SUOR E SALIVA Uarlen Becker [email protected]

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SUOR E SALIVA Uarlen Becker [email protected]
SUOR E SALIVA
Uarlen Becker
CONTOS
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SUMÁRIO
1. Os mortos - 3
2. E quando me vi - 5
3. A primeira vez - 9
4. Um passeio - 13
5. Pensamentos fumegantes - 18
6. Dies irae - 37
7. Dia dos namorados - 44
8. Cartaz ao velho João - 56
9. Tânia - 79
10. Suor e saliva - 82
11. Amanda - 94
12. O travesti de Sarnamby – 96
13. O abismo do primeiro andar - 105
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OS MORTOS
O peito da mulher estava apertado, não conseguia chorar. O calor era tão forte que
precisou abrir um botão da blusa. Sempre pudica, nunca ousara tanto. Sentia o odor das
flores e das pessoas, de sua triste desolação. Aproximava-se do túmulo. Pela primeira vez
em tanto anos faria aquilo. Ajeitou o cabelo e empinou os seios. Passou as mãos pela saia
plissada, que usara pela última vez havia quase vinte anos. Passou a língua nos lábios
sequiosos. Pensou nos filhos já crescidos, nas vizinhas carolas, nos vizinhos cobiçosos.
O túmulo do marido estava próximo. Seu coração batera mais forte. Um homem muito
velho cruzou seu caminho com um jarro velho cheio de flores murchas. Clementina não
gostava de flores, disse o velho, mas é tão estranho um túmulo sem flores, ainda mais no
dia de hoje, completara. Que tinha ela a ver com suas questões? Não deu muita atenção. De
súbito, o homem a puxou para trás da grande cruz de pedra. Beijaram-se com ardor sob o
sol forte. O túmulo do marido era sua única referência naquele lugar. Desde que João se
foi, era a primeira vez que estava com um homem. Sentiu seus músculos e sua barba rala a
roçar-lhe o pescoço. Revirou os olhos e sugou o ar com força pelas narinas. Percebeu a
mão forte e nervosa descendo por suas nádegas. Sentiu uma excitação tão grande que
imediatamente deu por si: estava viva. Seu marido ali embaixo, definitivo. “Que havia ele
de pensar, não seria pecado?”, indagou o homem limpando o suor da testa e olhando em
volta.
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A mulher olhou o céu: começara a chover. A água levaria embora a sua tristeza agora
finada, daria de beber a seu marido morto e a seus pares. Lave minha alma, ela disse já
completamente encharcada.
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E QUANDO ME VI
estava no imenso corredor de azulejos brancos. Encardidos. Por um momento senti uma
vertigem, vontade de deitar o corpo no chão, fechar os olhos e me fixar em minha própria
respiração. Representou-me estar correndo, mas na verdade eu caminhava lento, meu
coração acelerado, batia tão forte que eu poderia dizer que ele iria explodir. Agora eu tenho
a matéria do sonho, a partícula essencial de todos os meus medos, a face indizível daquele
traço permanente de vida. Ou de morte.
Caminho lentamente por esse corredor que agora é mais cinza do que branco. Uma chuva
fina atrapalha minha visão. Não estava preparado para aquele momento. Agora estou findo.
Pensei que nunca viveria para ver esse momento, para ter essa plena certeza. Fui atingido
por uma bala certeira, não perdida. Seu objetivo era tanger minha alma, esse espectro
profundamente imerso no caldo de uma existência opaca.
Ela me pareceu tranquila, afinal de contas esperava por mim. Nunca esperou por um jovem
jornalista. Jamais perdera seu tempo com coisinha estúpidas e corriqueiras do dia a dia dos
comuns, pensava eu ao deparar-me com uma criatura dantesca, dessas que se formam na
mais espetacular das imaginações. Oh, Deus, que quero de mim? Como engulo essa saliva
seca? Qualquer palavra seria um motejo. Se um olho piscasse seria um alento para a
paralisia completa de meu corpo. O ardor das vistas me serve de prova e de consolo.
Sento-me no degrau que dá para a entrada de um grande prédio de apartamentos. Não olho
para cima. As grandes formas altas sempre me oprimem. Tomo um único fôlego e me
levanto, tremem minhas pernas e meus braços. Olho em derredor e vejo uma abundância
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de luzes, ouço sons estridentes e pessoas que mercam utensílios de bem estar comum.
Olho para o céu e contemplo o grito vazio do tempo. Que corre. Que se acelera a cada dia.
Engulo a realidade a seco. Ela me queima a garganta. Não me ilude mais. Me oprime com o
revestimento de sua pastosa indiferença. De sua cruel alucinação. Ou. A realidade não é
composta de “ous”. Ela “é”. Esse “ou” deixo para os loucos. Para mim. Serei louco ou
artista? Sendo louco posso propalar-me rapidamente aos mistérios da invisibilidade, de uma
vã realidade. Sendo artista, posso me metamorfosear no ilusório de minha criação.
Plausível. O mundo inventado cheio de “ous”. Será uma pintura ou uma escultura? A peça
é realista ou expressionista? O livro é monótono ou inovador?
Isso que sinto agora não me serve. Porque não entendo. Curto o que não entendo, porque
me inquieta e me desloca da posição em que estou. Gosto do que tenta me persuadir a
tomar outra direção. Como agora. Seguro o caderno de anotações e o gravador como se
fosse um tesouro maior do mundo. Não poderei enterrá-los. As pessoas passam por mim e
eu me sinto superior a elas, pois tenho em mim um segredo. Que conheci ao vê-la de perto,
tão de perto como poucos. Trajada de vermelho, imensa de tão pequena. Não lembro a cor
de sua pele, o brilho de seus olhos, o viço de sua pele. A velha senhora parecia imóvel à
espera do jornalista. Disse-me que estava nervosa, pois fazia muito tempo que não dava
entrevistas. Cumpriria meu ofício e simplesmente me retiraria, sem asco, sem dor, sem
opinião alguma. O apartamento cheirava a alfazema e da cozinha vinha um cheiro de
banana cozida.
“Minha empregada está fazendo doce de banana, eu não devia comer, o médico me
proibiu, mas o que é a vida sem seus pequenos prazeres?”, disse a grande atriz, como se me
conhecesse.
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“Sim, os pequenos prazeres”, eu disse abrindo o caderno de anotações.
E segundo após segundo. E minuto após minutos. E ao cabo de menos de três horas ela
regurgitou sobre mim uma vida plasmada. Uma vida modelada nos princípio de não ter
princípios, de se deixar viver. De se deixar. O permitir-se. O poder. O satisfazer a si e aos
outros inteiramente. O brilho das varas de luz, das ribaltas para muitos inacessíveis. Não
consegui me mover. Paulatinamente me transformara em uma estátua. Não conseguia me
recostar. Estava fundido em minhas pernas. Meus braços fundidos ao lápis. O lápis
fundido ao caderno de notas. Quantos anos ela teria? Não diz a ninguém. Poderia ter uns
sessenta anos, mas o fulgor de suas palavras e a lancinante ânsia de viver que decorria de
seus olhos revelava a pungente menina senhora que estava diante de mim. A vida me
reservou esse gozo profissional. Quantos colegas na redação quereriam estar em meu lugar?
O furo de reportagem da grande atriz de teatro e cinema que saíra de seu emudecimento.
“O raio de sol das artes brasileiras”, disse certa vez a matéria de jornal escrita por um
crítico famoso. E eu estava ali iniciando um seu retorno. O retorno da velha senhora.
Agora eu sei. Descanso em um velho banco de praça. A luz do dia está indo embora. Ao
longe escuto uma velha canção, deve vir de um táxi à espera de um passageiro. Agora eu
sei. A noite insiste e vencerá. Certamente. Preciso arrumar o que escrevi, o jornal sairá
depois de amanhã. Tenho a matéria. Que vontade de sorrir. Sorrir despudoradamente, me
escancarar em um grande sorriso de estar. De ser e de estar. Quantas vezes na vida
podemos ser e estar? Agora eu sei. Agora eu estou. Quem poderia saber além de mim? Não
me tomo por corajoso para retornar lá e dizer que a beijaria com sabor de doce de banana.
E que por ela tenho agora esse grande sentimento. Comum a todos de coração
desprotegido. Ela não ficaria surpresa. A vida lhe reservou muitas. Olho para cima, para
bem alto no firmamento. Não consigo atingir o ponto máximo. Um dia eu chego lá. A
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tontura me mantém imóvel. A boca seca me faz lembrar quem eu sou. Quem poderia
adivinhar? Imoralidade, muitos diriam, ela uma senhora, eu um rapaz no começo da vida
adulta. O que sinto por ela? Não ouso mencionar. É erótico de tão vibrante. É
despudoradamente puro.
É o que chamam de paixão.
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A PRIMEIRA VEZ
Curvou-se e apanhou o anúncio chinfrim de uma cartomante oferecendo seus préstimos.
Leu vagamente sem dar muita atenção.
A moça atrasada.
Reparava nas casas de Salvador endireitando o pesado casaco de algodão: erguidas e
conjuntadas sem a menor harmonia.
“Deus, tanto espaço no mundo e tudo tão apertado, tão limitado... e minha casa no meio”,
falou baixinho.
“Ela não vem mais”, pensou enquanto dobrava o pequeno anúncio. Apertou-o entre os
dedos. Entrou num boteco cuja placa em sua fachada tinha a inscrição: “Senhor do Bonfim
bar e restaurante.” Ele, experiente na arte da sedução. Ele, de coração indolor, indiferente
às adversidades da vida, esperando alta noite por uma mulher esquálida que nem tem
carnes para apalpar. Parece mais um gafanhoto.
“Cerveja, por favor”, ele falou à moça gorda que limpava o balcão com uma flanela
vermelha.
O vento forte trazia folhas secas, pequenos grãos de areia, papéis sujos e uma chuva fina e
desordenada açoitando o asfalto e adentrando o pequeno estabelecimento. Meia hora dum
suspeito atraso já era demais, ele pensou olhando o relógio Casio Melody. Tinha que
terminar de ler o livro que deixara incompleto. Limpou o suor e oleosidade do nariz
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adunco. Estava decidido, iria terminar aquele breve namoro. Foram duas transar furtivas,
nada mais. Diria que estava amando outra mulher, sem piedade. A moça atrasadíssima.
A senhora de pele acinzentada entrou de supetão do bar. Ele pensava do romance cuja
leitura retomaria tão logo chegasse em casa. Em apenas uma semana lera “Taras Bulba” e
“Almas morta”, ambos de Gogol. “As três irmãs”, de Anton Tchekhov, além de “O
processo” e “A metamorfose”, de Kafka, e também “Triste fim de Policarpo Quaresma”,
do Lima Barreto, um exemplar datado de 1950 contendo um retrato do escritor prémodernista.
A preta lançou um olhar enigmático e puro por todos que se refugiavam ali. Carregava uma
sacola plástica contendo roupas, gêneros alimentícios e outras coisas que não se podia
identificar. Roupas velhas e amarrotadas. Suas sandálias de couro deixavam aparecer as
unhas sujas e pretas, devia ter andando o dia inteiro. O globo ocular era encoberto por uma
fina membrana amarelada e os capilares tornaram-se veias aparentes. O vento batia contra,
ele sentiu o bodum sufocante que exalava daquela pequena senhora. O relógio marcava
vinte e três e trinta. A velha pousou a sacola plástica no chão e lentamente assentou as
cadeiras num banquinho de madeira cuja tinta estava desbotada. Aquela imagem o deixou
ainda mais cansado. A voz cálida e roufenha dera-lhe um susto imenso. Engasgou-se com a
cerveja e molhou parte da camisa por baixo do casaco.
“Eu era tão feliz e eles levaram tudo pelo amor de Deus moço, eles levaram tudo, pelo
sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, tô o dia todo andando, qualquer coisa serve moço,
por essa luz que me alumeia eu tô falando a verdade moço”, falou-lhe a mulher sem
arrumar as ideias.
“Quem levou tudo tia?”, o homem perguntou após o último gole de cerveja.
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“O pessoal que chegou lá na invasão derrubaram os barraco mataram gente, dei queixa,
mataram minha neta, a mãe dela já tinha morrido mesmo que Deus a tenha. Só ficou uma
menina, uma sobrinha pequena que tá passando fome e tudo, tudo que eu tinha já dei.”
Coçou a cabeça aflita, com olhar perdido sobre a calçada. Cuspiu num canto do botequim.
O homem olhou e viu uma pasta branca com algumas bolhas de ar, um cuspe tão grosso
que os respingos da chuva que invadia o bar não conseguiram dissolvê-lo.
Mas que tinha ele a ver com aquela desgraçada?
Lembrou-se do anúncio da cartomante em suas mãos. Atirou o pequeno panfleto na rua, a
banhar-se com a água da chuva. A velha aproximou-se dele. Então percebeu que ela em
muito se parecia com sua mãe. Ele fez um esforço para tentar lembrar-se dela nos
momentos mais bonitos de sua vida, mas em sua mente vinham apenas os gritos e
murmúrios da morte, a agonia do quarto cheirando a remédio, a bacia cheia de vômito,
vômito e uma gosma branca que sua mãe vertera até exalar o último suspiro.
“Sua mãe agora está no céu, ao lado de nosso Senhor”, lhe disse uma tia segurando um
terço. Ficara surpreso, nunca tinha visto aquela tia tão devotada à religião. Famosa por dar
surras no marido desempregado e analfabeto. Altiva e orgulhosa de sua estupidez. Imoral
na escolha da vestimenta, e agora lhe aparece ali inteira. Na contraluz bem poderia parecer
a Nossa Senhora que jazia triste na mesinha do quarto de sua mãe moribunda.
“Não podia me ajudar, moço? Qualquer coisa serve. Não bebo, não fumo, só tenho fome”,
pediu a velha novamente, aproximando-se mais ainda. O homem pôde sentir seu hálito
quente. Notara no canto da boca da miserável um aglomerado de saliva amarelecida que se
expandia à medida que ela falava. Sentiu grande nojo.
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“E agora?”, ele pensou. Ele, um alto funcionário da Secretaria da Segurança Pública. Ele,
conhecedor das bebidas finas, as finas e as fulminantes de boteco com balcão imundo e
seboso como aquele. Ele, fino conhecedor das manhas da arte e da conquista.
Levantou-se de onde estava recostado e puxou uma nota de altíssimo valor. A velha
pensou como poderia trocar aquele dinheiro em miúdos, e se assustou quando o homem
entregou-lhe a nota. Estaria ele mesmo fazendo aquilo? Pensou na namorada apaixonada,
vítima de sua lábia irresistível. Deflorada pelo Grande Conquistador. Pensou nas lágrimas
da mulher apaixonada, a quem confessara ter-se entregue a ele para sempre, um homem em
que ela pôde confiar.
Viu de longe a nítida imagem da mulher lânguida e ossuda. Pôs-se a correr desesperado,
não dando tempo aos agradecimentos da velha, que com a cabeça baixa não percebera que
o homem não mais se encontrava ante a sua presença. Quando notou a ausência, olhou
para os lados, investigou a rua e gritou “milagre!”, todos riram pensando ser ela mais uma
dessas pessoas dementes que transitam pelos centros urbanos.
E o homem correu. A chuva encharcando sua roupa. Era Deus que descia escorregadio e
frio pelo seu corpo. O homem corria. Como se fosse a primeira vez que sentia compaixão
de seu próximo. Ou de si mesmo.
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UM PASSEIO
Acomodou-se placidamente no banco de trás do carro.
“A senhora não vem, mamãe?”, perguntou a jovem apertando o frouxo laçarote que
prende seus cabelos louros.
“Não vê que o motorista retira o meu casaco?”, disse a mãe irritada, enquanto o chofer
retira cuidadosamente seu casaco de pele.
Mãe e filha sentam-se distantes uma da outra no banco do carro. A mãe olhando para
frente. A filha observando a velha e conhecida paisagem.
“Com todo esse frio.”
“Ah, mamãe, até que é divertido sair no inverno”, diz a filha contente.
“Se seu pai estivesse vivo...”, emenda a mãe de maneira automática.
“Papai morreu há oito anos, mamãe.”
“Ele não permitiria esse excesso.”
“Permitiria sim mamãe.”
“Não entendo como faço essas coisas, não sei como você consegue me iludir. Não estou
me reconhecendo.”
“No início ou no fim da rua, senhora?”, pergunta o chofer de uma polidez impressionante.
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A madame cruza os braços, zangada. Torce a boca. Direciona o olhar para a janela, empina
o nariz. É uma jovem senhora branca e altiva. Sua pele ainda conserva certo frescor juvenil.
As unhas sempre bem cuidadas, a maçã do rosto bem firme e hidratadas, os seios rijos e o
olhar, apesar das pálpebras um pouco caídas, continua ainda vivo como os de uma jovem
de quinze anos.
“No final da rua seu Cristóvão”, diz a filha pondo a mão esquerda no ombro do
empregado. Efusiva, encosta-se novamente no banco de couro branco: “Ele toca tão bem,
precisa ver e ouvir!”.
“Minha filha... ainda está em tempo de mudar de ideia. Que mania mais tola você tem. Essa
gente não merece nosso crédito.”
“Ah, mamãe, eu gosto dele. Só porque é... só porque vive nessa parte da cidade... É pobre,
mas não é nenhum drogado, ladrão, marginal. Que mal há nisso?”
“Mas ele é... Ah, minha filha”, diz a mãe exasperada.
O motorista olha a cena pelo espelho retrovisor.
“A senhora me deixa triste falando assim.”
“Eu sou uma pessoa sincera, digo o que penso e o que sinto. Sabe que não gosto de
pessoas de cor. É melhor admitir do que ser hipócrita.”
“Mas poderia disfarçar um pouco, porque ninguém é obrigado a... Ah, esquece mamãe”,
diz a filha observando os transeuntes na calçada.
Param numa sinaleira. Uma criança aproxima-se.
“Diga que não queremos nada”, diz madame Dinah Chamie.
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O garoto bate no vidro, oferece algumas balas de hortelã dentro de um saco plástico puído.
Um menino forte, cabelos negros lisos desgrenhados; os olhos arregalados e sem o futuro
espanto advindo das coisas cotidianas. A jovem Elisa sorri e olha para a mãe.
“Me dá dez”, ela diz abrindo o vidro do carro. Entrega uma nota, mas o motorista arranca
antes de o guri entregar as balas. Ele corre. Elisa manda parar o carro e pega as balas.
“Não quer uma, mamãe?”, pergunta.
“Não seja tola. Eu não quero nada. Quando estiver sofrendo no hospital saberá as
porcarias que andou ingerindo.
“Quer uma balinha, seu Cristóvão?”
O chofer estende a mão direita pra trás e pega a bala.
“Eu vou te perdoar porque sei que a senhora não faz por mal, mamãe, isso acontece por
culpa da criação que meus avós deram à senhora. Tanta tradição e pouca humanidade. É
uma pena.”
“Você anda lendo muito livro de autoajuda. Espero que eu não tenha de me sentar nem
comer nada, essa gente adora nos forçar a comer”.
Chegam numa rua pequena, as casas dispostas lado a lado, quase todas com dois ou três
andares. Metade da rua é pavimentada. Um cão late sem parar para o imenso carro negro.
Param em frente a uma casa verde, com um portão de ferro na frente. Um rapaz negro
abre a porta. Segura um violão.
“Trouxe mamãe pra te conhecer”, diz Elisa apontando a mãe, que salta do carro e veste o
casaco. Venta muito.
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“Mamãe, esse é o Ademário”, fala Elisa.
Ademário ergue a mão, Dinah o cumprimenta gentilmente observando sua juventude, sua
beleza e seu corpo forte. O rapaz sorri visivelmente constrangido, tenta olhar a velha
senhora nos olhos. Parece querer se sobrepor àquela altivez e austeridade comedida. Dinah
olha para o violão nas mãos de Ademário. De um só fôlego inicia a conversa.
“Se você nos convidar a entrar, eu poderei pedir que toque alguma coisa”, diz,
miraculosamente rejuvenescida e prendendo os cabelos finos e generosos atrás de uma das
orelhas.
“Com todo o prazer”, diz o rapaz demonstrando maior encanto com a mãe do que com a
filha.
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PENSAMENTOS FUMEGANTES
As horas se passavam e eu estava cansado de olhar para o telefone à espera da ligação. Não
sabia qual dos três discos antigos que acabara de comprar em um sebo do centro da cidade
eu escutaria primeiro.
Estava na dúvida entre a Symphony nº 35 in D major, K. 385 Hafner, de Wolfgang Amadeus
Mozart, ou o Rondeau, de Henry Purcell, na interpretação magistral de um trompetista
mundialmente famoso, que tive a oportunidade de conhecer sem saber quem era o Wynton
Marsalis, numa viagem que fiz a um festival de jazz em Montreux, na Suíça. Desfiz a dúvida
pondo um Prelúdio, de Shostakovich. A pianista Tatyana Nikolayeva sempre me surpreendia
com a austeridade e convicção emocional que extraía das teclas de seu piano.
Olhei para o relógio na parede e para a estante empoeirada. Percebi que alguém acabara de
colocar uma correspondência por baixo da porta, mas não fiz a menor intenção de ir ver o
que era. Deitei no sofá e fiquei ouvindo a canção enquanto olhava sem muito interesse o
meu trompete jogado ao léu num espaço contíguo entre a sala e a cozinha. Lembrei do
Chet Baker e de Louis Armstrong. Lembrei das noites passadas. Eu e meu trompete
trabalhando arduamente naquela churrascaria na orla da cidade. Os seguranças trajados de
puro linho tingido de azul escuro. O manobrista cuja pele do rosto parecia a de um
cadáver. Os jovens casais da sociedade em roupas vulgares mostrando o corpo numa
tentativa exacerbada de seduzir o próximo. Os arranjos florais amarrados com um fio de
sisal colorido pousado cuidadosamente no centro das mesas. E aquela angustiante sensação
de desprezo. Filhos da puta eu pensei. Nenhum deles sequer olha para um de nós músicos
aqui em cima desse tablado vagabundo debaixo desses dois refletores com gelatina azul.
