Thesis Reference - Archive ouverte UNIGE
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Thesis Éducation et développement: le cas des écoles rurales de la région du Cacao-Bahia-Brésil SOUZA DOS SANTOS, André Abstract Cette recherche prend comme point de départ les réflexions sur la capacité de développement communautaire/durable à partir de l’éducation proposée par trois écoles d’éducation de base, au travers de méthodologies différentes, dans la région du Cacao de l’État de Bahia. Son objectif est de comprendre de quelle façon une éducation adaptée au milieu rural peut jouer un rôle décisif dans le processus de développement socio-économique et culturel, au sein de communautés rurales isolées. Les trois écoles choisies possèdent des modèles pédagogiques diversifiés : le concept de la "Pédagogie en tant que pratique de liberté" de Paulo Freire sert de base pour l’école "A", le concept de protagonisme juvénile, (youth empowerment) est utilisé dans "l’école B" et "l’école C" est une école publique traditionnelle en milieu rural avec les même défis que la majorité des écoles publiques d’éducation de base au Brésil. Ces trois modèles mettent en œuvre des savoir-faire pédagogiques différents qui entraînent des conséquences pratiques différentes dans le développement [...] Reference SOUZA DOS SANTOS, André. Éducation et développement: le cas des écoles rurales de la région du Cacao-Bahia-Brésil. Thèse de doctorat : Univ. Genève, 2013, no. FPSE 535 URN : urn:nbn:ch:unige-289942 Available at: http://archive-ouverte.unige.ch/unige:28994 Disclaimer: layout of this document may differ from the published version. [ Downloaded 02/10/2016 at 00:25:47 ] UNIVERSITE DE GENEVE FACULTE DE PSYCHOLOGIE ET Section des sciences de l’éducation DES SCIENCES DE L’EDUCATION Sous la direction de Abdeljalil Akkari _______________________________________________ Educação e Desenvolvimento: o caso das escolas rurais da Região do Cacau – Bahia – Brasil THÈSE Présentée à la Faculté de psychologie et des sciences de l’éducation de l’Université de Genève pour obtenir le grade de Docteur en sciences de l’éducation par André Souza dos Santos Thèse n°535 Genève, Mars 2013 Educação e Desenvolvimento: o caso das escolas rurais da Região do Cacau – Bahia – Brasil André Souza dos Santos – FAPSE-UNIGE Membres du jury: Abeljalil Akkari (Directeur de Thèse) Christiane Perregaux (Unige-Fapse) Charles Magnin (Unige-Fapse) Celi Taffarel (Ufba-Faced) Peri Mesquida (PUC-Curitiba) Agradecimentos Gostaria de agradecer a todos que participaram de alguma maneira de forma direta e indireta no caminho deste trabalho. Particularmente a Alda Pêpe pelas discussões iniciais sobre o tema e as orientações que se seguiram; A Christiane Perregaux por ter me acompanhado e aberto os caminhos que desembocaram no final deste trabalho; A Jalil Akkari, meu grande orientador, conselheiro hoje muito mais um amigo...A todos os outros membros do Juri, Charles Magnin pelas critica pontuais e necessárias; Celi Taffarel pelas orientações e incentivo; Ao Prof. Peri Mosqueda pela sua participação. Gostaria de agradecer aos meus amigos Marcos Pinto pela sua presença capital na minha vida; Luiz Augusto e Telesson, sem amigos em momentos difíceis a vida fica quase impossível; agradecer igualmente aos meu colegas do DCHL-UESB que em determinados momentos souberam compreender os meus desafios. Gostaria de agradecer a Luiza Prado e Marta Serafim pelas revisões por vezes enfadonhas; A Axel Dieudonner pelas traduções; A fundação Schmidheiny por uma bolsa pontual e necessária que me ajudou em muito nos meus estudos. Gostaria de agradecer a toda a família Estier-Roussebert pelo acolhimento e colaboração na chegada a Suiça em 2005. Finalmente a toda minha familia: irmãos, primos, sobrinhos e minha mãe por ser a melhor que eu conheço da vida; às minhas filhas Aline e Elodie e peço desculpas pela minha ausência por vezes necessária; à Virginie minha companheira de 20 anos que suportou as minhas inquietações. A todo o pessoal das Escolas Famílias Agrícolas e da escola pública pesquisada, diretores, monitores, professores, alunos e pais de alunos. Gostaria de dizer que a nossa intenção era de que criar uma referência científica para uma educação adequada para o campo e por isso é que por inúmeras vezes fiz essas idas e voltas e porque tantas perguntas por vezes pareciam chatas. Ao meu fiel colaborador Altamiro Colatino, a nossa história é eterna. A todos, o meu muito obrigado. André Souza dos Santos SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 14 MOTIVOS PARA FAZER A TESE ........................................................................... 17 ESTRUTURA GERAL DA TESE: ............................................................................. 20 CAPÍTULO I ................................................................................................................ 22 1. – BREVE HISTÓRICO SOBRE A CONCENTRAÇÃO DE TERRA NO BRASIL ......................................................................................................................... 23 1.1- Da colonização a ocupação das terras do Brasil ........................................23 1.2- A fase inicial da colonização .....................................................................25 1.3- O início da ocupação portuguesa, as capitanias hereditárias .....................27 1.4- A concentração de terras pelo sistema jurídico das sesmarias ...................30 1.5- O escravismo indígena ...............................................................................33 1.5.1- A escravidão do Negro Africano .................................................. 36 1.6- A concentração de terras na fase inicial da República ...............................37 1.7- O golpe militar e a manutenção do modelo de concentração fundiária .....39 1.8- A exclusão e a concentração fundiária na região do cacau ........................43 1.9 - Os debates agraristas e o nacional desenvolvimentismo ..........................47 CAPÍTULO II ............................................................................................................... 50 2. – O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO RURAL NO BRASIL, SUA HISTÓRIA E SUAS POSSIBILIDADES ................................................................... 51 2.1 – Da colonização ao Brasil atual: as lacunas dos processos educacionais criando excluídos no campo ............................................................................. 52 2.2 – Do Ruralismo Pedagógico às campanhas de educação rural: surgem as primeiras iniciativas de educação para o meio rural ........................................ 55 2.3 – O movimento dos “pioneiros”: entre as primeiras iniciativas de educação para o campo .....................................................................................................58 2.4 – O tecnicismo e a sua influência na educação para o meio rural no Brasil.................................................................................................................59 2.5 – A região do cacau e a tecniczação da educação rural ..............................63 2.6 – A educação rural a partir dos anos 80 e o EDURURAL/NE ...................65 2.7 – A LDB/96 e o recorte da DOBEC/02: abrindo novas possibilidades ......68 2.8 – Os Movimentos Sociais construindo novas práticas de educação para o campo ............................................................................................................... 70 CAPÍTULO III ............................................................................................................. 76 3. – OS CONCEITOS PERTINENTES DA TESE (PRIMEIRA PARTE) ............ 77 3.1 – Por uma compreensão de desenvolvimento para o campo .......................77 3.1.1 – O mito da urbanização e os desafios da ruralidade contínua no mundo contemporâneo ....................................................................... 78 3.1.2 – A educação no caso do desenvolvimento agrícola ..................... 80 3.1.3 – Desenvolvimento, educação e sustentabilidade para o campo ... 84 3.1.4 – Agroecologia: um conceito complexo e necessário à educação do campo ................................................................................................. 89 3.1.5 – O conceito de complexidade e problematicidade base para estrutura reflexiva da “educação para o campo” ................................ 95 3.1.6 – O conceito emergente de “campo” para o desenvolvimento da educação no meio rural no Brasil ....................................................... 97 3.1.7 – Escolas rurais e educação no campo: por um modelo de educação diferenciada ...................................................................................... 100 3.1.8 – A construção do conceito de educação para o campo ............... 103 3.1.9 – O conceito da pedagogia histórico-crítica dos conteúdos enquanto perspectiva para a educação do campo ............................................ 108 3.1.10 – A pedagogia do oprimido: elemento teórico chave para (re)educação dos povos do campo ................................................... 110 3.1.11 – “Os temas geradores” e a sua importância na educação para o meio rural ......................................................................................... 117 3.1.12 – O conceito de pedagogia da alternância e o seu papel na “educação do campo” ....................................................................... 119 3.1.13 – A pedagogia da alternância como “divisor de águas”: a educação formal e informal nos CEFFAs ........................................................ 121 3.2 – DUAS VISÕES PARA A EDUCAÇÃO RURAL: A PEDAGOGIA LIBERTÁRIA E O PROTAGONISMO JUVENIL (SEGUNDA PARTE) ......... 128 3.2.1 – O pensamento de Freire guia filosófica da escola “A” ............. 129 3.2.2 – O protagonismo juvenil guia filosófico da escola “B” ............. 130 3.2.3 – Compreensões sobre o binômio educação/desenvolvimento rural .......................................................................................................... 131 3.2.4 – As inovações, a modernização, a técnica e a ciência na educação dos CEFFAs ..................................................................................... 134 CAPÍTULO IV............................................................................................................ 141 4. – ESCOLAS FAMÍLIAS AGRÍCOLAS (CEFFAS): O INÍCIO DE UMA EDUCAÇÃO ALTERNATIVA PARA O CAMPO ................................................ 142 4.1 – As CEFFAs chegam ao Brasil ................................................................144 4.2 – Como se articulam os CEFFAs no Brasil? .............................................146 4.3 – O funcionamento e experiência na organização dos CEFFAs no Brasil 148 4.4 – As dificuldades enfrentadas no funcionamento dos CEFFAs no Brasil 151 4.5 – A Região do Cacau e a pesquisa ............................................................153 4.5.1 – A situação socioeducativa dos três municípios na Região do Cacau ................................................................................................ 155 4.5.2 – A problemática ambiental no Sul da Bahia............................... 155 4.6 – O Município de Ilhéus ............................................................................157 4.6.1 – A economia e o cacau em Ilhéus.............................................. 158 4.7 – O nascimento da EFA em Ilhéus: “a Escola “A”. ..................................161 4.7.1 – Fundos e formas de financiamento da escola “A” em alternância .......................................................................................................... 161 4.7.2 – Formas de organização da escola “A” em estudo: .................... 162 4.8 – O Município de Tancredo Neves ...........................................................164 4.8.1 – O nascimento da escola “B” ..................................................... 165 4.8.2 – Seleção de alunos ...................................................................... 166 4.8.3 – A Fundação Odebrecht e o nascimento da Escola “B” ............. 167 4.8.4 – A formação de “jovens empresários rurais” na Escola “B”: o conceito de “protagonismo juvenil” ................................................. 168 4.8.5 – Formas de financiamento da escola “B” ................................... 169 4.8.6 – Organização e Funcionamento da Escola “B” .......................... 170 4.9 – O nascimento da Escola “C” .................................................................170 4.9.1 – Vista parcial da cidade de Valença-Ba ..................................... 171 4.9.2 – Os Professores da escola “C” em formação .............................. 171 4.9.3 – Organograma (3): Organização da escola (C) .......................... 173 4.10 – O início dos programas governamentais para a formação de professores para atuarem nas escolas do campo.................................................................173 4.11 – Esquema metodológico da pesquisa:....................................................176 CAPÍTULO V ............................................................................................................. 178 5. – PROBLEMÁTICA E QUESTÕES DE PESQUISA: DA EDUCAÇÃO RURAL NO BRASIL ................................................................................................................ 179 I – Da agricultura familiar e a educação do campo .........................................184 II – Do modelo agroexportador e suas implicações no mundo da agricultura familiar ........................................................................................................... 190 III – As questões de pesquisa que movem este estudo ....................................193 CAPÍTULO VI............................................................................................................ 195 6. – METODOLOGIA: A PESQUISA QUALITATIVA/INTERPRETATIVA, O ESTUDO DE CASO ................................................................................................... 196 6.1 – Diferenças explicativas das categorias analíticas em relação aos atores da pesquisa: ..........................................................................................................199 6.2 – Base de triangulação comparativa entre atores e categoria analítica: ....203 6.3 – Composição dos atores e a coleta de dados: ..........................................203 6.4 – Composição dos atores e das categorias analíticas da tese: o que saber de quem? ..............................................................................................................204 6.5 – Tabela recapitulativa dos atores da pesquisa: ........................................205 CAPÍTULO VII .......................................................................................................... 208 7. – ANÁLISE GLOBAL DE DADOS ...................................................................... 209 7.1 – Alunos avaliam o desenvolvimento e a sustentabilidade comunitária ...210 7.2 - Como os alunos das escolas “A e B” avaliam a alternância: ..................213 7.3– A identidade com o campo para alunos das escolas “A, B e C”: ............217 7.4 – Monitores/Professores das escolas “A e B” avaliam a sustentabilidade local e a alternância ........................................................................................ 220 7.5 – A alternância por monitores das escolas “A e B”: .................................224 7.6 – A emergência da questão de “gênero” enquanto diferença fundamental a ser considerada: O caso da escola “A” ............................................................227 7.7 – Análises das entrevistas com os professores da escola “C”: ..................229 7.8– A escola pública rural: o caso da escola “C” ..........................................230 7.9 – Os professores avaliam o material didático, a metodologia, o currículo233 CAPITULO VIII ........................................................................................................ 236 8 – DIRETORES DAS ESCOLAS “A, B E C” AVALIAM O DESENVOLVIMENTO E A SUSTENTABILIDADE, ALTERNÂNCIA, E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO PARA O CAMPO ................................................... 237 8.2 – Alternância: ............................................................................................240 8.3 – O financiamento e autonomia das CEFFAs: ..........................................245 8.4– Formação de professores para as escolas do campo: ..............................250 8.5– O acesso a terra: ......................................................................................252 8.6 – Análises das entrevistas com a Diretora da escola “C”: ........................256 8.7– A escola urbana e a escola rural de educação de base: ...........................256 CAPÍTULO IX............................................................................................................ 259 9 – EX-ALUNOS E PAIS DE ALUNOS AVALIAM O DESENVOLVIMENTO A SUSTENTABILIDADE E A ALTERNÂNCIA ....................................................... 260 9.1– A sustentabilidade comunitária: ..............................................................261 9.2– Alternância nas escolas A e B: ................................................................264 9.3– A vivência dos jovens que estudaram em regime de alternância (escola “A e B” ex-alunos): ...............................................................................................267 9.4– A questão de “gênero” reaparece entre os ex-alunos da escola “A”: ......271 9.5– Os pais avaliam o período que os seus filhos estudaram na escola “A e B”:......... ......................................................................................................... 272 9.6– Os pais de alunos avaliam a melhora na sustentabilidade comunitária de sua propriedades (escola A e B): .....................................................................273 9.7– Os pais avaliam o “estudar em alternância”: ...........................................278 CAPÍTULO X ............................................................................................................. 282 10 – COMPARAÇÃO CRÍTICO-DESCRITIVA ACERCA DOS PROCESSOS EDUCATIVOS NO QUOTIDIANO DAS TRÊS ESCOLAS EM ESTUDO ........ 283 10.1 – Desenvolvimento e sustentabilidade agrícola em comparação na escola “A” e “B” (alternância): ..................................................................................283 10.2– Sobre o processo de educação e sustentabilidade: entre a agricultura orgânica e a inorgânica no mundo do cacau: ................................................. 286 10.3– Distinções entre o cultural e o econômico nas escolas em alternância e o desafio da sustentabilidade e da cidadania (o caso da escola “B”): ................290 10.4 – Compreensões sobre a alternância entre os alunos da escola “A e B”: 291 10.5– Compreensão e comparação-crítica acerca do problema da reafirmação identitária:........................................................................................................292 10.6– Relevância dos aspectos curriculares (históricos, de cultura e identidade) das comunidades locais na relação com o currículo das escolas: ...................294 10.7 – O currículo e a escolha do material didático no caso da escola pública rural (a escola “C”):.........................................................................................297 10.8– As tensões entre alunos, pais de alunos/alunos e lideranças de assentamentos. O caso da escola “A” ............................................................. 300 10.9– As implicações da sustentabilidade e o desafio da aquisição da terra: proposições divergentes entre as escolas “A e B” .......................................... 304 10.10– A relação dos professores/monitores das escolas “A, B e C” com o trabalho de educar no campo: o caso das três escolas em pesquisa ............... 308 10.11– Diferenças fundamentais na continuidade entre os ex-alunos da escola “A”, “B” e “C”: ...............................................................................................311 10.12– Sobre a continuidade dos ex-alunos da escola “A, B e C”:.................314 10.13– Do conhecimento das novas leis e da disponibilidade dos recursos para a gestão das escolas do campo ........................................................................316 10.14– Sobre a possibilidade das escolas do campo produzir o seu próprio material didático-pedagógico: ........................................................................ 318 10.15– A certificação das CEFFAs enquanto perspectiva para a educação do campo brasileiro ............................................................................................. 319 10.16– Reconhecimento e recrutamento das escolas em alternância (A e B) em pesquisa ...........................................................................................................320 CAPÍTULO XI............................................................................................................ 325 11. CONCLUSÃO DA TESE SOBRE A EDUCAÇÃO E O DESENVOLVIMENTO NO MEIO RURAL BRASILEIRO. ............................... 326 11.1– Conclusões sobre os sujeitos da pesquisa e as categorias da pesquisa ..326 I – Conclusões sobre as similaridades e diferenças das escolas em alternância em estudo (escola “A” e a escola “B”). ......................... 328 1.1 – Relação com a identidade e cultura local ................................ 329 1.2– O engajamento na problematização história-crítica e social .... 329 1.3 – A relação com o “ser do campo”............................................. 329 1.4 – A relação com a alternância .................................................... 330 1.5 – Formação de professores/monitores ........................................ 330 1.6 – A questão do “acesso à terra”. ................................................ 330 II - Categorias determinantes da comparação entre as duas escolas em alternância ........................................................................................ 331 III – Conclusões sobre a escola pública rural (escola “C”) .................. 331 3.1 – Primeiro, a educação pública oferecida pela escola “C” ......... 333 IV – Proposição da Tese por uma educação do campo de qualidade no meio rural da Bahia e do Brasil ........................................................ 334 4.1 - Os projetos políticos pedagógicos e a grade curricular ........... 334 4.2 - Um aprendizado complexo: ..................................................... 334 4.3 - A instrumentalização, e a inovação técnica ............................. 335 4.4 - Tornar a educação pela pesquisa ............................................. 335 4.5 - Disciplinas acerca dos fenômenos ditos de globalização no contexto local: .................................................................................. 336 4.6 - Amarrar o regime de alternância ou sazonalidade ................... 336 4.7 - A questão da formação de professores/monitores ................... 336 4.8 - O Estado enquanto provedor e financiador da educação para o campo ............................................................................................... 337 4.9 – O papel das municipalidades na educação do campo ............. 338 V – Conclusão sobre a pedagogia do oprimido de Freire e o novo conceito da pedagogia do protagonismo juvenil .............................. 339 VI - Enfim a defesa da tese: para que a educação do campo tenha sucesso .......................................................................................................... 340 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 341 INDICE DE FIGURAS E GRÁFICOS Figura 1: Estrutura geral da tese ..................................................................................... 20 Figura 2: A região cacaueira e a localização dos três municípios da pesquisa ............ 154 Figura 3: Organização da Escola «A» .......................................................................... 162 Figura 4: Vista parcial do espaço escolar da escola “A” .............................................. 163 Figura 5: Alunos em sala de aula.................................................................................. 163 Figura 6: Diagrama da organização da escola “B” ....................................................... 170 Figura 7: Vista parcial da cidade de Valença-Ba ......................................................... 171 Figura 8: Vista exterior da escola “C” .......................................................................... 172 Figura 9: Organograma: Organização da escola (C) .................................................... 173 Figura 10: Produção Baiana de Cacau 1972-2005 ....................................................... 160 Figura 11: Mapa da situação de desmatamento na Bahia ............................................. 157 Figura 12: Esquema metodológico da pesquisa ........................................................... 176 Figura 13: Instrumentos ligados às oficinas musicais na escola “A” ........................... 295 Figura 14: Organograma do funcionamento de uma escola pública formal................. 317 INDICE DE TABELAS TABELA 1: ESTRUTURA FUNDIÁRIA BRASIL EM MARÇO DE 2009 .......ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. TABELA 2: O CONTROLE DAS ÁREAS AGRÍCOLAS NO BRASIL. ............ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. TABELA 3: REGIÃO CACAUEIRA: ESTRUTURA FUNDIÁRIA ATUAL (2013) ....................................................................... ERRO! INDICADOR NÃO DEFINIDO. TABELA 4: EVOLUÇÃO DA POPULAÇÃO DA REGIÃO CACAUEIRA ............ 153 TABELA 5: SITUAÇÃO SOCIOEDUCATIVA DOS TRÊS MUNICÍPIOS IMPLICADOS NA NOSSA PESQUISA:.................................................................... 155 TABELA 6: OS FUNDOS E FORMAS DE FINANCIAMENTO DA ESCOLA “A”. ...................................................................................................................................... 162 TABELA 7: O FUNCIONAMENTO DA ESCOLA “A” ............................................ 164 TABELA 8: COMPOSIÇÃO DOS ATORES DA PESQUISA................................... 203 TABELA 9:TRIANGULAÇÃO COMPARATIVA .................................................... 203 TABELA 10: ATORES E CATEGORIAS ANALITICAS ......................................... 204 TABELA 11: TABELA RECAPITULATIVA DOS ATORES DA PESQUISA. ....... 205 TABELA 12: O CULTIVO DA MANDIOCA ............................................................ 285 TABELA 13: GRADE CURRICULAR 7ª. SÉRIE...................................................... 299 TABELA 14: GRADE CURRICULAR 8ª. SÉRIE...................................................... 300 TABELA 15: O QUE FAZEM OS EX-ALUNOS DAS ESCOLAS A, B E C ........... 313 LISTA DE ABREVIAÇÕES AEC – Associação dos Educadores Católicos; AECOFABA - Associação das Escolas das Comunidades e Famílias Agrícolas da Bahia; AEFACOT – Associação das Escolas Familias Agricolas do Centro Oeste de Tocantins); AEFARO – Escolas Familias Agricolas – Rondonia; AEFAPI – Associação das Escolas Familias Agricolas – Piaui; AMEFA – Associação Mineira de Escolas Familias Agricolas; APEFA – Associação Potiguar de Escolas Famílias Agrícolas; ARCAFAR/NORTE – Associação Regional das Casas Famílias Rurais – Norte e Nordeste do Brasil; AS-PTA – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa; CEFFAs – Casa Escola Família Agrícolas; CENAC – Centro Nacional de Aprendizagem do Comércio; CENAI – Centro Nacional de Aprendizagem Industrial; CEPLAC – Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira; CFR – Casa Família Rural; CIMI – Conselho Indígena Missionário CNBB – Comissão Nacional dos Bispos do Brasil; CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura; CPT – Comissão Pastoral da Terra; DIREC – Diretoria Regional de Educação e Cultura; DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômico DOBEC – Diretrizes Operacionais de Base para as Escolas do Campo; EFA – Escola Família Agrícola; EMARC – Escola Média Agropecuária Regional da CEPLAC; EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária; FAO – Food and Agricultural Organization (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação); FAPSE – Faculte de Pscicologie e Sciences de l’Education; FASE – Federação dos Órgãos de Assistência Social – Sul da Bahia; FUNDEB – Fundo Nacional de Educação Básica; IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis; IBELGA/ACEFFARJ – Instituto Belga de Nova Friburgo/Associações dos Centros Familiares de Formação por Alternancia do Rio de Janeiro; IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; ICB – Instituto de Cacau da Bahia; IDAC – Instituto da Ação Cultural; IDES – Instituto de Desenvolvimento do Baixo Sul da Bahia; IESB – Instituto de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia; LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário; MEB – Movimento de Educação de Base; MEC – Ministério da Educação e Cultura; MFR – Maison Famille Agricole; MLT – Movimento de Luta pela Terra; MOBRAL – Movimento Brasileiro pela Alfabetização: MOC – Movimento de Organização Comunitária MST – Movimento dos Sem Terra; OM – Objetivo do Milênio; PPP – Projeto Político Pedagógico; PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar; RACEFFAES – Rede das Associações de Centros Familiares de Formação por Alternancia – Espirito Santo; RAEFAP – Rede de Escolas Famílias Agricolas do Amapá; REDA - Regime de Direito Administrativo; REFAISA – Rede de Escolas Famílias Agrícolas Integradas ao Semiárido; RESAB – Rede de Escolas do semiárido Brasileiro; SASOP – Serviço de Assessoria às Organizações Populares Rurais; SCIR – Secretariado Cultural de Iniciativas Rurais (França); SEC – Secretaria de Educação e Cultura; TAC/CGIAR – Comitê de Aconselhamento Técnico do Grupo Consultivo de Pesquisa Agrícola – AS-PTA; TEO – Termo de Orientação da Odebrecht; UNEFAB – União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas; UNEFAB – União das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil; UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura; UNICEF – Fundo das Nações Unidas para Infância. UEFAMA – União das Escolas Familias Agricolas do Maranhão; INTRODUÇÃO Uma educação e um currículo distanciado dos contextos e das realidades das pessoas que vivem no campo, distanciadas da sua cultura, da sua identidade e de seus valores, distanciada dos processos de produção e de desenvolvimento a longo prazo, essa tem sido a lógica da escola de educação básica para o meio rural na maior parte do Brasil até os nossos dias. Esta pesquisa tem como ponto de partida as reflexões sobre a capacidade de desenvolvimento comunitário/sustentável a partir da educação oferecida por três escolas de educação básica, com diferentes metodologias, na região do Cacau na Bahia. Tratase de um mergulho na complexidade do funcionamento de duas escolas em alternância e de uma escola pública rural: sua funcionalidade, suas dificuldades, seus desafios. Os desafios para os que delas participam: suas singularidades, suas satisfações e seus projetos. Assim o nosso objetivo esta em compreender de que forma a educação pode desempenhar um papel decisivo no processo de desenvolvimento socioeconômico e cultural, em comunidades rurais isoladas no campo brasileiro, numa perspectiva de reverter os baixos índices educacionais e os níveis de pobreza recorrentes entre estes. Na base estrutural do nosso objeto de estudo estão às escolas tradicionais do campo – escolas públicas rurais – e, por outro lado, na contramão, estão as nascentes alternativas pedagógicas para o campo, tanto em termos conceituais, teóricos – conceito de campo e educação para o campo – quanto prático nas intervenções dos alunos – multiplicadores das experiências agrícolas veiculadas por cada instituição com seu modelo pedagógico em particular. Estas alternativas pedagógicas podem se tornar a base para fixar as famílias de pequenos agricultores familiares em suas propriedades, dando-lhes condições educativas de se desenvolverem e desenvolverem suas comunidades de maneira equilibrada e sustentável. Assim, aparecem os CEFAs/EFAs e a pedagogia da alternância, a partir de um foco centrado no aprendizado dos saberes locais em confronto com os saberes mais sistematizados que essas escolas podem oferecer. Trata-se de um estudo de caso envolvendo escolas com epistemologias pedagógicas diferenciadas, mas com alunos da mesma faixa etária. Compõem a pesquisa: uma EFA (escola família agrícola – Município de Ilhéus), uma CFR (casa família rural em alternância – Município de Tancredo Neves) e uma escola pública rural (escola formal pública – Povoado do Bonfim – zona rural do Município de Valença). O modelo educacional em curso em cada uma dessas escolas, seus desdobramentos no que concerne o desenvolvimento e a sustentabilidade comunitária é a base para compreensão desta tese. As análises dos dados ocorrem de maneira qualitativa. Nela estão presentes, inicialmente as entrevistas com os atores que cercam a escola: alunos, monitores, professores, diretores, ex-alunos e pais de alunos. Em seguida as análises ocorrem a partir das notas de campo: o que foi observado, o que foi visto e o seu complemento nesse estudo. Por fim, os currículos, os projetos políticos pedagógicos são avaliados na sua dimensão de contexto, de localidade, perguntando sempre para o que serve? Qual a razão da sua existência no contexto local? Todas as categorias estão implicadas, de alguma forma, na educação e no desenvolvimento local, e a complexidade a se analisar é que elas estão implicadas a partir das epistemologias educacionais diferenciadas de cada escola (conceito de pedagogia do oprimido X conceito de protagonismo juvenil X pedagogia formal publica para o meio rural). São essas pedagogias, em sua inserção na vida socioeconômica e cultural das comunidades, que acreditamos, “têm” e “trazem” as reflexões e as respostas que importam para a tese, no que concerne ao desenvolvimento e a educação que deveria ser, pelo menos em tese, oferecida de maneira adequada para os povos não urbanos. Os alunos da escola “A” e da escola “B”, principal categoria implicada na tese, porque são os multiplicadores, os inovadores diretos na comunidade, têm aproximadamente o mesmo perfil socioeconômico. O diferencial entre uma e outra escola em alternância reside no fato de que os alunos da escola “A” são originários de assentamentos ligados ao MST e de outros movimentos de luta pela terra; já os alunos da escola “B” são em geral filhos de pequenos proprietários rurais (minifúndio); os alunos da escola “C” são em sua maioria filhos de pequenos agricultores (minifúndio) ou de trabalhadores rurais. Deste modo é possível afirmar que eles compõem a mesma faixa socioeconômica. Ainda no que concerne à situação socioeconômica das famílias dos alunos, é possível afirmar também que tem o mesmo perfil: na maioria dos casos, a renda familiar 15 não ultrapassa mais que dois salários mínimos1 e a parcela de terra possuída é inferior a 25 hectares2, ou seja, trata-se de comunidades de agricultores familiares que vivem de uma maneira geral em minifúndios3. Compreender o que esse conjunto de atores pensa e diz desses três modos de funcionamento educacional foi a nossa proposta inicial de estudo: saber como agem essas instituições no desenvolvimento educacional local no meio rural, que teorias e conceitos estruturam o campo epistemológico e quais os resultados de tudo isso no desenvolvimento sustentável e nas praticas comunitárias das localidades envolvidas. Partimos em busca do que normalmente chamamos de pedagogias em contexto, pedagogias enraizadas localmente (pedagogias do campo), de pedagogias ditas “indígenas.” Esse foco estrutura a base conceitual da tese. Nesta pesquisa, “o campo” é entendido de forma complexa e totalizante em suas multidimensionalidades e seus desdobramentos e complexidades: onde existem populações buscando soluções para superar as suas dificuldades mais extremas, como a fome, a falta de água, a assepsia, a miséria, enfim. Então, a intenção era ver de perto o funcionamento desses modelos pedagógicos na prática, porque a só a crença não bastava. Era preciso ir ao “campo”. e avaliar de perto cada movimento, cada ação no desenvolvimento de uma educação que se propõe nova. Aqui as ciências da educação estão aplicadas ao desenvolvimento de maneira praxeológica, a partir de uma relação estreitamente implicada de teoria e de prática, como também requer a alternância, para avaliarmos qual o resultado disso no desenvolvimento de um meio rural estigmatizado. A partir de autores como Freire (1974), Sen (2000), Arroyo, (2004), Morin (1994), Gimonet, (2007) e Saviani, (2011) – o desenvolvimento, o campo, a alternância e a pedagogia do oprimido e a pedagogia crítica social dos conteúdos – são tomados, na intenção de formar um todo complexo, ou seja: trata-se, ao mesmo tempo, de pensar o melhoramento das técnicas e inovações no campo da agricultura e da ecologia, o fortalecimento da cultura e identidade local, assim como da construção da autonomia, do espírito de iniciativa e da cidadania, emancipação e transformação da vida dos que vivem no entorno das escolas em pesquisadas. 1 Atualmente o salário mínimo é de R$ 678,00. O INCRA, 2012 estabelece 25 hectares para 1 modulo rural na região do cacau. 3 Menor ou igual a um modulo rural. INCRA, 2012. 2 16 São convidados igualmente a contribuir com a reflexão deste estudo teóricos importantes do mundo da educação: Morin (1984) e o conceito de pensamento complexo; Akkari (2004) e as pedagogias do Sul, a Teoria Crítica e a crítica da Razão Instrumental em Habermas (2004), entre outros conceitos persistentes que contribuem com o desenvolvimento de uma educação de qualidade para o campo, ou seja aprender a ler, escrever, contar, se virar na vida e desenvolver o seu próprio contexto, esse da comunidade onde ele esteja inserido. A pesquisa de campo teve duração de aproximadamente seis meses. As entrevistas foram organizadas a partir de um roteiro com questões semi-estruturadas, essencial à coleta de dados. Partimos de um entendimento que se propunha dinâmico e perspectivo, para o caso do “desenvolvimento e da educação do campo”, esse entendimento a nosso ver seria fundamental para a compreensão da evolução de modelos pedagógicos em contexto e, no entanto, dinâmico para a análise geral das questões de pesquisa que nos propusemos investigar. Enfim nossa pesquisa visa contribuir enquanto baliza para reflexão científica sobre a educação rural no Brasil e no mundo, fornecendo dados qualitativos sobre essas experiências educativas em contexto. Motivos para fazer a tese Numa visita aos docentes de ensino básico da zona rural de Valença, coordenado pelo Programa de Formação de Professores UNEB 2000, dei-me conta da problemática em que vivem as escolas rurais desse Município. Nenhuma escola passaria desatenta aos olhos dos pesquisadores da área das Ciências Sociais e principalmente das Ciências da Educação sobre a real condição de funcionamento dessas instituições. Escolas funcionando sob as mais diversas e precárias formas me fizeram refletir... Ao ler sobre o tema, descobri, em princípio, um dado intrigante: somente 2% das pesquisas no Brasil dizem respeito às questões do campo, não chegando a 1% as que tratam especificamente da educação escolar no meio rural4. Outro elemento passível de generalização seria o de que a maioria das escolas rurais de educação básica da zona rural de todo o país vive em condições semelhantes, sem o apoio necessário para o seu 4 O questionamento é feito no livro Por uma Educação do Campo (org.) Arroyo, Miguel Gonzales; Caldart, Roseli Saleti e Molina, Mônica Castagna. Vozes, 2004. 17 funcionamento, sem um quadro docente devidamente formado para o contexto e ainda sem metodologias e currículos adaptados às condições locais. O silenciamento, como comenta Arroyo (2004), o esquecimento e até o desinteresse sobre o rural e a educação rural nas pesquisas sociais é fato. Então, por que a educação da população do campo foi negligenciada? Assim, surgiram algumas perguntas de pesquisa, a saber: “é possível uma escola e uma educação verdadeiramente adequadas a certas realidades e contextos diferenciados das que encontramos na zona urbana? E se é possível então, que escola é esta? Como ela deve funcionar? Que metodologias e currículos devem fazer parte dos seus programas? Qual o compromisso que ‘ela,` a ‘escola,` deve ter com a comunidade que faz parte do seu entorno? Como a escola deve se comportar em relação ao desenvolvimento comunitário local? Ela pode e/ou deve agir como inovadora de técnicas e ciências, de teoria e de prática no interior das comunidades? Enfim, qual o papel de uma escola que se localiza na zona rural no Brasil? Esta tese tem por objetivo primordial contribuir com essa área carente de pesquisas, a partir de um diálogo construtivo, tomando como base experiências e vivências de educadores, alunos, pais e diretores sobre o funcionamento de algumas dessas instituições que participam, a partir de seu modelo próprio da educação dos povos não urbanos. O Professor Paulo Freire diz que a escola não transforma a sociedade, mas pode ajudar a formar sujeitos capazes de fazerem a transformação da sociedade, do mundo e até de si mesmos. Sob essa ótica, optamos pelo estudo de caso múltiplos de três escolas rurais a partir de uma análise qualitativa/interpretativa dos dados, entendendo que a ideia é mesmo esta: ler nas entrelinhas destes modelos em curso compreensões que deem pistas para melhorar, se não adequar de maneira eficiente, métodos de ensinoaprendizagem para o contexto em que estão inseridos. A escolha então recaiu sobre os CEFFAs, pois, em princípio, eles têm como desafio formar sujeitos e fazer deles agentes de transformação da sua realidade e da realidade das comunidades em que vivem. Pensando que a partir de uma educação que ressignifica valores de sua própria cultura e identidade, que seja possível construir novos mundos e novos horizontes para uma massa camponesa carente de desenvolvimento e educação. 18 A educação é uma variável importante na construção e consolidação socioeconômica e cultural da nação. Por isso, este estudo considera o paradigma educacional do campo como um terreno profundo que merece uma atenção maior de pesquisadores da educação do Brasil, haja vista, como dissemos as poucas pesquisas produzidas nas academias brasileiras com essa especificidade. 19 Estrutura geral da tese: I Capítulo – Aborda a questão agrária e agrícola desde a colonização do Brasil até os dias atuais e seu impacto na concentração de terras, na exclusão dos agricultores familiares e no êxodo rural. II Capítulo – Analisa o desenvolvimento e a educação rural sua história e suas possibilidades; seu impacto na exclusão dos agricultores familiares do processo educacional e de desenvolvimento no Brasil e na região do cacau. III Capítulo – Os conceitos pertinentes da tese (primeira parte): busca compreender os conceitos de desenvolvimento em com Sen (2004); o conceito de campo com Arroyo, Mansano & Caldart (2004); o conceito de pedagogia do oprimido em Freire (1974); e o conceito de alternância Gimonêt (2003), além de analisar conceitos auxiliares a estas compreensões teóricas. E nas segunda parte discute as diferenças filosóficas entre as duas escolas em alternância em pesquisa: o conceito de pedagogia do oprimido x o conceito de protagonismo juvenil: como esse par de conceitos encaminha os procedimentos metodológicos internos para permitir nas análises de dados a interpretação dos seus desdobramentos na educação e no desenvolvimento do mundo agrícola das comunidades envolvidas. IV Capítulo – Discute o surgimento das Escolas Famílias Agrícolas os CEFFAs: das primeiras iniciativas na França até a sua chegada no Brasil e na Bahia. V – Capítulo – Problemática e questões de pesquisa. A problemática divide-se em 3 partes: I – da educação rural no Brasil; II – da agricultura familiar; III – do modelo de desenvolvimento agrário e agrícola brasileiro; por fim, a questão de pesquisa da tese: De que forma essas três experiências educacionais no meio rural da regão do cacau na BahiaBrasil trazem a capacidade de transformar e melhorar o contexto onde estão inseridas numa perspectiva de inclusão e de desenvolvimento comunitário sustentável para o campo brasileiro e para a zona rural periférica de regiões em vias de desenvolvimento? VI – Capítulo: são os aspectos metodológicos o estudo de caso múltiplo e a análise interpretativa dos dados : apresenta o tipo de pesquisa, as categorias analíticas, a população da pesquisa, bem como os métodos utilizados para a coleta dos dados. VII; VIII e IX São os resultados da pesquisa e análise geral dos dados que ocorre de maneira qualitativa e a triangulação é feita a partir das entrevistas junto aos atores da pesquisa, alunos, pais, professores/monitores e diretores das três escolas em pesquisa; da observação direta no campo; dos projetos políticos pedagógicos e do material didático das escolas em pesquisa. X Capítulo são as conclusões e sugestões da tese para a educação e desenvolvimento de uma pedagogia adequada para as escolas do campo brasileiro. 20 Figura 1: Estrutura geral da tese 21 CAPÍTULO I 22 1. – Breve histórico sobre a concentração de terra no Brasil O papel deste capítulo é apresentar uma análise da forma como se deu a expropriação de terras no Brasil que se realizou desde a chegada do colonizador até os nossos dias. Avaliar como este fenômeno influenciou via de regra, no êxodo rural brasileiro; no inchaço das cidades nas últimas décadas; na fome no campo (principalmente na década de 1980); no desabastecimento de produtos alimentícios de base nas cidades e no subdesenvolvimento presente na agricultura familiar do país como um todo e a sua consequente e contínua concentração nas mãos de poucos “a oligarquia agrária brasileira” impedindo a realização da reforma agrária e a divisão de terras para agricultores familiares e sem terras. 1.1- Da colonização a ocupação das terras do Brasil O processo de colonização no Brasil, como já sabemos, seria o responsável direto pela expropriação das terras e genocídio dos povos indígenas, pela escravidão de milhões de africanos e posteriormente pela concentração de terras. Consta-se nos registros que os habitantes que viviam no Brasil na época do seu “descobrimento” ou ocupação oficial, desfrutavam de “paz e sossego”. Levavam uma vida tranquila e eram de índole pacífica... Não existe uma estatística precisa quanto ao número de habitantes que por aí viviam, alguns historiadores e antropólogos se debruçam sobre as estimavam de qual era afinal a população indígena a época do descobrimento? Nos estudos de Darcy Ribeiro, (1995) estima-se que na costa brasileira vivam uma população bastante significativa, aos quais seus descobridores chamaram de “Índios” – estavam organizados em comunidades autônomas, cuja identidade se definia por falar uma mesma língua e compartilhar os mesmos costumes. Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eram principalmente tribos de tronco tupi que, havendo se instalado uns séculos antes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes culturais antes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes culturais. Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos em dezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo um conglomerado de várias aldeias de trezentos a 2 mil habitantes (Fernandes 1949). Não era pouca 23 gente, porque Portugal aquela época teria a mesma população ou pouco mais. (Ribeiro, 1995; p.31) Viviam como consta nos registros basicamente da caça e da pesca e da coleta dos frutos. Nos períodos que eram sedentários praticavam uma agricultura rudimentar. Conheciam a cerâmica e teciam suas vestimentas. Além da mandioca e do milho cultivavam a batata‐doce, o cará, o feijão, o amendoim, cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva‐mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus machados de pedra e limpando o terreno com queimadas. A agricultura lhes assegurava fartura alimentar durante todo o ano e uma grande variedade de matérias-primas, condimentos, venenos e estimulantes. Desse modo, superavam a situação de carência alimentar a que estão sujeitos os povos pre‐agrícolas, dependentes da generosidade da natureza tropical, que provê, com fartura, frutos, cocos e tubérculos durante uma parte do ano e, na outra, condena a população à penúria. Permaneciam, porém, dependentes do acaso para obter outros alimentos através da caça e da pesca, também sujeitos a uma estacionalidade marcada por meses de enorme abundância. (Ribeiro, 1995; p.32) As terras não tinham donos, era um bem comunitário que pertencia a todos, tampouco tinha bens próprios, mas todas as coisas eram comuns, como ainda se verifica em algumas tribos brasileiras nos dias atuais. (Vespúcio, 1984, p 94). Jean de Léry em seu livro Viagem à terra do Brasil, de 1553 assinalava que: Consistem os imóveis deste povo em choças e terras excelentes muito mais amplas do que a necessidade à sua subsistência. (...) No que diz respeito à propriedade das terras e campos, cada chefe de família escolhe em verdade algumas jeiras onde lhe apraz, a fim de fazer suas roças e plantar a mandioca e outras raízes (De Lery, p. 207 – 208). Em sentido próprio dos elementos que cercam o processo de colonização e apropriação das terras abundantes da recém colônia de “Vera Cruz”, ora passada a possessão histórica do Rei de Portugal pelos idos dos anos de 1500 é que cabe a pergunta: o que aconteceu que passados cinco séculos as terras abundantes que existiam no Brasil hoje estão aprisionadas em mãos de poucos e em uma situação de extermínio 24 quase completo dos povos indígenas? A afirmação de Guimarães (1981) é fundamental para a compreensão do que acontece em relação a questão agrária hoje, para ele “o sistema latifundiário brasileiro foi implantado sobre alicerces excepcionalmente sólidos para poder dispor, como sua longevidade o comprova, duma capacidade de resistência quase inesgotável”. (p.157) 1.2- A fase inicial da colonização Algumas hipóteses são levantadas para a chegada dos portugueses ao Brasil, uma primeira fala de as naus portuguesas haviam se perdido no caminho para as índias, outra de que os ventos fortes mudaram o rumo das embarcações, mas o certo é que no ano de 1496, ou seja, bem antes do descobrimento, Portugal e Espanha se reuniram para firmar o “Tratado de Tordesilhas” no qual dividiam entre si as terras conquistadas através do novo mundo. (Guiomar 2004) Creio que o tratado firmado antes de 1500 responde a questão de que o descobrimento ou ocupação histórica do Brasil não acontecera por acaso, mas que fora fruto de um conhecimento anterior sobre essas novas e abundantes terras do “além-mar”. O certo é que em 1500 o navegante português Pedro Alvarez Cabral chegou à costa brasileira fincou o sinal da coroa e mandou celebrar a primeira missa, configurando-se com este gesto a posse das novas terras. Mesmo depois do descobrimento, o interesse de Portugal na época não estava voltado para a ocupação das terras do Brasil, mas para a descoberta de um caminho que os levasse ao Oriente, principalmente a Índia de onde se originavam as especiarias que tanto interessavam aos europeus, sem a necessidade da intermediação dos Italianos e dos Turcos que dominavam o comércio na época. O processo de colonização do Brasil foi consequência do já desenvolvido processo de expansão marítima, mas as rotas comerciais para o oriente era tido então como prioritário, o que justifica que nos primeiros 30 anos de colonização, as unicas atividades se limitavam a extração de pau-brasil nas regiões litorãneas do pais. (Faoro, 2001) O inicio da ocupação das terras que viriam a se chamar inicialmente de Vera Cruz e posteriormente de Brasil, se dá pouco tempo depois, a partir de necessidades impostas por circunstancias novas e imprevistas, principalmente ligadas à crise 25 econômica e social que assolava a Europa durante os séculos XV e XVI obrigando os diversos reinos da época a encontrar soluções fora do Continente. No artigo sobre “Condições históricas e sociais que regulam o acesso a terra no espaço agrário brasileiro”, a Professora Guiomar Germani (2004), coloca alguns elementos importantes sobre essa questão: a) a experiência portuguesa da colonização de territórios na África e na Índia concretizada por feitorias comerciais – forma de organização militar e comercial com o número reduzido de pessoal responsável pelos negócios, da sua administração e defesa armada – não se repetiria com o mesmo êxito no território brasileiro já que eram territórios primitivos e habitados por uma população rarefeita; b) com o espírito de feitorias comercias se iniciam as primeiras atividades puramente extrativistas concentradas nas madeiras principalmente o pau Brasil, utilizado na elaboração de corantes que contavam com o auxilio dos índios e adotavam a prática do “escambo” – o trabalho em troca de objetos de pouco valor comercial. Na extração da madeira utilizaram-se de técnicas rudimentares que não deixaram vestígios, a não ser a destruição implacável e em grande escala das matas nativas do litoral onde se extraia a madeira. “Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outros estrangeiros se darem ao trabalho de ir buscar os seus arabutam. Uma vez um velho perguntou-me: Por que vindes vós outros maíris e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vous aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquela qualidade, e que não a queimávamos, com ele o supunha. Mas dela extraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam com os seus cordões de algodão e suas plumas. Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais de muito? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podes imaginar e um só deles compra todo o pau-brasil com que muitos navios voltam carregados. – Ah! Retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas, acrescentando depois de bem compreender o que eu lhe dissera: Mas esse homem tão rico de que me falas não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros. Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? – Para seus filhos se os têm, respondi; na falta destes para os irmãos ou parentes próximos. – Na verdade, continuou o velho, que como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maíris sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vous sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados (Léry, 1960:151-61 apud, Ribeiro, 1995).” 26 Posteriormente às primeiras incursões e a fase inicial do “escambo” a madeira se esgotou e Portugal devia tomar providencias para garantir a possessão das terras já que o território com uma imensa costa já conhecida dos franceses e holandeses era vulnerável a qualquer ataque, ficando a soberania da metrópole sobre as novas terras brasileiras ameaçada. Assim a coroa portuguesa optou por uma nova forma de colonização e povoamento do território brasileiro que consolidasse a sua presença de forma mais segura. Como não havia atrativos mais concretos como o ouro e pedras preciosas inicialmente como nas recentes colônias espanholas, o processo de colonização das terras brasileiras encontrava sérios obstáculos: ninguém se interessava por vir ao Brasil. “Além de ser uma aventura perigosa, não havia atrativos que apontassem para o êxito econômico deste projeto. Mas prontamente apresentou-se uma nova perspectiva: a qualidade de grande parte do solo litorâneo e o clima que se apresentavam como promissores para o plantio de um produto milagroso, a cana de açúcar”, (Germani, 2004), produzida desde os meados do século XV na Sicília, nas Ilhas da Madeira e Cabo Verde e que tinha até este momento, alto valor comercial na Europa. 1.3- O início da ocupação portuguesa, as capitanias hereditárias Quando se criou o sistema de capitanias hereditárias e se doaram enormes parcelas de terra a um só donatário, dotado de enormes poderes iniciava-se um processo histórico de concentração de terras (latifúndio), de especialização em um só produto (monocultura), de mandonismo do proprietário (um Estado independente). No decorrer dos séculos posteriores acentuaram-se essas características, culminando, para muitos historiadores, com o coronelismo, (Leal, 1975; Faoro, 2001 & Guimarães, 1977) dominante no período da Republica Velha (1889 – 1930), com o aprofundamento dessas características durante a Ditadura Militar (1964 – 1985) e pela manutenção deste modelo até os dias atuais. 27 Apesar do esforço da coroa em contatar interessados que se dispusessem a colonizar e ocupar o Brasil poucas pessoas se interessaram: “apesar da concessão de terras e poderes quase que reais apenas 12 pessoas se apresentaram”. (Germani, 2004). O sistema adotado pela coroa portuguesa foi o de capitanias hereditárias, sistema este que já era utilizado nas Ilhas de Madeira e Cabo Verde. O território brasileiro foi dividido então em 12 grandes setores lineares (Ilhéus entre elas) que variavam entre 30 e 100 léguas5 com o limite de extensão na linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Algumas delas alcançaram êxito, como as de Pernambuco e de São Vicente. Outras fracassaram desastrosamente, por vezes da forma mais trágica, como a de Pereira Coutinho, em Ilhéus, que acabou devorado pelos índios. Lopes de Souza desinteressou‐se totalmente e nem tomou posse da concessão que recebeu. Quase todas deixaram novos povoadores europeus, organizados em bases completamente novas, nas quais o índio já não era um parente, mas mão‐de‐obra recrutável como escrava. O sistema de donatarias foi implantado mais vigorosamente por Martim Afonso, trazendo as primeiras cabeças de gado e as primeiras mudas de cana. Não há registro 5 Uma légua de terra corresponde a 5.572 Mts. lineares. 28 de que tenha trazido negros africanos e os deixado aqui. Mas, como os portugueses viviam cercados de escravos já em Lisboa, é até improvável que ele e seus capitães não tenham vindo acompanhados dos seus serviçais. Pero Lopes registra nestas palavras a obra de Martim Afonso: "A todos nós pareceu tam bem esta terra, que o capitam Martim Afonso determinou de a povoar, e deu a todolos homês terras para fazerem fazendas: e fez hua villa na ilha de Sam Vicente e outra 9 leguas dentro pelo sartam, á borda d'hum rio que se chama Piratininga: e repartiu a gente nestas 2 villas e fez nellas offciaes: e poz tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolaçam, com verem povoar villas e ter leis e sacreficios e celebrar matrimonios e viverem em comunicaçam das artes; e ser cada um senhor do seu: e vestir as enjurias particulares; e ter todos os outros bens da vida sigura e conversavel (apud Marchant 1943:68)." O donatário era um grao‐senhor investido de poderes feudais pelo rei para governar sua gleba de trinta léguas de cara. Com o poder político de fundar vilas, conceder sesmarias, licenciar artesãos e comerciantes, e o poder econômico de explorar diretamente ou através de intermediários suas terras e até com o direito de impor a pena capital. (Ribeiro, 1995; p.87) Os donatários tinham o papel de implantar moendas e engenhos e a eles foram dados poderes soberanos, sendo possível afirmar que o sistema como um todo fracassou e pelo que se conhece apenas as capitanias de São Vicente e Pernambuco prosperam. Entre os motivos é possível sublinhar a hostilidade dos indígenas; a distância com a metrópole; o desinteresse dos donatários; a falta de recursos; a grande extensão dos lotes e uma estrutura que coordenasse o gerenciamento da empresa. As donatárias, distribuídas a grandes senhores, agregados ao trono e com fortunas próprias para coloniza‐las, constituíram verdadeiras províncias. Eram imensos quinhões com dezenas de léguas encrestadas sobre o mar e penetrando terra adentro até onde topassem com a linha das Tordesilhas. (Ribeiro,1995; p.87) Como se vê, nem a coroa portuguesa nem os donatários possuíam recursos para um investimento tão arriscado. Então, a solução estaria em recorrer ao capital internacional. Disto resultou que durante muitos anos os donos do dinheiro – os holandeses (Companhia das Índias) e ingleses - que sequencialmente passaram a controlar a distribuição e a circulação dos produtos e os portugueses que se fixaram basicamente na produção. Começava-se aí, a decisão do capital mercantil de financiar a produção colonial e, mais tarde, de realizá-la no mercado mundial. Para Ohlwiler (1996, p. 17-18), trata-se de um advento novo para o processo expansionista comercial 29 europeu, que cumpre a partir deste momento um papel de primeira magnitude como instrumento de acumulação primitiva do capital que antecedeu ao advento do capitalismo industrial. 1.4- A concentração de terras pelo sistema jurídico das sesmarias As sesmarias foram o sistema jurídico adotado pela coroa portuguesa no sentido de distribuir terras e aumentar a produtividade na colônia. Este sistema já era adotado no recém-formado Estado Português durante o século XIV, a chamada “Lei da sesmas”, no sentido de organizar a produção de alimentos e combater a crise agrícola e econômica que assolava o país e a Europa durante este período. Quando a conquista do território brasileiro se efetivou a partir de 1530, Portugal decidiu implantar a mesma forma de organização e distribuição de terras. Inicialmente com a chegada dos capitães donatários que tinham ordens da coroa para repartir a terra “com qualquer pessoa de qualidade que fossem cristãos.” As ordens determinavam que fosse feito livremente, sem foro nem direito salvo o dízimo de Deus pago a Ordem de Cristo. Furtado (1989), explica que “o sistema de sesmarias na colônia concorrera para que a propriedade da terra, antes monopólio real, passasse às mãos de um número limitado de indivíduos que tinham acesso aos favores reais.” Já Faoro (2001) explica que: A sociedade no período do açúcar era marcada pela grande diferenciação social. No topo da sociedade, com poderes políticos e econômicos, estavam os senhores de engenho. Abaixo, aparecia uma camada média formada por trabalhadores livres e funcionários públicos. E na base da sociedade estavam os escravos de origem africana. Era uma sociedade patriarcal, pois o senhor de engenho exercia um grande poder social. As mulheres tinham poucos poderes e nenhuma participação política, deviam apenas cuidar do lar e dos filhos. A casa-grande era a residência da família do senhor de engenho. Nela moravam, além da família, alguns agregados. O conforto da casa-grande contrastava com a miséria e péssimas condições de higiene das senzalas (habitações dos escravos) (p. 134). As primeiras concessões de terra se concretizaram, em 1531, com Martin Afonso de Souza, primeiro Governador Geral e Capitão Mor das terras do Brasil. Foi ele 30 também que estabeleceu o primeiro engenho de cana de açúcar, na vila de São Vicente. Daí por diante estavam traçadas as bases de uma nova política econômica que se apoiava em duas instituições – a sesmaria e o engenho – que com o regime de escravatura se constituíram nos pilares da antiga sociedade colonial. (Germani, 2004; p.122) Martin Afonso, quando das primeiras doações, o fez em caráter perpetuo contrariando o texto régio que dizia ser a doação apenas vitalícia. O sesmeiro podia dispor da terra livremente, em contrapartida se empunhava o prazo de cinco anos para tirar proveito da terra, sob o risco de multa e confisco. (Prado Junior, 1978). As sesmarias que se transformaram em engenhos foram algo mais que uma simples implantação industrial, eram unidades produtoras e forte e tinham por sua vez o apoio da Coroa, ao contrário das que não tinham produtividade. Neste espaço havia uma constelação de atividades e pessoas comprometidas com o mesmo objetivo a produção de açúcar e seu derivado, o aguardente. Havia também a casa grande – onde viviam o proprietário e a família – as senzalas – onde viviam os negros escravizados – e espaços destinados a outras atividades complementares. Caracterizadas, inicialmente, pela imensidão das glebas e imprecisão dos seus limites, as sesmarias no Brasil tinham em geral grandes extensões, tanto pela abundância das terras, quanto pela necessidade de cultivo da cana de açúcar. Apesar da desigualdade na distribuição, as menores eram de dimensões imensas, que estavam longe da possibilidade de aproveitamento baseada na capacidade de utilização de cada colonizador e sua família, como estava previsto nas leis. Iam além do que homem de força pudesse cultivar. (Guimarães, 1977). Desta forma se introduz no País a grande propriedade territorial. O sistema de capitanias, instalados em 1534 sofreu grandes alterações, em 1548, com a criação do Governo Geral. Em 1548, diante do fracasso da maioria da maior parte dos donatários, se criou o governo geral que, ainda que respeitasse os direitos dos donatários das capitanias exerceu sobre eles uma supervisão. Com o passar do tempo os poderes e jurisdição dos donatários foram cada vez mais restringidos e absorvidos pelos governadores gerais até desaparecerem completamente, tendo a Coroa resgatado, por compra, os direitos hereditários que gozavam (Germani, 2004; p.122). 31 Ainda a respeito da dimensão da propriedade tinha-se a recomendação: “não se dar a cada pessoa mais terra que aquela que boamente, segundo suas possibilidades, vos pareça que poderá aproveitá-las”. (Carta Régia, 16 apud,Germani, 2004). Mais tarde sobre essa recomendação agregaram-se outras com o propósito de estabelecer uma menor dimensão das sesmarias. O trabalho de Germani, (1977) sobre a concentração de terras no Brasil relata a Carta Régia de 27 de dezembro de 1695, que determinava que “não concedesse a cada morador da sesmaria mais que quatro léguas de extensão e uma de largura”. Em 1698, outra Carta Régia fixava o limite máximo em duas léguas. A provisão de 1753 determinou, finalmente, que não fossem concedidas sesmarias a quem anteriormente já tivesse recebido terras. O que se observa é que se promulgou uma variedade conflitiva de legislação subsidiária sobre concessões de terras, cartas régias, alvarás, avisos, disposições, ordens, provisões, cuja intenção era corrigir erros e situações criadas pelo descumprimento de atos anteriores. No tocante ao tipo de proprietários das sesmarias, a intenção da Coroa não era que a terra fosse distribuída a qualquer um, mas a qualquer um que fosse da nobreza, “os homens de bem”, ou por possuir dinheiro “os homens de posse”. Avaliando o caráter classista que presidia os donatários, Felisberto Freire (apud Germani, 2004) observa que para a Bahia e Pernambuco iam os proprietários que viviam na capital, no gozo da Corte, deixando que os agregados e escravos trabalhassem na terra enquanto eles se beneficiavam da renda agrária. No Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, principalmente no século XVI, era o próprio dono da sesmaria quem, ao lado do escravo, realizava o trabalho agrícola. Ainda segundo Felisberto Freire apud Germani, (2004) existe uma outra diferença importante quanto ao tamanho da propriedade: as do Sul não excediam mais que três léguas enquanto as concessões do Norte tinham uma maior extensão territorial. No Norte havia concessões de 20, 50 ou mais léguas. Cita como exemplo as concessões de Garcia D´Ávila e seus parentes que se estendiam da Bahia até o Piauí em uma extensão de 200 léguas. Neste sentido Faoro (2001), comenta que A aliança do poder aristocrático da Coroa com as elites agrárias locais permitiu construir um modelo de Estado que defenderia sempre, mesmo depois da independência, os intentos de segmentos sociais donos da propriedade e dos meios de produção. São dessas constatações que se pode auferir a 32 confluência paradoxal; de um lado, da herança colonial burocrática e patrimonialista; de outro, de uma estrutura socioeconômica que serviu e sempre foi utilizada não em função de toda a sociedade ou da maioria de sua população, mas no interesse exclusivo dos donos do poder (p. 205). As doações de terras para o estabelecimento de engenhos só diminuíram no século XVIII quando a produção de açúcar entrou em crise e começou a corrida ao ouro. Faoro (2001, faz uma análise quanto aos aspectos da colônia e metrópole evidenciando o sistema de apropriação de terras. Para ele, na segunda metade do século XVIII o país assiste à passagem de um sistema econômico colonial de produção do açúcar, no Nordeste, para um sistema de mineração do ouro e do diamante no Centro, e para um crescente enrijecimento do controle da administração colonial sobre a pujante, mas efêmera economia de mineração. (p. 259) Faoro (2001), explica que : O sistema das sesmarias deixou, depois de extinto, a herança: o proprietário com sobras de terras, que nem as cultiva, nem permite que outro as explore. Os lavradores, meeiros e moradores de favor são duas sobras que a grande propriedade projeta, vinculados à agricultura de subsistência, arredados da lavoura que exporta e que lucra (p. 140). Ainda segundo Germani (2004), a mineração então absorveu a maior parte da mão de obra escrava, provocando o abandono dos engenhos 1.5- O escravismo indígena O escravismo que estava quase extinto na Europa desde o declínio do Império Romano ganha uma nova amplitude na colonização do Brasil a partir dos séculos XV e XVI com a chegada dos povos “civilizados”. Entrava agora, não da forma clássica vista na Grécia Antiga e em Roma, mas de forma adaptada ao novo modo de produção capitalista. Não dispondo de mão de obra suficiente para o cultivo da cana de açúcar, a ocupação e produção nas terras brasileiras, já que nem os colonos europeus nem os portugueses imigravam para trabalhar nos trópicos, recorreram então os portugueses a mão de obra escrava de índios e negros africanos. 33 Os indígenas, que serviram como colaboradores nos primeiros momentos, já não aceitavam insignificantes objetos em troca do seu trabalho, nem se adaptavam às novas condições impostas pelo engenho. De primitivo ocupante passou a ter sua liberdade e suas terras usurpadas, como perspectiva de vida tinha o cativeiro ou a fuga em direção ao interior. Prado Junior (1978) afirma que a escravidão indígena generalizou-se e se instituiu em todos os lugares antes mesmo de completar 30 anos da ocupação efetiva e do estabelecimento da agricultura. Em 1570 foi regulamentado pela Carta Régia que estabelecia o direito da escravidão dos Índios. A escravidão indígena predominou ao longo de todo o primeiro século. Só no século xvii a escravidão negra viria a sobrepuja‐la, conforme assinala Brandão. "[.] em algumas capitanias há mais deles que dos naturais da terra, e todos os homens que nela vivem tem metida quase toda sua fazenda em semelhante mercadoria (Brandão 1968:115 apud, Ribeiro; p. 98). Ainda assim, subsistiu-se nas áreas pioneiras como estoque de escravos baratos utilizáveis para funções auxiliares. Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mao‐de‐obra indígena, embora preferisse a escravatura negra para a produção mercantil de exportação. O índio era tido ao contrario, como um trabalhador ideal para transportar cargas ou pessoas por terras e por águas, para o cultivo de gêneros e o preparo de alimento, para a caça e a pesca. Seu papel foi também preponderante nas guerras aos outros índios e aos negros quilombolas (Ribeiro, 1995; p.99). Guimarães (1981) salienta que, se de um lado, o indígena era caçado para servir como escravo, por outro lado, a implantação das sesmarias e dos engenhos necessitava de suas terras. Assim o latifúndio no Brasil nasceu e se desenvolveu “sob o signo da violência contra populações nativas, cujo direito congênito à propriedade da terra nunca foi respeitado e muito menos exercido”. (p.116) A partir da carta régia de 1570, em que D. Sebatião autorizava o apresamento de índios em guerras justas, a uma lei de alforria se seguia outra, autorizando o cativeiro através de procedimentos paralegais como os leilões oficiais para venda de índios, as taxas cobradas por índio vendido como escravo, as ordens reais para preia e venda de lotes de índios para custear obras públicas e até para construir igrejas, como ocorreu com a catedral de São Luís do Maranhão. A rigor, apesar da 34 copiosíssima legislação garantidora da liberdade dos índios, se pode afirmar que o único requisito indispensável para que o índio fosse escravizado era ser, ainda, um índio livre. Mesmo os já incorporados à vida colonial ‐ como ocorreu com os recolhidos às missões ‐ inúmeras vezes foram assaltados e acossados. Isso foi o que sucedeu, por exemplo, quando Mem de Sá autorizou uma guerra de vingança para escravizar os índios Caeté por haverem comido o bispo Fernandes Sardinha (Ribeiro, 1995; p.99). Outras várias regulamentações, leis e alvarás sucederam-se e pela primeira vez, reconhecia-se aos indígenas o direito à propriedade das terras como “primeiros e naturais senhores delas”. Por certo, as mudanças de leis e alvarás não significaram modificações concretas relacionadas a esta questão. A escravidão do índio só foi abolida na segunda metade do século XIII, durante o governo do Marquês de Pombal. Convém ressaltar que no melhor dos casos, foi abolida legalmente, porque na prática continuou ocorrendo, principalmente nas regiões mais pobres, onde o colonizador não podia pagar os preços elevados dos escravos africanos. Assim desde o primeiro momento passou a ser um bom negócio incentivar as guerras entre as tribos para fazer prisioneiros e negociá-los com os colonizadores, depois da violenta e tenaz caça aos índios, realizada através das entradas6 e expedições organizadas para perseguir e aprisionar os indígenas. Um problema que se estende até os dias de hoje com os problemas de demarcação de suas terras ainda por resolver dois casos são importantes destacar: a construção da barragem de Belo Monte na Bacia do Rio Xingu no Estado do Pará que deve expulsar populações inteiras de índios como os Kararaô, Kaiapós, Krenaks, Terenas entre outros e mais as populações ribeirinhas de suas terras. Outro caso intrigante é dos Guaranís-Kaiowa no Mato Grosso do Sul: por conta do processo de colonização agrária, o Estado deu títulos de propriedades a fazendeiros em terras tradicionalmente ocupadas por índios. O resultado foi uma sequência de suicídio entre os Guaranís-Kaiowa que vem se repetindo há décadas, por conta da tensão elevada entre Índios e fazendeiros e da demora na demarcação e reconhecimento de suas terras. 6 Entradas e expedições: formas como as quais os colonizadores organizados em grupos fortemente armados partiam em direção a floresta para capturar e aprisionar os índios e em seguida transforma-los em escravos. 35 1.5.1- A escravidão do Negro Africano O processo de escravidão africana durante o período colonial é consequência da necessidade de força de trabalho para servir em todo o sistema implantado na colônia: primeiro nos engenhos, depois nas minas de ouro e mais tarde nas fazendas de algodão e café, portanto tudo que se produziu neste período teve a marca do suor e do sangue do povo negro. (Gorender,1978; & Germani, 2004). Uma advertência necessária é a de que a escravidão não começa oficialmente com a chegada dos primeiros escravos no Brasil, mas que os portugueses já tinham experiências com o tráfico desde o século XV, através da compra, troca ou captura, na costa atlântica da África e os levavam ao reino europeu ou as suas colônias nas Ilhas de Madeira e Cabo Verde. Mesmo assim, para Gorender (1978): O modo de produção resultante da conquista – o escravismo colonial – não pode ser considerado uma síntese dos modos de produção preexistentes em Portugal e no Brasil. Ao tempo em que se iniciou a colonização do Brasil, empregavamse escravos na economia portuguesa, mas este emprego tinha caráter subsidiário, complementar. Refiro-me aqui, está claro, ao Portugal continental e não às Ilhas atlânticas, uma vez que estas, à semelhança do Brasil, entram no conceito de conquista e colonização. No Portugal continental, o emprego de escravos teve, sem dúvida, a significação de um sintoma relevante da conjuntura por que transitava o país, sem que indicasse a tendência fundamental de desenvolvimento da formação social portuguesa. Apesar do retardamento multissecular que lhe imporiam as relações e produção feudais, enrijecidas pela própria expansão ultramarina, essa tendência era a da transformação capitalista. Quanto aos indígenas brasileiros, nenhuma evidência ocorre que se encontrassem sequer em evolução no sentido do escravismo (p.40) Outra importante advertência é essa de que a escravidão africana não começa com a chegada dos europeus, (principalmente ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e portugueses) mas que esses só fizeram aumentar um sistema pré-existente. Os reinos africanos que já lucravam com a venda de seus cidadãos ou inimigos vizinhos como escravo para os árabes, só fizeram aumentar os seus lucros com a demanda de mão de obra escrava para os europeus (Ribeiro, p.161 168a). 36 Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro ‐ mercador africano de escravos ‐ para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalho no dia seguinte até a exaustão (Ribeiro, 1995; p.119). Os africanos monopolizavam praticamente todo o sistema escravista dentro da África. A tarefa de capturar escravos e levá-los ao litoral era feita pelos próprios africanos a mando da nobreza africana que enriquecia seus reinos com esse comércio macabro. O rei africano Osei Kuame do império Ashanti, era conhecido por viver em palácios luxuosos construídos graças aos lucros que obtinha com a venda de escravos. (Germani, 2004). 1.6- A concentração de terras na fase inicial da República O sistema político, econômico e social brasileiro nascente se desenvolveria numa perspectiva nostálgica do colonialismo editando sequencialmente leis e medidas no sentido de evitar o acesso e uso das terras disponíveis por outros (negros e pobres) que não os membros da elite econômica e política da época. No caso da aquisição de terras, segundo Oliveira (2002), essas só poderiam ser feitas mediante compra ao Estado e por conta dessas medidas, continuaram sem terra os ex-escravos e pobres, mesmo com as grandes quantidades de terras disponíveis entre o final do século XIX e início do século XX, ainda que essas terras não fossem das melhores: Com a independência e com o fim da escravidão trataram os governantes do país de abrir a possibilidade de, através da 37 “posse”, legalizar grandes extensões de terras. Com a Lei de Terras de 1850, entretanto, o acesso à terra só passou a ser possível através da compra/venda com pagamento em dinheiro, o que limitava, ou mesmo praticamente impedia, o acesso à terra dos escravos que foram sendo libertos (Oliveira, 2002, p.5). A abundância de terras entre o final do século XIX e início do século XX não se constituía necessariamente numa política de reforma agrária e de distribuição de terras por parte do governo. A Lei de Terras passa a dispor sobre as terras devolutas no Império do Brasil, e sobre os bens possuídos por títulos de sesmarias sem cumprir condições legais. Para Germani, (2004) essa lei veio para mudar, significativamente o sistema de propriedade de terras, quando no seu artigo 1º. declara que “ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não sejam o da compra”. (p.134) Já para Graziano (2004), a chamada Lei de Terras “tem importância crucial na história brasileira na medida em que, através dela, se institui, juridicamente, uma nova forma de propriedade da terra que é medida pelo mercado, o que impede, ou pelo menos dificulta por uma via mais democrática o acesso a terra de vastos setores da população”. Ainda segundo Germaini, se para o trabalhador livre, para o mestiço, esta lei significou o “cativeiro” da terra, para o capital significou sua liberdade. A terra já não estava livre para ser ocupada como no regime anterior, ou em processos de possessões comuns entre pobres que se verificou de maneira mais recorrente no Sul e no Centro Sul, mas livre para ser transformada em mercadoria e ser adquirida pelos que tivessem condições para isso. Furtado (1989, p. 120) explica que “embora a terra fosse o fator mais abundante, sua propriedade estava altamente concentrada” já naquela época. Esse autor afirma ainda que, no caso específico do Nordeste, “as terras de utilização agrícolas mais fáceis já estavam todas ocupadas praticamente em sua totalidade, à época da abolição”. No final do século XIX acontece no Brasil o golpe contra a monarquia em 1889 que deu início a chamada “primeira república”, ou “republica velha” que se estendeu até as primeiras décadas do século XX. Para Germani, (2004, 138), esse golpe não foi somente um golpe contra a monarquia, mas também e principalmente contra a nova facção próspera da classe dos fazendeiros de café, que desde os últimos anos do império vinham assumindo cada vez mais importância no governo. No novo regime é aprovada a primeira constituição do Brasil em 1892, mas a propriedade da terra continua sem mantida em sua plenitude. A partir desta data os 38 Estados foram adaptando em sua legislação os princípios da Lei de Terras e do seu regulamento. Assim cada Estado desenvolveu sua política de concessões de terras, legislando segundo sua conveniência no que se refere à destinação de terras devolutas, revalidação das sesmarias e legitimação das ocupações. (Germani, 2004). Assim foram feitas transferências a grandes fazendeiros e empresas colonizadoras interessadas por sua vez na especulação imobiliária. Mais tarde acontece a aprovação do código civil, em 1916, que estabelece a via judicial para a discriminação das terras, não permitindo a revalidação das sesmarias nem a revalidação das posses. No código civil de 1916 a legalização das terras que não tivessem sido regularizadas pela Lei de Terras somente poderia fazer por usucapião, ou seja, pela posse efetiva por 10 anos ou mais de forma contínua e pacífica, em uma área de 10 hectares. Já na constituição de 1946, o prazo segue de 10 anos, mas o limite da área passa a ser de 25 hectares, mais tarde em 1981 o prazo é diminuído para 5 anos. 1.7- O golpe militar e a manutenção do modelo de concentração fundiária O golpe militar de 1964 foi, sem dúvida, mais uma das investidas da classe dirigente conservadora e serviu, entre outras coisas, para preservar os processos de concentração da terra, mantendo o modelo agrário-exportador e firmando a rejeição a qualquer possibilidade de reforma agrária em todo o território brasileiro. Durante o período que se seguiu à ditadura militar, as bases capitalistas implantadas na última metade do século XX e ainda seguindo o modelo de “latifúndio concentrador” no campo, foram mantidas e as reivindicações por reforma agrária e outras liberdades individuais sufocadas. (Ribeiro, 2003). A tentativa realizada em 1964, pelo então presidente João Goulart de retirar da legislação a necessidade de pagamento prévio e em dinheiro advindas da Lei de Terras, é considerada como uma das causas da sua destituição do poder. (Germani, 2004). O golpe militar de 1964 abafa de uma vez as possibilidades de democratização da terra advindas da era Juscelino-Goulart e, consequentemente, todas as possibilidades de reforma agrária para o campo. Com relação aos discursos golpistas de acabar com a corrupção, com a inflação e com a subversão, o que se vê é a manutenção do modelo encontrado numa fase 39 embrionária do século XX, principalmente de 1955 a 1964. “As bases do regime seriam então, ao contrário do que eles diziam, completamente antidemocrática, antirreformista e pró-americana. As prisões começam no dia seguinte ao golpe e ao final do ano de 1964 havia cerca de 50.000 presos políticos em todo o país” (Ribeiro, 2003, p.23). Se a agricultura brasileira, desde a época colonial, não cumpria o papel de alimentar a população, após 1964 piorou ainda mais. Sheenberger (2003) afirma que a agricultura brasileira simplesmente não produzia calorias e proteínas suficientes para garantir uma vida saudável, mesmo se a produção agrícola fosse distribuída igualitariamente entre a população. Para Sheenberger (ibid) além do papel agroexportador, os governos militares atribuíram uma tarefa suplementar a agricultura brasileira que foi a de produzir – álcool – para a indústria automobilística (PROALCOOL) e mais a industrialização acelerada passou a exigir matéria-prima em níveis superiores às épocas anteriores como o algodão e a soja. Assim o desestímulo a produção de alimentos, ao longo do regime militar (1964 – 1985) e as pressões dos interesses externos sobre a agricultura brasileira se materializaram de maneira dramática na subnutrição da população tanto urbana quanto a rural. Ainda para esse autor “desde o período colonial, alimentar a população brasileira jamais foi tarefa prioritária da agricultura brasileira, como podemos observar nas características intrínsecas de cada ciclo. Sendo mais importantes as divisas que cada ciclo desses gerou para atender a coroa portuguesa”. Neste contexto, sucederam-se desde a fase inicial da colônia até os nossos dias, os conhecidos ciclos econômicos como o do pau-brasil e o da cana-de-açúcar, mineração, o do gado e do couro, da borracha, algodão, do café e no Sul da Bahia o cacau este último principalmente do final da década de 1970 até o final da década de 1980. No intuito de acalmar os movimentos campesinos que se multiplicavam no Governo João Goulart na época, foi aprovado o “Estatuto da Terra”, em novembro 1964, que teoricamente foi considerado um avanço (mesmo para os movimentos sociais da época), pois considerava que a terra tinha função social; e a classificava em quatro categorias: (latifúndios por extensão, por exploração, minifúndio e empresa rural); criava o ITR (Imposto Territorial Rural); criava um órgão para cuidar da reforma agrária, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que ainda 40 existe, e autorizava a desapropriação das terras improdutivas em conflito (terras não cultivadas), o que ainda hoje é uma questão polêmica. Na constituição de 1988, depois de 20 anos de ditadura militar, produziu-se para alguns autores um retrocesso em relação ao Estatuto da Terra, impedindo que se produzisse uma reforma agrária por via pacífica a falta de “vontade política” expressada nas leis e nas atitudes, só serviu para aumentar e aprofundar a tensão no campo brasileiro. (Silva, apud Germani; 2004, p.141) Ainda para esse autor, nem nos últimos governos “democráticos”, nem o governo de Luiz Inácio Lula da Silva se conseguiu estabelecer a reforma agrária como prioridade do governo. Tabela 1: Estrutura Fundiária Brasil em março de 2009 Grupo de área total (há) N°. de Estabelecimentos % Área (há) Em % Área média (em ha) Até 10 1.744.540 33,7 8.215.337 1,4 4,7 De 10 a 25 1.316.237 25,4 21.345.232 3,7 16,2 De 25 a 50 814.138 15,7 28.563,707 5,0 35,1 De 50 a 100 578.783 11,2 40.096.597 7,0 69,3 De 100 a 500 563.346 10,09 116.156.530 20,3 206,2 De 500 a 1000 85.305 1,6 59.299.370 10,4 695,1 De 1000 a 2000 40.046 0,8 55.269.002 9,7 1380,1 Mais de 2000 39.250 0,8 242.795.145 42,5 6.185,9 100,0 571.740.919 100,0 110,3 Total 5,181.645 Fonte: Incra Sistema Nacional de Cadastro Rural É possível observar na tabela acima a continuidade do processo de concentração de terra no Brasil e mais abaixo quem controla o que em matéria de concentração de terras e números de trabalhadores. Tabela 2: O controle das áreas agrícolas no Brasil. Categorias Agricultura familiar Agricultura familiar não No.Estabeleciment os agropecuário % Área (há) % Mão de (milhões pessoas) obra de % 4.367,902 84,0 80,3 24,0 12,3 74,0 807.587 16,0 249,7 76,0 4,2 26,0 Fonte: Censo Agropecuário 2006; Elaboração DIEESE. Mesmo que a agricultura familiar seja a que possui maior número de estabelecimentos e maior número de pessoas exercendo algum tipo de atividade nas 41 propriedades rurais, elas são de longe as que detêm a menor quantidade de hectares, 80,0 contra 249,7 das terras agricultáveis do Brasil, ou seja os estabelecimentos considerados com o perfil de agricultura familiar somam 4.367,902 e detêm apenas 24,0% do território ocupado no campo brasileiro. Os outros 16,0% dos estabelecimentos considerados de agricultura não “familiar”, ou seja, o agronegócio, ficam com 76,0% das áreas ocupadas. Outro dado importante destacado neste censo é a geração de emprego no campo. A agricultura familiar mantém 12,3 milhões de pessoas ocupadas no campo, o que corresponde a 74,4% de todos os empregos gerados na área rural. Já o agronegócio emprega bem menos, 4,2 milhões de pessoas ocupadas, ou seja, apenas 25,3% dos empregos no campo. O que significa dizer que 7 em cada 10 empregos são gerados pela agricultura familiar. Mais ainda nas observações feitas pelo censo agropecuário de 2006 consta que a média dos estabelecimentos familiares era de 18,37 hectares enquanto que o estabelecimentos considerados não familiares possuem em média 309,18 hectares, ou seja, 17 vezes maior. (Censo Agropecuário 2006). Assim e como se vê ao longo desta discussão, mesmo se o Brasil sempre houve a capacidade exportadora em abundância de produtos agrícolas estratégicos como o café, a cana-de-açúcar, a borracha e agora mais especificamente a soja entre outros produtos agrícolas. A continuidade dessas escolhas políticas fez com que ao longo da história colonial e republicana, populações inteiras de agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas, sertanejos, indígenas entre outros ficassem à margem do desenvolvimento da nação, tanto no que concerne às políticas agrícolas no que diz respeito ao crédito e a estruturação técnicas dessas propriedades, quanto das políticas agrárias no que diz respeito a quantidade e disponibilidade de terras para essas populações, como também das políticas educacionais para o campo brasileiro fazendo com que esses povos ficassem esquecidos e vulneráveis do ponto de vista agrícola, agrário e educacional no mundo rural. 