás são ótimos pescadores e muitas vezes
seguem os barcos e aparecem por perto das praias.
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Ao contrário do Carapirá, pousa na água, nadando
tranqüilamente e, diretamente do vôo, pode mergujlhar para pegar o peixe dentro da água.
As duas espécies combinam suas habilidades
harmoniosamente. Muitas vezes o Carapirá, que
enxerga melhor e mais do alto, localiza o peixe e fica
rondando, esperando o peixe beirar a superfície..O
Atobá vai atrás da dica e como tem a capacidade de
mergulhar, acaba pegando o peixe primeiro. Pode se
dar bem, mas muitas vezes o Carapirá rouba o peixe
de sua boca. No final das contas, um acaba ajudando
o outro e a dobradinha vem dando certo. Dividem a
Ilha ainda em equilibrada harmonia com Gaivotas –
apesar de estas serem suas predadoras – e com
diversas outras espécies de aves marinhas.
Têm
resistido
bravamente
a
bombardeios
(literalmente) e continuam passando sobre nossas
cabeças com toda a dignidade.
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E VOLTANDO AOS PESCADORES
A atividade pesqueira diminuiu muito. Por um
lado, a vida de agora oferece outras fontes de
trabalho, de lazer e os supermercados oferecem
outros frutos de consumo. Por outro, ficou mais
difícil pescar por causa da pirataria das redes, por
causa do alto custo do material de pesca, pela
repressão legal e pelo transitar de lanchas, jet-skis e
banhistas.
E ainda por cima tem a poluição geral do Planeta
e o estrago da pesca predatória que faz o número de
peixes baixar drasticamente!
Apesar disso tudo, Boiçucanga continua sendo
uma vila de muitos pescadores. Ainda há meninos –
pequenos e adultos – sempre brincando com coisas
da pesca: é isca, é rede, é mergulho, é canoa, é
picaré, é caniço, é espinhel. . . E existe uma boa
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turma batalhando sério na pesca, embora a maioria
tenha também outro ganha-pão.
Se você chegar à praia de madrugada, assim
uma meia hora antes do dia clarear, vai ouvir e
talvez ver a movimentação dos barcos, redes, remos,
motores.
Quando no meio do dia o "pessoal de fora" vem se
estender na areia e vê aquele pessoal sentado na
sombra embaixo da árvore, batendo papo, pensa que
esses pescadores não fazem nada.
Se for lá perguntar quantas coisas eles já
fizeram ou viram acontecer. . .
Tem dia que não chega um peixe, mas com
certeza não é culpa do pescador. Se não saiu
nenhuma canoa é porque o mar não está deixando.
Mas pode contar que nesse dia tem vários pescadores
por aí remendando rede ou limpando motor, às vezes
esperando a primeira chance de correr lá para
resgatar sua rede que o mar pode estar destruindo.
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Agora, se os barcos saíram, mas os peixes não
vieram, então "fracassou". Acontece.
Pescadores voltando do cerco
E pra finalizar, cito palavras do pescador
Adijute, que sempre dava uma mensagem de
otimismo aos colegas:
"Peixe é como espuma do mar,
cada hora num lugar,
de repente aparece"
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Aos Pescadores
Adijuti;
Agenor;
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Anisio;
Ari;
Ari Sérgio;
Arildo; Benedito; Benjamim ; Beto; Bode; Brasilino;
Carioca; Carioquinha; Célio; Celso; Chicão; Chico;
Chico Gurupava; Clides; Clóvis; Crisanti; Dailtom,;
Dami; Daniel; Dito de Irene; Dito de Kida; Dito
Rita;
Donizeti; Ercílio;
Fernandinho; Filioca;
Gilberto; Gilmar ; Índio; Ion; Jair; Januario; Jerri;
Junior; Jururuca; Kida; Léo; Maneco; Maneco
Matos; Manoel Rita,; Maurício; Mimico; Mundéu;
Netinho;
Nino;
Olinto;
Oracio; Pedrinho;
Pelé;
Pimpe; Plácido; Rivelino; Romão; Satiro; Silmar;
Tião de Estevo; Ugolino; Vagner; Vicentino; Xixico,;
Zé Banana;
ZéBagunça;
Zeca e todos que não
lembrei o nome,
obrigada,
Nicia Guerriero,
Boiçucanga, 1994
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original)
ILHA DOS ALCATRAZES - São Sebastião – SP
Os Carapirás ou Alcatrazes não podem pousar em lugar plano,
pois têm as pernas muito curtas. A ilha que leva seu nome
oferece o abrigo ideal para seu repouso.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 2)
VISITANDO O CERCO AO AMANHECER
Na pesca de cerco, os pescadores vão puxando a rede até
reunirem os peixes ao alcance das mãos. Aí viram a rede por
cima da canoa e depois recolocam a rede no mar
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 3)
CHEGADA DO CERCO NUMA MANHÃ DE OUTONO
A chegada do cerco das 10 horas da manhã é aguardada por
caiçaras que apreciam almoçar um peixe que nunca esteve na
geladeira.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 4)
FIM DE TARDE DE INVERNO
Os pescadores visitam o cerco quatro vezes ao dia, em canoas a
remo. Na chegada, todo caiçara que estiver na praia ajuda a
puxar a canoa.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 5)
SOROROCAS NO VARAL
Antigamente a única maneira de conservar o peixe era salgá-lo
e secá-lo ao sol. Hoje é uma opção, cada vez mais rara por falta
de peixe.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 6)
ÁREA DOS PESCADORES
Algumas redes misturam panagem de algodão, tecidas e
tingidas no local, com panagem de nylon. As âncoras são
fabricadas pelos próprios pescadores com ferros e canos de
PVC.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 7)
ENTRADA DA BARRA
Antigamente o rio Boiçucanga era bem mais fundo, todo ele
navegável. Agora, para chegar ou sair para o mar é preciso
esperar a maré alta.
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(cartão postal inserido na dobra da capa na edição original - 8)
PÔR-DO-SOL DE VERÃO
As águas calmas e mornas dos fins de tarde, no verão, são
ideais para as pescarias de linha.
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CAPA - fotomontagem
1- Xixico (com Cambebinha na mão) e Silmar visitam rede
de fundo ao amanhecer
2- Carapirás rodeiam o barco
CONTRA-CAPA
1- Antigos pescadores : Plácido (Táti), Benedito Rodrigo e
Diógenes de Matos (1989)
2- Xixico passa numa canoa ao entardecer. Ao fundo Ilha
Montão de Trigo, Ilha dos Gatos, Ilha das Couves e As
Ilhas
NARRAÇÃO SOBRE A PESCA e ILUSTRAÇÕES : Xixico –
Celso de Souza Filho
OUTRAS INFORMAÇÕES: Rosalina, Maisa, Zilá, Fátima,
Lavínia, Celso, seu Benedito
TEXTO e FOTOS: Nicia Guerriero
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Ana Maria Xavier/Via das
Artes
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