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“A gelatina azul é para dar um clima mais soturno e romântico”, dissera o dono do
restaurante, um homem jovem, bastante calvo e excessivamente afetado que malha todos
os dias na mesma academia que eu.
Pelo acordo eu tocaria dois finais de semana e naquele último dia, pensando bem última
noite, meu estômago doía furiosamente e eu estava sem um mínimo de paciência. O
desenvolvimento das músicas foi seguido fielmente por mim que não tirava os olhos da
partitura. Não tinha cabeça para improvisos e divisões rítmicas. Os aplausos mecânicos me
deixavam enfastiados.
“Você quer em dinheiro ou em cheque?”, perguntou Júnior.
“Em dinheiro”, respondi secamente limpando o suor da testa com o mesmo lenço que
havia limpado os pistões do trompete.
“Aqui está”, ele disse erguendo um maço de notas. “Agora ganha um pouquinho mais se
me deixar dar uma pegada”.
Senti sua mão abrindo a braguilha da minha calça. Sorri, peguei o dinheiro e então desferi
um soco que Júnior caiu desacordado por entre um amontoado de panelas sujas com farofa
e salada. De seu nariz começou a escorrer um sangue grosso e escuro.
Escuro como a noite que vi lá fora. Não sou um cara violento, não gosto de agredir
ninguém, nem verbal nem fisicamente. Mas aquilo me tirou do sério. Poderia ser uma
mulher, adoro as mulheres, mas gosto de avançar, gosto das mulheres que se fazem de
difícil, não daquelas que se atiram em cima da gente feito urubu na carniça. Não soquei o
Júnior por ele ser homossexual, mas por causa daquele gesto agressivo e invasivo. Estava
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mergulhado nesses pensamentos. Acordei assustado. O telefone gritava nervoso. Olhei a
vitrola, a música tinha terminado.
“Estou te esperando na porta do cinema”, ela falou do outro lado da linha com a voz altiva
e sensual de sempre. Desligou.
“Está a fim de me sacanear”, falei desligando o aparelho.
Saí vestindo a camisa de listras pretas que ganhara de uma fã carente e suburbana no natal,
quando tocava na praça central de um Shopping Center. Ganhava por hora para tocar
músicas natalinas. Para esculhambar, tanto no desenvolvimento temático como no rítmico
eu punha notas de A perereca da vizinha, canção de um grupo nordestino de forró. Então
botava no meio do refrão excertos de qualquer melodia do Megadeth. As crianças paravam
e me olhavam assustadas sem entender o que eu estava tocando.
Antes de sair deu tempo de pôr no digital player, para repetir ininterruptamente e em
volume em alto, uma música “mundana”. Para pirraçar. É que ao lado de minha casa um
ex-vendedor de panelas abrira uma pequena igreja e não me deixava sequer escutar meus
pensamentos, com os crentes cantando cânticos, debatendo-se e expulsando espíritos até
altas horas da madrugada, quando não faziam vigília que só termina no meio da manhã. Há
mais de dez anos que aquele homem mercava suas panelas por aquelas plagas. Sua lábia
infindável o fazia vender terrenos até na lua. As donas de casa por compaixão o
convidavam para almoçar em suas casas. O comerciante contava desgraças da vida e seus
coadjuvantes, sabia tocar o coração das pessoas com superlativos, adjetivos decorados e
trechos apocalípticos extraídos da Bíblia. Chegando à porta uma devota gritou “ímpio!”,
entrou e fechou todas as janelas. Sorri divertido quando já estava longe e ainda escutando
os pesados acordes da música heavy.
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Ela trajava um daqueles vestidos tubinho em um tom pastel com algumas lantejoulas da
mesma cor na área ao redor do pescoço. Os cabelos pendiam retesados ao longo das
costas, nem um fio fora do lugar. Cumprimentou-me com um suave aperto de mão. Senti
um leve odor de jasmim.
“Aqui é um lugar muito movimentado”, ela disse olhando em volta, “venha, conheço um
local mais seguro.”
“Mas não foi você mesma que...”
“Não diga mais nada e me siga”, ela me cortou dando as costas.
Rapidamente chegamos ao Mosteiro de São Bento, ao lado de uma rua larga repleta de
ambulantes, lojas as mais diversas e carros barulhentos indo em direção à Praça Castro
Alves. O Mosteiro fica numa Praça, numa área recuada. A arquitetura majestosa e
imponente da edificação me levou aos tempos de criança, com todas as rezas e novenas de
minha mãe. Na capela algumas poucas pessoas rezavam contritas. Um monge passou
segurando um livro grosso. Como essa gente estuda, eu pensei. Ela parou em frente a um
altar com uma Nossa Senhora de Assumpção. Evitei olhar para a face triste da imagem.
Esse tipo de ambiente sempre me deprime.
“Você sabe que isso é perigoso?”, ela perguntou baixinho sem tirar os olhos da imagem.
“Sei”, falei.
“Você pode ser preso por isso.”
“Eu vou tomar todos os cuidados.”
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“A polícia está atrás de nós. Descobriram muita coisa, inclusive um de nossos escritórios.
Mães arrependidas deram depoimentos à imprensa. Os telejornais caíram em cima feito
urubu na carniça”, ela falou e notei que estava ansiosa. Uma gota de suor escorria pela sua
testa.
“Não tem problema, já disse que tomarei todos os cuidados possíveis. Estou precisando
muito do dinheiro. Se me der às informações hoje mesmo eu posso começar”, eu disse
tentando olhar para uma das imagens.
Um homem entrou na capela e parou frente a um altar ao lado do nosso.
“Vamos sentar.”, ela disse fazendo o sinal da cruz.
“Vamos”, eu disse notando que a imagem tinha os lábios parecidos com os dela.
Sentamos bem de frente ao altar mor. O chão da nave da igreja brilhava de tão limpo. O
altar adornado com flores artificiais e contornos dourados. Olhei impaciente para cima. Ela
em silêncio. A abóbada me fez lembrar as aulas de acústica que tive no ginásio. Imaginei-a
toda vítrea, o vidro colorido por um artista modernista.
“Não está me ouvindo?”, ela perguntou.
“Amém”, eu falei e ela sorriu.
“Tolo. Perguntei se você aceita trabalhar conosco.”
“Sim, aceito. Mas é tudo no maior sigilo, não é?”, perguntei e ela me lançou um olhar frio.
Notei que fizera uma pergunta idiota e recuei. “Brincadeira. Falei isso para quebrar o gelo.”
A emenda pior que o soneto.
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“Tome esse envelope”, falou abrindo a bolsa vermelha e retirando um pequeno envelope
pardo, entregou-me.
“O que tem aqui dentro?”, perguntei fixando meu olhar no altar.
“As instruções. E um adiantamento.”
“Vamos?”, perguntei ansioso.
“Mais uma coisa. Acho que estou sendo seguida. Um homem de pele avermelhada
parecendo um alemão. Já o vi três vezes. Está sempre vestindo uma capa preta. Um calor
desses e ele de capa. Um verdadeiro clichê. Tem um bigode grande, parecendo o bigode de
D. Pedro. Se perceber que ele o está seguindo também incinere o envelope imediatamente.
Vamos.”
Levantou-se bruscamente. Eu tinha começado a ficar nervoso e uma pontinha de
arrependimento tomava conta de meu coração, quando ela se levantou. Será que ela notou?
Eu pensei enquanto caminhávamos até a saída, ambos em total silêncio. Lá dentro pouco
se ouvia dos carros barulhentos do lado de fora. Pus os óculos escuros. O sol forte
incendiava meus olhos.
“Como é que eu faço pra me comunicar?”, perguntei rapidamente.
“Não se preocupe. Nós entraremos em contato”, falou me olhando nos olhos, um olhar
investigativo. Estendeu um braço chamando um táxi que ia passando. O carro parou e ela
entrou. O motorista sinalizou e desviou pela Rua Carlos Gomes.
Caminhei apressado até um shopping Center. Pessoas esbarravam-se em mim, então
desviei tomando uma escada de acesso ao terceiro piso, mais vazio, possuindo apenas dois
restaurantes, duas livrarias e uma loja grande de eletrodomésticos. Entrei no sanitário. Dois
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homens fingiam urinar no mictório. Um olhando para o pau do outro. Entrei no
compartimento do vaso sanitário. Arranquei um pedaço de papel higiênico e com ele
segurei o trinco da porta e travei-a. Em seguida abaixei com os pés a tampa do vaso
sanitário. Sempre tomei esses cuidados para evitar contaminações nos locais públicos.
Principalmente banheiros. Sentei devagar na latrina. Olhei por uma frincha da porta: os
dois homens estavam lá, um olhando o pau do outro, ninguém entrara no recinto. Abri
cuidadosamente o envelope. Três notas de cem dólares, uma folha de papel com o
endereço de três mulheres, três fotos de crianças, duas meninas negras e um menino pardo
chorando. Uma folha pautada com as instruções escritas a mão. Li atentamente a todas elas
e tomei consciência do que estava fazendo. Guardei tudo dentro do bolso da calça, os
dólares no bolso da esquerda. Arranquei mais um pedaço de papel higiênico, apertei
enojado o botão da descarga. Depois destravei e abri a porta. Os dois homens não estavam
mais lá. Um homem negro vestindo um macacão verde escrito serviços gerais em letras
grandes passava um pano molhado no chão.
A Igreja Cristã Jesus Salvador, nome criado pelo seu fundador, o ex- vendedor de panelas
estava lotada naquela noite. Na porta um jovem com os lábios grossos bastante molhados
de saliva entregava alguns panfletos aos passantes. Peguei um, dobrei e pus no bolso da
camisa.
“Jesus aceita o seu arrependimento irmão”, falou o rapaz.
“Tá certo”, eu disse sem prestar muita atenção, queria mesmo observar a oratória do antigo
comerciante.
Pastor João, assim todos o chamavam. Antigamente atendia por João Ladrão, uma alcunha
que pegou pelas redondezas devido aos preços exorbitantes que botava nas mercadorias,
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em sua maioria panelas de material barato e descartável, mas que João conseguia vender
assim mesmo, dando às donas de casa prazos longos e juros escorchantes às prestações dos
utensílios. As paredes do pequeno templo estavam pintadas de azul, um azul celeste. A
parede ao fundo do pequeno palco onde estava João possuía uma pintura tosca, uma
representação do céu e da Glória de Deus, Ele sentado num trono rodeado de anjos
vestidos de branco circundados por uma tinta dourada. Mais embaixo uma inscrição com
letras feitas de isopor que eu não conseguia identificar o que dizia porque no momento
todos os fiéis se levantaram erguendo as mãos para o alto. A plateia composta por idosos e
mulheres, poucos jovens. Pastor João falava bem alto no microfone. Sua dicção perfeita
ajudava-o ainda mais nas inflexões enfáticas. A alternância entre os tons graves e agudos, a
perfeita intenção no martelo da voz atingia em cheio o coração das pessoas. Muitas
estavam agitadas, sentando e levantando a toda hora. Algumas gritando améns e aleluias.
Pastor João baixava o tom de voz quando falava as palavras de Cristo e se exaltava quando
se referia aos ímpios que herdariam o fogo do inferno, o reino de Satanás. Num dado
momento de seu discurso, Pastor João ajoelhou-se e fechou os olhos, pôs a mão esquerda
no peito. Disse conversar com Deus, e que ele mandava um recado aos seus súditos.
Muitos começaram a chorar. Quatro ventiladores presos numa parede jogavam para fora
do templo um ar quente e fétido, uma mistura de suor, bodum e saliva podre.
“O Senhor pede a ajuda de seus filhos... para o soerguimento de um templo... que possa
acolher um maior número de pessoas dispostas a almejar a Sua glória. Deus pede a
contribuição material, jóias, terrenos, até mesmo o dinheiro imundo que a tantos
corrompe”, ele gritou e todos jubilaram num coro uníssono de améns e aleluias.
Deitado no velho sofá bordô eu rememorei aterrorizado as instruções contidas na folha
pautada. Tudo estava escrito em letrinhas minuciosamente cortadas de revistas e jornais,
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como as cartas de seqüestradores de filmes de cinema: Jamais mencionar endereços ou
telefones para contato; nunca dizer o nome verdadeiro; dizer que reside em outro estado da
federação; evitar envolvimentos emocionais com as partes envolvidas na transação; ter e
praticar uma profissão esporadicamente como álibi. Fechei os olhos e adormeci.
Fui até a invasão indicada no papel que ela me entregara junto com as instruções, as
fotografias e os dólares. A calçada da rua principal terminava numa enorme manilha cuja
abertura numa das laterais, feita a machadadas, eu pensei, recebia os dejetos de um pequeno
riacho oriundo de um amontoado de becos e casas sem reboco e telhas de amianto. Pus um
boné que estava preso à passadeira da calça, botei os óculos escuros, acendi um cigarro.
Notei que o chão de terra batida estava úmido e um pouco amolecido. Um angustiante
odor de fezes e bolor inundava as estreitas vielas. Nas portas de algumas casas cartazes de
candidatos a pleitos políticos. Ali também uma pequena igreja evangélica pintada de verde
com a designação feita à mão em tinta óleo. Cheguei numa pequena praça, havia
caminhado uns vinte minutos, e não vira nenhuma placa de sinalização.
“Idiota”, falei para mim mesmo olhando em volta. “aqui o pessoal não tem sequer luz
elétrica formal, água, esgoto!”, e olhei o amontoado de fios no alto das residências. Duas
crianças nuas brincavam com um gato esquelético.
Um homem barbudo, vendedor ambulante, passava segurando numa mão uma caixa de
isopor, na outra, duas latas: uma de refrigerante e outra de cerveja. Pedi um refrigerante.
“O senhor conhece a Avenida Santo Antônio?”, perguntei limpando o suor que escorria
pela testa e entregando-lhe o dinheiro.
“O distinto tá vendo aquele terreiro de macumba ali atrás daquele poste?”, falou o homem
bem alto devido ao hábito de seu ofício.
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“Estou”, falei já arrependido, pois o homem fazia um escândalo ao falar. Notei que uma
mulher botou a cabeça pra fora da janela de seu barraco.
“Fica atrás. O senhor pega essa rua aqui em frente, dá a volta e chega lá.”
“Obrigado.”
A avenida estava indicada por uma plaquinha de madeira no alto de um poste de ferro.
Tive que passar por uma viela mais obscura que todas as outras. Na porta de um barraco
jazia estendido um velho colchão exalando um forte cheiro de urina. Estava sobre um tonel
revestido de cimento. Uma criança chorava. Meu sapato de bico quadrado ficou coberto de
lama. Senti que um mosquito me havia picado no pescoço. Logo no início da Avenida
Santo Antônio havia uma vendola de cachaça, biscoitos e refrigerantes.
“A senhora pode me informar onde é a casa de dona Ermenegilda?”, perguntei a uma
jovem moça que arrumava algumas garrafas em cima dum balcão revestido com fórmica
vermelha quase que inteiramente carcomida pela ação do tempo.
“Ermenegilda?”, perguntou a moça sorrindo ternamente. Notei seus dentes perfeitos. Os
cabelos presos num coque no alto da cabeça, suas unhas pintadas com um esmalte incolor
já descascando. Os seios rijos libertos de qualquer prisão pareciam querer furar a blusa de
malha branca que vestia.
“Essa mesma”, falei sorrindo também me insinuando.
“Nesse mesmo lado, três casas depois. Tem uma cruz de folhas na porta. Pode bater com
força que ela só fica no fundo lavando roupa.”
Agradeci sorrindo e piscando os olhos para a jovem mulher, que debruçou no balcão, e
quando dei as costas senti que ela me observava.
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A humilde casa ficava espremida entre uma pequena porta onde havia inscrito “vendo uma
geladeira” e outra com uma janela gradeada.
Bati com força e só na quarta vez alguém veio atender. Abriu a porta uma negra com olhos
vermelhos. Estava com o braço esquerdo enfaixado.
“Dona Ermenegilda?”, perguntei.
“Sou eu mesma. Olha moço eu não tenho gato nenhum em meu barraco, tô vivendo de
candieiro”, ela falou desconfiada.
“Não é nada disso”, falei baixando o tom da voz “vim pra falar com a senhora sobre a
criança”, e olhei para dentro do casebre na direção de uma pequena cama de solteiro onde
uma criança debatia-se em choro convulsivo.
“Ah, pode entrar, não repare a bagunça”, disse a mulher olhando para um lado e outro da
rua antes de fechar a porta. “Olhe moço, eu só tô fazendo isso pela precisão, que eu acho
isso uma coisa horrível pra uma mãe fazer com um filho, mas é pela precisão.”
“A senhora pode ficar despreocupada que eu não vim para lhe julgar. Quem julga é... a
criança é essa?”, perguntei apontando a recém-nascida que havia carregado no colo.
“De jeito nenhum, minha menina eu não faço uma coisa dessas não, é o outro que tá
dormindo aí atrás do senhor.”
Virei assustado. Notei que no pequeno tamborete em que havia me sentado, uma velha
cortina amarelada dividia o vão em dois. Abri ansioso a cortina e pude ver uma criança
aparentando dois anos adormecida sobre uma cama.
“Tem quantos anos?”, perguntei.
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“Quatro vai fazer”, respondeu a mulher puxando um dos seios por baixo da blusa preta
que vestia e dando à criança. “Olhe seu moço, eu só vou fazer isso com Carlinhos porque
sei que ele vai se dar de bem no estrangeiro, fiquei sabendo que esse pessoal branquelo
gosta dos menino preto e pagam direitinho. Só faço isso pela precisão, senão não ia vender
o menino não, de jeito nenhum. Moço, ele vai ser bem tratado mesmo?”
“Sim, vai ser bem tratado, eu garanto”, respondi com a voz vacilante, e cheia de dúvidas
com respeito ao que acabara de dizer à pobre mulher.
“Quanto é?”, perguntou ela aproximando-se após colocar a filha na pequena cama,
adormecida.
“Quanto é o quê?”, perguntei.
A mulher me olhou assustada.
“Quanto é que o senhor quer dar pelo menino?”
“Ah, sim... cinco mil.”
“Nossa mãe... mas é muito dinheiro...” ela olhou para a filha que dormia inocente. “Quem
é que tem tanto dinheiro assim para dar tanto por um menino pobre?”
“Não interessa. A senhora vai aceitar ou não?”, perguntei impondo autoridade.
Na volta olhei em direção ao boteco. A moça ainda estava lá, e sorriu para mim.
Aproximei-me.
“Está lendo?”, perguntei ao ver que ela segurava um livro.
“Não, é o caderno que a gente anota os fiados.”
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“Nós? Nós quem?”
“Eu e minha avó. Meu pai tá no hospital muito doente. Bebe desde que era menino.”
“Sua avó está em casa?”
“Está sim. E o senhor?”
“Me chame de você, o senhor tá no céu”, falei interrompendo.
“Você... você mora com alguém?”
“Moro sim.”
“É casado?”
“Moro com meu trompete e minha vitrola.”
“Trompete?”
“Sim, sou músico profissional. Mas a coisa tá dura, nessa terra de analfabetos pouca gente
dá valor ao que faço.”
“Eu gostaria de ouvir o se... você tocar...”
“Pede a sua avó pra tomar conta do boteco.”
“Pode esperar lá na entrada? Daqui a meia hora eu passo por lá.”
“Está bem. Daqui a meia hora. Se passar disso vou embora”, falei fazendo charme.
Ela surgiu trajando saia longa e uma blusa de tricô cinza, seus cabelos agora estavam soltos
arrumados com uma tiara de veludo marrom.
Para impressionar peguei um táxi.
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Na Igreja Cristã Jesus Salvador as obreiras limpavam o pequeno templo. Uma mulher
distribuía panfletos a quem passava. Quando me viu recuou. Escutei quando ela falou “tá
amarrado”.
Senti um pouco de vergonha por causa da bagunça. Roupas espalhadas pelos móveis,
pratos e panelas sujos na pia. Mandei que ela sentasse. Apanhei uma garrafa de vinho que
estava pela metade. Tomamos olhando um para o outro.
“Você não vai tocar pra eu ver?”, ela perguntou.
Peguei o instrumento musical. Pus em cima da mesa. Tirei toda a roupa.
“Não se assuste, em casa só toco nu.”
Subi numa cadeira e comecei a tocar Mack the knife de Kurt Weill e Bertolt Brecht e
Blitztein. Em seguida iniciei A Kiss To Build A Dream on, de Kalmar e Ruby. Não estava no
meio desta canção quando ela levantou-se e começou a chupar meu pau. Não precisou
curvar-se, pois além de eu estar num plano alto ela era baixinha.
Começou a despir-se. Parei de tocar. Sua vagina estava bastante úmida e apesar de apertada
não tive dificuldade em penetrá-la.
Seu gozo foi seguido de palavras chulas em meu ouvido e arranhões em minhas costas.
Acendi um cigarro. Notei que ela começara a chorar.
“O que foi? Não gostou?”, perguntei curioso.
“Sim.”
“Então, por que está chorando?”, perguntei paciente.
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“É que sou uma boba sonhadora. E você parece tão bom que... eu queria te pedir uma
coisa.”
Por um momento pensei que ela queria dinheiro. Pensei nos dólares que guardava para a
viagem.
“Me deixa vir morar aqui com você. Eu não vou dar trabalho”, falou baixinho em tom
suplicante entre soluços. Deixa eu ser sua mulher, não importa se você tiver outras, não
importa, eu fico o tempo todo aqui dentro de casa. “Contanto que você toque de vez em
quando para mim e a gente foda como agora...”
“Eu estou me mudando”, falei pensando na viagem.
“Me leva com você.”
“Está bem”, disse tentando parecer verdade o que eu dizia, “eu te levo comigo.”
“Obrigada.”
“Como é o seu nome?”