42 1.8- A exclusão e a concentração fundiária na região do cacau De forma mais particularizada, a produção do cacau no sul da Bahia segue os mesmos princípios norteadores dos outros ciclos econômicos brasileiros, a concentração de terras e a base para exportação. A concentração de terras advém já dos sistemas de capitanias hereditárias, sendo Ilhéus um dos 12 lotes que foram distribuídos no período da colonização, tendo sido a Capitania de São Jorge dos Ilhéus doada por carta régia, a Jorge Figueiredo Correia por D. João III em 25 de abril de 1554. Durante o período colonial atividade econômica mais importante era a produção de cana-de-açúcar. O cacau seria implantado, pelo que se conhece, entre os períodos de 1818 a 1824 por 28 famílias imigrantes alemãs que formaram uma colônia as margens do rio Almada e iniciaram o cultivo do produto como alternativa a crise da lavoura açucareira. A partir de 1824 o cacau ganha importância no processo de exportação e começa por consequência o aprofundamento perpetrado da concentração de terras pele elite agrária que ora se formara ou “os coronéis do cacau”, atirados pela cobiça gerada pelo alto preço no mercado internacional e pela qualidade das terras ideais para a sua plantação. O aprofundamento da concentração das terras na região do cacau se dá de forma violenta e cruel como aconteceu também em todo o território brasileiro. Esses processos de concentração das terras se mantêm e ganham força desde a implantação dessa cultura na região, no final do século XIX e no decorrer de praticamente todo o século XX. Com isso, a perpetuação das péssimas condições de vida do homem e da mulher o trabalhadora rural na região do cacau, beira ao regime de escravidão, situação que se manteve até os dias atuais. Sobre os sistemas agrários da lavoura cacaueira, Couto (2000) afirma que, Os sistemas agrários centrados na lavoura cacaueira, seja ela monocultura ou atividade integrante de sistemas produtivos mais complexos, formaram-se voltados para o mercado mundial. Remanescentes do exclusivismo mercantilista, esses sistemas agroexportadores já nasceram no contexto de internacionalização de capitais primitivos. 43 Quando tocamos nos processos de exclusão dos pequenos agricultores do cacau, é fundamental apresentar dois elementos: o primeiro seria a relação de assalariamento e o segundo a expulsão dos pequenos agricultores de suas terras. A relação de assalariamento não difere muito das relações encontradas nas fazendas de café no Sul (Oeste de São Paulo, como Limeira, Rio Claro...), e nas fazendas de cana-de-açúcar em todo o Nordeste. Os assalariados do Nordeste também possuíam pequenas posses de terra para a cultura de subsistência, geralmente dentro da própria fazenda onde trabalhavam e recebiam uma remuneração que lhes permitia cobrir gastos monetários mínimos. Dentro da economia de subsistência, cada indivíduo ou unidade familiar deve encarregar-se de produzir alimentos para o seu próprio consumo. A “roça” é a base da economia de subsistência. Entretanto o homem e a família da economia de subsistência não se limitam a viver da sua “roça”, pois estão sempre ligados a um grupo econômico maior, quase sempre proprietário de terras (Furtado, 1989; p.120). Uma das questões a se notar é que o cacau, enquanto cultura agroexportadora seguiu a mesma ideologia do nacional desenvolvimentismo do início até a metade do século XX em seus desdobramentos na região, ou seja, a modernização industrial, que ocorria no centro sul e a exportação a de matéria prima que segundo o pensamento dirigente da época, seriam as únicas vias capazes de alavancar a nação, no sentido de acompanhar os Estados Unidos e as recentes potências industriais que se formavam na Europa. O alto preço do cacau no mercado internacional, principalmente na última metade dos anos 1980, e às condições climáticas e ambientais da região para a sua produção se constituíram em um prato perfeito para atiçar a cobiça dos latifundiários e aumentar a pressão sobre as pequenas propriedades rurais. A “grilagem 7”, termo utilizado pelos sindicalistas, que significa a tomada e expulsão de terras dos pequenos agricultores de forma violenta, se tornaria corriqueira, principalmente com a ajuda das autoridades locais se constituindo numa forma de poder paralelo. Nas fazendas de cacau, a relação entre os grandes fazendeiros rurais “os coronéis do cacau”, e os que possuíam pouca terra ou eram empregados das fazendas se 7 Sujeito contratada por grandes empresas ou por fazendeiros para invadir terras devolutas ou ocupadas por posseiros. 44 mantinha por meio de diversas formas de alienação e pressão, que iam desde a agregação do “pião”, por meio de batismos e procedimentos religiosos e culturais, às parcerias – os meeiros – e até à coação propriamente dita do pequeno agricultor. Leal (1975) explica que: O coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil (1995, p.20). Ainda no processo de assalariamento é preciso notar os inúmeros episódios onde, no momento do “acerto das contas” entre empregados e patrões, os empregados eram levados a lugares longínquos das mesmas fazendas e lá assassinados por “capatazes” a serviço do fazendeiro. Neste processo, a economia rural mais tradicional e decadente, com sua combinação perversa de minifúndio-latifúndio, vai-se esvaziando aos poucos, sendo substituída pelas grandes lavouras mecanizadas de exportação, pelas grandes extensões de criação de gado, pela expansão de uma agricultura e pecuária de alta tecnologia e voltadas ao mercado interno, e assim por diante. Os antigos meeiros e posseiros vão perdendo suas raízes, imigrando ou transformando-se em bóias-frias ou assalariados das grandes plantações de cana-de-açúcar e outras agroindústrias (Faoro,200; p283). Segundo Faoro (2001): É um processo intenso e violento, acompanhado do deslocamento forçado da população e por conflitos pela posse da terra. O que se pode concluir que os problemas brasileiros dependem hoje muito menos do que ocorre no campo do que o que ocorre nos centros urbanos. O esvaziamento do campo permite sua modernização cada vez mais acelerada, a extensão do sistema previdenciário e da sindicalização do setor rural, e outras transformações, fazem com que as diferenças entre campo e cidade no Brasil tendam a se reduzir (p. 284). A expulsão das terras – comumente conhecida pelo termo “grilagem” – era feita com base na capacidade de coação dos grandes fazendeiros, (coronéis) seja pela compra com preço muito abaixo do praticado no mercado, seja por dispor do aparelho estatal (polícia, juízes, políticos), ou então, numa outra linha de ação, por dispor de força 45 coercitiva própria – os chamados “pistoleiros8”, que se encarregavam, por vezes, do assassinato de famílias inteiras de pequenos produtores rurais, com o objetivo de se apossar de suas terras. Essa situação é recorrente em toda a história da ocupação e concentração de terra na região cacaueira e certamente não difere muito de outros processos similares existentes no Brasil. Os “alugados”, os bons de foice e enxada e os bons de pontaria. Pagos numa tabela alta, os jagunços de tiro certeiro tinha regalias. As cruzes demarcavam os caminhos do alardeado progresso da região, os cadáveres estrumavam os cacauais (Amado, o menino grapiúna, 2010). De acordo com Brito (2000, p. 40), o Sul da Bahia chegou a ser responsável por 40% da arrecadação do estado. O lucro gerado nesta lavoura foi inegável: refletiu-se em todo o interior e capital. O desenvolvimento regional, principalmente a partir do final da década do século XIX, vai criar estímulos e condições de integração da região à economia. A partir daí o cacau assume a posição de produto gerador de rendas e tornase cultura dominante. O que consequentemente mantém o processo de concentração de terras advindas das capitanias hereditárias e das sesmarias. Tabela 3: Região cacaueira: Estrutura Fundiária atual (2013) Grupo de área total (há) N de Estabelecimentos % Área (há) % Mais de 0 a menos de 20 há 2.572 57,32 84.284 7,46 De 20 a menos de 200 ha 7.981 36,38 466.492 41,3 De 200 a menos de 500 há 877 3,99 257.587 22,81 De 500 a menos de 1000 há 201 0,92 131.512 11,64 De 1000 a menos de 2500 há 78 0,36 90.158 7,98 De 2500 há e mais 11 0,05 99.418 8,8 Produtor sem área 212 0,97 0 0 21.932 100 1.129.415 100 Total Fonte: Censo Agropecuário 2006 Considerando que a agricultura familiar de uma maneira geral na região, as áreas que tem menos de 20 hectares, a partir dos dados do censo agropecuário, são 2.572 estabelecimentos, correspondentes a 57,32% do total, controlando uma área de 84,264,00 hectares, ou seja, 7,46%. No entanto, as áreas consideradas de agriculturas não familiares, essas em que estão acima de 200 hectares, somam em seu conjunto 8 Pistoleiros, jagunços e capatazes: homens geralmente armados com espingardas e revolveres, cujo papel era o de coagir e assassinar qualquer um que desafiasse as ordens dos coronéis do cacau. 46 1.167,00 propriedades controlando uma área total de 578.675,00 hectares, ou seja 51,23 % da área total da região cacaueira. Pelos dados da para se ver que a diferença é brutal na relação com o controle da terra na lavoura cacaueira. Neste sentido e pelo que é possível perceber neste capítulo: é que não é sem nenhuma lógica que quando os Movimentos Sociais de hoje reivindicam a “reforma agrária” e a distribuição de terras no Brasil o fazem baseados em dados históricos que comprovam a expropriação e a continuidade da concentração das terras pela elite agrária brasileira, e que este fenômeno desempenha um papel decisivo no aumento do êxodo rural para as média e grandes cidades brasileiras. Na Bahia e mais particularmente na região do cacau, como é possível perceber temos os mesmos fatores que se observa no restante do Brasil. Diríamos que na região do cacau, esse processo – de sistema plantation agroexportador – começa bastante cedo por volta de 1824 com a chegada dos imigrantes alemães e suíços, em seguida a importância do cacau na pauta de exportação que força a grilagem e a expropriação de terras principalmente entre as décadas de 1970 e 1980 e finalmente como é possível se perceber na tabela 3 acima, que o processo de concentração de terra só tem feito aumentar durante as últimas décadas, o que contribui para o subdesenvolvimento das populações rurais locais, principalmente na agricultura familiar como se observa na maioria dos casos na região. 1.9 - Os debates agraristas e o nacional desenvolvimentismo Uma compreensão interessante no contexto da visão nacional desenvolvimentista advinda do final do século XIX e início do século XX, é que neste momento, mesmo os movimentos considerados de esquerda na época, vão interpretar os problemas agrários brasileiros como “restos feudais” que deveriam ser superados para que o Brasil entrasse finalmente no modo de produção capitalista. (Coronel, 1982) Assim se expressavam o PCB e Alberto Passos Guimarães, mas para Prado Jr. (1969), no entanto “a concentração fundiária, a exploração dos trabalhadores rurais, o desamparo legal e os ínfimos níveis de renda eram fenômenos próprios do capitalismo...” Sodré, (1979) também rechaça esse pensamento para ele: 47 O fato, contudo, é que o Brasil não apresenta nada que legitimamente se possa conceituar como “restos feudais”. Não fosse por outro motivo, pelo menos porque para haver “restos”, haveria por força de preexistir a eles um sistema “feudal” de que esses restos seriam as sobras remanescentes. Do ponto de vista dos elementos referentes às reivindicações e lutas pela posse da terra e pela reforma agrária, e de como ela passa a ser colocada na ordem do dia no interior das políticas de desenvolvimento no Brasil, uma das contribuições valiosas sobre o assunto vem de Santos (1998), em seus trabalhos sobre a questão agrária no Brasil. Sobre suas interpretações dos debates agraristas no Brasil e as querelas, com diz ele, que envolveram também Francisco Julião e as Ligas Camponesas, 9 esses Professores avaliam que existem três momentos históricos particulares de luta pela terra nos chamando debates agraristas no Brasil: Um primeiro debate agrarista aconteceu em torno de 1940 e 1950 com rescaldo ainda na década de 1960 e envolveria o movimento das Ligas Camponesas e Francisco Julião. As Ligas Camponesas nasceram em 1955, no Estado de Pernambuco (Nordeste) onde as condições de vida da população camponesa eram de extrema pobreza e o avanço do cultivo da cana-de-açúcar provocava a expulsão do homem do campo. Esse movimento encontra na figura do advogado Francisco Julião o apoio na luta pelos direitos trabalhistas e pela reforma agrária em seguida e como resultado deste primeiro momento esse movimento que ficou conhecido como Ligas Camponesas que se espalha por boa parte do território nacional, visto que a população rural brasileira vivia nas mesmas condições destas vividas pelos trabalhadores rurais e pequenos camponeses de Pernambuco. O segundo debate agrarista estaria por volta dos anos 70 com o surgimento da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e a atuação mais positiva da Igreja Católica em relação aos conflitos agrários, principalmente a partir do advento da Teologia da Libertação, onde a 9 PESSOA, Jandir de Morais. O B-A, BÁ do Brasil: Caminhos e descaminhos da educação no meio rural, ver referência 2004. Termo utilizado pelo autor, numa alusão aos debates sobre a questão agrária e a luta pela posse e utilização da terra. 48 Igreja Católica brasileira e sequencialmente a latino americana assumem a opção em defesa dos “despossuídos”. Neste caso em particular, a ênfase era posta no apoio aos sindicatos rurais e nos movimentos de luta pela terra, e daí mesmo no interior do regime militar reacendem-se as primeiras disputas pela posse de terra no Brasil. O chamado terceiro debate agrarista aconteceria no início dos anos 80 com a instalação propriamente dita do modelo agro-exportador. Assim, esse autor define “como uma passagem das experiências acumuladas em décadas anteriores para as ocupações de fazendas e a constituição de assentamentos rurais.” (Santos, 1989) Em meio a esse processo emergiu o MST e com ele surge uma nova página da história do campesinato brasileiro. Deste modo, “a partir da década de 80 é possível falar, entre rupturas e continuidades, de um novo camponês na história do Brasil.” (Santos, 1998; p. 41) Assim e como se vê ao longo desta discussão, mesmo se o Brasil sempre teve a capacidade exportadora em abundância de produtos agrícolas estratégicos como o café, a cana-de-açúcar, a borracha e agora mais especificamente a soja entre outros. A continuidade dessas escolhas políticas fez com que ao longo da história colonial e republicano, populações inteiras de agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas, sertanejos, indígenas entre outros ficassem à margem do desenvolvimento da nação, tanto no que concerne às políticas agrícolas no que diz respeito ao crédito e a estruturação técnicas dessas propriedades, quanto das políticas agrárias no que diz respeito a quantidade e disponibilidade de terras para essas populações, como também das políticas educacionais para o campo brasileiro fazendo com que esses povos ficassem esquecidos e vulneráveis do ponto de vista agrícola, agrário e educacional no mundo rural. 49 CAPÍTULO II 50 2. – O desenvolvimento da educação rural no Brasil, sua história e suas possibilidades Un peuple ne peut connaître que le destin que lui a forgé son système éducatif (Sikounmo, 1992). Quando se trata de educação rural, é fundamental compreender inicialmente a importância das questões agrícolas e agrárias no ordenamento da vida das pessoas que vivem no campo brasileiro, os seus desdobramentos no esquecimento, no distanciamento e no retardamento de processos concretos para alavancar o igual direito à educação dos povos que lá vivem. O papel deste capítulo é de contribuir com uma análise histórica sobre os acontecimentos que levaram a educação para o meio rural em grande parte do Brasil ao estado de abandono e descaso em que se encontra nos dias atuais. Para iniciarmos a nossa discussão, tomamos a afirmação de Mansano (2004). Para esse autor, é fundamental que “a educação do campo” não esteja desassociada das questões agrárias e agrícolas que permearam e permeiam a história contemporânea do Brasil. Para ele, “vincular a educação a uma questão social, relevante como é a questão agrária, é comprometê-la, na teoria e na prática, com a construção de alternativas para a melhoria da qualidade de vida do povo” (p.3). O que significa dizer que, não há como falar do desenvolvimento da educação rural no Brasil sem invocar, de início, os processos históricos de tensividade políticas, econômicas e sociais que marcam a disputa pela terra: da violência no campo, das secas, da fome e da miséria vividos por essas populações. Esses processos históricos corroboram para o resultado da educação rural que temos hoje, tanto do ponto de vista do seu desenvolvimento, quanto do ponto de vista dos desdobramentos que cercam a educação para o meio rural em grande parte do Brasil. A partir desse entendimento, não há como falar em educação rural ou educação para os povos do campo sem levar em consideração essa dinamicidade e conflitividade constante que atravessa a questão agrária e agrícola no Brasil desde o início da colonização até o nosso tempo. A questão agrária e agrícola não é nem nunca foi um dado estático, imóvel, que precisa apenas da vontade de governantes “bons” para que tudo acontecesse de forma positiva para essas populações. Assim, a “educação rural ou educação do campo” é também o resultado desse conjunto de embates envolvendo homens, mulheres e 51 crianças, excluídas e esquecidas ao longo do tempo no país. Analisá-la é essencial na compreensão entre os resultados que se tem hoje e os complexos processos políticos, econômicos e sociais que lhes cercaram ao longo da história contemporânea brasileira. Este capítulo busca também destacar a importância história da luta dos povos rurais pela terra, entranhados nos processos de desenvolvimento da educação do campo, processos esses indispensáveis para compreender o mundo de continuidades e descontinuidades que cercam a educação rural no Brasil de hoje. Assim, a educação para o “campo” não pode nem deve ser uma estrutura isolada dessa tensividade (Caldart & Arroyo, 2004) e das dificuldades pautadas entre os que vivem no meio rural: das lutas daqueles que disputam no seu dia a dia um pedaço de terra para nele plantar e sobreviver; das dificuldades daqueles que mesmo tendo o seu pedaço de terra, ainda assim se sentem fragilizados pela falta de conhecimento técnico e pelo domínio do mercado que impõe preços sem a garantia da possibilidade equilibrada de compra e venda aos seus produtos, perpetuando assim o ciclo de miséria no campo. Neste contexto, o lugar da educação do campo se torna necessariamente o lugar da problematicidade dessas tensões e lutas históricas, Freire (1974), percebe também desta maneira, afirmando que o movimento e as lutas dos camponeses são também processos educativos, no movimento e nas vivências de tensões e lutas também se educa homens mulheres e crianças... 2.1 – Da colonização ao Brasil atual: as lacunas dos processos educacionais criando excluídos no campo Mesmo que o Brasil tenha sido até estas últimas décadas um país essencialmente agrário, a história da educação rural sempre esteve alheia às prioridades governamentais. Somente nas primeiras décadas do século XX é que a educação rural passou a entrar no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, até esse momento, esses primeiros lampejos de educação ainda não representam um verdadeiro engajamento ou redimensionamento na busca de soluções para melhorar as condições econômicas e sociais da população rural excluída. Analisando os processos históricos que atravessam a educação nacional, em particular a educação rural, o que se pode concluir é que: desde a colônia até o nosso tempo, a educação como um todo não estava direcionada a contemplar o conjunto da 52 população, principalmente aqueles cidadãos cuja origem não correspondia ao estereótipo vislumbrado pelas classes dirigentes nos diversos tempos entre a colônia e a república, Ribeiro (2003) afirma que: A educação nascente da colônia se direcionava apenas aos filhos da nobreza e seus descendentes. A elite era preparada para o trabalho intelectual segundo um modelo religioso (católico); neste momento a Companhia de Jesus se tornou a ordem dominante no campo educacional, sendo que mesmo com o perfil religioso era a única via de preparo intelectual (p.24). No contexto do Brasil-colônia, mesmo os que não quisessem continuar na vida religiosa só tinham como opção o ensinamento jesuíta. Apenas a partir da reforma pombalina e da expulsão dos jesuítas, em 1759, passou-se a ter outra alternativa que seria de: (...) Transformar o Brasil, enquanto colônia, na nova ordem pretendida por Portugal, que era de se tornar numa metrópole capitalista a exemplo do que já vinha acontecendo com a Inglaterra. Assim o sistema educacional brasileiro deveria por sua vez, sofrer modificações, que implicaria na formação de uma elite colonizada (masculina e branca) para se tornar mais eficiente na defesa dos interesses da ordem dominante pretendida em Portugal (Ribeiro, 2003, p. 34). Ainda sobre essa questão, mas focando especificamente na educação rural, Leite (2002) esclarece que: Já no final do império, um número significativo de ordens religiosas instalou escolas nas principais províncias, permitindo a escolarização das classes médias e inferiores do meio urbano. No que se refere ao meio rural, o processo escolar continuou descontínuo e desordenado, como sempre fora. Naquela época, como se sabe, toda economia agrícola estava apoiada no trabalho escravo e nos grandes latifúndios. Essa situação educacional persiste e “não é de se estranhar que a organização escolar brasileira apresente ainda na primeira metade do século XX graves problemas de ordem quantitativa e qualitativa.” (Ribeiro, 2003). Do ponto de vista das leis e constituições brasileiras, no tocante à educação no meio rural, observa-se o seguinte: a educação rural não foi sequer mencionada nos textos constitucionais de 1824 e 1891. Na constituição de 1824 falava-se de instrução primária gratuita para os cidadãos e escravos libertos e em 15 de outubro de 1827 teríamos a primeira lei da Educação: lei Januário Brabosa definindo a construção de 53 escolas publicas nas vilas e povoados. Em 1879 temos a criação das salas para adultos analfabetos do sexo masculino. (Silva, 2013) Na constituição de 1891, foram colocados dois dispositivos: os incisos XXXII e XXXIII do art. 179, que tratava apenas da educação escolar sem nenhuma referência maior às questões específicas inerentes à educação rural10. Somente a partir da constituição de 1934 e sob a influência de vários setores de produção agrícola do país é que se expressam os primeiros ventos da “educação rural”, cuja colocação se faz da forma seguinte: Art. 156. parágrafo único: Para a realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará, no mínimo, (20%) vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual. Sem embargo, este artigo é um dos muitos exemplos de decretos e leis editados ao longo da história da educação no Brasil que não levaria a nenhuma modificação do statu-quo no que diz respeito a mudanças qualitativas e quantitativas do processo educacional dos povos do campo (DOBEC, 2001, p.3). Para Maia (1982), o que definia realmente o movimento ruralista era o seu perfil político ideológico, muito mais que uma tomada de consciência dos problemas da educação rural. Partidários da manutenção do status-quo, ele contribuía para uma percepção falsa da contradição cidade-campo, como qualquer coisa de natural, o que contribuiu, consequentemente, para a sua perpetuação (p.6). Ainda nesta época é importante destacar dois eventos, que ocorreram durante o Estado Novo (1935 – 1945): do ponto de vista econômico, o programa denominado Marcha para o Oeste; e, no campo educacional, a realização do VIII Congresso Brasileiro de Educação (1942), realizado na cidade de Goiânia: No caso da Marcha para o Oeste o desafio das ações governamentais seria de constituir um movimento migratório, inverso a esse que começa acontecer do campo para as cidades, e povoar as imensas extensões de terras disponíveis, situadas principalmente nas regiões Norte e CentroOeste; 10 Op.cit. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, DF: 2001. 54 No caso do Oitavo Congresso de Educação o argumento principal era de se constituir uma proposta pedagógica adaptada ao meio rural, mesmo que neste contexto tenha sido definido como foco a escola primária e não a escolarização do indivíduo como um todo. (Souza & Neto, 2004, p.181). É dentro desse processo de descontinuidades da educação nacional que na década de 1950, metade da população brasileira, 50,5%, era analfabeta; na década seguinte, o Brasil contava ainda com 39,4% de analfabetos em sua população 11 (INE, 1963). E assim, na ausência de uma consciência coletiva sobre a importância de uma educação lastreada de cultura e identidade brasileiras, que vão se acumulando os problemas e criando lacunas na formação e na construção do desenvolvimento educacional do país como um todo. E é na história dessa falta de consciência coletiva que se constroem os principais implicadores da estrutura de sociedade excludente que ainda se observa, tanto com relação às populações marginalizadas nas cidades, quanto essas do meio rural. Mas ainda assim, é possível dizer que é o ideário do VIII Congresso de Educação de Goiânia em 1942, que consegue influenciar um conjunto de iniciativas para a educação brasileira a partir de então. 2.2 – Do Ruralismo Pedagógico às campanhas de educação rural: surgem as primeiras iniciativas de educação para o meio rural Alguns autores consideram que o “Ruralismo Pedagógico” surgiu como uma ideia antiga sobre educação rural, datada da segunda década do século XX, exatamente com o início do período migratório do campo para as cidades. “O objetivo maior era promover a fixação do homem do campo ao campo, a partir de um modelo de escola integrada às condições locais regionalistas” (Maia apud Leite; 2002), mas essa ideia não se esgota no decorrer da história da educação rural brasileira, sendo possível dizer que se mantém até os nossos dias. Consideramos o “Ruralismo Pedagógico” como a expressão mais adequada do pensamento das classes dirigentes sobre a forma como a educação deveria intervir no meio rural, no sentido de encontrar soluções para garantir o desenvolvimento e o 11 Instituto Nacional de Estatística, Anuário Estatístico do Brasil, ano XXIV, 1963, p.27 e 28; in: Ribeiro (2003). Casemiro dos Reis Filhos, A revolução brasileira e o ensino, 1974a. 55 progresso do campo. Alguns elementos fizeram parte dessa visão, entre os quais a fixação do homem rural ao seu meio como tentativa de estancar o êxodo rural crescente para as grandes cidades, principalmente para São Paulo. Vargas (1996) afirma que: O desejo era fazer da fixação do homem ao campo uma das prioridades deste movimento que se devia ao aumento significativo do êxodo rural e à chegada de um número considerável de pessoas sem ocupação nas cidades o que, para a classe dirigente da época esse fato passou a ser percebido como um fator de desestabilização social, favorecendo a desordem urbana tradicional. O segundo elemento se pautava na ideia de que era preciso formar mão de obra especializada para a modernização e produção dos latifúndios com vistas ao aumento de produção para exportação. Por fim, a ideia salvacionista do homem rural a partir do transplante da escola urbana para o mundo rural. Para Azevedo & Vargas (1996), isso se caracterizava pela ideia de retorno ao campo, a partir de uma visão nostálgica do colonialismo, neste caso – “ao defender as virtudes da vida campesina” – imaginário esse, que era difundido pelas altas camadas do poder político e de setores educativos. Para Leite, (2002) esse aspecto mascarava uma preocupação maior: O esvaziamento populacional das zonas rurais, enfraquecimento social e político do patriarcalismo e forte oposição ao movimento progressista urbano, isso principalmente por parte dos setores agroexportadores. Mas o ruralismo pedagógico contou também com o apoio de alguns segmentos das elites urbanas, que viam na fixação do homem no campo uma maneira de evitar a explosão de problemas sociais nos centros citadinos.” (p. 29). Assim, esse movimento não se tornou capaz de criar um modelo de reflexão sobre o problema da educação para o campo e, finalmente, não conseguiu evitar o êxodo rural nem criar um modelo de escola adequada à realidade rural brasileira. Também as iniciativas de ensino Técnico, Agrícola e Industrial, cujo desejo era de formar mão de obra técnica, ficaram em nível de ensaios, sem que nenhuma dessas iniciativas prosperasse. (Ribeiro, 2003). No contexto geral, a visão do ruralismo pedagógico, que era em princípio “urbano centrada” não se fazia não apresentar enquanto influência negativa, ao contrário, dentro dessa lógica, a pretensão seria de ajudar a “civilizar o campo”, como 56 se os cidadãos do campo precisassem se tornar sujeitos “civilizados”. Em função disso, a escola rural deveria ministrar os mesmos conteúdos da zona urbana, o que se verifica até hoje. Neste caso, “a verdadeira finalidade dessas escolas seria de transformar o homem do campo num homem de ação, ou seja, dar-lhe os predicados de quem mora na cidade” (Campos, 2003, p.7). Agindo desta maneira a visão do ruralismo pedagógico contraria uma outra visão que se estabelece nos dias atuais, essa de que o homem e a mulher do campo são seres humanos normais e dotados dos mesmos direitos e das mesmas faculdades das pessoas que moram na cidade, o que se exige é neste caso que uma educação de qualidade possa lhes garantir meios técnicos próprios e apropriados para a superação da pobreza endêmica em algumas região e a construção de uma efetiva cidadania entre todos que la habitam. Dentro da perspectiva do ruralismo pedagógico, partia-se do princípio de que o homem “caipira” não estava integrado num sistema produtivo moderno: “a tarefa da escola seria suprir essa falta de cultura, para que pudesse integrá-los no processo de modernização produtiva para o campo” (Campos, 2003, p.5). Neste contexto, para o Ruralismo Pedagógico, tudo seria “feito enquanto pressuposto de um aluno universal do qual decorreria uma mera transposição para a zona rural da escola pensada na cidade.” (Azevedo & Gomes, 1991, p. 35). Portanto, não é a escola do campo pensada enquanto tal, a partir do seu contexto e das suas necessidades e do seu modo de vida, mas uma escola baseda nos valores da cidade pensada para os povos do campo. Ainda nesse período temos a elaboração e a promulgação da Lei 4.024 (LDB, 48 a 61), na qual: Se refletia de modo nítido as contradições existentes na educação brasileira, no sentido de que a promulgação dessa lei foi condicionada às bases capitalistas, e assim se constituindo na negação da escolarização nacional, da cultura, do habitat, do trabalho e dos valores desta sociedade. Ainda segundo o autor, a lei “omitia-se claramente quanto à escola do campo”. Leite (2002). 57 2.3 – O movimento dos “pioneiros”: entre as primeiras iniciativas de educação para o campo O Movimento dos Pioneiros da educação faz parte dos primeiros surtos de educação que surgiram por volta dos anos 20, inseridos no espectro daquilo que alguns autores chamam de fase do “entusiasmo pela educação”, quando se misturaram as campanhas de educação rural, sob a luz de ideias humanistas engajadas, com os projetos de modernização conservadora do campo vislumbrados pelas elites dirigentes da época. As primeiras iniciativas de um plano que tratava a educação rural como um problema nacional apareceram em 1932, num documento assinado por 25 educadores, que ficou conhecido como Manifesto dos Pioneiros da Educação. Tal documento “propunha a reconstrução da educação do País e pedia o estabelecimento de um plano com sentido unitário e de bases científicas.” (Valente, 2001, p.47). Mas ao anunciar o plano por uma educação nova, “os pioneiros da educação” tratavam de coisas impossíveis de se realizar na época. Ainda assim, a importância do movimento foi de levantar o gosto pelas questões pedagógicas. Esse aspecto tomou uma direção mais objetiva trazendo uma base mais real nas proposições posteriores (Moreira, 1962; p.43-32), o que só se tornou possível em 1962, com a criação do Ministério da Educação e Cultura aprovado pelo Conselho Federal de Educação. Numa outra ponta de iniciativas governamentais, temos entre 1952 e 1963, a CNCR (Campanha Nacional de Educação Rural), que reforçou o “entusiasmo” geral em favor do ensino rural, já iniciado nos anos de 1920. (Leite, 2004). Esse momento atraiu também o interesse de instituições não estatais, como setores da Igreja Católica, que se integraram diretamente nas missões rurais. Ainda no que concerne às campanhas nacionais de educação rural da metade do século XX, no caso da CNCR propriamente dita e do SSR (Serviço Social Rural), ambos desenvolveram projetos para a preparação de técnicos destinados à educação de base rural e à melhoria de vida dos rurícolas, nas áreas de saúde, trabalho associativo, economia doméstica, artesanato etc. Dos projetos do CNCR surgiram a Campanha de Educação de Adultos e as Missões Rurais pela Educação de Adultos. Nesse caso, vale ressaltar que apesar de todo 58 o esforço empregado pelo CNCR para a fixação do homem do campo, o êxodo rural no Brasil iniciou-se na década de 1950, simultaneamente ao pleno funcionamento das missões, das Campanhas Rurais e dos Programas de Extensão Rural. De qualquer modo, o desenvolvimento desses programas não impediu o grande êxodo na década de 1960. (Leite, 1996 p. 37). Entre outros atores desses processos, temos os CPC (Centros Populares de Cultura) e mais tarde o MEB (Movimento de Educação de Base) que existe até hoje, mas que teve sustentação ideológica no trabalho desenvolvido pelas ligas camponesas. A partir dos anos 50, surge no Brasil uma espécie de "nova escola católica". Em 1955, 1956, e nos anos seguintes, aparece igualmente a AEC (Associação dos Educadores Católicos). Deve-se considerar que é principalmente a partir do Concílio do Vaticano II, que a Igreja Católica (sobretudo através dos movimentos da Ação Católica), vai se engajar concretamente na defesa dos interesses das classes populares. Assim, setores da Ação Católica começam a desenvolver uma participação política crescente e a hierarquia eclesiástica organiza o MEB, mas destinado a alfabetização das classes trabalhadoras e de setores pobres da população rural. 2.4 – O tecnicismo e a sua influência na educação para o meio rural no Brasil A pedagogia tecnicista/modernista chega ao Brasil também no início do século XX, com a compreensão positivista de Augusto Comte. O recorte da pedagogia tecnicista vai influenciar as visões dos dirigentes políticos e de grande parte dos intelectuais brasileiros, convencidos de que o país se desenvolveria mais rápido se a educação se apropriasse de maneira mais efetiva à técnica. A visão das elites dominantes da época era que o Estado brasileiro deveria se desenvolver sem, no entanto, perder o controle político e social. É nesse momento que se constitui a ideia do progresso baseado na coesão social inspirada no desenvolvimento industrial e tecnológico da nação para Ricci, (1999, p.2): A educação pública brasileira começa a tomar contornos efetivamente nacionais nos anos 30, com a criação do Ministério da Educação. Neste período, adotou-se o progressivismo (inspirado em Dewey, Kilpatrick, Decroly e Montessori) e uma linha tecnicista que buscava, antes de qualquer coisa, a coesão social. 59 Diz ainda o autor que o contorno dado à educação nacional como um todo “busca a formação do homem urbano, ajustando o comportamento individual ao ambiente social, afinando com as demandas do processo de industrialização em curso” (ibid). Já Saviani (1983) afirma que, seria a partir dos anos vinte, e particularmente a partir de 1930, que o entusiasmo pela educação cederia lugar ao otimismo pedagógico, no que “vai deslocar as preocupações educativas do mundo político para o mundo técnico-pedagógico”. (p. 35). A concepção tecnicista assume então a partir daí, uma dimensão tão ampla que vai se difundir mesmo nas primeiras concepções efetivas de educação rural. Nesse caso específico, estava em jogo à formação de técnicos e pesquisadores para garantir o desenvolvimento e a modernização da agricultura, particularmente da agricultura de grande porte, dentro do mesmo projeto de “modernização conservadora” para o campo. Assim, entraria a mesma escola dirigida para a formação urbana, ajustada ao homem em um ambiente social e industrializado, que se interporá na escolarização do homem rural. Se de um lado, o jovem rural, até os anos 40, tinha pouco acesso ao ensino formal, restando-lhe assumir a condição de aprendiz de agricultor na divisão do trabalho familiar, a partir desta data, por outro lado, passou a frequentar um ambiente que lhe apresentava um mundo completamente distinto do seu. (Ricci, 1999; p. 4). É a partir dessa visão que surgem as primeiras propostas de formar mão de obra técnica rural especializada para esse fim. A outra ponta desse discurso estaria em “fazer da fixação do homem do campo à terra a grande meta da escola, cujo encargo viria da transformação da mentalidade do homem da “roça.”12 Todos esses elementos advêm da chamada “Concepção Nacional Desenvolvimentista”, a partir do modelo agroexportador, cujo pensamento não mudaria as bases da continuidade da concentração de terra. Para Porto, (2003) o que “havia era a consideração de que o homem do campo estruturava a sua sustentabilidade a partir de 12 Home da “roça” - Manssano, B. (2002). In, Educação do Campo: Identidade e Políticas públicas. Brasília: Articulação Nacional Por uma Educação do Campo. 60 técnicas rudimentares, acreditando eles que os moradores da zona rural seriam incapazes de superar o seu atraso sem a ajuda dos especialistas urbanos.” Dando continuidade a essa tendência, a política oficial para a educação rural ia sendo orientada para “estimular a aquisição de conhecimentos que instrumentalizassem a melhora da produção e a adaptação do campo às estruturas de natureza econômica, sem se preocupar com a formação do aluno para o exercício da cidadania” (Calazans, 2003, p. 8; Campos, 1993, p.4). É dessa forma que se mantêm as políticas oficiais para educação rural, sem nenhuma contextualização ou referência com as diferenciações que lhes são próprias. Já em 1968 o tecnicismo assume o predomínio na educação nacional. Campos, (2003) coloca “que o tecnicismo como tendência educacional dominante do ensino no país se estabelece com o regime militar a partir da lei n°. 5.692 de 11 de agosto de 1971, quando o governo começa a assinar convênios de cooperação técnica na área pedagógica com entidades estrangeiras”, principalmente com os EUA: acordos MECUSAID e Banco Mundial. As iniciativas governamentais dos anos 70 no mundo da educação rural são todas participantes dessa visão “ruralista”. Podemos citar como exemplo o CPDA (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esse centro tinha o mesmo perfil de outros que estavam marcados pelo “projeto de modernização conservadora” sustentada pelo regime militar. O objetivo era a formação de técnicos e pesquisadores para contribuir com o desenvolvimento ou o progresso da monocultura nos grandes latifúndios. Nenhum dos centros, pelo que se pode avaliar, trazia uma visão voltada para o desenvolvimento da pequena agricultura ou para o respeito à cultura do homem camponês. A partir da visão extensionista, baseada por si no tecnicismo, “o rurícola brasileiro era tido como um indivíduo extremamente carente, que deveria ser assistido e protegido.” Essa visão ainda hoje permeia boa parte do pensamento da classe média e de dirigentes brasileiros e mesmo de militantes dos movimentos sociais. Esta se constitui num dos graves problemas que a educação do campo deverá enfrentar nas próximas décadas para desenvolver-se a partir de uma perspectiva curricular e metodológica que compreenda o homem a partir de uma perspectiva emancipatória em sua cultura, identidade, autonomia e espírito de iniciativa e cidadania. 61 Para Sérgio Leite (1996; p.36), o trabalho extensionista, já devidamente programado e preparado, “jogou contra a parede a dinâmica pedagógica dos professores rurais como algo ultrapassado e sem objetivo imediato, não considerando o que a educação formal realizara até então”. Nesse entendimento, mesmo sem os elementos constitutivos de uma prática pedagógica consistente para o meio rural, a experiência desses professores, em sua maioria leigos, poderia levar a estudos e pesquisas nas ciências da educação que compreendessem e construíssem propostas pedagógicas adequadas para o desenvolvimento de uma educação para o meio rural brasileiro desde então e a longo prazo. A falta de projetos claros que considerassem as vocações brasileiras, principalmente em relação ao campo e a agricultura familiar, não vinha apenas das classes dirigentes e da burguesia da época. Do ponto de vista político, tanto a direita quanto à esquerda cometiam o mesmo tipo de equívoco: Um ao importar os modelos europeus e em seguida o americano de desenvolvimento (a direita); Outro por apontar a agricultura familiar como “restos feudais” (a esquerda) sem lhe conferir a devida importância. No final dos anos de 1970 (ainda no regime militar) e início dos anos de 1980, período que corresponde à redemocratização progressiva da sociedade brasileira, com o aumento das pressões por democracia inclusive para a resolução dos conflitos agrários, novos perfis de pesquisa e novos modelos de educação para o meio rural começam a ser vislumbrados. Visões mais críticas começam a surgir, questionando o papel da formação e da pesquisa dirigidas para o mundo rural. A partir desse momento, a educação rural se torna objeto de novas interpretações. Outros conceitos e outras visões de campo e educação para o campo começam a ganhar espaço. Como vimos o desenvolvimento nacional compreendido de maneira vertical, dentro do modelo tecnicista, ganhou força nos anos 60 e se consolidou efetivamente a partir do início dos anos 70, dentro do regime militar. O problema da política oficial, neste período, foi adotar uma visão puramente técnica, esquecendo-se da amplitude que se requer na educação para a formação da cidadania. 62 Também aqui não se trata de negar a importância da técnica enquanto processo fundamental do desenvolvimento humano: A técnica, enquanto ligada ao fazer, está ligada ao ser humano e à sociedade; e enquanto se mantiver intacta essa ligação, tecné é tão nobre quanto o logos, inclusive porque os dois processos são mutuamente conversíveis. O que importa é a tecné não devorar o logos (e vice-versa), nem erigir-se em sua sucessora. (Mendes, 1983, p.114). Finalmente, tomando como base as constituições militares, no que diz respeito às leis, mesmo na Constituição de 1967, identifica-se a obrigatoriedade das empresas agrícolas e industriais oferecerem o ensino primário gratuito aos filhos de empregados das grandes empresas agrícolas. Não era, portanto, um ensino voltado para a educação das comunidades rurais e da agricultura familiar como um todo. Na Emenda Constitucional de 1969, constariam basicamente as mesmas normas. Assim, considerando todos os artigos, parágrafos e reformas advindas das constantes constituições promulgadas até 1988 podemos afirmar que, praticamente todas as iniciativas de leis para educação nacional foram influenciadas pelos projetos de base nacional desenvolvimentista, pelo projeto de modernização conservadora para o campo e, finalmente, pelo “ruralismo pedagógico”. Neste contexto é possível perceber que as alternativas para uma educação adequada para o campo ligando principalmente a agricultura familiar a educação não possuía nenhum sentido, permanecendo esses, esquecidos e sem nenhum projeto ou iniciativa tanto de intelectuais, quanto de governo para uma educação emancipatória no mundo rural brasileiro. 2.5 – A região do cacau e a tecniczação da educação rural O desenvolvimento estruturado na agricultura no Brasil desde do início da república e com grande avanço nas últimas décadas do século XX, desaguou no que vivenciamos hoje: um modelo excludente e desigual para o campo, no qual a concentração de terra mantém o seu prosseguimento. As consequências dessas escolhas estão sem dúvida no êxodo rural e na contínua favelização das cidades da região. No que concerne o “extensionismo e a tecniczação” da educação rural, na Zona do Cacau no Sul da Bahia, inicialmente foi fundada a CEPLAC (Comissão Executiva de Plano da Lavora Cacaueira) também na época do “regime militar”, em 1974. O objetivo 63 principal da CEPLAC era contribuir com apoio técnico e de pesquisa, com foco exclusivo na instrumentalização técnica da lavoura cacaueira. Esse foco para a educação técnico rural fazia parte também da continuidade das políticas de instrumentalização do ensino técnico e do extensionismo rural, começada no regime militar no sentido de favorecer os principais produtos agrícolas brasileiros de exportação, como o cacau, sem relação com o melhoramento da educação e da formação técnica para a agricultura familiar e sem relação com a segurança alimentar do País. Depois de implantada, a CEPLAC funda as EMARCs (Escolas Médias Agricultura do Cacau), uma em Valença e outra em Ilhéus. O objetivo principal dessas escolas era formar e fornecer mãodeobra técnica para atender as grandes fazendas da região (principalmente da lavoura cacaueira). Tudo isso, dentro da mesma perspectiva do ruralismo pedagógico e do extensionismo rural. Os estudantes eram normalmente os filhos dos fazendeiros e parte vinha das classes médias urbanas interessadas em estudo técnico para o meio rural, mas sem vinculação com a agricultura de pequeno porte. Esse tipo de política educacional para o extensionismo rural vai corroborar de maneira decisiva com o desprezo por uma educação contextualizada para o campo também na região vinculada com a agricultura familiar, levando a subnutrição de uma enorme massa camponesa, constatada na região cacaueira principalmente nas décadas de 1980 e 1990 e tocando sobrmaneira os trabalhadores rurais e pequenos produtores que vivem imersos nas lavouras de cacau. Neste contexto, a CEPLAC acompanhava o mesmo perfil do nacional desenvolvimentismo e do projeto modernização conservadora para a agricultura, preocupada com a exportação do cacau e sem nenhuma vinculação com a melhoria das condições sociais e econômicas das famílias de pequenos agricultores e trabalhadores rurais da região. O resultado de tudo isso, seria uma imigração constante de uma enorme massa de camponeses se dirigindo para viver nas cidades próximas com predominância para Ilhéus e Itabuna e uma outra parte para o centro sul principalmente São Paulo. 64 2.6 – A educação rural a partir dos anos 80 e o EDURURAL/NE As lutas pela reforma agrária e pela educação de base, além de desencadear as campanhas já observadas acima, vão também levar o governo brasileiro a estruturar uma contraposição a esses movimentos. Levando-se em consideração o ritmo insatisfatório de desenvolvimento educacional na América Latina, principalmente nas ultimas décadas do século XX, surge no Brasil um conjunto de programas assistenciais/educacionais com o objetivo de inverter os baixos índices educacionais no campo. Vamos destacar aqui o projeto que traz uma estrutura maior do ponto de vista financeiro e de intervenção na educação nacional: o EDURURAL/NE. O EDURURAL foi a maior iniciativa das elites políticas da época no sentido de reverter “o cada vez” mais intenso movimento migratório do campo e a cidade. Era no campo brasileiro como um todo e mais especificamente no campo nordestino que se encontrava e ainda se encontra nos dias atuais os piores índices sociais econômicos do País e por isso, se tornou o foco dessa iniciativa. Para Queiroz (2004, p.144), Este programa não apresentava o mesmo entusiasmo pedagógico vivido durante as campanhas de formação de adultos e consistia em promover assistência aos municípios na organização dos sistemas de ensino rural, capacitando professores, melhorando a rede física e o provimento do material didático. O programa foi concebido entre o governo brasileiro e o Banco Mundial e foi o que mais demandou tempo de negociação entre o Governo e o BM (Banco Mundial). Os primeiros registros datam de 1974, desde quando foram enviadas ao Brasil mais de 15 missões com o objetivo de realizar várias atividades, entre elas as de “preparação, reconhecimento, levantamento, discussões, análise do setor, acompanhamento” (Queiroz, 2004). Mas somente em 1980 o programa estava pronto para começar. De maneira geral e já citada por alguns autores, a relação entre o BM e o Governo brasileiro não vai permitir mudanças estruturais na ação do programa nem intervenções outras que não as já estabelecidas nos acordos firmados entre as partes, o que incomodará sobremaneira a ação dos dirigentes da educação, tanto nos estados quanto nos municípios onde o programa funcionava. 65 Como já colocado, o interesse das elites dirigentes da época estava em conter os processos migratórios. Assim, mesmo valorizando a educação informal ou permanente, o programa centrava-se na educação formal de primeiro grau; sua finalidade primordial era dar apoio administrativo aos municípios na gerência da educação básica rural. Entretanto os registros de vários autores nas análises sobre esse programa de educação e as formas do financiamento para a EDURURAL/NE dão conta de um montante de empréstimos na ordem de 32 milhões de dólares, que correspondia a 35% do valor financiado; a contrapartida do Brasil nesse empréstimo seria de 59,4 milhões, que representava 65% do custo restante. Para Queiroz (2004, p.151), isso reforçava o questionamento dos técnicos brasileiros de que a União tinha elevados encargos financeiros e de que o governo poderia promover estratégias envolvendo menor custo, mas que respondessem pelas demandas do ensino rural. Todavia, os empréstimos implicam na imposição de condicionalidades. O que se vê, no entanto, é a entrada do BM na agenda educacional do país, por conta da submissão do governo às condições impostas pelo Banco. Fonseca (1998) coloca que a ênfase no aspecto financeiro submete as reformas na área educacional aos critérios gerenciais e de eficiência, os quais tocam mais a periferia do que o centro dos problemas, isto é, incidem muito mais sobre a quantificação dos insumos escolares do que sobre os fatores humanos que garantam a qualidade da educação. O que se tem é um ganho enorme para o Banco Mundial, tanto nas imposições de políticas educacionais ao país, quanto no retorno do capital, como estipulado nas seções do empréstimo a seguir: Seção 2.05 – A mutuária pagará ao Banco uma taxa de compromisso à razão de ¾ de 1% (três quartos de um por cento) por ano sobre a quantia principal do empréstimo não sacada de tempos em tempos. Seção 2.06 – A mutuária pagará juros à taxa de 8,25% (oito e um quarto por cento) por ano sobre a quantia principal do empréstimo sacada, pendente de tempos em tempos. Seção 2.07 – Os juros e outros encargos serão pagáveis semestralmente em 1 (hum) de maio de 1 (hum) de novembro de cada ano (Queiroz, 2004). Não há, dessa forma, uma contribuição efetiva, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista da sua compreensão sobre o que fazer na educação 66 rural. O que se vê é a anulação da sociedade local e a desconsideração da educação nacional, na medida em que se reduz a autonomia dos Estados e Municípios em executar eficientemente as ações predeterminadas por um centro externo de poder. Naquilo que nos interessa do ponto de vista da evolução da educação rural no Brasil, é possível afirmar que não é a partir desse programa que a educação rural brasileira ganhará forma, força, conteúdo e competência para mudar a sua estrutura em termos pedagógicos em relação aos povos do campo. Tratava-se, na verdade, de uma iniciativa que não levava em consideração as reais necessidades dos povos da zona rural em seu cotidiano. Queiroz (2004) & Fonseca (1998) afirmam, dentro da mesma compreensão, que em lugar de gerar mudanças estruturais na educação, o desenvolvimento de alguns fatores convencionais se constituiu em mais um reforço ao funcionamento rotineiro do processo escolar do que propriamente numa mudança educacional. Nesse caso, é preciso salientar que não havia a participação da sociedade e dos principais interessados na construção e organização deste programa. A sua implementação vai gerar inúmeras controvérsias entre os seus executores e as autoridades locais. Mas nem tudo pode ser considerado de forma negativa: a imposição na aplicação do programa conforme os interesses do Banco, levando em consideração “a racionalidade voltada para o desenvolvimento institucional (modelos de gestão e organização)” (Queiroz, 2004; p.156), baseada nos critérios gerenciais e de eficiência, sem a flexibilização na utilização dos recursos, vai de encontro às práticas rotineiras dos dirigentes políticos nos estados e municípios participantes do programa.13 Os líderes locais, acostumados ao sistema de barganha e apadrinhamento, não ficam nada satisfeitos, pois era comum entre os dirigentes da educação interferirem e mesmo transferirem os recursos de uma determinada meta para outra (ibid). 13 Inicialmente são 284, escolhidos mediante processo de seleção. O percentual dos beneficiados correspondia a 16% do total da população e 21% da população rural do nordeste na época. Segundo Queiroz (2004, p. 161), de fato, o programa se concentrou em 400 municípios dos estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí (MEC-Brasil, 1989). 67 2.7 – A LDB/96 e o recorte da DOBEC/02 14: abrindo novas possibilidades Com o fim da “ditadura militar” e início do processo de redemocratização da sociedade brasileira, surge a necessidade de uma nova constituição, com a função de superar as contradições anteriores e apontar os rumos para uma nação que se pretendia, a partir de então, democrática e participativa. Essa constituição é promulgada em 1988. Seria então, a partir das reflexões ocorridas sobre a educação brasileira na efetivação da Constituição de 1988 (fim da era militar) que mais tarde aconteceria a aprovação da Lei 9.394, de 20 em dezembro de 1996, que ficou conhecida como LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Para Leite (2002), será na LDB/96 que as grandes metas da educação nacional se estabelecerão e abrirão novos procedimentos, no intuito de adequar o projeto institucional às escolas do campo. A promulgação da LDB/96 promove a desvinculação da educação rural das formas de compreender e planejar a educação urbana. Porém é preciso observar que não necessariamente na promulgação dessa lei é que se encontrarão os princípios e bases de uma política nacional de educação campesina. Alguns pontos-chave da LDB são tomados aqui para exemplificar as novas possibilidades. O art. 1 § 2° coloca que a “educação deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” a partir da necessidade de formação tecnológica e profissional (caso das escolas em alternância). O art. 28 § 2° diz: O ensino fundamental será de responsabilidade dos municípios, em princípio [...], podendo, neste caso, contar com um calendário próprio, adequando-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta lei (LDB, 1996). Essa nova lei passa reconhecer a necessidade de construir práticas educativas alternativas que deem conta do modo de vida, das especificidades das regiões e da diversidade cultural dos povos; permite ainda levar em consideração os contextos 14LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira Lei 9.349/96; DOBEC – Diretrizes e Bases para as Escolas do Campo 2002. 68 econômicos do ponto de vista agrícola (caso das colheitas cíclicas) e climáticos (caso de regiões com imensa quantidade de chuvas, alagamento etc.). Isso, de certo modo, abre espaços para os procedimentos metodológicos das escolas em regime de alternância. Ainda no artigo 28, encontramos os elementos que tratam das adaptações necessárias à estrutura curricular e às exigências das unidades escolares instaladas na zona rural. É a efetivação da educação nacional enquanto “direito de todos”, definindo novas bases para esses novos modelos educativos, levando em consideração as diversidades e os modos de vida variados que existem no Brasil rural contemporâneo. Sem dúvida, é a partir do advento da LDB/96 que encontraremos o conjunto de dispositivos que vão enunciar uma nova possibilidade de fazer educação brasileira como um todo, principalmente naquilo que concerne ao direito à “educação para todos”. No tocante às populações marginalizadas, essas passam, a partir desse momento, a ver seus direitos anunciados. Porém, levando-se em conta toda a história de esquecimento e distanciamento vividos pela escola e pela educação rural, todas as mudanças importantes implementadas a partir da Lei de Diretrizes e Bases/96 não garantiria, da “noite para o dia”, as mudanças ensejadas. Dessa maneira, mesmo se as leis em curso, aprovadas principalmente na última década, apontam para um novo futuro em relação à educação do campo, os problemas ainda continuam os mesmos. Ainda que a LDB/1996 por si só abrisse espaço para refletir e agir dentro de uma nova perspectiva para educação não urbanocêntrica, seria necessário construir proposições mais específicas que aprofundassem do ponto de vista metodológico e curricular, as formas de se construir uma nova ação educativa para povos não citadinos da nação como um todo. Dessa ideia nasceu a DOBEC/02 (Diretrizes Operacionais para Educação Básica para as Escolas do Campo). Ela começa por reconhecer “a ausência de uma consciência a respeito do valor da educação no processo de constituição da cidadania” nacional para, em seguida, reafirmar que “ao lado das técnicas arcaicas do cultivo que não exigiam dos trabalhadores rurais nenhuma preparação, nem mesmo a alfabetização, isso vai contribuir para a ausência de uma proposta de educação voltada aos interesses dos camponeses” (DOBEC, 2002). Do ponto de vista histórico, a DOBEC/02 entende que a educação e, consequentemente, a “demanda escolar que se vai constituindo, é predominantemente 69 oriunda das chamadas classes médias emergentes (no Brasil) que identificam, na educação escolar, um fator de ascensão social e de ingresso nas ocupações do embrionário processo de industrialização”. Essa demanda aconteceu nos núcleos urbanos, principalmente nas últimas décadas do último milênio, sem levar em consideração a importância da educação para a construção da cidadania de todos. Em outras palavras, ocorreu na sociedade brasileira também nas últimas décadas do século XX, um fenômeno ligando a importância geral da educação com a melhoria da condição social e econômica, mas ainda assim, não havia uma consciência coletiva de que essa educação deveria agregar o conjunto da sociedade, inclusive o mundo rural. Outra observação feita pela DOBEC/2002 é de que a introdução do tema educação rural no ordenamento jurídico remete às primeiras décadas do século XX, incorporando, no período, o intenso debate que se processava no seio da sociedade a respeito da importância da educação para conter o movimento migratório e elevar a produtividade no campo. Porém, as formas utilizadas pelo governo brasileiro para diminuir o movimento migratório, principalmente no campo da educação, não deram resultados satisfatórios, já que a grande maioria das propostas nada trouxe de concreto nas redefinições de políticas públicas alicerçadas com as demandas concretas dessa população. Um dos elementos positivos de destaque na ODBEC/02 está no fato de ela ter sido concebida a partir do debate natural envolvendo o conjunto da sociedade, principalmente os setores interessados em ver uma proposta pedagógica coerente com as demandas dos camponeses no Brasil. Ela em si representa esse conjunto de percepções e experiências. 2.8 – Os Movimentos Sociais construindo novas práticas de educação para o campo A partir da forte penúria e da carência de escolas na zona rural é que nascem as primeiras iniciativas ligadas às necessidades de se ter uma educação adequada para o campo. Os primeiros movimentos são, sem dúvidas, os ligados à Igreja Católica, como a “Pastoral da Terra”, que percebe a enorme carência de escolas no campo brasileiro. 70 Os movimentos de luta pela terra inicialmente não se dão conta de que a pauta da reforma agrária não deveria incluir exclusivamente a posse da terra, mas que outros elementos estariam estritamente ligados à vida no campo, como o direito de se desenvolver (com tecnologias e implementos agrícolas) e o direito de ter educação adequada aos seus modos de vida. Nesse sentido, os movimentos de luta pela reforma agrária, após anos (principalmente o MST e as ONGs que prestavam assessoria a esses movimentos), compreenderam e alargaram também as suas reivindicações na direção das atividades educativas. Ainda que tais objetivos não tenham se concretizado totalmente, é possível observar uma quantidade considerável de iniciativas na área de educação para o campo, que vem paulatinamente se firmando, além, é claro, das aprovações das leis e resoluções (LDB/DOBEC etc.) que abrem caminhos nessa direção. Um primeiro momento que revela a importância da problemática educacional para o campo seria o Encontro Nacional dos Educadores/as da Reforma Agrária (I ENERAs – 1988). Esse encontro foi articulado pelos movimentos sociais e sindicais do campo – entre eles o MST, CONTAG e a CPT15, com apoio da UNICEF e da UnB Universidade de Brasília – Em verdade, se tornou o primeiro fórum de debates sobre educação do campo, mais precisamente em áreas de reforma agrária. Esse primeiro encontro e a sua continuidade ainda nos dias atuais foram apoiados por diversas ONGs, por organismos ligados à Igreja Católica (CNBB-CPT), por protestantes históricos (a exemplo dos Luteranos) e mesmo organismos internacionais ligados à ONU, como é o caso da FAO, UNESCO e UNICEF. Muitas experiências alternativas foram sendo descobertas e trazidas a público a partir desses espaços de debates: as experiências do MAB (Movimento dos Atingidos pelas Barragens); as experiências do próprio MST, com as escolas de assentamentos e as escolas itinerantes que se fazem presentes nos acampamentos; a experiência do MOC-RESAB (Movimento de Organização Comunitária), mais engajado na solução das populações rurais do semiárido e sertão, principalmente nas regiões do entorno do Município de Feira de Santana, na Bahia; as experiências do MEB (Movimento de Educação de Base), ligado também à CNBB, muito importante na década de 1960 e 15 MST: Movimento dos Sem Terra; CPT: Comissão Pastoral da Terra ; CONTAG: Confederação Nacional da Agricultura. 71 1970, influenciado pelo “Método Paulo Freire” e que, ainda hoje, continua desenvolvendo atividades junto aos povos da floresta, com a proposta de alfabetização de adultos, tanto no Norte quanto no Nordeste brasileiro. Como se vê, os próprios movimentos sociais e sindicais do campo que lutam pela posse da terra e trabalham processos permanentes de educação popular não formal, por meio de encontros, conferências, debates, fóruns, marchas, romarias e cursos de capacitação para os camponeses/as, apresentaram propostas de educação que têm funcionado em algumas localidades, mas sem uma efetivação mais geral tanto do ponto de vista pedagógico/metodológico quanto do seu alcance para uma educação de qualidade no Brasil como um todo. Com esses encontros surgiu a ideia de formar uma equipe de articulação nacional que viesse a envolver as várias entidades ligadas à luta pela Reforma Agrária que, também, pensassem uma conferência onde as discussões girariam em torno da educação do campo (Nascimento, 2002). Surge assim a “Articulação Nacional por uma Educação Básica do Campo,” tendo como entidades promotoras a CNBB, o MST, a UNICEF, a UNESCO e a UnB através do Grupo de Trabalho e Apoio à Reforma Agrária (GTRA). Realizou-se, em 1998, a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, na cidade de Luziânia – Estado de Goiás. Ao longo desses últimos anos o movimento foi se alargando e muitas conferências já foram realizadas, além de encontros setoriais com vistas à continuidade dos trabalhos no sentido de reverter a realidade em que se encontra a educação básica para o campo hoje. Esses encontros e conferências têm sido espaços para se pensar e refletir sobre as práticas, as conquistas, os limites e os avanços no entorno desse tema. A partir dessa nova compreensão é que chega o PRONERA (Programa Nacional de Educação em Áreas de Assentamento), estruturado enquanto programa para o caso particular da educação no campo ou no meio rural, proposto a partir de 1998 pelo MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário). Esse programa já é o resultado do acúmulo desses processos de reivindicações, de lutas e pressões dos diversos movimentos sociais do campo em relação à educação destinada ao meio rural, principalmente para o caso dos assentamentos. Em princípio teve-se a ideia da Formação Básica para o povo do campo. Porém, em mais uma reflexão dos movimentos sociais do campo (MST, principalmente), 72 percebeu-se que a Educação Básica e a alfabetização, como estavam constituídas nas primeiras reivindicações, não seriam suficientes, pois cairiam na mesma ingenuidade do preconceito de que para o homem do campo bastariam “poucas letras 16”. Então seria preciso ir mais longe e garantir a todos o igual direito de ter educação plena, para que, assim, se conseguisse avançar na liberação e emancipação desses sujeitos. Abaixo destacamos os principais recortes institucionais que organizam e estruturam essas novas perspectivas vislumbradas pelos movimentos sociais do campo, partindo das aberturas colocadas na LDB/96: Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo (Resolução CNE/CEB nº 1 de 03 de abril de 2002); Parecer CNE/CEB Nº 1/2006 sobre a Pedagogia da Alternância; Diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo (Resolução CNE/CEB nº 2 de 28 de abril de 2008). No caso específico da Bahia, considero que uma das primeiras iniciativas que merece destaque, nesse contexto, foi tomada pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia). Foi essa instituição que há muito tempo compreendeu a importância da pedagogia da alternância e como se estrutura o próprio conceito de “educação para o campo”, organizando vários encontros e seminários para discutir o tema. Assim a UNEB abraçou, de forma bastante plausível, os processos de construção e reflexão sobre essa modalidade de educação para o meio rural. Um primeiro momento se deu com o programa “UNEB 2002”, cujo foco estaria em conseguir a formação de docentes de acordo com a LDB/96, DOBEC e com os Movimentos Sociais engajados. Para N. Neide (2002), “a solução deste problema seria uma questão de honra urgente, diante da crescente demanda cada vez maior de escolas e a necessidade de atualização dos currículos escolares”. Nesse caso é preciso advertir que há uma enorme quantidade de docentes que atuam na educação básica sem qualificação necessária e adequada, exigida hoje por lei, que precisa atualizar os seus métodos pedagógicos. 16 Frase bastante conhecida do povo brasileiro, que significa que as pessoas que vivem no meio rural, não precisam estudar muito, já que, segundo esse imaginário, não precisarão de grandes conhecimentos para sobreviver na terra. 73 Em seguida e partindo da experiência acumulada pelos setores interessados da UNEB, essa Universidade aceitou a parceria com a AECOFABA (Associação das Escolas e das Comunidades das Escolas Famílias Agrícolas da Bahia) e a REFAISA (Rede de Escolas Famílias Agrícolas Integradas do Semiárido). Foi assim que se tornou possível a realização dos cursos de licenciatura em Letras, Matemática, História, Geografia e Biologia para qualificar professores que atuam nas trinata e três Escolas Famílias Agrícolas da Bahia, no sentido de capacitá-los a desempenhar, com qualidade, sua função educativa profissional. Mais tarde, seria elaborado o projeto de Curso de Graduação Plena para Professores em Exercício. Hoje não apenas a UNEB, mas a UFBA e praticamente todas as universidades públicas da Bahia têm demonstrado interesse em trabalhar com os movimentos sociais, no sentido de buscar soluções para a educação do campo. Como podemos notar, as iniciativas de construção de uma educação de qualidade para o campo brasileiro não tinham um fundamento apropriado, não havia clareza quanto as questões fundamentais para a mudança de vida e construção da cidadania da mulher e do homem do campo brasileiro. Assim, é possível perceber que somente com a chega e tomada de consciência dos movimentos sociais é que novos caminhos começam a se delinear, desembocando na atual LDB e construindo mais especificamente a as DOBECs. A partir daí sim, passa a ser possível pensar numa educação verdadeiramente adequada para o homem e a mulher do campo brasileiro. 74 75 CAPÍTULO III 76 3. – Os conceitos pertinentes da tese (primeira parte) O objetivo deste capítulo é compreender as teorias e conceitos que cercam até nossos dias a educação rural ou do “campo” no sentido de satisfazer dois elementos: primeiro, fornecer pistas necessárias para a construção de categorias e questões de pesquisa específicas sobre a educação para o campo no Brasil e na Região do Cacau na Bahia; segundo, inscrever tais teorias e conceitos enquanto elementos significativos para a educação e o desenvolvimento do campo, no sentido de contribuir para a reflexão e evolução científica do tema. 3.1 – Por uma compreensão de desenvolvimento para o campo Nas reflexões de Sen (1999: p.7), o desenvolvimento é compreendido de tal maneira, que exigiria a supressão dos principais fatores que se opõem às liberdades humanas. Esses fatores estão de uma maneira geral presentes nas comunidades rurais da região do cacau na Bahia. Assim, tanto a pobreza, como a ausência de oportunidade econômica; as condições precárias e mesmo a inexistência de serviços públicos são barreiras que impedem a elevação do nível socioeconômico reverberando na qualidade de vida das pessoas de uma comunidade ou um território. Esse aspecto é comum em boa parte das comunidades rurais brasileira, principalmente onde a população local compõese de grupos “marginalizados” como esses da agricultura familiar. A perspectiva de desenvolvimento que nos parece a mais apropriada para essas populações é aquela que procura reconhecer a importância da qualidade de vida dessas famílias e dos indivíduos como estrutura de base para se ter uma vida sã e equilibrada no seu ambiente. A partir daí a nossa primeira compreensão no que concerne o tema “desenvolvimento” é a de que ele não pode ser pensado apenas como uma simples medida quantitativa dada por indicadores socioficiais. As medidas sócio-quantitativas de indicadores oficiais podem quando muito, contribuir para compreender a problemática que cerca ou impede, por exemplo, o não desenvolvimento. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ataca problema do não desenvolvimento desde os anos de 1990, período no qual, com o trabalho sobre desenvolvimento humano, um consenso foi progressivamente se 77 estabelecendo: o desenvolvimento não poderia ser medido unicamente em termos de crescimento econômico. Neste sentido seria necessário considerar o desenvolvimento como um processo complexo e multidimensional resultante da combinação de suas variáveis intrínsecas: (1) desenvolvimento sustentável; (2) modificação das estruturas sociais e econômicas; (3) progresso tecnológico; (4) modernização social, política e institucional; (5) melhoramento global do nível de vida da população. (Aldelman, 2000). No caso dos Objetivos do Milênio (2000), percebe-se que o desenvolvimento deve antes, ser compreendido enquanto superação de todas as formas de não liberdades, que restringem a escolha das pessoas, reduzindo a suas possibilidades de agir. Assim, aparece a insuficiência de rendas, a onipresença da fome, as desigualdades entre homens e mulheres, e a degradação ambiental enquanto problemática do não desenvolvimento geral de pessoas e comunidades, que precisam se superadas para garantir a elevação do nível de vida de todos. Para o caso desta tese em princípio, o desenvolvimento deve ser concebido de maneira complexa: precisando de um nível de auto-organização que equilibraria os processos intrínsecos (endógenos e exógenos), garantindo mecanismos para superar as dificuldades que se apresentam cotidianamente nas comunidades tocadas pelo não desenvolvimento. Levando-se em conta esse tipo de atitude, a educação pode ser considerada como parceira fundamental, no sentido de que é ela que tem a capacidade de veicular e garantir a partir de ensinamentos e metodologias adequadas ao contexto, os conhecimentos necessários capazes de articular o desenvolvimento (técnico, científico, cidadão) das pessoas e das comunidades envolvidas. Neste caso, a escola e a comunidade, o conhecimento escolar e o conhecimento comunitário, construiriam de maneira conjunta as saídas para a superação dos fatores que se opõem ao seu desenvolvimento. 3.1.1 – O mito da urbanização e os desafios da ruralidade contínua no mundo contemporâneo Segundo a FAO (2002), aquilo que podemos considerar como zona rural deve responder a dois critérios: um está ligado ao modelo de residência e o modelo de estabelecimento; o outro, com o tipo de trabalho do qual participam as residências. 78 Primeiramente, a zona rural é composta geralmente por espaços de zonas abertas com baixas densidades estabelecidas, uma proporção importante de espaços não colonizados e/ou onde os espaços utilizados são diretamente a produção primária (minas, agricultura, criação, florestas, pesca). Segundo, as residências da zona rural são majoritariamente dependentes – direta ou indiretamente – de suas atividades de produção primária, que se constituem em seu principal meio de subsistência, se não o único (FAO, apud Atchoarena & Sedel, 2005, p. 41). Trevisan (2003), numa reflexão sobre o rural, afirma: As transformações sociais, especialmente na área tecnológica, e a expansão dos serviços, especialmente de energia elétrica, comunicação e transportes que vêm se produzindo no setor produtivo e na oferta de serviços em áreas rurais, podem chegar a tal ponto que colocaria em xeque onde efetivamente começa o rural e onde termina o urbano e quais as reais diferenças entre eles (p.02). Mas Atchoarena & Sedel (2005) acreditam que: Persistir em ignorar o desenvolvimento rural pode igualmente conduzir a toda uma série de outros problemas que riscam de comprometer a realização de objetivos para o desenvolvimento nacional. Tais problemas incluiriam o analfabetismo, a expansão do HIV/SIDA e de outras doenças endêmicas, como também o crescimento da migração “laisséspour-compte” nas direções das zonas urbanas. Isso pode, por sua vez, conduzir a um desenvolvimento torpe e agravar o subemprego informal, o distanciamento da família, a alienação social, a criminalidade (compreendido também, estas ligadas as drogas), as disparidades salariais, a alienação política e a violência anti-estado organizada, como é o caso no Brasil criando uma necessidade de proteção policial reforçada e provocando um aumento de custos do controle de poluição, de higiene, de saúde, etc. (p. 51). No que concerne ao conceito de ruralidade ou campo, as DOBECs (2000) apresentam a questão da seguinte forma: O rural tem uma significação que incorpora os aspectos da floresta, da criação, da agricultura, mas que engloba também a piscicultura. O rural « campo », neste contexto, mais que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamiza a ligação entre os seres humanos, a produção de condições de existência social e as realizações da sociedade humana. 79 É a partir do momento da chegada das DOBECs, que a compreensão do rural deixa de se identificar com o tom nostálgico de um passado rural do “Jeca Tatu”, como foi largamente expresso em parte da literatura brasileira. Todavia sobre a ideia de ignorar o campo e a ruralidade contemporânea, Mansano (2004), no artigo “Educação no meio rural por uma escola do campo”, adverte: Para o século XXI, no princípio da terceira década, as estimativas indicam que mais de 60% da população mundial irá concentrar-se nas cidades. Todavia, ainda viverão no campo pelo menos 3,2 bilhões de pessoas, das quais 3 bilhões serão das regiões mais pobres do planeta. A América Latina terá uma população rural estimada em 108 milhões de habitantes. O Brasil contará aproximadamente com 27 milhões de pessoas vivendo no campo, ou seja, aproximadamente a mesma população de um século atrás. Isso é, tomando como referência a perspectiva linear. Todavia, é preciso considerar os fatos recentes, como por exemplo, a intensa diminuição da migração campo – cidade; a contagem populacional de 1995 registrou que o crescimento populacional das metrópoles já é predominantemente vegetativo; o desemprego estrutural na cidade e no campo; a geração de condições de vida e trabalho com a reforma agrária vem crescendo progressivamente etc. Neste sentido, a previsão histórica de que o processo de industrialização eliminaria o campesinato é cada vez mais questionável e perigosa frente à realidade que se forma (p.01). Outro dado que nos impressiona sobre a importância da agricultura familiar no Brasil é discutido por Veiga (2002). Segundo esse autor, a população brasileira soma mais de 35% de pessoas ligadas ao campo. O PIB brasileiro tem uma fatia de 32% de produtos agrícolas, e 39% das exportações vêm de produtos do agronegócio. Todavia, 83% dos pequenos agricultores não têm nenhuma educação formal. Aqui se percebe o paradoxo entre a importância da produção da agricultura familiar no Brasil e a forma como ela é tratada principalmente, no campo da educação. 