“Vanessa”, ela disse pousando a cabeça sobre meu peito e adormecendo em seguida.
Fiquei olhando o ventilador no teto girando lentamente. Aquela imagem-clichê me deixou
sonolento.
Quando acordei Vanessa estava sentada frente a mim. Um cheiro de comida me fez olhar
em volta: a casa estava toda em ordem e na mesa um lauto café da manhã, suco, queijo,
torradas, pão, leite, iogurte e frutas.
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“Onde arrumou dinheiro pra comprar tudo isso?”, perguntei pondo um pouco de suco
num copo.
“Eu trouxe de casa”, ela respondeu e me abraçou.
Sentamos e comemos.
“Quando é que você vai me buscar?”, ela indagou ansiosa.
“Semana que vem talvez terça ou quarta feira.”
“Eu vou deixar tudo arrumado, não se preocupe que minha avó não vai saber de nada.
Minha tia vai cuidar dela.”
“Tia, que tia? Você não me falou em tia nenhuma.”
“É que fiquei te olhando admirada e esqueci. Minha tia Ermenegilda que você estava
procurando... ela não se dá bem com papai e por isso mora numa casa separada com os
meninos. Minha avó disse que assim que meu pai morrer ela vai chamar tia Ermê de volta
pra morar com a gente, quer dizer, com ela, já que eu vou tá morando com você.”
Vanessa e eu nos despedimos numa praça ajardinada que havia próximo de minha casa. De
longe vi quando ela tomou o ônibus para casa, e eu tive pena dela. Eu nunca mais a veria.
Nem ela a mim. Cheguei em casa, tirei a roupa, peguei o trompete e toquei This Year’s
Kisses, do J. Berlin, que peguei de ouvido duma gravação na voz única de Billie Holiday.
Antes de terminar a música notei um envelope próximo à porta, no chão. Lembrei que
alguém o colocara por baixo da porta e eu esqueci de pegar. Apanhei a correspondência e
fiquei extasiado de alegria com o que li. Finalmente eu era convidado para participar do
festival anual de free jazz que acontecia em Garmish-Partenkirchen, na Alemanha.
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Com o dinheiro da venda da criança eu poderia abrir um pequeno galthof. Era a glória!
A entrega da criança foi feita no terceiro andar de um edifício garagem na Avenida da
França, no Comércio, Cidade Baixa. Ermenegilda não quis se despedir. Quando eu lhe
telefonei e ela me disse que eu deixasse o dinheiro sobre o tamborete em que havia me
sentado na primeira vez em que estive em sua casa. A porta estaria aberta, eu chegasse bem
cedo, ninguém notaria. Olhei a vendola de Vanessa: fechada. O dia mal tinha raiado
naquela quinta feira chuvosa. A criança dormia.
“Ninguém vai fazer mal a ele, vai?”, perguntou Ermenegilda saindo de um desvão da casa.
Com o susto eu quase gritei. Pus as mãos tapando a boca e respirei fundo.
“Está maluca?”, perguntei furioso.
“Desculpe moço, é que decidi me despedir do menino.”
Apanhou a criança, faz-lhe um carinho na face e me entregou. Entreguei-lhe um envelope
bojudo de dinheiro. Moeda brasileira, se fosse em dólar não faria todo aquele volume. A
mulher agradeceu e pôs o dinheiro entre os seios, pela gola da blusa. Cobri a criança com
uma capa, saí deixando a porta entreaberta.
Na entrada do edifício a criança acordou e para minha surpresa ficou em silêncio. Por um
momento até sorriu pra mim, e pude ver quatro dentes alvíssimos. Parecia se habituar a
pessoas estranhas. Pousou a cabeça em meu ombro. Entrei no carro e fui tomado de um
pânico terrível. Um homem forte, de pele avermelhada, com um bigode imenso que quase
tocava as orelhas estava ao lado dela.
“Mas o que significa isso? Vocês são da polícia?”, perguntei aterrorizado.
“Não é nada disso, Von Price é quem cuida da grana e faz o contato com os gringos.”
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“Mas você me disse que...”
“Que ele estava me seguindo? É um teste que a gente sempre faz com os novatos. Só leve a
sério a incineração do envelope com as instruções”, ela disse sem me olhar. Em seguida
chamou a criança para si, que foi imediatamente. O Von Price abriu a boca de Carlinhos e
averiguou seus dentes. Depois puxou uma sacola plástica de dentro do porta-luvas do carro
e me entregou. Identifiquei a voz de Maria Callas no disc que ela acabara de colocar.
Conferi as notas arrumadas em quatro maços: vinte mil dólares.
“Daqui a três meses você vai negociar as outras crianças cujas fotos estão em seu poder?”,
perguntou Von Price seca e pausadamente no banco da frente.
“Sim” falei sentindo o odor que o dinheiro exalava “eu vou negociar as outras crianças.
Como é o seu nome?”, perguntei dirigindo-me à mulher.
“Para quê você quer saber?”, perguntou investigativa.
“Nada, curiosidade, é estranho eu trabalhar para você e... deixa pra lá, até a próxima”, falei
saindo do carro, após Von Price ter me dado passagem. “A propósito, onde mora o casal
que irá adotar a criança?”
Ela parou com a boca aberta, o fôlego suspenso, a resposta na ponta da língua, olhou na
direção de Price, que tinha saído do carro e acendera um cigarro.
“Inglaterra. Londres”, respondeu e a criança começou a chorar, como se tivesse entendido
a conversa. “Fiquei tranqüilo, entraremos em contato com você.”
Tencionava fazer um Tour pelo Brasil pesquisando ritmos musicais, um país tão vasto e tão
rico em sua cultura faria bem a um músico desiludido como eu, mas quis o destino ou sei lá
o quê que eu fosse escolhido para participar do festival na Alemanha. Deixei a maior parte
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das roupas em casa. Arrumei apenas uma mala com cuecas, escova de dente, lenços, calças
e camisas. Apenas um sapato, o que eu estava calçado. Na outra mão levaria meu trompete.
Dava adeus à vitrola quando o telefone tocou.
“Está tudo bem?”, era ela, a voz sensual como sempre.
“Sim, tudo bem, algum problema?”
“Não. Acabamos de entregar a criança ao casal de médicos aqui em São Paulo. Eles já
embarcaram rumo a Londres.”
“Médicos?”, perguntei apertando os pistões do trompete.
“Sim... a história de adoção é para suavizar a coisa, para dar um aspecto mais familiar e
tranqüilo. Pensei que você fosse mais esperto, as pessoas me surpreendem. Mas não se
aflija, a criança não vai sentir dor, os doutores são especialistas.”
“Peraí... sentir dor?”, perguntei aflito. “Isso não estava no acordo que fizemos você não me
disse que...”
“Eu disse o essencial para você fazer a sua parte. A criança estará sedada, não se pode
extrair seus órgãos se não estiver sedada. Agora fique tranqüilo e não tente fazer nenhuma
besteira, eles te pegam debaixo da cama, se for possível e praticam torturas inimagináveis.”
Desligou com a mesma inflexão de voz de sempre, sem nunca se alterar ou se envolver.
Meu peito estava comprimido. Deitei no sofá e fiquei olhando o ventilador parado por
mais de duas horas. Em seguida levantei e saí. Os fiéis desesperados da Igreja Cristã Jesus
Salvador Chegavam apressados. Nuvens negras encobriram o céu da cidade. Uma senhora
segurando uma bíblia esbarrou-se comigo e continuou andando. Chamei um táxi e pedi ao
motorista que ficasse dando voltas pelo bairro. Lembrei de Vanessa. Não consegui chorar,
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nunca consegui chorar, nem no enterro da minha mãe. Na poltrona do avião acordei em
pânico. Fiquei um bom tempo observando a paisagem pela janela.
Novamente as imagens vieram em minha mente. Quando dei por mim estava no inferno de
fogo. Labaredas gigantescas, partituras incandescentes. Carlinhos tocava um trompete em
chamas. O diabo tinha a cara do Pastor João e ria para mim enquanto regia uma orquestra
de pessoas em chamas.
Desde então convivo com esses pensamentos fumegantes.
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DIES IRAE
A professora Margot é uma mulher muito alta. Alta e gorda. Conserva uma juventude no
sorriso disposto e no olhar investigativo. Seus seios, sua barriga e suas pernas juntam-se aos
braços num bolo de carne desproporcional. Apesar disso, é uma mulher extremamente
feminina e sensual. Existem mulheres que possuem essa essência de fêmea, algo que muitas
mulheres belíssimas não conseguirão atingir nunca. Namorei uma modelo lindíssima, mas
depois percebi que ela não passava de uma tábua, quando a beijava e quando transávamos,
parecia que eu estava com um corpo morto. Seus gestos e sua forma de caminhar eram
frios e meticulosamente calculados. Os ossos do ofício?
Quando me viu, Margot permaneceu gesticulando, abrindo os braços e as pernas, fazendo
quase uma encenação grotesca durante a aula que ministrava a alunos atentos. Na parede,
acima do quadro negro, que era verde, um monte de pichações com nomes escrotos em
letras retorcidas, e um desenho de um pênis estilizado. Escutei de um aluno que ele gostava
de assistir às aulas da professora Margot porque ela botava pra fuder, dissera. A verdade é
que Margot falava o dialeto deles.
Na saída, ao ter comigo, me disse o motivo de sua demissão.
“Em uma das aulas eu expliquei que em 05 de outubro de 1897, o governo filho da puta do
presidente sacana Prudente de Morais e seus asseclas, destruíram uma experiência de fuder
em toda a história, onde o rebanho, as colheitas e todo o fruto do trabalho eram repartidos
em partes iguais entre os membros da comunidade. A destruição aconteceu porque os ricos
latifundiários, os antigos empresários canalhas dessa nossa republiqueta escrota, não
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gostaram da idéia e se sentiram ameaçados em seu poder espúrio. O Exército destruiu cerca
de cinco mil casas e assassinou toda a população do Arraial de Canudos. O diretor, um
viado ressentido e enrustido do Liceu Nossa Senhora da Boa Morte redargüiu que “não
poderia condescender com tamanha mixórdia que eu estava causando na cabeça do
alunado, que eu não deveria alquebrar o que já está estabelecido”, ou seja, que eu não devia
ensinar os meninos a pensar. Aí eu fiquei furibunda e mandei-o se fuder e ele me demitiu.
Azar!”
Na verdade Margot exercia aquele ofício por prazer e pelos seus ideais revolucionários. Era
a principal herdeira de uma cadeia de lojas no ramo da moda. Veja como a vida é irônica.
Ou seria Deus tão perverso com as suas criaturas?
“A senhora vai ou não falar o que quer?”, perguntei olhando as horas num relógio de bolso
que sempre uso a trabalho.
“Eu vou dizer sim”, ela falou puxando uma toalha da sacola de couro que segurava
embaixo do braço e com ela enxugando o suor do corpo com agilidade.
“Vamos a um lugar menos movimentado.”
Sentamos num botequim no centro da cidade, próximo ao relógio de São Pedro, que ficava
numa rua transversal cheia de mendigos e vendedores de folhas e incensos.
“Está vendo esses mendigos? Pois duas vezes por semana eu dou aulas a um punhado
deles. Mendigos, putas, traficantes, essa gente do chamado baixo mundo, um termo criado
pelos burocratas para designar os excluídos da sociedade. Meu marido pede pra morrer
com isso!”, falou Margot divertida, jogando quase todo o amendoim que uma mulher
desdentada pusera sobre a mesa para nós comprarmos, na boca.
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“Vamos direto ao assunto”, falei chamando a balconista.
Notei que o semblante de Margot modificou-se.
“Uma água mineral pra mim, e pra ela...”
“Eu não quero nada”, me cortou.
“Você é surpreendente”, falei sem graça.
“A pessoa que eu lhe falei ao telefone é o Werner.”
“Seu marido?”, perguntei espantado.
“Sim, ele mesmo, ou você acha que existiria outro Werner em minha vida? È ele mesmo, o
sacana, vê se pode, montou um quarto exclusivo para ele e as vagabundas que ele cata na
rua. Chega, chega de tanta humilhação. Ele se casou comigo por causa da grana de papai
que vou herdar, mas papai graças a Deus não morre nunca!”
Fez uma pausa e olhou para o balcão. Chamou a balconista e pediu um churrasco de
lingüiça toscana. Essa gente come por ansiedade.
“A gota d’água foi eu ter feito votos de pobreza, me indispus com minha família, que
queria que eu freqüentasse aquelas festas de grã-finos e aparecesse nas revistas ao lado das
celebridades dizendo que tinha feito um regime e emagrecera trinta quilos em duas
semanas, eu preferi morar só e viver de minhas aulas. Mas o Werner se mostrou um
verdadeiro calhorda, um chauvinista, por isso eu quero que você faça o serviço, eu vou
pagar o que você pede.”
Fiz um sinal para que ela parasse de falar, a moça que nos servia aproximava-se com minha
água e o churrasco de Margot, que devorou antes de eu terminar a água. A mulher do
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amendoim apareceu para cobra pelo punhado de amendoim que deixara sobre a mesa.
Terminei pagando.
O serviço seria fácil, um trabalho calculado com presteza e inteligência, coisas que nunca
me faltaram. Doutor Werner, o dentista, gostava de festanças, e mesmo no pequeno
apartamento em que moravam, ele e Margot promoviam eventos sociais famosos e
propalados entre os amigos de ambos. Mandei que Margot inventasse uma festa qualquer.
Eu seria um dos convivas.
Na parede de minha casa existe um quadro com um índio majestoso comendo um
português colonizador. Antigamente os indígenas freqüentemente usavam plantas das
espécies dos timbós, sapindáceas e leguminosas para envenenar a água dos rios e matar os
peixes. Um inteligente método de pesca predatória que permitia resultados imediatos.
Naquela noite estive em dúvida com o que mataria o doutor Werner, peguei um pequeno
frasco com curare e na contraluz observei sua cor marrom escuro. Aquele curare bruto fora
extraído de uma planta da família das loganiáceas, do gênero strychnos. Werner dançaria
com as loiras peitudas e depois cairia sufocado pela ação do veneno, que causa a
diminuição da motricidade voluntária e a rápida paralisação da musculatura respiratória.
Na dúvida levei para a festa amostras em quantidades suficientes de curare e rotenona,
nome de uma substância extraída de uma planta também ictiotóxica chamada Timbó.
Aquela em especial da família Derris negrensis, vulgarmente denominada Timbó-urucu. De
sacanagem misturei a substância com um pouco de extrato da semente da Magonia
pubecens, chamada pelos índios de assa-peixe. Eu podia imaginar os pômulos de Werner
pegando fogo de tão vermelhos. Em todos os outros casos eu pedira dinheiro adiantado,
dando como garantia a minha palavra. Era pegar ou largar. Todos pegavam.
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Não saí sem antes apreciar a audição da Tuba mirum, no Réquiem Dies irae, de Verdi. Aquele
caos momentâneo seguido da fanfarra dos trompetes anunciando a morte que se segue, o
maestro genialmente louco Arturo Toscanini gritando com o baixo antes do final com o
coro clamando a palavra omnes, me deixa extasiado. Na festa todos dançavam Biquíni
amarelinho, com o doutor Werner no centro do amplo salão por trás de uma mulher de
cabelos vermelhos, segurando seus seios fartos, jogando-os para cima e para baixo.
Ninguém notou a minha presença. Um garçom me serviu uma bebida, acho que vermute
com três pedras de gelo. Margot não me olhou nem um minuto sequer. Uma mulher
esbarrou em mim e molhou a manga de minha camisa com o uísque que levava num copo.
Fui ao banheiro, um homem estava debruçado na pia cheirando pó, eu pedi licença e ele
saiu fungando, escondendo a cara. Apertei o botão da descarga para disfarçar. Então pude
investigar a cozinha, Margot não me dera muitos detalhes. Vi bandejas e um monte de taças
vazias sobre um balcão de madeira. Margot já sabia o que fazer. Chamou o marido até a
cozinha e apresentou-me.
“Esse é Tobias”, ela iniciou me dando um nome que não gostei.
“O que quer comigo?”, perguntou Werner apático.
Fiz um sinal para Margot voltar para a festa, pois além de indelicado poderia levantar
suspeitas. Troquei de posição, aproximando-se de Werner, fazendo com que ele se
afastasse para um vão mais escondido da cozinha.
“Alvíssaras, meu caro Werner! Eu estou investindo no ramo da odontologia aqui no Brasil.
Estou enfastiado de Portugal, donde cheguei recentemente de viagem e pretendo não mais
retornar. Estou abrindo dois consultórios e você é meu convidado de honra”, eu disse
notando seu súbito interesse. Margot me havia advertido que Werner só pensava em
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dinheiro e na promoção de sua imagem. Senti que ele tinha imaginado os flashes dos
fotógrafos das revistas feitas por e para os dentistas.
“Mas esta é deveras uma boa notícia... venha, vamos conversar com calma no meio das
meninas, a cozinha não é o lugar próprio para dois amigos e futuros sócios debateram
assuntos profissionais”, disse ele com uma falsidade esperada e uma arrogância nunca
imaginada por mim.
“Mas antes, vamos tomar alguma coisa pra festejar a boa-nova?”, perguntei pegando duas
taças de champanhe.
“Vá preparando que eu vou dar uma mijada”, disse Werner abrindo a braguilha, dando as
costas e entrando no banheiro.
Pus as luvas de algodão. Numa taça, suja de batom que eu peguei na pia, pinguei cinco
gotas do curare e duas da rotenona. Enchi até a borda com Chivas Regal paraguaio que eles
bebiam. Quando punha pra mim, ele surgiu rindo abrindo a porta com uma das mãos e
com a outra fechando a braguilha..
“Ah, a vida está sorrindo pra mim mister... Mister...”
“Francesco”, eu disse oferecendo-lhe a taça.
Werner bebeu quase tudo. No final enfiou o dedo indicador na taça e mexeu a bebida.
Sorveu todo o restante. Ele deu as costas rindo e dizendo coisas que eu não deu para
compreender. Pegou a garrafa de champanhe que estava em cima da mesa. Abri a porta de
serviço que Margot tinha deixado estrategicamente destrancada. Cheguei a ver o doutor
Werner agarrar o próprio pescoço e apertar o peito com as duas mãos e cair. Ridículo de
tão fácil.
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Na rua escura e deserta da orla da cidade um jovem arrancava o monofone de um telefone
público. Retirei o bigode falso, os óculos escuros e as luvas e guardei-os no bolso do paletó.
Olhei para trás, vi uma viatura parada e um policial negro batendo no vândalo com um
cassetete.
Bocejei. Pensei em Margot. Espero que não tenha se arrependido. Era tarde, eu acordo
muito cedo para estudar violão. Precisava dormir, decidi cortar caminho. Entrei numa rua
transversal onde ratazanas corriam por sobre a calçada.
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DIA DOS NAMORADOS
Todos os dias eu passava por ali e não percebera a placa com a inscrição aluga-se um
quarto para solteiros. A freguesia era bondosa e generosa, nunca comprava menos que
cinco litros de leite. Era um casarão antigo, cheio de portas e janelas pintadas de verde
musgo. A placa parecia muito velha, a tinta preta descascada pelas intempéries do tempo.
“Já foi usada muitas vezes”, me disse o proprietário do casarão, um aposentado do
Exército entrevado pela velhice. Uma senhora de cabelos completamente brancos surgiu
por trás dele e me olhou atentamente, acho que sua esposa. Depois não mais saiu do
quarto, não se ouvia sua voz. Ao lado da velha casa uma construção recente, um prédio de
dois andares pintado de branco, portas e janelas de alumínio, sempre fechadas. Eu sabia
que ali morava uma família soturna que praticava um ritual religioso secreto. Não era nem a
maçonaria nem o rosa-cruzismo, nem qualquer outra entidade filantrópica. Para poder
arrumar meus pertences no novo quarto fiquei três dias sem vender leite aos vizinhos
corteses.
Fiz alguns reparos na biblioteca. O quarto era muito grande, com duas janelas que davam
para o nascente. No assoalho reparei apenas um pequeno buraco e constatei logo na
primeira noite que dali saía lacraias e escorpiões amarelos. Tapei o buraco com um
chumaço grande de algodão embebido em querosene. Seu Percilino, o dono da casa,
permitiu que eu usasse a antiga cama de casal que ele tinha deixado ali. Mas só me
interessavam os livros e os discos antigos de Villa-Lobos e Bidu Sayão, que eu guardara
cuidadosamente numa caixa metálica. Levei a antiga estante feita de caixotes de frutas e
arrumei rigorosamente os livros em ordem alfabética. Arrumei as revistas de filologia em
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uma escala monocromática em sentido vertical. Abri a janela e senti uma brisa quente
abater-se contra mim. Na casa ao lado uma janela entreaberta onde se podia ver o
banheiro, o box aberto, uma mulher tomava banho. Recuei, respirei fundo e olhei
novamente, e lá estava ela, seus cabelos enormes, passavam da cintura, negros e volumosos.
Podia ver as curvas que a água ensaboada fazia nos meandros de seu corpo. Ela terminou,
pegou uma toalha branca, enrolou-se e saiu.
“Vem tomar café conosco, Alzira não gosta de minha companhia”, pediu o velho Percilino
me entregando uma xícara de café. Notei que algumas formigas lutavam para não morrer
afogadas, tentando sair da xícara. Fiquei com nojo, sempre tive nojo de formigas,
principalmente nos alimentos. Sentamos na ampla mesa e comemos cuscuz com café, pão e
manteiga, quando eu quebrei o silêncio.
“Não mora ninguém nessa casa branca aí ao lado?”
Percilino fez uma pausa, depois olhou para a mulher, que se levantou e foi para o quarto.
“Não repare em Alzira, ela é assim mesmo, invocada”, ele falou tentando esconder seu
visível constrangimento.
“O senhor conhece bem a vizinhança?”, perguntei.
“Antigamente era uma casa velha caindo aos pedaços, morava a família de um velho amigo
meu, o doutor Freitas.”
“Freitas?”, perguntei.
“Sim, doutor Freitas. Era um pediatra renomado, cheio de títulos e prêmios, na velhice
passou a dar aulas numa faculdade. Clinicava duas vezes por semana gratuitamente para as
pessoas pobres, tinha compaixão e gostava do que fazia, tinha amor. Sua mulher tinha
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morrido num acidente de carro e ele ficou muito triste. Resumindo, sua única filha, Rachel,
matou-lhe com uma dose cavalar de veneno. Na verdade, foram dois homicídios meu filho.
A culpada é a irmã mais nova do Freitas, chamada Olívia. Era a única herdeira, eles não
tinham outros parentes.
O Freitas era uma pessoa simples, morava aqui nesse bairro mas era um homem rico, cheio
de casas alugadas, apartamentos, ações na bolsa... Ficou tudo provado, mas Olívia era noiva
de um excelente advogado, com certificado de escrotidão, e com as leis canalhas feitas para
beneficiar os ricos e criminosos, ela não ficou nem uma semana na prisão, e vive em regime
aberto. “Que injustiça meu Deus do céu”, ele disse tomando fôlego e sorvendo um gole
grande de leite.
“E depois?”, perguntei com maldosa curiosidade.
“Depois a assassina em posse da propriedade, reformou e vendeu o imóvel a essa família
estranha que hoje aí vive, eles se trancam lá dentro e ninguém sabe o que fazem. A
criminosa vive hoje no Rio de Janeiro, numa cobertura na Barra da Tijuca, desfrutando de
tudo o que o Freitas construiu. Alzira me disse que o terreno é amaldiçoado, ela mora aqui
há mais tempo que eu, que não acredito em superstições tolas.”
“Mas que elas existem, existem”, falei de brincadeira.
“Eu vou me deitar, estou cansado. Você não teria em seu quarto uma bebida forte?”
“Não senhor”, falei empurrando a xícara para o centro da mesa.
Fui para o quarto, tranquei cuidadosamente a porta, abri a janela e fiquei observando. Um
homem alto e forte passava inquieto para um lado e outro. A jovem moça que eu vira
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anteriormente também. Vi luzes piscando, parecia que uma enorme televisão estava ligada.
Deitei na cama e adormeci.
No outro dia a mesma coisa, o homem alto forte passando com uma pequena bacia de
alumínio, luzes piscando, nenhum barulho. Acordei e pus um trecho de Le Nozze di
Figaro, na interpretação de Bidu Sayão, quando ela fazia do elenco regular do Met de Nova
York. Em seguida troquei de roupa e fui até um pequeno mercado comprar uma barra de
chocolate. Segurava uma barra de meio-amargo, quando uma voz aos pés de meus ouvidos
me excitou profundamente.
“Então você gosta de chocolate?”, perguntou.
Era ela, era ela que sorria pra mim, a jovem moça que eu todos os dias observava da janela
de meu quarto, desde que fui morar naquela casa.
“Não respondeu minha pergunta.”
“Gosto... gosto muito de chocolate”, respondi gaguejando.
“Você come enquanto me olha pela janela?”
“Que é isso, de jeito nenhum, eu não fico observando ninguém pela janela, foi apenas um
incidente, nunca mais vai acontecer e...”
“Deixe de ser bobo”, ela falou tomando minhas mãos, “não viu como eu me coloquei
estrategicamente para que você me olhasse por inteira?”
“Eu tenho que ir, estou com pressa.”
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“Hoje à noite eu quero me encontrar com você na Praça da Sé, está bem pra você, ou
prefere outro lugar? No início da noite”, ela falou saindo de minha presença e sumindo
entre os clientes do mercado.
Em casa abri a barra de chocolate e comi olhando para o teto e para a estante de livros. O
teto e a estante de livros. O teto e a estante, até que o Sol começou a dar um efeito
alaranjado no céu e eu me levantei. Caminhei calmamente, no compasso do Sol, que foi
desaparecendo por entre os prédios de apartamentos, brilhando nos vidros das janelas. Ela
estava sentada num banco de pedra e me viu de longe, fiquei tão sem graça que pus as
mãos nos bolsos da calça.
“E então?”, perguntei.
“Eu também tive um ótimo dia, obrigada”, ela disse ironicamente.
“Desculpe, é que as circunstâncias...”
“Sei que você me quer.”
“Qual é o seu nome?”, perguntei me sentando ao seu lado.
Ela não tinha cheiro nenhum, apesar de conservar um frescor do pós-banho. Seu sorriso
dubitativo me fez estremecer.
“Géza, meu nome é Géza, o nome de um pianista alemão que meu pai gosta muito, ouve
todos os dias”, ela disse ternamente.
“Géza Anda, conheço bastante, especializado em Mozart.”
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“Mas não vamos ficar aqui falando dessas bobagens, meu pai, que é músico, me
importunou a vida inteira falando essas besteiras”, ela disse se levantando. “Vamos
caminhar um pouco.”
Paramos em frente a um hotel pequeno, cujas portas eram trancadas com um ferrolho
velho e enferrujado. Entramos. Um forte cheiro de bolor inundava o ar.
Géza tirou a roupa e depois soltou os cabelos longos, que penderam milimetricamente atrás
de seu corpo mingnon.
Não me lembro do tempo que ficamos deitados na cama do hotel vagabundo, sei que
permanecemos em silêncio, e novamente recomeçamos, até que ela disse.
“Você me ama?”
Saí de cima dela. Abri uma pequena janela que dava para um beco cheio de entulho e ratos.
Senti a brisa fresca da noite.
“Sim, amo”, respondi sem ter certeza.
“Você gosta de meus cabelos?”, perguntou.
“Por que me faz essas perguntas?”
“Porque enquanto a gente fodia, você alisava meus cabelos, colocava o nariz entre os fios
tentando captar o cheiro.”
“Gosto, muito.”
“Eu não, eu odeio. Venha. Me coma novamente que eu lhe conto por quê.”
Ficou de quatro e abriu-se pra mim. As lentas estocadas fizeram-na falar quase sem fôlego.
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“Minha mãe faz parte de uma igreja evangélica... antes de eu vir a esse mundo... ela ficou
muito doente... e prometeu que se ficasse boa teria uma filha... que nunca cortaria os
cabelos... veja que coisa idiota, sem pé nem cabeça... a religião prega o fanatismo... cada dia
da semana eles usam... uma roupa diferente... que maluquice... agora eu quero... te contar
uma coisa... quando eu te vi janela... senti que você... que você seria meu...”
Recostamos na parede.
Géza me contou que a mãe é tuberculosa. As portas e janelas são por causa do barulho
externo e do frio. A tísica se assusta constantemente, e os acessos de tosse quando
começam parece que não vão parar mais. O silêncio é enervante e seu pai fica dias e noites
às voltas com cataplasmas, remédios e bacias cheias de vômito, baba e sangue que a
moribunda verte.
“Eu vejo sempre umas luzes piscando...”, perguntei curioso.
“Ah, é que papai adora cinema mudo e tem um pequeno projetor com telão. Ele conheceu
minha mãe num cinema. Está ficando demente, comprou um monte de filmes do Ingmar
Bergman e retira o som. Ama a música, era maestro, mas odeia o som dos filmes. Da TV
pior ainda. Coitado...”
“Mas essa promessa é muito infame...”, eu lhe disse.
“Tenho sofrido todos os dias com isso, tenho de levar uma vida cheia de métodos
decorrentes do fanatismo”, ela disse chorando, pegando meu pau e botando em sua boca,
fazendo alguns intervalos, nos quais falava. “Papai me diz todos os dias que eu tenho que
ajudar a mamãe até que Deus a leve, mas há quase dois anos que eu espero Deus levar
mamãe!”
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“Deus não leva ninguém”, eu falei num espasmo.
“Sabe que dia é depois de amanhã?”
“Não, não sei”, respondi.
“O dia dos namorados”, ela disse sorrindo.
“Não se preocupe que eu vou comprar seu presente, eu tenho umas economias. Semana
que vem volto a trabalhar.”
“Mas eu já sei o que vou querer”, disse-me levantando-se.
“Pode dizer”, falei ajudando-a a se espreguiçar.
“Quero que você mate mamãe.”
No dia seguinte eu fiquei observando os pontinhos no teto. O velho telhado cheio de
frestas, pelas quais os raios de sol penetravam iluminando as paredes, deixando um rastro
de pequenas partículas de poeira.
Pensava nos contornos sinuosos do corpo de Géza, sua voz firme e decidida, sua
inteligência e sua ambição. Pus o compact disc player para repetir várias vezes a cena 2,
Quel Nouveau Ciel Pare Ce Lieux?, do segundo ato de Orphée et Eurydice, de Gluck. Em alguns
momentos fiquei alisando a ponta quebrada de meu dente canino. Tirei e botei o incisivo
furando o dedo com o pivô, sentindo aquela dorzinha horrível.
Como combinado, eu esperei Géza dar o ok, chegando da janela e fazendo um sinal. Eu
havia tomado café com o velho Percilino, e dona Alzira mais uma vez saíra da mesa
quando o assunto da morte do antigo dono da casa ao lado foi tocado pelo marido.
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“Casa amaldiçoada”, resmungou a velha indo para o quarto.
Descobri que lá dentro ela tinha um pequeno oratório e passava a maior parte do seu
tempo rezando.
“Se nós estivéssemos no poder, essa baderna não tinha se instaurado no país”, falava
Percilino fungando enxugando o nariz com um pano. “Veja que desrespeito à moral e à
família. Gente decente convivendo com pessoas sórdidas.”
Fui para o quarto, Percilino ficou falando sozinho erguendo os braços e dando soco no
vento.
Abri a janela. Meia hora depois Géza apareceu e deu o sinal, seu pai já tinha ido dormir. Saí
de casa.
Olhei a rua larga, nem uma só pessoa transitava. Dois gatos brigavam no quintal em frente.
Entrei no hall da casa branca. Senti um forte cheiro de madeira. Olhei as tábuas do
assoalho. Não pareciam tão novas. Géza foi quem abriu a porta silenciosamente. Entrei e
nos beijamos com ardor.
“O primeiro quarto é o dela, que dorme sozinha. O outro é o de papai, que já deve estar
roncando”, falou me puxando pelo braço.
Senti um medo terrível. Entrei no quarto. Cheiro de remédio. Uma terrificante estante
cheia de versões da Bíblia. Num canto vários copos com líquidos coloridos. Eu me
aproximei da cama. Uma velha mulher pálida, respiração ofegante, cabelos finos sobre o
travesseiro grande. Eu ia estrangulá-la, quando ouvi passos.
“O que faz você no quarto de minha esposa?”, perguntou o pai de Géza, um homem alto e
forte, mas visivelmente debilitado pelo cansaço interno da velhice.
52
Não deu tempo pra mais nada.
Antes de ele voltar a dizer alguma coisa, dei-lhe um soco. Mas o velho não caiu e Géza lhe
aplicou um golpe na cabeça. Aquele homem imenso caiu fazendo um barulho estrondoso.
Ficamos em silêncio. Olhei por uma frincha da porta. Nenhum vizinho acordou.
“Papai vai ficar bom, ele é forte, cuide de mamãe”, disse Géza empurrando-me para o
quarto.
A velha começou a se mexer e abriu os olhos. Peguei imediatamente o travesseiro que
estava debaixo de suas pernas.
“Mate ela”, sussurrou a velha.
Fui assaltado de medo. Parei com o travesseiro suspenso no ar. Olhei para Géza, ela
espiava pela frincha da porta e pelas janelas o movimento na rua. Vi de relance o pequeno
telão em que o pai dela passava os filmes do cinema mudo e de Ingmar Bergman.
“Mate ela você não faria isso comigo”, disse a velha perscrutando minha alma, olhando
bem fundo nos meus olhos. Percebi medo em seus olhos. Sua respiração era ofegante. Era
Géza mais velha. Os cabelos, a pele, os olhos, a voz, tudo.
“Géza venha cá”, eu disse.
“Mamãe está morta?”, ela perguntou olhando a cama.
“Está meu amor. Foi seu presente de aniversário”, eu lhe disse e começamos a nos beijar.
Géza me deu as costas, esfregando sua bunda magra em meu pau. Acariciei-lhe os cabelos.
Géza começou a chupar meu dedo indicador. Agarrei seu pescoço e apertei. Ela começou a
se debater, tentando gritar, agarrou-se na porta com esforço. Vi que seu pai se mexia. A
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tísica observava feliz, a cena de sua cama. Géza começou a verter uma espuma branca e
grossa pela boca, me deu alguns chutes com o calcanhar. Com a perna direita eu travei as
suas pernas, até que ela amoleceu em meus braços. Fiquei extenuado. Estrangular uma
pessoa, mesmo uma mulher magra necessita muita força.
Carreguei-a e deitei-a em seu quarto, na cama. Ela tinha manchas roxas pelo corpo todo.
Os olhos esbugalhados, guardando o terror de seu desfecho. Fechei a porta. Olhei a velha
deitada na cama. Ela acenou e sorriu.
“Quem é você?”, perguntou o velho.
“Sou um amigo de Géza, ela foi dormir e pediu que eu fosse embora”, eu disse e o velho
sorriu.
“Minha filha é uma santa, vai morrer santa. Eu era maestro, ela te contou? Eu gosto muito
de música, eu amo a música, mas agora estou velho e meio surdo. Depois eu te dou
algumas informações sobre boa música. Fico triste porque as pessoas escutam tanta coisa
pobre. Não sabem o que estão perdendo. Estou falando demais não é? É coisa de velho
meu filho. Você já viu Gritos e Sussurros, de Bergman? Eu também gosto muito de cinema.
Gosto de teatro também, mas não tenho mais condições de sair. Eu ia muito ao teatro
quando era jovem. Já viu esse filme que te falei?”
Respondi que não.
Repasso todos os acontecimentos em minha cabeça como uma vertigem. Vejo tudo em
frações de segundo.
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Assisto ao filme sueco sem som e em completo silêncio. Me acostumei ao cheiro de
remédio da casa. O velho parece repetir o que as personagens dizem. Mesmo sem som eu
compreendo tudo o que está se passando.
Agora espero.
O fim.
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CARTAS AO VELHO JOÃO
Estava caminhando em sentido contrário ao meu destino, quando um homem velho
esbarrou-se em mim. Desculpou-se; ele conversava ao telefone e dizia, eu estou entrando
em casa agora, quando eu resolver tudo eu te ligo, você sabe que eu sou um velho e moro
só, não posso tomar conta de um gato, já cuido de minhas plantas e isso me basta minha
filha.
Não sei por qual motivo, mas decidi segui-lo e pude ver que ele não morava muito longe
de mim. Como eu não o percebera antes? Sou sempre atento e observador... Na verdade o
velho morava na mesma rua que eu, uma rua deserta e muito grande, com casas comerciais,
restaurantes, churrascarias, oficinas mecânicas e dois salões de festas que sempre eram
alugados para comemorações, aniversários e cultos religiosos, tudo sempre muito
barulhento e cafona. Toda segunda feira quando acordo a rua está cheia de dejetos: copos
plásticos, ossos de galinha, garrafas quebradas e um forte cheiro de cerveja e urina. Um
rapaz que servia um casal na porta de uma das churrascarias também se esbarrou comigo.
Eu me desculpei e aproveitar para tomar informações sobre aquele senhor. O rapaz
mostrou desconfiança, então eu menti dizendo que tinha a impressão de conhecê-lo.
O garçom disse que o nome do velho era João, que era aposentado e viúvo, sua esposa,
dona Maura, morrera em casa de um colapso do coração. Seu João trabalhava como faztudo em casa de madame, nas palavras dele. Agradeci e acelerei o passo, para ver o velho
João entrar em residência, casa número treze da avenida D. João VI. Coitado, não
entenderia nada, o velho faz-tudo. Ou talvez compreendesse a minha motivação. Um
homem que entende de elétrica, hidráulica, montagem de móveis e tudo o mais de uma
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casa talvez entendesse quando eu lhe mandasse algumas cartas. Eu tinha uma caixa postal
aberta, então comecei a me corresponder com o velho João de forma aleatória, não me
atendo a datas fixas.
10/03
Sr. João
Quando dei por mim estava mergulhado em um vazio completo e absoluto. Para dizer a
verdade nem sei se era um vazio, mas algo que não sei nominar. Fiquei por um tempo
olhando para algum ponto na parede, depois para o chão. Os cachorros vieram para junto
de mim e um deles lambeu meu pé. Sentei na cadeira e olhei o sol lá fora: forte e brilhante
como sempre. Estranhamente eu não sentia calor, ou melhor, sentia calor, mas não suava
muito. A forte luz me fez fechar os olhos e pude me lembrar, naquele milionésimo de
segundo, pude me lembrar do que havia passado nos últimos anos, e que quando tinha me
acostumado a tudo, o tudo tinha realmente terminado. Pensei em chorar, mas não
consegui. Apenas minha respiração ficou mais ofegante. Não sentia vontade levantar-me
dali e pude ficar quase uma hora naquela mesma posição. Imaginei o cair e avançar da
noite: nada seria mais uma rotina que no fundo eu havia me habituado e gostava muito.
Senti um pouco de medo, e isso fez meu coração acelerar. Levantei-me e tomei um pouco
de água, que estava muito quente, afinal de contas o calor era grande, estava terminando o
verão, mas o sol continuava implacável em sua missão.
Ela não tem culpa de nada, eu pensei. Toda a culpa é minha. Se é que existe culpa não
gosto dessa palavra, tento acreditar que a vida é o que é e não existem erros grandes demais
que não possam ser consertados pela própria vida, ou acertos imperceptíveis que não
possam ser interrompidos pela morte. Tudo aquilo era demasiado novo para mim, e ainda
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o é enquanto escrevo estas palavras. Era a primeira vez que eu estava só em uma casa, com
pouca estrutura, desempregado e sem ter com quem conversar. Logo ela começaria sua
rotina e estaria assim se libertando daquilo que tanto a angustiava e aprisionava. Que
merda, eu pensei enquanto colocava o copo na pia. Agora somos só nós três, falei para os
cachorros, que balançaram levemente a cauda. Senti em minhas palavras um tom de
autopiedade. Mas compreendi que seria bom um pouco daquele sentimento em um
momento de solidão e de derrota, ou de recomeço. Para ela devia ser pior, estava passando
novamente por uma situação que já havia passado em sua vida. Após dez anos de intensa
convivência, apagar as luzes e deitar-se para dormir seria no mínimo um gesto estranho.
Era preciso se reinventar mais uma vez, depois de tantas, para fazer aquilo.
Não preciso dizer que sempre imaginei que para ela seria mais fácil, pois tinha a seus filhos
e um séquito de pessoas que a admiravam e seguiam com fealdade. Ela é a simpatia em
pessoa, sempre conquista a tudo e a todos com seu jeito espontâneo e popular. Eu me
sentia uma criança perdida, aos trinta anos, sem sentido para a própria vida, sem objetivos
claros e definidos. Aliás, com muitos objetivos claros e definidos, mas sem ânimo e
estrutura para buscar alcançá-los. Meu desejo era desaparecer; não morrer ou me suicidar,
acho isso ridículo demais, mas simplesmente deixar de existir em algum momento, se é que
eu existo de verdade. Essa narrativa está parecendo um livro de autoajuda. Esse escrito não
tem nada a ver com esse tipo de literatura, ao contrário, talvez destrua alguns corações e
torne pó algumas esperanças, talvez.
Olhei para as caixas com livros, DVDs, CDs e outras pequenas grandes coisas construídas
ao longo de nossa relação. Também não tive ânimo nenhum em remexer naquelas coisas.
Tampouco arrumar aquela nova casa e fazer dela um lar. Aquele ambiente me era
totalmente estranho. O silêncio que habitava ali me exasperava e me deixava ansioso. Por
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algum tempo dormimos juntos, mas eu sabia que era por pouco tempo, ela teria que cuidar
de sua vida e eu da minha. E era carnaval, a cidade estava em polvorosa, o que realmente
importava eram os binômios dançar-cantar, beber-trepar. O fim do carnaval para mim teria
um sentido único e inevitável: o começo de um novo tempo. E o novo sempre causa
temor.
Dito e certo. Quando findou-se o reinado do Momo, começaram as atividades corriqueiras
da vida. Chegou para mim o momento de estar só. Não sabia sequer a quantidade exata de
água que usaria para fazer café, acostumado que estava a produzir aquela bebida
cotidianamente para quatro pessoas. Pensei que seus filhos, meus enteados, iriam me visitar
com regularidade. Depois constatei que esse pensamento não passava de mais uma de
minhas fantasias. Nossa relação fora marcada por estranhamento e tolerância. Não sei se
amor e ódio, essas palavras tão fortes e utilizadas com tanta banalidade. Em meu
pensamento delirante, eles iriam a minha casa fazer alguma refeição enquanto assistíamos a
um bom filme. Mas no fundo eu sabia que os havia perdido para sempre, se é que alguma
vez eu os tinha encontrado. Sentia falta de ambos, das conversas e dos silêncios, da
bagunça adolescente, dos cheiros, das perguntas tolas e normais para a idade, da pequena
admiração que sentiam por mim e de meus excessos, minhas palavras duras e palavrões
desmedidos, minha ânsia por uma família sem pudores e com um canal de comunicação
fluindo sem limites. Isso eu nunca consegui, até porque eu nunca fora assim. Ela me ligou,
dizendo que me amava e que eu tivesse uma boa noite, que tudo daria certo. Não precisa
dizer que isso me confortou bastante. Botei o João Gilberto para tocar uma ou duas
músicas, em seguida botei os Stones e por último a Elis. Desliguei o aparelho. As luzes
estavam apagadas. Um escuro agradável e amedrontador. Desejei boa noite aos cachorros.
Fechei os olhos.