3.1.2 – A educação no caso do desenvolvimento agrícola O estudo de Lockheed, Jamison & Lau (apud Malasis, 1980), sempre citados, examina o resultado de 37 questionários consagrados às relações entre educação e a produtividade agrícola em 13 países em desenvolvimento, dos quais 10 são asiáticos. Todos os questionários mostraram que a instrução de proprietários agrícolas tem um impacto positivo sobre a produtividade. Segundo esses resultados, a produtividade 80 agrícola é, em média, 7,4% mais elevada para um proprietário agrícola que seguiu quatro anos de estudos elementares. Esse efeito é mais marcante em ambientes em vias de modernização que num ambiente tradicional. Na relação entre desenvolvimento e educação é preciso observar que nas zonas rurais de países com fraco poder de compra, o problema do acesso à educação, e a educação de qualidade é agudo (caso da zona rural cacaueira). Essa situação revela o enorme desafio que implica na adoção de uma visão mais global de um projeto de educação, que garanta o desenvolvimento de todos. Atchoarena & Gasperini (2005, p. 33) dizem que não existe atualmente solução única para a atenuação da pobreza no meio rural, mas que para alavancar o desenvolvimento é possível considerar que a educação e a formação nas zonas rurais se constituem em elementos cruciais. Uma atenção particular também deve ser dada ao crescimento de empregos não agrícolas nas zonas rurais e à necessidade de alargar o campo das políticas gerais do ensino e da formação não agrícola da formação técnica e profissional para o desenvolvimento rural. Portanto a escola e a educação dos povos que vivem no meio rural não precisariam segundo essa lógica, de uma âncora fixada apenas no desenvolvimento de habilidades agrícolas, elas podem e devem ter uma visão muito mais contextualizada e globalizante, sem a necessidade de imposição dos jovens do meio rural na sua fixação a ele. Fica aqueles que se identificam e querem ficar. Para Atchoarena & Gasperini, (2005 p. 35-37) “o desenvolvimento rural engloba a agricultura, a segurança alimentar, a educação, as infraestruturas, a saúde, o desenvolvimento das capacidades para os empregos não agrícolas, as instituições rurais e as necessidades dos grupos vulneráveis”. Assim para eles, o crescimento deve ser obtido na equidade e os povos rurais têm necessidade de se capacitarem para participarem do mercado de trabalho e da sociedade (Atchoarena & Gasperini, 2005, p. 33). A análise do sistema de educação rural só pode ser significativa se focalizada em relação ao processo de desenvolvimento e ao sistema global de educação (o que sustenta o nosso projeto). Já em 1979, Malassis colocava a educação enquanto categoria histórica e ligada a um contexto global. Para ele, a revisão dos programas das escolas rurais ou a localização das escolas de agricultura no campo não têm o dom de resolver o problema 81 do êxodo rural. O desenvolvimento da educação rural deve se dar paralelamente à transformação estrutural da agricultura. No que concerne à relação entre o “desenvolvimento e a educação” propriamente dita, é preciso destacar as novas teorias de educação emancipatória, com o mesmo sentido de liberação humana proposto por Freire, em que a pessoa age como sujeito que colabora com a sua própria educação (Anbrosio, 2002). Assim, é possível falar em desenvolvimento e educação de maneira equilibrada, pois a construção dos saberes se torna necessariamente a construção de conhecimentos próprios e apropriados aos modos de vida e de cultura dos sujeitos presentes num dado contexto, numa aliança dialógica entre o conhecimento teórico e o prático, entre a ciência e o sendo comum, entre o particular e o universal. Nesse caso, procurando compreender o desenvolvimento e a educação de maneira complexa, a partir de experiências de projetos de educação e desenvolvimento que florescem pelo meio rural no Brasil, como esses dos CEFFAs, dentro de uma perspectiva de emancipação dos sujeitos/indivíduos e de suas comunidades, na busca do empoderamento de todos refutando preconceitos e a baixa autoestima muito presentes entre homens e mulheres do meio rural brasileiro. Em princípio que o desenvolvimento rural não é autônomo, mas sim fortemente determinado pelo processo global de desenvolvimento, principalmente quando da necessidade de alicerçar-se à ciência e à tecnologia. Na nossa tese esses elementos só podem ser concebidos, veiculados e multiplicados via o processo educacional, os alunos são atores e ao mesmo tempo são multiplicadores. Freire (1974), por exemplo, quando trata da questão do subdesenvolvimento, fala da “situação limite” que, segundo seu ponto de vista, está ligada ao problema da dependência. Essa situação de dependência é, para ele, a característica principal do “terceiro mundo”, uma situação que precisa ser imperativamente ultrapassada. No tocante às compreensões de Sen (1999) e ao desejo do PNUD, se insere aqui, o desenvolvimento enquanto categoria a partir de uma relação intrínseca com educação, numa perspectiva stricto-senso do desenvolvimento e da educação compreendida como tal, enquanto liberação humana em sua plenitude. Nesse caso, reconhecem-se os benefícios fundamentais da ciência e da tecnologia enquanto categorias estruturantes do desenvolvimento econômico a priori. Essas categorias não podem e não devem ser 82 negligenciadas, já que do ponto de vista dos fins dos processos educativos elas são fundamentais para a liberação humana, principalmente em zonas rurais periféricas onde sua ausência causa sérios problemas ao desenvolvimento local. O outro aspecto estaria em retornar, a relação propriamente dita, entre a educação e as noções de valores: aí entraria a eticidade do desenvolvimento, neste caso, enquanto norteadora das formas de pensar e interagir do homem com a natureza. Esses fundamentos entram como componente essencial no processo de formação e educação, ou seja, alicerça-se por um lado, a importância da ciência e da tecnologia e por outro a importância da formação humana para o desenvolvimento. Existe, a nosso ver, uma armadilha ao pensar o desenvolvimento apenas como estrutura técnica ligada à economia, ou pensá-lo apenas enquanto superação da miserabilidade existente em comunidades diversas. Freire (1987) comenta que: O tema do desenvolvimento, por exemplo, ainda que situado no domínio da economia, não lhe é exclusivo. Receberia, assim, o enfoque da sociologia, da antropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do câmbio cultural, na mudança de atitudes, nos valores que interessam, igualmente, a uma filosofia do desenvolvimento (p.135). Desta maneira, o desenvolvimento tem um sentido mais alargado e reduzi-lo ao avanço de técnicas agrícolas ou a estatísticas básicas que se fazem para o campo seria um erro inaceitável. Desenvolver não deve significar apenas uma medida numérica, pois essa visão limita o papel das escolas do campo em seu processo de formação. O desenvolvimento deve ser entendido como um processo que envolve todas as capacidades humanas dentro de uma visão complexa e totalizante do conceito de educar. As escolas são os vetores desses processos de mudanças de atitudes para o desenvolvimento local, mas abarcadas na plenitude do ato educativo e não em sua redução conceitual. Para o PNUD (2001), “a escola do campo deve ser necessariamente o elemento principal que guia os indivíduos para a resolução dos problemas teóricos e práticos do seu dia-a-dia, principalmente os ligados a falta de condição de vida adequada”. Mas é preciso observar, ao mesmo tempo, que uma escola para o campo não pode tomar os seus alunos (multiplicadores) enquanto instrumentos da técnica, mas enquanto sujeitos construtores de conhecimentos que liga a liberdade e o desenvolvimento pleno dos sujeitos e das comunidades. 83 3.1.3 – Desenvolvimento, educação e sustentabilidade para o campo Uma parte importante dos atores que se preocupam com a educação no meio rural consideram que um dos papéis da educação do campo, seria de construir o desenvolvimento a partir de uma perspectiva complexa que envolva a sustentabilidade de comunidades a longo prazo. Uma primeira compreensão nos fala de sustentabilidade como “a manutenção de um esforço contínuo, a partir da capacidade de durar, a fim de impedir a entropia” (Stepacher, 2006). O que isso significa para a agricultura e a educação rural? Significa que os conhecimentos produzidos pela escola rural deveriam possuir a capacidade de garantir a permanência da produtividade e manter, ao mesmo tempo, os recursos naturais, o meio ambiente em equilíbrio num sentido de continuidade para as gerações vindouras. Reijntjes (1994), do Comitê do Conselho Técnico de Pesquisa (TAC/CGIAR), afirma, por exemplo, que “a agricultura sustentável e a gestão adequada dos recursos pela agricultura deveriam ser feitas de modo a satisfazer as necessidades humanas transformando, mantendo e melhorando, ao mesmo tempo, a qualidade do meio ambiente e conservando os recursos naturais.”17 Muitas famílias de agricultores tradicionais tentaram desenvolver sistemas que garantissem suas necessidades de uma maneira equilibrada. Em revanche, existem numerosos exemplos na agricultura mundial onde sociedades agrícolas não tiveram a capacidade de se adaptar ao meio ambiente onde viviam e os levaram à degradação e mesmo à desertificação, causando o êxodo e a emigração forçada. Em numerosos países com baixo poder de compra, a capacidade de produção alimentar se degrada por conta da erosão e do solo, da penúria de água e da demografia. Essa situação conduz a uma questão chave: teremos comida para a população de mais de 8 bilhões de pessoas esperada na Terra em 2030? Com base nesta hipótese provável, segundo a qual as superfícies cultiváveis não aumentaram, parece evidente que, para alimentar todas essas bocas, a produtividade agrícola deveria aumentar em várias vezes. (Maragnani, 2000 apud Atchoarena & Sedel, 2005 p. 51). 17 Agricultura para o Futuro (Comitê de Aconselhamento Técnico do Grupo Consultivo de Pesquisa Agrícola Internacional Technical Advisory Commite e of the Consultive Groupon Iternacional Agriculture Reseach – TAC/CGIAR), 1984. 84 Na Região do Cacau, são abundantes os exemplos de degradação do solo. A derrubada de matas ciliares e a retirada de madeira, as culturas de subsistência, a monocultura e a criação de gado feita de maneira inadequada são bons exemplos. Normalmente, nessa região, é possível observar grandes espaços degradados em razão de uma má gestão dos recursos naturais, o que ocorre tanto na agricultura familiar quanto na agricultura de grande porte. A criação de espaço agrícola a partir de solos superficiais inadequados, como na maioria dos casos da região cacaueira, requer a aplicação de técnicas complexas. Se forem simples os meios técnicos do grupo que a empreende, a criação desse espaço representa, sobretudo, uma considerável soma de trabalho no momento da transformação para o estado produtivo e um acréscimo de trabalho ao simples processo de produção para a manutenção da conquista realizada (George, 1984, p.22). Neste caso, não são poucos os espaços agrícolas abandonados pela má gestão dos recursos. Também é importante reconhecer com George (1984) que, em termos técnicos e econômicos, o “tempo operacional” é imposto pelas condições naturais: “a organização do trabalho (na agricultura tropical, principalmente) pouco pode fazer para variá-lo se tornando este um trabalho descontínuo e que o sucesso dos empreendimentos agrícolas depende frequentemente da plena utilização do tempo delimitado por esses ciclos climáticos” (p.7). A incompetência em perceber os ciclos climáticos pode levar os solos a sua esterilização total, como no exemplo da citação abaixo: O centro da civilização Maya, na Guatemala, entrou em colapso, depois de um século de expansão, a causa foi o aumento da população que levaram ao desgaste do solo através da erosão. As dunas móveis da Líbia e da Argélia também são testemunhas do fracasso dos agricultores romanos no que concerne ao cultivo nesta região, que foi o celeiro que supria de comida uma boa parte do império romano (Douglas, 1994). Assim, acreditamos que a apropriação de um conceito de “desenvolvimento” aliado com a perspectiva de “sustentabilidade” na educação empreendida pelas escolas rurais para alunos oriundos de grupos que participam da agricultura familiar é fundamental e necessário, pois, a partir daí, torna-se possível pensar em autosustentabilidade a longo prazo, sem esgotar os recursos naturais disponíveis e garantindo a melhoria da qualidade de vida nas comunidades envolvidas por este processo educacional. O papel da escola, nesse aspecto, seria de conduzir os alunos a uma compreensão sobre “desenvolvimento e sustentabilidade” que respondesse às 85 necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras a satisfazerem suas próprias necessidades. Outra reflexão interessante sobre desenvolvimento sustentável é feita por Reijntjes (1994) no livro “Agricultura para o Futuro”. Ele indica quatro modos de pensar a agricultura que são, sob nosso ponto de vista, perfeitamente aplicáveis no caso das metodologias das escolas em estudo e também para o desenvolvimento dos currículos de educação ou de pedagogias para o campo como um todo, que incidem sobre uma agricultura: ecologicamente correta; economicamente viável; socialmente justa e humana e ainda culturalmente adaptável18: Ecologicamente Correta: compreender a viabilidade dos agroecosistemas inteiros – quer dizer, os homens, os animais e mesmo os microorganismos do solo devem ser tomados como uma totalidade na direção de uma compreensão holística; assim, os recursos locais são utilizados de maneira a evitar a perda de nutrientes, biomassa e energia19. Uma educação que se engaja pelo desenvolvimento sustentável deve ter a capacidade de ensinar aos alunos e às suas comunidades a preservarem a qualidade dos recursos naturais ali existentes; Economicamente Viável: mostrar que o empobrecimento da população local está ligado essencialmente ao empobrecimento da sustentabilidade dos seus sistemas de produção20; Socialmente Justa e Humana: os recursos devem ser capazes de assegurar as necessidades de base, de maneira que os atores recebam um salário correto, tendo acesso ao capital e à utilização da terra, dispondo de assistência técnica e tendo um preço equilibrado para a sua produção; Todas as pessoas devem ter a oportunidade de participar dos processos de decisão, seja no que concerne à atividade rural, seja no que diz respeito à vida em comunidade. Os valores humanos de base são: a 18 Coen, Reijntjes. Agricultura para o Futuro: uma introdução à agricultura sustentável de baixo uso de insumos externos/CoenReijntjes, BertusHaverkort, Ann Waters-Bayer. Trad.: John Cunha Comerford. – Rio de Janeiro: AS-PTA, 1994. 19 Ibid. 20 Ibid. 86 confiança, o respeito, a honestidade, a cooperação e também a integridade cultural e espiritual da sociedade; Culturalmente adaptável: uma educação para o desenvolvimento sustentável deve ser capaz de compreender que as comunidades rurais têm necessidade de se adaptar a uma agricultura em constante transformação: “o crescimento demográfico, as mudanças de políticas governamentais, as demandas do mercado”. Uma outra contribuição vem de Esambert, (1996, p.134) numa reflexão sobre o desenvolvimento sustentável a longo prazo, quando esse autor fala da dimensão ética do desenvolvimento para ele: A dimensão ética do desenvolvimento sustentável resultaria da solidariedade de inter-gerações. Responsáveis da condição das gerações futuras naquilo que se devem modificar as convicções, a percepção que nós temos de nossos semelhantes, de outras formas de vida e do planeta ele mesmo. Esta dimensão ética nos impõe um dever de respeito na direção de todas as comunidades humanas e nos engaja a se dar conta de nossos modos de desenvolvimento, das necessidades e das outras sociedades e das gerações futuras. Essa perspectiva informa para a nossa pesquisa que as escolas e as metodologias de ensino, desempenham um papel fundamental no processo de reeducação das gerações presentes, porque essa reeducação escolar traz em si também parte da responsabilidade em relação ao futuro dos ecossistemas de suas comunidades e das sociedades diversas. Nesse caso, as escolas do campo podem e devem tomar como base essa compreensão em sua totalidade e complexidade para a educação dos jovens rurais: desenvolvimento e sustentabilidade, autonomia, capacidade de adaptação, iniciativa, compreensão econômica e compreensão ambiental são elementos essenciais na formação dos jovens do meio rural. É assim que novas formas de pensar a educação devem ser capazes de incorporar saberes e necessidades locais, sem se descuidar da sua sustentabilidade a longo prazo. Neste caso, seria também papel da escola desenvolver e aprimorar esses conceitos, bem como produzir conhecimentos na direção de uma agricultura mais saudável e de um modelo econômico sustentável para as famílias rurais. 87 Pensando a esse respeito, Ensambert (1996) é bastante elucidativo no contexto educacional, quando afirma que “os jovens são os mais entusiasmados partidários e encontram aí um ideal; a força das aspirações sociais suficientes para orientar o uso das tecnologias num senso favorável ao desenvolvimento sustentável” (p. 135). Esse autor ainda indica que: A ação em favor do meio ambiente desenvolve um sentimento de solidariedade que constitui um fator de coesão [...] a força da formação educacional no meio rural tem que trazer esta capacidade de orientar os jovens alunos, a fim de garantir uma formação vis-à-vis das necessidades das comunidades numa perspectiva sustentável (p. 135). Assim, é possível afirmar que não é o trabalho no campo, a colheita, a plantação que torna difícil a educação das crianças, jovens e adultos na zona rural, mas a escola que não se concebe enquanto escola para os povos do campo e que, ao mesmo tempo, não propõe uma aprendizagem significativa e contextualizada para as pessoas que aí vivem. Isso significa dizer que o problema não se situa apenas na diferenciação do calendário e dos horários escolares como ingenuamente costumamos pensar, mas naquilo que deveria ser estabelecido em comum acordo com as comunidades rurais. Para a Professora Francisca Batista (2003): O importante é discutir a concepção de educação e sua inserção ou não a serviço de um modelo sustentável e justo de desenvolvimento. E que tal concepção se reflita no planejamento pedagógico dos sistemas de ensino e das escolas rurais de todo o país. Não se discute o papel que a educação vem exercendo no meio rural. Não se discute qual a cultura e o modelo de desenvolvimento que criaram essa educação e esta escola, e que são alimentadas por elas. Não se discute sobre os fins, os porquês, os qualitativos. Apenas sobre os meios, o como, o onde, os quantitativos (p.19). Esse problema está ligado à reprodução dos saberes nas escolas que, na sua grande maioria, estão distanciados da problemática da vida e do cotidiano dos que vivem no meio rural. 88 3.1.4 – Agroecologia: um conceito complexo e necessário à educação do campo A agroecologia é mais que um discurso modal, é uma atitude ética, na relação do homem junto à natureza em seus princípios de conservação e respeito, quanto na relação com a sustentabilidade e o meio ambiente. O avanço do enfoque agroecológico em meio às comunidades rurais muitas vezes tem contado com o papel decisivo das iniciativas de jovens inovadores das práticas de manejo dos agroecosistemas locais, do convívio social e da expressão política no sentido de inverter a lógica de mercado na direção de um desenvolvimento a longo prazo. Portanto, se aqui se trata de uma pesquisa onde os principais atores são jovens de escolas rurais, (alunos) que se tornam multiplicadores principalmente de experiências agrícolas que são difundidas no interior da escola (salas de aulas e aulas de campo), a veiculação e reflexão sobre a agroecologia, em escolas rurais numa região tropical (região do cacau), pode se tornar uma orientação necessária e um fundamento importante dos currículos e das propostas pedagógicas para essas escolas. Reijntes; Haverkort & Waters-Bayer, (1994) da revista Agricultura para o 21 futuro ressalta que na contracorrente, no que concerne o agronegócio apoiado em alto nível de consumo e de insumos externos, culturas rurais vêm sendo revalorizadas por um número crescente de movimentos sociais e por experiências práticas no campo do ensino e do desenvolvimento rural, a partir de uma visão que redimensiona a natureza e a necessidade da utilização de insumos em agricultura tropical. Muitos desses movimentos e experiências encontram, nas dinâmicas de inovação agroecológica, estímulos para o exercício de práticas e vivências que buscam incorporar as tradições culturais e atribuir um sentido inovador à noção de modernidade. Com isso, novas perspectivas econômicas e socioculturais para a inserção no mundo rural vão sendo descortinadas pelas novas gerações de agricultores, que se associam localmente em torno de projetos e de promoção de uma agricultura ecológica. 21 Agricultura para o Futuro: uma introdução à agricultura sustentável e de baixo uso de insumos externos. AS-PTA: assessoria de projetos em agricultura alternativa, 2005. Ver referencia. 89 A tese sobre “educação e desenvolvimento” em escolas rurais compreende a agroecologia como uma estrutura conceitual que não pode está ausente do ensino para as populações do meio rural em regiões tropicais. Principalmente, considerando a diversidade e complexidade da agricultura tropical, o conceito de agroecologia orienta as práticas agrícolas numa perspectiva de sustentabilidade e ecologia. Trata-se de um conceito reflexivo que permite as adaptações para cada tipo de terreno e cultura agrícola. A reflexão ou introdução da concepção agroecológica no ensino para o meio rural em regiões tropicais, teria um papel decisivo na intervenção do modo de produção agrícola, levando os jovens estudantes a uma atitude que pode ser determinante no manejo das suas propriedades familiares no caso da sustentabilidade e da preservação do ecossistema a longo prazo. A agroecologia entra como parceira das comunidades, sendo capaz de inovar e inverter manejos mal desenvolvidos que levam a fragilização, a esterilização e ao esgotamento do solo, pondo em risco a sustentabilidade como um todo. Neste caso a agroecologia visa responder a essa complexidade de demandas agrícolas e ambientais que se situam no campo da agricultura tropical, principalmente o pequeno porte. Duas variáveis estão destacadas na produção agrícola atual: primeiro, a “agricultura intensiva em insumos externos”; e, segundo, a “agricultura de baixo uso de insumos externos”. Essas variáveis são importantíssimas no caso da agricultura familiar, pois a partir de sua escolha avalia-se o impacto na renda familiar dos agricultores: seja para um gasto menor, quando da reutilização e reciclagem do material já existente na propriedade; quanto para um gasto maior, no que diz respeito à dependência dos insumos externos e, por conseguinte na relação com o desenvolvimento dos agroecosistemas locais. Assim, o aprimoramento que os agricultores e os agentes de desenvolvimento – neste caso, escolas rurais com seus monitores, professores, diretores, têm dos princípios ecológicos subjacentes à atividade agrícola e o aumento do seu conhecimento a respeito das opções técnicas disponíveis são passos importantes no sentido de reforçar a capacidade dos agricultores de desenvolver e manejar tecnologias para uma agricultura 90 sustentável de baixo nível de insumos externos e consequentemente de diminuir os gastos com esses insumos. Não se trata de diabolizar ou rejeitar de maneira categórica o uso de insumos externos – fertilizantes, principalmente mas entender que uma “educação para o desenvolvimento” em zonas rurais tropicas, deve ser uma educação que leva em consideração a opção pela sustentabilidade agrícola local, focada principalmente na resolução de problemas ambientais e se for o caso, no aumento de produção da agricultura local. Neste sentido, a busca pela sustentabilidade e produção agrícola dessas populações, tanto pode vir por meio do baixo uso de insumos externos quanto da utilização de fertilizantes artificiais. Neste sentido o que se propõe aqui, trata-se do “uso criterioso” na utilização de insumos externos, no caso em que esses estiverem disponíveis e puderem complementar aqueles produzidos nos próprios estabelecimentos agrícolas. Para Sachs (1987), duas grandes avaliações equivocadas foram feitas antes da introdução da “revolução verde”: Não foram previstos os preços dos fertilizantes químicos e do combustível, nem a redução dos preços internacionais de grãos resultantes da superprodução; A sempre crescente dependência de pesticidas e fertilizantes também não foi prevista; Em mais um erro da “revolução verde”, não se avaliou os riscos da contaminação dos rios e dos lençóis freáticos nem da contaminação do próprio homem, tanto no manuseio, quanto na alimentação cotidiana como um todo. Por outro lado e a curto prazo, “o uso de insumos externos pode permitir um grande crescimento da intensidade de uso da terra. Até meados dos anos 80, isso contribuiu substancialmente para o aumento global da produção de alimentos.” (Sachs, 1987) Para a FAO, nos países em desenvolvimento, o fator que isoladamente mais contribuiu para o aumento de produtividade é o enorme crescimento do uso de fertilizantes que são usados em combinação com numerosos outros insumos externos.[...] No entanto, a recente estagnação da taxa de crescimento da produção 91 levantou fortes duvidas quanto a segurança a longo prazo desses tipos sistemas. (ibid p.12). O processo de plantação e tratos com a terra requer mais que uma dada dimensão técnica justaposta; requer seguramente uma análise contida de reflexões sobre os tratos implicantes no desenvolvimento das plantas, animais e ecologia. Por essa razão, a relação com o meio ambiente: a produção bem como seu contexto ambiental, ecológico e espiritual devem ser considerados para a efetivação do manejo agroecológico correto. A partir do paradigma de sustentabilidade, “não se separa a terra dos seres humanos, a terra da floresta, a floresta dos animais. Todos fazem parte de um mesmo ambiente, todos fazem parte das suas comunidades e todos formam o todo”. (Boff, 1999, p.25) Agroecologia seria, para esta tese, o conjunto de atividades concernentes aos afazeres do campo. Mas não apenas prático, essa compreensão nos remete a uma outra complexidade multidimensional, que está imbricada dos dois elementos: da teoria e da prática, da reflexão e do fazer... Portanto, há uma totalidade e uma complexidade na dimensão camponesa... A educação do campo tem que levar em consideração essa totalidade e essa complexidade, pois “as comunidades agrícolas acreditam frequentemente que a natureza é dada por um poder superior e que nós devemos sempre cuidá-la.” (Boff, 1999, p.25). Os agricultores se veem como parte desse todo – como parte da natureza e não apenas como proprietários dela; por isso, muitos rituais acompanham a atividade agrícola; a manutenção da qualidade dos recursos naturais, por exemplo, é considerada como algo vital: “eles não separam a criação do cultivo das plantas, a curto ou a longo prazo, a economia da ecologia, etc. A agricultura não é mais do que simplesmente a produção, ela é um modo de vida22” (Reijntjes, 1994, p.23). Leonardo Boff (1999) percebe isso quando fala de uma pedagogia que brotaria da mistura do ser humano com a terra, a vida da Terra (Gaia): Ela é mãe e, se somos filhos e filhas da terra, nós também somos terra. Por isso precisamos aprender a sabedoria de trabalhar a terra, cuidar da vida: nossa grande mãe, a nossa vida. A terra é ao mesmo tempo o lugar de morar, de trabalhar, de produzir, de viver, de morrer e cultuar os mortos... (p.23). 22 Agricultura para o futuro. 1988, p. 61. ver ref. 92 Assim, na reflexão “complexa do manejo agroecológico”, a propriedade, a planta e o homem fazem parte de um mesmo contexto em seu desenvolvimento, e a relação técnica dos tratos e manejos levariam também em consideração essa dimensão eco-espiritualizada do ambiente em que o aluno/produtor rural/jovem se encontra inserido. Reijntjes, (1994), afirma que: A melhor forma das famílias adquirirem esses conhecimentos seria por meio da escola rural, de preferência num modelo pedagógico libertador, com conteúdos e métodos adequados à realidade rural, calibrando apropriadamente o “que e como” as famílias necessitam aprender. O objetivo da escola seria neste caso, (grifo nosso) de gerar cidadãos dotados de mais autoconfiança e autossuficiência técnica, bem como de “ferramentas do saber” que permitam eliminar as suas deficiências. (p.37) Algumas preocupações são elencadas em “Agriculturas para o futuro”, colocando que hoje no cenário mundial existe um conjunto de situações que desafiam a agricultura de pequeno porte (agricultura tradicional; agricultura familiar). Neste momento, os agricultores estão tendo que lidar com mudanças, aceleradas a partir do período colonial, tais como: A introdução de educação e tecnologias estrangeiras na área da agricultura; A crescente pressão populacional; As mudanças sociais e políticas; E, a incorporação da agricultura a um sistema internacional de mercados controlados externamente. (LEIA, 2005) Esses elementos que surgiram no mundo contemporâneo levam os sistemas tradicionais de subsistência a tornarem-se cada vez mais voltados para o mercado, o que passa a requerer da pequena agricultura e do agricultor tradicional um comportamento cada vez mais direcionado a responder essas demandas. Introduzimos esse conceito (agroecologia), pois ele pode se tornar o responsável direto pela otimização dos recursos disponíveis nas comunidades dos agricultores tradicionais que devem, por sua vez, serem utilizados de maneira consequente e 93 sustentável e de modo apropriado em cada propriedade familiar. A forma como cada recurso deve ser utilizado e para que fim, ou seja, todo objetivo deve ser pensado de modo a sempre contribuir para a diminuição das perdas de recursos e o aumento do ganho maximizado em cada propriedade no seu limite econômico e ecológico. Por outro lado, entendemos que o desenvolvimento de tecnologias é um processo complicado, que envolve atividades voltadas deliberadamente para a geração, para a transformação, para a combinação, para o teste e o ajuste. (ibidem). Por isso, também, o papel da educação para o campo. O desenvolvimento de tecnologias para o campo envolve a colaboração entre agricultores e agentes (neste caso, escolas rurais) de desenvolvimento na análise dos sistemas agroecológico local, na definição dos problemas e das prioridades locais, na experimentação de várias soluções potenciais, na avaliação dos resultados desses experimentos e na difusão dos resultados para os outros agricultores. Neste caso fica perceptível o papel e a importância da escola do campo, ela é quem tem a capacidade de envolver atores e comunidades para a produção do seu próprio desenvolvimento no campo. Situando o próprio universo da construção de sujeitos (educandos) para o campo numa perspectiva de contribuição para a liberação da sociedade como um todo, Sen (1999) e Freire (1974) seguem a mesma direção ao colocarem que “na perspectiva orientada na direção da liberdade, a atitude deve ser de permitir a todos intervir nas decisões”. Sen (1999) considera que “quando um conflito se manifesta e se trata de uma questão aberta, é a sociedade toda inteira que deve se colocar e se investir nos processos de decisão” (p.24). Essa perspectiva lembra o mundo da pedagogia do campo e das escolas em alternância, principalmente aquelas com focos centrados na agroecologia, nas quais as decisões devem ser partilhadas pelos seus membros e pela comunidade participante, sempre considerando a perspectiva de sustentabilidade a longo prazo. Assim o outro, o que vive junto, o que vive na comunidade passa a ser visto como parceiro, como igual na tomada de decisão que concerne a todos. Nesse caso, o respeito se torna a base da convivência. As decisões são tomadas nas associações de pais, jovens e todos que participam de uma maneira direta dessas iniciativas como, por exemplo, a escola. As decisões não são tomadas de maneira unilateral, mas todos se dão conta dos problemas e todos investem para buscar o equilíbrio das decisões e encontrar soluções. 94 Nesse sentido, o conceito de agroecologia orienta mais que as práticas agrícolas, mas também, a relação de convivência e respeito com a comunidade, suas crianças e suas mulheres e seu meio ambiente. A relação estabelecida com o conceito de agroecologia correto consiste no elemento-chave para efetivação de uma ação pedagógica preocupada em solucionar problemas tanto da agricultura quanto do homem e da mulher camponesa. Neste trabalho, procuramos ampliar esse conceito não apenas enquanto estrutura prática: passamos a concebê-lo a partir de uma dimensão complexa, que envolve além dos processos técnicos de cultivo e de administração, a relação com o meio ambiente, a ecologia e o conjunto de reflexões que deve o agricultor/aluno/produtor fazer durante os tratos das culturas em contexto. Isso quer dizer que o conjunto de relações e complexidades das decisões e dos encaminhamentos que devem ser feitos nas propriedades envolve entendimentos técnicos, mas também os elementos da intuição próprios de cada sujeito e de cada realidade. A compreensão da agroecologia enquanto conceito norteador de prática agrícola em culturas tropicais traz em si, essa relação complexa ao olhar das pessoas que convivem no mundo do campo, o que por vezes, não é possível ser compreendido no mundo urbanocentrado. Mas a escola rural sim, ela pode ser o veículo mais importante de uma educação com base na agroecologia em países tropicais. 3.1.5 – O conceito de complexidade e problematicidade base para estrutura reflexiva da “educação para o campo” O pensamento complexo é regido por um princípio de distinção, mas não de separação entre sujeito e objeto. Segundo Morin (1996), “o pensamento complexo é regido por um princípio de causalidade complexa, comportando causalidade mútua inter-relacionada, inter-relações, atrasos, interferências, sinergias, desvios, reorientações” (p.9). Pensando a educação e os subsistemas agrícolas de cultivo sob esse enfoque, percebe-se que eles precisam/impõem esse comportamento, pois, ainda de acordo com Morin (1996), esse pensamento [...] reconhece os limites da demonstração lógica nos sistemas formais complexos comportando a associação de noções complementares, concorrentes e antagônicas. Há que pensar de maneira dialógica por macroconceitos, o que neste caso entra todas as variáveis que compõem esse desafio 95 educacional, formar para a cidadania e emancipação, para inovações necessárias ao contexto e ao mesmo tempo, religar todos os macroconceitos de formação-educação a uma postura mais universal essa, da compatibilidade com o meio ambiente e ecologia. Morin (1984) chama de complexidade “o conjunto de princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo físico, biológico e antropossocial” (p.336). O conceito de complexidade enquanto base para entender a multidimensionalidade implicante na “educação no campo” segue essa linha de raciocínio. Os currículos e a educação “para, “campo” e do “campo” não podem nem devem constituir uma estrutura isolada das dimensões sociais dos que lá vivem. Por isso, a necessidade de um conceito problemático e complexo que amplie essa compreensão e dê conta dessa nova perspectiva do educar. A complexidade se revela tanto na dimensão teórica quanto na prática. A teoria aliada à reflexão constrói o pensar humano e decide sobre a ação. Quando se trata do campo, podemos dizer que a decisão e a ação tomadas de forma correta e em benefício do humano devem ser construídas a partir de uma proposta pedagógica engajada numa multidimensionalidade de situações próprias à vida dos que lá vivem. Tais situações vão desde a importância do equilíbrio ambiental e ecológico aos modos de sobrevivência e à economia das famílias e das comunidades. A economia que se adquire com o plantar fitoterápico ou com a madeira na construção dos móveis de casa, a partir dos materiais disponíveis no meio rural; a escola que reflete sobre as formas de vida do povo do lugar e que alinha a tudo isso às compreensões técnicas e experimentais. Tudo isso faz evoluir o trabalho e a economia sustentável das famílias sempre numa perspectiva ética ambiental. Portanto, na vida do homem do campo, nenhum aspecto cotidiano pode ser negligenciado; tudo deve ser trabalhado de forma disciplinada, sendo capaz de garantir uma intervenção adequada na vida e na natureza. Nesse contexto, é preciso redescobrir o paradigma da complexidade enquanto fundamento inerente à educação para os povos do campo, dada a multidimensionalidade de situações que se apresentam no seu dia a dia e no entorno da sua comunidade. 96 3.1.6 – O conceito emergente de “campo” para o desenvolvimento da educação no meio rural no Brasil Um conceito de “campo” há muito se transformou num objetivo a ser perseguido pelos movimentos sociais engajados na transformação do mundo rural como um todo. Trata-se de um conceito surgido no meio dos movimentos sociais brasileiros ligados às questões agrárias e educacionais para o campo. A tese retoma e reafirma essa necessidade conceitual, por entendê-la como a mais viável para abarcar a diversidade da problemática “campo” e da problemática “educação para o campo”. Há tempos, para as entidades engajadas no campo, o termo rural causa inquietação e desconforto, visto que, durante todo o desenrolar da história contemporânea do Brasil enquanto nação, o rural foi tomado de forma estereotipada, dando margem a todo tipo de interpretação. Um conceito base de “campo e educação para o campo” se coloca, como pensamento diferenciado sobre o campo para os povos não urbanos, e sinaliza na direção de outra postura, diante da complexidade e dos desafios que cercam a realidade dessas populações tanto do ponto de vista agrário e agrícola, quanto de questões ligadas ao seu desenvolvimento e da relação propriamente dita com a educação. O nascimento de uma educação para povos urbanizados seria neste caso, resultado do conjunto de movimentos, organizações e acúmulos de experiências no seio dessas populações, diríamos “marginalizadas”, no sentido de garantir a transformação do modo de pensar tradicional sobre o “rural” e a busca de uma educação nova conforme os seus desejos e aspirações. Com a aprovação da DOBEC/02 (Diretrizes Operacionais de Base para as Escolas do Campo) pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, a zona rural adquire outro significado conceitual e se integra ao debate público sobre o que é o campo ou sobre o que é o rural? É a partir dessa compreensão que o rural deixa de se identificar com o tom nostálgico de um passado, visto apenas enquanto espaço de abundância e de felicidade, no que foi expresso em parte da literatura brasileira, principalmente nos livros de Monteiro Lobato. Essa visão assim idealizada reforçava uma posição que subestimava os conflitos que mobilizavam e mobilizam até hoje as forças econômicas, sociais e 97 políticas em torno da possessão e concentração de terras no Brasil, visão essa, que subestimava também as formas de vida e de cultura dos homens e mulheres do campo. A partir de então, “a zona rural ou campo” ganha um significado que incorpora os aspectos da floresta, da criação, da agricultura; engloba também a piscicultura enquanto estrutura física da vida nesse contexto e enquanto compreensão sociocultural. O rural ou o campo, mais que um perímetro não urbano, é um campo de possibilidades que dinamiza a ligação entre os seres humanos, a produção de condições de existência social e as realizações da sociedade humana. A “educação do campo” enquanto conceito: inclui todos os povos não urbanos – os povos indígenas; os quilombolas; os povos da floresta; os meeiros; os povos nômades; os povos das águas e dos rios entre outros com identidades próprias existentes no Brasil – daí, não pode e não deve ser concebida a partir do mesmo paradigma do educar que se instaurou nas escolas formais dos centros urbanos como se dá em sua maioria atualmente. Partido desta análise, se faz necessário a articulação de um modo de pensar que problematize essa compreensão, levando-se em consideração os conflitos, as demandas, os saberes e que dê conta de novas perspectivas educacionais, que tome seu lugar e avance na busca de soluções alternativas capazes de garantir de maneira adequada o igual direito à educação para essas populações, como reza a Constituição Nacional e os planos e leis sobre educação no Brasil. Seguindo os princípios epistemológicos de Bachelard (1996), propomos uma “reflexão sobre a colocação da ação pedagógica numa nova perspectiva, esta que acentua a reconstrução da ciência na escola, contrariamente à simples transmissão de verdades cristalizadas”. A reconstrução educacional, acreditamos, se dá num processo de reflexão teórica e prática, onde o contexto local se oferece para a reflexão e a formulação de hipóteses buscando saídas para as situações e problemas. Esta pesquisa é pensada a partir do igual direito à educação e ao desenvolvimento para todos, se colocando numa perspectiva que busca inverter a lógica da exclusão educacional e do não desenvolvimento para povos e pessoas que não se enquadram em modelos uniformes do educar tradicional. Aqui o ideal é poder responder de maneira científica a uma educação para o campo que reafirme e congregue 98 valores e identidade; tecnologia e inovações; cidadania; desenvolvimento sustentável e ambiental em contextos diferenciados. A partir desses caminhos, outro modelo de educação para o campo se torna necessário, enquanto terreno profundo de reflexões para alternativas curriculares que mereçam uma atenção maior de pesquisadores da educação no Brasil e no mundo. Silva, (2000) fala de um currículo que surge como uma prática de significação que contribui para a produção de identidades; o currículo surge como uma construção social que resulta da necessidade de responder a aprendizagens que se consideram socialmente necessárias para um determinado grupo, numa época determinada. Para Roldão, (2000) o currículo é tudo o que é aprendido dentro e fora da escola, (como na perspectiva em alternância), que o que é assumido (currículo explicito), quer o que não é assumido, apesar de ser intencional (currículo oculto), como consequência direta ou indireta da própria escola. A Professora Roseli Caldart (2004), em suas reflexões sobre a pedagogia do MST e a sua práxis educacional, mostra o “campo e a escola do campo” a partir de uma relação tensiva. Para ela: É preciso garantir que a experiência da luta dos educandos e de suas famílias (lutas pela posse da terra, luta pela sobrevivência, luta pelo reforço a cultura local) seja incluída como conteúdo de estudo; é preciso desafiar a pensar em práticas que ajudem a educar ou fortalecer as crianças, adolescentes e jovens, a postura humana e os valores aprendidos na luta: o inconformismo, a sensibilidade, a indignação diante das injustiças, a contestação social, a criatividade diante das situações difíceis, a esperança...(p.11). A educação do campo é um paradigma em sua diferença, uma perspectiva que não se enquadra no mundo da educação formal, tradicional e urbana na maioria dos seus processos de ensino/aprendizagem. Por isso, cabe repensar e construir projetos pedagógicos que confiram importância às formas de vida em contextos com cultura, valores e aspirações diferenciadas daqueles que são vividos normalmente no cotidiano dos educandos dos centros urbanos e, neste caso, compreender que a educação do campo deve ter como base a diferença que lhe é naturalmente implícita para em seguida empreender progresso tecnológico e desenvolvimento para os que lá vivem. 99 3.1.7 – Escolas rurais e educação no campo: por um modelo de educação diferenciada A educação, como pensada tradicionalmente, e o desenvolvimento das suas práticas nas escolas brasileiras não englobam nem o conjunto da diversidade, (no que inclui valores, identidades e formas de produzir) nem o conjunto em si da população do país (trabalhadores rurais, ribeirinhos, assentados índios e negros etc.). Na Conferência sobre Educação Rural de Addis-Abeba, em 1961, compreendeuse que não se deveriam negligenciar as características e os desafios do ambiente rural. Reconheceu-se, na ocasião, a necessidade de “reformar os conteúdos” do ensino, a fim de adaptá-los aos programas e às condições da vida rural, estabelecendo uma ligação entre escola e comunidade local e procurando responder aos interesses dessa população (Atchoarena e Sedel, 2005, p. 66). Num artigo sobre educação básica no meio rural intitulado “Os agricultores necessitam de um sistema educacional que os ajude a solucionar problemas”, Lacki (2002, p.2) também reforça a necessidade de se ter uma escola comprometida com o desenvolvimento do meio onde está inserida. Diz o autor que as escolas do meio rural dispõem de enorme potencial, que ainda não foi adequadamente aproveitado, para formar agricultores que queiram, saibam e possam atuar como eficientes solucionadores de problemas existentes no meio rural. Nessa mesma linha de raciocínio, Batista (2003) afirma: É óbvio que os problemas da escola rural não são apenas aqueles de móveis, carteiras, ou de instalações [...]. É evidente que todas essas coisas são importantes e que delas não podemos prescindir. Trata-se, no entanto, de conferir a esses problemas uma importância secundária, visto que é mais que necessário um debate profundo em relação ao papel da escola, na construção de um modelo diferente de desenvolvimento, sustentável e includente (p.19). Para Mansano (2004), o campo e a escola do campo têm saberes mais importantes a serem aprendidos pelos jovens que lá vivem. De volta a Lacki (2002), quando ele afirma que, Por não possuírem saberes e conhecimentos seguramente alicerçados às necessidades quotidianas, muitas famílias rurais simplesmente não podem desenvolver-se, entre outros motivos, porque não conseguem corrigir as suas próprias ineficiências, 100 melhorar o seu desempenho no trabalho e incrementar a sua produtividade. Para esse autor, a realidade atual “exige que as famílias rurais se tornem mais autônomas, a partir do desafio de tomar parte do seu mundo como agentes de transformação da sua realidade e da realidade das comunidades em que estão inseridas”. Trata-se, portanto, de um processo de emancipação das comunidades e da sociedade como um todo. A escola do meio rural, como alerta R. Caldart (2004) não é, enfim, um tipo diferente de escola: Mas uma escola que se reconhece e ajuda os povos rurais enquanto sujeitos sociais em que eles também têm a capacidade de ajudar nos processos de humanização, na construção da sociedade, com suas lutas, sua história, seu trabalho, seus saberes, sua cultura, seu jeito de fazer. Então é uma escola que deve incorporar as diversas formas de ser e de fazer do homem rural para assim construir a sua autonomia (p.15). A educação, como tradicionalmente estava pensada no Brasil em sua estrutura, até pouco tempo não englobava outras populações que não fossem as urbanizadas e, em particular, as próprias elites. Infelizmente isso se verifica não apenas no Brasil, mas também em outros países com característica similares. O nascimento de uma educação para outros povos que não os filhos das elites e de populações urbanizadas é também o resultado do conjunto de movimentações, organizações e acúmulos de experiências no seio dessas populações, ditas “marginalizadas”, no sentido de garantir uma educação de qualidade e conforme os seus desejos e aspirações dos envolvidos. Portanto, como já dissemos anteriormente, não parte da boa vontade apenas dos diversos governos em desejarem outra forma de educação para essas populações, mas da organização e da capacidade de pressão que entidades e intelectuais engajados na defesa de uma educação de qualidade para esses outros povos possam fazer. A “educação para o meio rural ou educação para o campo” é produto também de experiências acumuladas ao longo de décadas de tensão, reivindicações e lutas para garantir mudanças fundamentais naquilo que a classe dirigente compreendia tradicionalmente como educação no Brasil. Nesses processos de organizações e lutas, é possível sublinhar diversos momentos, que vão desde o movimento dos pioneiros do campo, no início do século passado, passando pelo MEB (Movimento de Educação de Base) ligado a Freire no ano de 1950; o início e implantação das primeiras EFAs, no Espirito Santos (na década de 1980), com um aprofundamento particular no Nordeste 101 brasileiro, até a chegada da DOBEC/2002 (Diretrizes Operacionais para as Escolas do Campo). A Professora Roseli Caldart (2004), em suas reflexões sobre a pedagogia do MST e a sua práxis educacional, mostra o “campo e a escola do campo” a partir de uma relação tensiva. Para ela: É preciso garantir que a experiência da luta dos educandos e de suas famílias (lutas pela posse da terra, luta pela sobrevivência, luta pelo reforço a cultura local) seja incluída como conteúdo de estudo; é preciso desafiar a pensar em práticas que ajudem a educar ou fortalecer as crianças, adolescentes e jovens, a postura humana e os valores aprendidos na luta: o inconformismo, a sensibilidade, a indignação diante das injustiças, a contestação social, a criatividade diante das situações difíceis, a esperança...(p.11). Daí nasce o interesse da tese pelas escolas do campo, um interesse de construir e compreender um projeto científico de educação que contribua para emancipação da realidade perversa que cerca a agricultura familiar em sua maioria no Brasil. Trata-se da tentativa de (re)construir uma educação “do campo e para o campo” (Arroyo; Molina & Mansano, 2004) de maneira que desenvolva no sujeito camponês suas capacidades intelectuais e morais, assim como sua capacidade de garantir a transformação de sua realidade, impulsionando as diversas famílias que lá vivem para uma perspectiva produtiva de uma agricultura familiar sustentável. Este estudo procura compreender os esforços que estão sendo feitos pelos CEFFAs no intuito de desenvolver conceitos, currículos e metodologias como forma de enfrentamento das diversas dificuldades que se apresentam às famílias do campo, principalmente às famílias de baixo poder aquisitivo. Os CEFFAs apresentam esse perfil particular, no sentido de que busca de um diferencial metodológico para as escolas do campo, porém há uma questão fundamental a saber: são estas escolas capazes de constituir verdadeiras possibilidades de formação de sujeitos oriundos do meio rural e, com isso, minorar os problemas de liberdade socioeconômica e cultural? No mesmo sentido, para a pedagogia da diferença enquanto paradigma de educação para o meio rural, o acento deve ser colocado na compreensão da pedagogia do campo enquanto meio de sair do modelo tradicional não adaptado. É por isso que o ensino e a aprendizagem nas comunidades rurais, e em particular as conduzidas pelos CEFFAs entre outros, entram de maneira efetiva neste estudo, enquanto modelos de 102 experiências pedagógicas, nos conduzindo para aprofundar saídas de desenvolvimento social e econômico (sustentáveis) para comunidades rurais diversas. Neste caso, percebe-se a necessidade de fazer esse recorte teórico-metodológico sobre a educação do campo, para assim, empreendermos modelos de educação teórico/práticos cientificamente adequados ao meio rural brasileiro. 3.1.8 – A construção do conceito de educação para o campo A necessidade de encontrar saídas pedagógicas consequentes para educar e formar sujeitos não enquadrados numa pedagogia tradicional é crucial no Brasil. O conceito de educação para o campo vem brotando, ao longo de décadas de tensão, para garantir mudanças fundamentais na forma de ver e compreender as formas de vida fora das cidades. Assim, é possível dizer que as pedagogias desenvolvidas para outras populações que não as citadinas ou os diferentes modelos em curso no campo, não avançaram de maneira profunda e apropriada enquanto pedagogias que percebem as necessidades prementes e os desafios presentes nessa outra variável educacional. Partido deste contexto, é que as entidades e organizações ligadas às famílias do campo afirmam de uma maneira consensual, que nunca houve na história republicana brasileira uma política efetiva no desenvolvimento de outros processos educativos para o contingente não urbano que se pretendesse como possibilidade inclusiva, construída a partir da diversidade dos povos que vivem no local onde ela se estabelece, e que reconhecesse as especificidades dos seus modos de vida, cultura e organização social. (Cuchê, 2004). Tape (1994) e Akkari (2004) reforçam a ideia de se favorecer uma pedagogia alternativa e criticam o fato de a escola obrigar os alunos a trabalharem conteúdos distantes da vida cotidiana. Esses autores focam, na sua pesquisa, as pedagogias ditas “indígenas”, as quais estariam no coração do debate de alternativas pedagógicas à crise da educação mundial e, em particular, à educação das populações não urbanas, tais como: comunidades quilombolas, bóias-frias, assalariados rurais, posseiros, meeiros, arrendatários, acampados, assentados, reassentados atingidos por barragens, agricultores familiares, vilarejos rurais, povos das florestas, indígenas, pescadores, ribeirinhos, povos das águas, populações nômades, entre outros. 103 Este estudo procura reverter à compreensão do rural habitualmente veiculado no imaginário brasileiro enquanto espaço amarrado e sem movimento, atrasado, sem cultura, analfabeto, pobre e marginal. Nesta contraposição afirmamos que não há mais espaço para marginalizações premeditadas pelas elites de outrora e que o caminho agora é outro, esse de encontrar soluções coerentes para fazer avançar melhorias em termos de qualidade de vida e educação para essas populações. As políticas de esvaziamento do campo nos anos de 1940 e 1950, a concentração de terras e as histórias estereotipadas sobre os povos do campo fazem parte do conjunto de práticas exercidas pela elite para mascarar e desvalorizar o universo da agricultura familiar brasileira. Essa situação é seguramente a responsável pelo esquecimento e o enfraquecimento do sistema educacional rural da nação. Por isso, torna-se premente o desenvolvimento de uma educação que ressignifique valores e que, a partir da cultura dos sujeitos envolvidos, seja capaz de construir novos mundos e delinear novas vivências em contexto para seus educandos; falamos de uma educação capaz de sustentar a importante construção da autonomia dos sujeitos, a liberação das comunidades, enfim, a construção da independência daqueles que nelas vivem e trabalham. O escritor Monteiro Lobato é bastante peculiar nesse contexto: suas obras são a base para entender porque o mundo rural é tratado de maneira idílica no imaginário brasileiro. Esse autor, cuja maior parte dos escritos está relacionada ao mundo rural, estrutura uma construção do real rural em forma de histórias hilárias e personagens estereotipados: o homem e a mulher rural sempre dependente; analfabetos por natureza e completamente incapazes. Os seus livros, colocados nas escolas enquanto literatura e livros didáticos, que atravessaram gerações de estudantes das escolas básicas do Brasil, ganhando interpretações diversas no mundo da televisão aberta durante as últimas décadas, generalizando estereótipos extremamente depreciativos sobre os povos do meio rural. Monteiro Lobato coloca o homem e a mulher rural como cidadãos de segunda classe em enredos cuja função era tão somente fazer o público rir das suas histórias. Entre os principais personagens das suas obras temos as “Histórias do Jeca Tatu”, personagem que, entre outros, retrata o homem rural como imbecil e incompetente para atividades minimamente complexas. O personagem era dono de um sítio no interior. Possuía os recursos para uma vida com fartura, mas não os aproveitava. 104 Tirava apenas para seu sustento, a sua produção era bem aquém de seu potencial. Contrastando, seu vizinho, um italiano, produzia em abundância e melhorava seu padrão de vida a cada ano que passava (Santana, 2011 p. 1). O campo é e sempre foi dinâmico e tensivo: pelos conflitos, pelas políticas agrárias e agrícolas, pela carência de investimentos, enfim... A educação para o campo tem a obrigação de abarcar essa dinâmica e essa tensividade e, por conseguinte, problematizá-la de maneira profunda. Caldart (2004), afirma que a educação do campo deve trabalhar “os interesses dessas populações, a política, assim como a cultura e a economia dos diversos grupos não citadinos, nas suas diversas formas de trabalho e de organização, na sua dimensão de permanente processo, produzindo valores, conhecimentos e tecnologias na perspectiva do desenvolvimento social e econômico equitativo.” (p.20). Para tanto, a reinvenção de uma educação para o campo seria, trazendo esses princípios acima, a condição sine qua non para reversão desta lógica de preconceito e de denegação dos homens e mulheres do campo. Assim, a reinvenção do “conceito de campo” ou propriamente dito do “conceito de educação para o campo” é também produto da necessidade de reverter ideologias como essas acima, que não correspondem à verdadeira identidade, dignidade e aos desafios enfrentados por povos não urbanos e que, de uma maneira geral, só atrapalham a emancipação e o desenvolvimento de políticas adequadas para os que lá vivem. O trabalho de Michel de Certeau (2002) parece trazer contribuições fundamentais para o tema. Preocupado com a questão dos deslocamentos e das ressignificações dadas pelas “pessoas simples” aos produtos culturais que lhes são impostos, nesse caso cidade/campo, Certeau (2002), alerta que “não se deve tomar os outros por idiotas”. Ele demonstra como os “de baixo” não são meros depositários, meros receptores de fragmentos de uma pretensa “alta cultura” imposta; assim, procura mostrar às “táticas” e “estratégias” encetadas por essas “pessoas simples” para fugirem e ressignificarem as “dominações” a que são subjugadas, procurando entender os usos e os sentidos dados aos produtos culturais recebidos (p. 43). Assim como Certeau, Porto (1994, p.120), percebe que “[...] os indivíduos não recebem passivamente a dominação”; eles tentam ajustar-se, reinterpretando os modelos existentes, ressignificando-os, dando um sentido próprio às formas culturais impostas. 105 A articulação desse pensamento encontra ressonância no que reivindicam vários autores: Kolling, Ceriole (2002) e Caldart, Arroyo & Molina (2004). Junto com os movimentos sociais brasileiros, que compreendem o “campo e ao mesmo tempo a escola do campo” a partir de sua relação de tensividade inerente, esses autores avaliam que a formação também deve ser dada, incluindo as experiências das lutas e dos desafios dos educandos e de suas famílias (lutas pela posse da terra, luta pela sobrevivência, luta pelo reforço da identidade e da cultura local). Assim, valem as suas afirmações e dos movimentos sociais engajados no meio rural a partir do conceito de educação para o campo: Que deve elevar a escolaridade e proporcionar a qualificação profissional inicial de agricultores (as) e seus familiares; Que o povo do campo tem direito a uma escola do campo, política e pedagogicamente vinculada à história, à cultura, às causas sociais e humanas dos sujeitos do campo; Que deve estimular o desenvolvimento sustentável e solidário como possibilidade de vida e constituição de sujeitos cidadãos; Que deve fortalecer o desenvolvimento de propostas pedagógicas e de metodologias adequadas à educação de jovens e adultos que vivem no campo. Inseridos nas compreensões curriculares e metodológicas dessas escolas, entendemos como legítimas as reflexões tanto dos autores acima citados e dos movimentos sociais quanto dos atores presentes no mundo rural. Já não se aceita mais a ideia de uma “educação rural” sem movimento e sem preocupações maiores com o contexto; não existe mais espaço para a educação tradicional, pois esta não integra nem assegura corretamente a dimensão existencial dos jovens, homens e mulheres que vivem no/do campo. A estruturação de um conceito de educação para o campo também deve ser vista como um elemento base para a quebra dos modelos dominantes, que não atendem efetivamente às necessidades atuais. A quebra desses modelos e a substituição por um outro deve recolocar na ordem do dia as reais necessidades do homem do campo. Para Khum (1998), um paradigma nasce quando outro já não mais se sustenta, quando o velho paradigma já chegou ao seu limite. Esse é o caso da educação para o meio rural, 106 pois o novo paradigma deve dar conta adequadamente das demandas rurais, além de ser capaz de operar mudanças importantes na educação, na economia, na sociedade e na cultura campesina. Autores, como Lacki (2002) e Chequeto (2002) concordam que a melhor forma de a juventude e as famílias de povos não urbanizados23 adquirirem conhecimentos necessários à melhoria das condições de vida é pelo viés da escola rural. Preferencialmente, essas escolas devem adotar um modelo pedagógico libertador, com conteúdos e métodos adequados à realidade rural, calibrando apropriadamente o “que e como” as famílias necessitam aprender, com vistas a gerar cidadãos dotados de mais autoconfiança e autossuficiência técnica, bem como de “ferramentas do saber” que permitam eliminar as suas deficiências. Os CEFFAs (Casas Famílias Agrícolas e Escolas Famílias Agrícolas) têm sido, ao longo de sua caminhada no meio rural, exemplos concretos de luta pela mudança desse paradigma educacional, ainda que muito se precise avançar. Mas nessas experiências, encontramos o debate sobre o futuro das comunidades rurais; sobre o futuro do meio ambiente; sobre o futuro da terra; sobre o futuro da agricultura familiar e da educação no campo. Nele, o tipo de educação que deve ser oferecido ao meio rural não pode nem deve ser concebido a partir do paradigma instaurado nas escolas públicas tradicionais do campo, esse de um modelo urbano transplantado para a zona rural que não reconhece nem reafirma as formas de vida e de cultura dos que lá vivem. O ideal é que se articulem conceitos que ampliem e problematizem essa compreensão no sentido de garantir um outro paradigma do educar para o campo, que avance na pesquisa de soluções para os problemas vividos por essas populações, mesmo que “aprender possa significar apropriar-se pessoalmente de um saber já conhecido pela sociedade, (o saber tradicional da comunidades rurais) enriquecer um conceito para lhe dar novas possibilidades (o conceito de educação para o campo), o que, neste sentido, também elabora um saber original” (Giordan, 1998, p.5). Chequeto, (2002) afirma que o processo de aprendizagem no campo, deve partir de situações vividas, encontradas e observadas no meio, longe da simples aplicação, como acontece nas escolas tradicionais. Neste sentido é preciso entender que os alunos são mais do que simples alunos... Eles devem se construir como atores 23 Povos da floresta, indígenas, ribeirinhos, nômades... 107 socioprofissionais em permanente formação, que adquirem, ao longo de sua experiência de vida pessoal (familiar, social e cultural), saberes e conhecimentos necessários ao seu dia a dia. Ao serem escolarizados, fazem da escola um lugar de aprendizagem e de ensino mútuo; nesse caso, a educação deve ser centrada nos valores e na vivência dos sujeitos em seu contexto. Sikounmo (1992) coloca que “o dever é muito mais árduo quando preferimos nos libertar, evoluir numa direção de mais e mais autonomia para ser primeiro a si a fim de poder dialogar, cooperar utilmente com o outro” (p.03). O trabalho de construir cientificamente uma alternativa pedagógica para o campo, evidentemente, deve envolver a todos: escola, comunidade, educador e organizações do povo rural, de maneira engajada, na direção da liberação de todos, para que, assim, se rompa com a denegação e alienação escola no meio rural e se construa uma sociedade mais justa e democrática. 3.1.9 – O conceito da pedagogia histórico-crítica dos conteúdos enquanto perspectiva para a educação do campo Uma outra perspectiva auxiliar ao conceito de alternância e por sua vez auxiliar ao conceito de educação para o campo e para as escolas do meio rural, poderia vir pela via da compreensão da pedagogia histórico-crítica social dos conteúdos, (Saviani, 2011) por conta de que essa pedagogia acredita que uma determinada metodologia empregada contribui sobremaneira para o sucesso ou fracasso do processo de ensino-aprendizagem. Ao focar na competência técnica do professor o que por si só é um dos desafios da escola do meio rural, esta deve reconhecer a interação entre o conteúdo e a realidade concreta do aluno, para que se entenda a escola como espaço social responsável pela construção do saber universal sem, no entanto, cair no tecnicismo ou no reprodutivismo, ao mesmo tempo em que reforça o diálogo entre o professor ou monitor e o aluno. Além de perceber o que é importante na construção do saber escolar, desmerecendo conteúdos e currículos sem significância concreta para aprendizagem dos que dela participam. Para Mello (2008) “Uma analise realista da condição de muitos desses professores-monitores eliminaria qualquer suspeita de que a importância da competência técnica seria apenas tecnicismo”. Neste caso sem cair no tecnicismo, mas reconhecendo a importância técnica da produção do conhecimento. E continua... “há 108 alguns que dominam mal os próprios conteúdos que deveriam transmitir que desconhecem princípios elementares do manejo de classes... e que muitas vezes, sequer possuem domínio satisfatório da própria língua materna”. (idem) Numa outra ponta dessa pedagogia se estrutura o saber instrumental (os conteúdos) onde os docentes apresentam aos alunos de maneira adequada os conhecimentos científicos e técnicos devidamente escolhidos e necessários aos processos de formação desses. Em seguida, se estrutura uma ação problematizadora sobre os conteúdos e a importância desses na vida do aluno e na sua importância comunitária com vistas à emancipação e à transformação social. Para Gasparin & Petenucci (2004) trata-se de uma pedagogia viável e aplicável, devendo ser utilizada na prática recorrente de educadores comprometidos com a qualidade de ensino para todos. Neste sentido, ela nos parece viável também na medida em que o saber dos contextos em que estão inseridas as escolas do meio rural se tornam fundamentos para a construção dos saberes necessários, tanto para a escola quanto para as comunidades que dela participam. Já Saviane & Guimomar (2008), coloca a importância “em primeiro lugar, do domínio adequado do saber escolar a ser transmitido, juntamente com a habilidade de organizar e transmitir esse saber de modo a garantir que ele seja efetivamente apropriado pelo aluno”. (p. 27) e por extensão, no nosso caso, o que deve se apropriado também pela comunidade em seus processos entrópicos de desenvolvimento. Entendendo que a comunidade não é passiva, ela é em si o instrumento por excelência de difusão, sendo que o conhecimento neste caso, não procura a busca do saber individualizado como nas escolas tradicionais, mas como esse saber transmitido ao indivíduo (aluno) se multiplica ou deve se multiplicar no seio comunitário e familiar, tratando-se portanto de um saber transmitido de maneira individualizada, mas com a perspectiva da socialização imediata. Em segundo lugar, tratar-se-ia de uma visão relativamente integrada e articulada dos aspectos relevantes mais imediatos de sua própria prática... (Saviane & Guimomar, 2008). Neste caso, esse elemento responde pela necessidade da pesquisa e da partilha nas comunidades de origem dos alunos, o que é necessário aprender primeiro no sentido de garantir o desenvolvimento comunitário dos alunos e de suas famílias? Sendo esse, um entendimento das múltiplas relações entre os vários aspectos da escola, desde a 109 organização dos períodos de aula...(idem). Assim este aspecto, pode e deve passar pela relação seja via a alternância, seja de respeito a sazonalidade dos períodos agrícolas intrínsecos às comunidades envolvidas no processo escolar; passando por critérios de matrícula (quem são esses alunos?); até o currículo e o método de ensino. (idem, ibidem) Em terceiro lugar, a organização da escola e os resultados da ação. (idem, ibidem) Está avançando? Está desenvolvendo? Qual o diagnóstico? O que pode ou deve ser feito para aperfeiçoar tal ou tal aspecto do problema? Em quarto lugar, uma compreensão mais ampla das relações entre a escola e a sociedade, que passaria necessariamente pela questão de suas condições de trabalho e remuneração. Neste quesito, seria preciso reverter a visão de que na escola do campo somente profissionais mal preparados e mal pagos trabalham. Ela é histórica porque, segundo os seus autores, a educação também interfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua transformação e crítica por ter consciência da determinação exercida da sociedade sobre a educação. 3.1.10 – A pedagogia do oprimido: elemento teórico chave para (re)educação dos povos do campo A compreensão da tese a partir da pedagogia do oprimido se justifica por duas razões: de um lado, porque esta concepção é uma referência para os movimentos sociais, principalmente os ativos no mundo do campo; e, de outra parte, por conta da sua origem pedagógica. Freire (1974) vem de um contexto rural do Estado de Pernambuco no Nordeste, ou seja, de uma região com características similares à da nossa pesquisa. Para ele, “a escola não transforma a sociedade, mas pode ajudar a formar sujeitos capazes de fazerem a transformação da sociedade, do mundo e até de si mesmos” (p.7). As ideias que são hoje atribuídas a Freire chegaram ao Brasil antes das correntes marxistas/ cristãs. Sua pedagogia se opõe ao modelo positivista, que ele qualifica como “modelo mecanicista”. A ótica do ensino/aprendizagem em Freire é, por natureza, 110 interativa, e a ação interativa (dialógica) depende da percepção de cada um enquanto “sujeito do conhecimento”, atitude que ele chama de “conscientização”24. A educação que ele defende deve sustentar a importância da construção da autonomia nos sujeitos envolvidos numa praxis. Deve ser, assim, uma educação que repensa valores, a partir da matriz cultural local e que seja, por sua vez, capaz de construir novos mundos e delinear outras vivências em decorrência da necessidade do contexto. Freire começou a trabalhar o seu método de alfabetização dito de “conscientização” a partir de 1947, para chegar a uma primeira mise en forme em 1961. O método começa a ser experimentado e aplicado a partir de 1962, na região mais pobre do Brasil, o Nordeste, que contava na época com 15 milhões de analfabetos em 25 milhões de habitantes. Em 1967, Freire publica “A educação: prática da liberdade”. Quanto ao conceito apresentado aqui, o da pedagogia do oprimido, escrito em 1969, ele está ligado principalmente à experiência com os camponeses chilenos. Na região onde se desenvolveu o nosso estudo, as ocupações de terra e o processo de reforma agrária permitiram o aparecimento de diferentes atores sociais, como o Movimento dos Sem Terra (MST) e o Movimento de Luta pela Terra (MLT). Boa parte dos sujeitos desta pesquisa vem dos assentamentos e convivem com situações de tensividade no seu dia a dia. Essa tensividade seria também pedagógica para Freire. Na relação de embates vividos por cada movimento (MST, MLT, Sindicatos etc.) e em cada momento específico, surge uma vasta gama de aprendizados históricos que permitem a ação educativa. Aqui entra o papel do que Freire (1984) chama de temas geradores e situações limites: Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa sub-unidade epocal, um conjunto de “temas geradores”, e, noutra, não os mesmos, necessariamente. Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que dele tenham os homens e os “temas geradores” (p.116). No raciocínio freiriano, a educação instrumentaliza o “povo emergente mais desorganizado, ingênuo e despreparado”, marcado por um índice alarmante de 24 In prefácio, Alfabetização: leitura do mundo leitura da palavra, Paz e Terra 1990. 111 analfabetismo, para a construção de uma outra perspectiva: moderna, justa, democrática e liberal. Há uma crença explícita no papel das “instâncias superestruturais” como as responsáveis por organizar essas conquistas “para todos”: Na proporção em que discutem o mundo da cultura, vão explicando seu nível de consciência da realidade, no qual estão implicitados vários temas. Vão referindo-se a outros aspectos da realidade, que começa a ser descoberta em uma visão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem também outros tantos temas (Freire, 1987, p.140). Como diz Weffort (1984) no prefácio do livro “Educação como prática de liberdade”: “foi-nos possível esboçar, através de Freire, as bases de uma verdadeira pedagogia democrática, o início da educação popular, uma prática educativa voltada de modo autêntico para a libertação das classes populares” (p. 15-25). Muito mais a mobilização, a organização, a difícil batalha pela representatividade e pela cidadania das camadas populares do que a manipulação típica do populismo: era isso que estava claro na positividade de uma ação pedagógica politicamente solidária aos interesses populares, tidos como desestabilizadores da “ordem” e do “progresso” (da minoria). É na pedagogia do oprimido que P. Freire “começa a ver” a politicidade do ato educativo com maior nitidez, embora a educação ainda não seja explicitada em sua inteireza política, mas apenas em seus “aspectos” políticos. Coloque-se ainda que as correntes existencialistas e personalistas definidoras do seu “humanismo idealista” inicial continuam presentes, agora misturadas com as incorporações do pensamento marxista. Mas esse novo momento não impede Freire (1974) de se autocriticar: “Em meus primeiros trabalhos não fiz quase nenhuma referência ao caráter político da educação. Mais ainda, não me referi tampouco ao problema das classes sociais, nem à luta de classes [...].” Esta dívida refere-se ao fato de não tê-las dito e o leva a reconhecer também, que só “não o fez porque estava ideologizado, era ingênuo como um pequenoburguês intelectual (p. 43)”. Com Freire (1984), descobrimos que, do ponto de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do ato político. Quanto mais ganhamos esta clareza através da prática, mais percebemos a impossibilidade de separar a educação da política e do poder. “Assim, a pedagogia que parte dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo fantasiado de falsa generosidade, e 112 que faz dos oprimidos o objeto de seu humanitarismo, mantém e encarna a opressão propriamente dita. É um instrumento de desumanização” (Freire 2004, p.32). A pedagogia passa por uma praxis educativa pautada na liberdade humana. Freire (1974) explica que “como existe a necessidade de ultrapassar a situação de opressão que se impõe, esta implica numa compreensão crítica da realidade, a fim de que, por uma ação transformadora exercida sobre ela, possa se instaurar uma nova realidade” (p.90). Do ponto de vista dialético, ação e mundo estão intimamente ligados, por isso Freire (2006) afirma: Mas a ação não é humana enquanto – mais que um saber/fazer – ela é um dever, quer dizer quando ela não se separa da reflexão. Esta reflexão, necessária à ação, é implícita quando Lukacs declara que tem que explicar aos alunos suas próprias ações; ela é igualmente implícita na finalidade que ela garante a esta reflexão: acelerar o desenvolvimento ulterior dessas experiências (p.31). Com efeito, a luta dos oprimidos e sua liberação estão diretamente conectadas à percepção dessa situação opressora/alienante e à criação de alternativas. Insistir na opção dialógica da relação liderança-oprimido e enfatizar a pedagogicidade da conduta de quem lidera/educa (ou deseduca), sem intransigir, exige a educação política do próprio líder/educador (Freire, 1884). Trata-se da tese da imperiosa necessidade do educador (re)educar-se no conflito social ao lado dos oprimidos – atento para não perder de vista a imprescindibilidade da sua formação/atuação técnica profissional/conteudística – que corporifica-se ao longo de todo o seu discurso. A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos: o primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a transformação; o segundo, em que transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo permanente de libertação. A pedagogia, a educação humana é antes de mais nada, um espaço de construção da liberdade, principalmente da liberdade deste que é oprimido. Ela é engajada a educar a partir da leitura da realidade vivida, das suas lutas e das suas dificuldades, como é o caso da maioria da população dessa pesquisa (Freire, 1984, p.44). Ainda de acordo com o mesmo autor, “não fui às classes oprimidas por causa de Marx. Fui a Marx por causa delas. O meu encontro com elas é que me fez encontrar Marx e não o contrário”. Nesse sentido, Freire (1979) afirma que a relação entre a 113 educação enquanto subsistema e o sistema maior é dinâmica e contraditória. “As contradições que caracterizam a sociedade como está sendo, penetram a intimidade das instituições pedagógicas em que a educação sistemática se está dando e alterando o seu papel ou o seu esforço reprodutor da ideologia dominante.” (p.74-75). O que temos de fazer, então, enquanto educadoras ou educadores, é assumir a nossa opção, que é política, e sermos coerentes com ela na prática: A questão da coerência entre a opção proclamada e a prática é uma das exigências que educadores críticos se fazem a si mesmos. É que sabem muito bem que não é o discurso o que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso. Quem apenas fala e jamais ouve; quem “imobiliza” o conhecimento e o transfere a estudantes, quem ouve o eco, apenas de suas próprias palavras, quem considera petulância a classe trabalhadora reivindicar seus direitos, não tem realmente nada que ver com a libertação nem com a democracia. Pelo contrário, quem assim atua e assim pensa consciente ou inconsciente, ajuda a preservação das estruturas autoritárias. Só educadoras e educadores autoritários negam a solidariedade entre o ato de educar e o ato de ser educado pelos educandos (Freire, 1987, p.81). Dentro de uma visão humanista, Freire (1987) compreende que a educação é, na intimidade das consciências, movida pela bondade dos corações e é por ela que o mundo se refaz. Ora, já que a educação modela as almas e recria corações, ela é a alavanca das mudanças sociais; portanto, a partir desse princípio, não pode haver educação para mudanças de atitudes sem que haja engajamento por parte dos educadores-líderes. Nesse sentido, ele reafirma que: Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se com a mudança, primeiro das consciências, como se fosse à consciência de fato, a transformadora do real, agora a transformação social é percebida como um processo histórico demorado e paciente (Freire, 1987, p.91) Para esse autor, se antes a educação-alfabetização de adultos era tratada e realizada de forma autoritária, como nos exemplos do MOBRAL (Movimento Brasileiro pela Alfabetização), durante o regime militar, década de 1970, escondendo a realidade, agora, pelo contrário, a alfabetização como ato de conhecimento, como um 114 ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra. Agora já não é possível texto sem contexto. A alfabetização de adultos e a pós-alfabetização, quanto à educação dos povos dos campos e de populações marginalizadas, deve gerar esforços para que se chegue a uma correta compreensão do que deveria ser a palavra escrita, a linguagem, a relação com o contexto de quem fala, de quem lê e escreve, portanto da relação dialogal entre “leitura do mundo e leitura da palavra”. Daí a necessidade que se tem do adentramento crítico no texto, de procurar apreender a sua significação mais profunda, propondo aos leitores uma experiência estética, de que a linguagem popular é inteiramente rica. Essa afirmação é fundamental no sentido de que ela se contrapõe aos preconceitos e denegações perpetrados contra as populações rurais no Brasil, sendo aqui possível perceber a inversão da lógica de exclusão e a reafirmação da linguagem daqueles que não estão fazendo parte de uma linguagem ingenuamente afirmada pelos ditos “letrados”. É através da cultura popular que o que se quer é a afetiva participação do povo enquanto sujeito na construção do país, pois quanto mais consciente o povo faça sua história, tanto mais o povo perceberá com lucidez as dificuldades que tem a enfrentar, no domínio econômico, social e cultural, no processo permanente de sua libertação (Freire, 1987, p.89). Essas compreensões de Freire estão diretamente ligadas ao mundo do campo, às escolas do campo e suas dificuldades: dificuldades de contar com educadores qualificados e engajados no respeito àqueles que fazem parte da cultura popular, que falam como o povo fala, povo que em nenhum momento pode nem deve ter a sua inteligência subestimada. Essa tensividade vivida pelos assentados se enquadra perfeitamente na perspectiva da pedagogia do oprimido: Seria a partir dessa tensividade crítica que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, caracterizando-se pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidades. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não 115 apenas porque novo e pela não-recusa ao velho (Freire, 2000, p.69). A constituição do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire tem como locus principal o Brasil e a América Latina da década de 60; a partir de 70, chega à África, influenciando inclusive países da Europa e América do Norte. Essa disseminação teve como ponto de partida o livro Pedagogia do Oprimido. Mas, levando-se em conta três dos seus mais representativos escritos – Educação e atualidade Brasileira (1959), Educação como Prática da Liberdade (1984ª) e Conscientização (1980ª) – todos eles permeiam o conceito que envolve o binômio educação-política. As décadas de 1950 e 1960 são momentos de trânsito para a modernização das forças agro-comerciais. É nesse período que Freire salienta a necessidade de uma ideologia de “consciência nacional” com o chavão de ideologia do desenvolvimento (1959, p. 28). Ter consciência crítica era contribuir para um projeto de reformas de base (agrária, educacional, de saúde, de industrialização auto-sustentada). A conscientização, como intermediação político-pedagógica, poderia atingir todas as classes e o diálogo deveria conduzir o “entendimento geral para o desenvolvimento de todos”. É exatamente este aspecto importante para o nosso estudo. Toda a relação dinâmica entre a leitura da palavra e a leitura da realidade, a palavra do trabalhador rural nordestino e a leitura da realidade camponesa da qual ele faz parte. Para Freire (1987) a linguagem dos textos é desafiadora e não sloganizada. Por isso mesmo, os cadernos não são nem poderiam ser livros sem contexto, como é o caso da maior parte dos livros encontrados nas escolas rurais do Brasil. O texto e o contexto não são próximos, não dialogam, não recriam nem reinventam realidades. Não refletem sobre essa realidade e não buscam saídas para os problemas concretos vividos no cotidiano das comunidades rurais. É na participação crítica e democrática dos educandos no ato de conhecimento que se formam também os sujeitos. É a participação do povo, no processo de reinvenção de sua sociedade, que constrói os modelos necessários a sua superação. É preciso, na verdade, que a educação do campo esteja a serviço da reconstrução comunitária e contribua para que os educandos, tomando mais e mais a sua história nas mãos, que se refaçam na leitura da história e na leitura do mundo, estando presentes nela e não simplesmente nela estando representados. No fundo, o ato de estudar, 116 enquanto ato curioso do sujeito diante do mundo é expressão da forma de estar sendo dos seres humanos, como seres sociais, históricos, ser fazedor, transformador, que não apenas sabem, mas sabem que sabem. Os educandos têm de conhecer melhor o que já conhecem em razão da sua prática, têm também que conhecer o que ainda não conhecem em razão da sua necessidade e importância. (Freire, 1987). Nesse processo, não se trata propriamente de entregar ou de transferir a explicação mais rigorosa dos fatos como algo acabado, paralisado, pronto, mas de contar com a capacidade de fazer, de pensar, de saber e de criar das massas populares e camponesas, estimulando-as, desafiando-as (Freire, 1987). Nesse processo educacional, não interessa transferir aos “jovens” frases e textos para ler sem entender. A reconstrução da identidade exige de todos uma participação consciente em qualquer nível, exige ação e pensamento, exige prática e teoria, exige, enfim, procurar, descobrir e entender o que se acha mais escondido nas coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos. Na sequência, Freire (1987) destaca mais uma vez, as preocupações em torno dos objetivos principais da transformação do nosso ensino, que é de fazer a ligação da escola à vida – “ligá-la à comunidade onde se encontra, ao bairro. Ligar a escola ao trabalho produtivo, no caso especifico ao trabalho agrícola; aproximá-la das organizações de massa” (p.50). Aproxima-se o trabalho produtivo da educação até o momento em que “já não se estuda para trabalhar, nem se trabalha para estudar, estudase ao trabalhar”, conclui Freire. (1984, p.9). Unifica-se o contexto “teórico” (educativo) e o contexto “concreto” (a atividade produtiva). Nesse sentido, o homem novo e a mulher nova que a sociedade aspira não podem ser criados a não ser através do trabalho produtivo para o bem humano. Esse homem e mulher nova são a matriz do conhecimento. 3.1.11 – “Os temas geradores” e a sua importância na educação para o meio rural Para Freire (1987, p. 110), os temas geradores se encontram, de um lado, envolvidos, e, de outro, envolvendo as “situações limites”, enquanto as tarefas em que eles implicam. Assim, a introdução desses temas, de necessidade comprovada no meio rural, corresponde à dialogicidade da educação de que tanto se fala. Se a programação 117 educativa é dialógica, isso significa o direito que também têm os educadores-educandos de participar dela, incluindo temas não sugeridos (Freire, 1984, p. 136). Por isso, Freire afirma que “esta é a razão pela qual não são as “situações limites” em si mesmas geradoras de um clima de desesperanças, mas a percepção que os homens têm delas num dado momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar.” (p.106). Essa “situação limite” a que Freire se refere está muito presente no seio das comunidades rurais e dos assentamentos, uma vez que as dificuldades e desesperanças estão presentes no cotidiano de cada um dos indivíduos. Falta preparo técnico para o cultivo, bem como falta crédito, falta preço aos seus produtos, há dificuldades de deslocamento, faltam serviços de saúde, lazer etc. No mesmo sentido, Freire ressalta mais uma vez que o “tema gerador” não se encontra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Ele só pode ser compreendido na relação homem-mundo. Investigar um “tema gerador” é investigar, repetimos Freire, o pensar dos homens inseridos na realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis educativa. (p.115) Nesse caso, o educador-educando dialoga, problematiza: o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a serem depositados nos educandos, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. Talvez se pense que ao fazermos defesa deste encontro de homens no mundo para transformá-lo, que é o diálogo, estejamos caindo numa ingênua atitude, num idealismo subjetivista. Não há nada, contudo de mais concreto e real do que homens no mundo com o mundo. Os homens com os homens, como também alguns homens contra os homens, enquanto classes que oprimem e classes oprimidas (Freire, 1984, p.151). Portanto, percebe-se a relação da escola do campo e o mundo do campo com o propósito da pedagogia do oprimido. A origem de P. Freire garante uma precisão muito acertada nas interpretações da vida do campo e da vida das escolas do campo. Consequentemente a sua origem e reflexão pedagógica se insere na vida e no cotidiano dos atores que participam deste estudo (assentados, meeiros, pequenos produtores familiares etc.). 