59
15/03
Sr. João
Sei que deve achar que sou um louco. Escrever cartas para um desconhecido. Será isso um
crime, uma invasão de privacidade? Espero que leia meus relatos. Caso contrário, terá
valido a pena mesmo assim.
Não tinha jeito. Era aquilo mesmo. Respirar fundo muitas vezes e agradecer, afinal de
contas eu tinha vida, tinha algum dinheiro, tinha ajuda, tinha família. Isso me serviria para
seguir em frente, para me adaptar. Para o vazio e outros sentimentos duros, o remédio
havia de ser encontrado. Mas não sabia qual, como e quando. O único jeito era continuar a
vida, tocar o barco pra frente. Assim falam as pessoas sábias quando nada têm a dizer. O
que teriam a dizer para mim, um artista plástico recém saído da academia? O que teriam
para dizer a mim, que me sentia no fundo do poço, incapaz de produzir alguma arte com
seu talento e seu esforço, desempregado, cheio de dívidas?
Tenho poucos amigos – sobram dedos em uma mão se for contá-los – e raras são as vezes
em que temos contato - então não tenho ninguém para compartilhar essas coisas. Termino
desabafando para meus cachorros ou para as obras de arte e quadros que estão atulhando
minha pequena casa. Quando me sinto um esquizofrênico absoluto, paro de repente e
suspiro. Meu pai é um pequeno empresário que não gosta do que faz e minha mãe é uma
corretora de imóveis que gosta um pouco do que faz. Ambos são religiosos fervorosos. O
que eles teriam para me dizer? Para você desabafar e pedir a ajuda de alguém é antes de
tudo necessário confiar naquela pessoa, saber que ela estará disposta a ouvir e não fazer um
julgamento precipitado e pior, um julgamento padrão a respeito dos acontecimentos. Não
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era esse o caso. Minha única saída era o ventre do minotauro. O labirinto se alargava à
minha frente. Decidi manter a seguinte rotina: acordar bem cedo e sair para passear com os
cachorros, para que fizessem xixi e cocô na rua e não dentro de casa. Depois Buscar algum
tipo de trabalho para pagar as dívidas e me manter com alguma dignidade; comecei a fazer
um curso de flauta, eu ganhara o instrumento de um ex-professor e ele estava jogado num
canto havia muito tempo. Passava algumas horas me dedicando ao instrumento, sempre
tarde da noite e de manhã bem cedo. Uma batalha insana, eu soprava e não saía som algum.
Decidi arrumar um pouco a bagunça de casa, quadros num canto, esculturas noutro, livros
em uma pequena estante, pois o restante eu deixei nas caixas; o velho fogão estava sempre
sujo, não tinha ânimo para limpá-lo; as panelas eram novas e impessoais; o banheiro eu não
usava para ler, como de costume na casa antiga. Assim, passaram-se três semanas; e eu nada
consegui; as escolas em que eu poderia ensinar fecharam as portas, as galerias também. Ela
continuava me ajudando financeiramente e isso me incomodava muito, sempre me fazia
sentir o pior dos inúteis.
Esse período de adaptação teria sido morno e infame não fossem dois fatos: a chegada de
uma jovem atriz italiana e o sumiço da cachorra.
Ela recebeu em sua casa uma atriz de um famoso grupo de teatro da Itália. Nossos amigos
em comum tiveram o desprezível pensamento que se tratava de uma turista estereotipada:
neo-hippie, tatuada, natureba, chapada o dia inteiro, ganhando dinheiro jogando malabar
nas sinaleiras de Salvador e tentando foder com todos os negros da cidade. Ledo engano:
Regina era obstinada, determinada para com seus objetivos, pudica sem excessos, limpa,
educada e independente, jamais se deixou levar pelos encantos da cidade e saiu por ela
fotografando e babando suas belezas. Confesso que isso me impressionou. Conversamos
muito, sobre os mais variados assuntos, de arte a política. Tornamo-nos amigos,
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cozinhamos juntos, almoçamos, jantamos e saímos inúmeras vezes, sozinhos ou
acompanhados. Talvez você leitor possa pensar que daí surgiu um lindo romance, mas não.
Nunca trocamos sequer um olhar malicioso e jamais passou pela minha cabeça ter qualquer
tipo de envolvimento com a Regina que não fosse amizade e companheirismo. E ela estava
hospedada em casa de minha ex, o que tornaria tudo ainda mais absurdo e asqueroso. Se
bem que a vida prega dessas. Outro dado: estávamos em casas separadas, mas prometendo
ficar juntos. Nosso amor e companheirismo e amizade não haviam chegado ao fim, o que
saturou foi a convivência diária debaixo do mesmo teto. Transamos muitas vezes nesse
período e em nada foi ruim, ao contrário. E depois da Poly eu não iria querer outra mulher,
a não ser para um sexo casual. Estava mais interessado em me relacionar com homens,
suprir minha necessidade afetiva com o mesmo sexo. Isso não é cinismo, é uma triste
constatação da realidade. Também não me considero um homossexual arrependido, é
preciso antes de tudo encarar os fatos de frente e com coragem, senão o trem passa e
ficamos na estação chupando os dedos. Ela mesma me incentivara a isso, a buscar esse
outro lado que eu tinha reprimido ao me apaixonar por ela. Não foram poucas as vezes que
eu a magoei com essa situação; eu e os outros, que sempre vinham com piadas
maledicentes e comentários maldosos, alguns pensando que ela fosse lésbica, ou que eu
estava com ela para esconder uma homossexualidade reprimida; triste engano, nem uma
coisa nem outra; a vida e os seres humanos são muito, muito mais complexos do que isso.
Quisera eu que as coisas fossem simples assim. Quando nos conhecemos eu estava só,
vivendo aventuras artísticas as mais variadas; ela foi ver uma exposição coletiva e comprou
um quadro meu. Conversamos muito na exposição, e logo começamos a sair; ela
apaixonou-se primeiro, depois me conquistou e eu me deixei levar por todos os
sentimentos possíveis a um homem jovem. Eu devia ter parado lá atrás, teria lhe poupado
uma série de dissabores e decepções, como essa última, da separação. Mas a chegada de
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uma estrangeira em nossas vidas foi um fator positivo e de intensa alegria. É sempre
curiosa a relação com pessoas de outra cultura. Eu particularmente fico envaidecido em
mostrar os locais bonitos e curiosos da cidade e fazer a pessoa saborear os mais diversos
quitutes da terra. Com Regina não foi diferente.
Disse anteriormente que um dos itens de minha rotina consistia em sair para passear logo
cedo com os cachorros. Tenho dois: um mestiço de cocker spaniel com vira latas e uma
mestiça de vira latas com pit bull. Para eles a mudança fora terrível, na questão espacial e na
questão afetiva. Mas tudo teve um lado bom: nossa nova casa ficava ao lado de um parque
em ruínas, abandonado pelo poder público, repleto de maconheiros e pessoas que levam
passarinhos para passear presos em gaiolas, além de pessoas idosas que caminham para
manter a saúde. Poly é atriz de teatro, por isso, quando ganhamos os mascotes, demos o
nome de Artaud, para ele, e Liuba para ela; Artaud, natural de Marseille, França, era um
ator e diretor de teatro, além de poeta e dramaturgo; um artista genial, louco e visionário,
que legou para a humanidade O teatro e seu duplo, um dos maiores tratados sobre a arte
teatral de todos os tempos.
Liuba, cujo significado é amor, é a principal personagem da
peça O jardim das cerejeiras, do dramaturgo e contista russo Anton Tchekov, de quem sempre
fui leitor assíduo. Uma manhã, Liuba, com seu gênio tipicamente russo, dada a emoções e
gestos impetuosos, decidiu pôr em desabalada correria um cão preto e branco que cheirava
os galhos de uma árvore que estava no chão. Correu com tamanha velocidade e ferocidade
que não pude alcançá-la. No sentido oposto veio uma motocicleta em baixa velocidade, que
se chocou contra Liuba, que assustada, correu em direção à nossa casa, gritando apavorada.
Obviamente a casa estava fechada, e a cadela amedrontada simplesmente desapareceu. Foi
o bastante para que aquele dia se tornasse um pesadelo kafkiano.
Para resumir a história, ofereci uma quantia que eu não dispunha para quem encontrasse o
animal, cheguei a fazer uma placa com foto e tudo. A certa altura, me encontrara em uma
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comunidade próxima, onde fui confundido com outra pessoa, fui abordado por três jovens
bandidos que tentaram me surrar com paus e pedras. Tá fazendo o quê aqui embaixo,
playboy, perguntou um deles com um olhar furioso. Corri e entrei em um condomínio;
pedi ajuda a um rapaz que lavava um carro e acabei me safando. Já no meio da tarde, em
uma favela, mostrei a foto a um jovem rapaz que devia ter uns vinte e dois anos; ele me
disse que não viu a cadela por aquelas plagas. Ofereço tanto se você encontrá-la, eu disse e
ele imediatamente afirmou tê-la visto num matagal próximo. Fomos para lá, eu morrendo
de medo de ser morto ou estuprado naquele lugar sombrio. Ele avistou o animal e eu
comecei a gritar Liuba, Liuba, venha cá Liuba. A cachorra apareceu amedrontada, prostrouse aos meus pés. Eu a carreguei e fomos embora. Depois fiquei sabendo que o rapaz já
tinha sido preso e que era um pequeno traficante da localidade. Erroneamente dei a ele um
cheque sem fundos, na esperança de cobri-lo futuramente. Ele me ligou, pois tinha meu
número de telefone na placa que eu fizera. Estou fudido, pensei. Liguei para Regina e pedilhe emprestado o dinheiro. Combinamos de a noite ele me devolver o cheque e eu lhe
entregar o dinheiro. Assim foi.
19/03
Sr. João
Era um sábado de sol fraco e pancadas de chuva. O típico final de verão e começo de
outono de Salvador: calor abundante, ventinho frio no começo da noite e chuvas esparsas.
Aquele ritmo frenético do verão com inúmeras atrações musicais espalhadas pela cidade, as
praias lotadas, os milhares de turistas caminhando pelos lugares históricos havia passado.
Eu e Regina combinamos de ir à praia, ela queria retornar para a Itália bronzeada. Como
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gosto de conduzir amigos de fora pela cidade, mostrando-lhes as belezas e mazelas, a
cidade real, fantasiosa, e não a criada pela mídia e marketing político, me dispus a
acompanhá-la. Logo após o almoço, Poly deitou-se para dormir, alegando que não iria nos
acompanhar porque estava muito cansada, ficara até altas horas trabalhando no
computador. Eu e Regina decidimos ir caminhando até a praia, que fica relativamente perto
de nossas casas. Assim poderíamos conversar sobre os mais variados assuntos. Logo na
chegada, percebi três jovens embaixo da balaustrada, deitados sobre toalhas brancas e com
duas mochilas, pensei, não são daqui. Deitamo-nos sobre a areia amarela, o sol estava forte
e a água morna; ela foi de súbito, como disse, banhar-se. Fiquei tomando um pouco de sol.
Depois de um tempo, Regina retornou e deitou na areia, então eu me lancei ao mar, que
estava muito agitado. Gosto de mergulhar e ouvir o silêncio que grita lá embaixo. Percebi
que o trio que eu observara ao chegar estava ao meu lado. Dois rapazes e uma garota de
boné preto, tatuada e amedrontada com o mar; um rapaz brincalhão e acostumado com o
ambiente e um outro, deslumbrado e feliz por estar ali, desbravando o mar e suas
possibilidades. Veio uma onda maior e levou o boné da moça. O trio buscou encontrá-lo
alucinadamente, a menina estava envergonhada com seu cabelo tingido de vermelho
completamente desgrenhado. Perguntei, perderam alguma coisa? O chapéu dela, disse um
dos rapazes, o que aparentava ser mais jovem e com gestos afeminados. A maré deve ter
jogado para lá, falei apontando umas pedras, agora vai ser difícil encontrar. Logo eles
desistiram de procurar pelo objeto e ficamos conversando. Me contaram que são de
Brasília, e que estavam ali a passeio, mas que iriam ficar na cidade para arrumar trabalho e
tocar a vida. Não preciso dizer que achei tudo muito estranho então perguntei a idade
deles. O rapaz afirmou que tinha acabado de fazer dezoito anos e ela tinha dezesseis. O
outro era morador da cidade, inclusive morava ali, de frente para o mar; seu nome é Yago e
logo eu me lembrei do Otelo, o mouro de Veneza, de Shakespeare. Olhei para o rapaz, ele
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nada tinha de mouro. A garota, típica adolescente, tatuada, cabelos vermelhos, piercing no
nariz, indecisa com o visual, masculinizada, me disse que se chamava Tatiana. Sentou-se
afastada de nós. Eu pedi que se acomodasse perto de Regina, mas creio que ela se sentiu
intimidada. Regina prefere curtir a praia sozinha, em silêncio, lendo um livro, imersa em
seus pensamentos, fumando um cigarro ou tomando uma cerveja. Logo em seguida os dois
rapazes saíram da água e me chamaram para junto deles. Eu fui e ficamos conversando
amenidades. Os dois rapazes retornaram para a água e eu fiquei com a garota. Ela me disse
que dormira na praia, que naquele dia tinham sido assaltados e que o Yago os ajudara,
dando-lhes um pouco de comida. Ficariam ali mesmo na praia. Imagine: outono, chuvas
esparsas, céu cinzento, um frio de lascar e aqueles dois dormindo na areia, sob o dossel de
estrelas! Olhei para a menina, encolhida num canto, coberta com um casaco branco, os
cabelos cheios de areia, a pele coberta de sal. Perguntei se não gostariam de ficar em minha
casa um ou dois dias. Disseram que sim, que a tia deles iria mandar dinheiro para eles
começarem a tocar a vida por aqui ou retornar para a capital do país. Ficamos os cinco
sentados na areia, bebendo caipirinha e jogando conversa fora. Perguntei ao rapaz, que se
chamava Tony, se ele e Tatiana eram namorados e ele disse, assustado, que eram irmãos.
Não busquei nenhuma lógica em sua afirmação, não procurei semelhanças físicas. Tatiana
precisou ir até a casa de Yago para buscar uma sacola que havia deixado guardada por lá,
contendo um telefone celular, uma câmera fotográfica digital e alguns pertences. Eu a
acompanhei até lá. Quando retornamos, estava escuro já. Regina pediu para voltar para
casa, estava com frio. Retornamos caminhando para conversar e economizar dinheiro, além
de apreciar um pouco mais a cidade. Antes liguei para Poly e lhe contei o que estava
acontecendo, ela disse que fosse primeiro na sua casa para comermos algo. Ela havia
preparado um quitute para mim e Regina e agora “botaria água no feijão”, como se diz,
para alimentar as visitas.
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Claro que eu estava incomodado e tentando disfarçar o tempo todo. Nossa situação já era
delicada e eu ainda levei para a casa dela dois estranhos! Eles ficaram todo o tempo
sentados no sofá. Quando na mesa, não cansaram de elogiar a comida de Poly, que é uma
excelente cozinheira. Minha casa estava uma bagunça e eu não tinha condições de hospedar
ninguém lá. Liguei para meu irmão Bob, que me ofereceu-nos carona e colchonetes para o
casal de irmãos. Quando chegamos em casa, tomamos banho e jantamos. Eu precisava de
um cálice de vinho. Tatiana deitou-se em minha cama e logo pegou no sono. Só tinha em
casa um quarto disponível, o outro estava abarrotado de coisas, como escrevi
anteriormente. Prometeram que no dia seguinte iriam arrumá-lo para fazer dele um quarto
de hóspedes, mesmo que por alguns dias. Não é que eu acreditei?
20/03
Sr. João
Não me julgue pelo que vai ler. A vida não é tão simples como eu pensava. Ao contrário: é
complexa, repleta de aventuras, desditas, decepções, surpresas as mais variadas, golpes
violentos e incertezas. O senhor deve saber disso mais do que eu. Fico imaginando a sua
experiência de vida. Por tudo o que passou tudo o que viu e vivenciou.
Naquela primeira noite Tony ficou vendo TV. Eu detesto assistir televisão, não tenho a
menor paciência. Deitei-me do outro lado da cama, longe de Tatiana, por respeito á sua
condição de mulher e menor de idade. Disse, Tony, não vai arrumar o colchonete para
dormir? Ele respondeu que sim, que iria continuar vendo TV. Falei, a Tatiana pegou no
sono, está muito cansada, não quero acordá-la, vamos deixá-la dormir aqui mesmo, amanhã
a gente vê como ficam as coisas. Fechei os olhos desejando boa noite. Qual não foi a
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minha surpresa quando me virei e Tony estava ao meu lado, um pouco mais abaixo. Tinha
desligado a TV. Estava olhando para mim. Acho que irei dormir aqui mesmo, posso? Não
tive coragem de dizer não. Disse, sim, pode, tudo bem, boa noite. E passei a mão em sua
cabeça, ao mesmo tempo em que me virava para o lado para voltar a dormir. Tony segurou
a minha mão e começou a passá-la em seu rosto. Você é tão bonito, falou baixinho me
olhando fixamente nos olhos. A gente não devia fazer isso, falei. O que você está
esperando, ele perguntou pousando minha mão em sua bunda rija ao mesmo tempo em
que segurava meu pau. Começamos a nos beijar e nos beijamos bastante. Tony não parava
de afagar meu pau e eu não deixava de apertar sua bunda lisa e macia. E ficamos assim por
muito tempo, com os corpos unidos. Quando paramos, sorrimos um para o outro e fomos
dormir.
22/03
Sr. João
Peço desculpas se consegui ofendê-lo. Se o fiz, não foi essa a intenção. Entenda o que
escrevi na carta anterior como o desabafo de uma pessoa que não tem a quem contar as
aventuras de uma vidinha medíocre e com pouco sentido. Não fosse a Poly e seu apoio
incondicional, seria pior.
Foi no dia seguinte que comecei a perceber que as coisas não eram do jeito que eu pensava.
Tatiana e Tony conversavam comigo cheios de subterfúgios, pareciam esconder algo.
Sempre caíam em contradição. Tem algo errado aí, pensei. Tony em momento algum
mencionou algo sobre a noite anterior. Se o fez, foi para a Tatiana, que mesmo assim não
demonstrou nenhuma surpresa. Comecei a perceber que ela é muito dissimulada. Mas
como não seria em se tratando de uma adolescente? Eu estou sem telefone em casa, então
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saímos para falar com a suposta irmã deles de um orelhão. Por educação, preferi me manter
a certa distância e não escutei o que conversaram. Depois me disseram que não
conseguiram falar com a irmã, mas com uma amiga próxima, que supostamente daria o
recado. Estranhei. Eles disseram que iriam à praia. Ensinei o caminho e fui para a casa de
Poly. Almoçamos juntos, eu, ela e Regina, que a todo tempo não parava de comentar sobre
aquele fato inusitado, ter encontrado os dois irmãos na praia. Voltei para casa após ter
discutido com Poly, que queria que eu dormisse com ela, mas eu não poderia deixar aqueles
dois sozinhos em minha casa; aliás, eles nem poderiam entrar em casa porque não fiz uma
segunda cópia das chaves. Sentia-me totalmente responsável pelos dois. Chegaram em
intenso frenesi querendo fazer mingau de tapioca. Ah, seu João, mingau de tapioca é uma
de minhas especialidades, afinal de contas sou bom de boca e aprecio cozinhar. Chegaram
com os ingredientes, eu fiz o mingau; sentamos e comemos. Pedi ao Tony que me
emprestasse o chip de seu celular, que estava descarregado e sem o carregador. Foi um
artifício para colher seus contatos telefônicos. No outro dia fui até a casa de Poly e liguei
para a avó deles. Qual não foi a minha surpresa quando a senhora que atendeu se disse avó
de Tony, apenas de Tony. Essa menina que está com ele é que desencaminha ele, ele é um
bom menino, falou a senhora do outro lado da linha. Ela se mostrou preocupada com o
custo da ligação, falamos muito rápido. Disse que eles fugiram da capital de repente e que
não tinham condições financeiras para mandar buscá-los. Quero dizer, para mandar buscálo. Comentei minha artimanha a Regina e Poly, que ficaram surpresas com minha astúcia.
Regina disse que quando tiver um problema me chamaria para solucioná-lo.
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25/03
Sr. João
No dia seguinte eu não resisti e contei ao Tony que havia ligado para a sua avó. Foi o que
precisava para ela se zangar e dizer que eu não tinha nada a ver com sua vida. Passou a não
confiar em mim. Tentei lhe explicar a minha motivação para aquele gesto infame, que eu
não sou habituado a fazer isso, mas a situação estava muito obscura e eu precisava de
definições. Eu corria riscos hospedando-os em minha casa. E o pior, Sr. João, a velha
dissera que Tony tinha apenas quinze anos! Eu quase caí para trás! E se vocês fossem
foragidos da justiça ou estivessem sendo procurados pelo juizado de menores, argumentei.
Eu estaria numa enrascada monumental. Vocês, por medo, acuados, poderiam dizer que eu
os seqüestrei ou coisa que valha. Pensei naquele episódio que aconteceu conosco na cama,
mas não toquei no assunto. Quem iria entender ou acreditar que eu realmente não sabia
que ele era um menor? Minha situação ficara ainda mais delicada. Então eles começaram a
implicar comigo e teimaram em retornar para Brasília de carona. Iriam para a BR em busca
de um caminhoneiro tão louco quanto os que os trouxeram, dar-lhes carona de volta para a
capital federal.
Ao menos tentaram. Arrumaram as coisas e partiram para a estrada. Antes, propus que
aproveitássemos para conhecer o Dique do Tororó, uma lagoa próxima. Tiraríamos
algumas fotografias e eles iriam embora. Precisamos registrar a presença de vocês aqui em
Salvador, eu disse. Eles não estavam nem aí, posaram para as fotos, depois se encantaram
com um velho homem que pescava peixes para o almoço. Aproveitei para telefonar para o
juizado de menores e pedir conselhos sobre a situação. Me informaram que eu os levasse à
unidade mais próxima e lá eles providenciariam o retorno dos dois para Brasília. Fiquei
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muito contente, pois estava preocupado com aqueles dois perdidos na estrada embarcando
em caminhões. Nada contra os caminhoneiros e sua profissão, mas assim como
encontraram gente boa para vir, poderiam deparar-se com caras mal intencionadas na volta.
Dei a boa nova aos dois e combinamos de ir imediatamente ao juizado de menores. Minha
programação era conduzi-los ao juizado e depois ir para a minha aula e música.
Chegando lá, três funcionários nos trataram muito bem, apesar daquele tom de
interrogatório e daqueles semblantes de quem está com toda a razão e é dono da verdade.
Um funcionário ligou para o juiz e o mesmo informou que o caso não era competência
deles, mas do conselho tutelar. Fizeram a gentileza de nos conduzir até o órgão. Lá, a
conselheira disse que os teriam de ficar albergados, pois teriam que seguir toda a
burocracia; além do mais existiam pessoas na fila querendo retornar para seus lares e lá não
era uma agência de viagens. Dissera também que eles poderiam ficar em minha casa; me
deu a opção de ligar para seus familiares em Brasília, na tentativa de que eles enviassem
dinheiro para o retorno dos adolescentes. Tony e Tatiana puseram-se em desabalada
correria no momento em que eu falava com o tio dele. Corri atrás dos dois tentando
convencê-los a voltar, que seria perigoso os dois numa cidade imensa perdidos na estrada
tentando carona. Estava ligando para seu tio, ele disse que iria enviar dinheiro para as
despesas e para a viagem, eu falei para Tony, que a essa altura já estava chorando.
Decidiram retornar, consegui fazer a ligação. O tio dele fez um depósito on line em minha
conta. Voltamos para casa caminhando, pois não tínhamos mais dinheiro para transporte.
Fiquei puto da vida: participei daquele teatro patético e ainda por cima perdi minha aula de
música! Prometi que dali pra frente a coisa ia ser dura, eu já estava há vários dias me
dedicando a dois jovens que eu nem conhecia e que não mostravam a menor gratidão e
apreço pelo meu gesto. Já não tínhamos mais o que comer, devoraram tudo o que havia na
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geladeira e nos armários; inclusive meus produtos de beleza, eu sou um metrossexual
convicto, preciso informar o senhor desse detalhe, meus cremes de cabelo, creme para pele,
creme para as mãos...
Comecei a viver um inferno astral, se é que eu acredito nisso, sou completamente cético,
odeio misticismo sou ateu inclusive, não acredito em orixá, em Deus, em Jesus, em Alá,
Buda, Maomé, todos eles. Mas minha vida estava de pernas pro ar. Dedicara-me
exclusivamente àqueles dois, que acordavam tarde, eu tinha que abrir a janela do quarto
para o sol entrar, ligar a TV com volume alto e mesmo assim eles não acordavam, apenas
quando seus respectivos relógios biológicos os despertava. Faziam o desjejum e iam tomar
sol, ver TV, ouvir música ou dormir novamente. E fumar, impregnando minha humilde
casa com o odor terrificante do cigarro. Continuavam com o joguinho de telefonar às
escondidas, sempre com subterfúgio e fazendo pequenos escândalos na rua, quando eu os
indagava com mais veemência sobre a situação. Por fim, levei os dois para se comunicarem
pela internet com algum familiar na esperança de encontrar uma solução. Fui para a
cozinha fazer o almoço, Poly estava fora ensaiando um novo espetáculo e Regina estava
passeando pela cidade e fazendo sua pesquisa musical. Quando algum adulto estiver on line
você me fala, eu disse para Tony. Inúmeras pessoas se conectaram na rede; a uma delas
Tony pediu que dissesse à irmã de Tatiana, de nome Tamirez, que ela tinha se afogado na
praia de Ondina. Isso é muita irresponsabilidade, eu falei aos berros. Se não fosse assim ela
não daria o recado. Não temos condição de telefonar para ninguém, quando conseguimos
falar pela internet você faz essa idiotice, seu estúpido, disse para falar sempre a verdade, eu
falei irritadíssimo. Não deu outra: algumas pessoas em Brasília passaram mal com a notícia;
um tio de Tamirez e Tatiana, um professor de matemática de nome Miguel, chegou a
desmaiar e bater com a cabeça no chão. Quando soube disso, Tatiana percebeu os erros
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que haviam cometido. Mesmo assim me culparam, dizendo que eu não deveria me envolver
com seus familiares, que eu nada tinha a ver com suas vidas particulares. Eu não estava
nem aí para a vida pessoal deles, queria resolver aquela situação da melhor forma possível.
Para eles e para mim. Naquela mesma noite uma amiga de Tatiana telefonou para meu
celular, eu tinha dito para eles informarem o número pela internet. Me disse que estavam
todos em polvorosa e que a Tamirez viria buscá-los. Respirei aliviado, mais ainda quando
consegui com ela pelo telefone e ela me confirmara que viria realmente buscar os dois.
28/03
Sr. João
Hoje tenho algo inusitado para contar. Ontem fomos à praia, Regina estava prestes a
retornar para a Itália e queria chegar bronzeada em sua terra. Combinei com ela de levar os
dois garotos, já que estava tudo praticamente resolvido não custava nada aproveitar o sol
desse início de outono. Regina não simpatizou com os dois desde o começo, achava a
situação toda um completo absurdo, uma coisa surreal. Não dava a menor atenção aos dois
e ao mesmo tempo se divertia com minhas piadas. Na praia nos divertimos muito,
tomamos sorvete, água de coco e queijo branco assado na brasa. Quando se jogou na água,
lembro que Regina gritou “isso que é vida!”, estava muito feliz. Tony e Tatiana queriam
muito ir ver a lagoa do Abaeté, aquela escura, rodeada de areia branca. Regina preferia
deixar para o outro dia. Mas, como não sabíamos se estaríamos vivos no dia seguinte,
decidimos terminar o dia a banhar-se nas águas doces e mornas da lagoa, que já não é mais
tão grande e tão escura, devido às sistemáticas agressões perpetradas sob a leniência dos
governos.
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Aconteceu de estarmos os quatro deitados á beira da lagoa, apreciando sua beleza e
aproveitando o restinho de sol, quando Regina disse que achava incrível Salvador possuir
pouco acima do nível do mar uma paisagem como aquela e começou a falar sobre os orixás
e sua racionalização, que ela não acreditava cem por cento naqueles transes e naqueles
espíritos. Eu falei que ouvira falar que os presentes ofertados Oxum, deusa das águas
doces, eram colocados no fundo daquela lagoa, falei titubeando, não sabia verdadeiramente
se Oxum é a deusa das águas doces e se os presentes eram posto na lagoa. Regina riu-se
divertida e disse que não acreditava naquilo, que daria tudo por uma prova da existência de
tal deusa e de que ela ia buscar seus presentes naquele lugar. Imediatamente, a parte de
areia branca em que estavam nossos pertences começou a afundar. Afundou tão
rapidamente que não tivemos tempo de segurar nada, posto que estávamos tão espantados.
Ficamos algum tempo olhando um para a cara do outro, depois olhamos para a cara de
Regina, que começou a rir. Eu fiquei espantado, Tatiana começou a chorar. O que
faríamos? Perdemos todo o dinheiro que tínhamos. Tony comeu a cavar o local feito um
cachorro procurando um osso. Regina continuou rindo, nervosa, eu comei a cavar também
e depois de um tempo paramos. Perdemos cartões de crédito, nossos telefones celulares,
câmera digital, um livro e um caderno de anotações de Regina com o registro de seu curso,
de suas aulas, e agora, o que faríamos? Regina parou de chorar e começou a chorar. Tatiana
parou de chorar e começou a rir. O que faríamos? Tão longe de nossas casas, do outro lado
da cidade, como iríamos retornar? Não vou me alongar nesse fato, seu João, o senhor deve
ter muito que fazer e não desejo importuná-lo ainda mais. Combinamos de forjar um
assalto a mão armada, iríamos dar queixa numa delegacia e com seguir uma carona para
casa. Qual não foi nossa surpresa quando o delegado nos disse que não poderia nos dar
carona, que as viaturas não serviam àquele propósito. E mais, não podíamos fazer
nenhuma ligação. Mas nós somos vítimas, se fôssemos criminosos teríamos o direito de
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fazer uma ligação para um familiar ou advogado, eu argumentei. Insistimos tanto que ele
acabou me deixando ligar para Poly, que foi imediatamente buscar-nos. No boletim de
ocorrência consta a descrição de tudo o que foi roubado e do meliante, um rapaz pardo,
aparentado ter entre dezesseis e dezoito anos, portando um facão e trajando sunga amarela.
Contamos o fato do assalto a muitas pessoas, que ficaram horrorizadas, não se pode mais
apreciar uma paisagem turística à vontade sem sofrer algum revés violento, a cidade está
muito perigosa, não se pode mais sair de casa, disseram alguns. Trata-se de uma história tão
surreal que eu ainda não consigo acreditar e muito menos contar aqui os detalhes. Todos os
fatos aqui transcritos são verdadeiros, apesar de parecerem terrivelmente fantasiosos.
Espero que tenha um bom dia e um pouco mais de paciência para terminar de ler meus
relatos.
29/03
Sr. João
Consegui falar algumas vezes com a irmã de Tatiana e ela me confirmou que viria mesmo
buscá-los. Sairia da capital do país de carro com o namorado. Na verdade acabaram de se
despedir de mim, no momento em que escrevo essa carta. Nessa manhã cinzenta e
chuvosa, despedi-me daqueles dois garotos que me infernizaram a vida, que me deixaram
preocupado, que me deixou amante, pai, amigo, colega, outra vez adolescente, mais uma
vez irresponsável. Poly já estava de saco cheio, desde o primeiro momento ela desaprovou
minha atitude. Eu não dava mais atenção a ela, perdera muito tempo com Tony e Tatiana;
no último dia, antes da chegada da irmã que veio buscá-los, passamos muitas horas ao
telefone tentando ligar para a brasiliense, em vão, estávamos na dúvida se ela viria mesmo
ou não. Por fim terminamos dormindo os três na casa de Poly, uma situação
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constrangedora e absurda. Pela manhã, Tamirez pediu que um amigo, que viera junto para
passear por Salvador, me ligasse pedindo para buscar a dupla adolescente depois do
almoço. Não, de jeito nenhum, eu tenho compromisso e preciso entregá-los a vocês
imediatamente, retruquei. Assim, nas margens do dique do Tororó, entreguei Tony e
Tatiana a sua irmã Tamirez, que viera acompanha do amigo gay e afetado e do noivo
brasileiro Emanuel, pois segundo Tony ela tinha um noivo grego de nome Vatso, mas o
outro não sabia. Tamirez agradeceu muito a mim e a Poly, que disse também ter sido
responsável pelos dois, afinal de contas me ajudara muito, cedera sua casa, emprestara
roupas e o telefone para as inúmeras ligações. Tony, um adolescente inconveniente e
brincalhão, alienado e preocupado apenas com seu visual, com a próxima festa e com as
peculiaridades do mundo gay e de seus amigos, me abraçou e disse ao amigo que eu era
uma “bonequinha de luxo” de salvador, que ainda estava no armário. Tatiana chorava
muito, arrependida da peça que pregou contra seus familiares. Nos abraçamos, nos
despedimos. Aquela sensação estranha de dever cumprido e de vazio. Demos as costas e
voltamos para casa. Começou a chover forte, eu estava meio febril, normalmente depois de
alguma tensão eu caio doente. Poly aproveitou para me desancar, com toda razão.
Chamou-me de irresponsável, imaturo, que eu deveria abrir os olhos para a realidade e não
me dar ao luxo de cometer atos tão irresponsáveis e que ela estava lavando as mãos, não
queria mais se envolver em minhas trapalhadas e minhas indecisões e meus conflitos
pessoais, afetivos e artísticos.
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01/04
Sr. João
É nesse primeiro dia de abril e de celebração da mentira que escrevo minha última carta.
Queria saber, mas não poderei, se o senhor sentirá saudades, se sentirá falta desses relatos
toscos, ridículos e sentimentais. Desculpe-me por ser tão dramático muitas vezes. Minha
vida perdeu parte do sentido com as indefinições profissionais e sexuais tardias, com as
incertezas amorosas, com meus erros todos, com meu remorso por ter machucado tanto e
tão fortemente a Polyana (é seu nome completo), com a instabilidade financeira e com
minha eterna mania de tentar resgatar minha adolescência com atos infames e impensados
como o que acabei de cometer. Ah, como eu queria ter mais momentos felizes, velho João.
Juro que tento todos os dias ser otimista, ser otimista, ser otimista, ver que a vida é bonita e
repleta de possibilidades. Temo ter me apaixonado por aquele garoto irresponsável; temo
ter me apaixonado por seus atos rebeldes e infantis; temo ter me apaixonado por aquele
espírito aventureiro e desprendido. Não me julgues, por favor, velho João, isso eu costumo
fazer diariamente.
Olhei para o céu e não havia sinal de chuva, o firmamento ardia num azul inabalável. Os
garçons colocaram as mesas e cadeiras do lado de fora, na calçada, anunciando mais uma
manhã de domingo de muito lixo, copos e garrafas plásticas e odor de urina na rua. Abri a
porta de casa e enquanto os cachorros me beijavam com aquele amor tão genuíno, eu
lembrei que o aluguel estava atrasado e eu não tinha como pagar; lembrei que não sabia se
dormiria na casa de Poly ou na minha casa; lembrei que precisava reagir, mas não tinha
tanta força; lembrei que precisava visitar minha mãe; olhei para a velha e bonita geladeira
que Poly comprou para mim de um grupo de universitários a preço de banana. Fomos eu e
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meu enteado mais novo busca-la e eu lembrei o misto de orgulho e humilhação que senti;
lembrei que ele, até o momento de sair de minha casa não me havia dito uma palavra,
indiferente a tudo; lembrei que precisava produzir algo. Olhei o sol pela janela: forte e
brilhante como sempre. Então sentei em uma cadeira e sem saber ao certo por qual
motivo, comecei a chorar.
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TÂNIA
Permaneço com o olhar fixo no espelho. Busco uma ruga que talvez possa ter aparecido ao
redor dos olhos ou no canto da boca. Apalpo os seios em busca de algum caroço. Não
tenho idade para isso, mas ainda assim costumo fazer. Ainda não cheguei aos trinta e nove,
mas é melhor prevenir.
Olho minha vagina, apalpo e sinto o cheiro em busca de algum odor desagradável. Tenho
medo de alguma infecção. Ele gosta dela lisa, por isso costumo usar creme hidratante antes
e depois das sessões de depilação. Não gosto de ir a essas casas profissionais de remoção
dos pêlos, a coisa toda é muito fria, os esteticistas parecem uns robôs, não aprecio essa
mecanização horrorosa. Prefiro fazer tudo em casa, eu mesma, do meu jeito.
Após o banho uso sempre uma loção no corpo todo, mas uma loção com cheiro suave, ele
não gosta de cheiros fortes, e nem eu. Ele diz que gosta de sentir o meu cheiro, o odor do
meu suor na pele dele. Mas esse processo pós-banho eu faço no banheiro do trabalho,
espero as colegas saírem ou termino tudo mais cedo para chegar primeiro ao vestiário.
Marido sortudo, diz Carminha todas as vezes que me vê. Esse homem deve ter uma
pegada, falou uma vez Rosângela, dando uma tapinha na minha bunda. Tem mesmo, eu
disse. Quando chego ele está deitado na cama, me esperando. Usa sempre o mesmo
moletom cinza. Safado, sabe que adoro homem de moletom, faz para me provocar. Como
sempre me pega de jeito, me beija carinhosamente, me oferece uma flor e um doce, sabe
que eu adoro. Conto tudo pra ele. Tudo quer dizer, o essencial, não se deve dizer tudo ao
homem, só o suficiente. Existem coisas que devem ser mantidas em segredo. Não me deixa
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marcas, detesto marcas, acho tão vulgar. Adoro mordidas discretas, em locais secretos e
imperceptíveis aos olhos dos curiosos, das pessoas vulgares.
Quando chego em casa ele preparou o jantar, como faz todos os dias; sua comida é
perfeita. Beija-me com aquela burocracia patética. Quando saio do banho ele está vendo
TV. Não vem jantar, pergunto, tentando imprimir alguma graça àquele momento. Ele se
levanta repentinamente, pede desculpas e senta-se comigo à mesa. Um jantar perfeito não
fosse essa terrível perfeição. Sua passividade agressiva me deixa de saco cheio. Algumas
vezes quando me olho no espelho acho que sou uma puta. Não tenho coragem de contar
essas coisas para ninguém. Um dia pensei em contar a minha mãe, mas fiquei imaginando
qual seria sua reação: desmaiar, ter um ataque e morrer, me esbofetear, sair correndo
gritando feito uma louca, ou a pior das reações: ficar calada e não dizer nada? Na dúvida
preferi ficar calada. Por que eu faço isso? Ele não desconfia de minhas transas fora do
casamento? O pior de tudo: eu continuo amando esse homem loucamente. Onze anos de
casamento e nosso amor ainda continua de pé. Pareço hipócrita e cínica dizendo isso, mas
meu Deus é a mais pura verdade! Não consigo me ver longe desse homem!
Odeio muitos de seus hábitos, suas manias, mas gosto de tantas outras, a ordem, a
arrumação, o zelo para comigo e nossa casa. Quantas mulheres dariam tudo para ter um
homem assim? Eu me arrependo todas as vezes que chego em casa e olho para ele. Mas
logo em seguida tomo um fôlego, ele nunca iria desconfiar. É tão inocente! Além disso,
estou sempre disposta para ele. Um dia invocou que eu estava com um cheiro estranho.
Era o cheiro de Carlos. As meninas do trabalho, eu disse com firmeza, vendem uns
perfumes para aumentar a renda e ficam jogando na gente. Dizem que pra sentir o cheiro
verdadeiro tem que passar na pele, não pode cheirar no frasco. Ele desconfiou? Nada!
Disse, é verdade, eu sabia disso, tem que misturar com o suor.
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Carlos não faz muitas perguntas. O sexo é sempre ardoroso. Nunca freqüentamos o
mesmo local. Adoro motéis: posso gritar a vontade. Em casa é sempre aquele pudor e o
medo dos vizinhos escutarem. Já pensou no dia seguinte a minha cara e a dele? Eu morreria
de vergonha de perceber que algum vizinho escutou nossos gemidos de amor.
Ao final do jantar eu escovo os dentes, solto os cabelos, visto o penhoar azul nenê que ele
tanto gosta. Bem, não vem para a cama?, pergunto maliciosa. Em silêncio, ele se espreguiça
e me olha com aquele olhar faminto e entra no quarto desabotoando a camisa.
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SUOR E SALIVA
Encharcado de suor, debalde Armindo gritava no automático, como se fosse um gravador,
repetindo incessantemente a velha cantilena conhecida por todos. Talvez por isso ninguém
lhe desse ouvidos. Quando tinha vontade subia e descia a ladeira, na verdade a Rua
Conselheiro Junqueira Aires, que ladeia dois shoppings centers. Estava acostumado com o
sol, a poeira, a buzina dos carros e o sobe e desce das pessoas que se acotovelam na
correria desabalada.
Armindo odiava o que fazia e todos os dias se perguntava por que Deus, sábio do jeito que
só Ele é, lhe impôs tamanho sacrifício que é o de ser anunciante de porta de loja? Armindo
não tinha o menor traquejo com aquilo, apesar de executar seu ofício com responsabilidade
e força. Não sabia seduzir os clientes, atrair as pessoas para dentro do estabelecimento.
Não via a hora de chegar o momento de entregar o megafone e ir para casa. A casa é na
verdade um pequeno apartamento no Largo Dois de Julho. O pagamento do aluguel
consumia praticamente todo o salário de Armindo, que de hora em hora parava para
contemplar embasbacado o vai e vem das pessoas, todas afobadas e imersas em mil
compromissos, pontualidades e atrasos.
Pontualidades e atrasos.
Era o tema preferido de Armindo, que na verdade queria ser escritor e tentara desenvolver,
sem muita desenvoltura, o seu tema predileto: pontualidades e atrasos. Escrevera à mão,
como fazia desde que era criança, um esboço do que viria a ser, dizia, um romance
monumental de mais de duas mil páginas. Abominava atrasos. De tudo fazia para ser
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pontual. Andarilho nato, ele saía de casa algumas vezes com quatro horas de antecedência,
chegando ao local sempre quinze minutos antes do combinado e encharcado de suor.
Nessas ocasiões Armindo corria para o banheiro mais próximo e lá enxugava com aquelas
toalhas de papel todo o corpo, começando pela cabeça e terminando nos tornozelos. Sua
diversão principal era a imensa Biblioteca Pública do Estado, que fica nos Barris, que
muitos chamam de Biblioteca Central. Armindo sempre se indispôs com amigos e colegas
por causa do uso da terminologia. Biblioteca Pública do Estado, dizia ele, impõe mais
respeito e sacralidade àquele prédio imponente. Àquele templo do conhecimento e da
erudição, emendava pirraçando e buscando sempre as palavras mais difíceis. Quando não
estava na biblioteca, podia ser encontrado na Cantina da Lua bebendo cerveja e comendo
pirão de aipim com carne defumada. Sempre sozinho, observando o comportamento das
pessoas, suas gargalhadas, seu desespero, o afã pela felicidade e o exibicionismo delas; a
beleza encantadora das mulheres bêbadas, soltas, despudoradas, os galanteios dos mais
afoitos, a gente de teatro e de dança, os literatos e as cantigas a plenos pulmões dos
violonistas de plantão.
Qual não foi a surpresa de Armindo ao chegar em casa e encontrar Tereza.
“Sua eterna amante”, berrou a moça ainda no escuro, antes de Armindo acender as luzes.