118 3.1.12 – O conceito de pedagogia da alternância e o seu papel na “educação do campo” Estabelecer a relação entre os saberes locais existentes, quer dizer, o saberes tradicionais, o saberes empíricos do homem do campo na relação dialógica com o saber escolar/científico é o que propõe em princípio a pedagogia da alternância. Nem um nem outro podem ser negligenciados; os dois saberes são postos como faces de uma mesma moeda, pois um completa o outro. O aluno busca, na relação com a escola, a explicação científica, e no cotidiano da sua comunidade as formas práticas que complementam esse saber: Do ponto de vista dialético, ação e mundo são intimamente solidários. Mas a ação não é humana enquanto o saber-fazer não é mais que um dever, quer dizer, enquanto ela não se separa da reflexão. Essa reflexão, necessária à ação, é implícita quando Lukacs declara que «deve-se explicar aos alunos suas próprias ações; ela é igualmente implícita na finalidade desta reflexão: acelerar o desenvolvimento ulterior destas ações (Lukacs, apud Freire; 1974, p.7). E neste sentido, uma vez que são dois momentos de uma mesma unidade dialética, teoria e prática, não podem tornar-se independentes e, (idem) por isso mesmo, a ciência da educação neste caso direcionada às escolas em alternância, antes de qualquer dicotomia com a teoria e a prática, deverá ser guiada pelo “interesse emancipatório.” (Harbemas, 2006; p. 364). Esse em que a teoria guia a prática para a liberação de todos. Segundo Perrenoud (2001, p. 10), a alternância pode ser a síntese ideal entre o saber das comunidades e o conhecimento científico das escolas, neste vai-e-vem entre terreno e escola, entre o trabalho no campo e a teoria. Assim, no melhor dos casos, a prática deriva da experiência e das convicções dos formadores (professores-monitores); por seu turno, a teoria, fundada na pesquisa, poderia se casar e, se completar com a prática. A prática é forjada por práticas de práticos experimentados, que se tornam formadores, e transmitem a mensagem seguinte: “faça como nós!”, ou “faça como nós fazemos!”, ou “faça como as pessoas que sabem, as pessoas do métier que são reputadas em conhecer as dificuldades do trabalho!” (ibid). É assim que se estabelece a relação entre os saberes locais instalados, o saber tradicional, o saber empírico do homem do 119 campo e a relação dialógica com o saber escolar/científico. Nem um nem outro podem ser negligenciados. Os dois saberes são postos como faces de uma mesma moeda, onde um completa o outro. O aluno busca na escola a explicação científica e no cotidiano da sua comunidade as formas práticas que complementam esse saber. Como se vê, “a alternância não é formadora enquanto tal, ela não é mais que a condição necessária de uma articulação entre teoria e prática” (Perrenoud, 2000, p.3). A pedagogia da alternância se coloca enquanto perspectiva desse novo saberfazer educação para populações que não podem e não devem ser enquadradas no modo de construir da escola tradicional. As compreensões de Freire na Pedagogia dos oprimidos também reforça o conceito de alternância; ele comenta que a superação não existe fora da relação homem-mundo e que ela somente pode verificar-se através da ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações limites” (Freire, 1985, p.106-107). As dimensões significativas que, por sua vez, estão constituídas de partes em interação, ao serem analisadas, devem ser percebidas pelos indivíduos como dimensões da totalidade. Deste modo, a análise crítica de uma dimensão significativoexistencial possibilita aos indivíduos uma postura, também crítica em face das “situações limites (Freire, 1987, p.113). Explica ainda o autor que “a propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os investigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em seminário (Freire, 1987, p.124), ou na “partilha” 25, na qual vão se avaliando os achados, quer dos investigadores profissionais (professoresmonitores e técnicos de diversas instituições agrícolas que geralmente passam pelas CEFFAs, etc.), quer pelos auxiliares da investigação (o próprio povo do lugar). Daí resultam os seminários de avaliação e confrontação dos dados observados, dos quais todos participam. Para Zamberlan (1996): A prioridade na pedagogia da alternância é a dignidade da pessoa, como sujeito individual e coletivo, trata-se de jovens e suas famílias (pequenas ou grandes) e em torno desta comunidade. Leva-se em conta a totalidade da pessoa como indivíduo e o que ela representa na história e no seu meio. Por esse motivo a EFA ajuda e é parte deste fator de 25 Momento específico de debater, junto com os monitores os temas pesquisados nas propriedades dos educandos. 120 desenvolvimento humano social-do-meio onde está inserida (p.13). Nos caso específico dos momentos de partilha, observação e pesquisa, nas comunidades dos educandos, Freire observa que à “discussão de cada projeto específico, se vão anotando as sugestões dos vários especialistas (monitores e técnicos das organizações parceiras). Estas, ora se incorporam à “redução” em elaboração, dos temas discutidos na propriedade ora constarão dos pequenos ensaios a serem escritos sobre pelos alternantes “reduzindo” ora uma coisa e outra” (Freire, 1987, p.136). Gimonet (2007) também contribui com a discussão afirmando que: Uma teorização não é para si mesma, mas como processo de compreensão, ao mesmo tempo de nutrir a experiência, a ação do terreno, dar-lhes sentido. Deste jeito, para situar-se no horizonte educativo, não estar isolado, mas em relação com os outros e, às vezes, para municiar-se de argumentos a fim de defender-se dos donos do tradicionalismo ou dos poderes administrativos (p.23). O tradicionalismo no interior das comunidades, levando-se em consideração as formas de plantar e nas próprias instituições de educação é bem perceptivo quando se trata de inovações que os jovens alternantes pensam e buscam inserir nas suas propriedades onde vivem, o que acaba por gerar os conflitos tanto entre gerações quanto entre saberes. 3.1.13 – A pedagogia da alternância como “divisor de águas”: a educação formal e informal nos CEFFAs Começamos este item com uma primeira e grave constatação: a escola formal, mesmo a instalada na zona rural e da forma como está organizada, não consegue formar sujeitos capazes de inverter a lógica da pobreza e da falta de oportunidades no campo. A pedagogia da alternância nasce efetivamente como alternativa para a construção de uma educação para as populações que não podem e que não devem ser enquadradas no modo educativo das escolas urbanas tradicionais. Ela parte do princípio de que se deve romper com o ensino baseado na transmissão vertical dos conhecimentos, que compõem um tipo de “educação bancária”. Para a pedagogia da alternância, o conhecimento deve ser construído na interação das pessoas entre si e das pessoas com o meio onde estão inseridas. “O 121 objetivo do projeto então seria a valorização das potencialidades da pessoa humana através de atividades e ferramentas postas em ação, e de um conjunto de atores parceiros mobilizados e articulados que interagem na formação dos jovens” (Moura, 2002).26 Com Bachelard (1996), compreendemos que “a escola necessita instituir o “primado da reflexão”, no qual os conceitos relacionados ao senso comum são confrontados com o conhecimento científico”. Esse seria, a justo título, o objetivo principal da pedagogia da alternância. A pedagogia da alternância tem a possibilidade de inverter essa lógica da escola do campo sem o primado da reflexão. A ideia principal não é afastar as crianças, jovens e adolescentes do meio onde eles vivem (a zona rural, o campo, a floresta), mas estabelecer a relação entre a ciência e os saberes locais enquanto eixo organizacional: “A alternância seria neste caso o encontro da experiência com a ciência, dentro de um processo inovador; também como ação – pesquisa – formação permanente” (Gimont, 2007, p. 27). É um processo que se constitui em “uma caminhada de tentativas e de ensaios, de empirismos e de reflexões, de desordem e de ordem, de informações e de formação, de estruturações e de organizações para existir, afirmar-se, chegar, gerir suas dependências, ganhar em autonomia, ser si mesmo e ser solidário” (p. 27). Neste sentido tanto os elementos formais da sala de aula quanto os elementos informais encontrados no campo de uma maneira geral se constituem em elementos formadores que junto completam a formação. Naquilo que se trata das escolas em estudo uma EFA, uma CFR e uma Escola pública formal de educação de base, (esta ultima por si só retirada do quadro desta análise por está vinculada diretamente as Secretaria de Educação do Município e fazer parte do reconhecimento e da burocracia estatal), no caso das outras duas escolas em alternância o que se observa é um alto nível burocrático de funcionamento, com programas e currículos bem definidos em relação ao seu fazer pedagógico. Greenfield & Lave (1979), observa que as estruturas estanques entre o formal e informal revelam uma dicotomia que pode ser em certos casos extremamente exageradas, muito generalistas e prejudiciais em seu funcionamento, para eles: 26 Entrevista concedida a ASBRAER. Jornalista Helena Pawlow, 2004: David Rodrigues de Moura é secretário executivo da instituição. 122 Existem mais de dois níveis de formalidade nos modos como as instituições educativas são organizadas, e que é muito mais frutuoso de pensar em função de um continuum do que de uma oposição. Parece claro que todas as sociedades do mundo guardam vários tipos de educação diferentes, e que estes tipos diferem para os seus graus de formalidade. (apud, Vargas, 1995; p.53) Várias categorias entre o formal e o informal estão colocadas no trabalho de Vargas (1995) e que coincidem constantemente no caso da educação para o campo em CFRs e EFAs, numa primeira - o aluno é o responsável de suas aquisições (teoria e prática) e o professor/monitor é responsável da transmissão e das aquisições (teóricas e práticas) relação essencial para realizar alternância; Segundo, – a aprendizagem é personalizada: as pessoas de seu entorno são os mestres: (pais e famílias, comunidade) no caso da educação formal a aprendizagem é impessoal: os mestres não são normalmente da família, professores/monitores das EFAS e CFRs também não são da família; terceiro, - aprendizagem pela observação e imitação sem questionamentos/aprendizagem se faz por trocas verbais e por questionamentos o que quer dizer aulas práticas no campo. Nestes casos, o fenômeno de oposição (formal e informal) só pode ser explicado caso determinados autores estejam mais interessados em compartimentalizar o ensino e a aprendizagem a partir de um conceito tradicional de educação (educação bancária ou a escola formal da cidade); ou então, no caso em que determinadas esferas administrativas da educação precisariam compartimentalizar as EFAs e CFRs, pela não vontade de financiar os seus projetos, negligenciando-os e não reconhecendo a importância e a diferença destes princípios como fundamentais para uma educação de qualidade no campo. O não formal intervém, em sua origem, nas comunidades e mais precisamente a partir das famílias dos alunos: o manejo, a lida, o dia a dia e as relações de interação no interior de cada comunidade ou propriedade são elementos que incidem na tomada de decisões, intervindo de uma maneira direta nas práticas agrícolas e sociais das comunidades envolvidas. Essas práticas existem e desdobram-se ou devem desdobrar-se também em conhecimentos que a escola produz, numa necessidade intrínseca de vai-evem, o que para Freire seria um espaço dialógico e de trocas entre escola e comunidade. As práticas informais formam um conjunto de ordenamento que também é cultural e identitário desdobrando-se diretamente no saber-fazer e a escola percebe e refina esses 123 elementos corroborando com a construção de práticas embasadas agora de teorias que nasceram novas. A pedagogia da educação em alternância oferece essa vantagem ao permitir a relação com a comunidade, a relação com a propriedade, a relação com o manejo; além disso, envolve elementos do cotidiano local com força determinante para as confrontações que ocorrem, por exemplo, entre pais e filhos nos processos de manejo em suas propriedades. Nesse sentido, a educação em alternância é entendida como uma educação não formal, mas ao mesmo tempo possível para a transformação da realidade das comunidades locais. Ela obedece às formalidades vividas na educação convencional, pois ao entrar nos muros das escolas em alternância, o aluno está sujeito às mesmas metodologias e didáticas de formação que um aluno de uma classe regular qualquer. Mas a sua origem impõe outra atitude diante do espaço de onde ele vem. No caso dos modos informais de fazer e de saber, ele intervém porque é capaz de promover uma aprendizagem no terreno da família. Mas onde a realidade teórica não se separa da realidade vivida por cada sujeito no seu dia a dia, na sua lida27. A reflexão (teoria) sobre as vivências (empiria) são balizadores das intervenções feitas pelos alunos dentro das experiências de produção familiares. Isso vale em todo o ponto de vista prático, na relação com a plantação e com as técnicas de manejo tradicionais e que deve ao mesmo tempo garantir a continuidade do desenvolvimento de maneira sustentável às famílias envolvidas. Como se vê, o saber tradicional, das pessoas do lugar, assim como o saber da escola, trabalha em permanente troca, fazendo com as pessoas que conhecem, pois elas sabem também (e anterior à escola) das dificuldades impostas por cada uma das atividades. Um dos princípios utilizados nessa metodologia deve ser o de que a vida ensina tanto quanto a escola. Por isso, no centro do processo ensino-aprendizagem está o aluno e a sua realidade. A teoria está sempre em função de melhorar as práticas já existentes entre um determinado grupo de agricultores e não sobreposta, assim como o processo de ensino-aprendizagem que acontece em espaços e territórios diferenciados e alternados. 27 Lida, trabalho. 124 Um primeiro é o espaço familiar e a comunidade de origem; Um segundo acontece junto com a “partilha” (na escola): saberes esses, construídos em alternância nas comunidades e propriedades dos alunos. Reflete-se sobre eles e, por fim, retornam à família e à comunidade, a fim de aplicar de maneira mais sistemática esses conhecimentos agora refletidos de modo organizado na escola. Ambos os saberes (o formal e o informal) intervêm ao mesmo tempo, redimensionando e refazendo atividades concretas no cotidiano das comunidades. Não é impondo conhecimentos que se cria sustentabilidade e desenvolvimento, mas dialogando conhecimentos, como queria Paulo Freire, pois os que são oprimidos a priori também são possuidores de conhecimento. Nesse caso, o fundamental é a elevação deste conhecimento à categoria de conhecimento participativo, conhecimento dialógico e dialético. O papel dos primeiros, que são em sua maioria os jovens das comunidades, os monitores e os técnicos engajados das escolas, é de estabelecer essa relação dialogal entre o aprendizado intra-muro (formal) escolar e o conhecimento concreto das pessoas do lugar (informal, tradicional, empírico). Assim a capacidade de escuta (de monitores e técnicos) se transforma num fundamento, numa essência a ser desenvolvida pelos jovens monitores e que reverbera no processo de formação dos estudantes dessas escolas. Sem qualidades como essa, o risco é de imposição do saber formal (da teoria), sobre o saber comunitário, tradicional adquirido nas diversas gerações que lhes antecederam. Do ponto de vista cultural, a mesma relação se estabelece com o informal, sobretudo no que diz respeito às formas de vida, aos mitos e às crendices que perpassam as comunidades. Nesse ponto, mais do que em qualquer outro, o respeito pelas formas de vida das pessoas do lugar é componente essencial, pois a imposição de modelos externos pode levar ao desaparecimento de práticas culturais importantes na formação da identidade dos que ali vivem. A escola, principalmente essas do meio rural, deve estar implicada diretamente na guarda dos conhecimentos tradicionais ou informais das comunidades em que participam. É da escola a responsabilidade de manter as tradições ao mesmo tempo, em que produz novos conhecimentos, percebendo-os, refletindo-os e analisando-os numa perspectiva sustentabilidade a longo prazo. Sem o estabelecimento dessas condições, não será possível, para as escolas do meio rural, cumprir o papel fundamental de escola 125 engajadas a partir de recortes pedagógicos para o campo com vistas à emancipação dos que ali vivem. Partindo dessa compreensão, é possível afirmar que não é a colheita nem a plantação que dificultam a educação de crianças, jovens e adultos, mas a escola que não se compreende como do e para o campo, havendo assim distanciamentos e dificuldades no processo de ensino-aprendizagem para as pessoas que nele vivem. Esses distanciamentos e dificuldades da escola do campo levam ao esvaziamento das escolas rurais tradicionais, como se vê no seu dia a dia. As afirmações da Professora Francisca Batista (2003) são bastante elucidativas nessa esfera: O importante é discutir a concepção de educação e sua inserção ou não a serviço de um modelo sustentável e justo de desenvolvimento e que tal concepção se reflita no planejamento pedagógico dos sistemas de ensino e das escolas rurais de todo o país; quando se trata apenas das carências, acaba-se camuflando, se escondendo as questões mais profundas (p.18). Enfim, diz a professora: não se discute o papel que a educação vem exercendo no meio rural. Não se discute a cultura e o modelo de desenvolvimento que criaram essa educação e essa escola, e que são alimentados por elas. Não se questiona sobre os fins, os porquês, os qualitativos; apenas sobre os meios, o como, o onde, os quantitativos. Para Caldart (2004): Não há escola do campo num campo sem perspectiva, com o povo sem horizontes e buscando sair dele. Por outro lado, também não há como implementar um projeto popular de desenvolvimento do campo sem um projeto de educação e sem expandir radicalmente a escolarização para todos os povos do campo. E a escola pode ser um agente muito importante de formação da consciência das pessoas para a própria necessidade de uma mobilização e organização para lutar por projetos deste tipo. (p.62) É preciso ressaltar também que, de acordo ao que tem sido verificado na escola rural, a reprodução de saberes, em sua maioria, está completamente distanciada da vida e do cotidiano das pessoas do lugar. A mesma preocupação é tida por Caldart e Arroyo (2004), ao colocarem que “os currículos das escolas do campo não podem reproduzir o conjunto de saberes inúteis que estamos agora retirando da própria escola da cidade”. Para esses autores “o homem e a mulher do campo e da cidade têm saberes mais sérios a 126 aprender e a dominar”. Eles também colocam que a escola deveria “romper com esse círculo vicioso: sair do campo para continuar na escola e ter escola para poder sair do campo”. Segundo uma pesquisa-ação realizada entre a França e o Brasil (2002-2004), em ligação com a construção do Mestrado em Formação e Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Tour na France, a alternância educativa se estruturava em quatro pilares, sendo uma base social e associativa, cooperativa e parental: Uma organização participativa, incumbindo principalmente as famílias, mas também as comunidades, as instituições locais; Uma metodologia educativa própria baseada na distribuição de períodos de formação entre a escola e meio familiar; Uma formação integral de alunos nos âmbitos profissional, intelectual, humano, social, moral, espiritual que permite desenhar seu próprio projeto de vida. Com acento sobre o projeto profissional pessoal e o desenvolvimento local, os jovens e os adultos são convidados a se tornarem verdadeiros atores do progresso de seu meio. Os temas de pesquisa propostos aos mestrandos colocam o acento sobre um dos quatro pilares, sem perder de vista a apreensão global da formação em ligação com cada contexto específico, que são: A associação local de base, onde há uma responsabilidade direta dos envolvidos na gestão dos projetos, dos profissionais, dos promotores e das pessoas associadas; A alternância integrativa (socioprofissional), a saber: a propriedade familiar ou uma outra propriedade. A interação educativa entre escola e o meio seria um continuum desse sistema; Enquanto pessoa, se possível, a partir do seio do meio familiar de onde ele veio, através da educação (Puig, 2003, p. 57). Esses elementos são, também no nosso entendimento, basilares para a construção dos modelos em alternância. A compreensão e a maneira como devem ser trabalhados indicam os caminhos necessários a serem seguidos para que se tenha uma escola em alternância adequada tanto com a formação socioprofissional dos jovens quanto com uma formação cidadã. 127 3.2 – Duas visões para a educação rural: a pedagogia libertária e o protagonismo juvenil (segunda parte) Há uma diferença de procedimento em relação às concepções teórico/metodológicas de cada escola em alternância que fazem parte deste estudo. Aqui reside o caminhar próprio de cada uma, as suas direções, os seus projetos, as suas utopias... E, esses elementos são possíveis de serem observados e compreendidos a partir dos procedimentos dos diferentes atores locais (diretores, professores, alunos, pais e ex-alunos) em relação às teorias apresentadas por cada escola e seus consequentes desdobramentos nas práticas educacionais e de campo, como por exemplo, nestas duas escolas em pesquisa. Gimonet (2007) coloca que, em “princípio, sobre um sistema quase homogêneo no que diz respeito à origem e à cultura predominante dos atores – a cultura camponesa – os CEFFAs têm de enfrentar, hoje, uma grande heterogeneidade. Disto resulta, aí e acolá, uma complicação que torna difícil a gestão de cada uma em conjunto”. A tese se interessa por essa heterogeneidade que foi surgindo ao longo da história e da consolidação dessas instituições; portanto aqui, em duas dessas escolas, dois conceitos aparecem distintamente: a « Pedagogia Libertária» de Paulo Freire, que está na base pedagógica da escola “A” e representa uma certa tendência na articulação conceitual com a rede de CEFFAs no Brasil; o conceito de « protagonismo juvenil », que está na base da pedagogia praticada pela escola “B”, a qual se considera uma CFR (Casa Família Rural), ligada à ARCAFAR/Norte. Harbemas (2006) afirma que, na medida em que a técnica e a ciência prevadem, as esferas institucionais da sociedade se transformam. As antigas concepções, que estão na origem das instituições, dão lugar a novas atualizações, sugerem novos conceitos que, por sua vez, estruturam novas formas metodológicas na diversidade dessas instituições. Assim, as próprias instituições desmoronam as antigas legitimações. Esse é o caso das EFAs/CEFAs, ao longo de quase meio século de fundação, vistas a partir de suas heterogeneidades, o que nos interessa neste estudo. Para Harbemas (2006), a secularização e o desencantamento das cosmovisões orientadoras da ação, da tradição cultural no seu conjunto é o reverso de uma racionalidade crescente da ação social. Rompem-se, assim, os limites nostálgicos e 128 constituem os novos procedimentos em contexto, como vemos na vida quotidiana das diferentes práticas das escolas em alternância em estudo. As críticas e a vontade de retorno à origem tradicional das escolas não condiz com a sequência lógica que essas instituições devem seguir por si. Mesmo que as duas sejam consideradas como partidárias da pedagogia da alternância, suas bases teóricofilosóficas impõem necessariamente diferenças importantes, o que certamente deve lhes conduzir a diferentes práxis educacionais... Pensada dessa maneira, a alternância não seria a formadora enquanto tal, pois ela não é mais que a condição necessária de uma articulação entre teoria e prática, (Perrenoud, 2001). Todo o restante vem do ponto de vista pedagógico, filosófico e também político (já admitido por Harbemas e Marcuse) de cada instituição em alternância em particular, articulando seus conceitos particularizados na formação dos jovens do campo. 3.2.1 – O pensamento de Freire guia filosófica da escola “A” Em sua origem, para a escola “A”, não seria o conhecimento puramente técnico a priori que levaria os sujeitos à plenitude, mas o conhecimento do mundo, assim como coloca Freire (1996) em relação à perspectiva educativa. Nesse caso, a pedagogia, a educação humana seria antes de mais nada, um espaço de construção da liberdade, principalmente da liberdade daquele que é oprimido. A educação deveria se dar, então, a partir da leitura das realidades vividas, de suas lutas e de suas dificuldades. Essas dificuldades estão presentes no dia a dia da agricultura familiar. A pedagogia, nesse caso, passa por uma praxis educativa, que fala da liberdade humana, construída no espaço cotidiano onde se empreendem as lutas. Ainda para Freire, “a educação como uma prática de liberdade é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade. O papel do educador não é tão somente de ensinar qualquer coisa ao seu interlocutor, mas de pesquisar junto com ele os meios de transformar o mundo no qual eles vivem” (Freire, 1974). Assim como existe a necessidade de ultrapassar a situação de opressão que se impõe, é necessário que esta implique uma compreensão crítica da realidade, para que uma ação transformadora possa se exercer sobre ela, e assim se torne possível instaurar uma nova realidade. Nesse caso, a pedagogia que parte dos interesses egoístas dos opressores, egoísmo fantasiado de falsa generosidade e que faz dos oprimidos o objeto de seu 129 humanitarismo, mantém e encarna a opressão propriamente dita. “É um instrumento de desumanização”. (ibid, 33). 3.2.2 – O protagonismo juvenil guia filosófico da escola “B” No que diz respeito à escola “B”, uma CFR em estudo, seu engajamento se deu a partir do conceito de «protagonismo juvenil». O seu ponto de partida é formar jovens empresários rurais, o que é bastante diferente da perspectiva pedagógica freiriana. O jovem, a partir do que deseja o conceito de protagonismo juvenil, seria catapultado para o mundo do trabalho. Gimonet (2007), em reflexão ao pensamento althusseriano, adverte sobre o lugar e o peso do presente em relação ao passado e o futuro nessas instituições; para ele, “se as contingências do presente (as regulamentações, as necessidades imediatas, os modos, as tarefas, a economia...) invadem o espaço, as práticas, os espíritos, corre-se o risco da normalização, da uniformização, da perda de originalidade, de identidade e de criatividade” (p.14). Charlot (2005), em seu livro “Os Jovens e o Saber”, comenta que, por um lado, é preciso preparar trabalhadores “empregáveis”, “flexíveis” e “competitivos” e que o trabalho é uma característica fundamental do homem e das sociedades humanas; por isso deve ser levado em conta na educação. Por outro lado, o trabalho e a formação profissional devem participar de uma educação mais ampla, a qual não deve ser sacrificada, como hoje se vê na sociedade capitalista e na lógica neoliberal da globalização. Mas é preciso refletir também que os riscos ligados à instrumentalização crescente da educação em benefício do desenvolvimento privilegiam a formação de recursos humanos empregáveis (a mais ou menos curta e média duração) segundo a necessidade da mão de obra no mercado (Habermas, 2007). O pedagogo Antonio da Costa, baseando-se no pensamento do psicólogo americano Roger Hart, introduziu no Brasil um conceito de formação de adolescentes bastante diferente da pedagogia libertária de Freire. As divergências entre esses autores, pelo que observamos, não residem de fato no modo como ambos entendem as origens sociais dos educandos, mas no objetivo último de suas concepções teórico/metodológicas. Costa (2006) explica que: “O protagonismo juvenil seria uma prática que com a consolidação da democracia participativa e uma visão mais empresarial da vida e das 130 relações sociais, tende a se consolidar no Brasil e na América Latina”. Para ele, esse tipo de protagonismo, apresenta uma novidade radical… O jovem não faz uma opção por este ou aquele ideal, por esta ou aquela corrente de pensamento político, para depois, agir sobre a realidade. Ao contrário, o jovem deve agir sobre seus contornos escolares, comunitários e sociais, para depois, amadurecer suas opções no processo de autonomia gradual como pessoa, cidadã e trabalhador. (Costa, 2006) Ainda no que concerne o protagonismo juvenil o autor coloca que « ele contribui também com a inserção de jovens no mundo do trabalho, a desenvolver suas capacidades de planificação, de autogestão, co-gestão e heterogestão, e ajuda ainda a alargar suas capacidades de avaliar e de serem avaliados(Id; p.251). A clara distinção teórica entre a pedagogia libertária de Freire, e o protagonismo juvenil seguramente deve conduzir a diferenças fundamentais, tanto do ponto de vista filosófico quanto do ponto de vista metodológico e curricular no que incide nas práticas pedagógicas e certamente influencia nas relações de manejos das propriedades das comunidades envolvidas. (para se ver durante a análise geral dos dados da pesquisa; Capítulos VII; VIII & IX). 3.2.3 – Compreensões sobre o binômio educação/desenvolvimento rural Uma outra advertência viria com Bachelard (1996) ao compreender que “na prática científica, o conhecimento é a reforma de uma intenção. Conhecemos sempre contra o conhecimento anterior, retificando o que se julga sábio e sedimentado”. Para este estudo seria interessante admitir a hipótese a priori: a de que existe uma ligação de causalidade entre a educação, e a produtividade agrícola principalmente quando ligado à técnica e a ciência. Esta hipótese é bastante contestada em parte porque é difícil de avaliar com precisão a contribuição da educação com o crescimento econômico e o desenvolvimento das comunidades locais. Segundo Atchoarena & Sedel, (2005 p.40) numa reflexão a partir do nível de produtividade, percebe-se que a produtividade agrícola é sempre medida sobre a base da 131 produção alimentar (o caso da horticultura). Uma das críticas que podemos fazer e já observada pelos autores citados, é que este elemento não leva em consideração a diversidade dos sistemas de produção agrícola, tomando como exemplo os sistemas de produção da região cacaueira, que está baseado de uma maneira geral sobre a agrosilvicultura: os estudos empíricos são geralmente centrados sobre uma atividade agrícola deixando na sombra os efeitos da educação sobre as outras produções agrícolas e sobre as atividades não agrícolas enquanto elementos também do desenvolvimento rural. Em sua análise sobre a incidência da educação sobre a produção agrícola na Costa do Marfim, Gurgand, (1993) isola o impacto da educação sobre a totalidade da produção agrícola, em seguida sobre a eficiência técnica. Segundo seus dados, as famílias rurais marfinianas onde o nível de instrução era mais elevado tendiam a reduzir a parte da agricultura nas suas atividades para se colocar na direção de outras atividades não agrícolas e conhecidas genericamente como superiores (Atchoarena & Sedel, 2005 p. 64). Importa-nos os problemas metodológicos que interessa a essa tese em vê-los resolvidos: primeiro pela sua tentativa em avaliar as hipóteses acima e se esses elementos se apresentam no desenvolvimento das intervenções teórico/práticas das escolas em estudo, o que será também possível perceber no VII; VIII & IX capítulos, na análise geral dos dados; segundo, avaliar esta hipótese na relação com os sistemas de agro-florestas da região do cacau; e, terceiro pela tentativa de explicar esta questão por meio de um estudo de caso múltiplo da vivência dos vários atores (diretores, pais de alunos, professores-monitores e alunos) em três escolas diferentes da região cacaueira. Neste caso, a base para análise, são as observações diretas com notas de campo e o que responde os sujeitos envolvidos (entrevistas) para daí, compreendermos o contexto dessas escolas e das comunidades envolvidas e assim, retirarmos conclusões e generalizações importantes desse binômio educação/desenvolvimento do campo. O problema a estas questões não são tão simples de responder nem tão rápidos de se resolver com pretenderia uma massa acrítica. A necessária superação da pobreza e das condições de vida desaconselháveis ao ser humano no mundo rural, recai sobre a imperativa necessidade de resolver problemas de modernização e multiplicação das inovações capazes de garantir satisfação a uma determinada comunidade, ou mesmo a humanidade por inteiro, mas ao mesmo tempo, essas modernizações e inovações 132 construídas de modo acrítco, são capazes de colocar em cheque o ecossistema e o desenvolvimento sustentável como um todo e é dentro disso que vemos o subemprego crônico ou o desemprego que castigam as zonas rurais, como o que é visto no dia a dia da região do cacau: Assim o agricultor, mesmo quando obtém recursos a taxas razoáveis, não consegue se senão uma pequena parte dos recursos necessários para melhorar sua propriedade ou seus métodos de cultura ou, ainda, para comprar produtos de consumo essenciais nos períodos difíceis. Para esse mesmo autor a causa essencial desta fraqueza dos rendimentos e da produtividade é a extrema pobreza de recursos técnicos. A obsessão da fome torna estereotipados os sistemas de cultura simples, praticados sem interrupção, cujo objetivo é fornecer cereais e acessoriamente algum tubérculo e legumes complementares (George, p. 150). Os métodos primitivos de cultura caracterizam-se não apenas por uma fraca produtividade, mas frequentemente, também, pela deterioração dos solos e dos outros recursos naturais, caso da lixiviação freqüente e do uso indiscriminado das queimadas. Ainda no tocante a questão de educação e desenvolvimento seria preciso entender que a “a educação que suscita e difunde inovações não produz somente coisas; ela produz também homens. Ela modifica as atitudes destes, suas relações, o nível de suas aspirações, e facilita sua adesão e participação no processo de mudança, condição fundamental do crescimento econômico”. (Malassis, 1979; p.83) Seria necessário também recolocar aqui a noção propriamente dita de conhecimento e interesse, ou a noção própria do desinteresse do conhecimento ‘no caso particular das escolas em alternância em que suas práticas e suas determinações pedagógicas dependem da visão política que cada instituição se engaja’. (...) No pensamento habermasiano entendemos que esta unidade deveria, para o caso da educação, estar apoiada de modo crítico, entendendo que no momento de auto-reflexão, conhecimento e interesse são a mesma coisa, e neste sentido a dependência das condições transcendentais das ciências da natureza, ou das técnicas para a natureza e das do espírito, não podem significar uma heteronomia do conhecimento. (Habermas, apud, Coutinho, 2002): A questão que se interpõe aqui é saber qual a relação que se tem ou se deve ter com a natureza em seus processos entrópicos e de preservação biofísicos de um lado, e 133 qual a relação que esses processos devem ter, vinculados a necessidade crucial do amelhoramento da questão da pobreza peculiar às famílias com baixo poder de compra da zona rural nos países de terceiro mundo? Nos anos 1960, a “revolução verde” refletia uma visão de desenvolvimento rural associada a “monocultura” de grande escala, caso também da região do cacau, apoiada pelos investimentos massivos do Estado. (Atchoarena e Sedel, 2005; p. 57). Por exemplo, Santos (2007) ressalta que a “revolução verde” ainda é recomendada, apesar do fato, geralmente reconhecido, de que ela implicou na formação de uma burguesia agrária e na proletarização de camponeses. No caso da pobreza rural, um dado alarmante é que 50% das pessoas que vivem em estado precário de subsistência estão na agricultura familiar. Ampliar a escolha de modos de subsistência implica em colocar em evidência a interface entre produção agrícola e outras atividades. As formas emergentes de meios de subsistência diversificadas contribuem com a diminuição de riscos e a redução da vulnerabilidade entre estas populações. (FAO, 2002). Assim, mesmo reconhecendo a utilidade de outras iniciativas em favor do desenvolvimento, alguns autores consideram que o desenvolvimento agrícola continua a ser o mais potente dos instrumentos de redução da pobreza rural. (Irz et al., 2001. apud, Atchoarena e Sedel, 2005; p. 51). 3.2.4 – As inovações, a modernização, a técnica e a ciência na educação dos CEFFAs Sob o novo projeto, ou um projeto de educação e de um currículo que estabeleça um desenvolvimento em comunidades de agricultura familiar e estabeleça uma diferença educacional adaptada a comunidades em seu contexto, este do meio rural. Duas primeiras decisões viriam tanto de Freire (1974), quanto de Santos (2006) Esses dois pensadores em sentido diverso sobre o desenvolvimento das inovações para comunidades carentes tendem a afirmar a mesma posição: a de que a modernização e as inovações nestas áreas aparecem como imperativas. Evidente que o debate sobre a difusão técnica não se encerra. (Santos, 2007, p.30). Esta questão tem algum valor prático uma vez que sua resolução é crucial para a construção de modelos metodológicos que possam ser utilizados para diversos fins, neste caso, a difusão dos 134 conhecimentos adquiridos nas escolas em alternância pelos multiplicadores (alunos) a partir dos modelos operacionais que difundem essas inovações (currículos e metodologias). A partir deste princípio, é necessário entender que “a educação que suscita e difunde inovações não produz somente coisas; ela produz também homens”. Ela modifica as atitudes destes, suas relações, o nível de suas aspirações, e facilita sua adesão e participação no processo de mudança, condição fundamental para o crescimento econômico. (Malassis, 1979, p.83). Seria necessário também recolocar aqui a noção propriamente dita de conhecimento e interesse, ou a noção própria do desinteresse do conhecimento ‘no caso particular dos CEFFAs (escolas em alternância) em que suas práticas e suas determinações pedagógicas dependem da visão política que cada instituição se engaja’. (...) Com o pensamento habermasiano entendemos que esta unidade deveria, para o caso da educação, estar apoiada de modo crítico, entendendo que no momento de autoreflexão, conhecimento e interesse são a mesma coisa, e, neste sentido, a dependência das condições transcendentais das ciências da natureza, ou as técnicas para a natureza e das do espírito, não podem significar uma heteronomia do conhecimento. (Habermas apud Coutinho, 2002). Mas, entretanto, uma atitude dialogal entre as instituições que ventilam o conhecimento, o conhecimento ele próprio apoiado no sobre o que ensinar? e a sua extensão na comunidade dentro de uma perspectiva dialógica construindo autonomia entre e para os sujeitos e comunidades ali envolvidos. A questão que se interpõe aqui é saber qual a relação que se tem ou se deve ter, não apenas com a veiculação das inovações e da modernização, mas com a natureza em seus processos entrópicos e de preservação biofísicos de um lado, e qual a relação que esses processos devem ter, vinculados à necessidade crucial da diminuição da pobreza endêmica em regiões rurais, como no caso da região cacaueira onde a maioria das famílias tanto rurais quanto urbanas vivem abaixo da linha da pobreza? Estas questões, colocadas acima, não são tão simples de responder, nem tão rápido de se verem resolvidas: A necessária superação da pobreza e de condições de vida precárias do ser humano no meio rural recai sobre a imperativa necessidade de resolver problemas de modernização e multiplicação de inovações capazes de garantir a superação de formas diversas de injustiça social. Porém, essas modernizações e 135 inovações também mal adaptadas, ou mal empregadas seriam capazes de colocar em cheque a sustentabilidade comunitária como um todo. Nos anos de 1960, a “revolução verde” refletia uma visão de desenvolvimento rural associada a “monocultura” de grande escala, caso também que se verificou no progresso das plantações de cacau na região como um todo, apoiada pelos investimentos massivos do Estado e a enorme quantidade de insumos externos. (Atchoarena & Sedel, 2005; p. 57). Mas, Santos (2007) ressalta que a “revolução verde” ainda é recomendada, apesar do fato, geralmente reconhecido, de que ela implicou na formação de uma burguesia agrária, na proletarização de camponeses e na fragilização de ecossistemas agrícolas. No caso da pobreza rural, um dado inicial que nos chama a atenção é de que 50% das pessoas que vivem em estado precário de subsistência estão na agricultura familiar. Ampliar a escolha de modos de subsistência implica em colocar em evidência a interface entre produção agrícola e outras atividades. Segundo a FAO (2002), as formas emergentes de meios de subsistência diversificadas contribuem com a diminuição de riscos e a redução da vulnerabilidade entre estas populações. Irz (2001) considera que, o desenvolvimento agrícola continua a ser o mais potente dos instrumentos de redução da pobreza rural. (Irz et al., 2001. apud, Atchoarena e Sedel, 2005; p. 51). Por isso a crença da tese de que uma educação para o meio rural bem adaptada seria o vetor, se não o mais importante vetor do desenvolvimento agrícola local. Em uma resposta de Weber enquanto interesse de toda a sociologia em geral que também é partilhado por Habermas (2006) é afirmado que todas as classificações bipolares giram em torno do mesmo problema: reconstruir conceitualmente a mudança institucional, resultado da pressão e do alargamento dos subsistemas da ação racional teleológica. Estatuto e contrato, comunidade e sociedade, solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, grupos informais e grupos formais, relações primárias e relações secundárias, cultura e civilização, dominação tradicional e dominação burocrática, associação sacras e associações seculares, sociedade militar e sociedade industrial, ordem e acrescentaria mais, fertilização química e fertilização orgânica, etc. Todos esses pares de conceitos são outras tentativas de apreender a mudança estrutural de enquadramento institucional de uma sociedade tradicional, na transição para uma sociedade moderna. E neste caso, Habermas (2006; p. 36) fala da dialética do trabalho 136 que estabelece sem dúvida, uma medição entre o sujeito e o objeto... No início não se encontra a sujeição da natureza a símbolos autogeradores, mas inversamente, a sujeição do sujeito ao poder da natureza externa. A dialética da representação e do trabalho desdobra-se como uma relação entre sujeito cognoscente e agente, por um lado, e o objeto como totalidade do que não pertence ao sujeito por outro. A medida entre os dois momentos por meio de símbolos ou instrumentos é pensada como processo de exteriorização (objetivação) e apropriação... Se for possível a interação com a natureza enquanto sujeito oculto no papel do outro, os processos de exteriorização e de apropriação coincidem formalmente com os da alienação e reconciliação (Ibid). Neste caso Hegel (apud Habermas, 2006), também pensa em auto-reflexão, mas de modo tal que, nesta auto-reflexão, se insere a dialética da relação ética: o espírito seria aí, neste caso, eticidade absoluta. A dialética do reconhecer-se no outro religa-se com uma relação de interação entre dois oponentes iguais em princípio. Logo, a natureza na sua totalidade se eleva a oponente dos sujeitos unidos, desaparece, pois, a relação paritária (Habermas, 2006; p.37). O que eu quero falar, diz ele: é que a ciência, em virtude do seu próprio método e dos seus conceitos, projetou e fomentou um universo no qual a dominação da natureza se vinculou com a dominação dos homens – vínculo que tende a afetar fatalmente este universo todo. Neste sentido Habermas (2006), também propõe uma resposta a esse problema: Em vez de se tratar a natureza como objeto de uma disposição possível poderia considerá-la como interlocutor de uma possível interação. Em vez de natureza explorada poderíamos buscar a natureza fraternal, e, que neste caso, na esfera de uma intersubjetividade ainda incompleta podemos presumir subjetivamente nos animais, nas plantas e até nas pedras e comunicar com a natureza, em vez de limitarmos a trabalhá-la com ruptura de comunicação (p.50). A ideologia da técnica e da ciência, principalmente em seu contexto europeu traz esses elementos de ruptura embebedada com a ideia de racionalidade e da ideologia, produzindo níveis de alienação no sujeito e reproduzindo uma cultura e uma história de ‘mundo’ legitimada pelo poder institucional, o próprio Estado, (já que neste caso, a sua preocupação se dá no limite técnico) essa racionalidade estende-se, além disso, apenas a situações de emprego possível da técnica e exige, por isso, um tipo de ação que implica a dominação quer sobre a natureza quer sobre os homens (Habermas, 2006; p.46). Mas 137 Habermas, mais uma vez adverte que a subjetividade da natureza, ainda agrilhoada, não se poderá libertar antes de a comunicação dos homens entre si não estar livre da dominação (Ibid). Marcuse (1997) entende a racionalidade naquilo que Weber chamou de “racionalização”, que para ele não se implanta a “racionalidade como tal”, mas em nome da racionalidade, uma forma determinada de dominação política oculta. (Harbemas, 2006; p.46). Quem domina quem? Quem domina o quê? A partir do conceito de razão técnica em sua crítica a Max Weber, Marcuse chega a seguinte conclusão: “O conceito de razão técnica é talvez também em si mesmo ideologia. Não só a sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante (sobre a natureza e sobre o homem). Determinados fins e interesses da dominação... a técnica é, em cada caso, um projeto histórico-social; nele se projeta o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens e com as coisas. Um tal fim de dominação é “material” e, neste sentido, pertence à própria razão técnica”. Harbemas (2006) coloca que a legitimação da dominação assumiu um novo caráter: a saber, a referência “a crescente produtividade” e ao crescente domínio da natureza, que por sua vez, proporcionam aos indivíduos uma vida mais confortável. Para ele “A natureza compreendida e dominada pela ciência surge de novo no aparelho de produção e de destruição, que mantém e melhora a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, os submete aos senhores do aparelho”. Já Marcuse (1997) liga a sua análise, a peculiar fusão da técnica e dominação, de racionalidade e opressão, supondo que no apriori material da ciência e da técnica, se oculta um projeto de mundo determinado por interesse de classe e pela situação histórica (Habermas, 2006; p.50). Portanto, as instituições (escolas do campo, por exemplo) não estariam neutras neste debate, mas dirigidas pelo jogo também do interesse. Aqui se encontra também centrado um outro problema, este da racionalidade técnica e científica: A cisão de tal racionalidade não pode representar-se adequadamente nem pela historicização de um conceito, nem por um retorno à concepção ortodoxa, nem por meio do pecado original ou da inocência do progresso científico. (Habermas, 2006; p. 60), portanto a representação do conceito de técnica e ciência, precisaria amparar-se nesta comunicação ética com a natureza. 138 A formulação mais adequada do estado das coisas que, sem dúvida, importa examinar parece-me a seguinte: o a priori tecnológico é um a priori político na medida em que a transformação da natureza tem como consequência o homem, e em que ‘as criações derivadas do homem’ brotam de uma totalidade social e a ela retornam. Pode insistir que a maquinaria do universo tecnológico ‘enquanto tal’ é indiferente perante os fins políticos – pode servir de acelerador ou de freio a uma sociedade ou de um contexto particular. (Habermas, 2006; p.54). Assim, se trataria de uma busca e de uma definição ética do ponto de vista educativo para as escolas do campo estabelecidas no diálogo com a própria natureza e a comunidade que lhe cerca mediatizado pelo processo educativo. 139 140 CAPÍTULO IV 141 4. – Escolas Famílias Agrícolas (CEFFAs): o início de uma educação alternativa para o campo O Movimento das Casas Familiares Rurais – Maisons Familiales Rurales – (MRFs) começa na França, em 1935, a partir da ideia de criação de uma escola que correspondesse às necessidades reais e aos problemas vivenciados no meio rural francês aquela época. Esse movimento começa do encontro entre um padre que se comoveu com a falta de condições de estudos dos jovens e crianças da roça, já que o Estado não tinha políticas públicas voltadas para esta especificidade. (Batistele, 2009) Essas escolas sugiram no momento em que o meio rural francês estava sendo fortemente afetado pelo processo da mecanização agrícola e enfrentava a crise de seus produtos no mercado. O principal objetivo desse modelo de educação é o de promover uma educação/formação com base numa profissionalização alternativa eficaz e concreta, mais apropriada à realidade dos povos que viviam na zona rural francesa, principalmente agricultores familiares. Visa, com isso, incentivar a permanência do jovem na sua própria região, criando alternativas de trabalho e renda, numa perspectiva sustentável, evitando, com isso, o êxodo rural. Neste caso surgia uma proposta de aprendizagem a partir da realidade dos alunos, de suas experiências familiares, sociais e profissionais, procurando integrar a pratica e a teoria, despertando nos jovens a motivação para estudar e elevar sua auto estima: Na década de 1930, período entre as duas grandes guerras mundiais, encontramos uma organização rural que se despontava, o SCIR (Secretariado Cultural de Iniciativas RuraisFrança), mas ao mesmo tempo uma realidade desafiante que exigia um trabalho de reconstrução social e econômica. Na agricultura a realidade agrária, baseada na produção familiar, apresentava uma situação educacional de abandono por parte do Estado (Queiroz, 2006, p.16). A pedagogia da alternância nasce, então, enquanto alternativa educativa aos jovens rurais enquanto a crise se abatia no território francês. A ideia inicial era pensar numa proposta educacional em oposição à educação convencional para suprir as necessidades frente às realidades de populações não urbanas da França. Os ideólogos foram Jean Peyrat, agricultor e presidente do sindicato rural de Sérignac-Péboudou; padre Granereau, seguidor de Marc Sangnier (católico social); e 142 Arsène Couvreur, ex-bancário, jornalista, também seguidor de Sangnier. Inicialmente as MFRs possuíam três pilares: a) a formação técnica (aprendizado prático e observações no terreno, procurando fomentar a produção de agricultor); b) a formação geral (história, matemática); c) a formação humana e cristã. A partir de 21 de novembro de 1935, o padre Granereau começa os trabalhos com a primeira turma, com quatro jovens com idades entre 13 e 14 anos (Bastistele, 2011). O grupo passava três semanas em suas propriedades realizando o trabalho prático e uma semana em regime de internato nas dependências da igreja, recebendo conteúdos teóricos. Em 10 de maio de 1936, com o encerramento do semestre com os quatro jovens em formação os jovens realizaram o seu primeiro exame e os resultados foram considerados excelentes. Em seguida, o padre comunica o resultado do bom desempenho dos seus alunos ao membros do SCIR, que o publica numa edição especial da sua revista alcançando notoriedade nacional. (Batistele, 2011 & Queiroz, 2004). Posteriormente a notícia ganha destaque nos jornais de circulação nacional e o crescimento do número de jovens e de famílias interessadas em participar desta experiência confirmou o êxito do projeto. (ibid. p.17). A década de 1940 foi um período muito difícil para a França. Devido às consequências da Segunda Guerra Mundial, o país estava dividido pela ocupação alemã, mas mesmo assim, começaram a sugir Maisons nas regiões ocupadas e o projeto teve rápida expansão (Nové-Joserand, 1987 apud, Batistele ). Ainda segundo esses autores em 1941, foi criada a UNMFRs (Union Nacionale des Maisons Familiales Rurales) em Lauzun, sede do Cantão de Lot-et-Garone e Jean Peyrat se torna o seu primeiro presidente. Mais tarde, em 1942, foi criada a escola de quadros cujo objetivo era de formar monitores para dar suporte, clareza e objetividade a proposta e manter a sua originalidade procurando evitar a vinculação político-institucional do movimento. Batistele (2011), explica que o final da Segunda Guerra marcou uma nova etapa para o movimento e várias mudanças foram realizadas, dentre elas a renovação do Conselho da UNMFR, depois do pedido de demissão coletiva de seus membros. Essa atitude visava reconhecer a nova etapa que o movimento passava a viver e a sua necessidade de reordenação era latente. Conforme Chartier (2003) e Batistele (2011), embora os objetivos da formação estivessem claramente definidos, desde o início da primeira experiência, ela ainda 143 ficava muito distante de uma pedagogia do tipo integrativa, em relação às questões pedagógicas, tema que só seria abordado mais adiante. Durante a década de 1950, a experiência começou a chamar atenção e se expandiu para outros países da Europa, iniciando na Itália, em 1961, e chegando à Espanha em 1966. Ainda nesse período, as MRFs chegaram à África, por volta de 1950, com a criação de uma casa para moças em Tebourda, na Tunísia. Nos Territórios Franceses de Nova Caledônia e Polinésia, o programa teve início em 1977 e 1980, respectivamente. (Queiroz, 2006). Em maio de 1975, a partir do que já existia de experiências em alternância em 19 países da África, Europa, Ásia e América Latina, foi realizado em Dacar, no Senegal, o primeiro Congresso Internacional das Casas Famílias. Também em 1975 foi criada a Associação Internacional dos Movimentos Familiares de Formação por Alternância – AIMFR. Desde então, essas experiências se espalharam pelo mundo, reunindo, de um lado, o apelo à solidariedade internacional e humana “por uma educação para todos” e, de outro, fomentando experiências de desenvolvimento no campo da agricultura e das comunidades locais. O projeto pedagógico, nesse caso, foi desenhado como o resultado das ações dos diversos atores que deveriam atuar em parceria, entre eles: o monitor/educador/professor, o aluno, as famílias, as comunidades e instituições locais, tendo em vista que o ensino fora do mundo urbanizado não contemplava as especificidades e as necessidades da população rural. 4.1 – As CEFFAs chegam ao Brasil O movimento dos CEFFAs (Escolas/Casas Famílias Agrícolas) chegou ao Brasil, a partir de 1968, no Estado do Espírito Santo, denominadas inicialmente de EFAs (Escolas Famílias Agricolas). Mas as discussões para sua implantação começaram bem antes, por volta de 1965, com a intermediação do padre Humberto Pietrogrande, que veio da Italia e pertencia à congregação dos Jesuítas. (Batistele, 2011) Como se vê, os pioneiros foram lideres e movimentos ligados a Igreja Católica, principalmente durante a década de 1960, mesmo se o Brasil passava a viver sob a êgide 144 do regime militar, duas razões são perceptíveis para o engajamento da Igreja Católica: a encíclica Pacem in Terris (Paz na Terra) do Papa João XXIII e o Concícilo Vaticano II, que permite a inserção social da Igreja e faz uma reflexão sobre o capitalismo liberal através da encíclica Populorum Progressio (Desenvolvimento dos Povos) do Papa Paulo VI. (Queiroz, 2007 & Batistele, 2011) Sequencialmente esses eventos deram grande impulso aos setores progressitas da Igreja, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); as pastorais sociais e principalmente o surgimento da Teologia da Libertação. Entre outros movimentos ligados à Igreja Católica, a CPT28 se destaca, criando os primeiros centros em alternância na tentativa de levar educação para as comunidades rurais. Em seguida, os movimentos de luta pela terra e pela reforma agrária, mais expressivamente o MST e as ONGs, que igualmente alargaram suas atividades no campo educativo e também abraçaram a proposta da pedagogia em alternância. A partir de 1973 os CEFFAs proliferaram-se pelo território nacional ultrapassando as fronteiras do território capixaba indo se estabelecer na Bahia e, posteriormente, em solo mineiro, para depois, numa trajetória sempre ascendente, se expandir para quase todo o Brasil. De maneira geral, os CEFFAs estão situados no meio rural e os sujeitos envolvidos e comprometidos na sua gestão e administração são agricultores e agricultoras familiares, pescadores (as), extrativistas, assentados (as) da reforma agrária, assalariados(as), diaristas, parceiros(as) e arrendatários(as), jovens estudantes, suas famílias, profissionais, lideranças do meio e entidades afins, preocupadas com a educação e o desenvolvimento sustentável das comunidades atendidas. A expansão rápida dessa modalidade de ensino pode ser explicada principalmente em razão da realidade histórica da educação no meio rural, uma vez que a carência de escolas, o analfabetismo, a descontextualização do ensino formavam e ainda formam os principais fatores para o nascimento dessas iniciativas; uma situação muito parecida com as motivações ocorridas para que elas fossem criadas na França, em seguida espalhadas na Europa do pós guerra, avançando na África, na América Latina e na Ásia. Martins (2005) afirma que a ausência de uma escola básica do campo já é 28 Comissão Pastoral da Terra. 145 motivo suficiente para o surgimento de uma alternativa que contemple as reais necessidades educativas para esses povos (p.3-4). Como se vê, os fatores que contribuíram para o surgimento das Casas Familiares Rurais no Brasil tem relação direta com a econômia agrícola. As principais diferenças entre os CEFFAs e as escolas convencionais estão na metodologia e na pedagogia, pois essas escolas em alternância procuram congregar os anseios das populações com sua realidade e o seu modo de vida. Nesse caso, em relação à educação do campo no Brasil, entre outros motivos importantes para a fundação das CEFFAs, estão a ausência do Estado na educação dos povos do campo, o que resulta como se observa até hoje, no êxodo rural constante ligado tanto à falta de terras, quanto à falta de conhecimentos técnicos científicos dos jovens adolescentes para cuidar das suas propriedades. 4.2 – Como se articulam os CEFFAs no Brasil? Hoje são aproximadamente 248 centros educativos em funcionamento, distribuídos por 21 estados da Federação, atendendo a mais de 19.000 jovens a cada ano. Com essa estrutura em funcionamento, alcançam um contingente de 5.650 jovens formados a cada ano, somados a outros 50.000 egressos, o que representa um público beneficiado de 352.000 pessoas. Em termos de abrangência, são 820 municípios e 70.400 famílias associadas. (UNEFAB, 2007) Como vimos os CEFFAs atuam há mais de três décadas no Brasil, promovendo educação do campo integrada com a profissionalização nos níveis Fundamental (2o ciclo) e Médio. A UNEFAB foi criada em março de 1982 com o objetivo principal de coordenar as atividades e defender os interesses das entidades vinculadas bem como assessorar a implantação de novas iniciativas. (Batistele, 2011). A unificação das entidades numa rede nacional se torna fundamental à medida que os desafios da escola para o meio rural vão se sucedendo e se faz necessária uma organização que unifique as demandas. A UNEFAB é quem organiza as EFAs e realiza o trabalho de assessoramento junto às EFAs e às ECORs – Escolas Comunitárias Rurais. No ideal da UNEFAB estaria a promoção, por meio das EFAs, de um desenvolvimento sustentável e solidário para o 146 campo, através da formação dos jovens e de suas famílias, dentro dos princípios da Pedagogia da Alternância. A UNEFAB atualmente é composta por doze associações que articulam as EFAs em nível estadual, são elas: a AECOFABA (Associação das Escolas Famílias Agrícolas da Bahia); a RACEFFAES (Rede das Associações de Centros Familiares de Formação por Alternância – Espírito Santo); a AEFACOT (Associação das Escolas Famílias Agrícolas do Centro Oeste de Tocantins); a AEFARO (Escolas Famílias Agrícolas – Rondônia); a AMEFA (Associação Mineira de Escolas Famílias Agrícolas); a RAEFAP (Rede de Escolas Famílias Agrícolas do Amapá); a APEFA (Associação Potiguar de Escolas Famílias Agrícolas); a AEFAPI (Associação das Escolas Famílias Agrícolas – Piauí); a UEFAMA (União das Escolas Famílias Agrícolas do Maranhão); o IBELGA/ACEFFARJ Instituto Belga de Nova Friburgo/Associações dos Centros Familiares de Formação por Alternância do Rio de Janeiro); a ARCAFAR (Associação das Redes das Casas Famílias Agrícolas). Por fim, a REFAISA (Rede de Escolas Famílias Integradas do Semiárido), como o próprio nome já diz, se ocupa principalmente das escolas na região do semiárido Brasileiro e das tentativas de encontrar soluções essenciais para que filhos e filhas de agricultores familiares se eduquem e apreendam a conviver e a produzir no semiárido de maneira sustentável. A ARCAFAR (Associação de Casas Famílias Rurais) que se desdobra também em outras várias redes, como a ARCAFAR/Pará, ARCAFAR/Maranhão e ARCAFAR/Amazonas e ARCAFAR/Sul. Essa rede organiza as CFRs. A CFR (Casa Família Rural – escola “B” da nossa pesquisa) é afiliada à rede ARCAFAR/NorteNordeste. Na Bahia o grande articulador dos CEFFAs foi o padre italiano Aldo Lucchetta que junto com lideranças locais, incentivou a implantação dessas escolas. A primeira EFA da Bahia surgiu no Município de Brotas de Macaúbas na década de 1980; logo depois temos o nascimento da EFA de Riacho de Santana, em 1973, e em seguida vários outros municípios baianos se investiram na construção de escolas dessa natureza. A proliferação das EFAs na Bahia fez, por sua vez, surgir a Associação das Escolas Famílias Agrícolas da Bahia, a AECOFABA, que acompanha o trabalho desenvolvido no Estado que hoje possui o maior número de EFAs do Brasil. 147 Ao redor da UNEFAB/AECOFABA estão articuladas somente na Bahia 32 escolas e mais algumas em processo de fundação: a EACMA (Escola Agrícola Margarida Maria Alves – escola “A” da nossa pesquisa) é também uma de suas afiliadas.( UNEFAB, 2009). 4.3 – O funcionamento e experiência na organização dos CEFFAs no Brasil Permeados pela pedagogia da alternância, a central, mesmo com suas diferenças internas de posicionamento político/pedagógico procuram em sua base de projetos fazer avançar a educação do campo e o desenvolvimento das famílias de pequenos proprietários rurais. No entender dos seus ideólogos, na origem, para a construção da pedagogia da alternância nos CEFFAs a experiência vivida é mais significativa que a ensinada. Valoriza-se, portanto, a experiência cotidiana, numa reapropriação do tempo holístico, anterior à organização do tempo escolar de inspiração taylorista. Na prática o projeto educativo deve ocorrer em três momentos, envolvendo a casa do aluno, o centro educativo (a escola) e o meio socioprofissional. Se a casa é o local da pesquisa e observação, o centro educativo é o local da socialização das experiências, da comparação, análise, interpretação e generalização. No meio profissional devem ser aplicados os conhecimentos e é também onde surgem novos temas de pesquisa. No que concerne aos sócios ativos, a perspectiva inicial é a associação de pais de alunos, ex-alunos e outros apoiadores, como cooperativas, que possuem direito a voto e, de uma maneira geral, priorizam a experiência socioprofissional. Para Moura (2005)29, os CEFFAs são um modo específico de formar e educar pessoas que vivem no meio rural. Nesse caso, são destacados dois eixos principais que dão base para o projeto de formação proposto: a pedagogia da alternância e a associação das famílias. A pedagogia da alternância propriamente dita se caracteriza por alternar a formação do aluno entre momentos no ambiente escolar e momentos no ambiente 29 A citação é parte de uma entrevista cedida pela UNEFAB. 148 familiar/comunitário. O objetivo é desenvolver um processo de ensino-aprendizagem contínuo, em que o aluno percorre o trajeto propriedade-escola-propriedade: Em um primeiro momento, na propriedade, o aluno se volta para a observação, pesquisa e descrição da realidade socioprofissional do contexto no qual se encontra; Em um segundo momento, o aluno vai à escola, onde socializa, analisa, reflete, sistematiza, conceitua e interpreta os conteúdos identificados na etapa anterior; Finalmente, num terceiro momento, o aluno volta para a propriedade, dessa vez com os conteúdos trabalhados de forma que possa aplicá-los, experimentar e transformar a realidade socioprofissional, de modo que novos conteúdos surgem, novas questões são colocadas, podendo ser novamente trabalhadas no contexto escolar. De maneira geral, a pedagogia da alternância trabalha com a experiência concreta do aluno, com o conhecimento empírico e a troca de conhecimento com atores do sistema formal de educação. Trabalha também com membros da família e da comunidade na qual vivem os alunos e que ministra ensinamentos sobre a realidade em que se encontram inseridos. Atualmente existe uma série de instrumentos especialmente elaborados para trabalhar em regime de alternância, como: Plano de estudo com “temas geradores” escolhidos a partir de um diagnóstico da realidade local; O caderno de pesquisa; O caderno de acompanhamento, entre outros. Segundo Moura (2005), a formação acontece com 10 módulos de estudo ao longo de 02 anos, que culmina com a defesa de um Projeto Pessoal de Pesquisa e Experimentação, totalizando 510 horas de formação. São no mínimo 02 encontros de formação continuada com carga horária equivalente a 80 horas no total. Além de algumas parcerias já consolidadas, há também os seminários, congressos e assembleias, além de um conjunto de literaturas produzidas no próprio movimento que serve no contexto da formação. 149 2) A associação das famílias tem como função gerir e institucionalizar suas práticas – administrativamente, financeiramente e juridicamente. As casas familiares Rurais são pessoas jurídicas próprias, vinculadas às associações formadas pelos atores envolvidos no projeto pedagógico. Além disso, tem como responsabilidade participar da formação do educando e complementá-la de modo coerente a partir do que lhe é ensinado na escola. A integração entre os diversos atores envolvidos se mostra como um aspecto fundamental para o funcionamento da proposta da Pedagogia da Alternância. Dado que a formação do aluno se dá em diversos contextos, torna-se necessário que haja certa coerência de proposta entre eles. Além disso, segundo Passador (2000): O envolvimento da comunidade é primordial para a consecução dos objetivos do projeto, cuja implantação só acontece a partir da demanda da própria comunidade. A partir daí, começa a se desenvolver o senso de responsabilidade pelas escolas, a busca por soluções para os problemas da região, a valorização do agricultor como cidadão e como profissional. Consequentemente, o projeto acaba despertando a iniciativa e a participação comunitária, além de uma atuação conjunta por parte dos órgãos executores e parceiros do projeto. E ainda cria projetos de desenvolvimento regional, oriundos das aspirações das populações locais e dos ensinamentos da casa família rural (p. 02). Ainda de acordo com esse autor, “as casas têm evoluído com a maturidade política das comunidades. Nas cidades em que as lideranças constituídas e os agricultores compreendem suas atribuições junto ao projeto, esse se torna a mola propulsora da agricultura no município ou na região” (Passador, 2000, p.2), o que também será possível identificar durante a análise dos dados nos capítulos VII, VIII e IX. O que tem sido colhido das experiências da pedagogia da alternância no campo do Brasil? Martins (2005) considera que os CEFFAs têm apresentado resultados excelentes de custo/benefício, sendo muito favoráveis aos interesses da administração pública, pois garantem qualidade no ensino e com um custo menor em relação aos obtidos com a educação nas escolas tradicionais. Outros resultados indicados pelo autor são: formação de lideranças, diversificação da propriedade, geração de trabalho e renda no campo, inclusão social, resgate da cidadania, qualidade de vida, vida digna e 150 felicidade, continuidade dos jovens no campo e um projeto profissional de vida. Ainda ressaltaria outros pontos positivos tais como: Aumento de parceria com o poder público: as casas famílias rurais têm dificuldades financeiras e, por outro lado, a proposta pedagógica realizada é tida como de interesse público; Formações de parcerias com universidades para criação de projetos de curso de formação específicos para os monitores/educadores engajados na Pedagogia da Alternância. O desenvolvimento da Pedagogia da Alternância representa uma tecnologia social em si, pois um projeto pedagógico é desenvolvido adequando-se especialmente à situação em contexto, formando jovens que conhecem sua realidade e aprendem a partir dela. Outro elemento importante com este trabalho está no fato de que ele revela o potencial dos jovens agricultores, os quais têm a oportunidade de se desenvolverem como atores na produção de conhecimento. Isso acontece a partir do momento em que o jovem questiona sua própria realidade e detém os instrumentos para encaminhar uma investigação das questões de pesquisa de maneira mais sistemática. 4.4 – As dificuldades enfrentadas no funcionamento dos CEFFAs no Brasil No caso específico do funcionamento das CEFFAs, é possível enumerar um conjunto de dificuldades, como: a falta de apoio diverso para o funcionamento do modelo, nos níveis federal, estadual e municipal de reconhecimento e regulamentação da pedagogia da alternância (Martins, 2005). Apesar disso, verifica-se que muitas iniciativas têm se estabelecido com esses três níveis de dificuldade. O que se coloca é que será necessário um engajamento maior para fazer avançar as experiências dessa pedagogia de ensino de maneira consequente, no sentido de consolidar essas escolas de maneira definitiva e de superar suas principais dificuldades, tais como: ausência de formação acadêmica dos monitores/educadores, especificamente para questões da alternância e para o campo; melhoria e construção de instalações adequadas; problemas na produção interna de alimento; falta de área de lazer; produção agrícola interna 151 insuficiente para manter algumas experiências, além das dificuldades em conseguir equipamentos e materiais didático-pedagógicos. Araújo (2006) afirma que o maior desafio que se coloca hoje para os Centros Familiares de Formação por Alternância é a sustentabilidade econômica. Esse elemento aparecerá nas falas dos alunos, professores e diretores dentro do conjunto dos dados da pesquisa nos capítulos VII, VIII e IX tanto na escola “A” quanto na escola “B” em alternância. Ainda para esse autor, essa dificuldade se impõe porque essas escolas atendem a uma clientela que faz parte da classe trabalhadora – pequenos proprietários, posseiros, acampados e lavradores sem-terra. Queiroz (2006) sustenta que a autonomia dos CEFFAs é uma utopia, por isso é necessário discutir a ideia de torná-las públicas. Essa reflexão vai ao encontro do que acreditamos e defendemos na tese, pois, ao observarmos de perto o funcionamento das escolas em alternância, percebemos o grau de dificuldade que circunda o seu funcionamento. Para essa autora, a questão não seria de torná-las públicas agora, mas já é preciso discutir essa ideia, tendo em vista que se eles vierem a ser públicos não poderiam perder a sua autonomia e os seus princípios norteadores. A nossa pesquisa demonstra que não é possível pensar em educação para o campo enquanto se precisa pensar na alimentação cotidiana dos alunos. Também não se pode pensar em educação do campo com a maioria do seu corpo docente sonhando em ir para a cidade ou onde o aluno, em seus 15 dias de alternância na escola, negue a importância dos conhecimentos de suas famílias. Ou, ainda, não se pode ensinar elementos básicos de manejo dos utensílios do campo sem o mínimo de biblioteca à disposição dos alunos para que esses possam consultar e se informar sobre formas e alternativas de melhor desenvolverem suas comunidades. 152 4.5 – A Região do Cacau e a pesquisa Nossa pesquisa foi realizada em três Municípios do Sul do Estado da Bahia na região cacaueira, situada entre o litoral e o meridiano 400 e os paralelos 130 S e 160 S (Araújo & Campos, 1998). A vegetação é caracterizada pela floresta atlântica, dentro da qual se implantou a cultura do cacau que, durante quase um século, representou a principal atividade agrícola da região e uma das principais atividades econômicas do Estado da Bahia. A região compreende uma certa coerência do ponto de vista ecológico, econômico, cultural e social. A região do cacau é composta de 51 municípios e ocupa uma superfície total de 25.513 Km2, ou seja, em torno de 4,5 % da superfície total do Estado. entre eles Tancredo Neves, Valença e Ilhéus. Tabela 4: Evolução da população da Região Cacaueira População 1980 % 1991 % 1996 % 2000 % 2010 % Urbana 383.338 54,63 542,298 62,50 578.478 67,34 636.670 75,45 921.092 73,3 Rural 318.189 45,37 325.355 37,49 280.443 32,66 207.231 24,55 337,066 26,7 Total 701.527 100 867.653 100 858.921 100 843.901 100 1.261,158 100 Fonte: IBGE (Censo Demográfico 1980 – 2000) e, Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010. Inclusive a população residente nas áreas rurais isoladas. Como se pode notar (tabela 4) a evolução da população na região do cacau foi quase nula entre os períodos de 1980 e 2000, período em que a região atravessa a sua maior crise. Um outro elemento importante é a diminuição constante da população rural, devido aos processos de migração, saindo de 45% em 1980 e chegando a 26,7% em 2010 e o consequente crescimento da população urbana que salta de 54,63% em 1980 e chega a 73,3% em 2010. A população total tem um crescimento considerado fraco comparado a outras regiões do país, mas mesmo com o crescimento da população total da região, a população rural está em franca diminuição, o que revela o papel que desempenhou a crise da lavoura cacaueira desde anos 1980 até os dias atuais. Outro dado importante é que a população total cai de 858.921 em 1996 para 843.901 no ano 2000, o que revela no nosso entendimento, a forte imigração para outros centros urbanos, notadamente para São Paulo. 153 Mapa 2: A região cacaueira e a localização dos três municípios da pesquisa Figura 2: A região cacaueira e a localização dos três municípios da pesquisa 154 4.5.1 – A situação socioeducativa dos três municípios na Região do Cacau Na região cacaueira e especificamente nos três Municípios em pesquisa, a taxa de analfabetismo está entre as mais elevadas do Estado. Ela chega a 39% no município de Tancredo Neves entre a população de 15 anos ou mais (IBGE, 2010). No caso dos dados do desenvolvimento da educação básica, os índices observados no Município de Valença (notas do Ideb de 2011) são de 3,6 no total das escolas públicas numa escala que vai de 0,0 a 6,0 (6,0 que assinala uma educação de base de qualidade). Em Ilhéus, os índices são de 3,3 e Presidente Tancredo Neves de 3,9 respectivamente. O estado da Bahia é a região do Brasil que apresenta o maior número de municípios (405); entre eles, 05 têm os piores indicadores de educação de base do Brasil. Na região cacaueira, Apuarema e Nilo Peçanha e Piraí do Norte estão entre eles e têm índices de 0,5 e 2,4, respectivamente. Nas classes primárias de Presidente Tancredo Neves e de Valença, 70% dos alunos estão acima da idade normal de suas classes (Ideb; Inep, 2010). A situação se agrava de maneira evidente quando se trata da zona rural. Tabela 5: Situação socioeducativa dos três municípios implicados na nossa pesquisa: Município População Total Populaçã o rural 53.669 Analfabetismo mais de 15 anos % 20.6 Distorção idadesérie populaçãorural % 66,7 Ilhéus 184. 231 Presidente T. Neves Valença 23.857 14.228 39,0 70,8 DINI D Conclusão do E.F*. com distorção idade -série 0 88,6 0,50 0 88,2 0 87,4 0,39 88.729 24.328 26,54 70,1 0,47 * E .F. Ensino fundamental – dados IBGE 2010. 4.5.2 – A problemática ambiental no Sul da Bahia A paisagem regional está caracterizada pelo predomínio da Mata Atlântica, sob a qual foi cultivada a lavoura cacaueira que, durante várias décadas, representou a principal atividade agrícola regional e uma das principais fontes de renda do estado. Quando se pensa na região cacaueira, tem-se a ideia de que se trata de uma região agroecologicamente homogênea, mas esta é uma visão ingênua na sua multidimensionalidade. Muitos elementos que a compõem se diferenciam: na parte 155 centro oeste interior é possível encontrar as fazendas de cacau fazendo divisa com o sertão baiano nos municípios de Itaji e Jitaúna próximo a cidade de Jequié; No baixo sul o cacau se mistura com as plantações tradicionais como uma imensa faixa de dendê, côco e demais plantas litorâneas, no leste é possível encontrar grandes fazendas de gados confrontando com as fazendas de cacau e ao sul os resíduos da floresta atlântica confrontam-se com as fazendas de cacau. Portanto, mesmo com visão pouco rigorosa é possível constatar essa diferença, sendo que em todos esses espaços de uma maneira ou de outra, a cultura do cacau está presente, co-denominando a região. Apesar da beleza e exuberância, a Floresta Atlântica que compõe a região faz parte dos biomas extremamente frágeis. Com efeito, as variáveis meteorológicas ocasionam a diminuição da fertilidade do terreno e, consequentemente, incidem em situações de erosão e esterilização dos solos. A grande quantidade de chuva e a forte quantidade de sol durante o ano levam os pequenos agricultores a um nível de acuidade muito grande com a plantação. Se esses processos são mal geridos e as terras mal trabalhadas, a situação se degrada rapidamente. No caso das culturas de subsistência, mesmo entendendo que são culturas da base alimentar dos pequenos agricultores e da população regional, elas são, por extensão, também responsáveis por processos de degradação ambiental. Peteers (1989) mostra o exemplo repetido de degradação ambiental que aconteceu no início da colonização e ainda hoje se encontra na maior parte das práticas agrícolas na região do cacau: O avanço rápido das frentes dos pioneiros que, partindo da Baía de Guanabara (Rio de Janeiro), penetravam rapidamente muito longe no interior do país, deixando para traz solos cansados e esgotados e a “capoeira30” em detrimento da “mata”31 (Peteers, 1989). Ainda ligado com as questões colocadas acima, a região sul e extremo sul sofre com o desmatamento, principalmente com a chegada da vassoura-de-bruxa em 1984. Outras estratégias de sobrevivência foram buscadas pelos agricultores familiares: como o avanço das pastagens; a extração e venda ilegal de madeira para as serrarias; e práticas predatórias que tornaram comuns para algumas famílias de agricultores. 30 La capoeira é um termo utilisado ’est un terme très utiliser pour tous les fermier brésilienne elle une espèce de forêt secondaire, au des arbres de succession, qui sont ne après le déboisement de la foret primière. 31 Mata significa floresta virgem. 156 Uma educação para os povos do campo na região não pode negligenciar este aspecto. Muito pelo contrário, o currículo e os programas pedagógicos das escolas rurais tem papel fundamental na veiculação desta problemática no sentido de buscar soluções com as comunidades locais para reverter esta situação. Essa situação mudou pouco nos últimos anos, com a aprovação de leis mais rígidas no sentido de preservação ambiental tanto da fauna assim como da flora brasileira. No caso específico da região do cacau, são várias as espécies de árvores (retiradas pelos madeireiros) e animais (principalmente pela caça) nativos da Floresta Atlântica que estão em vias de extinção. No mapa é possível observar a situação de desmatamento ocorrida entre o sul (região do cacau) e o extremo sul da Bahia em 1945, 1970, 1980 e o que ocorria até o ano 2000, dando uma ideia do problema: Figura 3: Mapa da situação de desmatamento na Bahia IBAMA (2003). 4.6 – O Município de Ilhéus A história de Ilhéus remonta à época das capitanias hereditárias, quando D. João III doou vasta extensão de terra ao donatário Jorge de Figueredo Correia. Instalada em 1535, na ilha de Tinharé, antigo domínio da Capitania de Ilhéus, a sede administrativa logo se mudou para a região da foz do rio Cachoeira, a chamada Baía de Ilhéus. A cidade de São Jorge dos Ilhéus fica situada em local privilegiado. Recortada por muita água, sua chegada por avião é muito bonita e emocionante. O centro da cidade fica localizado numa ilha artificial formada pelos rios Almada, Cachoeira e 157 Itacanoeira (ou Fundão) e ainda pelos canais Jacaré e Itaípe, este último construído no final do século XIX pelo engenheiro naval François Gaston Lavigne, oficial do exército de Napoleão. Esse canal foi construído para facilitar a passagem das canoas que traziam cacau da região do rio Almada para o embarque no porto. Compondo a área de preservação ambiental da bacia hidrográfica desse rio, a Lagoa Encantada possui beleza natural ímpar, elevado nível de preservação ambiental, lindos passeios de barco, com cachoeiras e contato com a natureza. 4.6.1 – A economia e o cacau em Ilhéus Considerada por Tomé de Sousa como "a melhor coisa desta costa para fazenda", a região se tornou produtora de cana-de-açúcar e ganhou muitas construções. Mas, com a chegada dos índios Aimorés, que passaram a atacar as plantações, Ilhéus sofreu o declínio econômico que resultou em sua decadência. No século XVIII, com a importação de mudas de cacaueiros da Amazônia e sua notável adaptação às condições climáticas da região, Ilhéus viu brilhar diante de si um novo eldorado. O cultivo do cacau passou a gerar um número sem fim de histórias, recheadas de cobiça, amores e lutas pelo poder, formando um terreno fértil para os romances de Adonias Filho e Jorge Amado, os quais narram as paixões desenfreadas dos coronéis por dinheiro, mulheres e terras. O grande fluxo financeiro originado pela produção e exportação de cacau deu origem a peculiaridades no desenvolvimento da Costa do Cacau, região geoestratégica da Bahia. O desenvolvimento da produção e a busca por melhor qualidade nesta importante commodity levaram as lideranças regionais e os produtores a criarem a CEPLAC. A partir de meados da década de 1980, a monocultura cacaueira sofreu um rude golpe na sua característica principal, que era a de gerar muita riqueza. A seca constante provocada pelo fenômeno El Niño, os baixos preços internacionais e, por último, a praga denominada vassoura-de-bruxa fizeram da cacauicultura uma atividade menos rentável. Se para uns isso representou tristeza e angústia, para a região, de um modo geral, permitiu que se pensasse em outras atividades rentáveis, particularmente na agricultura. Por conta da crise verificada no final do século passado e início deste, a 158 monocultura do cacau vem cedendo espaço para a diversificação, a agregação de valor aos produtos regionais, principalmente a fruticultura. Nos anos 90, ocorreu a queda da produção interna e a queda do preço do cacau no mercado internacional. Junto a tudo isso, um conjunto de doenças se multiplicou na lavoura e pôs de joelhos a produção do cacau da Bahia. A principal dessas doenças, a vassoura de bruxa, foi sozinha a responsável pela dizimação de dezenas de milhares de hectares de cacau produtivo. O empobrecimento ficou explícito na região. Com a queda do preço do cacau no mercado mundial, o modelo tradicional da monocultura na região entra em crise, somado a isso, a chegada da praga vassoura-debruxa32nos anos de 1980 que acelerou ainda mais o êxodo rural. O cacau é um dos principais produtos agrícolas tropicais de exportação, mas não escapou da crise. Entre 1984 e 1993, o seu preço caiu pela metade. A retomada foi tímida e o valor real está sempre mais baixo desde o final da II Guerra. No mercado mundial, o cacau é um produto estratégico para a maioria dos países produtores, pois, diferentemente de outros produtos tropicais, ele é essencialmente exportado. No sul da Bahia, era o cacau quem alimentava majoritariamente as pequenas propriedades familiares. Para uma análise bastante própria sobre a importância da agricultura que é perfeitamente aplicável ao que acontece na região do cacau, Freud, Petithuguenin & Richard (2000) colocam a relação com a produtividade agrícola e o acesso à terra, já Achorema & Sedel, (2002) percebem o problema da pobreza na agricultura familiar nas regiões onde se produzem cacau, ligando principalmente quatro fatores: a) o baixo nível de produtividade agrícola; b) baixo nível de eficiência e equidade dos investimentos nos serviços elementares de saúde, de educação, de adução de água potável e higiene; c) pouco acesso desses camponeses pobres à terra, aos créditos, às competências e a outros ativos econômicos; d) a pouca diversificação da produtividade principalmente nas pequenas propriedades agrícolas, esse quadro é real na região do cacau mas se expande por todo o país. 32 Vassoura-de-bruxa - Crinpellis pernisiosa. 159 Para Arthur Lewis (1954), Se a agricultura estiver em período de crise, ela só propõe um mercado estagnado que faz obstáculo ao desenvolvimento do resto da economia. Si o desenvolvimento agrícola for negligenciado, si tornará mais difícil de desenvolver todo o resto: tal é o princípio fundamental do crescimento equilibrado. Na Região do Cacau, o desemprego aumentou consideravelmente. Logo na sequência da crise, cerca de 200.000 pessoas ficaram desempregadas em uma população de pouco mais de um milhão de habitantes. Assistimos à multiplicação das favelas nas duas principais cidades da região – Ilhéus e Itabuna – e mesmo as pequenas cidades se dividiram em receber os desempregados do cacau e acompanhar a imigração de sua população, principalmente para São Paulo: Produção Baiana de Cacau 450.000 394.648 400.000 397.362 356.327 347.552 321.140 350.000 281.038 Em t 300.000 273.000 250.000 187.000 200.000 150.000 321.011 336.925 327.584 283.316 321.966 299.591 314.600 249.085 225.077 193.000 278.280 253.798 254.464 238.886 185.247 152.381 173.000 160.390 134.383 100.000 96.038 144.195 129.329 121.837 104.003 101.118 50.000 19 72 /73 19 74 /75 19 76 /77 19 78 /79 19 80 /81 19 82 /83 19 84 /85 19 86 /87 19 88 /89 19 90 /91 19 92 /93 19 94 /95 19 96 /97 19 98 /99 20 00 /01 20 02 /03 20 04 /05 P - Safra Produção Baiana de Cacau F Figura 4: Produção Baiana de Cacau 1972-2005 Fonte CEPLAC, 2007. Athayde (1995) destaca o “argumento social” e o argumento ecológico. Segundo esse autor, o argumento social refere-se ao cacau enquanto um elemento definidor da “terra e da gente”, sendo alteadas as repercussões negativas da crise na economia 160 cacaueira na economia e na sociedade local através da queda do nível de renda, desemprego e imigrações. O “argumento ecológico” fundamenta-se nos impactos ambientais decorrentes da retirada dos remanescentes da Mata Atlântica – preservados pela cabruca – na tentativa de diversificação da economia, a exemplo da pecuária intensiva e da cafeicultura. 4.7 – O nascimento da EFA em Ilhéus: “a Escola “A”. A escola foi fundada por setores da CPT-Itabuna em 1997, preocupados com a questão da educação para o campo na região. Os alunos dessa escola são filhos de agricultores familiares tradicionais e filhos de trabalhadores rurais; a grande maioria é originária mais especificamente de “assentamentos rurais”33. A escola dispensa um programa próximo ao que acontece no ensino fundamental de 5ª à 8ª série. A alternância permite aos alunos ir às suas comunidades de quinze em quinze dias. A escolha dessa escola para o nosso estudo se dá pela sua compreensão pedagógica ligada a pedagogia do oprimido de Freire. 4.7.1 – Fundos e formas de financiamento da escola “A” em alternância As escolas ainda não são sustentadas de maneira direta pelo Governo e possuem formas e fundos de financiamento de suas atividades educativas de maneira diferenciada: o apoio das ONGs, os subsídios estatais e municipais, poucos recursos de empresas privadas, além do trabalho “idealista” de seus participantes (Martins, s/d). Os fundos e formas de financiamento da escola “A” – Ilhéus provêm de diversas instituições, cada uma das quais entra com diferentes formas de participação, ainda que seja necessário lembrar que o conjunto das fontes disponíveis não cobre os custos correntes dessa escola, que sobrevive com incertezas constantes na continuidade dos seus projetos, tendo por vezes que adotar soluções radicais, como a diminuição do 33 Originários de grandes fazendas ocupadas por diferentes organizações de luta pela terra entre eles o MST, (Movimento dos Sem Terra) e o MLT (Movimento de Luta pela Terra). 161 número de alunos. As contribuições advêm principalmente de ONGs, conforme aponta o quadro abaixo: Tabela 6: Os fundos e formas de financiamento da escola “A”. Instituição KMB (Movimentos católicos – Austríaca) Terre de Homes – Genebra OEW – (Movimentos Senhoras Católicas - Italianos) Mov. Protest. Suíços FASE-Itabuna SASOP IESB DIREC MST-UNEB Prefeitura de Ilhéus Tipo de participação 1 Voluntario Apoio financeiro + 1 Voluntário Apoio financeiro Apoio financeiro Parceria Parceria Parceria Professores/REDA-PST Formação de Professores Professores/Apoio financeiro Tabela 1: Os fundos e formas de financiamento da escola “A” O processo de formação e engajamento de professores dessa escola tem sido uma de suas principais limitações. Trata-se de uma situação que deve ser enfrentada por todos os atores envolvidos, inclusive o Estado, no processo de funcionamento dessas escolas. 4.7.2 – Formas de organização da escola “A” em estudo: Organograma (1): Organização da Escola «A» Escola « A » – Diretora Organizações Comunitárias (sindicatos e associações de pais) Associação de Pais Jovens/comunidades Professores/monitores (conselho deliberativo e conselho fiscal + suplentes) UNEFAB (União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas) DIREC – (Diretoria Regional de Educação) Figura 5: Organização da Escola «A» 162 Vista parcial do espaço escolar da escola “A”: Figura 6: Vista parcial do espaço escolar da escola “A” O espaço escolar não conta com área de lazer para os seus estudantes. Esse é um dos elementos que os alunos mais reclamam e sentem falta. Alunos em sala de aula: Figura 7: Alunos em sala de aula 163 Do ponto de vista do funcionamento dessa escola e da formação dos Professores/Monitores, temos a seguinte situação: Tabela 7: o funcionamento da escola “A” Professores/ Monitores/ Apoio 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 Curso Fase Instituição Relação com a escola Letras Terminando MST-uneb Contrato (REDA) Geografia Cursando Uneb Efetivo Geografia Cursando Uneb Contrato Matemática Cursando Uesc Contrato Educação Física Cursando Uesc Contrato Funcionária efetiva Artes Plásticas Concluído Contrato KMB Curso Téc. Contrato Enfermagem Apoio TDH Contrato (TDH) Artes apoio Contrato (capoeira e dança) Tabela 2: Funcionamento da escola e da formação dos Professores/Monitores A dificuldade no processo de formação de professores é um dos grandes desafios que a escola do campo deverá enfrentar, além, é claro, da necessidade de estabelecer a condição estrutural para o funcionamento em alternância. 4.8 – O Município de Tancredo Neves O Município de Presidente Tancredo Neves, antes conhecido como Tabuleiro de Liberina (1940), teve início com uma barraca de palha que ficava às margens da estrada que ligava as propriedades rurais à cidade de Valença, Nazaré e Aratuípe. Essa barraca, primeiro ponto comercial, pertencia a uma senhora de nome Liberina, a qual vendia alimentos e bebidas aos tropeiros que transportavam cargas em lombo de animais para as cidades acima citadas. Nessa mesma época, iniciou-se a construção manual da BA 002, surgindo outros comerciantes e, com isso, atraindo outros moradores. Esses comerciantes vendiam produtos alimentícios e vestuários e compravam produtos agrícolas (farinha de mandioca e cacau). Posteriormente o senhor José Pereira, proprietário da Fazenda Paraíso, passou a morar no povoado dando-lhe nome de Itabaína, nome de origem indígena que, conforme antigos provém de uma mistura de 164 ramas com pedras (Ita: significa pedra e baína: rama). A história conta que, naquela época, as ramas se estendiam sobre as pedras, característica acentuada da região. Com o surgimento da BR 101, por volta de 1957, o povoado começou a desenvolver-se com rapidez, em função da maior facilidade no transporte de cargas por caminhões. Logo após, em 1968, a BR 101 foi asfaltada, dando um impulso progressivo para a região. Itabaina localiza-se na região do distrito de Guerém, que pertencia ao município de Valença. Essa dependência administrativa durou até o ano de 1989. No ano de 1988, realizou-se um plebiscito, no qual os eleitores decidiram pela emancipação do povoado. A emancipação política tornou-se realidade em 24 de fevereiro de 1989, aprovada pela Lei Estadual n° 4.836 e publicada no Diário Oficial no dia 25 de fevereiro de 198934. A economia do município de Tancredo Neves é predominantemente agrícola; mais da metade da sua população vive na zona rural, formada, em sua grande maioria, por pequenas e médias propriedades que cultivam produtos como: cravo, cacau, guaraná, castanha, banana, mandioca entre outros produtos que são vendidos na sede da cidade. 4.8.1 – O nascimento da escola “B” A segunda escola que faz parte do nosso estudo é uma Casa Família Rural (CFR). Foi criada pela Fundação Odebrecht, no município de Tancredo Neves, no interior da Mata Atlântica, na região do Cacau. Ela se situa a aproximadamente 210 km de distância da primeira, localizada em Ilhéus. São duas turmas de alunos (jovens) com idade entre 14 e 23 anos, que se revezam em regime de alternância. Os 60 alunos, em sua maioria, são oriundos de comunidades rurais do mesmo município e dos municípios vizinhos de Tancredo Neves, como Venceslau Guimarães, Teolândia e Mutuípe. A escola faz parte da rede ARCAFAR/NORTE e foi escolhida com base na heterogeneidade que cerca o funcionamento teórico/metodológico de cada CEFAs/EFAs 34 As informações estão disponíveis no site: http://www.ferias.tur.br/informacoes/951/presidente-tancredoneves-ba.html 165 e CFRs hoje. Essa CFR escolhida propõe o conceito de protagonismo juvenil, cuja finalidade principal seria a formação de jovens empresários rurais, a se avaliar... Apesar de a escola estar localizada na região do cacau, ela escolheu como eixo central de sua intervenção no caso da agricultura, o “cultivo da mandioca”, naquilo que se define como “cadeia produtiva da mandioca”. A cultura do cacau é tomada de forma transversal, assim como outros temas geradores ligados ao cultivo de seringueira, maracujá, cacau, banana, pupunha e outras plantas da região e mais os temas ligados à criação animal. Os monitores explicam que a formação rural dispensada pela escola na direção do cultivo da mandioca deveu-se ao fato de que, em levantamentos técnicos anteriores, feitos para a possível implantação dessa escola, perceberam-se uma vocação considerável na comunidade para o cultivo dessa planta. Foi nesse sentido que a escola partiu em busca dos conhecimentos necessários para fazer evoluir o cultivo dessa cultura no interior das comunidades envolvidas em seu processo de formação. A cadeia produtiva da mandioca tornou possível a reestruturação de um cultivo consolidado na região. Quem lidera o processo é a Cooperativa dos Produtores Rurais de Presidente Tancredo Neves (Coopatan), que hoje reúne cerca de 1.800 membros, envolvendo famílias de nove municípios no Baixo Sul. “A maioria das famílias produzia a mandioca da maneira que havia aprendido com seus antepassados”, afirma um monitor. Não havia seleção de “manivas”, o beneficiamento não era mecanizado e a adubação era feita de maneira incorreta. Pelas observações feitas, não há uma imposição por parte da escola, para o plantio exclusivo da mandioca, mas um incentivo para a diversificação, segundo os próprios monitores, sendo que a mandioca conta já com técnicas devidamente experimentadas de cultivo que intervêm continuamente no interior da escola e das comunidades envolvidas. 4.8.2 – Seleção de alunos Em 2003, foi realizada a seleção da primeira turma, composta por 35 jovens entre 15 e 24 anos. Desde então, a cada ano, mais jovens aprendem novas tecnologias agropecuárias para diferentes tipos de cultivo como feijão, milho, mamão, banana, 166 acerola, maracujá, abacaxi, mandioca, cacau, cupuaçu e seringueira, além do manejo de caprinos, bovinos, suínos e aves. Cerca de 100 jovens já passaram pela Casa e concluíram o curso, que tem duração de três anos. Atualmente, mais 60 estão em formação. Os números dos beneficiados pelo projeto aumentam na medida em que o conhecimento é repassado aos moradores vizinhos: 119 famílias estão envolvidas diretamente, totalizando 666 pessoas em 56 comunidades de cinco municípios. Indiretamente, são atendidas 5.666 pessoas. O Diretor executivo da escola, conta que “cada etapa vencida é a conquista de um novo desafio.” O último deles foi à “autorização” do Conselho Estadual de Educação (CEE), em maio de 2009, para que a CFR ministrasse o ensino médio integrado ao técnico com habilitação em agropecuária, tornando-se a primeira instituição de ensino em alternância com este tipo de aprovação no Norte/Nordeste: “o reconhecimento pelo Conselho é uma vitória de todos que contribuíram para que isso se transformasse em realidade”, declara. 4.8.3 – A Fundação Odebrecht e o nascimento da Escola “B” Criada em 1965, a Fundação Odebrecht é uma instituição privada, sem fins lucrativos, mantida pela Organização Odebrecht. Sendo uma das mais antigas fundações empresariais do país, segundo seus fundadores, ela nasceu com a missão de gerar benefícios adicionais aos que a lei previa para os funcionários da Construtora Odebrecht e suas famílias. No início da década de 80, em sua primeira mudança importante de foco, (segundo os seus próprios relatos), a Fundação Odebrecht abriu-se para a comunidade, com o propósito de ajudar o Governo a solucionar problemas sociais. Tomou a iniciativa de reunir as principais inteligências brasileiras, realizando prêmios, debates políticos e acadêmicos. Em 1988, viveu o seu segundo momento de revisão de papel. Seus técnicos perceberam que, apesar das boas ideias discutidas, o Governo não se mostrava em condições de implementá-las. Por essa razão, a fundação optou por dedicar-se a criar metodologias e modelos de intervenção nas comunidades. 167 Sob essa orientação, a organização deu um novo salto dez anos depois. Em 1998, assumiu a tarefa de coordenar ações do Programa Aliança com o Adolescente pelo Desenvolvimento Sustentável, desenvolvidas em regiões com baixo nível de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) no Nordeste. Nesse contexto, a sua inserção maior se deu no Baixo Sul da Bahia com vários projetos em andamento. A convivência mais próxima com as comunidades pobres do Baixo Sul da Bahia levou a Fundação Odebrecht a eleger esta região como prioridade de sua ação. O primeiro foco escolhido foi a educação de adolescentes, com o intuito de “formar empresários rurais”, de onde nasceu a Escola Família Agrícola – Presidente Tancredo Neves. 4.8.4 – A formação de “jovens empresários rurais” na Escola “B”: o conceito de “protagonismo juvenil” A Escola “B”, em seu procedimento pedagógico, visa fornecer educação profissional, com o propósito de formar “jovens empresários rurais”. Nelas os jovens passam uma semana com aulas na sala e no campo e duas semanas em suas propriedades, aplicando os novos conhecimentos, sob o acompanhamento e a orientação de monitores especializados. A metodologia sistematiza os conhecimentos adquiridos e os difunde nas famílias e comunidades, introduzindo, assim, novos padrões de qualidade e produtividade na produção local, principalmente no caso da mandioca. A partir de parcerias estabelecidas com instituições de pesquisa, a exemplo da EMBRAPA, (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuária) essa escola funciona também como centro de geração e difusão de tecnologias produtivas, ligada mais especificamente à cadeia produtiva da mandioca. A escola “B”, com os recursos disponíveis, articula: Uma estrutura técnica rigorosa para o cultivo e produção da mandioca; Uma estrutura cooperativa dos agricultores e filhos de agricultores da região na direção do cultivo da mandioca; Uma estrutura de fabricação e agregação de valores na produção e, por fim; Uma estrutura de comercialização do produto. A escola entra também como a grande organizadora de todo esse processo. 168 4.8.5 – Formas de financiamento da escola “B” A escola possui ao todo 120 hectares de terras. Segundo a nossa observação, feita junto à maioria dos Monitores, a escola ainda é incapaz de gerar a sua autossustentabilidade, sendo esse um dos objetivos a conquistar em médio prazo. O custo geral das despesas na manutenção dos alunos ultrapassa as receitas adquiridas com o cultivo de culturas diversas implantadas hoje no interior das terras pertencentes à escola (dados de 2008), como a mandioca, amendoim, criação animal, banana entre outras. Segundo seus próprios dirigentes, essa receita está longe de garantir o custo elevado da formação dos seus alunos. Nesse sentido é necessário precisar que, sem as intervenções de financiamento externo, dificilmente essa escola se manteria funcionando. Diversas são as instituições financiadoras, sendo que cada uma entra com diferentes formas de participação. A escola funciona também como um centro de experiências de grandes instituições de pesquisa. Essas experiências contribuem de forma decisiva para a elevação do nível de aprendizado técnico/científico do alunado. Nesse momento a escola conta também com o reconhecimento do Governo Estadual, através da Secretaria de Educação do Estado e passa a funcionar como escola em alternância de nível médio. Para garantir a sustentabilidade da iniciativa, essa escola busca também implantar campos, fortalecer parcerias, seja em nível financeiro, político ou técnico. Essa escola conta com o apoio de diversas instituições para dar continuidade e ampliar suas ações, entre elas: Governo Federal; Governo Estadual da Bahia; Prefeitura Municipal de Presidente Tancredo Neves; Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA); Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar); Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae); Instituto de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul (Ides); Instituto Direito e Cidadania (IDC); Cooperativa de Produtores Rurais de Presidente Tancredo Neves (Coopatan); Fundação Odebrecht; Braskem; Grupo Michelin; Microsoft; Dell e Oi. 169 4.8.6 – Organização e Funcionamento da Escola “B” Diagrama (2) Organização da Escola “B”: Escola “B” – Diretor Executivo/Administração Organizações Comunitárias (sindicatos associações) e parcerias (ONGs) Lider de OD (Organização Dinâmica) Monitores/Pedagoga – Coordenador de campo Associação de Pais (conselho deliberativo e conselho fiscal + suplentes Fundação Odebrecht/ARCAFAR/Norte (Associação da Casa Famílias Rurais) + Secretaria Estadual de Educação Jovens/comunidades 8: Diagrama da organização da escola “B” 4.9 – O nascimento da Escola “C” A terceira escola que nós pesquisamos se trata de uma Escola Pública Rural, localizada no Povoado do Bonfim, município de Valença-Ba. A escolha se deu porque desejávamos ter uma escola pública rural da região com situações parecidas com tantas outras escolas rurais públicas da região e do Brasil. Do ponto de vista ambiental, essa escola está dentro das mesmas condições das outras duas escolas em alternância, ou seja, faz parte da região rural do cacau. O objetivo, então, é de formar a possibilidade de contraposição entre os dois modelos anteriores para, a partir daí, poder compreender e comparar o ensino rural de uma escola pública da região com as duas outras escolas baseadas na pedagogia da alternância. Um outro foco estaria em avaliar a dimensão da educação pública dispensada à população da comunidade rural do Bonfim, em Valença-BA35.A Escola do Bonfim está localizada na zona rural, a 30 Km da sede do município (Valença), e agrega todo um conjunto de alunos de comunidades rurais circunvizinhas, sendo que a maior parte dos alunos são originários da comunidade chamada Derradeira. 35 As informações foram obtidas no site: http://www.a-brasil.com/valencabahia/ 170 A escola conta com o FUNDEB (Fundo Nacional de Educação Básica) para apoio pedagógico. Tem ao todo 36 Professores e 795 alunos. A biblioteca funciona em uma sala de aula; não há salas para informática ou Internet. 4.9.1 – Vista parcial da cidade de Valença-Ba Figura 9: Vista parcial da cidade de Valença-Ba 4.9.2 – Os Professores da escola “C” em formação A pesquisa feita junto à escola “C” demonstrou a seguinte situação: são professores efetivos da municipalidade de Valença. O salário médio dos professores é de 2,5 salários mínimos e a sua grande maioria está no exercício da profissão há mais de 10 anos; quase todos são do município de Valença e apenas um vem do município vizinho, Tancredo Neves. Todos os professores estão em processo de formação acadêmica e apenas uma professora possui o curso de Pedagogia completo. São ao todo 35 professores para um total de 795 alunos. Cada Professor possui em média 40 horas/aula nessa instituição, o que equivale a 16 horas de curso em sala de aula. As horas restantes são divididas entre a preparação das aulas e as reuniões administrativas da escola. As salas de aula possuem em média 35 alunos, o que equivale dizer que cada professor se encarrega de aproximadamente 280 alunos somente nesta escola, pois, como foi também constatado, a maioria dos professores dão aula em outras 171 instituições de ensino, como forma de complemento salarial. Segue-se, assim, o perfil geral dos professores dessa escola: Todos os professores têm mais de dez anos de trabalho profissional e em sua totalidade são egressos do antigo curso de Magistério; Apenas uma professora concluiu o curso de licenciatura em Pedagogia. No entanto todos os outros continuam sua formação em universidades diversas. A maioria está matriculada no curso de licenciatura de formação de professores em Pedagogia da UNEB/Valença. Constatou-se também que a maioria dos professores mantém um ritmo descontínuo de suas formações, matriculando-se conforme as suas disponibilidades. Os principais motivos apontados para essa descontinuidade são as obrigações familiares, o trabalho de professor em sala de aula, além da falta de incentivo por parte do Governo. A formação, de uma maneira geral, se arrasta por longos anos, já que as dificuldades são muitas. Figura 10: Vista exterior da escola “C” Foto: Vista exterior da escola “C” Os professores da escola “C” em sua maioria são originários da sede do município ou de municípios vizinhos. Eles precisam se deslocar diariamente entre a 172 escola e o local onde vivem. Os veículos utilizados estão sempre lotados acima da sua capacidade e sempre em situação mecânica ruim. Esse é um dado recorrente no mundo da escola pública do campo e nos põe diante de problemas ligados à autoestima dos professores: como ter prazer em ser professor diante de situações tão difíceis? Vejamos abaixo como a escola se organiza: 4.9.3 – Organograma (3): Organização da escola (C) •Escola « C » – MEC •FENDEB •Prefeitura/Secretaria Municpal de Educação •Diretora/Vice-Diretora •Coordenação Pedagogica/Conselho Municipal de Educação •Projeto Político Pedagógico - Professores •Alunos - Reunião de Pais e Mestres Figura 11: Organograma: Organização da escola (C) 4.10 – O início dos programas governamentais para a formação de professores para atuarem nas escolas do campo No caso específico das Escolas-Casas Familiares Rurais, já em 1998, elas integram-se às ações, em nível federal, a partir do PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), possibilitando o crescimento de unidades implantadas no país. Os princípios do PRONAF são convergentes com os adotados pelas CEFFAs, facilitando o acesso à profissionalização dos jovens e de suas famílias e contribuindo com o aumento de ocupações produtivas e da renda no meio rural. No caso em particular da “educação do campo ou no meio rural”, temos o PRONERA (Programa Nacional de Educação em Áreas de Assentamento) proposto a partir de 1998 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esse projeto de formação 173 de professores é resultado do acúmulo dos processos de reivindicação e pressão dos diversos movimentos sociais do campo em relação à educação. A partir dessa nova compreensão, o programa chega para a formação básica do povo do campo. Mais uma vez os movimentos sociais repensam as suas demandas e descobrem o erro de reivindicar apenas a educação básica e alfabetização. Era preciso ir mais longe e garantir a todos o direito de ter educação plena para, assim, avançar na liberação e emancipação dos povos do campo no país. Os cursos de formação de professores na Bahia foram inicialmente organizados pela Universidade do Estado da Bahia o UNEB (2000), mas hoje já se estendem a todas as universidades estaduais. À universidade caberia o papel de qualificar e melhorar a atuação dos docentes nas escolas estaduais. Sobre isso alguns estudos vêm sendo feitos por pesquisadores de educação na Bahia, no sentido de avaliar os impactos desses cursos na vida dos alunos e dos municípios onde eles existem. Porém, por si mesmos, os cursos não se encarregariam de mudar a visão que os professores têm da zona rural e de quem nela vive. Esse programa seleciona professores já em atividades nas diversas cidades do interior da Bahia e os formam em um período de aproximadamente dois anos. No caso da UNEB são selecionados aproximadamente 100 professores por município de cada vez, que devem frequentar o curso no período em que não estão ensinando, ou seja, se ensinam à tarde estudam à noite, se ensinam à noite ou pela manhã, estudam à tarde. É importante salientar que esses cursos não direcionam as suas disciplinas para a educação rural e, assim, não podem contribuir de maneira significativa com o recorte da educação para o campo. Um dado importante a se notar é que boa parte dos professores inscritos nesses cursos trabalham na zona rural e são como já vimos antes, parte dos professores leigos. Nesse sentido, se faz necessário compreender que, para que a educação do campo cumpra efetivamente o seu papel, não se pode prescindir de metodologias adequadas a esse fim. Neste caso e mesmo se os cursos melhoram a compreensão da maioria dos professores leigos, a direção para a educação do campo deveria ganhar contornos mais específicos o que ainda não acontece aqui. 174 No caso da educação para o meio rural algumas metas deveriam ser colocadas para que educadores e educadoras pudessem efetivar de maneira adequada o seu papel nas escolas do meio rural e assim se perguntar: o que deveria estruturar a educação do campo? Quais elementos deveriam compor essa variável educacional do ponto de vista do respeito a identidade cultural? Do ponto de vista curricular, que material didático pedagógico poderia compor e contextualizar essa perspectiva de ensino? Quais as metas de formação continuada para educadores e educadoras do campo? Que relação efetiva deve ter esses com o meio ambiente, ecologia e o desenvolvimento sustentável? O que deve ser cobrado do Estado? Malassis (1979) adverte que “a formação de professores rurais/monitores condiciona inevitavelmente o sucesso da educação oferecida nos seus diferentes aspectos, o que está condicionado inevitavelmente à qualidade e aos fins da educação que será oferecida a estes”. Vale salientar que, com o atual governo federal, existem parcerias através do MDA (Ministério de Desenvolvimento Agrário) para melhoria das escolas do campo, como por exemplo: a política nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, que vem apoiando a realização de visitas aos jovens estudantes, suas famílias e comunidades. 175 4.11 – Esquema metodológico da pesquisa: Local Escola “A” Zona rural de Ponto de partida em análise Pedagogia do oprimido (Freire) Fatores Determinantes: Campo de tensão em Ilhéus “B” Zona rural de Protagonismo Juvenil análise Curriculums e teórico/metodológico programas T. Neves rural Metodologias “C” Zona de Práxis pedagógicas Pedagogia tradicional rural Valença contexto interno de cada escola Regras de organização do trabalho prático; inovação. Ciclo de transformação Mudanças de atitudes; percepção prática e relações. Resultados esperados Sustentabilidade comunitária; Identidade do campo; competência profissional; espírito de iniciativa; autonomia. Figura 12: Esquema metodológico da pesquisa 176 177 CAPÍTULO V 178 5. – Problemática e questões de pesquisa: da educação rural no Brasil Mesmo com a intensa urbanização do país nas últimas décadas, os dados populacionais revelam que 15,7% da população brasileira encontra-se na zona rural. No caso específico do Nordeste, a proporção é ainda maior: mais de 14.710.000 mais de quatorze milhões de pessoas, ou seja, mais de 27,2% do total da população vivem na zona rural nordestina. (IBGE,2009) Em 2009, 22,2% das crianças e adolescentes no Brasil com idade entre 10 e 19 anos não frequentavam a escola e portanto eram analfabetos. O resultado está na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009). A média de anos de estudo do total da população de 10 anos ou mais (Brasil) de idade foi de 6,7 anos – menor que a da parcela das pessoas ocupadas de 7,4 anos. Para a população de 25 anos ou mais de idade, o número médio de anos de estudo foi de 6,6 anos, enquanto para os ocupados nesse grupo etário ficou em 7,2 anos. A região Nordeste apresenta ainda o menor nível de instrução, com média de 5,4 anos de estudo; a região que apresenta esse índice mais elevado é o Sudeste, com 7,4 anos36. Ainda segundo os dados do INEP-IBGE (2009), a média de anos de estudos era de 1,4 para a população de 15 anos ou mais vivendo na zona rural do Brasil. No que concerne à educação de jovens rurais de todo o país, estima-se que metade deles, com idade entre 15 e 17 anos, pararam de estudar. Além disso, observa-se que 55% dos estudantes rurais do ensino médio estão acima da idade própria a esse período (Mansano; Ceroli & Caldart, 2004, p. 13). Do total de 278 mil escolas rurais brasileiras existentes no final dos anos 1980, 200 mil eram escolas municipais; 2,5 mil eram federais; 70 mil eram estaduais e 4,9 mil eram privadas. Mais da metade dos professores brasileiros não possuíam sequer o ensino fundamental concluído e ministravam aulas no meio rural. (IBGE, 2006) Em relação à Bahia, nada menos do que 4.472.000 de pessoas vivem no campo, ou seja 30% do total. 36 Disponível em http/www.Ibahia.com; acessado em 15/09/2006. 179 No caso da educação que tem sido direcionada a essas populações, ela não tem garantido uma formação que sustente os modos de vida que supere os desafios cotidianos apresentados. Se considerarmos a realidade específica da população rural do país, o índice de analfabetos pode chegar a 20,3% em algumas áreas, no Norte e Nordeste rural essa proporção pode atingir até 30% em certos casos. Se somarmos a essas, as pessoas que não conseguiram completar a 4ª série, chegaremos então a 48,4% dessa população (IBGE, 2009). Pode-se somara ainda que a média de estudos é de 3,5 anos para os homens e 4,3 para as mulheres. Há, portanto, um grave quadro de deficiência profissional e material. Quando se trata da educação para as famílias rurais, a realidade da educação que é destinada a estes é muito mais complicada do que normalmente se pensa: são grandes os índices de analfabetismo (cerca de 30% na região do nosso estudo); de cada 4 pessoas vivendo na zona rural do nordeste, um é analfabeto (IBGE, 2010); falta de valorização para um magistério com ligação real ao meio rural e à realidade do campo; as escolas encontramse em péssimo estado de conservação. No que concerne as aberrações salariais a partir dos dados recolhidos em setembro de 2009, o IBGE revela que os homens recebiam em média 305,00 reais por mês na zona rural nordestina e as mulheres ainda bem menos em torno de 205,00 o que equivalia a menos da metade do salário mínimo praticado na zona urbana nordestina. A falta de qualificação adequada da maioria dos professores e professoras na zona rural de todo o país é um problema recorrente. A depender da região, a carência de profissional qualificado no campo pode chegar a sua totalidade. Na Bahia são 32.705 professores na educação básica, desses 195 ainda não tinham completado o ensino fundamental; 30.672 tinham apenas o ensino médio e apenas 1.037 tinham o curso superior completo. (MEC/INEP – 2009). Ricci (1999) comenta que: Nos anos 80, com a eleição de governos municipais comprometidos com movimentos sociais rurais, em muitos municípios brasileiros, tiveram início as experimentações, que não chegaram a formular mudanças conceituais profundas ou programa político pedagógico que alterasse a lógica da escola para o meio rural. Tratada como uma espécie de resíduo do sistema educacional brasileiro, a escola no meio rural tem sérios problemas: 180 Falta de infraestrutura necessária e de docentes qualificados; Falta de apoio a iniciativas de renovação pedagógica; Currículo e calendário escolar alheios à realidade do campo; Em muitos lugares, é atendida por professores/professoras com visão de mundo urbano centrado, ou com visão de agricultura patronal. Na maioria das vezes esses profissionais nunca tiveram uma formação específica para trabalhar com realidade em que se encontram; Deslocada em sua maioria das necessidades e das questões do trabalho no campo; Alheia a um projeto de desenvolvimento local; Alienada dos interesses dos camponeses, dos indígenas, dos assalariados do campo, enfim, do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras, de seus movimentos e organizações; Estimuladora do abandono do campo por apresentar o urbano como superior, moderno, atraente; Em muitos casos, trabalha pela sua própria destruição, pois é articuladora do deslocamento dos estudantes para estudarem na cidade, especialmente por não organizarem alternativas de avanço das séries em escolas do próprio meio rural. Trata-se de uma realidade histórica ligada aos povos rurais que foram relegados ao descaso e ao esquecimento durante décadas. Isso tem custado a esses todo tipo de injustiça: a falta de educação de qualidade; a falta de estradas; falta de acesso à saúde; a falta de moradias dignas etc. Os prédios escolares, sempre em estado de abandono, sem carteiras adequadas, com piso semidestruído, sem reformas constantes, enfim sem apoio financeiro por parte dos governantes. Damasceno (2002) aponta que só para se ter uma ideia do descaso em que se encontra a educação básica no meio rural, basta dizer que existe ainda escola de taipa que sequer possui porta37. A maioria possui poucas carteiras, quadros negros estragados. 37 Escola rural em assentamentos: um retrato em preto e branco. UFC: fortaleza, 2002 181 Isso significa que a professora e os alunos não possuem as condições mínimas para realizarem atividades pedagógicas. O material didático que está restrito a lápis, borracha e caderno, custa a chegar e, quando chega, não é suficiente para atender a quantidade de crianças. A inexistência desse material faz a professora ter que buscar outras alternativas, como usar pedrinhas e palitos para o ensino da matemática. A professora vê-se obrigada a dividir uma borracha para quatro alunos, um lápis para dois, assim como cadernos. A esse quadro acrescentam-se as condições de vida no assentamento, marcada pela pobreza das famílias, às quais faltam, além da alimentação, calçados e roupas para as crianças frequentarem a escola com dignidade. Isso reflete o quadro lamentável de como a educação para o meio rural vem sendo tratada até os dias de hoje. É nesse sentido que os fóruns de debates sobre políticas para o campo se perguntam: afinal qual o destino social do campesinato em nosso país? E se ainda há espaço para um modelo de produção camponesa? Com as transformações dos processos de trabalho com as lutas sociais do campo, como definiríamos hoje uma agricultura familiar ou camponesa e de que maneira os processos educacionais poderiam intervir38? No Brasil temos ainda 15,7% da população vivendo na zona rural. Como vimos, a Bahia é o estado que tem o maior número da população rural em termos absolutos, ou seja, 30,1% da população rural do país. Essa população é composta, em sua grande maioria, por agricultores familiares39. Censo Demográfico (IBGE, 2010). A partir desses dados educacionais é possível afirmar que a educação direcionada às populações do meio rural não tem garantido uma formação adequada e sustentável, muito pelo contrário: as escolas do campo sempre foram o local do calvário de professores, para onde em sua maioria se negam a ir. Ensinar as populações rurais sempre fora visto como sinônimo de castigo advindo da perseguição política. Para o professor da zona rural, se estabelecem alguns conflitos: o primeiro é o fato de não estar na cidade, o que lhe remete ao problema existencial, que vai da falta de vontade e do desinteresse para trabalhar com os alunos da zona rural à crise urbano/rural, já que ele foi formado para trabalhar com alunos da zona urbana, no 38 Por uma Educação no Campo, Vozes, 2004. 39 Donnés de l’UNICEF, 2003. 182 mínimo da periferia das cidades. Entretanto, acabou na “roça” e, assim, suas aspirações de vida entram em choque com a realidade do campo. Parte dos professores e professoras sabem que o seu trabalho deve levar em conta o contexto no qual a escola, os alunos e elas próprias estão inseridos. Entretanto, elas se sentem numa situação conflitiva, já que são remuneradas pela prefeitura, devendo cumprir as determinações da mesma, com currículos distanciados e ligados a secretarias de educação sem competência mínima para compreender o problema. Assim, a ausência do nível de conscientização política e a falta de competência não permitem que elas sejam capazes de desenvolver o seu trabalho de forma crítica e independente. (Damasceno, 2002). Como essas professoras não foram formadas adequadamente para o trabalho na zona rural nem foram escolhidas pelas comunidades onde trabalham, pouco importa para elas o resultado do que fazem. Assim, podemos concluir que às crianças da zona rural brasileira, pelo que se observa, têm uma maior dificuldade nos diversos processos de aprendizagem do que as crianças das zonas urbanas. Para tanto, não se deve imputar apenas o fato da má formação do professor, mas é claro que se deve compreender todo um conjunto de variáveis que fazem parte desse recorte educacional, como implicadores no ensino/aprendizado dos alunos. Mas a falta de formação adequada é, sem dúvida, um fator relevante. Segundo a afirmação de Damasceno (2002), a maioria das aulas observadas nas escolas dos assentamentos não levam em conta o meio social nem a riqueza das práticas geradas nas lutas. Isso significa que não há ainda uma adequada integração entre o trabalho da professora e a realidade cotidiana das crianças e das famílias, no sentido de transformar a escola em elemento dinâmico de práticas novas e criativas. O desinteresse em participar da escola é um fato concreto em boa parte das salas de aula. Sobre essa questão, o IV Fórum Contag de Cooperação Técnica, denominado Educação para o Desenvolvimento Sustentável, realizado em Recife (2000) coloca o seguinte: A escola e a educação que são proporcionados aos alunos do meio rural não produzem os conhecimentos necessários para que os mesmos com suas famílias possam aumentar a produção e produtividade, agregar valor aos seus produtos, melhorar tecnologias, aumentar sua renda; 183 Que essas escolas não valorizam os conhecimentos que os alunos já trazem da experiência de seus familiares, para interagir com conhecimento mais técnico, escolar e científico, nem levam em conta a sua realidade. Martins, (2005) aponta também alguns problemas educacionais específicos para o campo, que entre eles estão: A escola desvinculada da realidade local; A falta de recursos para a família trabalhar a necessidade dos alunos ficarem na propriedade; A desvalorização da escola multisseriada; E a falta de vagas nas escolas agro-técnicas. Diante da variedade dos problemas apresentados, a nossa pesquisa se coloca na perspectiva de vislumbrar, num futuro muito próximo, algo capaz de delinear, no mundo da educação do campo, uma política que reafirma e congrega valores, tecnologia, desenvolvimento sustentável e ambiental para essas famílias. I – Da agricultura familiar e a educação do campo As políticas de esvaziamento do campo nos anos 1940 e 1950, o regime militar (1964-1984) e o aumento da concentração de terras, as histórias estereotipadas sobre os povos do campo fazem parte do conjunto de práticas exercidas pela elite brasileira para esvaziar, mascarar e desvalorizar o universo da agricultura familiar brasileira. Por vezes colocando em cheque a própria sustentabilidade alimentar do país. Scheeberger (2003, p.128) afirma que sempre houve fome no Brasil, desde a Colônia. A partir de 1964, mudanças profundas no modelo de desenvolvimento do país iriam agravar sensivelmente essa calamidade antiga. E, no começo dos anos de 1980, ao mesmo tempo em que se anunciavam safras recordes (ainda é assim em nossos dias) e o país alcançava à posição de quarto maior exportador mundial de alimentos, o Brasil passava ao sexto lugar no campeonato da desnutrição – atrás apenas da Índia, Bangladesh, Paquistão, Filipinas e Indonésia. Mesmo levando-se em consideração o descaso de como é tratada ainda hoje a agricultura familiar – tanto do ponto de vista agrário, também das políticas sócio184 educacionais, quanto do ponto de vista das políticas oficiais de crédito agrícola, no que tange essa inversão brasileira em relação a agricultura familiar, por exemplo, ainda hoje o crédito agrícola para as grandes plantações corresponde a mais de 80% do total do crédito agrícola no país, sendo que a produção de uma maneira geral desses grandes latifúndios é dedicada à exportação – ainda assim, a agricultura familiar é reconhecidamente a responsável por uma parte significativa da produção de alimentos básicos no Brasil: 58% do feijão, 45% do arroz, 61% da mandioca, 50% do milho, além de 72% da batata-inglesa, 81% do tomate, 44% do café, 69% da banana, 48% da laranja e 48% do algodão, 86% dos suínos, 80% da uva nacional produzida40. Quase a totalidade da carne de aves da mesa dos brasileiros é produzida pela agricultura familiar. Assim, além da geração de ocupações produtivas no meio rural, da reserva de mão de obra e pelo consumo de um grande volume de insumos industriais, a agricultura familiar gera um movimento econômico expressivo. A despeito da agricultura familiar, dados do próprio governo mostram que são cerca de 4,5 milhões de estabelecimentos ligados a essa categoria, o que representa a imensa maioria dos produtores rurais, dos quais 50% estão no Nordeste. O segmento detém apenas 20% das terras destinadas à agricultura, mas responde por 30% da produção global. Esses dados nos mostram exatamente onde se situa grande parte da responsabilidade da nutrição da sociedade brasileira. A agricultura de grande porte, com 80% das terras brasileiras, está concentrada, de uma maneira geral, na exportação dos seus produtos e é, por conseguinte a responsável direta pela maioria dos problemas de desequilíbrio ambiental e ecológico, como o desmatamento, a agricultura química em grande escala, a monocultura e mais recentemente a implantação das polemicas culturas transgênicas. A agricultura familiar, por sua vez, tem sido durante décadas seguidas, a responsável pela maioria dos alimentos que consome a sociedade brasileira e em geral são agricultores com baixo nível de escolaridade (Portugal, 2008). Essa expressividade fez com que se iniciasse uma mobilização políticoestratégica em torno do fortalecimento dessa categoria de produtores, por meio de movimentos sociais próprios e de programas governamentais, como o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimentos da Agricultura Familiar). 40 Ibid, 2008. 185 Essa expressividade, no entanto, não reflete as condições sociais e econômicas dos pequenos agricultores, no Nordeste, por exemplo, encontra-se 63% da pobreza rural e 32% do total dos pobres brasileiros; além disso, quase 43% dos indigentes do país encontram-se no setor agrícola. Segundo Graziano (2005), não é difícil associar esses números sobre pobreza rural com a massa de pequenos agricultores que, especialmente no Nordeste, ocupa estabelecimentos rurais de forma precária e insuficiente, mal garantindo seu próprio sustento. Tais propriedades, para Portugal (2008), pesquisador da Embrapa, são na verdade minifúndios inviáveis economicamente. Portugal (2008), aponta que as experiências de sucesso têm pressupostos comuns: organização dos produtores, qualificação de mão de obra, crédito, produtos com valor agregado e emprego de tecnologias adequadas. Esses elementos apontados pelo pesquisador condizem exatamente com o papel de uma educação conectada com o mundo rural. Efetivamente a viabilidade e, mais do que isso, a sustentabilidade a longo prazo da maioria das pequenas e médias propriedades do meio rural brasileiro, ou seja, a maioria das propriedades ligadas à agricultura familiar, depende das condições educativas oferecidas às famílias para que possam fazer evoluir a competitividade de suas propriedades. Nesse sentido, é possível afirmar que nem sempre é o tamanho da propriedade o elemento mais importante do desenvolvimento das famílias de pequenos produtores, mas a forma como essas propriedades são potencializadas e colocadas à disposição deles. Ora, as condições de viabilidade econômica e de sustentabilidade só podem ser adquiridas a partir de uma educação de qualidade, que considere os elementos levantados acima como fundamentais no sucesso desses objetivos. Para o consultor da FAO, Lacki (2002)41, a pobreza, a baixa rentabilidade e o subdesenvolvimento da agricultura latino-americana podem ser explicados pelas ineficiências tecnológicas, gerenciais e organizacionais dos agricultores, geradas em sua maioria, pelo modelo agrícola imposto pela Revolução Verde, em especial pelo crédito rural subsidiado. Para ele a melhor forma de essas famílias adquirirem esses conhecimentos seria a escola rural, de preferência num modelo pedagógico libertador, com conteúdos e métodos adequados à realidade rural, calibrando apropriadamente “o quê e como” as famílias necessitam aprender, com vistas a gerar cidadãos dotados de 41 União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil – Unefab. 2002. 186 mais autoconfiança e autossuficiência técnica, bem como de “ferramentas do saber” que permitam eliminar as suas deficiências. (p.3). Dessa forma, uma educação comprometida com a realidade do campo tem que ser uma educação para o desenvolvimento da agricultura familiar dentro dos aspectos mais sensíveis que esta variável requer, ou seja, educação capaz de enfrentar de maneira adequada os desafios quotidianos, tais como: equilíbrio ambiental e ecológico, desenvolvimento sustentável, emprego das tecnologias disponíveis, aumento do valor agregado na produção, recorte cultural e identitário das comunidades implicadas. O desenvolvimento estruturado no Brasil e implantado na agricultura desde seu nascimento enquanto república e o seu avanço nas últimas décadas do século XX deságuam no que vivenciamos: êxodo rural, favelização, desemprego, esterilização do solo, aumento da concentração de terras, destruição dos recursos naturais e consequentemente esvaziamento do campo, principalmente no Nordeste. Para Graziano (2005), a “pequena produção familiar precisa estar acompanhada por propostas de transformação dos agricultores tradicionais em verdadeiros agricultores, modernizados e profissionalizados. Pequenos, porém eficientes e produtivos”. (p.7) No Brasil, mesmo com toda a dificuldade, a agricultura familiar é reconhecidamente importante, pois além de produzir alimentos básicos, como já dissemos emprega um grande número de trabalhadores e consome um grande volume de insumos industriais. (Faria, 2006, p.8). Mais de 50% da produção básica de alimentos no Brasil deve-se à agricultura familiar; no entanto, “a opção por um modelo elitizado de desenvolvimento exclui a agricultura familiar e continua comprometido com os princípios da Revolução Verde que, nas últimas décadas, priorizou a introdução de sementes, agroquímicos e máquinas agrícolas.” (Chequeto, 2002). No Estado da Bahia, 43% da população ocupada é rural (o maior contingente absoluto do país). Talvez em três ou quatro regiões baianas poder-se-ia dizer que a pluriatividade e o trabalho parcial da agricultura seria uma decorrência do processo de modernização e industrialização [...] de um modo geral, o agricultor parcial estaria associado à estrutura fundiária, com o predomínio dos minifúndios, a falta de competitividade dos estabelecimentos e a expansão da pecuária extensiva (Trervisan, 2002, p.03). 187 A organização não governamental Terra Viva discute, nas primeiras páginas do Objetivo do Milênio (2008), que: As políticas desenvolvidas pelo Brasil para combater a pobreza não são mais do que políticas compensatórias. Elas não respondem às necessidades desejadas por milhares de pessoas excluídas. O governo brasileiro desenvolve somente programas pontuais e relega os deveres do Estado às municipalidades que praticam sempre o clientelismo, de maneira que as populações e os mais necessitados são abandonados à própria sorte (OMD, 2008). Não seria muito sublinhar a necessidade de desenvolver a agricultura local nesse tipo de situação, pois ela é sempre a condição sine qua non da melhora na questão da segurança alimentar (FAO, 2001b). Na última década, a realidade agrária brasileira modifica-se sob a égide do ideário agrário neoliberal, operando o que se pode chamar de tardia modernização, travestida de uma agricultura e pecuária desenvolvidas em escala empresarial, o agronegócio, voltado para o mercado externo mundial. Verifica-se a tendência crescente de desaparecimento do campesinato, de pauperização de pequenos e médios produtores, formadores da agricultura familiar, acentuando-se a crise, o sofrimento e as mudanças nas relações sociais decorrentes dos conflitos agrários e da migração. (Faria, 2006; p.8). Na contramão dos elementos colocados acima estão a importância de uma pedagogia para o campo enquanto base para reter as famílias de pequenos agricultores em suas propriedades, dando-lhes condições educativas e tecnológicas de se desenvolverem de maneira equilibrada e sustentável. Assim aparecem as escolas famílias agrícolas e a pedagogia da alternância, com foco centrado no aprendizado dos saberes locais em confronto com os saberes científicos. Mesmo Bachelard (1996) explica que o papel social da escola é o de racionalizar o conhecimento produzido nas instâncias que o elaboram, nesse caso, a escola e a comunidade de onde os alunos se originam. A função social da escola seria, então, a de dotar os indivíduos de conceitos e práticas que lhes permitam compreender e superar os limites do senso comum, no sentido de produzir uma agricultura otimizada, sistemática e sustentável. Talvez aqui seja preciso chamar de senso comum o saber empírico dos agricultores tradicionais das comunidades envolvidas que uma vez chegando à escola, 188 devem ser confrontados com os saberes e experimentos dos monitores e professores que lá estão. O conhecimento comum do agricultor, nesse caso, não é a conversa do bar, mas a conversa que pais e filhos têm durante os períodos de plantação e colheitas nas suas propriedades. Aqui também se situa o momento de pesquisa do filho do agricultor familiar que será confrontado nos momentos de partilha com conhecimentos mais científicos nas escolas do meio rural. Para Lacki (2002), na agricultura familiar, é preciso formar cidadãos dotados de mais autoconfiança e autossuficiência técnica, bem como de “ferramentas do saber” que permitam eliminar suas deficiências e assim melhorar a produtividade agrícola em suas propriedades. Isso só pode ser adquirido a partir de um modelo de educação para filhos e filhas de agricultores familiares, com conteúdos e métodos adequados às suas realidades. Mais de 50% da produção básica de alimentos no Brasil deve-se à agricultura familiar; no entanto, “a opção por um modelo elitizado de desenvolvimento exclui a agricultura familiar e continua comprometido com os princípios da Revolução Verde que, nas últimas décadas, priorizou a introdução de sementes, agroquímicos e máquinas agrícolas” (Chequeto, 2002). Nesse sentido, compreendemos que são os CEFFAs que apresentam essa capacidade de enfrentamento para desenvolver uma educação em contexto e, assim, se constituírem em verdadeiras alternativas de formação de sujeitos oriundos do meio rural. Freire (1974) observa que a escola não transforma a sociedade, mas pode ajudar a formar sujeitos capazes de fazerem a transformação da sociedade, do mundo e até de si mesmos. O desafio é, então, de fazer com que esses sujeitos tomem parte do seu mundo e se tornem agentes de transformação da sua realidade e da realidade das comunidades em que estão inseridos: emancipar-se e contribuir de forma articulada com a emancipação das suas comunidades e da sociedade como um todo. Só assim é possível fazer uma educação do campo e para o campo de maneira adequada, que desenvolva no sujeito camponês suas capacidades intelectuais e morais para garantir a transformação de suas realidades e que, ao mesmo tempo, sejam capazes de impulsionar as diversas famílias rurais para desenvolver-se de forma sustentável. 189 II – Do modelo agroexportador e suas implicações no mundo da agricultura familiar A perspectiva do sistema capitalista, no que diz respeito a impor um modo de vida e de consumo para toda a sociedade, passa necessariamente por um modelo de agricultura que serve aos seus interesses. No Brasil, ocorre uma inversão em relação ao campo e à agricultura como um todo: o crédito agrícola para as grandes plantações corresponde a mais de 80% do total do crédito agrícola do país, sendo que a maioria da produção desses grandes latifúndios é dedicada à exportação, o agronegócio. Nesse sentido, o modelo aplicado no Brasil, no que concerne aos grandes latifúndios, tem sido aquele capaz de produzir o mais rápido e em menor tempo (pragmatismo do agronegócio), garantindo um maior nível de lucratividade a despeito dos danos que podem ser causados a segurança alimentar do país, ao meio ambiente, à ecologia e a incapacidade de absorção de mão de obra, prevalecendo sempre uma visão pragmática da agricultura em larga escala. Contudo, sabe-se que a forma mais eficiente de criar empregos no meio rural, reter o trabalhador no campo e diminuir os problemas urbanos seria a formação de pequenas e médias propriedades, na medida em que o latifúndio, quando produtivo, é pecuarista ou se se trata de propriedade agrícola, bastante mecanizada, não absorvendo em ambos os casos muita mão-deobra (Scheeberger, 2003; p. 153). A seletividade do crédito agrícola rural faz da grande propriedade e da grande empresa agrícola os principais beneficiários diretos dessa modernização. Realizada no quadro da estrutura tradicional de alta concentração de renda e de terra. Nas ultimas décadas, o esvaziamento populacional no campo se acelerou consideravelmente. Expulsos pelas máquinas e pela concentração fundiária, trabalhadores rumam para as cidades, ampliando o processo de êxodo rural e de urbanização descontrolada, simultaneamente (Scheeberger, 2003 p. 153). A título de ilustração, o Banco Mundial calculou que, em 1978, somente 25% dos produtores rurais tiveram acesso ao crédito. Os dados do recenseamento agrícola de 1975 foram estimados em mais fracos ainda, com 14,4%. Nessa concentração se encontra no que concerne aos contratos realizados, o tipo de região e o tipo de cultura. No total, se observa sempre uma forte seleção em favor dos produtos de exportação, matéria-prima industrial e trigo. 190 Cinco produtos dominam os créditos: o café, o açúcar, o arroz, a soja e o trigo, produtos foram responsáveis por mais de 75% dos créditos entre 1969 e 1975. Nesse período, as regiões mais favorecidas foram o Sudeste (36%) e o Sul (36%); as outras receberam montantes muito mais fracos: 1% para o Norte, 14% para o Nordeste e 14% para o Centro-Oeste (Buffet, 2000). São milhões de hectares de terras concentradas em todo o país destinadas a produção para exportação (soja, criação de gado, cana-de-açúcar etc.). Enquanto isso, num país como o Brasil, os dados do IBGE (2010) informam que ainda 34 milhões de pessoas têm algum tipo de dificuldade para se alimentar, assim é possível concluir que a escassez de alimentos e o desequilíbrio na “segurança alimentar” brasileira que se verifica ao longo de décadas está ligada diretamente ao modelo de desenvolvimento agrícola do país. As escolas e as universidades brasileiras também participam dessa tragédia, uma vez que direcionam seus cursos não para a formação de pessoas comprometidas com a melhoria das condições de vida de todos, mas para a formação de técnicos e pesquisadores à disposição do mercado e do agronegócio. Um importante indicador da política agrícola durante o regime militar foi à prioridade estabelecida “no campo da pesquisa” voltada para a agricultura de grande porte. Scheeberger, (2003, p. 116) expõe o numero de publicações de pesquisa por milhão de hectare cultivado, que tivemos 98,8 trabalhos de pesquisa com oito produtos de exportação e apenas 22,6 sobre quatro produtos de alimentos básicos. 191 Na foto 1 e 2 a estrada e o latifúndio vazio, espreme o pequeno lote de hortaliça familiar: uma escolha do agronegócio brasileiro. 192 III – As questões de pesquisa que movem este estudo Considerando os elementos elencados na problemática e partindo do princípio de que precisamos aprofundar cientificamente modelos alternativos para contextos educativos diferenciados dos modelos tradicionalmente oferecidos nas zonas urbanas é que levantamos uma primeira questão geral de pesquisa, a saber: Os modelos de educação oferecidos pelas escolas do meio rural e de zonas periféricas de regiões em subdesenvolvimento seriam capazes de transformar e melhorar o contexto de onde estas populações estão inseridas numa perspectiva de inclusão e de sustentabilidade comunitária? Para um melhor entendimento da tese, é preciso compreender que esses modelos alternativos podem e devem trazer soluções corretas na qualidade da educação oferecida a partir do desenvolvimento de metodologias educativas adaptadas a cada contexto local em particular. Para responder a esta questão mais geral, consideramos fundamental fazer o recorte e estudar três modelos diferentes de escolas do campo. A região onde se encontram esses três modelos de escola, a zona rural do cacau na Bahia-Brasil, tem situações semelhantes do ponto de vista econômico e social de regiões periféricas da zona rural de países subdesenvolvidos ditos países de “terceiro mundo”. Considerando que a primeira questão formulada acima é de difícil avaliação formularmos uma questão mais especifica sobre três experiências educativas em curso no desejo de saber: De que forma essas três experiências educacionais no meio rural da região do cacau na Bahia-Brasil trazem a capacidade de transformar e melhorar o contexto onde estão inseridas numa perspectiva de inclusão e de desenvolvimento comunitário sustentável para o campo brasileiro e para a zona rural periférica de regiões em vias de desenvolvimento? 193 194 CAPÍTULO VI 195 6. – Metodologia: a pesquisa qualitativa/interpretativa, o estudo de caso O foco da pesquisa enquanto categoria principal está na compreensão da educação para o desenvolvimento de comunidades periférica do meio rural brasileiro: educação enquanto categoria basilar do desenvolvimento e o desenvolvimento enquanto conceito complexo, (Sen, 2004; Morin, 1984; Cuchê, 2004; Malasis, 1979; Ilea, 2005 Freire, 1974), pois envolveria ao mesmo tempo o fortalecimento da cultura local, o melhoramento das técnicas agrícolas e da ecologia, assim como da construção da cidadania, do espírito de iniciativa, das mudanças de atitude e autonomia dos jovens educandos. Tudo isso deve se acontecer a partir da vivência (Gimonêt, 2004) dos alunos enquanto multiplicadores das experiências educativas em processo nas suas comunidades. Essa vivência deve ser partilhada com a escola, que também é parte dessa vivência, partilhada com a comunidade. A análise dos processos educativos em estudo ocorre de maneira qualitativa/interpretativa e a triangulação se dá a partir das observações, dos discursos, dos documentos e das anotações de campo que são descritos, interpretados e explicados segundo as categorias que atravessam o corpus teórico da tese e as novas categorias emergentes. São essas categorias analíticas que organizam a demonstração dessas três experiências educacionais. Aqui se coloca o estudo de caso, pois é no processo de sistematização e apresentação dos dados que emerge a possibilidade de compreender e comparar esses três modelos educativos em curso, além de poder identificar a partir de uma comparação sistemática as suas diferenças, distorções e possíveis contribuições da educação para o desenvolvimento sustentável do campo brasileiro. Para Yin, (2005, p.32) “o estudo de caso é um tipo de investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”. Uma abordagem promissora para os estudos de caso é a ideia da “adequação padrão” descrita por Campebell (1975 apud Yin, 2005), por meio do quais várias partes da informação do mesmo caso podem ser relacionadas à mesma proposição teórica (Yin, 2005, p.47). Esforçamo-nos para que essa ideia esteja contida neste estudo. 196 O estudo de caso como estratégia de pesquisa compreende um método que abrange tudo – tratando da lógica de planejamento das técnicas de coleta de dados e das abordagens específicas à analise das mesmas. Nesse sentido, o estudo de caso não é nem uma tática para a coleta de dados nem meramente uma característica de planejamento em si (Stoecker, 1991), mas uma estratégia de pesquisa abrangente. A forma como a estratégia é definida e implementada constitui o estudo inteiro (Yin, 2005, p.33). O fundamental neste estudo é revelar a multiplicidade de dimensões presentes numa determinada situação ou problema, focalizando o objeto como um todo. Esse tipo de abordagem enfatiza a complexidade natural das situações, evidenciando a inter-relação dos componentes (Ludke e André, 1986). No caso da comparação sistemática indaga-se, por exemplo, em que os eventos de cada uma dessas escolas em estudo são semelhantes e em que os seus eventos são distintos uns dos outros? Quais as distorções e em que esses eventos se aproximam? (Gibbs, 2008, p. 73). O desejo então seria de buscar compreender tanto modos de vida quanto elementos teóricos do problema: as práticas agrícolas, quanto à cultura, do mesmo jeito que temáticas tais como a construção do curriculum, a formação das disciplinas escolares, tornam-se o centro das nossas preocupações tanto quanto a consolidação de formas “legítimas” de conhecimento escolar (Popkewitz, 1993; Schriewer e Pedró, 1993). Neste caso, a análise proposta permitiria também ultrapassar os modelos analíticos de “input-output”, bem como utilizar a quantificação (Novoa, 1994). Uma outra estrutura da nossa metodologia de pesquisa vem da abordagem interpretativa por via de uma compreensão hermenêutica: A partir desta abordagem poderíamos dizer que o texto é a mensagem, a fala, o discurso dos sujeitos; o contexto do texto passa a ser o contexto social, político, econômico, cultural, vital dos sujeitos que fazem a experiência do processo educativo, como uma formação crítica ou como alienação (Ghedin, 2012). Assim sendo, a abordagem hermenêutica interpretativa se insere naquilo que é possível captar de maneira mais adequada dos significados que estão postos, não por objetos, mas por sujeitos que significam e ressignificam o mundo e sua realidade a cada instante: O universo das significações se dá num contexto concreto, mas como captar o discurso (enquanto modo de dizer e interpretar o mundo) do ser-aí? De certo modo o pesquisador é o interprete da 197 realidade que se expõe diante dele. Ele está cheio de realidades, teorias e experiências que se defrontam com outras realidades, teorias e experiências que são constitutivas de uma determinada visão de mundo que implica o processo de investigação. Assim, se poderia dizer que o pesquisador possui uma pré-compreensão do real, mas só a relação que se estabelece entre os sujeito s possibilita uma outra compreensão. É esta pré-compreensão que nos possibilita a racionalização de um determinado tema de pesquisa (Ghedin, 2012; p.3). Neste sentido, “a realidade educativa é um conjunto de relações que estão postas entre sujeitos que vivenciam o cotidiano como esses em particular do mundo rural, das propriedade e das comunidade que fazem parte das escolas em pesquisa: As trocas simbólicas se constroem numa constante intersubjetividade que está, o tempo todo, jogando e circunscrevendo relações de poder. Neste jogo de experiências cotidianas é que se (des)constroem as vidas dos educandos e nele se decide o destino da sociedade futura. O poder se desmitifica pela análise e pela crítica radical de suas raízes. O pesquisador há de dirigir o olhar para as profundezas das relações para ler o que está escondido por trás das aparências e não ficar apenas no reflexo da superficialidade. Isto impõe limites que exigem, cada vez mais, uma busca que se volte para o todo, mesmo que isto implique, ainda, um determinado recorte. (Ghedin, 2012; p.3). Numa outra ponta para Ghedin (2012) Não é o recorte que reduz o real, mas o limite metodológico que “impomos” como possibilidade de “recortar” para conhecer. O recorte é sempre um risco assumido justamente no seu limite. Seu risco consiste justamente na questão de querermos tornar evidente o todo por meio da parte que o compõe. O sentido e sua interpretação nos remetem na direção da compreensão e da explicação. Estes não podem ser concebidos como processos separados, mas como dois pólos que se complementam dialeticamente. Compreender significa explicar o sentido das significações atribuídas à realidade das coisas e do mundo. Seja qual for o método ou a maneira utilizada, é próprio do ser humano significar e, através da interpretação, compreender toda a complexa realidade que nos envolve. Assim, continua ele “para compreender o sentido de nossos atos é preciso passar pela explicação. A compreensão é resultado, inacabado, de um processo de explicação. A compreensão e a interpretação subjacente a todo trabalho realizado, isto é, a realização ou resultado de um trabalho de pesquisa na área das Ciências Humanas é o resultado de um processo de explicação, compreensão e interpretação da realidade. 198 Porém estes aspectos do trabalho não são estanques em si mesmos e nem se excluem, mas constituem modos de olhar a realidade que são interdependentes. O real nos fala através destes modos os quais usamos para saber o porquê das coisas, o porquê do mundo e o porquê somos. A partir da compreensão e da interpretação é que se busca métodos explicativos, que não são só explicativos, mas compreensivos, ao demonstrar determinada interpretação de uma outra interpretação. (Ghedin, 2012). Os elementos de triangulação se baseiam na observação direta e notas de campo, na entrevista semiestruturada e nos documentos, principalmente nos grades curriculares e nos projetos políticos pedagógicos e esses elementos são buscados tanto em contextos formais como as salas de aulas, quanto em contextos informais como nas visitas ao campo e acompanhamento in loco de aulas práticas dos alunos (no terreno da escola e nas comunidades). A observação direta e notas de campo deve nos permitir chegar o mais perto possível da “perspectiva dos sujeitos”, pela possibilidade de acompanhar in loco as suas experiências cotidianas, principalmente no campo. A observação direta e notas de campo são igualmente importantes por permitir “descobrir” os novos aspectos do problema. (Ludke et André 1986, p. 29).Na observação direta, também podemos tentar compreender a visão de mundo, quer dizer, a significação que os sujeitos envolvidos (alunos, monitores/professores, diretores, pais e ex-alunos) nessas experiências educativas dão as suas realidades, ao seu ambiente e as suas ações. 6.1 – Diferenças explicativas das categorias analíticas em relação aos atores da pesquisa: Sobre os atores da pesquisa: a população das escolas “A e B” (escolas em alternância) obedece ao mesmo critério explicativo de escolha: temos os dois diretores; 7 professores/monitores; 27 alunos com idades variadas entre 15 e 21 anos de uma turma, correspondente à 8ª Série; 6 pais e 6 ex-alunos. Para a escola “C”, temos a diretora e 7 professores, bem como 25 alunos da 8ª série do turno noturno. Na escola “C” são: 7 professores, 25 alunos, 1 diretora. São duas as escolas em alternância, nas quais realizamos entrevistas, observações, analises de documentos e acompanhamento das experiências cotidianas in loco dessa amostragem considerando o viés escola-comunidade-escola na intenção de 199 compreender e explicar de forma complexa as categorias que consideramos principais (logo abaixo) e suas variáveis: I. II. III. Sustentabilidade comunitária: (desenvolvimento, manejo); Alternância: (tempo escolar – tempo comunitário - aprendizado); Identidade com o campo: (o contexto – a cultura e a autoestima no mundo rural). Na escola pública rural o desejo seria então de buscar a partir de entrevistas, com professores, diretores e alunos mais as análises de documentos, para assim compreender de que forma esta escola se insere no processo educativo para o meio rural da zona do cacau e como ela responde aos desafios da escola pública do campo brasileiro respondendo assim a nossa questão mais geral de pesquisa a partir das categorias analíticas próprias a ela: I. A educação pública rural: (o desafio da escolar publica rural – a formação de professores); II. O currículo: (o contexto – a produção didática pedagógica – o calendário escolar); III. Identidade com o campo. (a autoestima do jovem da escola rural). Para os alunos da escola A e escola B a preocupação maior está na sustentabilidade comunitária, na alternância e na identidade com o campo para os alunos da escola C a questão principal é a identidade dos jovens que estudam em escolas publicas rurais “com o campo”. Para os monitores da escola A e da escola B as questões de sustentabilidade comunitária e a alternância nos permite traçar um perfil em comparação das intervenções dos monitores nos processos de desenvolvimento das comunidades envolvidas com as escolas em que trabalham, assim como perceber a maneira como as intervenções são feitas na perspectiva do desenvolvimento local. Para os professores da escola C o foco se situa nas categorias educação pública rural e currículo: Essas duas categorias permite-nos desenvolver uma avaliação consistente sobre a inserção dessa escola em estudo sobre a sua compreensão educacional e o seu perfil educativo enquanto escola pública inserida no meio rural em 200 estudo e, assim, entender o que passa com a escola formal publica no meio rural brasileiro. Todos os diretores das três escolas participam da pesquisa. Para os diretores das escolas em alternância, os eixos de categorias são a sustentabilidade comunitária, a alternância, e o desafio da escola do campo. Já no caso do diretor da escola pública rural, a questão se porta sobre a relação dessa escola pública tradicional rural “com” e para o “campo”. Para os pais dos alunos alternantes, as categorias que se mostraram pertinentes são sustentabilidade comunitária e a alternância: os pais seguramente estão preocupados com o desenvolvimento educacional de seus filhos alternantes e com a sustentabilidade das suas comunidades e das suas propriedades familiares, elemento considerado possível a partir de uma educação engajada oferecida por escolas do meio rural. No caso dos ex-alunos a alternância e a sustentabilidade comunitária revelaria mo potencial dessas escolas enquanto instituições engajadas e adequadas na educação para o desenvolvimento do meio rural. Assim, as análises para comparar, avaliar e compreender as diferenças nos processos de desenvolvimento educativo nas três escolas está baseado: 1 – sobre os alunos: as análises crítico-comparativas da vivência dos alunos nas escolas em alternância (Escolas “A e B”) são demonstradas na motivação/satisfação em relação à alternância (teoria x prática) propriamente dita; nas diferenças em relação às formas de desenvolvimento e sustentabilidade (manejo) local, nas intervenções no campo e, consequentemente, nas suas comunidades, demonstradas nas diferentes práticas agrícolas, a partir do saber/fazer adquirido em cada uma dessas instituições de ensino em relação à sustentabilidade ecológica e econômica local; a vivência dos alunos das duas escolas em alternância e a forma como eles intervêm nas suas comunidades demonstram a diferença com relação a vivência dos alunos da escola pública (escola “C”). Outros elementos igualmente importantes a serem comparados são as diferenças de “como” as escolas “A” e “B” se colocam diante dos processos da aquisição de terras para seus alunos, bem como, enfrentam os conflitos que aparecem entre alunos, suas famílias e suas comunidades (nas duas escolas em alternância). Também destacamos a 201 questão de “gênero”, na qual se estabelece uma diferença fundamental no recorte pedagógico entre as duas escolas em alternância em pesquisa. Finalmente, na questão de identidade com o campo, são tomadas as representações que os alunos têm do campo e do próprio meio onde vivem; daí ser possível compreender as diferenças de representações que fazem os alunos das escolas em alternância, “A e B”, em contraposição com os alunos da escola “C” (pública). A reafirmação identitária em demonstração compara o papel pedagógico das escolas do campo sobre a importância do reforço da identidade em seu contexto. 2 – sobre os professores/monitores: a análise de seus engajamentos junto a cada escola e seus diferentes níveis de salário e de formação demonstra as suas diferenças. 3 – Sobre os diretores: a maneira como os diretores entendem os diferentes processos de formação de suas escolas permite compreender a sua relação e sua diferença no olhar para o campo. 4 – sobre os ex-alunos: a análise dos percursos profissionais dos egressos responde sobre a capacidade das escolas do campo em estudo de garantirem ou não a continuidade do desenvolvimento profissional e emancipatório em suas vidas futuras. Esse elemento responde a nossa segunda questão de pesquisa sobre a vivência e perspectiva futuras dos alunos das escolas em alternância. 5 – sobre os pais: a análise de suas capacidades de falar das mudanças ocorridas nas vidas dos seus filhos e de suas propriedades permite perceber a eficácia dos processos educativos das escolas em alternância em estudo. As intervenções e manejos vividos em suas propriedades revelam as diferenças em relação às formas como cada escola se posiciona na relação com o desenvolvimento ambiental. 6 - Enfim, a análise comparativa dos seus currículo/metodologia e programas de formação; as formas de financiamento e estrutura; atividades pedagógicas produzidas no interior de cada escola demonstram suas diferenças curriculares e metodológicas, culturais e identitária; os programas político-pedagógicos. 202 6.2 – Base de triangulação comparativa entre atores e categoria analítica: Tabela:7 Atores da pesquisa Categoria / Analítica Alunos A B Monitores C A B Professor C Diretores A B Pais C A Ex-Alunos B A B Sustentabilidade Comunitária (desenvolvimento) Alternância (teoria e prática) Currículo Identidade Rural Educação do Campo Calendário Gênero 1.1.1 -1.1.2 - 1.1.3 -1.1.4 - 1.1.5 - 1.1 1.1.7 -1.1.81.1.9 - 1.1.10 1.1.11 - 1.1.12 - 1.1.131.1.14 1.1.15 1.1.16 1.1.17 - 1.1.18 - 1.1 1.1.201.1.21 - 1.1.22 - 1.1.23 - 1.1.24 - 1.1.25 - 1.1.261.1.27 1.1.28 1.1.29 1.1.30 - 1.1.31 - 1.1 Tabela 3: Triangulação comparativa entre amostragem e categoria an 6.3 – Composição dos atores e a coleta de dados: Tabela 8: Sujeitos em pesquisa Alunos Professores/monitores Diretores Pais de alunos Quantidade 27 (“A”) 27 (“B”) 25 (“C”) 5 (“A”) 5 (“B”) 6 (“C”) 1 (“A”) 1 (“B”) 1 (“C”) 6 (“A”) 6 (“B”) 6 (”A”) 6 (“B”) Instrumentos utilizados Entrevista semi-estruturada na sala de aula grupos focais; no campo e na comunidade; Tempo de presença no terreno 5 visitas: duração mínima 5 horas cada. Entrevistas semi-estruturada, observações direta; anotações no campo. 5 visitas: duração mínima de 5 horas; Entrevista com duração mínima de 3 horas cada. Entrevistas semi-estruturada. 1 visita: duração mínima 2 horas cada Entrevista semi-estruturada, individualizadas e grupos focais na comunidade; 5 visitas: duração mínima 5 horas cada; Entrevista: duração mínima de 3 horas cada. Entrevista semi-estruturada; observação direta, visita nos locais de Ex-alunos trabalho e na comunidade; Amostragem da população da pesquisa. Pelo autor, 2009. 5 visitas: duração mínima 5 horas cada Tabela 4: Amostragem da população da pesquisa 203 6.4 – Composição dos atores e das categorias analíticas da tese: o que saber de quem? Tabela 9: Alunos A B C A B Monitores/Professores B C A Diretor/Diretora B C Ex-alunos A B Pais de alunos A B Sustentabilidade comunitária; Alternância; Identidade com o campo; Gênero (A) Identidade com o campo. Sustentabilidade comunitária; Alternância; Identidade com o campo; Formação de professores; Gênero, (A) Escola, família e comunidade. Educação publica rural; (C) O currículo; (C) O calendário escolar (c) Sustentabilidade comunitária; Alternância; A educação do campo; A formação de Professores Monitores O financiamento das EFAs e CFRs O acesso a terra; _______________________________ Educação publica rural; (C) O currículo (C) O calendário escolar (C). Sustentabilidade comunitária; Alternância; Identidade com o campo; A questão de gênero (A). Sustentabilidade comunitária; Alternância; Tabela 5: Educação para o Desenvolvimento Educação para o Desenvolvimento (estudo de caso) 204 6.5 – Tabela recapitulativa dos atores da pesquisa: Tabela 10: Tabela recapitulativa dos atores da pesquisa. Sitio Altern/ Pública Dados Fonte 23 Gênero (F/M) 2 Xxxx Data da Data da Duração transcriçã entrevista entrevista o. Assunto Desen. e 17/05/08 2:04:00 05/06/08 Sustentab. 3 3 MM 20/06/08 1:07:03 Particip antes Escola 1 alter. A Alunos Dados Tipo Entrev. Participante Escola 1 alter. A Exalunos Entrev. Participante E Escola 1 alter. A Exalunos 2 Xxxx 20/06/08 5:07:03 E Escola 1 alter. A Aluno Entrev. Participante 2 Notas de campo/obser vação xxx Desn. e 16/06//08 sustenta alternância /percurso/f 05/07/08 uturo X Xxxxx 21/06/08 2:00:00 27/06/08 E Escola 2 alter. B Aluno Entre participante 27 2 Xxx 23/05/08 0:34:12 09/11/08 E Escola 2 alter. B Aluno Entrevista participante 27 2 Xxx 23/08/08 1:07:03 09/09/08 S Escola 2 alter. B Ex-aluno Entrevista 1 1 M 23/05/08 1:07:03 09/08/08 Motivação Alternânci a/percurso /futuro E Escola 2 alter. B Exalunos Entrevista participante 3 24/05/08 3:26:00 13/09/08 Alternânci a/percurso Escola 1 alter. A Diretora Entrevista 1 19/06/08 53:06:00 25/06/08 20/06/08 3:33:00 18/07/08 04/07/08 1:10:31 ###### 2 M 1 M Desen.agri c. Dese. Sust. (8) ilhéus Alternan Satisfação com escola Ed. do campo Satisfação/ papel da escola Ident. com campo/for mação Ident. com campo/for mação des Ident. com campo/for mação Desaf. da escola cultura rural/escol a rural Pais de Entrevista aluno participante 5 Diretora Entrevista 1 5 M 1 F E Escola 2 alter. B Pai de aluno Entrevista 1 1 Xxxx 05/07/08 1:15:16 21/08/08 E Escola 1 alter. A Professor Entrevista -monit. participante 5 5 F 05/07/08 1:59:00 17/06/08 E Escola 2 alter. B Professor Entrevista 1 5 Xxxx 04/06/08 1:02:21 24/07/08 05/06/08 1:03:00 05/08/08 05/07/08 2:00:00 14/08/08 1 Xxx 17/06/08 1:17:00 22/06/08 X Xxxx 17/06/08 3:41:00 22/06/08 X Xxxx 06/18/08 1:31:00 26/07/08 Desn. agri. Desnv. Sus. Comunit. 1 M jul/10/08 1:12:38 07/11/08 Perc. Artesanato Escola 1 alter. A E Escola 2 alter. A Entrevista Escola 3 pública.C Professor participante 7 Escola 3 pública.C Diretor 1 Entrevista E Escola 3 pública.C Aluno Monitore s/estudan Escola 1 alter. A tes Escola 2 alter. B Entrevista participante 25 Nota de campo/obser vação xxxx Nota de Monit/est campo/obser udan vação xxxx Escola 1 alter. A ex-aluno Entrevista 1 7 F 1 F 205 Escola 2 alter. B Escola 1 alter. A ex- aluno Entrevista 1 Nota de campo/obser Monitor vação 1 Escola 2 alter. A Diretora Escola 2 alter. B Monit Escola 2 alter. B Escola 1 alter. A Diretor Diretor Escola 1 alter. A Escola 1 alter. A Escola 2 alter. B Entrevista Entrevista participante 1 Entrevista Entrevista Entrevista Estudante participante 1 Pais de aluno Entrevista Mãe de aluno Entrevista 5 3 5 1 1 M 1 M 1 F 1 Xxxx 1 M 1M 2 Xxxx Alter sust. e jul/23/08 0:31:49 07/11/08 17/06/08 1:06:00 12/11/08 24/07/08 0:11:44 17/11/08 Sust. Esc. Do campo julho/08 0:19:44 17/11/08 Sust. 05/08/08 09/08/08 1:12:05 0:38:23 18/11/08 19/11/08 09/08/08 0:30:22 21/11/08 Esc. fam. Sus. Comu Satis. Alter 0:26:34 27/11/08 Mot. Alter 0:22:30 28/11/08 Sus. 5 Xxxxxx 09/08/08 1 F 12/08/08 Tabela 6: Tabela recapitulava da amostragem 206 207 CAPÍTULO VII 208 7. – Análise global de dados “Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando” (Freire, 2004, p.82). Neste capítulo, a nossa intenção é responder a partir de uma comparação sistemática das categorias implicadas neste estudo (Gibbs, 2008) o que é e o que dizem os sujeitos da pesquisa sobre as duas escolas em regime de alternância (A e B) e a escola formal pública (escola C). O desejo então é responder de maneira específica a partir das análises que se seguem: qual o papel e o estatuto das escolas em alternância numa educação que se pretende parceira do desenvolvimento comunitário local? Avaliar a maneira como se dá a vivência dos alunos nas três escolas e compreender quais são as perspectivas desses ao frequentarem essas três experiências educativas? Analisar o que pensam os diretores e pais, sobre a educação que é oferecida por esses modelos de escolas inseridas no meio rural. O que os documentos mais importantes projetam enquanto perspectiva de desenvolvimento e educação para o campo? (cap VIII) O objetivo deste capítulo então é o de apresentar e analisar o conjunto de dados coletados a partir das entrevistas e das observações de campo, que foram realizadas entre maio e agosto de 2008. Com a apresentação podemos identificar e demonstrar, a partir dos discursos de cada ator envolvido – alunos, monitores/professores, ex-alunos, diretores e pais de alunos – no entorno desses três processos educacionais, a maneira como cada um deles se coloca sobre o significado dessas experiências. A análise ocorre de maneira qualitativa. Os discursos são tomados e interpretados segundo as categorias de análise que atravessam o corpus teórico da tese. São essas categorias que organizam as demonstrações dessas três experiências pedagógico/educacionais. Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram essencialmente as entrevistas, com questões semi-dirigidas e roteiro previamente definido sobre o contexto educacional como um todo. Acreditamos que, nesse processo de sistematização e apresentação dos dados, emerge a possibilidade de compreender essas experiências em curso, responder as nossas questões de pesquisa e, em seguida, de oferecer como balizador desses modelos educativos, identificando suas específicas diferenças e contribuições para uma dinâmica compreensão do ato de educar no mundo rural. 