“Sabia que por esquecer as luzes apagadas iria acontecer alguma coisa, sabia!”, disse
Armindo recuperando-se do susto. “O que você está fazendo aqui sua louca?”.
“Vim te ver. Estava com saudades.”
“E é assim que está com saudades? Não me dá nem mais um beijo?”, disse Armindo
agarrando Tereza pela cintura e dando-lhe um beijo. “Você está muito safado, quem anda
te ensinando essas safadezas? Aposto que é aquela bruxa da Fernanda”, disse provocador.
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“Não a chame de bruxa”, disse Armindo abrindo o sofá-cama e deitando-se nele.
“Ela te enfeitiçou, tirou você de mim.”
“Ela não me tirou de você. Você que me trocou pelo coroa rico, só isso. E já conversamos
sobre isso. Não te troquei por ninguém”, disse Arthur sacando uma garrafa de vinho tipo
Cabernet Sauvignon.
Na noite de calor abundante, luz cheia quase azul e brisa morna, fizeram sexo entre suores,
gemidos e a música alta vinda dos bares do largo repleto de putas, casais apaixonados,
bêbados e vadios da noite.
Naquele sábado Armindo abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi o megafone amarelo,
branco e vermelho, ferramenta de trabalho.
“Não era pra ter olhado pra lá”, disse Tereza. “Era pra ter virado pra cá, vira!”
Armindo sorriu e virou-se para o outro lado. A luz vinda da enorme janela ofuscou suas
vistas.
“Quer me matar de susto?”, disse tapando as vistas.
“Ah, deixa de ser chato, não está vendo o pacote em cima da mesinha?”, disse Tereza
divertida, exagerando nos gestos. Armindo olhou para uma mesinha num canto do quarto
que usa para segurar a porta do guarda roupas. Sobre a mesa estava uma pasta vermelha
com um laço de fita amarela.
“O que é isso?”
“Um presente”, disse Tereza com um ar de mistério e cinismo. Armindo
prontamente abriu a pasta e se deparou com um calhamaço de páginas datilografadas,
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arrumadas com estilo, numeradas e presas em um elástico preto. Folheou o volume e
percebeu anotações dispersas, inúmeras anotações feitas com caneta esferográfica. O
volume de páginas já amareladas não tinha título, nem indicação do mesmo, apenas o nome
do autor, obviamente datilografado: Jorge Amado.
“Isso é uma brincadeira?”
“Claro que não, eu não levo a vida a sério, mas não sou de fazer esse tipo de
brincadeira”, afirmou Tereza com uma seriedade jamais notada por Armindo.
“Esse original é mesmo do Jorge Amado? Onde você conseguiu isso?”
“O coroa que você se referiu ontem a noite é amigo de um ex-empregado da casa
do Rio Vermelho. Ele pediu emprestado, certa vez, ao próprio escritor um original
inacabado que estava jogado numa das gavetas. O escritor, afeiçoado ao empregado,
permitiu a regalia. E acabou se esquecendo do mimo. O cara teve um rápido namoro com
o “coroa” que você mencionou ontem”.
“E o coroa pediu para ler e acabou ficando com o material”, disse Armindo, cético.
“Digamos que ele não acabou “ficando”, mas tomou de empréstimo e acabou aqui,
como um presente para você”.
“Um presente para mim?”, perguntou Armindo com olhar fixo na amante, que,
sempre faceira, disposta a mimos, a beijinhos e a abrir facilmente as pernas quando gosta
de um sujeito, se aproximara dele, puxando-lhe pela cueca, enfiando as duas mãos,
puxando-o para dentro dela.
Naquele dia começara um pequeno grande inferno para Armindo, aquele sábado
em especial fora terrível. Com o pacote embaixo do braço, foi à cata de um velho
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conhecido seu morador do bairro da Federação. Ao entrar no apartamento, cujo elevador
abria-se na sala de estar e na mesma uma janela abria-se para a vista deslumbrante das
praias de Ondina e Rio Vermelho, Armindo tratou de ir direto para o banheiro enxugar o
suor de todo o corpo.
Depois eu te ligo, disse Júlio Góes dando uma tapinha na bunda de uma mulher
morena e jovem, cujos cabelos meticulosamente implantados alcançavam a cintura.
“Comeu?”, perguntou Armindo jogando-se no sofá.
“Não, ela chupou. Mas isso não interessa, eu quero ver esse material.”
“A primeira coisa que pensei foi em te mostrar. Fiquei com tanto medo que não
pensei em mais nada.”
“Deixa ver.”
Júlio Góes colocou os óculos, acendeu um autêntico charuto da marca Fonseca.
Júlio Góes era professor de literatura comparada da Universidade Federal da Bahia
e da Universidade de São Paulo, tendo trabalhado como professor convidado de inúmeras
universidades mundo afora. Fora ator de teatro, mas seu forte sempre foi a literatura,
versejando a todo o momento, escrevendo contos e romances sempre publicados sob o
pseudônimo de Ninfa de Jurubeba. Ganhara uma vultosa quantia na loteria e agora mora
no enorme prédio de um apartamento por andar e passa a vida lendo, escrevendo,
comendo putas jovens e exercitando-se na praia com o seu cachorro vira latas. Do que
mais se orgulhava era de ter conhecido Jorge Amado e de possuir uma estante com todos
os livros do autor, todos autografados. Era um conhecedor nato do estilo e da obra do
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literato baiano. Passaram-se alguns minutos. Aflito, Armindo caminhava de um lado para o
outro. Vez ou outra contemplava a paisagem da janela.
“E então?”, perguntou quando percebeu que Júlio acabara de analisar o material.
Júlio retirou os óculos rapidamente, parecia ansioso. Correu até uma estante de jacarandá,
abriu uma gaveta, retirou uma caixa com cigarros. Armindo sabia que o amigo raramente
fumava cigarros, fazia isso apenas quando algo ia mal, quando uma bomba estava prestes a
explodir.
“Como diria o meu grande amigo Nelson Rodrigues - que Deus o tenha cercado de
mulatas deliciosas -, é batata!”
“Batata? Fala direito homem!”
“É autêntico! Uma obra completa, perdida, do Jorge Amado!”
“Santa Puta! E agora o que eu faço?”, perguntou Armindo visivelmente transtornado.
“Aí é que está o busílis! Quando se ganhar na loteria, precisa saber o que fazer com o
dinheiro, porque a vida pode se tornar um verdadeiro inferno!”
Esbaforido, Armindo parecia correr pela Avenida Cardeal da Silva; logo tinha chegado ao
Campo Grande; parou em frente ao Teatro Castro Alves e sentou-se aos pés do
monumento do Caboclo, na praça. Tomou um fôlego, pensou em quem poderia pedir
ajuda, estava perdido, sem saber o que fazer com aquele material. Poderia simplesmente
transcrever tudo e assinar embaixo, como sendo obra sua; todos atestariam o fato, pois não
existia vivalma que conhecesse Armindo e não soubesse de suas aspirações literárias. De
seus sonetos inspirados em Aretino e Hilda Hilst; de sua ideia de um romance
monumental, de suas assíduas visitas às bibliotecas da cidade; e de sua profunda admiração
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por Jorge Amado. Os amigos atestariam a influência nítida do escritor baiano na “obra” de
Armindo. Por isso ele sentia inclinação genuína em lançar o livro como sendo seu. Voltou
para casa e passou o resto do dia devorando a obra. Prestou bem atenção nos detalhes, o
manuscrito contava a história de um estrangeiro que fugiu de sua terra devido a uma guerra
civil e conseguira se estabelecer no sul da Bahia, depois viajou para Salvador, onde fixou
residência; abriu duas portas para o comércio, amado pelas putas, pelas carolas, pelos
bêbados, respeitado pela polícia, pelo povo de santo e pelas mães de família. Tornou-se
filho de santo, de Xangô propriamente, tal qual Armindo, que esboçou um sorriso de
contentamento e ao mesmo tempo parou um instante para refletir: sentia nojo de si mesmo
ao refletir melhor sobre a ideia de apresentar a obra a alguma editora como sendo de sua
autoria. Pouco conseguiu dormir, aflito com esses pensamentos funestos; a possibilidade de
uma nova vida o atormentava, mas a possibilidade de uma traição – trair a si mesmo e à
memória do escritor – o deixava furioso. Armindo tivera boa educação, familiar, religiosa e
jamais poderia tolerar uma desonestidade, um desvio de caráter. Preferia perecer na
pobreza a ter que enriquecer ou cobrir-se de glória pela derrota do outro.
Naquele dia mal dormiu e já estava de pé; estava decidido a tirar uma cópia e esconder o
original, por medida de segurança, era muito paranoico e tinha manias de perseguição;
abriu a janela e espreguiçou-se, como sempre faz, sentindo os raios fortalecedores do sol, a
brisa fresca da manhã. Notou um homem parado em frente ao prédio onde mora,
encostado num poste; nunca tinha visto o sujeito naquela rua; o homem vestia um casaco
verde musgo e fumava um cigarro, parecia nervoso. Armindo ficou intrigado, entrou no
banheiro, tomou banho, trocou de roupa, bebeu um gole de leite e olhou novamente pela
janela: o homem continuava lá. E agora o encarava e sorria.
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“Que porra é essa agora?”, perguntou-se fechando a janela. Colocou o manuscrito embaixo
do braço e saiu. Precisava ser pontual com o amigo da copiadora, que combinara com ele
de logo cedo fazer as cópias gratuitamente. Quando saiu deparou-se com o estranho, que,
encostado ao poste, o encarava ostensivamente. Armindo andou ligeiro, entrou pela rua
principal e olhou para trás: o homem o seguia falando ao celular; Armindo se desesperou
ao ver o homem erguer o braço esquerdo e apontar para ele com um olhar ameaçador.
Entrou no edifício Totonia, subiu correndo as escadas; esbaforido, chegou à beira do
terraço, pensou em se jogar, abraçado à pasta com os manuscritos. Pegou o velho isqueiro
que trazia sempre no bolso – Armindo não fuma, mas por charme, dizia ele, sempre andava
com um maço de cigarros e um isqueiro no bolso – e pensou em atear fogo nas mais de
setecentas páginas datilografadas. Quando olhou para baixo, viu o homem abraçar uma
mulher; olhou mais atentamente e percebeu tratar-se de uma sua vizinha, casada com um
estivador aposentado; a moça corneava o marido com o fulano, que ali na rua em plena luz
do dia, a beijava e descia as duas mãos pela bunda suculenta e arrebitada da morena.
Descendo as escadarias do edifício, Armindo sorria contente, tinha a constatação de que se
livrara de um grande estorvo. Seu coração palpitava. Quando dobrou a esquina para a
Avenida Sete, deparou-se com o sujeito que o observava com olhar ameaçador.
“Me passa a pasta, seu puto”, disse o sujeito segurando Armindo pela gola da camisa.
Armindo contorceu-se, livrou-se do homem e correu desesperado. Olhou pra trás e viu o
sujeito enfiar uma das mãos dentro da calça, parecia segurar uma arma. Os camelôs,
entretidos com suas mercadorias e com os clientes, nada perceberam; os transeuntes idem;
Armindo sentia-se imerso em um pesadelo. Procurava um policial qualquer, alguém que
pudesse pedir socorro, mas a figura daquele homem loiro com maia de dois metros de
altura, forte como desenho de herói de história em quadrinho o deixou sem fala. Pensou
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em entregar-se, mas quando atravessou a rua, ouviu uma freada de carro e o corpo do
homem ser atirado longe. As pessoas pararam para olhar, o motorista saiu de veículo com
as mãos na cabeça. Armindo continuou andando, resfolegando. Depois decidiu voltar e não
viu mais a multidão; perguntou a um vendedor ambulante sobre o acidente, o homem disse
que não houve acidente algum ali. Armindo olhou para o asfalto ao seu redor: nenhuma
mancha, vidro quebrado. Mas como poderia? Estaria louco, vítima das mais terríveis
alucinações? Saiu correndo, desesperado, pensou estar ficando doido! Procurou seu velho
lenço e enxugou o suor da cara, sua camisa estava empapada. A essa altura já tinha
abandonado o emprego e passara quatro dias trancado em casa, sem saber o que fazer com
o material. Passara a ter delírios fantasiosos, paranoia, sensação de perseguição. Leu e releu
a obra que escrevia: o tal romance monumental e pensava em um final para a história de
pontualidades e atrasos. Não pensava em mais ninguém que pudesse ajuda-lo. Júlio Góes
tinha viajado para Buenos Aires, faria uma palestra sobre Literatura Brasileira; Tereza fora
cuidar de uma tia moribunda no Rio de Janeiro. Então lembrou-se de sua mãe de santo,
Mãe Iara, batalhadora e atuante líder espiritual e comunitária da região de Cajazeiras.
Telefonou-a contando sobre o episódio. Grande foi a surpresa de Armindo quando soube
que Mãe Iara estava aflita para ter com ele. Armindo pertencia àquela casa, tinha feito santo
ali, filho de Xangô, orixá valente, deus da justiça.
Quando chegou ao terreiro, Mãe Iara o esperava no portão.
“Vamos fazer o jogo, o orixá tem muito a dizer.”, adiantou a mãe-de-santo.
Armindo ficou temeroso. Mais ainda quando o jogo se fez confuso, os búzios atrapalhados,
pareciam dizer coisa alguma. Mãe Iara parecia atônita, mais de trinta anos no sacerdócio
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jamais acontecera uma coisa daquelas. Apenas uma mensagem ela pôde interpretar: que
Armindo devia fazer a justiça, que a justiça seria feita a ele.
“Só isso?”, quis saber.
“É a mensagem dos deuses meu filho, as coisas vão se arranjar!”, falou Mãe Iara
levantando-se. Armindo contou a louca história, Mãe Iara não se abalou.
“Nessa vida acontece cada coisa meu filho, não se espante. Volte para casa, tome um
banho, faça suas orações, deite em sua cama e tente dormir, se desapegue desse pacote que
com certeza você vai arranjar uma solução. E lembre que semana que vem tem festa pra
Ogum e você não pode deixar de vir. Xangô vai te dar a saída meu filho.”
Armindo seguiu o conselho. Voltou para casa. A brisa do ônibus acalmou seu juízo, seu
coração desacelerou. Fez exatamente o que a mãe-de-santo sugeriu. Entrou no chuveiro,
lavou-se, comeu cuscuz de tapioca, bebeu café com leite, suco de maracujá e deitou-se.
Não tardou e começou a sonhar. Com Xangô, que apareceu em sua frente, em meio a raios
vermelhos, segurando seu poderoso machado de dois gumes, os olhos cor de fogo, a pele
brilhando como se fosse o astro rei. Armindo emudeceu. Então Xangô, com sua voz
potente abriu a boca e lhe disse que trabalhasse com a justiça e com os justos; o que for do
homem, o outro não toma. E girou seu machado cortando o ar com força e barulho.
Armindo sentiu que ficaria cego e surdo. Acordou gritando a saudação ao santo: Kawo
Kabiyesi lê!
Apesar do susto, tinha se fortalecido com as muitas horas de sono. Ficou mais três dias em
casa, matutando, lendo o manuscrito de Amado e reescrevendo parágrafos de seu romance
à mão. Tinha decidido: iria até a Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho e lá
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deixaria o pacote em algum canto, para que algum funcionário pudesse encontrar. Armindo
teve finalmente e ideia para o fim de seu romance monumental de milhares de páginas.
Quando chegou ao Pelourinho e entrou na fundação, uma mulher sorridente veio atendêlo; Armindo escondia a pasta dentro da casaca que usava. Perguntou à mulher sobre um
exemplar de um romance traduzido para o sueco. Quando a mulher deu as costas indo
buscar a publicação, Armindo sorrateiramente deixou a pasta sobre o balcão. Ninguém
percebeu seu ato. Quando a funcionária retornou com o livro, Armindo foi sentar-se.
Antes, voltou para a mulher.
“Acho que alguém esqueceu essa pasta no balcão”, disse folheando o livro em sueco, nada
entendia daquela língua.
A funcionária, surpresa, abriu a pasta para ver se encontrava um telefone ou alguma pista
para entrar em contato com o dono. Quase caiu pra trás quando percebeu do que se
tratava. Chamou a diretoria, fez um alarde tão grande... Ficaram todos contentes, a diretora
da Casa chamou imediatamente um perito na obra de Jorge Amado: o literato Júlio Góes,
que acabara de chegar de viagem e, olhando fixamente para Armindo, considerou aquele
acontecido um milagre! Atestou a autenticidade da obra, a letra o escritor nas correções
feitas à mão, como era de costume, o defeito da máquina sempre nos mesmos lugares e
principalmente o estilo único e apaixonado. Mais uma vez a Bahia inteira ali em páginas
datilografadas. Armindo sorriu aliviado, tirara uma tonelada de seus ombros, descarregouse de um pesadelo, sentia-se como um criminoso contumaz; agora estava livre. Chegou em
casa, telefonou para Tereza e contou tudo. Tereza ria sem parar do outro lado da linha.
Disse que sabia que Armindo faria aquilo, que devolveria os originais, pois conhece seu
caráter e seu respeito pela literatura.
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“Então fez tudo pra me testar?”, perguntou Armindo.
“Não, eu sabia que você arranjaria um jeito de devolver o material. Mas queria que você
tivesse um pouco de contato com aquele original, te daria inspiração e prazer”.
“Sim, deu algo mais do que inspiração e prazer”, disse Armindo irônico.
Readmitido no emprego, Armindo, banhado em suor, enxugando a testa, vítima do verão
da Bahia, gastava saliva repetindo a velha cantilena de propagandista de porta de loja. Só
pensava no romance que teria de terminar. Muito trabalho tinha pela frente. Quando
chegasse em casa, sentar-se-ia e escreveria o final do livro. Que não versaria sobre
pontualidades e atrasos.
Mas sobre suor e saliva.
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AMANDA
Pronto, terminei de arrumar as coisas. Gosto de ver tudo arrumadinho, tudo em ordem. A
casa é de pobre, mas não é por isso que tem que andar suja e bagunçada. Dá gosto ver tudo
arrumadinho e limpinho. Minha batalha é diária. Os filhos estão criados, mas tem agora os
netos, que dão um trabalho! Não sei se aguento essa vida mais não, qualquer dia desses eu
dou no pé, deixo tudo aí do jeito que está!
Minha vida toda perdida aqui dentro dessa casa, cuidando de filho e agora de neto. Você
ganhou presente no dia do aniversário? Ninguém apareceu por aqui. O mais novo disse
para eu entrar na internet. E eu sei lá mexer nesses troços? Que ele queria conversar
comigo, me ver por uma câmera pequena e me dar os parabéns. Chegou o dia das mães
você ganhou um beijinho pelo menos? Dois telefonemas e nada mais. Eu sei ninguém tem
muita condição mesmo, todo mundo com filho, não sobra nem um trocado para o
presente da mãe velha. Agora tudo que quero é me sentar e ver a novela, os últimos
capítulos. E quando o marido chegar eu estarei limpa e cheirosa, é dia dele me procurar,
sempre foi assim um homem direito, tudo tem seu dia e sua hora. Me possuiu a vida toda
sempre no mesmo dia da semana. Se não fosse pela graça de Deus os filhos teriam nascido
sempre no mesmo dia, já pensou fazer festa de aniversário pra oito meninos? Ia ser uma
gastança de dinheiro!
Tem dias que me sinto presa e gostaria de poder sair voando por aí. Sinto-me presa dia e
noite aqui nessa casa. Sempre a mesma rotina. Não lembro por que motivo eu quis casar e
viver essa vida. Nem sei dizer se algum dia eu tive esse desejo ou se ele apareceu em mim e
ficou. Acho que nem é um desejo, é uma condição que apareceu e se instalou dentro de
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mim, foi ficando e nem me dei conta. Esse batom que olho é antigo, mas é tão bonito.
Tem ainda um pedaço. Como fica bonito ainda em meus lábios. Minha boca sempre foi
assim carnuda. Não murchei ainda meu Deus, não sequei. Se aumentasse o decote, ai que
lindo que ficaria. Se subisse a barra da saia. Poderia até voltar a cantar. Era esse meu
sonho? Ou eu queria ser atriz? Uma vez tive o prazer daquelas luzes e das pessoas de pé me
aplaudindo. Eu representei e cantei. Foi tudo assim improvisado, tudo amador, mas feito
com um carinho que só Deus sabe. E Ele sabe que eu devo limpar esse batom, esquecer o
decote e abaixar essa saia. Perna ainda bonita é para o marido. Boca ainda carnuda é para a
família. Voltar para os afazeres, ver a novela. Que sou uma mulher casa e de respeito. E é
assim que vou morrer.
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O TRAVESTI DE SARNAMBY
Naquele dia a cidade inteira acordou mais cedo. A virgem Rosamunda, a quem os rapazes
não gostavam da cara, mas se deleitavam na bunda, comprara até um estojo novo de
maquiagem. Nele investira dois meses de salário. Não adiantaram os rogos e preces de sua
mãe, de nada serviu o sermão da tia carola. A moça comprara seis metros de fazenda nova
para que a costureira Otacília lhe fizesse um vestido -que segundo ela -, seria o mais bonito
vestido do mundo. Durou menos que três dias a feitura da peça. Cheio de plissados e
babados a vestimenta causou escândalo quando de sua aparição. Dona Otacília, católica
fervorosa, abandonara a faculdade de Moda para se dedicar à religiosidade. É que o padre
Valdemar, que almejara ser beato sem um milagre sequer, dissera em um sermão que a
academia era um antro de gente perversa e pagã, adoradora de deuses falsos, pederastas e
outros epítetos equívocos e que ninguém na igreja jamais ouvira falar.
Mas naquele dia o padre Valdemar, ainda sem milagres e sem o título de beato, também
mandou aparar o cabelo crespo, pôs a batina para lavar e secar ao sol; usou o perfume que
mandou vir do Rio de Janeiro, ao invés do costumeiro perfume de alfazema que passava na
barriga e no pescoço todos os dias. Até o porco Joelmir nesse dia tomou banho, retirou a
crosta de lama que recobria o couro. Limparam-lhe as orelhas e jogaram talco perfumado
no que julgavam suas axilas. Pelo menos por mais um dia não viraria toucinho e torresmo.
O animal parecia sorrir de contentamento. E pouco se importara com os acontecimentos
que sacudiam a pequena cidade de cem casas. Queria mesmo é voltar para o chiqueiro, se
revolver na lama para aliviar-se do calor daquele verão escaldante.
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O barbeiro Otavio ficou espantado. Não bastasse as suas duas filhas estarem em polvorosa,
não bastasse as duas terem comprado roupa nova, mandado vir fivelas de São Paulo,
sapatos de São Salvador, a sua amantíssima esposa, beirando os sessenta anos e ainda cheia
de fogo para ser debelado, a sua amantíssima esposa decidira aumentar o decote, mudar a
cor sóbria do batom por outra de cor berrante, como quem diz “cheguei”, como quem
quer ser notada a qualquer custo. A mulher, que fora a São Salvador fazer cirurgia para
diminuir as malacas fartíssimas e caídas, agora encurtara a barra do vestido, soltara a vasta
cabeleira e mostrava ostensivamente o pescoço. O mensageiro da prefeitura, que todos
diziam ter um comportamento duvidoso, quando soube da notícia, estava com a boca
ocupada com os bagos do assistente do padeiro, ambos com dezenove anos, encontrandose a mais de um ano atrás da igreja, atrás do mercado, atrás de todas as árvores e
propriedades da cidade. Largou o companheiro ali mesmo, com a arma em riste a boca
aberta, pasmos, e foi confirmar a notícia. Salatiel, o assistente do padeiro, jovem robusto e
altíssimo, terminou o serviço sozinho, desmanchando-se ali mesmo deitado no chão da
padaria. Era com aquelas mãos que pegaria na massa do pão e das iguarias preparadas por
Fagundes, o dono da padaria, viúvo solitário cujo maior sonho era ser ator de cinema. Mas
os quefazeres do comércio e as responsabilidades do casamento minaram suas chances
com a sétima arte. Agora, viúvo, pensava novamente em retomar sua verdadeira vocação.
Não contava ainda cinquenta anos e almejava aprimorar-se em um curso em Salvador,
depois iria fixar residência no Rio de Janeiro ou São Paulo e iniciaria sua carreira como ator
de cinema. Quem sabe até Hollywood não o convidava para estrelar uma película?
Foi imerso nos devaneios artísticos e cinematográficos que Fagundes recebera a notícia e
ficara altamente espantado. Mas como? Uma cidade tão pequena e insignificante, gritou ele
sempre dramático pondo as mãos contra o peito. Salatiel balançou a cabeça confirmando a
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nova que havia dado, aproveitando para limpar melhor as mãos na camisa puída. Fagundes
correu a aparar a barba e o bigode com o barbeiro Otávio, que naquele momento estava
fechando a barbearia por falta de freguês. É que todos estavam atarantados com seus
afazeres, com os preparativos. O presidente da câmara então que o diga. Seu Etevaldo de
Etelvina nunca conseguira eleger-se prefeito. Tentara não menos que seis vezes e sempre
acabara o pleito derrotado com pouquíssimos votos. Diversas vezes tentara impugnar o
resultado das urnas. Contentara-se com a humilde vereança e à presidência da Câmara,
coisa que o enchia de garbo; todos os dias lustrava ele próprio a plaquinha com a inscrição
“Presidente” sobre a mesa de seu gabinete e também na cadeira mais alta do plenário,
donde aliás ele estorvava os encontros com seus caudalosos discursos repletos de adjetivos,
superlativos, frases de efeito em inglês e francês, línguas que falava com fluência além de
citações em latim inspiradas em Horácio, Praxedes, Aristóteles, Tucídides, Sêneca, Tales de
Mileto, Plotino, Diógenes e outros filósofos porretas.
Quem o fazia calar a boca era a louca Carminha, que de louca nada tinha, apesar de todos
os dias caminhar desvairada pelas ruas da cidade e por seus extremos, pelos matagais afora
berrando que quer um noivo, um marido para lhe pôr uma aliança. Carminha disputava
com Rosamunda o posto de ninfomaníaca-mor da cidade; era a festa dos adolescentes e
dos marmanjos e dos homens cansados da rotina de seus laços matrimoniais. Rosamunda, a
virginal de xoxota e rodada de bunda na verdade perdia de longe para a doida varrida
Carminha, com seus vestidos coloridos e decotados, o cabelo em pé desgrenhado, os lábios
sequiosos recebendo o dia inteiro os afagos úmidos da língua convidativa, a cintura fina, a
bunda em pé e arredondada feito duas frutas-pão; além, claro, da buceta parrudíssima
escondida por coxas fartas e enormes tufos de cabelos negros que o nobilíssimo vereador
cheirava e beijava com gosto que só vendo.
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Pois naquele dia a cidade inteira acordara mais cedo. Receberiam a ilustre desconhecida
filha da terra. Dizem que deixou a cidadezinha aos 10 anos de idade para tornar-se uma
grande dama da arte nacional. Não deixou rastro, não deixou história. Uma pista sequer de
seu passado por aquelas plagas. Grande foi a surpresa de todos quando souberam da
notícia pelas luzes da televisão. A grande atriz e cantora e dançarina faria uma visita à sua
terra natal. Quão grande fora a surpresa de todos ao escutar da boca da própria artista que a
sua terra natal era a distante, pequena e fictícia cidade de Sarnamby! Admirada por todos,
dos ilustres políticos e artistas ao mais infame dos anônimos, fizera sucesso desde cedo, em
programas dominicais de TV, exibindo-se como grande talento em franca ascensão.
Lançou-se como cantora mirim, encantando as mães e avós saudosas de seus filhos
cooptados pelo mundo torvo ou pelas mulheres; a grande estrela nacional e internacional
mostrava seu talento em revistas, jornais, outdoors e todos os demais meios de
comunicação e entretenimento de massa, virara até nome de shampoo e de arroz
parboilizado! Lançara sua própria grife de roupas íntimas e finalmente lançou-se como
atriz, primeiro de TV, depois cinema e em seguida subiu aos palcos dos principais teatros
do país; fez revista, comédias burlescas, dramas famosos e tragédias clássicas.
Odiada por muitos, a quem ela julgava despeitados e fracassados, apesar de nunca guardar
rancor de uma alma sequer. Foi jurada de inúmeros concursos, dos de calouros em
programas televisivos de auditório a desfiles de adolescentes suburbanas, passando por
grandes eventos do mundo fashion profissional. Alienada, entrava e saía de campanhas
ditas humanitárias e filantrópicas como quem assua o nariz. Dizia não fazer questão de
votar nas eleições, mas adorava participar das campanhas nas rádios, utilizando a simpatia
nos programas fantasiosos dos postulantes aos sedutores cargos públicos.
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Pois depois de tanto sucesso, eis que a figura ilustre decreta e sela o destino de todos na
pequena cidade ao conjugar uma visita ilustre com o verbo da mediocridade daquela cidade
perdida no meio do nada. A prefeita raspou o tacho dos cofres públicos e enfeitou a cidade
com guirlandas, sinos, signos, totens, fotografias gigantescas da grande artista e da própria
prefeita, além de reproduções cujo significado ninguém entendeu bem. No meio da praça,
sobre o pequeno coreto, a prefeita mandou colocar uma reprodução tridimensional de Les
demoiselles d'Avignon. Para tanto fausto e bizarria a chefa do executivo local nomeara uma
“Comissão Para Assuntos Agudos”, que, segundo a própria, estaria apta para cuidar de
temas de interesse da população “e que surgissem do nada, como um flato inesperado”,
segundo suas próprias palavras. Formou-se uma comitiva oficial para receber a artista
nascida na terra; as pessoas ostentavam bandeirinhas coloridas, um cordão de isolamento
foi necessário. A imprensa local apontava suas câmeras, os radialistas empunhavam seus
microfones; os olhos de todos estavam sequiosos, pois ninguém poderia fechá-los para não
correr o risco de perder um instante sequer da chegada e da presença da mui alta
celebridade, que desceu do carro num vestido prateado e coberta de joias as mais diversas.
Sorriu e cumprimentou a todos, em primeiro lugar a prefeita, que tentou a todo custo
conter o entusiasmo e a excitação. Horas antes havia tomado dois comprimidos de
passiflora, a fim de debelar a ansiedade.
A artista ilustre hospedou-se no melhor hotel da região, no centro da cidade, de frente para
a igreja matriz, que só tinha meia torre; antes, fora levada para todo o tipo de rapapé,
experimentou todo tipo de comida, sucos, doces, bolos, compotas, salgados, caldos etc.
Estavam todos felizes com as declarações da diva, que alegara ter o intento de comprar
uma casa na região. E mais, que gostaria de investir muito dinheiro na cidade, em casas de
comércio, fábricas e centros de entretenimento e cultura.
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Manteve interesse especial em Maria Chupeta, dona do único cabaré, na rua detrás do
templo evangélico Jesus Saravá. Maria chupeta começara cedo na profissão, aos dez anos,
aliciando homens acima de qualquer suspeita para aquele interessante lupanar. Começara
masturbando os pais de família e seus filhos varões. Perdera o cabaço aos doze anos e não
parara mais. Ganhou muito dinheiro com sua especialidade, que lhe garantiu a alcunha
vitalícia: a famosa Chupeta amansa mastro, expediente utilizado em todos os homens da
cidade, dos de doze anos aos de oitenta anos, alguns desses últimos em seu derradeiro
gozo. Maria Chupeta contava já dez anos de aposentadoria, passara as atividades corpo a
corpo para as suas “meninas”, a famosa Divina, cuja xoxota sempre se conservara virgem e
aperta, apesar das mil rolas que recebera, e Rita Mão de Cetim, especialista em fazer os
marmanjos tremerem nas pernas com seu toque especial no membro viril. A marafona, em
dias de muita correria, atendia sentada em uma cadeira, entre duas cabines com um buraco
nas paredes de madeira; ali a trabalhadora do sexo enfiava as mãos e podia satisfazer dois
clientes por vez. Havia dias em que Rita Mão de Cetim atendia cerca de sessenta clientes
que pagavam quantias impressionantes pelo não menos impressionante toque.
Ao entrar em seu quarto no Grande Hotel de Sarnamby, exausta depois de um dia como
aquele, a diva jogou-se na cama gigantesca e, olhando fixamente para o dossel, começou a
despir-se, tirando as botas, a meia calça, o vestido e a roupa íntima, revelando o que o
faxineiro Boca de Megafone jamais poderia ter visto. E o que viu repetiu na padaria, na
barbearia, na prefeitura e no cabaré. Todos custaram a acreditar, o aprendiz do barbeiro
Otávio quis linchar Boca de Megafone “por injúria e calúnia”. A notícia se espalhou mais
rápido que fogo em mato seco. Ao cabo de meia hora a cidade inteira estava na porta do
Grande Hotel de Sarnamby para confirmar o que foi visto por Boca de Megafone.
Etevaldo de Etelvina, o presidente da câmara, conclamou a Comissão Para Assuntos
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Agudos, pois para ele aquele era um assunto agudo e que precisava ser resolvido com a
máxima presteza!
A comissão, formada por um motorista cego, uma telefonista surda e um radialista mudo –
a escolha dessas pessoas foi justificada pela prefeita por ela julgar que assim as resoluções e
escolhas se dariam de forma menos parcial -, penetrou no quarto da celebridade, e quem
podia falar perguntou se a diva era mesmo um travesti. A diva, que odiava o epíteto, para
surpresa de todos e com grande naturalidade disse que sim e mostrou o membro entre as
pernas: cabeludo, enorme, grosso e pesado. Cabeçudo, arrematou Boca de Megafone,
sendo escutado por todos na praça, que repetiram a palavra, atônitos, com a cara no chão,
visivelmente transtornados coma a confirmação daquele terrificante fato.
Sob o ruivor espetacular, partiram em correria desabalada para a prefeitura, queriam falar
com a prefeita antes de ela rumar para casa. Explicaram o acontecido. A diva, que estava
também presente, perguntou se a prefeita não tinha contado isso aos tabaréus. A prefeita,
que considerava o fato irrelevante disse que não, até porque ela também era um travesti, o
que deixou a todos de queixo caído. Dona Pequena, a vendedora de queijadas quase teve
um ataque, chegou a escumar e segurar o braço esquerdo com fortes dores e
formigamentos. João, o farinheiro, negro de corpanzil, com a cara esfumada de branco,
começou a chorar; e mais ainda quando a prefeita mostrou a todos o falo fino. Alguns
ensaiaram cair pra trás.
A virgem Rosamunda, que acabara de retocar a maquiagem, custou a crer. Tinha visto em
seus dezessete anos, diversas rolas, mas nunca uma fina daquele jeito, tampouco pendendo
do corpo de uma mulher. Impossível descrever a balbúrdia e algaravia daqueles momentos
quase trágicos. Em menos de vinte e quatro horas tudo havia mudado; a água apodrecera
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no porrão; o destino se voltara contra os moradores de Sarnamby. Muitos clamaram aos
céus que tudo não passasse de um pesadelo. Alguns acreditaram ter aborrecido o Divino
para merecer tamanho castigo; foram enganados, vilipendiados pela prefeita, a quem todos
passaram a chamar de prefeito e pela grande diva, a quem ninguém conseguiu adjetivar.
Quando a multidão caminhava desnorteada por todas as ruas e praças da cidade, ouviram
um grito horripilante; era o padre Valdemar, que viu concretizar-se em si mesmo um
milagre, um seu sonho íntimo: em lugar da inútil estrovenga estava agora uma buceta
gordinha, de pelos escassos, úmida, convidativa. O padre saiu da igreja com a batina
levantada, mostrando a todos a sua descoberta num misto de espanto e alegria. Atrás dele
vinha a costureira Otacília, com a saia arrebitada na frente sem saber o que fazer com a
vara dura, em riste, que tomou o lugar de sua xoxota idosa e bem cuidada. Salatiel, o
assistente do padeiro, após enfiar as mãos dentro da cueca para costumeiramente coçar os
bagos, quando alguma coisa o intrigava, começou a chorar ao perceber que no lugar do
pênis sempre pronto a trabalhar também estava uma xoxota; o mesmo aconteceu com seu
companheiro de diversão, o mensageiro da prefeitura, e com o barbeiro Otávio, e com o
aspirante a astro de cinema Fagundes. Maria Chupeta até que gostou da ideia ao sentir entre
as pernas o gigantesco pau; suas meninas nem tanto, começaram a arrancar os cabelos.
Qual homem quereria ser acariciado agora pelas mãos de Rita Mão de Cetim se ela não
passa de um homem como qualquer outro? Divina teve uma síncope, não poderia mais ser
puta; seu grande atrativo era a buceta sempre virgem, sempre apertada. Talvez conseguisse
utilizar o vaso traseiro, disse uma de suas colegas no ápice do desespero.
Etevaldo de Etelvina, leitor contumaz de livros em latim, de filosofia, de dramaturgia, de
versos alexandrinos, naquela hora emudeceu; a língua adormeceu dentro da boca, não disse
palavra sequer para externar o que sentia ao tocar sua vagina novinha em folha. Escorregou
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a mão para confirmar se o cu estava no lugar e lá estava: cabeludo como sempre, bem no
meio da bunda seca e branca. Respirou fundo, arregalou os olhos e enfiou as duas mãos
dentro da calça preta e teve novamente a confirmação: ao invés do pau uma xoxota. Uma
xoxota sem pelos, como era de sua preferência no sexo oposto, quando as mulheres eramlhe o sexo oposto! E continuou mudo, Etevaldo de Etelvina, absorto e parado feito estátua
no meio da praça com sua xoxota lisa e o povo em alvoroço ao seu redor.
Trancada em seu quarto, a diva célebre, motivo de tanta festa naquele dia, nada escutava,
mergulhada que estava até o pescoço na banheira antiga. Em meio à espuma perfumada,
cantarolava sua música preferida. Não queria adquirir rugas ao redor dos olhos e na testa.
O porco Joelmir continuava com seu pau agora novamente recoberto de lama. Cuidava de
roer uma espiga de milho que lhe jogaram. Do alto de um morro havia uma casinha azul. E
da única janela da casa uma senhora esquecida, de nome Joventina a tudo observava. A
moradora mais antiga da cidade, sozinha em sua casa no alto do morro. Surda, a velhinha
esperava pelo suspiro derradeiro, acreditando que lá embaixo as pessoas cantavam e
dançavam, afinal de contas aquele dia era carnaval; e na magia do carnaval tudo é
permitido, até mesmo a fantasia mais extravagante, até mesmo o capricho mais fantasioso e
imaginativo.
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O ABISMO DO PRIMEIRO ANDAR
Ai como sofro! Pulguinha nervosa do primeiro andar, no prédio velho e suburbano; todo
dia o vejo passar, jeans apertadinho, camiseta preta, com marra de roqueiro, ai como eu
sofro, como palpita meu coração, parece que vai explodir o peito. Se ele sorri por algo, eis
o encanto da vida, se ele caminha triste, me desgraço imaginando o motivo. Se alguém fez
maldade com ele eu não mato o desgraçado? Uma vez olhou pra cima, quase morri, as
pernas tremeram, a cara ficou sem sangue, quase tive um ataque, fiquei sem ar e roguei à
santinha no altar do quartinho para que me ajudasse que eu era uma pobre alma encantada
velha e apaixonada. Oh, bicha velha, não percebe que o meninão jamais te dará bola?
Pouco me importa, meus olhinhos vesgos se enchem de júbilo ao vê-lo passar com a sacola
a tiracolo, com o tênis sujo e o cabelo encaracolado. Noutro dia foi ao barbeiro na galeria
do prédio. Desci feito uma louca. Praticamente tirei toda a sobrancelha; seu Guigui, o
barbeiro machista, me tolera porque diz que sou limpa, que sou gente fina. Mas naquele dia
eu nem quis saber se já tinha feito ou não a sobrancelha, queria estar no mesmo lugar do
meninão, ai que frisson, que frio na barriga e na espinha quando ele me olhou e sorriu
quando dei bom dia a todos. Coisa assim eu só senti quando beijei pela primeira vez, nos
anos bons da adolescência, quando papai chegava bêbado e espancava a mim e minha mãe,
que Deus a tenha. Pensei o que seria de mim perdida no mundo, pobre criança desgraça,
anjinho de asa quebrada sujando as peninhas na lama da cidade grande. Ui, que ele me
olhou pelo espelho, minha perna direita que não para de balançar. Não faz mais efeito o
remédio, só aprofunda a ferida no velho estômago que me consome todas as noites,
queimando bem no centro, brasa viva nas entranhas.
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Ele corta o cabelo, tira o pouco da barba que tem, mas deixa a barbicha rala no queixo,
pede pedra-ume, acho tão macho e tão romântico ele pedindo pra passar a pedra-ume no
rosto tão delicado, parece uma porcelana, vivo cristal, a face jovial de Deus, o rosto mais
denodado, boca mais carnuda, o nariz, oh Senhor!, fina torre de marfim. Desajeitado, se
esbarra em mim na saída. Quase morro, fiquei sem ar. Espero o amanhã.
Acordo cedo. Debruço-me no parapeito, ele demora a passar, será que não vai ao colégio
hoje? Aflita passei a noite, ridícula, sentindo amor de novo, virando de um lado pra outro,
arfante, imersa em sonhos, ilusões, com o peito sofrendo em calor, banhada em suor, me
imaginando em seus braços. Sonhar custa muito, custa caro, mas é o maior tesouro, esse
ninguém me tira, nem bandido, nem amante de mentira, interesseiro, aproveitador. Bicha
velha, pareço um adolescente, caí no prazer solitário, quanto tempo! Ele durinho feito
pedra, nem lembrava mais! Mal amanhece e eu me levanto sobressaltada, paixão que
envenena que me domina qual feitiço. Depois de hora, ele vem vindo, calmo, passando as
mãos pelos cabelos, de casaco marrom, all star preto, a barra da calça desfiada, óculos
escuros que tira e prende na cabeça, entre os cabelos; suspende a camisa e coça a barriga,
mar de cetim; discreto umbigo, pérola escondida da concha lisa; ele boceja, ele limpa o
cantinho da boca. Não olha para cima; claro que não, tolinha, pensa que por causa de um
olhar e um sorriso na barbearia do machista Guigui já estão namorando, de noivado em
curso, de casamento marcado?
Que diriam suas amigas da repartição? Gargalhadas em sua cara, ridícula funcionária velha,
perto da aposentadoria, veado comedido e discreto, sem namorados, sem amantes, sem
companheiro a lhe esquentar os pés debaixo do lençol em dia de frio. Que diriam de ti, ó
maluquete? Perdida de amor pelo meninão? Que direito você tem maluquete? Ou pensa
que Deus tá lembrado de ti? Que Ele perde Seu precioso tempo com tua paixonite
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disparatada? Melhor tratar da calvície! Invejosas, monte de invejosas nunca encontraram o
amor. Estranho, ele senta no banco da praça; a ruiva se aproxima e lhe beija a boca; horas
de agarramento, risinhos e beijos quentes, amassos indiscretos. Que será de mim,
envenenada de paixão? Que será de mim, minhoca enterrada no monte de sal? Já subo pra
cobertura, a máquina do elevador voltou a funcionar. O primeiro andar, balcão de Romeu e
Julieta, que espera o Romeu que nunca virá. O mármore do parapeito está sempre solto.
Respiro fundo, encho o peito, olho lá pra baixo, não os vejo debaixo das copas das árvores
floridas; num impulso, ponho o corpo magro para frente; retorno: não tenho coragem. E se
me arrepender no meio do caminho sem volta?
Agora me deito na velha cama; não paro de pensar no meninão; a brasa viva queima no
estômago; olho para a imagem da santinha, que me olha e não me vê.
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