209 7.1 – Alunos avaliam o desenvolvimento e a sustentabilidade comunitária As entrevistas foram realizadas em várias etapas entre os dias 21 de junho e o dia 8 de julho/08, geralmente em sala de aula e no entorno da escola. A turma 2 foi a escolhida como amostra para as entrevistas, num total de 27 alunos. Aproveitamos sempre o período da manhã para a realização das entrevistas. Os alunos responderam as nossas questões com bastante tranquilidade. As questões formuladas giraram em torno da motivação/satisfação, do desenvolvimento e sustentabilidade local, bem como sobre a alternância e sobre a identidade do ser do campo. Categoria Escola Alunos # La em casa mesmo já não vejo mais a presença de nenhum produto químico. Hoje quando meu pai pensa alguma coisa assim, “é sempre vocês que decidem”. Mas a partir de um resultado, pegou uma área, Sustentabilidade comunitária A não derrubou, não queimou. Então ele estava fazendo um trabalho e quando nos viu fazendo um trabalho mais a baixo, ele parou e continuou a fazer o trabalho junto com a gente. Isso pra mim já foi o resultado do nosso aprendizado na família agrícola. E relacionado à questão de adubo mesmo... tudo. (Al-mas 1) # Nas partes onde a gente utiliza o orgânico é muito 2-melhor porque a gente economiza. É mais fácil fazer o orgânico do que comprar. Na minha área não tem muito, mas a gente faz um pouquinho. (Al.mas. 2) ________________________________________________ # Sem a escola ainda estaríamos produzindo de forma tradicional na nossa propriedade, sem nenhum conhecimento técnico, com uma produção muito baixa e sem perspectiva de melhora. (Alu-mas-) Sustentabilidade comunitária # Quando trazemos algum elemento novo para B a comunidade escutamos os pais e a comunidade e os pais disseram, mas eu trabalhei assim durante anos. Entrevistado 3 # A comunidade e meus pais tinham uma resistência enorme e insistiam na forma tradicional de aplicar os recursos, com a escola aprendi a fazer podas, a aplicar melhor os recursos na área e isso mudou a forma 210 deles verem. Sustentabilidade comunitária B # Eu aprendi compostagem, hortaliça, criação de animais: ovelhas, suínos, galinhas, até cachorros também. A gente tinha uma parte que se preocupava com os cuidados, com o gado também. Tinha um professor, um técnico em agropecuária, que passava a parte de Zootecnia. (alu-mas-ent) Entrevistado 4 # Ajudou muito a melhorar as técnicas de cultivo do solo, manejo isso não tem como negar, como já falei os profissionais são de alto nível. Para os alunos das duas escolas, a relação com o a sustentabilidade local advém da preocupação que a escola estabelece e que se revela a partir da intervenção e do manejo agrícola nas comunidades envolvidas no processo de formação como nas frases “La em casa/já não vejo mais a presença de nenhum produto químico/ onde a gente utiliza o orgânico é muito melhor porque a gente economiza a partir de um resultado”. Estes elementos estão ligados às formas de manejo propostos especificamente pela escola “A”: a ideia neste caso com a produção de adubação orgânica deveria as famílias dos agricultores economizar recursos durante o processo de fertilização em suas propriedades. Dois elementos também são fundamentais para essa compreensão: compreender a importância da reutilização dos lixos orgânicos nas propriedades (restos de madeira, restos das limpezas das roças e mesmo os restos domésticos) e evitando o endividamento das famílias na compra de fertilizantes químicos no mercado aberto, normalmente com custos elevados. Outro elemento possível de se destacar na fala, está na relação de preservação do ecossistema local, composto de grandes árvores da mata atlântica, onde o cultivo tradicional incide na derrubada das árvores para a posterior plantação: “pegou uma área, não derrubou/não queimou....” Este aluno atribui este resultado aos ensinamentos da escola: “pra mim já foi o resultado do nosso aprendizado na família agrícola", afirma. Por outro lado, ainda no que se refere à relação dos alunos com os pais, percebese nas falas o processo de convencimento dos filhos-alunos em relação à mudança do tipo de manejo dos pais: “meu pai/nos viu fazendo/e/continuou a fazer o trabalho junto com a gente” – mais tarde percebe-se o grau de satisfação com as mudanças ocorridas tanto nas formas de manejo quanto na atitude do seu pai ao abdicar da sua forma tradicional de manejo e acompanhar as inovações trazidas pelo seu filho-aluno- 211 alternante para a propriedade da família. Aqui também é possível perceber o reconhecimento deste em relação a EFA em que estuda. A metodologia de manejo agrícola da escola B entra como parte decisiva no desenvolvimento de novas técnicas de cultivo na comunidade: “Sem a escola/estaríamos produzindo de forma tradicional/ sem nenhum conhecimento técnico/produção muito baixa”. Percebe-se nestes recortes acima, que o conhecimento aprendido nesta escola ganha praticidade de maneira imediata, sistematiza-se e interfere logo em seguida no cotidiano local, o que, num primeiro momento, encontra resistência entre os país e a comunidade: “Quando trazemos algum elemento novo/para a comunidade/a comunidade e os pais diziam, mas eu trabalhei assim durante anos...” Porém, é esse conhecimento o responsável por intervir nas formas tradicionais de manejo. A relação e/ou rejeição do aluno com as formas tradicionais de manejo, no entanto, se explica pela baixa produtividade agrícola das propriedades pesquisadas, e de uma maneira geral pela baixa produção da agricultura familiar na região do cacau e provavelmente na agricultura familiar de outras regiões de cultura tropical ou subtropical. Neste caso, seria possível em parte, responsabilizar as formas tradicionais de manejo na agricultura familiar pelo estado de pobreza encontrado na maioria das famílias observadas. Isso não significa pelo que foi notado, necessariamente, uma denegação ou rompimento dos conhecimentos tradicionais existentes na comunidade. Assim, pode-se compreender qual o papel das escolas engajadas para a melhoria dos processos de manejo em comunidades carentes. Percebe-se, por outro lado, que o alternante-aluno, entra em jogos de complexidades, de passagens, de rupturas e de relações, (inovações x formas tradicionais de manejo). Em todo caso, esses elementos fazem também parte das novas estruturas que servirão ao desenvolvimento da sustentabilidade nas suas comunidades e reafirmarão os seus processos decisórios durante a vida. Assim, pelo que foi observado, o processo dialógico entre o conhecimento tradicional e os novos conhecimentos trazidos pelos alunos vão aos poucos se instalando e construindo novas praticas entre os ensinamentos da escola e os conhecimentos tradicionais da comunidade envolvida. Noutro momento é possível notar a importância que tem os monitores na construção do desenvolvimento da sustentabilidade local: “aprendi compostagem, hortaliça, criação de animais: ovelhas, suínos, galinhas, até cachorros/uma parte que se 212 preocupava com os cuidados, com o gado/ Tinha um professor, um técnico em agropecuária”. O jovem alternante entrevistado reafirma o papel do técnico, do professor, na intervenção entre o conhecimento do aluno/comunidade e o conhecimento mais científico da escola, portanto essa é uma questão que não pode ser negligenciada pelas escolas que se pretendem atuar nos contextos locais numa perspectiva de sustentabilidade local. Outro elemento é esse do papel da escola quando o aluno da escola “B” afirma que a escola, “ajudou muito a melhorar as técnicas de cultivo do solo, manejo” na propriedade da sua família. Aqui percebemos as ‘semelhanças’ que existem entre as escolas “A e B” no seu papel de interventora e inovadora na melhoria das práticas agrícolas e no papel de uma escola que investe na sustentabilidade das comunidades envolvidas. É preciso destacar também as ‘diferenças’ na condução do manejo e nos tratos agrícolas, no que, para a escola “A” é essencialmente orgânico e para a escola “B” o ganho de produtividade como relatam os alunos acima, estaria ligada essencialmente aos métodos de adubação química aplicados de forma rigorosa. 7.2 - Como os alunos das escolas “A e B” avaliam a alternância: Categoria Escolas Entrevistas # Eu estudo em um local assim, que ajudou não só a mim jovem, como a turma poder realmente querer o que eles estão pretendendo, ou seja, que é ficar na comunidade, que é ficar na região onde mora, pra poder tá vivenciando com as pessoas, ajudando no desenvolvimento das famílias e assim da comunidade. E isso seria o porquê eu estudo nela. (ent. 1) Alternância A # A gente aprendeu na escola, porque na escola tem essa alternância escola-comunidade. Então essas técnicas que a gente aprende muitas vezes na sala de aula, quando a gente fazia nas aulas práticas, a gente também tinha orientação pra fazer nas comunidades. Por exemplo: a gente fez um trabalho na comunidade, que seria fazer levantamento das famílias da cultura da comunidade e fazer também com os pais da gente o que a gente aprendeu na escola. (ent. 5) # A alternância era bom porque a gente estava 213 sempre presente na comunidade e depois, mesmo estando na comunidade, eu tinha cobrança mesmo da comunidade. E eu não era visto como aquele aluno da escola tradicional... (ent. 6) # A gente fez um tipo de estágio. Foi estágio participativo, onde toda a comunidade estava participando; daí todo mundo tinha que apresentar o resultado de tudo o Alternância A que a gente fez com a comunidade. Era uma coisa que não ficava só com a gente, a gente tentava interagir com a comunidade. Aí acaba vindo uma responsabilidade, por exemplo, tinha pessoas que vinham me chamar, porque na comunidade deles precisavam de alguma orientação. (ent. 2) A gente vê pelos jovens da nossa comunidade... uns que não moram nem na comunidade ou estão empregados em alguma fazenda sem nenhuma perspectiva de futuro. Então, se não fosse a escola, eu também estava na mesma situação. (ent. 5) __________________________________________________ Sem a escola eu não sabia de nada. Nas escolas formais só tem o aspecto teórico; aqui eu aprendi a colocar em prática o que eu aprendo. Essa escola ajudou a melhorar a renda minha e da minha família, me ajudou também a melhorar as técnicas de manejo e me ensinou a ser o que sou hoje, quando tenho orgulho de quem sou como negro e com Alternância B meus cabelos rasta. (ent. 3) Aqui o que a escola ensina tem a ver com a minha comunidade; então há uma troca entre minha comunidade e a escola. Você aprende lá e aplica na sua propriedade; se você ficasse somente lá, aí ficava aquela coisa presa. Você faz o prático logo. O conhecimento foi demonstrado de forma teórica e prática. (ent. 2) Considero importante por permitir essa relação com a família e a comunidade. Gostei também dos 15 dias que a pessoa fica aqui e 15 dias na comunidade. Dá um pouco de saudade da família durante o tempo que ficamos fora de casa. (ent. 3) Os alunos consideram que o fato de estudar em alternância traz inúmeras vantagens, como por exemplo: o fato de dividir com as famílias e com a comunidade o aprendizado sistemático vivido na escola e transmitido de uma forma imediata para a comunidade. Esse aprendizado, que envolve compreensões de técnica agrícola e de 214 valores, tornou-se essencial na participação dos processos de desenvolvimento do comportamento dos jovens alternantes para com suas famílias e com a comunidade: As afirmações seguem sempre na mesma direção: os alunos, tanto da escola “A” quanto da escola “B” em suas falas, demonstram um alto índice de “satisfação” e “motivação” com a escola. A escola tornou-se a responsável pelas mudanças ocorridas em suas vidas. Para esses alunos, sem a escola, eles não melhorariam as suas técnicas de manejo e não ficariam na comunidade. “Técnicas que a gente aprende muitas vezes na sala de aula/ a gente também tinha orientação pra fazer nas comunidades”. Ao inserirem inovações desejadas a tempo no mundo comunitário familiar, há um processo contínuo de “empoderamento/empowerment” dos jovens como se vê nesta fala: “Mesmo estando na comunidade, eu tinha cobrança mesmo da comunidade. E eu não era visto como aquele aluno da escola tradicional...” A partir destes relatos é possível compreender a importância de uma escola engajada nos contextos locais, por e para esses contextos, reconhecendo as demandas, trabalhando junto e para as comunidades envolvidas, respeitando-as e contribuindo para a superação de suas dificuldades. Desta forma, os alunos passam a ser vistos por todos da comunidade de maneira diferente, como insiste um aluno: “não somos vistos como alunos de escolas tradicionais...” o aprendizado das novas técnicas de manejo agrícola e inovações coloca o aluno/alternante no limiar das suas responsabilidades e no compromisso das mudanças desejadas pelas famílias e pelas comunidades do entorno da escola eles são é possível afirmar, os grandes responsáveis por importar novidades fundamentais para o desenvolvimento de todos. Assim, grande parte das demandas locais, principalmente no que concerne ao aprendizado e à aplicação de novas práticas de manejo agrícola, consideradas fundamentais para o “desenvolvimento da sustentabilidade das famílias, são adquiridas tão somente com a participação desses jovens na escola: “mesmo estando na comunidade, eu tinha cobrança mesmo da comunidade”. É nesse momento, pelo que se pôde observar, que se realiza o objetivo fundamental da educação em alternância com o objetivo de reverter as condições precárias de sobrevivência das famílias articulando-se aos a comunidade com os saberes escolares. Neste caso, é possível reconhecer o papel do conhecimento sistematizado do interior da escola (dito científico) em responder, em grande parte, às necessidades fundamentais para o desenvolvimento da comunidade local. 215 Percebe-se que a escola é a primeira responsável pelas mudanças ocorridas na vida desses alunos. O empoderamento dos jovens, a autoestima, o espírito de iniciativa e autonomia ganham força durante o processo de aprendizagem. E isso se percebe tanto na escola A quanto na escola B em estudo. Aprender a decidir construir o seu próprio futuro e cultivar para si, “jovens da nossa comunidade/que não moram nem na comunidade/estão empregados em alguma fazenda sem nenhuma perspectiva de futuro. não fosse a escola, estava na mesma situação”. Inverter a lógica do trabalhar para os outros ou trabalhar numa atividade alheia à sua propriedade familiar. Isso é bem perceptível: melhorar a renda familiar, desenvolver novas técnicas de manejo, ficar na comunidade, tudo isso é apreendido na escola e revela a complexidade e o comprometimento positivo com o que as escolas ensinam. Outro elemento igualmente importante na fala de um dos alternantes está na relação com o êxodo rural e à subqualificação de outros jovens da comunidade que não tiveram acesso às escolas de um modo geral e, em particular, às escolas de formação em regime de alternância para o campo, dentro de uma perspectiva de formação técnicoagrícola. Os jovens, neste caso, culpam os processos educativos tradicionais das escolas formais públicas tanto no meio rural quanto no meio urbano. Para eles, o processo de migração da maioria dos jovens do campo para as periferias das cidades está associado à incapacidade técnica de manejo e ao comprometimento comunitário, o que não acontece com os alunos que estudam em escolas tradicionais ou simplesmente não estudam, como é o caso de boa parte dos jovens das comunidades observadas. No que concerne à alternância propriamente dita, os 15 dias na escola são vistos pela maioria dos entrevistados como um fator positivo, pois segundo eles, permite a relação imediata entre a comunidade e o local de aprendizagem. Nesse caso, a formação em alternância entra como fator preponderante dos estudos, apesar da “saudade de casa”. Daí a motivação desses, ao agregarem ao mesmo tempo, vida escolar e vida comunitária e familiar numa perspectiva de educação e sustentabilidade para o campo. 216 7.3– A identidade com o campo para alunos das escolas “A, B e C”: Categoria Escolas Entrevistas # Talvez, se eu não tivesse ido pra EFA e ido pra outra escola ou região, eu não estaria aqui com todos esses projetos, estaria numa periferia ou talvez na roça, repetindo. Então pra mim a EFA tem uma participação muito grande no que hoje eu Identidade com o campo A me vejo como sujeito e com minha forma de pensar hoje. # Na verdade, essa escola ensina a reconhecer as nossas origens. Antes de eu vir pra aqui mesmo, eu não gostava de ouvir dizer que eu morava na roça. Hoje não, eu mesmo falo, eu tenho orgulho de dizer que eu moro na roça. (ent. 4) _____________________________________________________ # Gosto daqui porque a escola tem a ver com a realidade. Quando estudava na escola normal, perguntava por Identidade com o campo B que estudava tanto assunto de matemática se não vou aplicar isso? Tanta coisa de história que não vou aplicar? e essa escola ensina coisa que a gente vai aplicar e está adequada à região, ao meio social, porque isso é justamente o que eu quero. Você realmente consegue aprender o que você vai aplicar. (ent. 2) # Eu acho que essa escola tem as coisas do campo e é diferente das escolas da cidade, porque a gente vai na escola da cidade e não aprende nada que tem a ver com o campo. (ent. 4) # O aprendizado aqui é diferente das escolas tradicionais e isso me ajudou muito a aprender os cuidados com a terra, cultivar a terra... a ter orgulho do lugar onde vivo. (ent, 3) _____________________________________________________ C Identidade com o campo # Não gosto de ser da zona rural, prefiro ir para a cidade. Ser da zona rural é sinônimo de analfabeto. Quando você fala que mora na zona rural todo mundo começa a fazer gozação. (ent. 2) # Eu não gosto de ouvir dizer que eu moro na roça. Eu mesmo falo, quando as pessoas me perguntam na cidade onde eu moro, eu nunca digo que moro na roça. (ent. 3) As duas escolas (A e B) têm, pelo que foi observado e pelo que se percebe nas entrevistas, papel decisivo no enraizamento e na construção da identidade desses jovens alternantes com o meio rural. Partindo-se das observações e dos discursos acima, é 217 possível afirmar que a denegação geralmente vista dos jovens originários do meio rural com o mundo rural deve ser creditado essencialmente a um fator educacional: “A EFA tem uma participação muito grande no que sou hoje e no que eu me vejo como sujeito e com minha forma de pensar hoje”. Ao refletir a partir da importância do fortalecimento da identidade do homem do campo, as escolas em estudo vão ao encontro de uma reafirmação necessária à dignidade dos jovens do campo, como afirma este jovem da escola “A”: escola ensina a reconhecer as nossas origens e como ele se sentia antes “eu não gostava de ouvir dizer que eu morava na roça”. Assim, avança-se na superação do preconceito e dos estigmas normalmente vistos a partir de uma pretensa superioridade da cultura urbanocêntrica sobre a cultura dos que vivem no campo. Agindo desta maneira, as escolas engajadas numa educação que pretenda o desenvolvimento do campo não podem negligenciar a importância do fortalecimento da identidade do homem e da mulher do meio rural e assim, cumprir o papel fundamental de devolver aos que lá vivem a dignidade e cidadania até então hostilizada. O que se deseja a partir de uma educação comprometida com o contexto é o respeito às formas de vida e de cultura dos que lá habitam superando por exemplo as visões idílicas presente na história da sociedade brasileira como os famosos estigmas dos “jeca-tatus”, de M. Lobato. Uma educação que se pretende para o campo tem o papel de fortalecer a cultura e o modo de vida desses, invertendo os sentimentos de baixa autoestima normalmente presentes entre os povos originários do meio rural como se vê nesta fala: “eu mesmo falo, eu tenho orgulho de dizer que eu moro na roça”. As falas dos jovens alternantes se colocam de maneira contundente e reafirmam a importância e o papel que a escola do meio rural tem na reconstrução, na ressignificação cultural e no fortalecimento dos vínculos dos sujeitos (jovens, estudantes, moradores) de uma determinada comunidade com o seu espaço geográfico, neste caso o campo, aqui também chamado de “roça”. Percebe-se claramente a inversão da lógica da migração e do êxodo rural a partir da fixação dos alunos alternantes ao meio onde vivem. A partir desta inversão, continuar no seu território torna-se praticamente um dever. Assim, é possível afirmar que o processo de formação em alternância nas duas escolas pesquisadas tem desempenhado um papel fundamental ao transversalizar, em sua práxis educativa, valores essenciais como os de “identidade e de cultura do ser do 218 campo”, inseridos numa aprendizagem sistematizadora de saberes técnicos fundamentais para o “campo” e na superação das dificuldades cotidianas dos que vivem no seu entorno produzindo um ganho fundamental na fixação desses ao seu meio. Outro elemento dentro deste contexto é que a formação da identidade do ser do campo deve ser vista como um dos elementos mais importantes desenvolvidos por essas escolas em suas práxis educativas, a construção da identidade dos alunos é tomada de maneira concreta. Assim, o aluno se vê e se identifica com o “ser rural, ou o ser do campo” e passam esses, a ter um outro olhar e uma outra postura em relação ao “rural ou campo” a partir do momento em que frequentam essas escolas. Os alunos da escola C, num total de 25, foram pesquisados no mês de junho, um pouco antes das festas juninas que são, a princípio, a grande festa do Nordeste brasileiro. Essa festa é uma espécie de reverência à identidade do homem rural, mesmo se encarada de forma idílica. A técnica consistiu em escutar alguns trechos das músicas do cantor e compositor Luiz Gonzaga, nas quais ele faz uma espécie de reafirmação dos termos linguísticos usados pelo homem rural nordestino no seu cotidiano e a partir daí retirarmos os termos ligados ao modo de falar, tanto do homem nordestino sertanejo quanto do homem rural, e debatermos com os alunos. Aqui, “identidade do campo ou identidade do ser da roça” representaria o viver na/da roça, reproduzindo a imagem que o/a aluno/a da roça encontra no espaço escolar. Essa imagem é aquela produzida pela mentalidade “urbanocêntrica”, que subestima e subjuga os referenciais culturais não urbanos. Tal imagem está presente nas práticas pedagógicas e também no imaginário coletivo que circula entre a sociedade urbana, inspirada na pretensa supremacia cultural da cidade sobre a roça e, inclusive, da fazenda sobre a roça42. Os termos “roça” e “rural” formam, nesse contexto, a compreensão das representações sobre o homem do campo no Brasil, o que ficou bastante conhecido nas obras de Monteiro Lobato. Ao final da execução das músicas de L. Gonzaga, teve início a nossa conversa, com momentos de risos entre os alunos... A reação da maioria da turma foi imediata como se ver nas falas a seguir: “Não gosto de ser da zona rural/prefiro ir para a cidade. 42 A incorporação dessa ideologia de negar a si para querer ser grande pode ser exemplificada num dado apresentado por Sr. Josué Presídio, durante a pesquisa: “o povo aqui tem uma besteira de ter duas tarefas de terra e dizer que é fazenda”. Entrevista realizada em 04/04/2003. 219 Ser da zona rural é sinônimo de analfabeto./Quando você fala que mora na zona rural todo mundo começa a fazer gozação...” Diferente dos alunos da escola “A” e da escola “B” que reaprenderam a revalorizar o seu espaço de vida, o seu meio, o seu lugar onde vive, a sua cultura, enfim a sua roça. No caso da escola “C” a diferença no trato dessa questão é bem perceptível. A desvalorização da identidade do ser do campo, a rejeição ao modo de falar, a denegação dos modos de vida dos que lá vivem, foi colocada de forma patente e isso se deve claramente à ausência de um ensino que fixe a sua matriz educacional no fortalecimento do modo de vida e da cultura local. Aqui (na escola “C”), o ensino é oferecido a partir de uma visão urbanocêntrica, o que é comum nas escolas do meio rural brasileiro: distanciada e desvinculada dos saberes locais. Não cumpre de fato o papel crítico e reflexivo ligando os alunos aos valores fundamentais da sua própria cultura, cuja abordagem implicaria, certamente, num ganho de reafirmação identitária e da própria relação com a diminuição, fatalmente, do êxodo rural. 7.4 – Monitores/Professores das escolas “A e B” avaliam a sustentabilidade local e a alternância As entrevistas com os monitores da escola “A” foram realizadas de maneira participante no interior da escola. As questões abordadas foram sobre o papel que desempenha essa escola na sustentabilidade comunitária local e na alternância. No entanto, para o caso desses monitores outro tema emergiu de maneira bastante forte durante a entrevista realizada. Provavelmente, por se tratar de um encontro onde a maioria dos entrevistados era do sexo feminino, a questão de “gênero” e o papel que desempenha as mulheres trabalhadoras do campo. Neste caso procurando rever do ponto de vista da formação/educação efetiva da aluna-alternante-mulher do campo. As entrevistas realizadas com os monitores da escola “B” variaram segundo as atividades exercidas por cada um. Uma parte das entrevistas foi realizada no campo durante o acompanhamento de aulas práticas e outra foi realizada nas salas de aula e no escritório da escola. Foram entrevistados cinco monitores/professores pertencentes ao quadro efetivo da escola. As entrevistas tiveram uma média de duração 01h40min. 220 Esta entrevista teve duração de aproximadamente 3 horas e a participação dos cinco monitores pertencentes a essa escola. Enquanto categorias de análise, os temas colocados em discussão foram os mesmo da escola “A”: Categoria Escolas Entrevistas-monitores Não pode no que concerne ao desenvolvimento, fazer uma análise apenas para a questão agrícola, porque tudo fica Sustentabilidade comunitária A limitado, mas tem outras demandas que a escola tem que trabalhar. A questão da saúde por exemplo. Porque tem uma menina que estudou aqui, depois fez o científico e depois fez enfermagem e está lá até hoje na comunidade. Ela trabalha com saúde; então, de qualquer jeito é um desenvolvimento, é um ganho não estritamente Sustentabilidade comunitária A agrícola. Até mesmo porque não é obrigado que todo mundo que estuda aqui viva da agricultura, porque até não vai ter espaço pra todo mundo. Na agricultura fica quem gosta. (ent.fem.1) O trabalho é interdisciplinar. Trabalha-se saúde, engenharia, meio ambiente. O aluno sai de lá sabendo em quantas tarefas de terra, quantas bananas, aipim dá para plantar. Isso para a escola vai ajudar muito, tanto na casa, quanto na comunidade, pois trabalha com a sociologia, a política, enfim. (ent.fem. 1) Nós temos aqui os dados já organizados das avaliações dos meninos. Têm avaliações do reflorestamento e tem um marco referencial, por exemplo, ligado ao reflorestamento. (ent.fem.1) _________________________________________________________ Depende muito da atividade que eles desenvolvem; nós Sustentabilidade comunitária temos exemplos aqui de jovens que têm área relativamente grande, mas as atividades que eles desenvolvem não têm tanta rentabilidade, então eles têm muito trabalho e pouco retorno financeiro. E já existem propriedades muito pequenas e que as atividades são mais B rentáveis, a exemplo da fruticultura. A fruticultura, ela não exige grandes áreas pra você ter uma boa receita no final do mês, então o que a gente tá provocando bastante aqui é isso, a gente quer promover um aumento da renda dessas famílias, mas sem aumentar o tamanho da área explorada. A produção, ela tem de crescer de maneira vertical e não horizontal, então nosso foco aqui é muito Sustentabilidade comunitária assim, em cima da produtividade. É por isso que a gente trabalha muito a questão tecnológica, a gente traz consultores de diversas áreas justamente pra isso, pra aumentar a produtividade e permitir B que uma família com 5, 6, 7 pessoas possa viver bem numa área de 2, 3 hectares. E tudo isso aliado também com a questão ambiental. (ent.mas.1) Trabalhar aqui com lavouras que deem um retorno financeiro logo rápido de círculo curto, sendo perenes, e também ver 221 a própria vocação da região. (ent.mas. 2) O que se percebeu é que havia já uma área de plantio de mandioca, mas que esse plantio não garantia a sustentabilidade dos próprios agricultores. Então o que se deveria fazer? Ver o que estava errado, corrigir para poder avançar. (ent.mas 2) A monitora da escola “A” aponta para uma visão complexa da sustentabilidade nas comunidades envolvidas com a escola, levando em consideração outros aspectos igualmente importantes do tema: aqui o desenvolvimento não é reduzido apenas à questão da produtividade agrícola, em termos completamente técnicos, como ela afirma: “Não pode no que concerne ao desenvolvimento, fazer uma análise apenas para a questão agrícola,/porque tudo fica limitado, mas tem outras demandas que a escola tem que trabalhar./A questão da saúde por exemplo”. Assim percebe-se que o conceito de desenvolvimento não se situa apenas do ponto de vista técnico-agrícola, mas no desafio de educar o jovem de origem agrícola de maneira completa a partir de uma perspectiva que compreenda os meandros da técnica, mas antes de tudo cidadã. “tem uma menina que estudou aqui”, “ela trabalha com saúde; então, de qualquer jeito é um desenvolvimento, é um ganho não estritamente agrícola”. O desenvolvimento sai, no caso dessa monitora, de uma tese maniqueísta com base no interesse técnico agrícola e econômico viajando, neste caso, a outra perspectiva de complexidade, onde todos os aspectos ligados ao tema ganha significância, a partir de uma visão em que as metodologias, os currículos e conteúdos pedagógicos devem apontar para a complexidade do que seja o desenvolvimento e a educação para o campo. Num segundo trecho da narrativa da monitora, a preocupação aparece com práticas agroecológicas e a importância que é dada à relação com a preservação das florestas, particularmente nas comunidades envolvidas pela escola: há avaliações do reflorestamento e um marco referencial, ligado ao reflorestamento. Numa outra visão deste discurso, a monitora aponta para uma perspectiva de transcendência do ato educativo entre o mundo rural e o urbano: “não é obrigado que todo mundo que estuda aqui viva da agricultura,/porque até não vai ter espaço pra todo mundo”. Neste caso, a noção de educação apontada inclui garantir aos jovens autonomia suficiente para viver onde bem lhe convier, como sentencia a monitora: “Na agricultura 222 fica quem gosta. “ninguém é obrigado a ficar na agricultura só por que é filho de agricultor.” No caso da escola “B”, os monitores sinalizam para a sustentabilidade local, focado principalmente no desenvolvimento técnico-agrícola como foi observado. Esse elemento é um importante fator de comparação e diferenciação entre as duas escolas em alternância como é possível perceber nesta fala do monitor: “nosso foco/em cima da produtividade./É por isso que a gente trabalha muito a questão tecnológica, os jovens da escola que têm área relativamente grande, mas as atividades que eles desenvolvem não têm tanta rentabilidade... eles têm muito trabalho e pouco retorno financeiro, já existem propriedades muito pequenas em que as atividades são mais rentáveis, a exemplo da fruticultura./A fruticultura, ela não exige grandes áreas pra você ter uma boa receita no final do mês”. Aqui entra a articulação da grade curricular dessa escola, focada no aprimoramento do plantio, cultivo e comercialização dos produtos das comunidades, levando em conta um alto nível de experimentação técnico da agricultura local. Os monitores presentes na entrevista alegavam que os níveis de produtividade das propriedades dos alunos eram considerados “muito baixos”, com uma média de três toneladas por hectare para o caso da “mandioca”. Aí entrava o papel da escola, ou seja, reverter esse procedimento, trazendo inovações técnicas modernas e experimentadas, tomando os alunos como multiplicadores dessas ações: “A gente tá provocando bastante aqui é isso,/a gente quer promover um aumento da renda dessas famílias, mas sem aumentar o tamanho da área explorada./A produção, ela tem de crescer de maneira vertical e não horizontal”, mais a frente: A gente traz consultores de diversas áreas/pra aumentar a produtividade e permitir que uma família com 5, 6, 7 pessoas possam viver bem numa área de 2, 3 hectares”. Ainda dentro desta mesma linha de raciocínio, o monitor entrevistado explica que a estratégia da escola no que diz respeito a sustentabilidade comunitária afirma que é preciso “trabalhar aqui com lavouras que deem um retorno financeiro rápido de círculo curto, sendo perenes”, dentro, afirma, da “própria vocação da região”. Ainda, segundo os monitores, com a intervenção da escola, a média por hectare subiu para aproximadamente 25 a 30 toneladas/hectare, havendo casos, segundo eles, onde a produção pode alcançar até 40 toneladas hectare na mesma região. Assim, a escola direciona sua práxis pedagógica para a produção agrícola, considerando os aparatos 223 técnicos da agricultura, tendo em sua base a “revolução verde” como fundamental para garantir o desenvolvimento das comunidades dos alunos. Nesse caso, o desenvolvimento comunitário e a sustentabilidade familiar é tomada na práxis dessa escola enquanto experimentações de técnicas de manejo. Essas técnicas devem levar em consideração o aumento da produção agrícola, no sentido de que se produzam ganhos econômicos importantes para as famílias e para as comunidades envolvidas. 7.5 – A alternância por monitores das escolas “A e B”: Categoria Escolas Entrevistas-Monitores Nas visitas às comunidades é isso que há: muito potencial que precisa apenas ser estimulado para se desenvolver. Há uma certa discriminação com relação aos moradores da roça, de que são idiotas. O trabalho da Pedagogia da Alternância é estimular o potencial de cada um e mostrar que eles são tão inteligentes quanto os da cidade. (ent. 2) Claro, eles também têm preocupações que são trazidas para a escola, adubo, tipo de manejo, algumas coisas que são provocadas pela escola. Não é que o pessoal não sabe fazer, mas é Alternância A que o pessoal fazia sem uma preocupação mais recorrente dessas coisas, se é agroecológico ou não, se está preservando o ecossistema, se está queimando, se está preservando os rios, as matas ciliares. (ent.mon.mas 2) Na observação há uma “partilha”, porque eles são convidados a trazer as demandas para as aulas de zootecnia. (ent. 4) Bom, então, quando estamos tratando das Escolas Famílias Agrícolas, é preciso entender que, às vezes, é muito bonito no papel, mas que tem a realidade do dia-a-dia e os entraves, que não é bem assim, tá certo, mas você tem os questionamentos. Então fomos ver a diferença entre observação e pesquisa, e isso não estava bem claro para os meninos. Quando os meninos viajam, eles fazem uma coisa de observação, que é um instrumento da pedagogia da alternância. Quando eles fazem o trabalho da alternância em casa já é a pesquisa, mas como esses dois funcionam? (ent.2) A alternância na verdade tem dois momentos: um momento na propriedade com um monitor acompanhado e aqui o 224 momento de formação na Casa Família Rural. Mas eu considero o momento mais importante é quando o monitor está na comunidade familiar, porque é nesse momento que há a maior interação entre a escola e a comunidade, é o momento em que o jovem está ali praticando e que o monitor está ali acompanhando, ajudando o jovem. E aí se começa a pensar nos projetos Alternância B produtivos. É o momento em que o monitor pode dar um acompanhamento mais individualizado. (ent.mas.3) Às vezes o jovem está com algum problema de insegurança que não conseguimos identificar, mas quando a gente vai à comunidade, quando vamos à casa dele começamos a perceber, o que é que o jovem está passando... Às vezes é algum problema familiar que está passando e está refletindo negativamente no período que ele está aqui na alternância; então quando vamos lá na comunidade, no seio familiar, a gente identifica; então fica mais fácil de trabalhar. Às vezes, a gente se pergunta até que ponto pode entrar no problema da família? Então é uma grande pergunta nossa. Porque às vezes, a gente acaba se envolvendo tanto que é como se a gente fosse parte da família e a gente também tem que criar um limite, porque também temos a nossa função de consultor e o consultor tem também que ter aquele olhar externo... E tem momentos que Alternância B temos que ser um pouco pai desses jovens. (ent. 4) Não existe reação negativa por parte das famílias; é sempre assim positiva. Às vezes quando a gente não vai, eles ficam perguntando: “poxa, por que não foi?” Tem vezes que a gente está com aquele horário corrido, aí vai, a gente tem que justificar, o pessoal toma todo aquele cuidado, preparar o almoço... No dia da visita, o pessoal fica aguardando, até pedimos pra eles não se preocuparem, mas eles fazem questão de fazer um bolo, um café... O tempo é sempre entre duas e quatro horas, a depender da atividade. (ent. 6) Nas falas dos monitores da escola “A”, existe uma visão bastante realista do que acontece no dia a dia do entorno da escola e das comunidades, no vai e vem que se estabelece entre ambos. Num primeiro momento, os monitores/professores lamentam-se de não terem um pré-conhecimento da comunidade, na perspectiva de mapear as demandas iniciais para serem trabalhadas pela escola. “Nas visitas às comunidades/há: muito potencial que precisa apenas ser estimulado para se desenvolver/uma certa discriminação com relação aos moradores da roça,/o trabalho da pedagogia da alternância é estimular o potencial de cada um e mostrar que eles são tão inteligentes quanto os da cidade”. 225 Os poucos recursos nas escolas em alternância acabam por inviabilizar um conjunto de atividades, inclusive essa das visitas periódicas dos monitores. Daí uma das defesas desta tese e corroborada já por alguns autores: a de que o Estado deve assumir as escolas em alternância e garantir os custos operacionais com o seu desenvolvimento técnico-pedagógico. Esta tese pode ser discutida, já que dentro do movimento de escolas famílias agrícolas existem setores que entendem a assunção por parte do Governo como uma intromissão nos princípios e ideologias que cercam as CEFAs/ EFAs e CFRs, mas por outro lado, e, provavelmente, a maioria dos atores envolvidos nessas escolas entende que sem o financiamento governamental a continuidade das iniciativas da pedagogia em alternância em áreas rurais de pequena agricultura é complicada. Partindo-se deste pressuposto, nem sempre o que é a demanda mais importante na comunidade é o que vai se tornar o elemento a ser partilhado dentro da escola e nem sempre o que é trabalhado na escola servirá de uma forma concreta para o desenvolvimento e para a melhoria das comunidades, criando-se um descompasso. Pode-se ver na fala, “o potencial da comunidade que por muitas vezes não é trabalho nem compartilhado pela escola” por conta da própria falta de estrutura que a maioria das escolas vive, normalmente submetidas a condições precárias de financiamento de suas atividades. Assim, sem conhecimento prévio, concretamente o aprendizado dos jovens e a melhoria nas comunidades envolvidas na relação teoria e prática fica comprometido, pois não há uma participação efetiva (visitas) dos especialistas nas comunidades, por conta dos custos operacionais. Numa outra ponta da entrevista, a monitora percebe e avalia o processo discriminatório que envolve a estima do homem do campo, este elemento é crucial no desenvolvimento das atividades no interior da escola visando às mudanças de comportamento dos sujeitos, alunos e monitores em suas propriedades. A pedagogia da alternância consegue chegar à comunidade, diferentemente das escolas tradicionais. No entanto, o compromisso que o monitor deve ter com as pessoas do lugar no sentido de estimular atitudes positivas em relação a sua comunidade é essencial. Neste caso, a formação de monitores/professores que compreendam a 226 importância de uma educação cidadã é fundamental, no sentido de elevação da autoestima e superação da pobreza de algumas localidades isoladas no meio rural. A escola “B” traz outro elemento importante para se destacar: que está na relação que se estabelece entre o monitor, os pais e a comunidade envolvida no processo educativo da escola, num sentido em que media as relações entre alunos e pais de alunos que por vezes se estabelecem de maneira conflituosa no seio da própria família do educando. A maneira como o monitor é recebido indica uma positividade da escola nas comunidades. Esse aspecto é fundamental e denota a diferença entre uma EFA e uma escola tradicional, principalmente a escola publica do meio rural brasileiro, onde a distancia entre a família e a escola é um marco histórico. Com o passar do tempo, como se nota, o monitor deixa de ser visto como o de “fora” e passa a ser reconhecido como alguém importante na mediação dos conflitos e nas relações entre pais, alunos, a escola e a propriedade familiar. 7.6 – A emergência da questão de “gênero” enquanto diferença fundamental a ser considerada: O caso da escola “A” Categoria Escola Monitores Pena que a gente conhece a comunidade depois que o aluno está aqui, porque se você conhecesse antes, é o povo da comunidade que conta como era antes, e aí começa a fazer interferência. E aí que a gente percebe que foram interferências positivas, mas, mesmo com essas resistências da associação, mas é a questão de gênero, na Gênero A verdade, principalmente do homem, porque são as lideranças masculinas que ainda são a maioria. Mesmo a gente não querendo, mas são eles que indicam e impedem as intervenções dos jovens e das mulheres. As mulheres ainda trabalham bem menos, só se for uma mulher solteira – tipo Glória, Isabel (elas podem falar isso), mas na maioria são os homens que impedem as mudanças e são eles que são fechados pros meninos. Mas nós já temos já, com certeza, desenvolvimento nas comunidades, indicadores podemos de pegar. Cachoeiro II. (mon.fem.ent. 2) 227 Aqui, é preciso reconhecer o campo brasileiro e muito provavelmente outras regiões do campo no planeta como um mundo comumente machista, onde normalmente a mulher é responsável pelas tarefas domésticas e o homem pelo cultivo. Esses aspecto da questão de gênero, revela o enorme potencial das EFAs em desenvolver uma outra atitude em relação aos processos de ensino aprendizagem nas escolas do campo que envolva de maneira significativa a participação das mulheres-jovens-alternantes: “As mulheres ainda trabalham bem menos”, adverte a monitora. Dentro desta perspectiva e naquilo que foi observado, a participação feminina nas atividades agrícolas dessa escola é tomada de maneira construtiva e incentivada por todos os envolvidos (monitores e diretor). Essa atitude da escola “A” pressupõe também uma redefinição do papel da mulher camponesa nos trabalhos das propriedades familiares, num sentido da emancipação feminina no campo. Essas atitudes são percebidas no momento das intervenções agrícolas nas comunidades, as mulheres que passaram pela escola desenvolvem uma atitude diferente em relação às tarefas domesticas e na relação com a plantação, tomando para si a responsabilidade no trato com a propriedade familiar. A crítica da monitora assinala a participação das lideranças de assentamentos rurais ligados aos diversos movimentos sociais rurais como MST e MLT afirmando que: “São os homens que impedem as mudanças e são eles que são fechados pros meninos. Mesmo com essas resistências da associação e das lideranças, mas é a questão de gênero, na verdade”. Neste caso, as inovações e a atitude positiva dos alternantes tanto do sexo masculino (jovens) quanto do sexo feminino esbarram de um lado no machismo tradicional e do outro nas atitudes e impedimentos dos homens, lideranças de assentamentos rurais. Algo interessante acontece aqui... São as lideranças dos assentamentos, outrora “sem-terra” que ocuparam a terra num sentido revolucionário invocando a divisão de terras e de emancipação da classe trabalhadora como um todo, dentro de um sentido bem “marxista”. No entanto, ao estabilizar o processo de “luta pela terra” entra em cena uma outra atitude a dos “ex-trabalhadores sem terra”, (agora com terra), que se transformaram em lideranças políticas dos assentamentos, das organizações fundadoras desses processos e mesmo da política tradicional do País. Para esses, o papel da mulher e dos jovens alternantes enquanto inovadores de experimentações nas comunidades e mesmo a consciência política adquirida ao longo dos anos de escola, põe em risco a 228 continuidade dos poderes ora estabelecidos e assim, aparecem os conflitos na relação justaposta entre líderes e os novos (alternantes, jovens e mulheres) deixando uma definição muito clara do papel de mando e de poder nas comunidades dos assentamentos rurais. Nesse aspecto, a monitora celebra o fato de que algumas poucas mulheres com passagem pela escola já conseguiram impor suas convicções nos assentamentos dos quais fazem parte, mesmo se para isso fora necessário separar uma parte da terra para os seus experimentos: “Só se for uma mulher solteira – tipo Glória, Isabel (elas podem falar isso)”. Aqui, é possível observar também o papel que pode jogar uma escola engajada nos processos de desenvolvimento comunitário, mas deve-se considerar o engajamento em toda a sua complexidade de formação, onde um aspecto não pode ser visto como mais importante que o outro, ou seja, a sustentabilidade comunitária não pode ser mais importante que a emancipação, por exemplo, dos jovens, homens e mulheres do campo. 7.7 – Análises das entrevistas com os professores da escola “C”: Foram 5 visitas intercaladas a essa escola, envolvendo observações, atividades dinâmicas e entrevistas. As entrevistas com questões semi-dirigidas foram realizadas de forma coletiva com sete professores na sala de reuniões e tiveram uma duração mínima de 1 hora. Os professores são originários, na sua grande maioria, da sede do município de Valença, e uma das entrevistadas é originária do Município de Tancredo Neves. Todos têm mais de dez anos de ensino e, em sua totalidade, são egressos do antigo curso de magistério. Apenas uma professora concluiu o curso de licenciatura em Pedagogia. No entanto, todos os outros continuam sua formação em universidades diversas da região. As questões formuladas para entrevista com os professores dessa escola, foram sobre a ambiguidade que cerca a escola pública rural em seu transplante de escola urbana; sobre o material didático; o projeto político pedagógico; o currículo; ea qualidade da escola rural em que esses docentes trabalham. Essas categorias se diferenciam das questões organizadas para pesquisa nas escolas em alternância. Assim, vale lembrar que as EFAs em pesquisa se definem a partir do perfil de escola do 229 “campo” e para o campo, o que não é a mesma coisa quando se trata de uma escola pública rural no campo, sem um engajamento maior. 7.8– A escola pública rural: o caso da escola “C” Categoria Escola Professores A realidade é que não tem nada pra digitar, muitas não A educação publica do meio rural C têm nem energia elétrica, fica esperando uma Professora rodar pra trazer uma matriz, tem escola que não tem mimeógrafo, fazem na mão pra poder ir pra secretária rodar. (ent. 3) As metodologias são diferentes. A gente se adapta à realidade deles, porque a gente vê o dia-a-dia, a gente usa dinâmicas diferentes. Por exemplo, existe falta de material na zona rural; então a gente vê o meio deles, o ambiente, as escolas rurais têm constante falta de material, nas escolas que têm conselho escolar ainda tem uma coisinha, mas as escolas que não têm os livros didáticos, por exemplo, não têm, e quando têm, estão fora da realidade. (Prof.fem.ent.3) Eu acho essa escola aqui obsoleta, só tem uma máquina; o histórico escolar é emitido ainda na caneta de forma manual, não tem Internet, não tem telefone... (prof.fem.ent. 4) O problema é a reprodução desse material, que aqui na escola não tem como; a gente geralmente tira do bolso para reproduzi-los. Por exemplo, eu peguei um texto e trabalhei com eles; eu tive que tirar do meu próprio bolso para reproduzi-lo. A educação publica do meio rural (ent.fem. 3) C O livro vem para todo o município de Valença, mas, no entanto, aqui é diferenciado; não vai se comparar o conhecimento do aluno daqui para os alunos da zona urbana. Então é o que eu sempre digo, que planejamento de escola rural deveria ser diferenciado e assimilado até o dia-a-dia deles mesmo com a realidade contextualizada. A gente explica, a gente tenta, vai tirando daqui botando dali, para poder se organizar. Agora complicado é. (Prof.fem.ent. 1) Interessante que eu estava numa palestra sobre escolha do livro didático, e essa escolha foi para todo o município. Assim nós tivemos acesso a todos os tipos de livro a ser escolhidos aqui pra zona rural, só que os livros que geralmente a gente A educação publica escolhe não são o que convém, não dá para se adaptar. (ent. 2) Eu mesmo produzo os próprios materiais didáticos e 230 do meio rural C passo pra eles. Não adapto o livro didático, não. Eu produzo o material aqui e passo pra eles; eu sei que os livros oferecidos estão muito longe da realidade deles. Você pega um aluno que veio de uma família que geralmente não estão alfabetizados, tem um aluno que vem de uma alimentação precária para a escola, pega um aluno que não tem uma estrutura familiar sólida, até para conviver socialmente... são várias questões mesmo que acontecem na zona rural; então quando o aluno chega, você empurra conteúdos que não estão adequados ao nível de conhecimentos deles; então porque não pegar os conhecimentos deles para aprimorar em vez de trazer esses conteúdos já prontos, completamente fora da realidade e perceber que ninguém consegue assimilar. Como eu vou pegar um texto de um teórico desses que falam palavras que dá um nó no juízo dos meninos. Eu pego uma coisa que é mais realidade vivida deles e trago para a sala de aula. (ent. 1) Esse quadro de entrevistas reflete um conjunto de elementos atinentes à escola pública do meio rural no Brasil. Inicialmente percebe-se que a realidade local interna, se torna para os professores, um processo de constantes desafios e arranjos, tanto no que concerne à formação de professores quanto à própria estrutura de funcionamento da escola. Um primeiro elemento a se destacar é que os professores não foram preparados para as exigências do público que estão lidando, e que de uma maneira geral o contexto é estranho para o conjunto de docentes que ali trabalham: “As metodologias são diferentes. A gente se adapta à realidade deles, você empurra conteúdos que não estão adequados ao nível de conhecimentos deles; então porque não pegar os conhecimentos deles para aprimorar em vez de trazer esses conteúdos já prontos, completamente fora da realidade e perceber que ninguém consegue assimilar. Como eu vou pegar um texto de um teórico desses que falam palavras que dá um nó no juízo dos meninos”. Esses elementos acima esbarram num problema crucial da educação rural no Brasil: que é a falta de formação docente para atuar de maneira comprometida e engajada nas escolas instaladas em contextos diferenciados: como zona rural, escolas de assentamentos, tribos indígenas etc. Um argumento forte para existência de professores não preparados lidando com contextos estranhos, é a falta de oportunidade de trabalhos na cidade, e, é possível 231 afirmar ainda, que, para alguns professores, o trabalho em qualquer área na cidade seria mais “bem-vindo” do que o trabalho de educador no campo. Pesquisas com professores do meio rural brasileiro apontam em sua maioria que a escolha do local do trabalho (na zona rural) se dá essencialmente pela falta de oportunidade de se trabalhar na cidade e não pela motivação de atuar em escolas da periferia das cidades ou da zona rural. Como se vê, percebe-se claramente a relação entre adaptação ao meio estranho, o contexto e a distância na formação docente que normalmente deveria acontecer enquanto preparo sistemático para essas escolas. O resultado como se nota é um processo contínuo de experimentação – ensaio e erro: “Eu pego uma coisa que é mais realidade vivida deles e trago para a sala de aula. Eu mesmo produzo os próprios materiais didáticos e passo pra eles. Não adapto o livro didático, não. Eu produzo o material aqui e passo pra eles”. Apesar dos professores demonstrarem certa afeição ao trabalho com essa escola, no que foi possível observar, eles reconhecem o fato de não terem uma formação norteadora para um trabalho mais sistemático e conforme às necessidades locais. “Você empurra conteúdos que não estão adequados ao nível de conhecimentos deles; então porque não pegar os conhecimentos deles para aprimorar em vez de trazer esses conteúdos já prontos, completamente fora da realidade e perceber que ninguém consegue assimilar. Como eu vou pegar um texto de um teórico desses que falam palavras que dá um nó no juízo dos meninos. Eu pego uma coisa que é mais realidade vivida deles e trago para a sala de aula”. Neste caso, nota-se a incapacidade e a inadequação da escola pública rural em não aproveitar o potencial de diálogo que existe entre ela e a comunidade do seu entorno. Esse aspecto também é importante no que reforça a intenção desta tese “as escolas de contextos diferenciados precisam de currículos que estruturem as suas demandas, tanto do ponto de vista da emancipação, quanto do ponto de vista da formação para a organização das técnicas de manejo locais.” Agindo dessa forma, poderemos então falar em rupturas curriculares e inovações importantes para a melhoria das condições econômicas, sociais e culturais dos envolvidos estabelecendo uma relação preciosa da educação com o desenvolvimento, com a história/memória, com a cultura e com a identidade das comunidades envolvidas, o que resultará em valor essencial a ser trabalhado nas grades curriculares por uma educação adaptada, de qualidade, cidadã e emancipatória. 232 7.9 – Os professores avaliam o material didático, a metodologia, o currículo O livro didático é escolhido para todo o município, não havendo preocupações em construir estratégias de escolhas que diferenciem o trabalho educativo na zona rural e urbana. O currículo e o projeto político pedagógico são os mesmos de qualquer escola da cidade: “O livro vem para todo o Município de Valença, no entanto, aqui é diferenciado; não vai se comparar o conhecimento do aluno daqui para os alunos da zona urbana”. “Então é o que eu sempre digo, que planejamento de escola rural deveria ser diferenciado e assimilado até o dia a dia deles mesmo com a realidade contextualizada, as metodologias são diferentes. A gente se adapta à realidade deles, porque a gente vê o dia a dia, a gente usa dinâmicas diferentes”. Como se vê, é latente a ambiguidade entre o rural e o urbano e a forma como os professores tentam encontrar soluções para os problemas estruturais e metodológicos que se apresentam na vida cotidiana da escola: Duas variáveis chamam igualmente atenção acima, a saber: o completo distanciamento do currículo com o contexto e a falta de material didático nas escolas públicas de educação básica do campo. Caso já destacado tanto por autores como Mansano, Arroyo, Caldart (2004), quanto pelos Movimentos Sociais engajados em educação do campo e elencados em parte da problemática desta tese: “A realidade é que não tem nada pra digitar, muitas não têm nem energia elétrica, fica esperando uma professora rodar pra trazer uma matriz, tem escola que não tem mimeógrafo, fazem na mão pra poder ir pra secretária rodar”. Por exemplo, “existe falta de material na zona rural; então a gente vê o meio deles, o ambiente, as escolas rurais têm constante falta de material”. Mais uma vez é possível perceber os “arranjos” para solucionar os problemas estruturais e metodológicos que se apresentam no dia a dia da sala de aula no meio rural, no sentido de tentar de um lado, fazer funcionar a escola e do outro, aproximar a realidade dos educandos dos conteúdos programático das disciplinas distanciadas comumente, que são previstos a priori pela Secretaria de Educação desse município. Para nós, esses elementos colocados acima evidenciam os principais empecilhos para o desenvolvimento de atividades referenciais para educação do campo no Brasil. Assim é possível dizer que os discursos das professoras refletem a situação da maioria das escolas rurais tradicionais no Brasil. O ato de educar no “campo” em 233 escolas públicas e marginalizadas na zona rural e na periferia das cidades brasileiras chega a ser, em determinados momentos, um ato “heroico”: “A gente geralmente tira do bolso para reproduzi-los. Por exemplo, eu peguei um texto e trabalhei com eles; eu tive que tirar do meu próprio bolso para reproduzi-lo”. Sendo que não é raro que uma professora da zona rural tenha que retirar do seu próprio salário para garantir o mínimo de tarefas educativas para os seus alunos. Dentro das realidades observadas, então, como não chamar de heroísmo o trabalho de uma professora da zona rural, que não dispõe de elementos básicos para o funcionamento de suas turmas? Neste caso, é preciso destacar o engajamento e o comprometimento de alguns educadores da zona rural, do contrário, nem o nível mínimo de aprendizagem para os alunos seria possível. Assim e a partir dos dados acima, é possível afirmar também a importância da postura do educador frente à realidade que ele encontra na maioria dos estabelecimentos rurais públicos de educação básica no Brasil e essa postura também é condição sine qua non na garantia de elementos mínimos de aprendizagem dos alunos, como, por exemplo, aprender a ler, escrever e contar. 234 235 CAPITULO VIII 236 8 – Diretores das escolas “A, B e C” avaliam o desenvolvimento e a sustentabilidade, alternância, e os desafios da educação para o campo A entrevista foi realizada no interior da escola e teve a duração de 01h10min. A diretora mostrou-se bastante colaboradora e disposta a nos fornecer os dados que nos interessava conhecer. Nesse contexto, procuramos aprofundar ao máximo todos os elementos que atravessam o funcionamento da escola, tais como: a educação do campo; a alternância; a escola, a família e a comunidade; o acesso à terra e à sustentabilidade; o desenvolvimento comunitário local; financiamento e autonomia (sobre o gerenciamento, a falta e a formação de professores). Assim, preferimos, no caso desta análise, tomar como base a fala da diretora e, a partir dos extratos do discurso, compreender o que nos parece pertinente. A princípio, nos parece mais interessante evidenciar a, partir desta fala, aquilo que é fundamental, para entender o que acontece no dia a dia do funcionamento desta instituição. Com o diretor da escola “B” a entrevista foi realizada logo depois de uma aula cujo objetivo era partilhar os conhecimentos trazidos pelos alunos de suas comunidades. A entrevista foi no refeitório da escola e teve a duração de 53 minutos. A nossa preocupação girou em torno do contexto geral da escola: a escola a família e a comunidade; a alternância; a sustentabilidade o desenvolvimento comunitário local; o acesso à terra; o financiamento e a autonomia da escola. Nesse sentido, algumas outras questões seguiram já oriundas do caminhar realizado até então no interior dessa instituição, que veremos em seguida. 8.1 – Sustentabilidade comunitária: Categoria Escolas Diretores Aí falando da área de agro-silvicultura, eu penso que pra uma família adotar o princípio da agro-silvicultura ela precisa saber dominar esse conhecimento, não abrindo mão do cacau e da seringa, mas tendo a pupunha o guaraná como uma espécie de caderneta de poupança seria o fundo de reserva. E estimularem, por exemplo as pessoas na medida em Sustentabilidade comunitária que ela não precisa comprar alimentos. Que ai é a lógica de famílias que é, A eu planto meu angu, minha fava, eu planto a batata doce, eu planto a mandioca, eu crio a galinha eu crio uma outra coisa ai, então por exemplo 237 eu não vou compra o feijão fradinho, porque em casa eu tenho uma variedade de feijão, ou eu posso comer andu ai em não vou comprar mais batatinha porque eu tenho a verdura, eu vou diminuir a compra da carne, porque eu vou alternar com ovo, posso até ter uma galinha pra matar. Então na medida em que deixo de comprar comida, então o dinheiro que tinha com a venda do cacau, esse dinheiro aqui ....então é essa lógica que agente discute com os pequenos agricultores que é como que você vai elevar a sua renda a partir da diminuição da compra que você faz. Uma outra perspectiva fundamental na região do cacau e em países tropicais seria o do consorciamento, alternando plantas de ciclos curtos com plantas de ciclos longos, no caso específico da região do cacau, temos o exemplo mais comum que é a alternância entre a mandioca e as outras culturas de ciclos longos como o cacau e a seringa. Então, mas é isso que estou dizendo, é um desfio pra gente, Sustentabilidade comunitária A agente continua porque isso é um problema cultural, agente sabe que durante séculos foi proibido falar na palavra “produção de alimentos”, por que agente está numa região que foi reservada e foi incentivada a cultura pra exportação, ou especiaria, ou cacau, a seringa, mas é uma cultura pra exportação. É a lógica de mercado, é a massificação eu tenho uma televisão em casa e passa o sofá-cama e eu desejo aquele sofá que está na televisão porque se não eu vou me sentir inferior. Quer dizer eu parei aqui na Pousada Virtual e no Casarão de Pedra pra tomar café e o que é que tinha lá, batata doce, beiju, banana cozida, abobora cozida, cuscuz, mingau, ai você cozinha aipim de manhã pro meninos comer e ele dizem não quero essa porcaria não, ai você bota uma bacia de poca-zoi e é uma festa porque eu to comendo o industrializado. Então como é que eu me dei conta de que ensinar a agente Sustentabilidade comunitária A comer uma coisa que não comem? Foi logo a primeira vez que eu ia visitar o povo na Europa foi que eu via as mulheres fazendo o próprio pão, criando a própria galinha, mas é uma prática no campo europeu, encontrei gente inclusive confeccionando a própria roupa, tecendo no tear a própria toalha pra botar na mesa, o guardanapinho, fazendo a própria calabreza o próprio vinho. Então, mas nos disseram que o bom era o industrializado e é uma desvalorização do camponês, do campo e quando eu desvalorizo o camponês então eu desvalorizo tudo que se refere a ele... _____________________________________________________________ Depende muito da atividade que eles desenvolvem; nós temos B exemplos aqui de jovens que têm área relativamente grande, mas as atividades que eles desenvolvem não têm tanta rentabilidade. Então eles têm muito trabalho e pouco retorno financeiro. E já existem propriedades muito pequenas em que as atividades são mais rentáveis, a exemplo da fruticultura. A fruticultura não exige grandes áreas pra você ter uma boa 238 receita no final do mês, então o que a gente ta provocando bastante aqui é isso, a gente promover um aumento da renda dessas famílias, mas sem B Sustentabilidade comunitária aumentar o tamanho da área explorada. A produção tem de crescer de maneira vertical e não horizontal; então nosso foco aqui é muito assim, em cima da produtividade. É por isso que a gente trabalha muito a questão tecnológica; a gente traz consultores de diversas áreas justamente pra isso, pra aumentar a produtividade e permitir que uma família com 5, 6, 7 pessoas possa viver bem numa área de 2, 3 hectares e tudo isso aliado também com a questão ambiental. Trabalhar aqui com lavouras que deem um retorno financeiro logo rápido de circulo curto, sendo perenes e também ver a própria vocação da região. A importância dada por essa escola para o desenvolvimento sustentável local desempenha um papel decisivo em sua pedagogia. A perspectiva é a de transformar as realidades das propriedades familiares locais em possibilidades efetivas de sustentação econômica a longo prazo. Alguns elementos importantes compõem o relato da diretora da escola “A”: um primeiro está ligado a segurança alimentar das comunidades envolvidas; um segundo elemento seria a inversão da perspectiva cultural e agrícola nas propriedades em que a escola mantém sua presença. Neste caso a diretora reconhece a dificuldade na inversão da lógica de mercado que há muito tempo cerca o processo produtivo na região do cacau: a cultura de exportação. Assim, reconhecendo as mazelas que essa forma de produção provocou durante anos em termos de pobreza e na relação propriamente dita com a fome. Uma região rica nas possibilidades quase infinitas em termos de plantação agrícola, mas pobre dentro das escolhas oriundas das classes dirigentes que fez emergir processos de desnutrição gritantes nas comunidades rurais principalmente na agricultura familiar. No caso, haveria também o problema no ganho dos conhecimentos que cercam o processo de produção da agricultura familiar para uma direção de sustentabilidade adequada. Assim a diretora cita o caso da agrosilvicultura e o processo de consorciamento em países tropicais, alternando plantas de ciclos curtos como a mandioca e plantas de ciclos longos como o cacau e a seringa, estes dois últimos, responsáveis diretos pela cultura instalada: a de plantar exclusivamente para a exportação, esquecendo-se de plantar ou criar para o sustento doméstico, levando o agricultor familiar à dependência da lógica do mercado e ao endividamento. 239 Neste caso, em praticamente todos os aspectos da produção doméstica na agricultura familiar da região, que vai desde as compras de produtos alimentícios básicos para a sua família, à compra de fertilizantes e à compra de móveis que poderiam ser fabricados na própria comunidade e com material que existe em abundância a disposição das famílias de agricultores, no caso da região do cacau. Todos esses elementos colocados repõem uma nova visão de educação e requerem um novo redirecionamento da escola no meio rural. Neste caso, a reinvenção ou reinterpretação curricular. Seguramente, essa problemática não é apenas o caso particular da região do cacau, mas a encontraremos em outras áreas do planeta com culturas diferenciadas, mas dentro da mesma lógica de produção agrícola familiar existente nesta região. O diretor da escola “B” vai numa outra direção, apesar de que em alguns momentos percebemos semelhanças. Isso é possível explicar, pois mesmo estando na região do cacau existe certa peculiaridade entre o processo de produção dos agricultores que se situam mais ao norte da região, preferindo além da produção do cacau, outras culturas como no caso da banana e da mandioca. Neste caso, é possível perceber a enorme importância dada à variável produção econômica. Para esse Diretor, assim como ficou também constatado nas falas dos monitores, o papel mais relevante da escola está na elevação do padrão econômico das famílias e é nesta direção que a escola tem jogado todo o seu esforço, independente das críticas que se possa fazer sobre as técnicas de manejo ventiladas na sua aprendizagem e repassadas às comunidades. Esse elemento liga a escola a sua praxeológica revisitando o conceito de protagonismo juvenil. Assim, na ideia de base, essa de formar empresários rurais seguramente de empresas agrícolas que consigam produzir de maneira mais eficiente dentro do sistema capitalista. 8.2 – Alternância: Categoria Escolas Diretores Aí estuda, sai 10 horas da noite da escola e chega uma da manhã em casa. Tem um grupo de alunos de Buerarema que pega três transportes, caminha um trecho, aí pega, me parece, um jerico 240 Alternância A com uma carroça, aí leva até a estrada central e dali o carro pega e leva pra Buerarema. E ele tem que fazer esse trajeto de novo. Então ele sai 4:00h da tarde de casa pra começar a estudar 7:30h da noite, ou seja, ele passa 3:30h pra vir, 3:30h pra voltar, ele passa 7:00h no transporte pra estudar 4:00h por dia ou pra ficar na sala 4:00h... E aí estamos fazendo essa discussão. Fomos pra ponta do lápis com a Secretária de Educação e ela disse, mas aí fica caro... como fica caro? “Quanto é que vocês pagam de locação de transporte pra esses meninos? vocês mandarem buscar e levar todos os dias? Quanto vocês pagariam pelo transporte desses meninos a cada 15 dias? Temos casos em que os alunos foram pra escola estudaram durante 4 anos, viveram mais 3 anos fazendo ensino médio e a mãe e o pai nunca visitaram a escola. Isso pra mim é a ausência da família enquanto instituição educadora. Eu preciso saber em que espaço meu filho está morando, minha filha está morando. Que é que minha filha está estudando? Onde é que minha filha está dormindo? Agora nós sabemos que tudo isso é resultado da família abrir mão das suas funções. A família abriu mão de todas as suas funções. _________________________________________________________ Não existe reação negativa por parte das famílias; é sempre assim positiva. Às vezes, quando a gente não vai, eles ficam perguntando: “poxa, por que não foi?” Tem vezes que agente está com aquele horário corrido. Aí vai, a gente tem que justificar, o pessoal toma todo aquele cuidado, preparar o almoço... No dia da Alternância B visita, o pessoal fica aguardando, a gente até pede pra eles não se preocuparem, mas eles fazem questão de fazer um bolo, um café... O tempo é sempre entre duas e quatro horas, a depender da atividade. Por se tratar de pessoa muito jovem, a gente nunca sabe o que ele realmente quer, porque um jovem quando entra aqui com 14, 15 anos, que quer uma formação técnico-rural, pra viver na sua propriedade, possa ser que isso mude, possa ser que ele queira ser um engenheiro, um médico, alguma coisa assim [...]. E os jovens que entram aqui, com 13 a 14 anos, eles muitas vezes até abandonaram a escola. Mas depois de três anos aqui, eles se motivam a estudar novamente e a retomar os estudos. Porque, como você viu, o ensino aqui e lá na sala de aula vai motivando e despertando cada vez mais a vontade dos jovens de estar estudando, porque eles vão buscar sempre contextualizar com a realidade deles... e isso acaba também alguns jovens, que antes não queriam retornar a escola, mas já querem ser Engenheiros Agrônomos, já querem ser Veterinários. A alternância, na verdade, tem dois momentos: um 241 Alternância B momento na propriedade com um monitor acompanhando e aqui o momento de formação na Casa Família Rural. Mas eu considero o momento mais importante é quando o monitor está na comunidade família, porque é nesse momento que há a maior interação entre a escola e a comunidade e é o momento em que o jovem está ali praticando e que o monitor está ali acompanhando, ajudando o jovem. E aí se começa a pensar nos projetos produtivos. É o momento em que o monitor pode dar um acompanhamento mais individualizado. Às vezes, o jovem está com algum problema de insegurança que a gente não consegue identificar, mas quando a Alternância gente vai à comunidade, quando a gente vai à casa dele, a gente B começa a perceber o que é que o jovem está passando... Às vezes é algum problema familiar que está passando e está refletindo negativamente no período que ele está aqui na alternância. Então quando a gente vai lá na comunidade, no seio familiar, a gente identifica, então fica mais fácil de trabalhar. Às vezes a gente se pergunta até que ponto nós podemos entrar no problema da família? Então é uma grande pergunta nossa. Por que às vezes a gente acaba se envolvendo tanto que é como se nós fossemos parte da família e a gente também tem que criar um limite. Porque a gente também tem a nossa função de consultor, e o consultor tem também que ter aquele olhar externo... E tem momentos que a gente tem que ser um pouco pai desses jovens. Percebe-se inicialmente nas falas acima, a importância da educação em alternância. Para a diretora da escola “A” é possível destacar principalmente a relação entre o tempo gasto no trajeto entre escola urbana e mundo rural: o tempo de trajeto para grande parte do alunado rural é maior do que o tempo de estudo. Consequentemente, esse é também um dos grandes problemas verificados em escolas do meio rural de toda América Latina, Ásia e África, além de que a escola urbana não é adaptada e nem formadora das compreensões necessárias ao campo, como fica bastante evidente nas falas dos professores da escola “C”. Nesse contexto, a educação em alternância se constitui também numa alternativa fundamental, no momento em que ela resolve a problemática: distância – tempo de trajeto – tempo de escola. Quando a diretora fala sobre o custo do transporte, ela afirma que a escola em alternância é mais econômica do que a escola tradicional urbana, no que concerne ao deslocamento entre campo e cidade, isso porque o custo do transporte supera em muito os valores gastos com alunos do campo, estudando em escolas com regime de alternância, além dos custos adicionais da própria escola tradicional, vejamos uma 242 conta rápida que a diretora desta escola faz: “Sai 10 horas da noite da escola e chega uma da manhã em casa. Tem um grupo de alunos de Buerarema que pega três transportes, caminha um trecho, aí pega, me parece, um jerico com uma carroça, aí leva até a estrada central e dali o carro pega e leva pra Buerarema. E ele tem que fazer esse trajeto de novo. Então ele sai 04h00min da tarde de casa pra começar a estudar 07h30min da noite, ou seja, ele passa 03h30min pra vir, 03h3min pra voltar, ele passa 7:00h no transporte pra estudar 4:00h por dia ou pra ficar na sala 4:00h... Fomos pra ponta do lápis com a Secretária de Educação e ela disse, mas aí fica caro... como fica caro? “Quanto é que vocês pagam de locação de transporte pra esses meninos? vocês mandarem buscar e levar todos os dias? Quanto vocês pagariam pelo transporte desses meninos a cada 15 dias”. Essa conta de horas que a diretora faz, é importante e demonstra uma certa obviedade das constatações feitas por diversos setores da educação tanto formal, quanto ligada a movimentos sociais e demonstra que a relação escolas rurais-tempo de transporte e tempo de aprendizagem é uma falácia, já que a maior parte deste tempo é gasto no trajeto e não na aprendizagem como deveria ser, e isso, sem levar-se em consideração o preço da condução. Outro dado interessante sobre o papel das escolas em regime de alternância no Brasil é com relação à resolução aprovada a DOBEC 08 que dispõe sobre a utilização do transporte escolar preferencialmente intracampo, ou seja, quando muito o transporte deveria ser feito entre as comunidades rurais e não seguindo o modelo tradicional de levar sempre os alunos para cidade como ocorre. Além dos custos dos transportes já observados acima, entra aqui também a má qualidade dos transportes e o clientelismo político, já destacado na nossa problemática, o ônibus que levará os estudantes será o mesmo utilizado nas campanhas eleitorais dos candidatos aliados a quem está no poder. Para os setores ligados a essa perspectiva do transporte escolar intracampo se encontra também o papel da identidade da criança rural, numa visão onde o fato de levar as crianças, jovens e adolescentes para as escolas da cidade incorreria naturalmente num processo de denegação da cultura e identidades locais, ocorrendo uma troca pelas escolas e pela cultura urbana. Numa outra ponta da fala da diretora, encontra-se a problemática família e escola, cabendo aqui perguntar, por exemplo: qual a relação que as famílias dos 243 alternantes devem estabelecer com as escolas que estudam seus filhos? Um dado inicial para explicar essa problemática estaria na origem dos alunos, bem distanciada da escola onde estudam, em torno de 100 km aproximadamente. Isso revela o fato de que algumas famílias lidam com o distanciamento e a pouca participação no desenvolvimento do processo educacional da escola e, consequentemente, dos filhos, o que já é visto de maneira comum nas escolas públicas brasileiras de uma maneira geral e que em certo momento se revela também nesta escola em alternância: “Temos casos em que os alunos foram pra escola estudaram durante 4 anos, viveram mais 3 anos fazendo ensino médio e a mãe e o pai nunca visitaram a escola. Isso pra mim é a ausência da família enquanto instituição educadora. Eu preciso saber em que espaço meu filho está morando, minha filha está morando. Que é que minha filha está estudando? Onde é que minha filha está dormindo? Agora nós sabemos que tudo isso é resultado da família abrir mão das suas funções. A família abriu mão de todas as suas funções”. O depoimento do diretor da escola “B” apresenta situações bastante diferenciadas de desafios apresentados pela diretora da escola “A”, o que se explica, em parte, pela estrutura que a escola possui. Deve-se considerar, também, o fato de que a maioria dos alunos e comunidades envolvidas são filhos de pequenos proprietários rurais, com um modo de vida e uma estrutura muito mais sedimentada do que a maioria das famílias de alunos da escola “A”, geralmente de novos “assentados” rurais. É preciso assinalar que a distância entre essa escola e as comunidades de origem dos alunos são de aproximadamente 30 km. Talvez esse fato ajude a escola num acompanhamento mais sistemático dos trabalhos comunitários e diferentemente do que ocorre na escola “A” como, por exemplo, que enfrenta as dificuldades dos monitores no acompanhamento das práticas comunitárias locais por conta da distancia e da falta de recurso. No caso da escola “B” o diretor chama a atenção para o acolhimento da família e da comunidade durante as visitas dos monitores da escola: “Não existe reação negativa por parte das famílias”. Vários elementos podem ser elencados e entendidos a partir da importância da pedagogia da alternância na formação dos jovens do campo: um primeiro, esse que reforça os laços entre a escola, a família e a comunidade; segundo, esse que participa do desenvolvimento técnico e científico; terceiro esse em que a família e a escola discutem de maneira sistemática a formação e o amadurecimento dos jovens alternantes: “Eu considero que o momento mais importante é quando o monitor 244 está na comunidade familiar, porque é nesse momento que há a maior interação entre a escola e a comunidade e é o momento em que o jovem está ali praticando e que o monitor está ali acompanhando, ajudando o jovem. E aí se começa a pensar nos projetos produtivos. É o momento em que o monitor pode dar um acompanhamento mais individualizado”. A pedagogia da alternância requer este alto nível de relacionamentos por parte da escola, monitores, diretores e a família que segundo essa perspectiva pedagógica seria a principal interessada no seu êxito educacional. Neste caso é possível afirmar que a eficiência da alternância reside na qualidade dos relacionamentos existentes entre os diversos atores na implementação das atividades e dos instrumentos próprios e apropriados ao método, se tornando efetivamente uma pedagogia de relações entre escola, comunidades, associações e as famílias dos adolescentes. Neste contexto, os relacionamentos estabelecidos entre monitores, adolescentes e familiares, devem ser considerado como fundamental construindo em sua práxis educativa na construção do processo de equilíbrio e de direcionamentos para o futuro dos jovens que deveriam se dar, é possível afirmar, a partir da metodologia própria da alternância para o campo. Nesse quesito, o diálogo entre a escola e as comunidades do seu entorno, fortifica o “alto nível de motivação que se observa nos jovens estudantes”. Essas motivações advêm do fato de que os jovens são confrontados, pela primeira vez em suas vidas, com conteúdos (currículo) e inovações específicas para o lugar onde vivem. Isso nos leva a perceber outra questão: a evasão escolar endêmica nas escolas públicas tradicionais rurais do país estaria ligada, sem dúvida, à desconexão dos processos de ensino/aprendizagem com a realidade dos alunos, o que não acontece na escola em regime de alternância pesquisada. 8.3 – O financiamento e autonomia das CEFFAs: Categoria Escolas Diretores Existe um projeto de lei tentando que procura regulamentar esta situação: primeiro não é uma coisa muito explicita, por que a lei o que é que diz? Um dos artigos é: “compete ao Estado estabelecer critérios com a ECOFABA e REFAISA para repasse de recursos para a Financiamento, e manutenção das EFAs.” O Quê que agente esta entendendo? Que 245 autonomia das CEFFAs A aprovado esse projeto então as duas redes deverão apresentar qual é a sua demanda de recurso e imagino eu que em cima dessa demanda o Estado vai estabelecer critérios com as duas redes do repasse de recurso e da prestação de contas desses recursos e quem vai gerenciar são as duas redes” O PST para mim é o contrato mais humilhante que alguém pode estabelecer com outro. Porque o PST foi criado? eu tenho Financiamento, e autonomia das CEFFAs impressão que é pra casos extremos e agora se tornou uma prática mesmo. Quer dizer um governo que pode tá abrindo concurso, mas uma forma inclusive de não se comprometer e de não assumir com as obrigações legais, as obrigações sociais. Estabelece um contrato de A prestação de serviço temporário, muito pior do que o REDA, porque o REDA você sabe que você tem dois anos de contrato e você pode fazer mais dois anos, você tem acesso aos benefícios do Estado, no caso da professora você tem direito aos bônus: pó de giz, incentivo de sala de aula, essas coisas, mas o PST você não tem nada disso, além do quê PST Financiamento, e autonomia das CEFFAs não existe férias e não existe 13° salário. Por exemplo, nas EFAs, ninguém trabalha 20 horas nas EFAs, mas são 678,00 reais43 que você recebe a cada três meses. Aí passa três meses e vai receber mais outro bloco de três meses, trabalha pra depois comer. É um contrato humilhante. Tomara que no próximo ano seja aprovado esse projeto de lei que estabelece que o Estado, junto com as centrais, deva estabelecer critérios de repasse de recursos. Se os recursos passam pela AECOFABA, há uma autonomia maior, embora eu ache que a relação da escola com a DIREC pode ser mantida, porque, de qualquer forma, a DIREC não é a responsável de repasse de recurso. As DIRECs são as responsáveis pela orientação (se a gente pode chamar), burocracia e educação. Vamos continuar tendo que prestar contas às DIRECs, no senso escolar, pra formação, por que essas coisas não podem ser desassociadas, “nós não somos um gueto”. A Se a gente pensar nas três centrais, então seriam as três centrais (AECOFABA, REFAISA, ARCAFAR) talvez não as três, mas uma central das três que iria gerenciar os recursos pra todo mundo. ____________________________________________________________ Infelizmente a Casa Família Rural, por ela não ter essa Financiamento, e autonomia das CEFFAs autorização pra certificar... então quando o jovem passa três anos aqui e se ele resolver continuar estudando, então ele vai ter que retornar para a escola formal e começar novamente naquela série que ele parou. Então isso de qualquer forma acaba atrasando um pouco a vida desses jovens. Até como uma questão da própria sobrevivência da escola é interessante que tenha a certificação, uma vez que é uma demanda dos jovens – eles querem aprender, querem ter conhecimento, mas querem 43 Atualmente o salário mínimo corresponde a R$ 622,00 aproximadamente F$ 320,00 246 B ter certificado que habilitem para poder prestar um concurso, ter que prestar um vestibular; então é uma questão de sobrevivência até da própria escola, mas o certificado profissional nós temos. Inclusive nós temos instituições parceiras, como a MICHELIN a MARES/cacau, a própria EMBRAPA, SENAR/SEBRAE, que promovem cursos que têm os certificados e esses certificados, assim, pra aqueles jovens que estão entrando no mercado de trabalho, é um certificado que, tendo essas instituições como parceiras, então isso já conta bastante. A própria escola tem certificado profissional, mas não habilita o jovem para passar no vestibular; então, esse é o grande problema. Eu tenho medo de isso acontecer, mas se não permitirmos Financiamento, e autonomia das CEFFAs, que a certificação se sobreponha à profissionalização dos jovens, acho B que não vamos deixar isso acontecer e a metodologia da nossa proposta vai ser a mesma: educação construtivista; os pais dos jovens participam da formação desses jovens, até da própria gestão da Escola. Assim, o que diferencia uma Casa Família Rural de outros centros de formação por alternância é essa interação entre a Casa e a família, a Casa e a comunidade... e essa essência a gente não quer perder. E tem todos aqueles instrumentos utilizados na Pedagogia da Alternância que vão passar por alguns ajustes para atender às exigências oficiais. Entre as questões fundamentais a serem resolvidas pelas EFA’s, no seu caminhar futuro, está o problema do seu financiamento, do seu funcionamento e da sua autonomia. A escola tenta resolver essa questão de muitas maneiras: aceitando contribuições financeiras de entidades nacionais e estrangeiras, geralmente ONG’s. No caso da escola “A”, a participação do Estado na garantia do pagamento dos salários dos professores é fundamental, apesar de inseguro. Normalmente tudo é feito através de contratos temporários, tais como o REDA e o PST 44. O REDA pode se estender normalmente por dois anos, e o atual PST tem duração de apenas três meses, sendo que, ao final dos três meses, a escola precisa retornar à DIREC para renovação do contrato ou então recontratar outro professor. Outro aspecto fundamental a ser tratado é que na sub-relação com a DIREC, a escola fica numa situação de fragilidade muito grande: o professor/monitor que é 44 REDA - Regime de Direito Administrativo: criado pelo Estado para suprir temporariamente a carência de professores. PST: Prestação de Serviço Temporário. Normalmente com duração de três meses, o que causa muita revolta e indignação na Diretora, pois precisa a cada final de contrato voltar a DIREC para renoválo ou tentar renová-lo por mais vezes. 247 enviado para a escola do campo vem normalmente sem nenhum perfil de educador do campo (problema pedagógico), ou seja, completamente alheio às demandas relacionadas com o perfil da escola. Por vezes, esses professores entram em conflito, como foi observado e, depois de certo tempo, abandonam a escola que, mais uma vez, deve procurar a imediata substituição. Então, convivendo com dilemas desse nível, como pode a escola solucionar as questões mais fundamentais ligadas ao desenvolvimento do seu eixo pedagógico? Esse aspecto revela também uma das fragilidades das EFAs, no que concerne a sua sobrevivência e manutenção. As indefinições por parte das políticas públicas para assegurar os processos de continuidade dessas instituições tem sido, ao longo do tempo, um dos elementos fundamentais no processo do seu desenvolvimento e da sua estabilidade. A resolução CNE/CEB 1, de 3 de abril de 2002 do Conselho Nacional de Educação, no seu Art. 3°, já entende que: O poder público, considerando a magnitude da educação escolar para o exercício da cidadania plena e para o desenvolvimento de um país cujo paradigma tenha como referências a justiça social, a solidariedade e o diálogo entre todos, independente de sua inserção em áreas urbanas ou rurais, deverá garantir a universalização do acesso da população do campo à Educação Básica e à Educação Profissional de Nível Técnico. Nesse caso, mesmo já tendo um conjunto de proposições na direção das escolas do campo regulamentadas pelo Estado, a formulação de uma proposta clara que garanta o funcionamento definitivo das escolas engajadas em “alternância” ainda se constitui no maior dilema a ser resolvido pela maioria dessas escolas. Na época da entrevista, a escola “B” ainda não possuía a sua certificação, o que veio acontecer um ano depois da nossa pesquisa. A certificação colocada pelo diretor da escola “B” trata do reconhecimento do Estado de que essa instituição ou essas instituições de ensino em alternância tem a capacidade de garantir uma formação adequada aos jovens e por isso tem o direito pleno ao seu reconhecimento. Sendo assim, ao final do término do período escolar os jovens egressos ao receberem o certificado estariam qualificados para ingressar no mercado de trabalho, garantindo também a continuidade dos seus estudos, o que não vinha acontecendo até então. 248 No momento atual, essa escola recebeu o direito a certificação com o ensino médio, ou seja o reconhecimento por parte do Estado. Esse elemento também é importante, já que uma parte importante de recursos que serão disponibilizados para pagamentos de monitores e outras despesas correntes, virá de agora em diante dos cofres do Estado. Mantêm neste caso as contribuições dos diversos parceiros técnicos já citados acima e da sua principal parceira e financiadora a “Fundação Odebrecht”, de onde provinha a maioria dos recursos para o seu funcionamento antes da certificação. Esse fato provoca, em verdade, um grande debate para alguns autores e militantes sociais ligados ao movimento das Escolas Famílias Agrícolas (EFAs e CFRs): a certificação ou o reconhecimento por parte do Estado levaria as escolas à perda da originalidade da sua proposta para uns e à ingerência por parte do Estado na gestão e metodologias da das EFAs e CFRs, para outros e, no caso da nossa tese, defendemos que o Estado deve sim assumir de forma concreta os seus deveres para com a universalização da educação e a garantia plena e adequada da formação dos jovens em alternância no meio rural. “Se não permitirmos que a certificação se sobreponha à profissionalização dos jovens, acho que não vamos deixar isso acontecer e a metodologia da nossa proposta vai ser a mesma: educação construtivista; os pais dos jovens participam da formação desses jovens, até da própria gestão da escola”. A inquietação do diretor aparece com a entrada das secretárias oficiais de educação, que passam exigir adaptações curriculares e metodológicas, que podem comprometer o modelo educacional em vigência nas escolas em alternância. Mas, para a diretora da escola “A” esse problema deve também ser superado: “As DIRECs são as responsáveis pela orientação (se a gente pode chamar), burocracia e educação”. Mas que não é possível abrir mão dos recursos do Estado para o funcionamento das escolas e propõe que: “As três centrais (AECOFABA, REFAISA, ARCAFAR) talvez não as três, mas uma central das três que iria gerenciar os recursos pra todo mundo”. Concluindo que as escolas em alternância devem estar abertas para a participação do Estado: “Essas coisas não podem ser desassociadas, “nós não somos um gueto”. 249 8.4– Formação de professores para as escolas do campo: Categoria Escolas Diretores Por que estavam nas EFAs, não por opção, mas por falta de opção. Então, na medida em que eu estou na EFA por falta de Formação de professores A opção e eu me graduo e moro numa cidade onde ser graduada é ter status e eu vejo uma possibilidade de eu continuar com esse status, mas num outro espaço eu vou pro outro espaço, mesmo que eu não tenha o mesmo respeito neste outro espaço, mas eu agora sou graduada, então o que é que eu quero dando aula para filho de camponês? Aí vem a lógica: quem são os professores que iam pra roça até anteontem dar aula? Eram as pessoas que tinham ginásio incompleto, que não tinham graduação, que não tinham nenhum magistério. Eu acredito que o engajamento é um processo; então, por exemplo, se hoje mantivéssemos esse convênio com as universidades... mas quem precisa ser facilitado e ser admitido nesses cursos são as pessoas que já têm uma prática, que têm esse olhar pra educação do campo, que têm esse caminho, e de que por Formação de professores A pura opção e que quer se qualificar pra fazer melhor seu trabalho. Então, mas nos disseram que o bom era o industrializado e é uma desvalorização do camponês, do campo. E quando eu desvalorizo o camponês então eu desvalorizo tudo que se refere a ele... Dar beiju pro menino levar pra escola, pra ver se ele leva? “Eu, eu não vou levar isso pra escola, não”, porque o beiju está relacionado à mandioca, que está relacionado ao pequeno agricultor, que é tabaréu. Então no momento em que houver a valorização do campo, é como o Nordeste, né? Então tudo que está referido ao campo não presta. Por que eu compro chapinha pra passar no meu cabelo? Meu cabelo não presta. Não é tanto que não gosto da roça, é que ser da roça é um estigma, é uma ofensa, porque ser da roça significa ser despojado de muita coisa, mas no dia em que ser da roça for uma coisa chique, todo mundo vai querer ser da roça. É como negro: até anteontem, ser negro era ser marginal, mas na hora que é para entrar no sistema de cotas, tem muita gente se transvestindo em ser negro. _________________________________________________________ Nós temos os monitores fixos que são também professores que estão aqui todos os dias, dormem aqui, Formação de professores B compartilham alojamentos com os jovens. Tem os monitores eventuais, que são os técnicos dessas instituições com quem nós temos essas parcerias. Amanhã mesmo estamos tendo a visita do SENAR e, a partir de setembro, eles vão estar vindo em todas as 250 alternâncias. As visitas são feitas praticamente todas as semanas nas comunidades. As falas da diretora da escola “A” revela o conjunto de complexidades que cercam a formação dos professores para o campo: “Por que estavam nas EFAs, não por opção, mas por falta de opção”. Então, na medida em que eu estou na EFA por falta de opção e eu me graduo e moro numa cidade onde ser graduada é ter status e eu vejo uma possibilidade de eu continuar com esse status, mas num outro espaço eu vou pro outro espaço”. Mais à frente, a diretora fala do engajamento do professor ou do comprometimento dele: “Eu acredito que o engajamento é um processo; então, por exemplo, se hoje mantivéssemos esse convênio com as universidades... mas quem precisa ser facilitado e ser admitido nesses cursos são as pessoas que já têm uma prática, que têm esse olhar pra educação do campo, que têm esse caminho”. Esse é ainda e será por algum tempo o dilema a ser enfrentado pelas escolas do meio rural brasileiro. Aqui, é possível afirmar e corroborar com a fala da Diretora de que a maioria dos professores formados nas universidades brasileiras não querem ou não gostariam de atuar no campo. Neste caso, seria necessário entender que para se pensar numa educação de qualidade para o campo é fundamental que se parta de uma base concreta para a formação dos professores que devam atuar nas escolas do campo. Outro aspecto que é preciso salientar: trata-se da questão salarial. Não é possível entender o trabalho de educadores e educadoras do campo apenas como um “sacerdócio”, mas enquanto compromisso e engajamento que merecem por sua vez, o reconhecimento, o respeito e a remuneração adequada, pois de outra maneira , manterse-á a mesma problemática, essa de que os professores que atuam nas escolas do campo são professores mal preparados e mal pagos o que seguramente inviabiliza uma educação de qualidade para as pessoas do meio rural. Outro elemento a se notar e que sustenta essa problemática está na denegação da cultura camponesa, e isso se verifica não apenas na troca dos “alimentos agrícolas” pelos alimentos “industrializados”, mas também na relação com a cultura camponesa e na denegação do camponês enquanto ser. “E quando eu desvalorizo o camponês então eu desvalorizo tudo que se refere a ele... Dar beiju pro menino levar pra escola, pra ver se ele leva? “Eu, eu não vou levar isso pra escola, não”, porque o beiju está relacionado à mandioca, que está relacionado ao pequeno agricultor, que é tabaréu. Então no momento em que houver a valorização do campo, é como o Nordeste, né? Então tudo 251 que está referido ao campo não presta. Por que eu compro chapinha pra passar no meu cabelo? Meu cabelo não presta. Não é tanto que não gosto da roça, é que ser da roça é um estigma, é uma ofensa, porque ser da roça significa ser despojado de muita coisa, mas no dia em que ser da roça for uma coisa chique, todo mundo vai querer ser da roça. É como negro: até anteontem, ser negro era ser marginal, mas na hora que é para entrar no sistema de cotas, tem muita gente se transvestindo em ser negro”. Há uma discussão importante nessas falas, que permite refletir sobre o conjunto de complexidades que cercam o trabalho educativo para o campo e nos faz retornar e refletir sobre nossa questão de pesquisa, quando questionamos sobre qual o papel que as escolas do campo pode desempenhar no reforço e no redesenhamento da cultura local? Nesse caso, e mesmo com todo o esforço, a diretora entende que as mudanças que deveriam ocorrer na vida das escolas do campo e no mundo das comunidades envolvidas não estão ocorrendo de forma efetiva. Isso deve-se, essencialmente, ao tipo de escola (currículos e metodologias) que temos, com um funcionamento distanciado do contexto. Na escola “B” as condições de trabalho e o nível salarial revela a diferença na forma como os docentes poderiam encarar a zona rural. Aqui, pelo alto nível salarial e pelas condições de trabalho, não existe descontentamento e os professores e monitores são motivados, não havendo pelo que se constata na escola “A” o dilema enfrentado pelos professores dos estabelecimentos do campo. 8.5– O acesso a terra: Categoria Escola Diretores Existe muita terra no Brasil, então deve-se ocupar a terra, nossos alunos não tem dinheiro para comprar a terra e esse é um O acesso a terra A patrimônio que precisa ser socializado. A maioria do nosso alunado vem de assentamentos. ___________________________________________________________ A questão fundiária é uma questão muito complexa, por que assim... a preocupação da escola é com a educação, é formar os jovens, mas a gente acaba encarando essa problemática dos jovens que não têm propriedade, que não têm a terra. Então, às vezes, quando a gente forma um jovem que não tem terra, aí esse jovem fica meio frustrado, porque ele tem o conhecimento, mas não tem a terra. Ele quer ser 252 empresário rural, mas não tem empresa, então fica assim bem complicado; tanto é que para podermos alcançar os nossos objetivos, entramos agora com um critério de seleção, que não é uma coisa que existe no papel, mas que é uma coisa que, durante a seleção, temos que observar essa questão da terra. E como a nossa metodologia é aprender fazendo a teoria a serviço da prática, então temos que pegar jovens que tenham propriedade pra poder praticar, porque só assim vamos estar O acesso a terra B formando pessoas que vão estar contribuindo com a sua comunidade. Porque tudo aqui é na base do exemplo: se o jovem aprende uma coisa aqui, ele chega na propriedade, aplica e dá certo, aí acaba influenciando os vizinhos. Mas quando o jovem aprende aqui e não tem onde aplicar aquele conhecimento, acaba morrendo ali, não tem o efeito multiplicador de um jovem que tem onde estar aplicando seus conhecimentos. Existe no Brasil um programa Nacional de Crédito Fundiário. É o recurso para aquisição de terra também e nós os monitores tomamos a capacitação com o MDA e foi formalizado com algumas associações, mas infelizmente o sonho da terra não foi concretizado por conta de algumas questões burocráticas do nosso programa. Parece que esse programa foi criado para não dar certo. Então aqui no Baixo Sul tem um grande problema de demarcação fundiária; então a maioria das propriedades não tem a documentação. Aqui é uma região que se formou com muitas propriedades a partir de terras devolutas. Então para você pleitear alguma propriedade dessas, ela tem que estar “toda em dia”, e aqui é a maior ocorrência de propriedades sem O acesso a terra B documentação. Aí as pessoas – “posseiros” – que dizem tomar conta dessas áreas, e disso foi passando de pai pra filho, e hoje o que nós encontramos é um monte de propriedades rurais sem nenhuma documentação. Então, no caso do Baixo Sul da Bahia, isso dificulta bastante, porque são muitos documentos, são documentos da terra, documentos do proprietário e até o proprietário tem pendência, ou a propriedade tem uma dívida no banco que não foi paga; então isso tudo acaba se tornando entrave. Como aqui tem um trabalho, que de qualquer forma é de inclusão social, então em nenhum momento quisemos excluir um jovem porque ele não tinha terra. A gente começou a perceber que esses jovens que apenas O acesso a terra B residiam na zona rural, mas não tinham terra, então às vezes, a gente estava até prejudicando esses jovens, porque eles passavam três anos aqui na Casa e depois que se formava, e aí? De que valeu esses três anos aqui? Então, penso que esses jovens poderiam estar fazendo outra coisa, poderia estar sendo descoberto por outra instituição, poderia estar fazendo outra coisa que fosse melhor pra sua vida. Então esse jovem que não tem propriedade e vem passar três anos aqui na casa [...]. 253 Essa categoria emerge da necessidade de entender que a fixação do jovem do campo ao campo requer também a disponibilidade de áreas cultiváveis para que ele possa permanecer no campo. Durante o processo de pesquisa, essa questão foi se revelando e tomando a sua importância no corpus da tese. Um dos primeiros elementos notados seria o de que nem todos os jovens que se dirigem às escolas em alternância possuíam uma quantidade de terra suficiente para a sua continuidade no campo. Neste caso, e esse fenômeno corresponde a grande maioria dos jovens oriundos da agricultura familiar que vivem no campo, a quantidade de terras que a maioria das famílias possui não corresponde à capacidade de empregabilidade das gerações futuras, é o que se notou. Retomando a frase da nossa problemática sobre a questão agrária: “no Brasil existe muita terra para pouca gente e muita gente sem terra”. A totalidade dos alunos das escolas pesquisadas e neste caso incluindo também a escola “C”, vive em minifúndios, onde há excesso de mão de obra e as áreas já estão completamente cultivadas. Então, como pergunta o diretor da escola “B” sobre o que fazer em caso dos jovens que procuram a escola, mas não tem terra para dar continuidade aos seus projetos e as experimentações aprendidas no interior da escola? Neste caso, as escolas em alternância e as escolas do meio rural vivem uma catarse que é ao mesmo tempo se investir da ideia de garantir uma formação adequada para que os jovens do campo permaneçam no campo, e ao mesmo tempo, compreender que a quantidade de terras disponíveis numa determinada área onde a escola tem influência é insuficiente para garantir a fixação desses jovens e evitar o êxodo rural. No caso, a diretora da escola “A” ela defende claramente a ocupação de terras como forma de resolver o problema. Um elemento a ser observado está no fato de que as antigas famílias das comunidades envolvidas já não possuíam uma quantidade suficiente de terras e que as terras disponíveis foram suficiente para a sobrevivência de sua família original, mas “os filhos crescem” e a área completamente ocupada não permite a divisão das terras com os novos descendentes que também precisam de terras para continuar suas vidas. A importância de terras disponíveis para a juventude inseridas nas escolas em alternância no meio rural não pode ser negligenciada e a emergência dessa categoria 254 revela a importância que ela tem no desenrolar dos processos de educação para o campo. No caso das famílias dos alunos da escola “B” foi possível constatar que a maioria dos alunos possui, junto com suas famílias, uma quantidade muito pequena de terra – entre 1 e 5 hectares. Esse elemento revela por sua vez um dilema frequente entre os envolvidos e aparece nas falas, tanto dos alunos quanto dos monitores como um problema a ser enfrentado por essa escola e por escolas do meio rural como um todo. Para a escola “B” o acesso à terra é tomado a partir de uma visão legal do direito privado, que envolveria as relações com os proprietários e a capacidade dos alunos em adquirir a terra, a partir da compra, mas para a nossa pesquisa isso se revelou infrutífera já que as relações de documentação para os créditos fundiários e a aquisição de terras torna essa situação praticamente impossível. Assim, como as condições de aquisição da terra não são favoráveis, por conta da burocracia dos financiamentos e de terras disponíveis, vive-se o risco de não ver realizado um conjunto de aprendizagens ligadas ao trabalho com o campo, garantidas pela escola durante o período de formação dos jovens, por conta de que uma boa parte dos alunos, ao finalizar o curso acaba ficando sem terra: “Porque tudo aqui é na base do exemplo: se o jovem aprende uma coisa aqui, ele chega na propriedade, aplica e dá certo, aí acaba influenciando os vizinhos. Mas quando o jovem aprende aqui e não tem onde aplicar aquele conhecimento, acaba morrendo ali, não tem o efeito multiplicador de um jovem que tem onde estar aplicando seus conhecimentos”. O diretor da escola “B” reclama do alto nível de burocracia que cerca a liberação de crédito: “Existe no Brasil um programa Nacional de Crédito Fundiário mas, infelizmente, o sonho da terra não foi concretizado por conta de algumas questões burocráticas do nosso programa. Aqui no Baixo Sul tem um grande problema de demarcação fundiária; então a maioria das propriedades não tem a documentação. Aqui é uma região que se formou com muitas propriedades a partir de terras devolutas...” Neste caso, dois elementos corroboram com o insucesso na aquisição de terra para os jovens alternantes: o alto nível de burocracia dos programas governamentais e a inadequação documental das propriedades que poderiam ser compradas com esse fundo. 255 8.6 – Análises das entrevistas com a Diretora da escola “C”: A entrevista foi realizada na sala da diretora e teve duração de aproximadamente 45 minutos. A diretora é originária da mesma região da Escola, um fato relevante a ser destacado, e tem formação em Pedagogia. Na perspectiva desta pesquisa, estava o fato de que essa escola pública rural, assim como uma grande parcela das escolas rurais públicas, carece de mudanças profundas em seu redirecionamento e adaptação às comunidades locais. Nesse caso, o eixo de categorias que permite demonstrar essa realidade se situa em torno das ambiguidades entre a escola urbana e rural e o calendário escolar. 8.7– A escola urbana e a escola rural de educação de base: Infelizmente é assim, a escola da zona rural é encarada como uma escola da zona urbana, e aí eu sou filha da zona rural e eu sei dos defeitos que é causado por essa escola, o constrangimento. Hoje até que os alunos têm escola na zona rural, mas na minha época tinha que me deslocar daqui pra Valença todos os dias e é assim... os currículos muito urbanos. Tudo, a estrutura da escola é urbana, então eu estou começando a gostar desse tema, (alternância). Tem uma Professora aqui que está estudando esse tema; ela trouxe a resolução e nós estávamos lendo... Interessante, eu acho que é isso que temos que se apegar agora, principalmente nós que estamos aqui na zona rural, buscar uma nova alternativa, um conceito de educação para a zona rural. Tem que se fazer alguma coisa, tem que mudar, pois já não dá mais esse currículo que a gente tem ser aplicado para ao aluno da zona rural. (Diretora,esc.C) Tem a questão do calendário escolar para atender a necessidade, né? Você vê quando chega aqui os meses de novembro e dezembro, o número de alunos diminui sensivelmente; são os alunos que evadem no final do ano, no final da unidade, por quê? Por causa da colheita do cravo; então a escola não apreende essa necessidade, e não podemos dizer ao aluno “não vá”. É impossível dizer isso; é a roça do pai dele e ele tem que ajudar a família e ele tem que estar lá; ele deixa de assistir aula pra está lá com o pai dele. E ainda tem os períodos chuvosos, que às vezes a gente não está com as salas completas. (Diretora,esc.C) Hoje mesmo não tinha tantos alunos, não por causa que choveu, mas o transporte que quebrou. Dois ônibus (é preciso refletir sobre a qualidade dos ônibus) à tarde. Tinha sala com 7 alunos, e quando chove piora. (Diretora,esc.C) A diretora lamenta o fato de a escola não ter um redirecionamento para conteúdos específicos de escolas do campo. Infelizmente esse é um problema encontrado na maioria das escolas rurais do Brasil. 256 Um dos aspectos constatados em outros estabelecimentos de ensino rural do país – é esse do calendário escolar completamente dissociado da realidade da comunidade. Isso corrobora com a elevada taxa de evasão, o que piora durante os períodos chuvosos e de colheita do “cravo”, por exemplo. 257 258 CAPÍTULO IX 259 9 – Ex-alunos e pais de alunos avaliam o desenvolvimento a sustentabilidade e a alternância A pesquisa tanto com os ex-alunos da escola “A” quanto com os ex-alunos da escola “B” obedece ao mesmo padrão de questões, a saber: o desenvolvimento da sustentabilidade comunitária e inovações; o percurso e a vivência nas escolas em alternância em estudo: a práxis (teoria-prática em alternância); a realidade profissional depois do período escolar em alternância; a relação com a comunidade de origem e com o mundo rural e quais projetos vislumbrados no futuro desses jovens egressos. Por fim e dentro da dinamicidade da nossa tese, emerge mais uma vez a categoria gênero entre os ex-alunos da escola “A”. Aqui, é possível afirmar que a compreensão deste conjunto de indagações citadas acima, nos permite analisar a dimensão do desenvolvimento do processo educacional nas duas escolas em regime alternância em estudo. Os ex-alunos foram localizados: da escola “A”: (3) no assentamento onde viviam antes do período escola; (4) agregados à escola concluindo o ensino médio; (2) no serviço de assessoria agrícola da Prefeitura do Município de Igrapiúna. Um estudante de Agronomia e visitava o assentamento durante o momento em que efetuávamos a pesquisa. Já os ex-alunos da escola “B” num total de 8 foram localizados majoritariamente na cidade de Presidente Tancredo Neves onde estão vivendo e trabalhando e um foi localizado na própria escola. Sobre os ex-alunos da escola “A” e considerando que uma parte deles residem com suas famílias nos assentamentos, conseguimos localizá-los sem problemas a partir da indicação dos responsáveis pela escola. Mas para alguns desses egressos, a falta de escolas próximas aos assentamentos cria enormes dificuldades em continuar os estudos fazendo com que ao concluírem o seu período de escolarização na EFA, permaneçam por mais algum tempo vivendo na escola. Isso se explica pela distância e pelo transporte ao retornarem a sua comunidade. Apesar de situar-se na zona rural, a sua distância é bastante pequena da cidade de Ilhéus, apenas 5 km. Então, para o caso de alguns estudantes, a direção da escola propôs para alguns ex-alunos que ali permanecessem, contribuindo com as atividades da escola. Essas atividades vão desde a manutenção e a limpeza até mesmo ao suporte e à assistência aos professores monitores em suas aulas. 260 9.1– A sustentabilidade comunitária: Categoria Escola Ex-alunos Aqui a gente aprende muita coisa, por que além das matérias que existem nas escolas estaduais, a gente tem também Sustentabilidade comunitária A outras matérias ligadas ao campo, ligadas ao meio ambiente; então aqui a gente, por exemplo, aprende que devemos utilizar na terra o adubo orgânico e não adubo químico. Mas para levar isso para nossas famílias, é um pouco difícil, porque eles já estão acostumados a usar o adubo químico e não querem trocar, porque o adubo orgânico é um processo mais lento e eles querem resultados imediatos. (ent. 2) Sustentabilidade comunitária A Aí não são muitos os que conseguiram colocar em prática os conhecimentos que aprenderam na escola, mas o que conseguiram colocar em prática de como trabalhar, não vou dizer que conseguimos modificar 100%, mas da minha turma, uns 70%, a gente já pode garantir que teve mudanças e que aprenderam as novas técnicas, ou resgataram uma forma melhor de se fazer o cultivo. (ent. 3) Aqui tudo o que a gente aprende é ligado ao campo, à preservação do meio ambiente. (ent. 5) ________________________________________________________ O conjunto de conhecimentos adquiridos aqui foi fundamental para a mudança de atitude em relação ao trabalho na B roça. (ent. 4) Ajudou muito a melhorar as técnicas de cultivo do solo, mas é complicado quando você está dependente de capitais Sustentabilidade comunitária exteriores para financiar os projetos em sua propriedade. É o caso da minha mãe, ela só consegue avançar tomando empréstimos bancários. (ent. 5) Principalmente no cacau, a partir das inovações na adubação da nossa propriedade, houve um ganho substancial no aumento da produção. (ent. 2) B Do ponto de vista da adubação, aprendi a fazer análise de solo, entender qual a quantidade para evitar perdas, aprendi a fazer hortas... teve um ganho substancial. A comunidade mudou a partir dos seminários. (ent. 4) Melhoramos os métodos de plantio, aumentando a produção agrícola e consequentemente a renda familiar. (ent. 9) Desde que comecei a participar desse projeto, tudo 261 começou a mudar... a comunicação com minha família e com minha comunidade, quando a produção teve um aumento não tão relevante, pois não quis mudar totalmente seu estilo de agricultor. (ent. 10) Uma primeira tomada de posição entre os alunos está no fato de a escola ter um currículo e uma metodologia “adaptada ao contexto” onde eles estão vivendo. Mesmo que o currículo e a metodologia ainda precisem de avanços significativos, ainda assim é o que se encontra de mais próximo da realidade do alunado. Neste ponto, os depoimentos dos ex-alunos como é possível observar-se, trata-se de uma resposta às escolas do meio rural distanciadas da realidade dos alunos como comumente vemos em todo o território brasileiro. Através de seus depoimentos, observamos que, a partir do momento em que esses jovens começaram a estudar na escola, muita coisa mudou em suas vidas. Segundo os egressos da escola “A”, e no que se pode notar nas falas acima, a escola fez com que eles olhassem o mundo de outra maneira, com engajamento e perspectivas profissionais futuras. Passaram a ter outra relação com a preservação do meio ambiente, como por exemplo, ensinando/aprendendo em suas comunidades as técnicas de adubação orgânica e a preservação da floresta. Além disso, a escola contribuiu para o crescimento deles como seres humanos e no convívio harmonioso com as outras pessoas. A sustentabilidade comunitária aparece naquilo que envolve diretamente a sustentabilidade das famílias, ou seja, a relação com técnicas de cultivo e manejo. Esses por sua vez dentro de uma perspectiva biossustentável que combina práticas agroecológicas e o desenvolvimento das diversas culturas agrícolas consideradas importantes para a sustentabilidade das famílias de agricultores de baixo poder de compra. A escola, a partir dos seus multiplicadores (alunos-monitores) intervém nos processos de cultivo levando em consideração principalmente a relação com o meio ambiente e a ecologia (agroecologia e agrosilvicultura). Os processos de cultivo e “manejo”, além de se preocuparem com o desenvolvimento e a sustentabilidade das famílias e das comunidades a longo prazo, no que foi observado, levam em consideração também a importância de uma produção de alimentos, normalmente 262 produzidos em pequenas parcelas de terra da propriedade familiar, que contribuem decisivamente com uma atitude baseada na segurança alimentar das famílias e da comunidade. É fundamental que este aspecto fosse observado e seria crucial se as práxis educacionais de escolas do meio rural também interviessem desta maneira. A pedagogia em alternância no meio rural, neste caso, assume o seu papel enquanto pedagogia da terra. Nesse sentido, observou-se que mesmo a resistência comum entre os pais é vencida paulatinamente ao longo do percurso escolar, e, assim, aquilo que se apresentava como resistência às inovações trazidas pelos alunos, passa aos poucos ser concebido como possibilidade de melhoria de ganhos na sustentabilidade dos agricultores e de suas famílias. O convencionalismo das propostas de adubação veiculadas pela escola “B” facilita a relação no processo produtivo entre as famílias ligadas a essa escola. Percebese claramente a diferença e as dificuldades iniciais na maneira como os pais dos alunos da escola “A” encaram as inovações trazidas pelos filhos: “Mas para levar isso para nossas famílias, é um pouco difícil, porque eles já estão acostumados a usar o adubo químico e não querem trocar, porque o adubo orgânico é um processo mais lento e eles querem resultados imediatos”. Já o ajuste no método de adubação químico vivido no entorno das comunidades influenciadas pelas práticas agrícolas da escola “B” representa um ganho imediato para as famílias e para as comunidades em termos de aumento de produção, assim, é possível perceber no caso de algumas famílias, que existe uma atitude positiva em relação às inovações trazidas pelos estudantes, agora ex-alunos dessa escola, como nesta afirmação: “Meus pais passaram a me perguntar sobre as técnicas, a utilizar para o plantio dessa ou daquela cultura”. As nossas observações de campo demonstraram que com o tempo, os alunos das duas escolas em regime de alternância passam a ter papel decisivo na melhoria das condições de produção das suas famílias e de suas comunidades, fazendo junto com a família uma espécie de recompreensão das técnicas de cultivo e manejo agrícola. 263 9.2– Alternância nas escolas A e B: Categoria Escola 1.1.33 - Ex-Alunos Pra mim, o meu percurso na escola foi bastante significante, porque independente de que eu fosse fazer um curso técnico ou não, eu ia tá sempre querendo morar no campo, e lá já dava um suporte no reforço da minha identidade Alternância A enquanto homem do campo. Na minha vida, mudou muita coisa, eu passei a olhar o mundo de outras formas (ent. 2). A alternância era bom porque a gente estava sempre presente na comunidade. A comunidade e, depois, mesmo estando na comunidade, eu tinha cobrança mesmo da comunidade e eu não era visto como aquele aluno da escola tradicional [...] Aluno de escola família tem outra responsabilidade, a cobrança vem [...] E aí vai ter um evento da Alternância A Igreja, tem que tá lá participando. E a comunidade pergunta: “e aí, cadê os meninos?” Mesmo que a gente não deixasse de participar, mas a gente sentia que era comentada a nossa participação porque a cobrança vinha maior pra gente. Eles esperavam da gente algo mais do que dos outros meninos. (ent. 1) Então vamos supor assim: a chance que a gente teve A de estar na escola agrícola foi a base, por exemplo, para fazer um curso técnico. E pessoas que fizeram a escola agrícola, que cursaram agropecuária e estão trabalhando em algumas entidades, por exemplo... uns já têm curso de enfermagem, outros estão fazendo agronomia, tem outros fazendo outros cursos, então facilita de alguma forma os nossos projetos de vida e continuar os estudos. (ent. 1) _____________________________________________________ O regime de alternância é muito importante; acredito até que é uma forma de melhoramento na educação para o campo, já que vivemos realidades diferentes da cidade. (ent. 5) Considero bom, mas nem todo conhecimento é possível de aplicar; temos o problema da terra mais as diferentes culturas. (ent. 1) Alternância B Na verdade, a escola teve um papel muito importante na minha vida. Parte do ser humano que eu sou hoje, eu agradeço à escola, eu não me arrependo de ter passado três anos lá, porém eu esperava um pós... mas eu não me arrependo. (ent. 9) Fundamental a possibilidade de colocar em prática imediatamente todo o aprendizado. Eu descobri que é possível 264 viver na roça, pela escola. Eu continuo aqui pelo que eu aprendi na escola, se não já teria ido embora, hoje eu tenho orgulho de dizer que vivo no campo. (ent. 4) Alternância B Achei bom. Não tínhamos quase técnica nenhuma; tudo foi aprendido na escola. Considero fundamental o meu aprendizado na escola. É o que possibilita a continuidade do meu trabalho na propriedade da minha família e, do ponto de vista do meu desenvolvimento intelectual, eu não seria a mesma se não passasse pela escola. (ent. 3) Nota-se, nas falas acima, um alto nível de motivação dos ex-alunos com relação às suas vivências em regime de alternância, e isso ocorre, como demonstrado nas falas acima, entre os ex-alunos das duas escolas pesquisadas. Algumas variáveis permeiam essa motivação dos ex-alunos: Uma primeira variável estaria no melhoramento das técnicas de cultivo e manejo evidenciado de maneira repetitiva pelos jovens, levando-os a uma compreensão mais sistemática dos processos de produção e manejo agrícola: “Não tínhamos quase técnica nenhuma; tudo foi aprendido na escola. Considero fundamental o meu aprendizado na escola. É o que possibilita a continuidade do meu trabalho na propriedade da minha família e, do ponto de vista do meu desenvolvimento intelectual, eu não seria a mesma se não passasse pela escola”. (ex-alu.esc.B). Mais a frente, porque permite, para alguns, que já desejavam a sua fixação no meio rural a efetivação deste projeto: agora, se tornava cada vez mais possível graças às técnicas modernas e experimentadas de manejo agrícola apreendidos na escola. Esses elementos nos permitem também avaliar que a relação entre ir e ficar na terra depende em muito das condições que são oferecidas aos que desejam lá permanecerem. A alternância, aqui, se torna uma pedagogia da terra, ainda que com contornos fundamentais para a formação da pessoa humana, como evidenciado em algumas falas... A relação com o saber próprio e apropriado para o campo, enquanto pedagogia indígena se torna o fator mais relevante nos ensinamentos da vivência na escola. Essa questão responde às nossas inquietações sobre a educação mais adequada para o 265 meio rural, ao reafirmar, como é possível ver acima, que a vivência dos jovens em escolas em alternância engajadas para a melhoria do meio rural é mais consequente que a vivência dos alunos de escolas tradicionais nas zonas rurais. Uma segunda variável: percebe-se também a pedagogia como pertinente para a adolescência, como já afirma alguns autores. O aluno (jovem) da escola em alternância não é concebido como um aluno ordinário de escola pública da cidade ou do campo, mas como um ser em movimento que participa, que ajuda, que comunica e que assume responsabilidades importantes no seio comunitário e familiar: “Depois, mesmo estando na comunidade, eu tinha cobrança mesmo da comunidade e eu não era visto como aquele aluno da escola tradicional [...] Aluno de escola família tem outra responsabilidade, a cobrança vem [...] E aí vai ter um evento da Igreja, tem que tá lá participando. E a comunidade pergunta: “e aí, cadê os meninos?” A terceira variável e talvez a mais importante a ser destacada entre os exalunos na pedagogia da alternância no meio rural está no reforço da identidade do homem do campo: Eu ia tá sempre querendo morar no campo, e lá já dava um suporte no reforço da minha identidade enquanto homem do campo. Na minha vida, mudou muita coisa, eu passei a olhar o mundo de outras formas”. (ent.alu.esc. “A”). As escolas tanto a “A” quanto a “B” se colocam de maneira decisiva no reforço da cultura camponesa e na formação das identidades singulares dos jovens, onde a relação com as culturas dos povos do lugar são tomadas para a construção de identidades próprias e apropriadas aos jovens que lá estudam. 266 9.3– A vivência dos jovens que estudaram em regime de alternância (escola “A e B” ex-alunos): Categoria Escola Ex-alunos Depois, quando saí da escola, não tinha uma certeza pra onde ia estudar. Aí a gente enfrentou o supletivo; tivemos apoio, dinheiro da passagem, mas teve um momento em que a gente não estava tendo um bom resultado, muita coisa. Aí em Vivencia em alternância A 2000 a gente foi pra EMARC, a gente conseguiu um projeto de apoio, que foi uma bolsa do “KMB”, e a gente foi para a EMARC; ficamos três anos lá também; quando voltamos de lá, tínhamos sempre a preocupação em estar servindo a carência, a falta de assistência técnica nas comunidades e a gente não pretendia sair de lá da EMARC, mesmo que a EMARC tinha um papel de formar mão de obra, preparar mão de obra pras grandes A empresas. Mas, com toda convivência e com todo o processo de formação que passamos antes, não queríamos ir para uma grande empresa para trabalhar. (ent. 1) Eu, por exemplo, vou prestar vestibular já no ano que vem para Medicina Veterinária e pretendo continuar. (ent. 5) Eu costumo pensar assim, a gente nunca tá pronto. A gente tem que tá sempre correndo atrás de mais conhecimento, se especializando mais e mais, não importa em que curso. Porque a pessoa pode ter várias graduações, mas nunca tá completa. (ent. 6) Vivencia em alternância A Fiz recentemente o projeto pelo REDA junto a SEAGRI45 e estou com projeto de trabalhar com a agricultura familiar. (ent. 1) Eu estou também com essa possibilidade de fazer o curso de agronomia lá em Arataca pela UFBA-MST46; já fiz a primeira etapa agora, estou começando à segunda agora em setembro e também fiz esse trabalho pelo REDA na SEGRI. (ent. 2) A escola respeita sim. Eu, por exemplo, estou com o cabelo curto hoje, mas o meu cabelo era maior. Aqui a gente tem aula de capoeira... A escola não interfere na cultura de ninguém, não; do jeito que a gente entra, a gente continua. (ent. 3) Aprendemos uma quantidade de coisas ligadas à nossa cultura; a escola também trabalha o conhecimento 45 SEAGRI – Secretaria Estadual de Agricultura/Bahia. O aluno se refere ao convênio firmado entre UFBA-MST: Universidade Federal da Bahia e Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, para formação de Agrônomos em áreas de assentamentos. 46 267 espiritual, a capoeira e a dança. (ent. 4) _____________________________________________________ Houve muita resistência por parte da família, não Vivencia em alternância B dando espaços para uma nova técnica, porque tem aquela questão: “ah! meu pai fez assim e nunca deu errado; então eu vou continuar a fazer da mesma forma” e aí tem aquela resistência; então se você não conseguiu fazer uma área de experimento, aí eles não acreditam; então para mim tem essas dificuldades. Trabalhávamos a criação, agricultura, enfim; então o que fazíamos era não chegar lá e ir impondo; a gente tinha um local de experimento, pra ver a diferença também. Assim... eu achei assim... na minha família, que houve algum resultado positivo, até hoje mesmo está. (ent. 2) Eu concordo e acho que... assim... quando eu fui pra EFA, eu tinha uma dificuldade muito grande de me relacionar com meu pai. E lá, através da convivência com colegas e Vivencia em alternância B professores, eu podia estar sempre colhendo informações, eu era inseguro, e isso veio aumentar a minha autoestima e a forma de eu me ver também, melhorou bastante. E aí, pra mim, talvez se eu não tivesse ido pra EFA e ido pra outra escola ou região, eu não estaria aqui com todos esses projetos, estaria numa periferia ou talvez na roça, repetindo. Então pra mim a EFA tem uma participação muito grande no que hoje eu me vejo, como sujeito e com minha forma de pensar hoje. (ent. 2) Vivencia em alternância B Quando trazemos algum elemento novo para a comunidade, escutamos os pais e a comunidade e os pais dizerem “mas eu trabalhei assim durante anos” [...]. (ent. 3) A comunidade e meus pais tinham uma resistência enorme e insistiam na forma tradicional de aplicar os recursos. Com a escola aprendi a fazer podas, a aplicar melhor os recursos na área e isso mudou a forma deles verem. (ent. 4) Os ex-alunos das duas escolas em alternância concordam, de uma maneira geral, que o tempo de vivência na escola em regime de alternância lhes proporcionou uma formação coerente com a sua identidade de “ser do campo”, garantiu-lhes um desenvolvimento profissional e técnico, além de ter lhes dado um entendimento moral e intelectual consistente. Duas variáveis da categoria “vivência” na escola em alternância aparecem durante as falas dos ex-alunos: primeiro a relação de conflitos que se situaram no entorno da família dos alternantes por conta das inovações trazidas para a propriedade 268 familiar e para a comunidade de um modo geral; e segundo a perspectiva de continuidade dos projetos dos alternantes, principalmente ligando-os ao estudo e trabalho. Sobre a reação e o conflito com os pais na relação com as inovações: num primeiro momento, vê-se nas falas dos egressos a tentativa de passar para suas famílias e comunidades aquilo que eles aprendem na escola de uma maneira imediata. Porém, o conhecimento tradicional dos pais e dos adultos da comunidade e a troca de conhecimentos e inovações com a escola nem sempre são bem vistas, ou bem entendidas. Observamos que há, em princípio, resistências e conflitos, precisando estes serem avaliados e acompanhados de perto pela própria escola nas visitas, dirimindo as dúvidas e evitando os confrontos possíveis entre alunos, pais e comunidade. Neste contexto, é possível compreender a importância do acompanhamento dos monitores no campo. Eles são também parte do processo dialógico e comunicativo entre pais e escolas, pois pelo que se pôde observar as relações de vivência dos alunos nem sempre são bem sucedidas no ambiente comunitário/familiar nem bem digeridas no interior da escola. Mas, ao longo do tempo, o conflito é substituído pela troca entre ambas as partes. Portanto, a importância do monitor não pode nem deve se limitar ao treinamento puramente técnico dos alunos, mas daquele que por vezes tem o papel fundamental de estabelecer o diálogo entre a comunidade e a escola. O aluno em alternância é um aluno que se encontra no meio de relações, encontro e confrontações como afirmara Gimonet (2007). Nesse mundo relacional, é fundamental a atitude dialógica que a escola em regime de alternância em sua extensão deve estabelecer com os pais e a comunidade e é na aplicação desses caminhos que se estabelecem as relações de equilíbrio entre família, aluno, escola e comunidade, equilíbrio esse fundamental para o desenvolvimento do alternante. É, pois, no estabelecimento do diálogo e na intervenção dos monitores que as diferenças são aos poucos dirimidas e as relações entre famílias e alternantes equilibradas e esse elemento vale para as observações feitas nas duas escolas em alternância. Neste sentido, é também pertinente destacar a fala do ex-aluno ao elogiar o fato de que na escola as suas atitudes em relação ao uso do cabelo também foram 269 respeitadas: Aqui a gente tem aula de capoeira... A escola não interfere na cultura de ninguém, não; do jeito que a gente entra, a gente continua. (ent.aluno esc. A 3), afirmando a atitude de respeito às diferentes culturas, no caso da escola, que compõem o mosaico da identidade do povo da região, neste caso, as culturas que tem origem nos povos de origem africana, (musica, dança, capoeira, religião, corpo-cabelo) como é o caso da maioria dos jovens que estudam nessa escola. Num segundo momento sobre a vivência: os alunos discutem os seus projetos futuros e a realidade profissional hoje: vê-se, no entanto, que há uma perspectiva de continuidade, de projeção apontando para um futuro mais promissor, tanto do ponto de vista profissional, quanto dos aspectos ligados à cultura e à cidadania. A nossa pesquisa aponta que os alunos que passaram pelas escolas em alternância (as duas pesquisadas), de uma maneira geral, conseguem se inserir no mercado de trabalho nos diversos setores da economia com muito mais facilidade do que o aluno ordinário da escola pública, tanto urbana quanto rural. Eles adquirem um outro tipo de comportamento muito mais responsável tanto para si, quanto para a sua comunidade e vislumbram futuros consequentes em suas vidas. Os setores de atividade em que eles conseguem colocações variam: vão desde apoio aos órgãos ligados à agricultura nos municípios vizinhos, e na própria escola, como observado, a setores completamente alheios a sua formação agrícola. Esse é o caso de 5 ex-alunos que trabalham em fábricas da cidade, em atividades como artesanato e comércio. Um outro dado constatado durante as entrevistas é a de que as atividades exercidas em outras funções alheias à agricultura não são bem assimiladas por boa parte dos alunos, ocorrendo principalmente entre os jovens da escola “B”. A ideia de se formar empresários rurais finalmente não veio ao cabo de três anos nesta escola, isso se explica principalmente pela pequena quantidade de terras das famílias dos alunos o que acaba gerando uma enorme decepção. Esse aspecto revela ao mesmo tempo a sua angústia entre o aprendizado e a realidade atual, gostaria sim de permanecer na terra e organizar seus próprios projetos, mas finalmente isso não aconteceu. Para alguns alunos a culpa seria da escola por não ter tido uma estratégia consequente na construção de projetos que garantissem a fixação dos egressos no campo, principalmente projetos de aquisição da terra. 270 9.4– A questão de “gênero” reaparece entre os ex-alunos da escola “A”: Outra coisa assim, que eu acho que teve um bom resultado, é aquilo que hoje a gente chama gênero, que talvez numa outra época a gente não desse muita importância, com o machismo. E o meu irmão, que chama Nildo, que estudou lá na escola... a forma dele se relacionar com a esposa dele é diferente dos meus irmãos que não estudaram lá. A questão de quebrar e dividir as tarefas domésticas, isso na escola sempre foi uma coisa muito importante. Meninos que chegavam lá e diziam “eu não sei nem cozinhar um arroz”, a maior parte desse aprendizado é adquirido lá na escola. Tem equipe que só tem menino fazendo o café, tem equipe que só tem menino fazendo a janta, coisas que para alguns era trabalho de mulher e hoje eles fazem. Talvez se eu ficasse em outro espaço, mas já me ajudou a recompor também essa outra parte, a do gênero. Foi um avanço muito importante para minha vida. E quando eu fui pra lá, eu fui só pensando em estudar, e foi lá que eu descobri toda uma outra dimensão da escola. (ent.mss 3) Apesar da diferença de sexos, o trabalho aqui é igual pra todo mundo, tanto os homens varrem, cozinham, lavam banheiros, como as mulheres também vão a campo, visitam a horta. Aqui todo mundo faz tudo. (ent. 4) Essa categoria, que aparece na dinâmica das entrevistas com monitores, aparece também nas entrevistas com os ex-alunos da escola “A”, sem dúvida como reflexo dos ensinamentos dessa escola e apresenta, para a nossa tese, uma boa surpresa e uma novidade importante nesta experiência educativa. Para uma sociedade que se quer livre e democrática esse elemento é fundamental no contexto educativo. Os alunos residentes estão inseridos num conjunto de atividades sem que haja diferenças de gênero nos afazeres da escola. Ou seja, o desenvolvimento técnico agrícola e o desenvolvimento do jovem como pessoa e cidadã caminham juntos. Como se vê na citação acima, “O trabalho é igual para todos; não há diferença entre homens e mulheres”. Isso é fundamental para uma educação que se quer propositiva de novas relações e de respeito entre todos. Consideramos este elemento importante na elevação do nível de consciência dos atores participantes, trata-se de uma conduta fundamental que deveria nortear a práxis educativa de qualquer escola de educação básica, mas chamando atenção principalmente para as escolas do meio rural brasileiro, comumente machistas e face à divisão social e cultural do trabalho claramente estabelecida, a mulher é condenada aos afazeres domésticos e os homens normalmente são destinados ao trabalho de manejo nas plantações. 271 Essa escola quebra com esse paradigma instituindo uma relação de igualdade nas tarefas escolares tanto no campo quanto na cozinha, assim os alunos se formam superando a divisão dos trabalhos na escola o que consequentemente esse aprendizado vai nortear uma outra prática com suas famílias, suas colegas/mulheres e a comunidade como um todo. Aqui o ato de educar não se reduz às atividades e aos conhecimento agrícolas, mas vai além, na educação de valores e no fortalecimento de uma vida familiar entre gêneros, com um respeito e colaboração mútua, o que reforça a importância de uma formação complexa para o meio rural que quebra preconceitos, como o machismo, por exemplo. Outro dado importante são as tarefas domésticas realizadas pelos alunos. Acreditamos que esse elemento é importante para a quebra de paradigmas e que também vai na direção da segurança alimentar. O aluno homem apreende a fazer comida e isso o leva a apreender o que deve ser plantado na sua propriedade e a contribuir com a sua alimentação. A cozinha da escola e outras tarefas ditas “mais femininas” são articuladas com a participação de todos os alunos, como já vimos, sem estabelecer diferenças sexuais. Essas atitudes são fundamentais quando se pretende uma prática educadora adequada e que busca a igualdade entre todos. 9.5– Os pais avaliam o período que os seus filhos estudaram na escola “A e B”: O desenvolvimento de questões com os pais de alunos que frequentaram ou frequentam as escolas em alternância fecharia em princípio o organograma de conhecimento e ou entendimento compreensivo que se precisa ter sobre essas experiências educativas. Ou seja, essa forma de organização metodológica proposta pela tese e indicada no final do sexto capítulo, permite uma triangulação consistente entre os vários atores presentes: primeiro partimos dos alunos das várias escolas envolvidas na pesquisa, passamos por monitores e professores, em seguida entrevistamos os diretores e exalunos e por fim chegamos aos pais de alunos. 272 No caso dos pais de alunos, partimos para as comunidades de origem dos alunos com o objetivo de conhecer as suas reflexões e inquietações em relação aos modelos de escola em regime de alternância que seus filhos estudam. Parte dos pais de alunos da escola “A” vivem em assentamentos ligados principalmente ao Movimento dos Sem Terra. Nesse caso, as entrevistas (oito no total) ocorreram nos próprios assentamentos, no interior da região do cacau. Com os pais de alunos da escola “B” foram realizadas seis entrevistas nas propriedades das famílias dos alunos: duas entrevistas realizadas nas propriedades dos pais no Município de Teolândia, três no Município de Tancredo Neves, onde também se situa a escola e uma no município de Wenceslau Guimarães. A distância entre as comunidades dos pais de alunos e a escola é de aproximadamente entre 5 km e 35 km. Duas questões semiestruturadas do nosso objeto de estudo se fizeram pertinentes: uma que procura conhecer a motivação dos pais sobre a sustentabilidade comunitária e inovações, a outra questão é sobre alternância. Para a tese esses dois elementos revelariam para nós o papel e o estatuto das escolas em regime de alternância na comunidade em matéria de desenvolvimento e educação comunitária local. 9.6– Os pais de alunos avaliam a melhora na sustentabilidade comunitária de sua propriedades (escola A e B): Categoria Escolas Pais de alunos Nas primeiras semanas, nos primeiros meses que eles estudaram lá, eu por exemplo, já achei diferença. Principalmente comigo, pois quando o meus filhos chegam da escola, eu tenho um hábito comigo de ver logo o que foi que ele fez, pra que a gente possa tomar atitude, porque o aluno... os pais têm que ver se ele está aprendendo pra a gente ter o encaminhamento do Sustentabilidade comunitária A que pode fazer...a gente que é pai, a gente tem que julgar; a proposta boa a gente tem que aceitar, e a ruim tem que avaliar pra ver o que é que faz né? (ent.3) A Escola da cidade é assim, só fala às coisas que os meninos nem entende, que não sabe nem o que quer dizer o que 273 é. Até essas musicas que não tem nada a ver é que bota os meninos pra trazer pra casa, uns dever que não tem nada ver. Se agente for imaginar, as pessoas que já estudou fora, vai dizer “meu Deus o que é que meu filho está aprendendo? Não está aprendendo nada que preste, nada que tenha a ver com a vida dele e que não tem a ver com a região, só ta aprendendo coisa Sustentabilidade comunitária que nem sabe o que é. A Até mesmo pra fazer uma pesquisa tem pagar no café internet, porque tudo não tem mais paciência de estudar porque tudo ele manda logo pra internet. Por que internet na Escola lá em Igrapiúna só tem lá na sala da secretaria do Professor. Enquanto os outros aprenderam rápido porque foram estudar em Ilhéus, aprendeu que não esqueceu. E já os meninos que estudam aqui, mandem eles mexer, se eles não pagou a alguém para fazer o trabalho. É tudo bagunçado as escolas que ensinam os meninos, não explica as coisas como deve ser. O Rogério fala muito sobre a escola da cidade, quando Taiane chega em casa com o dever Rogério pergunta que Sustentabilidade comunitária professor foi esse que passou isso pra você? Isso aqui não tem A nada a ver, só porque ele estudou lá ele consegue ver a diferença entre o que o professor da cidade passa e a realidade do alunado. Ele fica implicando com o dever de Igrapiúna do que passa na 6ª. série. Um conhecimento que eu aprendo que eu não vou nunca aplicar na minha realidade, a escola não fala nada do plantio, nem como planta nem como não planta, a Escola não explica nada dessas coisas. Como é que se faz, uma horta, nada, nada, nada... e os meninos aprendeu lá (EFA). ______________________________________________________ Eu tenho coentrinho, tenho salsa e tenho repolho, pronto eu não compro nada disso. Tudo isso que você vê é a escola, porque a gente ia pra rua pra comprar chuchu; hoje em qualquer pedaço de roça aqui você encontra um pé de chuchu; você tem e tem como dar pros seus vizinhos. Então tudo isso, depois da Escola. E eles estão sempre disponíveis para ajudar [...] (ent. 4). Tínhamos uma área pequena de mandioca, a quantidade maior de raiz que agente conseguiu colher foi 2.700 kg. Tanto faz, foi na roça de mandioca, como na roça de banana com o tratamento correto, planta com adubação correta é a mesma coisa. Sustentabilidade comunitária B Quando agente chega na “casa do fazendeiro” (comércio) agente perguntava, mas ele quer vender, ele não ta nem ai que é bom pro agricultor ou não, o importante é que ele 274 venda e hoje não, agente já compra a quantidade certa, não desperdiça nada, porque agente já sabe quanto vai jogar de adubo em cada pé de planta. O desenvolvimento do meu filho é o desenvolvimento da agricultura e da comunidade e si e hoje agente já vê a qualidade dos produtos (agrícolas vendidos) em Tancredo Neves mudado é porque tem o apoio da Escola. Então eles tem um produto de qualidade, tem uma renda muito melhor porque agente tem um plantio de mandioca agora e agente arranca com Sustentabilidade comunitária um ano, um ano e dois meses, mas se eu quisesse arrancar hoje, agora, já estava boa de arrancar pois, foi toda plantada certinha, B no espaço certinho, bem adubada, todo mundo que vem aqui fica encantado e é uma área de terra somente, mas todo lugar que você olha ela está bonita, linda, linda mesmo de raiz. Graças a Deus, lhe digo de coração, não só eu como se fosse numa reunião de pais, a opinião é a mesma: tá se desenvolvendo bem, é a escola que todo mundo quer. (ent.3) É um desenvolvimento muito bom, eles desenvolvem fisicamente, pessoalmente e profissionalmente porque, para te dar um exemplo muito claro, nós tínhamos uma areazinha muito pequena, mas a minha renda dobrou depois do apoio da escola. (ent.1) No segundo ano da Luciana aqui, a gente plantou com apoio técnico, com os tratamentos, tudo certinho e essa mesma área, com o mesmo valor com o mesmo trabalho (não mudou nada, a quantidade de trabalho foi a mesma), a gente conseguiu colher 5.200 kg. Então só aí é um exemplo. (ent.2) Naquilo que foi observado, a resistência é temporal. Esta é vencida com o diálogo construído na intervenção dos monitores; vencida com a qualidade do desenvolvimento que ocorre na propriedade, a partir do conhecimento sistematizado da escola; vencida ao perceber que seu filho se torna cidadão; vencida ao perceber que o alternante vislumbra o futuro com o pé no chão, enfim, vencida porque o aluno alternante assume responsabilidade consigo, com sua família e com a comunidade. No caso dos pais de alunos que estudam na escola “A”, temos dois depoimentos que reforçam os elementos colocados acima. O primeiro de um dos pais que logo que colocou o seu filho na escola em alternância foi observar já na primeira quinzena o que o filho trazia em matéria de conteúdos para casa: “Nas primeiras semanas, nos primeiros meses que eles estudaram lá, eu por exemplo, já achei diferença. Principalmente comigo, pois quando o meus filhos chegam da escola, eu tenho um hábito comigo de ver logo o que foi que ele fez, pra que a gente possa tomar atitude, porque o aluno... os 275 pais têm que ver se ele está aprendendo pra a gente ter o encaminhamento do que pode fazer...a gente que é pai, a gente tem que julgar; a proposta boa a gente tem que aceitar, e a ruim tem que avaliar pra ver o que é que faz né?” (ent. 3) Em seguida, é possível observar que mais novos continuaram a estudar na escola, o que reafirma a confiança dos pais nos ensinamentos praticados na escola. “Eu achei a escola ótima. Foi bastante voltada para o campo, educa bastante os meninos, eu gostei, apesar de que eles estudavam lá, tinha bastante educação, a gente também visitava a escola, eu gostei, três filhos meus concluíram lá, Nildo, Domigos e Genildo também se formaram, Genildo também vai se formar agora em setembro. É uma escola ótima”. E, nesta mesma direção parece haver uma conclusão dos pais: “Enquanto os outros aprenderam rápido porque foram estudar em Ilhéus, aprendeu que não esqueceu. E já os meninos que estudam aqui, mandem eles mexer, se eles não pagou a alguém para fazer o trabalho. É tudo bagunçado as escolas que ensinam os meninos, não explica as coisas como deve ser”. E, para a tese, esse três argumentos acima são decisivos na reflexão da questão de pesquisa, pois afinal existem iniciativas educacionais próprias e apropriadas capazes de fazer uma educação de qualidade e adequada para comunidades diversas em situação de vulnerabilidade econômica e educativa. O fato então seria, porque essas iniciativas não são vistas nem divulgadas no interior das sociedades e principalmente das sociedades cuja demanda é maior, como essas do meio rural? Neste outro trecho do argumento deste pai de alunos, percebemos o distanciamento das escolas da cidade em relação ao campo e mesmo em relação aos conteúdos discutidos e elaborados pelos professores desta escola: “O Rogério fala muito sobre a escola da cidade, quando Taiane chega em casa com o dever Rogério pergunta que professor foi esse que passou isso pra você? Isso aqui não tem nada a ver, só porque ele estudou lá ele consegue ver a diferença entre o que o professor da cidade passa e a realidade do alunado. Ele fica implicando com o dever de Igrapiúna do que passa na 6ª. série”. Aqui o pai relata a critica do filho alternante em relação ao conteúdo trazido pela irmã estudante da escola da cidade. Sendo assim, numa extensão da nossa analise, a escola pública da cidade como tantas escolas publicas de cidades pequenas do interior da Bahia não reconhece se quer a sua ruralidade implícita e para piorar a qualidade da educação oferecida mesmo para os alunos da cidade é de má qualidade. 276 Outro elemento importante destacado no curso dessas entrevistas foram as mudanças de atitude em relação aos seus filhos, em relação ao manejo agrícola em suas propriedades, ocorridas, consequentemente, sob a influência dos processos de ensino/aprendizagem da escola. “Um conhecimento que eu aprendo que eu não vou nunca aplicar na minha realidade, a escola não fala nada do plantio, nem como planta nem como não planta, a Escola não explica nada dessas coisas. Como é que se faz, uma horta, nada, nada, nada... e os meninos aprendeu lá (na EFA)”.. No caso dos pais da escola “B”, a satisfação/motivação vem das mudanças ocorridas em suas propriedades e em seus seios familiares, essas mudanças ocorreram de maneira positiva no sentido de melhora da vida de quem lá vive e retira o seu sustento. Então como não se motivar com um ensino que garante as condições para que “o meu filho” contribua com mudanças importantes ocorridas “na minha família” e “na minha propriedade”? Como não ficar satisfeito se essas mudanças ajudam a melhorar o meu rendimento econômico da minha família e da minha comunidade? “Quando a gente chega na “casa do fazendeiro” (comércio) a gente perguntava, mas ele quer vender, ele não ta nem aí que é bom pro agricultor ou não, o importante é que ele venda e hoje não, a gente já compra a quantidade certa, não desperdiça nada, porque a gente já sabe quanto vai jogar de adubo em cada pé de planta...” Este relato é importante na medida em que o agricultor apreende a partir dos ensinamentos escolares a lidar com suas próprias necessidades cotidianas, quer seja a relação de fertilização na propriedade familiar quer seja no aumento dos ganhos da própria família: “Tem um produto de qualidade, tem uma renda muito melhor porque a gente tem um plantio de mandioca agora e a gente arranca com um ano, um ano e dois meses, mas se eu quisesse arrancar hoje, agora, já estava boa de arrancar pois, foi toda plantada certinha, no espaço certinho, bem adubada, todo mundo que vem aqui fica encantado e é uma área de terra somente, mas todo lugar que você olha ela está bonita, linda, linda mesmo de raiz”. São inúmeros os relatos de pais de alunos que corroboram de maneira positiva com a ideia de adequação da escola ao contexto onde vivem. Como já colocado e no que se percebe acima, ao longo do tempo, as técnicas tradicionais de manejo dos pais vão cedendo espaço para as novas técnicas adquiridas no interior da escola e vice-versa. Os alunos deixam de ser vistos como concorrentes diretos dos pais e entram efetivamente num processo onde todos são chamados a cooperar, a complementar-se mesmo nas suas diferenças: “Tem um produto de 277 qualidade, tem uma renda muito melhor porque a gente tem um plantio de mandioca agora e a gente arranca com um ano, um ano e dois meses, mas se eu quisesse arrancar hoje, agora, já estava boa de arrancar pois, foi toda plantada certinha, no espaço certinho, bem adubada, todo mundo que vem aqui fica encantado e é uma área de terra somente, mas todo lugar que você olha ela está bonita, linda, linda mesmo de raiz”. Em um dos trechos de entrevistas acima, é perceptível a maneira como um pai de aluno descreve o efeito positivo que a escola exerceu sobre sua conduta no melhoramento da produção familiar: “Eu tenho coentrinho, tenho salsa e tenho repolho, pronto eu não compro nada disso. Tudo isso que você vê é a escola, porque a gente ia pra rua pra comprar chuchu”. Neste caso, numa inversão da cultura agrícola tradicional na região, que é sempre de plantar os produtos de exportação e comprar os produtos alimentícios na cidade. Ppara essa mãe de aluno a escola fez com que ela mudasse esse hábito e hoje ela agradece os ganhos também no caso da economia na alimentação doméstica. 9.7– Os pais avaliam o “estudar em alternância”: Categoria Escola Pais de alunos Eu achei a escola ótima. Foi bastante voltada para o campo, educa bastante os meninos, eu gostei, apesar de que eles estudavam lá, tinha bastante educação, a gente também visitava a escola, eu gostei, três filhos meus concluíram lá, Nildo, Domigos e Alternância A Genildo também se formaram. Genildo também vai se formar agora em setembro. É uma escola ótima. (ent. 4) Os meninos tanto estuda quanto aprende mais coisa, 15 dias eles estudam e faz outras coisas, porque plantio, enxertia, tudo eles aprendem lá, pra fazer aqui pra gente. Eu achei ótimo o tempo que eles estudaram lá. O Gilmar passou pra Teixeira (Teixeira de Freitas, a cidade onde se localiza uma das EMARC’s), a menina está na oitava, o outro está também Alternância A estudando o primeiro ano. Para mim, eu não tenho nada o que dizer de lá. (ent. 6) O período que eles passam na Escola tradicional agente não sente diferença. Agente nem quase tem tempo pra ver os filhos da gente, porque quando dá 9:00 horas já está se arrumando pra ir pra Escola, ou chega 7:00 horas. 278 Sou mãe de aluno (Roseilton e Rogério). Lá em casa mesmo eu achei que houve desenvolvimento, porque meus meninos mesmos aprenderam a fazer alguma coisa. Eles já sabiam um pouquinho, mas só quando eles foram pra lá eles aprenderam muito mais, até hoje “Graças a Deus” que eu gostei deles estudarem lá. O Rosenilto não esqueceu do que ele aprendeu lá e está querendo ir Alternância A mais pra frente um pouquinho. Que ele aprendeu dança, capoeira e eles já levaram uns dias trabalhando em Igrapiuna e deve voltar de novo a trabalhar em Igrapiúna. Vai formar um grupo pra trabalhar em Igrapiúna do que ele aprendeu em Ilhéus e “Graças a Deus” gostei e gosto. Rogério a mesma coisa, só tenho a agradecer todo esse período que ele passou na Escola, até hoje ele trabalha. Qualquer coisa que os mandar fazer eles inventam lá e faz (autonomia e criatividade). ________________________________________________________ E é assim que se aprende são 15 alternâncias por ano e eles ficam aqui três anos. Cada momento tem uma alternância, em cada alternância tem um tema diferente então eles aprendem aqui uma semana e ficam duas semanas em casa praticando o que aprendem aqui. Neste período que eles estão em casa o monitor vai lá fazer uma visita. Alternância B Agente faz assim, de manhã agente vai pra roça, a tarde eles ficam entre duas horas, duas horas e meia estudando, fazendo as atividades também da escola e a tarde também vai na roça. Temos feijão, temos batata, temos mandioca, temos um sítio de côco. São ao todo seis 8 tarefas, temos um pequeno pasto. Então é uma parte de desenvolvimento muito bom, muito bom mesmo é uma coisa assim que agente sente porque não pode ser pra todo mundo, se fosse abrir a escola pra quem queira mesmo...a quantidade de alunos aqui é pouca. Então agente tem que ter mais Alternância B apoio, pra que possa se estender pra que todos tenham acesso, porque agente não tem condição ainda de abrigar a todos. Por que o recurso aqui é pouco, o recurso que agente tem pra se sustentar é pouco é claro que se chegar mais parceiros agente vai está aumentando mais, mas por enquanto não dá. São 6 monitores né, dois por cada alternância, dois por cada turma, os monitores da turma três são dois homens e já da turma 4 é um homem e uma mulher. Temos uma pedagoga, temos uma administração, um líder de OD (organização dinâmica) então toda a equipe de campo responde ao líder de OD. É assim, uma Escola que tem disciplina cada qual toma conta de sua tarefa, o monitor toma conta dos jovens, a pedagoga com os monitores e com os jovens, o coordenador de campo responde pelo campo, pelo plantio. Os jovens e monitores ajudam, mas o responsável é o coordenador de campo se der errado a culpa é do coordenador de campo. Aqui é possível identificar a importância de uma pedagogia enraizada localmente, ou seja, um recorte educacional que compreende as demandas das famílias 279 que vivem do campo e no campo. Ao unir elementos do conhecimento científico na relação com as comunidades envolvidas; ao unir vida comunitária e familiar e vida escolar; ao colocar os jovens diante de seus próprios desafios e dificuldades, ela estimula essas mudanças de atitude que se percebem apresentadas nas falas dos pais. Neste sentido, uma educação escolar que busca a qualidade nos seus ensinamentos pode se tornar uma grande parceira na vida da família e das comunidades de maneira geral, aliando sem denegação os conhecimentos do lugar e os conhecimentos mais articulados com a ciência: “Eles já sabiam um pouquinho, mas só quando eles foram pra lá eles aprenderam muito mais, até hoje “Graças a Deus” que eu gostei deles estudarem lá. O Rosenilto não esqueceu do que ele aprendeu lá”. Essa escola não é algo alheio à vida cotidiana de quem dela deve participar, ela é presente e parceira tanto dos alunos, quanto da família e da comunidade a partir de uma parceria devidamente pensada envolvendo teoria e prática, conhecimento tradicional, conhecimento técnico e formação cidadã. É nela que os pais demonstram toda a sua motivação e confiança, pois segundo eles próprios, têm sido elas as responsáveis pela melhoria nas formas de cultivo e manejo, pela melhoria nos processos produtivos e invariavelmente respondem pelo ganho de autonomia dos envolvidos. “Os meninos tanto estuda quanto aprende mais coisa, 15 dias eles estudam e faz outras coisas, porque plantio, enxertia, tudo eles aprendem lá, pra fazer aqui pra gente”. Nesta fala um pai de aluno explica como organiza a vida cotidiana do filho no momento em que está na propriedade dividindo tarefas escolares e trabalhos no campo: “De manhã agente vai pra roça, a tarde eles ficam entre duas horas, duas horas e meia estudando, fazendo as atividades também da escola e a tarde também vai na roça”. É como se dá o processo de organização das visitas de campo pelos monitores: “São 6 monitores né, dois por cada alternância, dois por cada turma, os monitores da turma três são dois homens e já da turma 4 é um homem e uma mulher”. As escolas em alternância – EFAs e CFRs – têm essa capacidade de se tornar a verdadeira pedagogia da terra e para a terra, do campo e para o campo, da adolescência e para a adolescência, da comunidade e para a comunidade, das famílias e para as famílias. Uma pedagogia da terra capaz de intervir e construir processos produtivos fundamentais para a mudança e melhoria de vida dos envolvidos: “Desenvolvimento muito bom, muito bom mesmo é uma coisa assim que a gente sente porque não pode ser 280 pra todo mundo, se fosse abrir a escola pra quem queira mesmo...a quantidade de alunos aqui é pouca. Então a gente tem que ter mais apoio, pra que possa se estender pra que todos tenham acesso, porque a gente não tem condição ainda de abrigar a todos”. Nesta fala um pai de aluno lamenta o fato das poucas condições existentes nas escolas em alternância para o meio rural com respeito à ampliação do número de alunos nesta escola. Isso ocorre porque a sua confiança é plena na educação oferecida, a partir de currículos e conteúdos apropriados às demandas locais. 281 CAPÍTULO X 282 10 – Comparação crítico-descritiva acerca dos processos educativos no quotidiano das três escolas em estudo A ideia deste capítulo é demonstrar as diferenças em termos práticos e de manejos dos procedimentos agrícolas vividos no quotidiano das escolas em alternância em estudo. Essas comparações em termos práticos nos permitem refletir sobre as diversas formas de intervenção que as escolas do meio rural podem estabelecer com as comunidades em que elas estão presentes. As semelhanças e diferenças permitiram-nos vislumbrar conclusões sobre como uma educação de qualidade para o campo pode se tornar possível. Os enunciados que buscávamos para essas análises deveriam nos ajudar a compreender as duas principais categorias da tese “educação e desenvolvimento” para o meio rural. Nesse caso, as visitas aos campos de plantação e experimentação dos alunos, a conversa informal com os monitores e professores; os projetos políticos pedagógicos se revelaram instrumentos fundamentais para responder às nossas inquietações. As diferenças também são sentidas desde o momento em que os atores falam de sua “satisfação e/ou motivação”, como visto no capítulo anterior até as “formas” e a “maneira” como elas se inserem no desenvolvimento socioeconômico, ambiental e cultural das comunidades envolvidas, que são objeto desta análise. 10.1 – Desenvolvimento e sustentabilidade agrícola em comparação na escola “A” e “B” (alternância): Na escola “A”, observou-se que os alunos têm uma preocupação maior com manejos que consideram o trato orgânico na agricultura como fundamental. As mudanças ocorridas se situam desde a relação agroecologia, como a preocupação com a preservação das matas e do meio ambiente; a recuperação dos restos orgânicos; a reciclagem e o desenvolvimento de tratos orgânicos das culturas agrícolas locais. A partir desse entendimento, o desenvolvimento de técnicas agrícolas deve permitir à agricultura familiar economizar recursos que normalmente seriam gastos com a 283 adubação química (ureia, fosfatos etc.) e com a compra de insumos que podem normalmente ser produzidos em pequenas áreas familiares. Claro, eles também têm preocupações que são trazidas para a escola – adubo, tipo de manejo, algumas coisas que são provocadas pela escola. Não é que o pessoal não sabe fazer, mas é que o pessoal fazia sem uma preocupação mais recorrente dessas coisas: se é agroecológico ou não, se está preservando o ecossistema, se está queimando, se está preservando os rios, as matas ciliares. (ent. monitora escola “B”) Vê-se também na estrutura do diálogo uma relação de idas e voltas das preocupações de manejos nas comunidades, elementos estes fundamentais para o sucesso da pedagogia da alternância: “As preocupações são trazidas para a escola, mas ao mesmo tempo”, a monitora reconhece: “Não é que eles não saibam fazer, mas fazem sem uma preocupação maior sobre a agroecologia e os ecossistemas locais”. Assim, é possível perceber que a escola reconhece o saber que existe na comunidade e que o papel da escola é o de sistematizadora deste conhecimento, de organizadora científica para que ele se torne um elemento fundamental na sustentabilidade comunitária a longo prazo. Outro aspecto a se notar no desenvolvimento das práticas agrícolas dessa escola está na preocupação com as plantas medicinais e com as hortaliças na perspectiva da segurança fitoterápica e alimentar, mas que nem sempre é atingida pelas comunidades envolvidas... O objetivo seria, segundo a diretora, que “ao final (do tempo de estudo dos alunos), as famílias adquirissem um comportamento coerente com a proposta da escola no que se refere à segurança fitoterápica e alimentar”. Aqui, é fundamental destacar alguns aspectos de desenvolvimento e sustentabilidade, vividos pelos diferentes alunos das duas escolas em alternância. Esses aspectos contribuem para demonstrar “o como, e o que” essas escolas podem estruturar em seus currículos e metodologias educacionais em matéria de desenvolvimento de manejo agrícola nas comunidades envolvidas. Na perspectiva da intervenção técnica no seio da comunidade orientada pela escola “B”, a preocupação com a sustentabilidade da agricultura familiar se situa na relação com as técnicas de manejo agrícola, que devem ser implementadas de forma rigorosa para que se garanta os resultados produtivos pretendidos. Assim, segundo os 284 monitores, as técnicas tradicionais de produção e manejo devem ser substituídas por técnicas modernas e experimentadas pela escola, sem as quais a sustentabilidade econômica das comunidades estará comprometida. Mesmo que se perceba certa preocupação com a questão ecológica entre monitores, o desenvolvimento agrícola está baseado no aperfeiçoamento de técnicas que permitam o aumento da produção, as quais devem levar em consideração o maior nível de produtividade por área plantada. Para que isso aconteça, a escola coloca o enfoque na sustentabilidade econômica dos agricultores, a partir da utilização de técnicas de manejos rigorosamente aplicadas, sendo que todo esse processo está baseado na introdução de insumos externos: fertilizantes, pesticidas e herbicidas. Nesse contexto, a aplicação não rigorosa das técnicas aprendidas pelos alunos na escola resultaria na ineficiência da produção agrícola das comunidades envolvidas. Segundo os próprios monitores, por menor que seja a propriedade, o manejo químico correto permite a sustentabilidade das comunidades envolvidas, do contrário a sustentabilidade fica comprometida. Questionamos sobre os resultados obtidos na plantação do amendoim e a maneira como teria sido realizada. A forma de plantação obedecera às normas técnicas de cultivo, espaçamento e adubação (química) dessa planta. Sobre os resultados obtidos, do ponto de vista dos rendimentos, foi afirmado por todos os presentes que o cultivo teria dado resultados econômicos positivos (lucro). Aqui um exemplo observado na escola “B” sobre o método de fertilização química que essa escola propõe aos alunos e às suas famílias para o plantio da mandioca, tanto no interior da escola como nas comunidades envolvidas: Tabela 12: o cultivo da mandioca Espaçamento Adubação 1x1mt. 30 gramas de supersimples (na cova) Ureia e cloreto de potássio (45-60 dias) *caso está restrito ao cultivo monocultor da mandioca. Tabela 7 Método de fertilização química 285 10.2– Sobre o processo de educação e sustentabilidade: entre a agricultura orgânica e a inorgânica no mundo do cacau: Os problemas levantados por monitores, alunos, ex-alunos e também pela diretora da escola “A” estariam ligados às dificuldades em conseguir insumos orgânicos em quantidade suficiente para as áreas das famílias dos alunos. Essas dificuldades são as mesmas recorrentes para a escola “B” e estão fundamentadas nos custos de transportes e na produção desse material para agricultura familiar. A distância e o elevado valor do transporte são, no caso das duas escolas, o principal entrave na aquisição da fertilização orgânica. Consequentemente, os agricultores familiares por uma questão de praticidade não gostariam de refazer as suas formas de cultivo e continuariam utilizando os mesmos métodos tradicionais de manejos na agricultura, como as queimadas e os insumos químicos. Conversamos também com pequenos agricultores da região preocupados com o custo da obtenção da adubação química e, principalmente, com a preservação do meio ambiente. Para nos auxiliar nesse contraponto, o depoimento desse agricultor familiar foi fundamental. A partir de sua fala, pudemos compreender que o problema está no hábito inconsequente da utilização de elementos químicos na agricultura. Esse agricultor, se dizendo contente com a produção familiar de seu cacau orgânico, descreve alguns exemplos do método de manejo que ele utiliza em sua propriedade de 5 hectares, em uma parcela de “assentamento rural” na região. Para ele, o uso do adubo orgânico diminui os custos de mão de obra e os gastos com adubos químicos e herbicidas. Uma das suas primeiras convicções é a de nunca utilizar os herbicidas e pesticidas, pois segundo suas palavras: O herbicida e o pesticida prejudicam as plantas, a terra e o próprio homem, seja no processo de aplicação direta no cultivo, seja em sua extensão com a compra dos produtos agrícolas no mercado, o que envenena o próprio consumidor. (agricultor familiar/ assentado) Sobre esse processo de adubação, ele adverte para o fato de não utilizar técnicas de “capina”. Na sua avaliação, essa técnica de limpeza é muito radical para a terra: favorece o aumento das pragas, por conta da retirada brusca das plantas companheiras, a erosão e a lixiviação, além de expor a terra a um maior volume de raios solares diretos. Na junção desses elementos, estaria o consequente empobrecimento da terra e o desequilíbrio ambiental. 286 Ainda sobre a técnica da capina e da utilização do herbicida e do pesticida, ele enfatiza que as pragas presentes na agricultura se alimentam daquilo que podemos chamar de “plantas companheiras” e que, no caso da eliminação dessas plantas pelos herbicidas, pesticidas e pela capinagem, as culturas agrícolas ficam completamente vulneráveis à incidência de pragas, além, é claro, de empobrecer o solo. Ele cita que para o cacau e para a seringa seria suficiente um “roço” mínimo e, no caso da plantação da mandioca no interior dessas fazendas, o problema seria o de espaçamento, ou seja, aumentar o espaço entre plantas permitiria uma limpeza mais adequada apenas com o roço. Numa outra vertente de métodos e manejos não convencionais, o mesmo agricultor familiar entrevistado anteriormente comenta que: Todo material orgânico produzido pela natureza deve ser reutilizado nas técnicas de cultivo; as madeiras cortadas devem ser deixadas a apodrecer junto às plantas, fazendo a chamada cobertura morta. Nessa operação, nem no cacau e nem na seringa deve-se fazer capinagem, mas utilizar uma roçagem razoável, onde as culturas agrícolas fiquem um pouco acima das plantas ditas selvagens. (agricultor familiar/assentado). Uma outra perspectiva fundamental na região do cacau e em países tropicais seria a do consorciamento e a diversificação agrícola também citados pela diretora da escola “A”, que alterna plantas de ciclos curtos com plantas de ciclos longos. No caso específico da região em estudo, o exemplo mais comum é o de consorciamento entre a mandioca e as outras culturas de ciclos longos, como o cacau e a seringa. No caso do consorciamento das culturas, o agricultor entrevistado propõe que a mandioca tenha um espaçamento maior, em torno de 2x2, dentro das plantações de cacau e seringa, porque obedecendo a esse tipo de manejo, a técnica de capinagem torna-se dispensável e gera uma diminuição sensível no custo da mão de obra, já que, no espaçamento dado à mandioca, se permitiria o “roço”47 sem grandes dificuldades; além disso, apenas um homem seria capaz de cuidar de áreas razoáveis (com aproximadamente 05 hectares), o que é fundamental na agricultura familiar. Outro argumento, levantado por ele, está no fato de que tanto o cacau quanto a seringa e a mandioca são culturas de florestas, e isso justifica, sem problemas, a sua convivência com outros tipos de plantas ditas selvagens. Pela sua própria condição, elas 47 Roço, roçagem: técnica de limpeza do campo com a utilização do facão. Grifo nosso. 287 (as plantas selvagens) melhoram o rendimento da planta doméstica, diminuindo a mão de obra e o seu elevado custo, evitando os custos dos “insumos químicos externos” e, consequentemente, gerando sustentabilidade e preservando o ecossistema em sua complexidade como um todo. Procuramos saber por que a escola “B” propunha a utilização de insumos externos, e obtivemos de um dos monitores a resposta de que só seria possível “gerar sustentabilidade” e aumentar os “níveis de produção” se os agricultores familiares do entorno da escola utilizassem as novas técnicas de cultivo experimentadas pela escola na sequência de espaçamento, adubação para o plantio e adubação durante o crescimento da planta. Para esse mesmo monitor, “a forma de manejo tradicional não gera sustentabilidade econômica das famílias” e, nesse caso, o papel da escola seria a inversão desse paradigma de agricultura, a partir de uma lógica verticalizada de intervenção nas comunidades. O papel da escola, nesse sentido, seria o da “quebra de paradigmas na agricultura local”, numa menção à teoria de Thomas Khun. No segundo caso, o das visitas quotidianas às famílias e às comunidades, como já foi colocado acima, a relação de verticalização das concepções de agricultura da escola é muito clara: para um dos nossos entrevistados, existia ou existe nas comunidades “um conhecimento empírico/tradicional, mas que esse conhecimento não gera, por sua vez, sustentabilidade; portanto, não merece o devido acolhimento por parte da escola”. Assim, o papel da escola na região seria o de implementar modelos experimentados e testados entre instituições e pesquisadores da agricultura, principalmente os ligados à “revolução verde”. Procuramos saber dos monitores sobre o que os pais achavam dessa condição atribuída pela escola. Para eles, existem dois cenários: “O dos pais que acompanham de forma inquestionável as condições colocadas pela escola e dos pais que, de alguma maneira, resistem à implementação desse modelo”. (Ent. monitor, esc. B) No segundo caso, os monitores afirmam que isso se dá, por exemplo, em não se fazendo a adubação (química), como é recomendada pela escola. Desse modo, não se obtêm os ganhos de produtividade propagandeados pela mesma. 288 No caso da escola “B”, a sustentabilidade econômica dos agricultores só seria possível com a utilização de técnicas e manejos químicos rigorosos, por menor que fosse a propriedade. Sobre a possibilidade de a adubação se tornar orgânica, esses mesmos estudantes afirmam e em concordância com os monitores, que o problema do custo do transporte é o maior peso operacional desse tipo de adubação, o que a torna cara e impraticável. Os sujeitos envolvidos no entorno da escola “B” são conscienciosos de que, ao recorrer à adubação química, a agricultura familiar é empurrada para as disputas mercadológicas dos fertilizantes e fica sujeita às oscilações dos preços nem sempre razoáveis como ocorre com frequência nas casas comerciais da região. Assim, ficam latentes os conflitos de valores entre a escola, a comunidade e os pais de alunos. Ao invés de haver uma continuidade e uma colaboração entre os envolvidos nos processos de formação, estabelece-se uma queda de braço, onde os pais e comunidades resistem, e a escola, através dos monitores e de suas influências sobre os filhos, procuram impor o seu modelo. Como nos disse um dos alunos: “– Meu pai, não é assim, não!” E o pai responde “– Não, meu filho, é assim!” ou então, na conversa com o monitor “– Eu quis plantar assim e meu pai não deixou”. O mesmo cenário é verificado na escola “A”, onde, baseados em procedimentos da agricultura orgânica, os alunos tentam reverter as formas de plantação das suas famílias, mas se deparam com a resistência inicial, com as formas tradicionais de cultivo. Retornamos à questão da adubação orgânica e as respostas se seguem a partir daquilo que seria praticamente um consenso entre todos que foram entrevistados. Para os pesquisados, a adubação orgânica deveria ser feita a partir dos dois elementos principais – os “restos vegetais” e os “restos animais”, principalmente esterco de galinha e de gado no caso animal e os restos vegetais encontrados nas propriedades. Para a obtenção desses elementos, foi nos explicado que a soma dos restos produzidos na fazenda da escola, por exemplo, seria insuficiente. Este elemento também foi observado pela escola “A” o que explicaria também as dificuldades em conseguir material orgânico nas comunidades dos alunos. 289 Uma das possibilidades, então, seria o transporte de restos animais de outras localidades. Mas, como já dissemos, há o problema do custo com o transporte. O transporte, neste caso, não compensaria a relação custo-benefício “adubação-colheitavenda”. Assim, o resultado na venda dos produtos adubados, a partir desse sistema orgânico, seria inferior ao custo de produção, ou seja, não valeria a pena trazer caminhões com esterco de gado ou de galinha de uma localidade distante com um preço tão alto de transporte. Outro elemento, destacado durante a entrevista, foi da análise dos custos de introdução dos insumos externos. Para os nossos entrevistados, a eficácia da introdução dos insumos externos tem um custo embutido na relação produção-transporte que não pode ser pago pela agricultura familiar, levando-se em consideração o nível de investimento inicial para a plantação e adubação das propriedades familiares. Segundo o monitor, o agricultor familiar não tem como esperar o tempo de colheita para ver ressarcidos os custos iniciais de investimento em sua propriedade, tendo em vista o aumento dos preços dos fertilizantes químicos no mercado; além disso, deve-se levar em conta a oscilação dos preços dos produtos agrícolas na hora da venda, o que nem sempre repõe os custos de manejo nem gera benefícios. 10.3– Distinções entre o cultural e o econômico nas escolas em alternância e o desafio da sustentabilidade e da cidadania (o caso da escola “B”): A preocupação da escola “B” com as formas de vida do homem do campo se estrutura muito dentro do plano técnico agrícola. Essa é uma primeira afirmação possível. Essa escola escolhe claramente, enquanto modelo de ensino, uma perspectiva técnica como forma de resolver o problema da sustentabilidade local, reforçada pela adoção do conceito de protagonismo juvenil. Partindo dessa perspectiva, os seus ideólogos criaram o que eles mesmos chamam de “cadeia produtiva”, com formas de comercialização dos produtos agrícolas ligadas às propriedades dos alunos, onde a principal delas é a cadeia produtiva da mandioca. 290 A visão que ora se discute está vinculada à questão econômica, que se sobrepõe sobre outros aspectos igualmente importantes da vida dos alunos e das comunidades envolvidas, particularmente no acento à ecologia e à diversidade cultural. Neste caso, o aspecto econômico seria mais importante do que os elementos ligados à ecologia, à cultura e à identidade local. Gimonet (2007), explica que “cada meio de vida representa um suporte de atividades e de experiências de várias naturezas, uma reserva de saberes diversos e múltiplos. Cada meio de vida destes é portador de uma cultura local que se faz presente nos fatos e nos gestos, na linguagem e no comportamento,” dos que estariam envolvidos no processo educativo. Neste sentido, é preciso esclarecer aos sujeitos quanto aos desafios econômicos que se apresentam, mas que não se pode relegar a importância de outros elementos igualmente importantes como cultura, ecologia e identidade presentes nas comunidades envolvidas pela escola. Por outro lado, não acreditamos que exista, por parte dessa escola, uma ingenuidade particular e que os elementos de ordem ecológica e cultural relegados por sua pedagogia seja obra da sua falta de atenção curricular. Não acreditamos nesta hipótese. 10.4 – Compreensões sobre a alternância entre os alunos da escola “A e B”: A relação com a alternância observada nas escolas “A” e “B” se estabelece enquanto compreensão do conhecimento “teórico” e a sua aplicação “prática” de forma “imediata” na propriedade da família e na comunidade de origem dos alunos. Essa aplicação imediata dos conhecimentos aprendidos na escola se constitui num grande avanço do ponto de vista educacional na relação com o campo. O campo brasileiro, tendo em vista a enormidade do seu tamanho, é visto pelos alunos como um local ideal para a aplicação dessa alternativa de ensino, já que se trata de um espaço extremamente amplo, composto de longas distâncias entre escola, comunidade, as propriedades rurais e os centros urbanos. Os alunos destacam duas variáveis fundamentais nesse processo: 291 O regime de alternância propriamente dito, intervindo na relação tempoestrada-escola; O redimensionamento curricular, no qual o tempo escolar é também um tempo para que se insira o contexto local. Assim, para os alunos da escola “A”, a troca exercida entre escola e a comunidade aparece como o eixo mais proveitoso dessa relação, o que é um dos objetivos primordiais da pedagogia da alternância. Isso pode ser explicado devido ao fato de serem os estudantes oriundos de assentamentos e comunidades rurais que, de uma maneira geral, estão localizados a distâncias superiores a 20 km das sedes dos seus municípios e, consequentemente, da escola mais próxima. Nesse caso, e pelo que se observou, a relação com a alternância é de uma valia profunda, já que se permite ao aluno ficar na comunidade, aplicar os conhecimentos adquiridos e evitar as grandes marchas a pé e a perda de uma quantidade enorme de tempo que se faria diariamente entre a escola e as vilas dos assentamentos, quase sempre com resultados educacionais ínfimos. Os alunos de ambas as escolas (“A” e “B”) identificam a alternância como um fator extraordinariamente positivo, já que o conhecimento não fica guardado para que algum dia possa servir aos alunos, como acontece normalmente na escola formal pública. Gimonet (2007, p.19) comenta que “o jovem (pré-adolescente, adolescente, ou jovem adulto) em formação, isto é, o alternante, não é mais um aluno da escola, mas já um ator num determinado contexto de vida e num território”, o que justifica o porquê de a alternância ser tomada como de importância fundamental pelos alunos das duas escolas. Desse modo, é possível afirmar que a motivação é a mesma para os alunos das duas escolas em regime de alternância. 10.5– Compreensão e comparação-crítica acerca do problema da reafirmação identitária: Os alunos fazem uma distinção muito clara entre as escolas engajadas em regime de alternância e as escolas tradicionais. Isso se dá, pela importância que eles atribuem ao currículo enraizado, com disciplinas enraizadas, com conteúdos agrícolas locais e a utilidade destas em suas propriedades. Esse aspecto demonstra a diferença que 292 normalmente deveria ser observada e retida pelas escolas do campo de uma maneira geral. Nesse sentido, a motivação é parte significante do processo de aprendizagem. A identidade com o campo é evidenciada e reafirmada nos discursos dos alunos das escolas em alternância de uma maneira constante. Aqui, se identifica uma satisfação positiva com o fato de se pertencer ao campo. O aluno das escolas engajadas na pedagogia da alternância absorve (pelo que podemos constatar), de maneira extremamente prazerosa, os conteúdos e os ensinamentos que são repassados pela instituição. O que se nota é que os alunos indicam um alto nível de satisfação e de motivação pela pertença camponesa em ambas as escolas em alternância. Isso se confirma ao reconhecer as mudanças de atitude da denegação ao campo para uma forma positiva na relação com o mundo rural. A escola, ao assumir uma postura positiva com o rural, passa a exercer sobre o comportamento dos alunos uma influência no mesmo sentido, o que muda suas percepções sobre o contexto onde vivem. Essa condição é também observada na diferenciação que os alunos fazem entre o que ocorre nas escolas tradicionais, como a falta de reforço identitário, e o que ocorre nas escolas rurais com perfil direcionado aos desafios do campo, como é o caso das escolas “A” e “B”. O aluno é, nesse contexto, alguém que se confronta com os conflitos advindos das inovações tecnológicas adquiridas com os conhecimentos aprendidos na instituição de ensino, também confrontados com as demandas comunitárias e familiares. São esses conhecimentos, de uma maneira geral, perfeitamente identificados com suas necessidades práticas, que determinam esse conjunto de novas atitudes, o que Gimonet (2007, p. 38) chama de pedagogia do encontro e das confrontações. Encontros e confrontações de situações, de pessoas, de gerações, de ideias e de projetos [...] de tudo isso vai depender a construção da identidade, bem como o processo de orientação desses jovens. As motivações, dentro do que é possível afirmar, estão principalmente relacionadas à clivagem educacional na reafirmação da identidade do sujeito enquanto “ser do campo”. A reafirmação identitária torna-se fundamental na inversão dos processos de denegação, geralmente vividos pelos povos do meio rural brasileiro. 293 A partir dessa perspectiva, vai se construindo a não necessidade de migração ou êxodo para a cidade, a qual deixa de ser tomada como a única porta para mudanças fundamentais no futuro da vida desses jovens. A alegria maior dos jovens, ou seja, sua maior motivação, pelo que foi observado, advém do fato de perceber que técnicas de plantação e manejo, quando bem apreendidas, podem ser responsáveis por mudar suas vidas e das suas comunidades de maneira positiva na direção da sustentabilidade local. No caso da escola “C”, não existe alternância e o deslocamento é feito diariamente entre a escola e a residência dos alunos. Parte deles faz o percurso a pé e a grande maioria utiliza o transporte escolar oferecido pelo Município, o qual funciona de maneira bastante precária, com veículos normalmente rejeitados no transporte coletivo urbano, sem um nível maior de segurança e com frequentes problemas de manutenção. 10.6– Relevância dos aspectos curriculares (históricos, de cultura e identidade) das comunidades locais na relação com o currículo das escolas: A nossa pesquisa procurou saber como acontece o relacionamento da-escolapara-a-comunidade em seus aspectos de cultura e identidade. Tomamos como referência as preocupações teóricas do Antropólogo Cuchê (1995), que, em sua noção de cultura, procura “conceber o homem conforme a diversidade de seus modos de vida e de suas crenças” (p.6). Assim, para o nosso estudo, o relacionamento entre as partes envolvidas nesse processo de formação deveria acontecer de maneira dialógica, num continum va-et-vien: eu te percebo, te respeito e nós construiremos juntos as saídas para os nossos desafios. Também retomamos Freire (1974), para quem o diálogo é o ponto fundamental entre os educandos (oprimidos em princípio) e os centros de formação que normalmente deveriam buscar a emancipação desses sujeitos. São três os elementos que consideramos relevantes no aprofundamento desse aspecto: A relação da identidade local com o ensino; A relação propriamente dita do ensino com respeito à cultura local e; A identidade das famílias e das comunidades nas atividades cotidianas no contexto do aprendizado local. 294 Neste caso, o ideal seria que a grade curricular articulasse os aspectos históricos e culturais das comunidades, ou seja, o desejo mais amplo tomaria como base uma transversalidade interdisciplinar. Os aspectos de cultura e identidade atravessariam o conteúdo das disciplinas ministradas por cada escola e, no segundo aspecto, o ensino desenvolvido pela escola seria o responsável pela reafirmação da cultura local. Na escola “A”, são diversas as oficinas que envolvem trabalhos artísticos, como música, dança, capoeira, e de histórias ligadas ao resgate cultural do povo da região, os quais acontecem no decorrer do ano letivo. Essa questão traz uma diferença significativa no comportamento e no engajamento curricular dessa escola, tanto em relação ao comportamento das escolas rurais de uma maneira geral, quanto ao comportamento e ao engajamento da escola em alternância pesquisada mais especificamente. Esses elementos são bastantes presentes nas falas e nos comportamentos dos alunos, como por exemplo, o de manter o orgulho pelo tipo de cabelo que se tem, (cultura afro-brasileira) ou pelas formas de vestir, ou ainda por entoar cantos ligados ao mundo e à cultura local, como foi observado. Figura 13 Instrumentos ligados às oficinas musicais na escola “A” (Instrumentos ligados às oficinas musicais na escola “A”) Diferente da escola “A”, onde é possível afirmar que os aspectos históricos de cultura e de identidade estão no eixo central da grade curricular e das atividades gerais 295 dos alunos, na escola “B”, esses elementos são deixados de lado em prol de uma formação estritamente tecnológica, voltada para o aumento e melhoramento da produção agrícola. No caso da escola “B”, os conteúdos das disciplinas consideradas não ligadas especificamente à agricultura, tomando como base a história e a geografia, são ministrados, pelo que se observou como se fossem para alunos do curso médio ou básico de qualquer escola dos centros urbanos mais próximos. Isso quer dizer que não há nenhuma reflexão ou referência aos valores locais, tais como: as histórias de conflitos e lutas pela posse da terra, os processos de escravidão vividos pelos povos da região e a relação com a própria musicalidade e culturas orais desse povo, por exemplo. Mesmo que se perceba claramente uma reafirmação do “ser do homem do campo”, advinda do melhoramento das experimentações agrícolas apreendidas pelos filhos de agricultores, o que se vê, fora desse aspecto, é uma ausência de abordagens curriculares que colocam esses temas (cultura e identidade) em sua centralidade. Assim, é possível afirmar que há uma ausência de questionamentos e reflexões sobre a relação da escola com a cultura e a história das comunidades onde ela está inserida. Sob o ponto de vista da tese, o ideal de “empreendendorismo-rural” da escola “B” não concebe as práticas culturais e de leituras da história do povo da região como fundamento da reafirmação cultural e identitária local. O mais problemático nestas práticas pedagógicas estaria ligado à compreensão verticalizada na mudança de atitude dos modelos agrícolas propostos por essa instituição, sem compreender as práticas tradicionais dos agricultores familiares, como fundamentais no estabelecimento de uma relação dialógica entre a comunidade e a escola. No caso da escola “C” (pública rural), as únicas atividades existentes fazendo alusão ao modo de vida do campo são a “festa junina e a feira do agricultor”, que são realizadas uma vez por ano. O objetivo dessas duas atividades é a inserção desses temas, considerados pelos professores como transversais, nas quais os alunos expõem os produtos das propriedades agrícolas de suas famílias e, no decorrer das atividades, acontece uma reflexão sobre o tema proposto; neste ano, o tema foi “agricultura orgânica”. 296 Mesmo considerando como válida essa atividade, é necessário salientar que o tema, enquanto reforço da identidade da comunidade, é tratado uma vez por ano naquilo que se pode chamar de “atividade marginal”. Na verdade, ao invés dessas questões ligadas à produção agrícola e ao reforço cultural identitário acompanharem a escola durante todo o ano e de forma interdisciplinar, aqui é retirado um momento específico para discuti-las. A pergunta então seria: até que ponto essas “atividades marginais”, realizadas uma vez por ano, contribuem para o desenvolvimento crítico e a reafirmação identitária e cultural do alunado da escola pública rural? A escola “C”, como se sabe, é uma escola pública rural e todos os aspectos ligados à identidade, à história e à cultura do povo da comunidade a que atende, não são tratados de maneira adequada e não são percebidas no cotidiano dessa escola. A ruralidade ali existente é ignorada de maneira tácita. Portanto, é possível afirmar que se trata de mais uma escola de modelo urbano transplantada para o mundo rural. Mesmo que se observe um conjunto de elementos culturais de ruralidade involucrados em seus mais de 700 educandos e na sua localização, os conteúdos curriculares dessa instituição, de uma maneira geral, não levam em consideração as formas de vida local. Logo, é na ausência de uma compreensão curricular maior do que seja educação para o meio rural em seu contexto, ou educação diferenciada para populações ditas “do campo”, que acontece esse processo de denegação da cultura e da identidade local: Os alunos pesquisados nessa escola afirmam categoricamente que não querem ficar no meio rural. Assim, ao se articular com um currículo completamente urbano-centrado, se constrói paulatinamente a assimilação dos educandos, rebaixando assim, a autoestima dos jovens da região e causando o êxodo rural. 10.7 – O currículo e a escolha do material didático no caso da escola pública rural (a escola “C”): Uma das professoras entrevistadas na escola “C” reconhece que o planejamento da escola rural deveria ser diferenciado, baseado naquilo que é a realidade do alunado local: 297 O conhecimento daqui é diferente do conhecimento da zona urbana e aí eu sempre digo que o planejamento de escola rural deveria ser diferenciado, levando em consideração a realidade contextualizada do aluno. A gente se adapta, tirando daqui botando dali, mas o planejamento é que deveria ser diferenciado (ent. professora/escola “C”). Mesmo admitindo que o conhecimento e o planejamento da educação do campo deveriam ser diferenciados desses da escola urbana, toda a grade curricular é a mesma da apresentada para a cidade de Valença. Uma das professoras citou a preocupação da nossa pesquisa em relacionar uma nova concepção de currículo para os povos do campo, mas é preciso salientar que alguns desses elementos já estão observados na DOBEC/2002. Assim, quando questionamos sobre como os professores se organizam diante desta situação, a professora respondeu que muda a metodologia, adaptando-se à realidade dos alunos e observando o que eles trazem de maneira efetiva para a escola. Nesse contexto, podemos dizer que são atitudes positivas dos professores desta escola ao admitirem a importância de aspectos ligados à realidade local enquanto bases para a construção curricular das escolas rurais, mas a inadequação curricular esbarra no problema da competência técnica do professor e consequentemente no oferecimento de uma educação de qualidade para o campo. Este aspecto invoca a necessidade premente na reorganização de uma grade curricular para as escolas públicas do campo, mesmo que essas escolas não sejam em alternância, no sentido de respeitar as demandas locais, mas que seguramente seria mais adequado se a escola apreendesse com o contexto local enquanto fundamento para o seu planejamento curricular e metodológico e que este princípio fosse integrado ao seu projeto político pedagógico. Ainda em relação à escola “C”, os professores relatam aquilo que é comum na falta de estrutura da escola pública rural no Brasil: A falta de uma grade curricular e de uma metodologia comprometida com os valores e as demandas locais; A deficiência e a carência quase total de material didático-pedagógico; A deficiência no transporte escolar: 298 A ausência de infraestrutura adequada para um trabalho docente de qualidade como observado no caso desta escola. Para uma das professoras entrevistadas, vale a capacidade inventiva e criativa na adaptação dos seus programas de curso, pois, segundo ela mesma, nem os livros didáticos correspondem à realidade dos alunos: “mesmo os livros didáticos são completamente diferentes da realidade da zona rural”. Vejamos a matriz curricular do município de Valença – ensino fundamental – referente às escolas do perímetro rural para ano de 2008. Tomamos como referência a disciplina “história” e as séries correspondentes com os anos de idade dos alunos das duas escolas em alternância, que são a 7ª e 8ª séries, com carga horária de 80 horas anuais (2 horas por semana): Tabela 11: Grade curricular 7ª. Série. I – Unidade II – Unidade III – Unidade IV – Unidade A Europa Moderna Revolução Francesa O primeiro reinado de D. Pedro I Mudanças reinado A Expansão Portuguesa O governo de Napoleão Bonaparte O império brasileiro em perigo: as regências A unificação da Itália e da Alemanha Enfim, ouro Revolta e conflitos na colônia D. Pedro II no poder A república brasileira A Revolução Industrial O Brasil conquistou a sua autonomia O neocolonialismo A guerra de Canudos e o cangaço Colonial no segundo Como se pode ver na grade curricular acima, é possível destacar apenas dois conteúdos da II unidade que são a revolta e os conflitos na Colônia; O Brasil conquistou a sua autonomia; e finalmente na IV unidade: a guerra de Canudos e o cangaço que são passíveis de estar presentes na grade curricular das escolas rurais da região. Ainda que os dois primeiros sejam mais gerais, “A guerra de Canudos” aconteceu no sertão baiano, uma região bastante próxima da escola em pesquisa. Todos os outros estão como é possível observar, completamente descontextualizados. 299 No caso da 8ª série, também com 80 horas anuais, pelo que se vê na grade curricular abaixo, a situação é a mesma: Tabela 12: Grade curricular 8ª. série. I – Unidade II – Unidade No Brasil a Primeira Entre as duas guerras e República ascensão dos regimes totalitários A Primeira Guerra A Segunda Guerra Mundial Mundial A Revolução Russa A Guerra Fria Entre as duas guerras e a crise econômica Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx A Independência das colônias da África, Ásia e da África do Sul. Projeto: festa junina Projeto: feira do agricultor. III – Unidade A independência da Bahia IV – Unidade A democratização do Brasil Movimentos e revoluções socialistas A era Vargas Os Estados Unidos no mundo atual A União Soviética e o fim do Socialismo no leste europeu Uma região explosiva: o Oriente Médio Brasil 1945 – 1964 Brasil 1964 – 1985 Xxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx Tabela 8 Grade curricular 8ª. série: Apenas o conteúdo Independência da Bahia, da III unidade, leva em consideração parte da história que também concerne ao povo da região. Os projetos “festa junina e festa do interior” mencionados na tabela acima são realizados por toda a escola uma vez por ano. 10.8– As tensões entre alunos, pais de alunos/alunos e lideranças de assentamentos. O caso da escola “A” Esse é um quadro problemático recorrente, que se estabelece entre a juventude que está se tornando qualificada nas escolas em alternância e o conjunto dos atores que estão implicados no processo produtivo nas comunidades de um modo ou de outro. Retomamos algumas falas para exemplificar bem a ordem do problema. Primeiro os jovens têm que vencer a resistência dos próprios pais: No início é toda uma dificuldade. Os nossos pais chegam e dizem: eu sempre fiz desse jeito agora você chega e vem querer me ensinar. (ent. aluno 6, esc. A) Depois o problema se coloca com as lideranças de assentamentos. No caso dos alunos oriundos de assentamentos, a situação é ainda mais complicada: Ninguém abre espaço para os jovens que estão estudando. As lideranças mesmo impedem que eles avancem no comando dos assentamentos. São as próprias lideranças de assentamentos que impedem o avanço desses meninos. (monitora/escola “A”) 300 Mas, pelo que foi observado inicialmente, tanto os pais quanto as lideranças de assentamentos tratam os alunos da mesma forma: Porque é assim, às vezes os pais e as lideranças têm os meninos como mão de obra, mas, na maioria das vezes, ele não divide isso. É essa a revolta: eu vou trabalhar pra você, só que você não vai me pagar, então eu vou dar um dia na fazenda de seu fulano de tal, porque ele vai pagar. (ent. monitora/escola “A”) A gente começou a trabalhar com o orgânico, aí ele (o pai) achava que o processo é demorado demais, aí um ano e pouco atrás ele foi reconhecendo e agora que ele está usando mais. (ent. aluno/escola “A”) As relações de conflito entre os jovens e as famílias aparecem constantemente nas falas dos alunos da escola “A”. A família e, por extensão, a própria comunidade, se tornam o primeiro lugar de resistência às inovações ocorridas nas vivências dos alunos entre campo e escola. Mas com o passar do tempo, pelo que foi possível observar, existe um processo de evolução do diálogo e troca de conhecimentos entre pais e alunos, o que não ocorre com as lideranças dos assentamentos. Para uma das monitoras entrevistadas, o pagamento dos serviços prestados pelos mais jovens na zona rural cacaueira é um problema cultural, que se diferencia, por exemplo, do sertão baiano: A gente percebe que o tipo de agricultor lá é diferente (no sertão) dos agricultores daqui; os meninos lá trabalham; não é que os pais deem todas as condições, mas por trabalhar em coletivo, sobra um pedacinho pra eles, eu falo no real, dinheiro mesmo; eles têm uma parte que, aqui nesta região é mais difícil, o povo não quer reconhecer o trabalho deles. (Ent. mont. esc. A) A qualificação desejada acaba por se tornar motivo de exclusão, num determinado momento, principalmente no início da vida escolar dos educandos em alternância, isso se verifica, tanto na escola “A” quanto na escola “B”, pois tanto os pais quanto as lideranças de assentamentos dificultam as “experimentações” dos conhecimentos dos alunos nas propriedades. Nesse sentido, algumas soluções foram aparecendo: Temos um exemplo aqui onde o aluno construiu a casa dele, próximo à casa do pai e fez uma mini propriedade dentro da propriedade para trabalhar, e vários outros seguiram esses exemplos para conseguir garantir a sua autonomia e a continuidade do aprendizado. (ent. escola “A”) 301 Os meninos que saíram daqui pegaram uma área e começaram a produzir melhor do que os assentados. Mas é assim... (ent. escola “A”) É possível explicar esse fenômeno levando-se em consideração um conjunto de elementos constitutivos ligados a esse problema, que têm no jogo do poder político o seu problema central. Os alunos mais qualificados se constituem numa ameaça presente e cotidiana para as antigas lideranças de assentamentos, que possuem, em sua maioria, um conhecimento militante, mas, diga-se de passagem, não possuem um conhecimento técnico da agricultura e no geral são, semialfabetizados ou mesmo analfabetos. Ainda, nesse aspecto, importa lembrar que existe uma parcela de famílias de assentados rurais que têm origem nas periferias das cidades, o que agrava ainda mais o seu desconhecimento sobre os manejos agrícolas. Diante desse quadro, os alunos são vistos como uma ameaça à perda de prestígio e de poder das lideranças de assentamentos instaladas, razão pela qual tudo no assentamento rural é feito para que o conhecimento do aluno não progrida. A mesma situação ocorre quanto à questão de “gênero”. Segundo a monitora, as lideranças não abrem espaço para as “meninas” trabalharem. Nessa situação, jovens com formação fundamental para o desenvolvimento das técnicas de manejo agrícola nos assentamentos são forçados a trabalhar em outras fazendas ou mesmo a migrar dos assentamentos. No caso específico das lideranças dos Sindicatos Rurais Brasileiros, vale destacar as análises de Siqueira (apud Matos, 2001) ao afirmar que “há uma repetição constante dos nomes nas direções sindicais, alternando cargos, ou seja, os sindicatos não conseguem alterar suas lideranças; daí surgirem expressões como “conservadorismo sindical” e “estrutura viciada” que, por fim, promove até a proximidade com o poder local, sendo bastante usuais suas candidaturas para as câmaras legislativas municipais”. Ainda, nesse contexto, esse autor afirma que há dificuldades de essas lideranças se dedicarem a estudos, participarem de cursos, seminários, enfim, de melhor se qualificarem. Elas dedicam pouco tempo para desenvolver o trabalho de base. No que concerne aos estudos da Professora Sônia Matos (2001) – que trata da Construção das Resistências e do (re) Significado da Vida no Campo: perspectivas para 302 a juventude – ela afirma que o trabalho de base com as mulheres, ainda que lento, existe em todos os estados brasileiros, mas com os jovens é praticamente inexistente. Daí ser possível perceber, enquanto exemplo o que ocorre também nos assentamentos: os assentamentos são as provas das lutas dos oprimidos contra os opressores (latifundiários), mas, no seu dia a dia, existe uma disputa interna contínua, mesmo após a conquista da posse da terra. Conceitos do materialismo histórico (marxismo) sustentam a relação onde uma classe é a opressora e a outra é a classe oprimida, (o conceito de luta de classes) “latifundiário x assentados”, mas os conflitos internos ocorrem de maneira constante. No que diz respeito a esses alunos, isso se deve principalmente à relação que se estabelece entre o saber tradicional, praticado pelos pais de alunos, e o saber produzido pelas escolas em alternância. No caso do conflito instalado entre alunos e lideranças de assentamentos, é possível afirmar que existe uma relação direta na luta pelo poder interno e nas disputas políticas existentes no contexto tanto local quanto regional. As inovações tecnológicas aprendidas pelos alunos durante sua vida escolar passam a ser vistas como ameaça de perda de prestígio e de poder pelas lideranças tradicionais. No caso dos alunos de assentamentos (presentes majoritariamente na escola “A”), observou-se também que essa relação conflitiva pode ter desdobramentos perversos na conduta e na autoestima dos alunos, já que estão relacionadas diretamente à manutenção do poder dessas lideranças. Os “jovens” representam uma ameaça constante de perda de poder e hegemonia dentro das relações tradicionalmente estabelecidas. Pelo que se vê, a escola tem consciência dessa problemática que cerca os seus alunos e, enquanto escola com o pensamento originário na pedagogia libertária freiriana, se vê diante de uma situação espinhosa e profundamente dilemática. Isso porque, em determinados momentos, é a própria escola, através dos seus monitores em trabalho de campo, que tem que se confrontar com as lideranças, na tentativa de reverter situações complicadas e tentar abrir mais espaços para que os jovens possam exercer, de uma forma efetiva, o aprendizado da escola na comunidade. Os conflitos entre pais de alunos, alunos e lideranças de assentamentos estão na base dos processos de inovação aprendidos no decorrer do curso e na sua relação com a 303 aplicação prática na propriedade da família e, consequentemente, na comunidade local e isso nem sempre é bem digerido pelos demais. 10.9– As implicações da sustentabilidade e o desafio da aquisição da terra: proposições divergentes entre as escolas “A e B” A falta de terra é, para os alunos que desejam se manter no meio agrícola, um dos grandes dilemas encontrados por nossa pesquisa. Todo o conhecimento adquirido durante anos de estudos fica comprometido, já que os alunos não terão como aplicá-los em suas vidas futuras, optando muitas vezes pela migração. Mesmo reconhecendo a “vivência” na escola como um momento importante na formação e na aprendizagem dos jovens, o problema da terra se constitui em um nó nos engajamentos das escolas rurais. O jovem rural, que obteve uma “vivência” adequada nas EFAs e CFRs e que, ao final dos seus estudos, se encontra sem “créditos e terras” para a efetivação dos seus projetos de vida, volta a se constituir num migrante rural como qualquer outro, entendendo que não existe razão para continuar no meio rural, já que os meios para permanecer neste simplesmente não existem. O ex-aluno torna-se, nesse caso, um “migrante rural de luxo”, pois traz consigo todo um conhecimento sonhado durante décadas de luta pelos movimentos sociais e por suas comunidades e famílias. Entretanto, ao concluir o curso, não lhe é garantida a oportunidade de dedicar-se à atividade para a qual foi preparado durante anos. Pelo que se observou a partir da motivação deles: os alunos querem ficar na terra, querem ter terra e viver junto com a sua família e sua comunidade, mas as condições para a sua permanência não estão asseguradas, e isso contribui para o atrofiamento do desenvolvimento das comunidades rurais de pequenos produtores e de suas famílias e, consequentemente, para a manutenção do êxodo rural. Mais uma vez, a problemática da “educação e do desenvolvimento do campo” retorna à cena. Se, em um primeiro momento, os movimentos sociais engajados reclamam da falta de uma educação comprometida com a realidade dos povos que vivem e retiram o seu sustento do campo, o problema agrário brasileiro se constitui num 304 entrave fundamental a uma ação pedagógica adequada, aos programas de estudo e às melhorias socioeducacionais para as famílias de agricultores do campo brasileiro. Há uma dificuldade que precisa ser debatida em relação à construção de uma educação adequada para o campo brasileiro, e essa problemática não pode ser decidida apenas pelos alunos e pelas suas famílias. É preciso que haja um engajamento de todos os atores responsáveis: a Escola; o Estado e os Movimentos Sociais, com o objetivo de encontrar soluções. A problemática de “aquisição da terra” para que a juventude plante e construa seu futuro não pode ser desmerecida pelas escolas do campo, principalmente num país com grandes dimensões territoriais e necessitando de uma reforma agrária responsável e consequente que resolva por definitivo os problemas que enfrenta a questão agrária no campo brasileiro hoje. Na comparação sobre o problema de aquisição de terras nas escolas em alternância, alunos, monitores e também diretores e técnicos abordam essa questão de diferentes maneiras: a quantidade de terra existente entre o alunado da escola “B” se situa entre 02 e no máximo 17 hectares, mas a média é de 05 hectares por família, pelo que foi observado e a maioria dessas propriedades familiares já estavam completamente cultivadas na época da coleta de dados. O que fazer, então? Na formação e construção dos processos de autonomia dos jovens, a escola “B” reforça a ideia de que esses jovens são “empreendedores rurais”; mas como foi possível observar que a maioria desses jovens possuía, junto com as suas famílias, pouca ou nenhuma terra, como deste modo, dar continuidade aos projetos a fim torná-los empresários rurais? Junto aos monitores da escola “B”, observou-se que existe uma visão legalista acerca da aquisição e da propriedade da terra, partindo do princípio de que a posse das terras brasileiras e da região é algo já estabelecido, dentro de uma compreensão fundamentada no direito privado. É preciso perceber também a postura da principal fonte de financiamento dessa escola na época da pesquisa: a Fundação Odebrecht. Para ela, a conservação da propriedade privada é algo inquestionável, ou seja, na escola, podemos tratar de problemas técnicos agrícolas, mas jamais questionar a quantidade de terras e de latifúndios existentes na região. 305 Seguindo esse modelo, para os monitores que se ocuparam dessa tarefa, foi colocado o desafio de conseguir financiamentos em programas governamentais para a compra de terras. A ideia seria de adquirir uma fazenda com aproximadamente 200 hectares, capaz de assegurar aos “jovens empreendedores rurais”, já formados pela escola, a continuidade e a inserção profissional em suas vidas. Desse desafio e das discussões sobre esta problemática surgiu o seguinte: O primeiro passo foi encontrar um programa de financiamento governamental que se identificasse com o perfil dos jovens recém formados: nesse caso, o programa identificado foi o “Nossa Primeira Terra”, do Governo Federal. O “Nossa Primeira Terra” tem como fundamento o financiamento de terras para jovens agricultores que desejam continuar no campo; porém, no caso dos jovens dessas escolas, as tentativas de aquisição de terras se revelaram infrutíferas, como veremos a seguir: Em seguida aconteceu a formação de uma associação, que envolveu os alunos recém-formados pela escola que desejavam adquirir terras. Eram 22 envolvidos, a quase totalidade da turma formada, que era de 27 alunos. A associação foi criada buscando esse objetivo e, por dois anos, se manteve, até que os alunos desistiram, por conta do insucesso da empreitada. Sem dúvida a escola nos incentivou a construir a associação, mas com o passar do tempo... (ent. aluna, esc. B) O terceiro passo foi a identificação do imóvel. Alguns problemas são atribuídos a essa questão: o primeiro é o fato de que a maioria dos imóveis rurais da região do cacau não possui documentação adequada, por conta efetivamente da questão agrária e dos problemas jurídicos relacionados ao campo brasileiro. Os alunos e monitores chegam a afirma que mais de 90% dos imóveis rurais da região tem documentação problemática, como nos disse um dos alunos: “sempre falta algum documento”. Diante dessa situação, tornou-se impossível enquadrar um imóvel com documentação regular no financiamento governamental para a aquisição da propriedade. 306 O segundo problema estava relacionado à geografia da região que é em geral bastante acidentada, o que caracterizava a maioria das propriedades desejadas. Segundo os alunos e monitores; esse fato foi entendido como crucial no desenvolvimento das técnicas de cultivos aprendidas no período escolar. Assim, criou-se um empecilho para a aquisição das terras, pois quando havia documentação correta, a terra era acidentada; quando se tratava de ter as condições geográficas e quantidades de terras exigidas pelos alunos e monitores, havia problemas na documentação. O quarto passo foi a construção da burocracia necessária para a aquisição da terra. Dentro desse contexto, foram realizadas ainda algumas reuniões com os alunos, os monitores, diretores da escola e as entidades governamentais envolvidas no processo de financiamento, mas nada foi adiante... O programa “Nossa Primeira Terra” tem dificuldades estruturais concretas no que diz respeito ao financiamento de terras para os jovens agricultores de um modo geral. A Professora Germani (2011), do Instituto GEOGRAFAR da UFBA, um dos institutos mais respeitados em matéria de mapeamento dos dados da questão agrária na Bahia, considera esse programa como uma armadilha para as pessoas que precisam de terra para trabalhar. A título de comparação, a professora cita o programa “Cédula da Terra”, que está entre os programas de financiamento de terras pelo governo brasileiro, no estado de Minas Gerais. Nele, os agricultores que financiaram a compra de terras não conseguiram quitar as suas dívidas a partir da sua produção. Por isso, estão com suas propriedades hipotecadas pelos bancos do governo. A Professora fala do “movimento mineiro dos agricultores endividados pela cédula da terra.” Esses elementos, além das discussões em torno do “problema agrário brasileiro”, revelam a forte contradição existente entre o fato do querer continuar na terra e a indisponibilidade desta. Não porque inexistam terras em abundância no Brasil, mas por conta de que ela está concentrada na mãos de poucos e sequencialmente não existe a vontade política entre as forças dominantes governo e latifundiários com a promoção da redistribuição e do reordenamento das terras do Brasil – a Reforma Agrária. O desejo dos jovens educandos na escola “B” seria de possuir a sua terra, afirmando que, com a agricultura e as técnicas aprendidas, “dava para viver na terra”, e 307 que assim, prefeririam ficar no campo, mas a realidade apresentada era outra: a da dificuldade na aquisição da terra e do êxodo forçado. Alunos e monitores da escola “B” têm posições diferentes sobre o problema da aquisição de terra. Para a maioria dos monitores entrevistados, o problema da aquisição da terra esbarra na quantidade de burocracia imposta pelo governo. Essa foi a principal dificuldade, além dos problemas de documentação, que é consenso entre as duas partes. Para os alunos, a escola “B” não foi suficientemente vigilante na sequência do percurso pós-escolar; também para eles, a ausência de um desfecho positivo para a aquisição da terra seria uma falha da própria escola. 10.10– A relação dos professores/monitores das escolas “A, B e C” com o trabalho de educar no campo: o caso das três escolas em pesquisa Numa tentativa de resolver o problema da falta de professores para atuar no campo, os movimentos engajados na luta pela educação no campo, entre eles as EFAs e o MST, criaram a partir de 2002 o curso de licenciatura em Pedagogia para o Campo que consistiria na formação de professores para atuar nas suas próprias redes e escolas, tanto em escolas de assentamentos, quanto em escolas em alternância no campo. Esses cursos, que começaram a ser difundidos pelas universidades brasileiras, procuravam de uma maneira geral, recrutar alunos que tivessem experiência em trabalhar como professor nas escolas do campo, ou por indicação da escola ou do movimento do campo em que atuam. Para a diretora da escola “A”, seria preciso que o Estado avançasse na resolução deste problema e fizesse reservas de vagas em concursos públicos para professores que desejassem atuar nas escolas do meio rural. Ainda nos dias atuais o problema da demanda de professores para atuar nas escolas do campo ainda se constitui num grande desafio, tanto ligado a necessidades de profissionais, a competência técnica quanto à quantidade de quadros dispostos a atuar nessas escolas. Os salários médios entre as três escolas variam muito: professores da escola “A” efetivos têm média salarial de 2 salários mínimos; os professores da escola “B” recebem em média 4,5 salários mínimos e os professores da escola “C” também recebem pelo 308 trabalho em média 2 salários mínimos, sendo que a maioria dos professores da escola “C” ainda atuam em várias outras rurais da região. Para compreender de maneira mais precisa o fenômeno do compromisso com o campo, reunimo-nos com os professores e a diretora e questionamos sobre qual relação que cada um deles estabelece com a educação e a escola em que trabalham? Neste caso, é possível afirmar de uma maneira geral, os professores das três escolas gostam de trabalhar no campo, embora as condições de trabalho sejam diferentes nos três estabelecimentos de ensino: por exemplo, os monitores e coordenadores pedagógicos da escola “B” se dizem motivados nos seus trabalhos. Neste caso, para a tese, a motivação advém da boa qualidade nas condições de trabalho oferecidas por essa escola, o salário é mais que o dobro do que o das outras duas escolas além das condições de alimentação e alojamento, que são adequadas. Dentre os professores entrevistados nas três escolas sobre a questão do engajamento e do comprometimento em educar no campo, as respostas foram quase unânimes. Alguns professores entrevistados na escola “C”, por exemplo, afirmaram que não trocariam o trabalho no campo pela cidade, pois, segundo eles: Existe uma grande troca de conhecimentos, ao mesmo tempo em que ensinamos, aprendemos. Desde quando eu vim trabalhar aqui eu aprendi tantas coisas que eu nunca pensava lá na cidade. (professores escola “C”) Num outro depoimento sobre a sua formação para o campo, a professora afirma: É aquela questão, quando eu me formei, me formei foi para ser uma educadora, eu não me formei para ser uma educadora rural. (professores escola “C”) As professoras da escola “C” citam também como motivo o respeito que os alunos do campo têm pelos seus professores: Diferente dos alunos da cidade, os alunos do campo mantêm, de maneira diferenciada, o respeito pelos seus mestres. E não é uma questão de medo, mas de respeito, pois os alunos sentam com a gente, dialogam, questionam... e quando eles questionam, eu já vou instigando para ele questionar mais e já vou entrando numa discussão... eu gosto de instigar os meus alunos, então é aquela questão... eles me respeitam. (professores escola “C”) 309 Neste caso, todas as falas indicam a falta de uma formação adequada para o meio rural. Não é que o local seja hostil ao trabalho dos professores que para lá se dirigem, mas fica claro que existem especificidades prementes que precisam ser respeitadas e observadas no processo pedagógico. No caso da escola “A”, falta espaço para implantação de uma biblioteca; as obras existentes não são suficientes para uma formação em adequação aos objetivos desejados pela escola. No caso particular dessa escola, temos o seguinte: O fato de os salários oferecidos por essa instituição serem pouco atrativos, apenas pessoas com um nível elevado de engajamento político têm se colocado à disposição para o trabalho na escola. Em grande parte dos casos – por exemplo, no caso do financiamento do técnico e do pessoal de apoio – a ajuda financeira vem de organizações não governamentais internacionais, como se vê no quadro abaixo; Verifica-se uma constante falta de professores/monitores. Ao final de cada semestre letivo, acontece o mesmo problema, sendo que a equipe dirigente da escola, nesses momentos, deve estabelecer contatos urgentes, na tentativa de resolver o problema, nem sempre com sucesso, ocasionando a continuidade do ano letivo com carência de algumas disciplinas; A falta de monitores dificulta o acompanhamento sistemático nas comunidades assistidas pela escola; Material didático pedagógico sempre com dificuldades; A produção agrícola da escola para a sua alimentação não garante a sua autossuficiência. No caso da escola “A”, o reconhecimento do curso de 5ª a 8ª série pelo Governo Estadual foi firmado por meio de um convênio entre a escola e a Diretoria de Educação (DIREC) do município de Ilhéus; os salários dos professores passaram a ser pagos pelo Estado. Aqui cabe esmiuçar as relações de convênio entre o Estado e o fornecimento de professores para essa escola: 310 O Estado tem oferecido professores através de um contrato denominado REDA, (Regime de Direito Administrativo). São professores ainda estudantes dos cursos de licenciatura nas Universidades da região, mas principalmente do curso de Pedagogia. Os contratos são firmados entre a DIREC e os professores por um período de dois anos. Essa situação deixa a escola bastante fragilizada, os professores não têm formação coerente nem engajamento com o trabalho da escola. O convênio recebe professores oferecidos pelo Estado sem as compreensões pedagógicas daquilo que a escola desejava. Os professores, em sua maioria, exercem suas atividades sem vínculos efetivos nem afetivos com o perfil da escola. “Mas fazer o quê?” questionam. Como se não bastasse, o Estado mudou a regra de contratação pelo REDA para o que eles chamam atualmente de PST: o professor é contratado por três meses e renova o seu contrato durante certo período, a cada final do contrato. O resultado é a fragilização ainda mais do corpo docente da escola, composto de professores não comprometidos com uma pedagogia em contexto. Assim, é recorrente encontrar alunos sem aulas, professores sem contrato e a escola com sérias dificuldades para sobreviver. 10.11– Diferenças fundamentais na continuidade entre os ex-alunos da escola “A”, “B” e “C”: A nossa pesquisa demonstrou que o trabalho na continuidade do acompanhamento dos jovens ex-alunos nos momentos posteriores à realização da aprendizagem, é de extrema importância no que concerne ao sucesso de suas vidas. A solução encontrada pela escola “A”, ainda que precária, tem sido a única maneira pela qual os jovens dão prosseguimento aos seus estudos e às suas vidas profissionais. Já a falta de acompanhamento dos ex-alunos da escola “B” tem significado a interrupção dos seus estudos. Esse fato é apontado como um problema sério e que precisa ser revisto pela escola, considerando que as condições em que 311 encontramos a maioria dos ex-alunos vivendo e trabalhando na cidade de Tancredo Neves, é para a tese um indicador importante sobre a continuidade profissional em suas vidas. Se de um lado as escolas possuem recursos diferenciados, sendo que a “B” é nitidamente a que possui o maior volume de financiamento por aluno, por outro lado, observa-se que as formas de engajamento das escolas na continuidade dos “jovens” são demarcadores fundamentais para o sucesso profissional de cada aluno em particular. A escola “A” consegue, mesmo de forma precária, manter por algum tempo os seus ex-alunos em seu foco de visão, sabendo aproximadamente o que cada aluno está fazendo e onde está localizado no intuito de dar continuidade e orientação aos seus estudos. A escola “B”, não faz um acompanhamento mais sistemático. A intervenção da diretora da escola “A” foi a responsável direta pela entrada de doze dos seus ex-alunos no curso técnico de formação em agropecuária da EMARC, em Teixeira de Freitas. A aquisição das vagas foi seguida de um processo de pressão bastante tensivo sobre o diretor dessa escola. O diretor da EMARC argumentava inicialmente que não havia vagas e que os egressos da escola “A” não possuíam condições intelectuais capazes de acompanhar o ensino oferecido pela EMARC e o terceiro argumento seria de que não havia mais espaço nos alojamentos para acomodar os ex-alunos que chegavam da escola “A”. Todavia, os ex-alunos responderam que não haveria problema se eles tivessem que dormir no chão. Depois do recuo da direção da EMARC e após um período curto de negociações, finalmente, surgiram as vagas nos alojamentos e os ex-alunos foram matriculados de forma definitiva. Na sequência desse evento, a direção da escola “A” passou a motivar seus exalunos, argumentando que eles tinham que dar tudo de si para demonstrar que tinham as condições para estudar na EMARC. Após a finalização do primeiro ano de estudo e com o sucesso conseguido por essa primeira turma, o próprio diretor da EMARC procurou a direção da escola “A” para informar da reserva de vagas à disposição da escola no ano seguinte. Alguns desses egressos (irmãos mais velhos), filhos dos assentados, estão neste momento cursando escolas especializadas de agricultura em nível técnico, ou já concluíram (caso de alguns), ou estão começando cursos em universidades diversas da 312 região. Os pais identificam a escola como a principal responsável pelo andamento dos projetos de vida desses ex-alternantes. Essa situação demonstra o quanto é fundamental o engajamento dos monitores e diretores das escolas do campo, particularmente das escolas em alternância, na continuidade do acompanhamento na vida dos alunos ou ex-alunos, pois, do outro lado, abandonados à própria sorte e sem terra, o fracasso e a angústia de não ter conseguido seria inevitável. Mesmo com condições financeiras melhores e dentro de uma estrutura maior, oferecendo-lhes lazer, laboratórios de informática, biblioteca, etc., a maioria dos exalunos da escola “B” pesquisados estão em condições de precariedade em suas vidas profissionais, nitidamente maiores que os da escola “A”. De uma maneira geral, estão sem terra, trabalhando nas pequenas propriedades de suas famílias ou trabalhando no que aparece no mercado de trabalho local da cidade, em outras áreas. O quadro abaixo demonstra a diferença entre 10 egressos das três escolas pesquisadas. Tabela 13: o que fazem os ex-alunos da escola A, B e C Ex-aluno Escola A 1 Ensino médio 2 Ensino médio 3 Ensino médio 4 Faculdade de Agronomia 5 Apoio Sasop 6 EMARC Agropecuária 7 Ensino médio 8 EMARC Agropecuária 9 EMARC Agropecuária 10 Comerciário Escola B Fábrica de sapatos/auxiliar de escritório Fábrica de sapatos/produção Comerciário Artesanato/desempregado Escola C Desempregado Artesanato/desempregado Auxiliar Secretaria. Agricultura (Estagiário) Auxiliar Secretaria. Agricultura (Estagiário) Auxiliar Secretaria. Coopatan (Estagiário) Auxiliar Secretaria CFR/TN (Estagiário) Auxiliar Secretaria CFR/TN (Estagiário) Desempregado Desempregado Ajuda os pais na roça Ajuda os pais na roça Desempregado Ajuda os pais na roça Ajuda no comércio Ajuda os pais na roça Ajuda no comércio Tabela 9 Diferença entre 10 egressos das três escolas Os ex-alunos da escola “B”, de uma maneira geral, foram localizados e entrevistados na sede do Município de Tancredo Neves. Foram entrevistados 10 exalunos de forma individualizada. 313 10.12– Sobre a continuidade dos ex-alunos da escola “A, B e C”: Foram entrevistados 10 alunos: 6 alunos estão agregados na própria escola, por conta da continuidade dos seus estudos e proximidade com o centro da cidade (Ilhéus); eles continuam os estudos em troca de efetuarem tarefas decididas pela escola ao longo do ano escolar. Quatro alunos foram entrevistados na sua propriedade depois que haviam concluído o curso de agropecuária na EMARC de Teixeira de Freitas e se preparavam para cursar Agronomia na Universidade Federal da Paraíba. O problema da distância entre as escolas formais de ensino médio e as propriedades dos alunos continua a se constituir num problema para a maioria dos jovens que finalizaram seu tempo de estudo nesta escola em alternância, já que nem todos vão para as EMARCs. No que foi possível observar, a maioria dos jovens mantém a motivação pela continuação dos estudos (finalização do ensino médio, cursos técnicos em agropecuária, faculdades diversas, principalmente na área agrícola), mas o retorno à área familiar também implica numa suspensão dos estudos que, às vezes, é definitiva. Compreendendo o dilema que se impunha em relação ao retorno dos jovens às suas comunidades, a escola fez a seguinte opção: manter uma quantidade de jovens exalunos em situação de agregação na escola em troca de trabalhos de apoio, que se realiza ao longo do tempo de estudo. A escola está localizada numa zona agrícola muito próxima à cidade de Ilhéus (cerca de 5 km), o que favorece a matrícula em cursos da cidade numa relação de ida e volta diária. O nível elevado de evasão na escola “C” nos permite fazer a seguinte análise: primeiro a afirmação de que a vivência dos alunos matriculados nas duas escolas em alternância é melhor do que a vivência dos alunos da escola pública rural; segundo, a desvinculação curricular é fator preponderante nos processos de migração e êxodo desses alunos para a cidade. Todos os alunos das duas escolas em alternância que participaram da nossa amostra afirmam categoricamente a importância dessas escolas nas suas vidas como algo positivo. Segundo eles, são inegáveis as contribuições do ponto de vista do ensino/ aprendizado nessas duas escolas. Para um grupo de alunos da escola “B”: 314 Nenhum jovem é mais o mesmo depois de passar por essa escola, o nível de engajamento, o nível de responsabilidade e os projetos de futuros são marcas decisivas para os jovens que estudam na escola. Uma das ex-alunas desta escola chega a dizer que: Eu sou o resultado daquilo que a escola me proporcionou, eu não me arrependo de ter passado os três anos lá. Eu não tenho do que reclamar: os profissionais são de excelente nível, os professores e os monitores... eu não me arrependo. Do ponto de vista das técnicas agrícolas, não tem como negar, como já comentamos, os profissionais são de excelente qualidade. Em seguida, procuramos saber como os alunos consideraram o percurso pela escola “B” e constatamos que existe uma unanimidade em considerar o percurso nesta instituição como um dos melhores momentos de aprendizagem de suas vidas. Todos os ex-alunos afirmam considerar a qualidade dos cursos, bem como a qualidade dos monitores da escola como excelente e relatam a importância de se ter construído uma verdadeira família ao longo dos 3 anos de escolaridade. Naquilo que foi possível observar, existe uma inquietação desses ex-alunos no que concerne ao prosseguimento das suas vidas nos setores diversos; para a maioria deles, deveria haver um maior engajamento por parte da escola no acompanhamento pós-escolar. Então, o que deve ser feito? O desejo, a partir daquilo que foi o eixo central da escola, seria de garantir a sustentabilidade a partir da sua própria terra. Mas o que fazer quando se trata de alunos que vivem em propriedades familiares que, em geral, não ultrapassam os 05 hectares? No caso da escola “A”, ocorrem os mesmos tipos de dificuldades. Poucos são os alunos cujas famílias possuem terras suficientes para dividi-las com os seus filhos recém-formados, apesar de a quantidade de terras das famílias dos assentados ser nitidamente maior do que as terras dos pequenos produtores tradicionais familiares nas duas escolas em alternância. Para uma das ex-alunas da escola “B” que trabalha atualmente no comércio, as dificuldades são muitas. Diz ela: Percebo que a maioria dos jovens que frequentaram a escola estão tendo dificuldades de se manter no meio agrícola. Para se ter uma renda não muito grande, ou seja, um salário mínimo, muitos desses jovens estão morando aqui na sede de Tancredo Neves. Não 315 são todos os jovens da minha turma de 35 alunos que conseguem se manter na terra. É complicado, para mim sempre foi. Eu mesma só tenho um projeto produtivo na minha área, depois que eu saí de lá, porque eu tive que tomar um empréstimo do PRONAF/B para poder fazer uma área de banana, e agora estou começando a fazer a primeira colheita. Então, na verdade, eu não tinha um capital para poder investir do meu dinheiro e também junto com a minha família. Então, assim... não é fácil. A escola tem como enfoque principal a formação de empreendedores rurais; mas, ao final dos 3 anos de curso, o que esses jovens fazem realmente ou deveriam fazer? 10.13– Do conhecimento das novas leis e da disponibilidade dos recursos para a gestão das escolas do campo Uma das constatações da nossa pesquisa é de que a maioria dos professores e professoras do campo não tem o conhecimento devido da DOBEC/02 e muito menos ainda da Resolução do Conselho Nacional de Educação para o Campo/2008. Para a diretora da escola “A”: As próprias secretarias municipais preferem que seus professores - ligados ao campo - não fiquem informados do que está aprovado nesses documentos, pois em caso de apropriação dessas informações, haveria um aumento de pressão para que suas secretarias de educação reservassem um nível de adequação maior à educação do campo, assim como reservassem recursos ou se inserissem na participação de editais diversos, para obtenção de fundos. Segundo informação do próprio MEC sobre o edital/08 que se destinava à formação de profissionais para as escolas do campo, apenas 18 prefeituras no Brasil inteiro participaram. Dentre os motivos, estão a inadimplência de muitas prefeituras em relação a comprovação dos gastos com a educação (corrupção e incompetência) junto ao FUNDEB (Fundo Nacional de Educação Básica) e o desconhecimento das secretarias municipais de educação sobre as leis e documentos existentes no respeito com a educação para o meio rural. Apenas municípios com gestores mais comprometidos e engajados é que participam e incentivam as suas SECs a buscar recursos para esses fins. Diante disso, questionamos o MEC sobre as disputas jurídicas que se travam entre o governo e as prefeituras na aquisição desses recursos. A resposta, segundo a consultora do MEC, é o processo eleitoral, onde “as populações dos municípios elegem 316 gestores mesmo sabendo que estão vinculados a casos de corrupção e negligência na prestação de contas das prefeituras”. O problema é que são milhares de crianças e adolescentes do campo que necessitam, de forma urgente, de transformações curriculares e estruturais em suas escolas, de melhoria na qualidade dos seus transportes e do transporte dos seus educadores, de melhoria na produção didático-pedagógica e que dependem em absoluto desses recursos. Enquanto existir a disputa jurídica entre gestores municipais e governo federal, perpetuar-se-á, por conseguinte, o abandono e o esquecimento da escola do campo. Outro aspecto que nos chama a atenção é a organização das escolas do campo pelas secretarias municipais de educação. Nesse caso, as razões de carência das escolas do campo na aquisição dos recursos estariam ligadas à estrutura organizacional da escola e do município, composta pelos conselhos escolares e pelos conselhos ou coordenações municipais de educação do campo. A professora da escola “C” diz o seguinte: As escolas que têm conselhos escolares possuem uma certa autonomia na aquisição e compra dos materiais necessários, mas nas escolas que não possuem conselhos, falta até folha de papel. (professora/escola “C”) Na verdade, se trata de uma das situações vividas pela maioria das escolas rurais brasileiras e de escolas das periferias urbanas mais empobrecidas, o que resume e explica por si só a questão da exclusão, da falta de oportunidades iguais para todos e, consequentemente, da marginalização de uma parcela importante da sociedade. A consultora do Ministério de Desenvolvimento Agrário, que participou do seminário sobre os desafios da “educação do campo” para a Região do Cacau, que Conselho Escolar Conselho Municipal de Educação do Campo Conselho Estadual de Educação do Campo RECURS OS 317 Coordenação Nacional de Educação do Campo (MEC - MDA aconteceu em junho 2008, em Itabuna, reconhece essa questão. Ela afirma que o problema principal é o da organização e da gestão dessas escolas pelos Municípios, já que, no Brasil, os recursos existem. Ela cita como exemplo o caso dos transportes escolares, dominados por grupos que dão sustentação política a gestores municipais diversos. Retornando ao caso da gestão escolar, a princípio, para obter recursos, a escola deveria então se organizar da seguinte forma: 10.14– Sobre a possibilidade das escolas do campo produzir o seu próprio material didático-pedagógico: Uma professora entrevistada na escola “C” cita, mais uma vez, o exemplo da escolha do livro didático. Para ela, o problema é recorrente. Mesmo falando de escolhas, todos os livros já vêm prontos, escolhidos pelo MEC e distribuídos nacionalmente. Na verdade, a “escolha do livro” é a escolha que o MEC já fez para todo o território nacional e que não contempla a diversidade curricular necessária aos diversos contextos e continua sem aproximação com a realidade dos povos do campo e dos “culturalismos brasileiros”. Para uma das professoras, trata-se de uma imposição recorrente do sul sobre as outras regiões do país. Nesse caso, o MEC e as demais secretarias estaduais e municipais de educação não se preocupam com essa importação de realidades do sul e, por conseguinte, da Europa nas suas comunidades. O resultado são livros e conteúdos distanciados da realidade cultural, histórica, social, política e econômica dos alunos, como se pôde observar com a disciplina história da escola pública rural que pesquisamos. Sobre a escolha do livro didático, os professores comentam que ela é feita para todo o município, mas se lamentando da forma como a escolha é feita. Uma professora disse que os livros colocados à disposição das escolas do campo não correspondem à realidade do alunado. Outra professora revelou que procura produzir o seu próprio material didático, a partir de recortes de jornais ou de revistas que trazem informações interessantes concernentes à realidade do povo local: Mesmo os livros que a gente escolhe não dá para se adaptar aqui. Outra professora diz: eu mesma produzo o meu 318 material didático, já que o livro está muito distante da realidade dos alunos. (professora/escola C) 10.15– A certificação das CEFFAs enquanto perspectiva para a educação do campo brasileiro As escolas que praticam educação em alternância têm enfrentado graves problemas em seu reconhecimento por parte do governo brasileiro. A questão da certificação das escolas é fundamental para trazer inúmeros benefícios, tanto para as escolas quanto para os alunos matriculados nelas. Na relação com o governo, por exemplo, é possível estruturar parcerias formais do ponto de vista do seu funcionamento, o que evitaria principalmente os dilemas observados de uma maneira geral quanto à sua continuidade. Sem a certificação oficial dos processos de ensino/aprendizagem, significa dizer, por exemplo, que não há reconhecimento por parte do Estado das ações pedagógicas desenvolvidas por essas instituições. O problema mais grave foi observado na escola “B”, no período de pesquisa: a solução encontrada pelos alunos foi um projeto de SUPLETIVO48 para recuperar, em curto prazo, o tempo que estudaram em suas dependências. Esse projeto não agradou nem um pouco aos ex-alunos da escola “B”, já que a ideia era a continuidade dos estudos e não um retorno para recuperar os anos de estudos formais que ficaram suspensos por conta dos três anos de estudo nessa escola. Esse problema é, sem dúvida nenhuma, o responsável direto pelo impasse na formação dos jovens que estudam nas escolas em alternância do Brasil. A exclusão por conta da não certificação ou reconhecimento oficial das escolas em alternância no Brasil cria um conjunto de dificuldades para essas. Para o Pe. José Romualdo Degasperi, (2004) da Universidade Católica de Brasília, o fato seria de que o Estado não tem domínio ideológico e político sobre as escolas em alternância, pois, embora profundamente comunitárias, sua gestão não é 48 O SUPLETIVO é o curso que permite a condensação das disciplinas escolares, seja do ensino fundamental, ou do ensino médio o que permitindo ao aluno com distorção idade série recuperar anos de estudos em períodos curtos, normalmente de um ano. 319 governamental, então, neste caso, se julga também no direito de não subsidiá-las. “Esquece-se, de má-fé, que os estudantes dessas escolas, aliás, de todas as escolas não estatais, são cidadãos brasileiros iguais e com iguais diretos aos de quem frequenta as escolas do Estado”. No caso da escola “B”, toda essa situação acabou por gerar um mal-estar muito grande entre os ex-alunos, os quais estavam certos de que, ao final do tempo de estudos, receberiam os seus certificados de conclusão de curso. A não certificação é citada pelos ex-alunos da escola “B” como o “problema número um” a ser resolvido pela escola. A existência do certificado reconhecido pelas SECs estaduais resolveria, de um lado: O problema da continuidade nos estudos no mundo escolar formal; Por outro lado, facilitaria a inserção profissional, já que, numa possível existência de vagas de trabalho os alunos estariam aptos. Esse título facilitaria a inserção dos egressos das escolas em alternância no mercado de trabalho tanto de empresas privadas quanto estatais interessadas nesse perfil de profissional. Duas outras vias buscadas pela escola “B” na época foram: Trabalhar os conteúdos convencionais das escolas formais públicas “urbanas” no interior da escola, a fim de reforçar o conhecimento e evitar o esquecimento de conceitos básicos de disciplinas tradicionais; A segunda alternativa: os alunos quando não estão em alternância nas dependências da escola, frequentariam por sua vez, as escolas formais da região. 10.16– Reconhecimento e recrutamento das escolas em alternância (A e B) em pesquisa No caso específico deste estudo, constatou-se que os procedimentos de recrutamentos e certificação das escolas não são uniformes: Os alunos da “A” obtêm a 8ª série do ensino fundamental ao final dos seus três anos de estudo (garantidos pela DIREC). 320 No caso da escola “B”, (pesquisa de 2008) os alunos que tinham a mesma idade dos alunos da escola “A” entravam com a 8ª série do ensino fundamental, mas, pelo período estudado, ou seja, os três anos que ficam na escola, não recebiam nenhum reconhecimento das SECs, forçando-os a refazer mais três anos de ensino médio nas escolas públicas das cidades. Outra observação está no fato de que a DIREC garantia o certificado de conclusão da 8ª série, mas esse certificado não representava as qualificações adquiridas pelos alunos nos três anos de aprendizado em uma escola do meio rural em alternância. No funcionamento da escola “C”, os estudantes oriundos da zona rural recebem o certificado pelo período escolar estudado e estão, assim, reconhecidos pelo Estado e poderão continuar seus estudos. Ao finalizar esse período de estudos nas escolas estatais tradicionais rurais, esses ex-alunos farão trabalhos diversos no meio rural ou nas cidades próximas sem qualquer qualificação e com uma perspectiva de progresso de vida muito reduzida comparada aos alunos das duas escolas em alternância. Os ex-alunos da escola “C”, que permanecem na zona rural trabalhando ou “ajudando” os pais nas lavouras de suas propriedades, ficam sem nenhuma qualificação técnica para o meio rural. O termo “ajudar” é próprio, pois, sem qualificação equivalente, o jovem/aluno/egresso dessa escola tem poucas chances de influenciar as suas famílias nos processos de desenvolvimento requeridos em suas propriedades. Tomando apenas os elementos do “informal e do formal”, observamos que as escolas em regime de alternância com recorte pedagógico definido para o meio o rural, mesmo oferecendo disciplinas de eixos formais, não estão regulamentadas pelo Conselho Nacional de Educação enquanto escolas formais. Assim sendo, na verdade, se partirmos desse pressuposto de legalidade estatal, a educação praticada pelas EFAs e CRFs é considerada informal e não merecem por assim dizer o reconhecimento do Estado, como tem sido via de regra, o que é a nosso ver um contrassenso. Para a tese, essas escolas atuam como instituições formais que educam e formam os povos que vivem e trabalham no campo. A catarse se estabelece, no que chamamos de “dupla face” desses processos da exclusão na educação camponesa no Brasil: pois se, de um lado, a qualidade das escolas públicas rurais, enquanto instituições formais oficiais, não trazem as perspectivas de sustentabilidade agrícola, de enraizamento 321 cultural e identitário, de autonomia e de qualificação profissional, que seria o ideal, por outro lado, as escolas rurais engajadas, (escolas em alternância) de uma maneira geral por não possuírem o reconhecimento oficial, ficam navegando entre a formalidade e a informalidade, tendo dificuldades no seu reconhecimento e consequentemente por falta desse reconhecimento, colocam os jovens alternantes em imensas dificuldades na continuidade dos seus estudos e de sua formação profissional Se, de um lado, é possível considerar os centros de formação em alternância como escolas engajadas na formação para o meio rural, portanto, considerando-as como escolas inclusivas para os povos que vivem no campo, por outro lado, o jovem egresso das escolas em alternância tem que retomar a continuidade de seus estudos nas escolas públicas formais, o que as remete a problemas sérios no que diz respeito a falta de autonomia e reconhecimento. A contradição reside no fato de que as escolas em alternância no campo, independente das regulamentações estatais, têm um engajamento concreto com a formação dos povos rurais e é, sem sombra de dúvida, melhor estudar numa escola em alternância do que na escola pública rural, mas ao mesmo tempo elas têm que enfrentar problemas recorrentes ligados ao seu financiamento, autonomia e reconhecimento. Na verdade, isso reflete o atraso das políticas públicas brasileiras no reconhecimento de uma educação pública de qualidade para o campo. Mesmo que se reconheçam as aberturas recentes em direção à construção de uma educação para o campo (LDB-DOBEC), a demora das políticas governamentais em afirmar projetos adequados traz consequências graves para a formação dos jovens no mundo rural. E assim de certa forma, as CEFFAs ficam reféns dessa situação. Deste modo, problemas como os citados acima ainda serão grandes desafios a serem encarados pelas políticas de educação para o campo no Brasil, por culpa dos anos de esquecimento ou da falta de projetos concretos de educação nas zonas rurais do país. Segundo o depoimento da Diretora da Escola “A”, “os contratos com ONGs têm duração limitada e, a cada ano, após o vencimento de contrato, é necessário correr atrás de uma nova renovação, o que nem sempre é conseguido”. Assim ocorre que todo final de ano tem-se um enorme preocupação com o ano subsequente, pois não se sabe qual das entidades financiadoras quer ou tem condições de continuar a financiar a continuidade da escola. 322 O nosso entendimento é que as escolas em alternância não podem atender perpetuamente a situações emergenciais como tem sido até então e que é necessário pensar em condições normais de funcionalidade, dentro de um contexto propício, para que haja uma educação própria e apropriada aos povos do campo. De qualquer maneira, a partir dos dados obtidos através dos diretores das três escolas sobre a média de evasão. Ela é diferenciada nas três instituições: na escola “A” seria de aproximadamente de 1% e 5%; na escolar “B” quase não existe evasão, afirmando o seu diretor que estaria em torno de menos de 1%; já na escola “C” a evasão sobe para mais de 20% (vinte por cento). Neste caso é visível que as duas escolas em alternância conseguem manter os seus alunos durante o período de estudos, sendo esses dados muito importantes para a nossa pesquisa: no caso da escola “A”, mesmo em condições econômicas difíceis (alimentação, lazer, sala de aula etc.) os alunos permanecem. Na escola “B” que possui por assim dizer, condições ideais de funcionamento, praticamente não há evasão; e que a evasão na escola pública rural escola “C”, seria uma realidade perceptível nas escolas públicas rurais da maior parte do Brasil, como já constatado por alguns estudiosos do tema como já citados anteriormente na problemática (Mansano; Aroyo & Caldart, 2004). No caso, da escola “B”, a matrícula é feita a partir do processo de triagem dos alunos por conta da enorme demanda de filhos de agricultores desejosos de entrar na escola. Essa triagem leva em consideração principalmente o fato dos alunos serem filhos ou filhas de agricultores da região e terem terra para reproduzir as experiências aprendidas na escola. Na escola “C”, há os mesmos problemas da maior parte das escolas rurais espalhadas por todo o Brasil e o número alto de evasão reforça a ideia do ensino descontextualizado como um dos principais indicadores do êxodo rural. 323 324 CAPÍTULO XI 325 11. Conclusão da tese sobre a educação e o desenvolvimento no meio rural brasileiro. As conclusões dos procedimentos pedagógicos das escolas analisadas nesta pesquisa estão na “maneira” como os fenômenos educativos de cada escola em particular se colocam para a “educação e o desenvolvimento” das comunidades envolvidas em seu entorno. No primeiro momento deste capítulo conclusivo, apresentamos as comparações, as similaridades, as diferenças, e os desafios dentro de uma intenção analítica sempre de estruturar e contribuir de maneira eficaz com o desenvolvimento da educação para o meio rural como um todo. A partir desses procedimentos, espera-se compreender as diferenças existentes no perfil do caminhar pedagógico de cada uma dessas instituições de ensino e assim poder “concluir e contribuir” de forma consequente e dinâmica oferecendo sugestões e pistas científicas capazes de alavancar a educação no meio rural numa perspectiva emancipatória para todos os povos que vivem no campo brasileiro. 11.1– Conclusões sobre os sujeitos da pesquisa e as categorias da pesquisa A escola “A” assume claramente uma compreensão freiriana da educação. Isso concorre para que apareçam categorias diferenciadas daquelas encontradas nas outras duas escolas. Por exemplo, a sua relação com os “assentamentos regionais” implica em compreender como esse fenômeno atravessa sua práxis educativa. Outra categoria é a de “gênero”, que aparece muito forte dentro de uma inflexão educativa no interior dessa escola. Então, além de nos preocuparmos com categorias similares nas escolas em alternância no campo, como “desenvolvimento, identidade e sustentabilidade local”, no caso desta escola, passamos a nos preocupar também com a maneira como as relações de “gênero” com os “assentamentos rurais” permeiam a vida dos alunos e das comunidades envolvidas. Para a escola “B”, a formação de “empresários rurais” desenvolvida a partir do conceito de “protagonismo juvenil” nos leva a diferenças importantes, tanto no que concerne à sustentabilidade local quanto nas perspectivas futuras dos alunos. Nesse caso, buscou-se identificar como essa proposta desenvolveu-se no universo do alunado 326 e na comunidade do entorno dessa escola. Isso ocorre principalmente a partir das análises sobre desenvolvimento e sustentabilidade. Os diretores das escolas “A” e “B” têm desafios e diferenças importantes a serem compreendidas, tanto do ponto de vista pedagógico quanto das práticas em contexto, considerando que toda investigação pode sugerir novas hipóteses. Aqui, a partir do contexto dos discursos dos diretores de cada escola, as diferenças em termos de desafios e compreensão pedagógica apareceram. Nesse sentido, temos categorias similares entre as duas, tais como: “alternância, sustentabilidade e o desenvolvimento comunitário local”, com reflexões diferentes acerca da mesma problemática. Em se tratando do “acesso a terra” e do “financiamento e da autonomia das escolas”, as dificuldades encontradas por uma escola não são as mesmas encontradas pela outra, como, por exemplo, as dificuldades apresentadas em subcategoria, como a de “contratação de professores/monitores” pela a escola “A” e as tentativas de adquirir terra para os alunos pela escola “B”. Isso nos leva necessariamente a perceber diferenças fundamentais que, por sua vez, indicam novas percepções dos problemas e dos desafios de cada escola em particular. Assim, seria necessário garantir uma outra dinâmica para a análise dos dados entre esses diferentes atores. No caso da escola “C”, deixamos de lado as categorias ligadas especificamente ao “desenvolvimento sustentável e à alternância no campo”, por se tratar de uma escola pública tradicional na zona rural, com currículos, metodologias, horários e calendários iguais aos da zona urbana, como é rotineiro e também é caso observado. O acento se coloca, por sua vez, na análise da “identidade do ser rural” entre os seus alunos, sendo essa questão, a nosso ver, o aspecto mais implicante das representações que esses alunos fazem de si e do seu contexto. Tal categoria, emblemática a priori, se mostrou o elemento mais prospectivo cientificamente para esta amostragem, pois permitiu estabelecer contrapontos, compreensões e comparações entre as vivências dos alunos das escolas em regime de alternância. No caso da diretora e dos professores da escola “C”, o problema se situou na sua “motivação, nas condições de trabalho e na ambiguidade” entre escola pública do campo e escola pública urbana. As respostas dadas para as questões formuladas a partir dessas categorias nos permitiu compreender o que denunciam os diversos autores sobre “esquecimento”, “distanciamento” e as “ambiguidades” que cercam a escola formal 327 pública de educação básica do campo no Brasil. No mais, as categorias de análise seguem o mesmo perfil. I – Conclusões sobre as similaridades e diferenças das escolas em alternância em estudo (escola “A” e a escola “B”). Mesmo sendo duas escolas partidárias da pedagogia da alternância (uma EFA e uma CFR) essa pesquisa conseguiu enumerar a partir do resultado das análises um conjunto de procedimentos metodológicos capazes de estruturar comparações, de perceber similaridades, de avaliar diferenças e compreender as dificuldades e os desafios que cercam esses dois modelos educativos em curso. A relação das duas escolas no que se refere ao engajamento no desenvolvimento sustentável e na produção agrícola das famílias e das comunidades dos filhos dos agricultores envolvidos no entorno da escola: Este aspecto revela a maneira diferenciada no tratamento das questões ligadas estritamente ao desenvolvimento agrícola e econômico das comunidades tocadas pelos diversos processos educativos das duas escolas: No processo de ensino-aprendizagem da escola “A” os “manejos” se estruturam sempre na base do conceito de agroecologia, (cap. VII, p.179-180) sem a presença de fertilizantes químicos, herbicidas entre outros defensivos agrícolas. Sendo assim, a sustentabilidade das famílias é colocada a longo prazo, no intuito de resolver, a dependência de defensivos agrícolas em relação ao mercado, a questão da segurança alimentar e a ecologia, com forte engajamento no sentido de garantir a preservação dos biomas e ecossistemas locais tais como florestas, matas ciliares e rios que cortam a propriedade dos alunos. Este é um elemento de importante comparação entre essas duas escolas e lhes diferenciam sobre maneira já que para escola “B” o processo produtivo se estrutura na base das experimentações químicas (plantação, fertilização, crescimento das plantas etc.), sem as quais, segundo os monitores, (cap. VII, p. 247) não é possível garantir o aumento da produtividade nem sustentabilidade nas propriedades das famílias dos agricultores que dela participam. (análises:) Mesmo se as questões ambientais são ventiladas nos discursos entre monitores, mas à importância dada a produtividade imediata nas propriedades das famílias 328 das comunidades que a escola influencia nos leva a concluir que existe uma contradição inerente entre os manejos normalmente químicos e a questão ambiental e ecológica. 1.1 – Relação com a identidade e cultura local esse elemento é considerado pela escola “A” como fundamental no processo de ensino-aprendizagem e tomando em toda sua multidimensionalidade com base nos aspectos da cultura local e mesmo do folclore regional em seus ensinamentos. Esse elemento se constitui num dos eixos da sua pedagogia, e são multiplicados nas comunidades dos alunos em formas de músicas, contos e danças, tanto durante o período de festas populares, quanto nos momentos de animações em reunião de trabalho comunitário. Na escola “B” o aspecto ligado à identidade e cultura local não faz parte das suas prioridades, esse fato pode ser creditado ao seu pragmatismo ligado à produção agrícola. 1.2– O engajamento na problematização história-crítica e social é um forte instrumento na reflexão pedagógica, o que faz com que a escola “A” produza diferenças positivas fundamentais em relação às escolas “B e C” como, por exemplo, nas questões de “gênero, identidade e cultura, a sustentabilidade agrícola e o acesso a terra” que os alunos dessa escola compreendem de maneira diferenciada, passando essas questões a se identificar com suas próprias origens e com a problemática inerente a elas. Para a tese, o reforço identitário e cultural deve vir de maneira transversal e está ligado às relações que os professores/monitores de escolas rurais (em alternância ou não) estabelecem com o campo, no sentido de que reforçam a dignidade e autoestima dos povos, o respeito aos seus modos de vida e cultura, além, é claro, de ser o mais forte componente contra o êxodo rural. 1.3 – A relação com o “ser do campo”. As duas escolas se colocam de maneira bastante consequente na reafirmação dos jovens, isso foi visto tanto com alunos quanto com ex-alunos e também com as famílias nas comunidades. Os sentimentos de idílicos e de denegação são aos poucos vencidos e revistos durante o processo de formação. A nossa conclusão é a de que esses elementos são fortalecidos à medida que os conteúdos ligados a agricultura no processo de ensino não vão deixando espaço para a baixo autoestima normalmente presente entre os jovens de origem rural no Brasil, ou seja: 329 jovem rural + conteúdo urbano = baixo autoestima; jovem rural + conteúdo rural = auto estima elevada. (analises, cap. VII p. 179,180) 1.4 – A relação com a alternância adquire a mesma similaridade e o mesmo entendimento nas duas escolas em estudo. Tanto alunos, quanto os pais de alunos e exalunos invocam esse aspecto de maneira extremamente positiva. Entre os argumentos mais citados está o que a alternância permite a aplicação imediata dos conhecimentos nas propriedades familiares e ao jovem de permanecer junto com a sua família no processo de desenvolvimento da propriedade familiar e comunitário, se tornando o regime de alternância o responsável pelo aumento dos ganhos econômicos que ora começavam a chegar junto as suas famílias; 1.5 – Formação de professores/monitores: Os professores e monitores que atuam na escola “B” possuem formação superior completa em Pedagogia e em áreas ligadas a agricultura como Agronomia e Biologia e ainda uma situação salarial professores/monitores da escola “A” e melhor em também em comparação com os comparação com os estabelecimentos tradicionais rurais de ensino. Esse aspecto justifica o forte engajamento deles com a escola “B” e a relação de continuidade observada entre eles. Na escola “A” os professores e monitores são cedidos normalmente por contratos temporários (REDA/PST/DIREC) ou assalariados pago por alguma ONG. Vivem em situação de instabilidade financeira e sem formação coerente e adequada para atuar na escola em que trabalham gerando uma situação de descontinuidade no processo de ensino. 1.6 – A questão do “acesso à terra”. A relação com as ocupações de terras pelos pais de alunos é algo muito forte e presente no caminhar dos educandos da escola “A” que em sua maioria são filhos de assentados rurais (MST-MLT). Este elemento revela, por sua vez, a problemática da concentração fundiária no Brasil. Para a escola “B” essa questão é de direito privado e a escola não problematiza essa questão entre alunos e as comunidades. 330 II - Categorias determinantes da comparação entre as duas escolas em alternância Quatro categorias são determinantes para a comparação do caminhar pedagógico das escolas “A e B”: a questão de “gênero”; a identidade e cultura; a sustentabilidade e o acesso à terra: A importância da questão de “gênero” revela a importância dessa problemática e como é possível também modificar as relações entre gêneros no processo de aprendizagem. Isso acontece, pois na escola “A” não há separações nos afazeres domésticos e do campo e esse elemento é também parte das discussões em sala de aula; a identidade e a cultura são tomadas em sua totalidade abrindo-se espaço para as manifestações regionais, como visto, como a capoeira, a dança etc. Já na questão de “sustentabilidade e do acesso à terra” essas duas categorias revelam de um lado o pragmatismo filosófico da escola “B” e a importância dada a uma produção agrícola imediata. No caso do “acesso à terra” revela-se uma diferença muito grande de como essas duas escolas encaram esta problemática, já que a maioria dos seus alunos não terá terra para dar continuidade as suas aprendizagens. No caso da escola “B” a situação é mais gritante, pois os pais dos alunos tem uma quantidade muito pequena de terra, em média 5 hectares, praticamente toda ocupada com plantações. Enfim, num país abundante de terra como o Brasil, a educação do campo, também parece caminhar para o seu limite, no que concerne à disponibilidade de terras para os que estão chegando e neste sentido contribui para o fracasso no que concerne a evitar o êxodo rural. III – Conclusões sobre a escola pública rural (escola “C”) A pedagogia utilizada na escola pública rural (escola C) em estudo é profundamente inapropriada para o meio rural em que ela se encontra. Neste sentido, ela demonstra o que acontece com as escolas rurais públicas brasileiras em geral, principalmente nas questões ligadas ao desenvolvimento e à emancipação dos envolvidos (alunos, pais comunidade). 331 Dentre os problemas enumerados por esta pesquisa e que nos permite concluir estão: Forte infiltração da cultura urbana e desvalorização da cultura rural e local; (análises, cap. VII, p. 198 - 199) Distanciamento da escola com a realidade das comunidades presente na escola, ou seja, as experiências diárias dos alunos e das famílias dos mesmos não são levadas em consideração, havendo um transplante do ensino urbano para o meio rural. Não há diferença entre a cidade e campo e o enraizamento dos seus currículos em conformidade com o contexto e a realidade dos seus alunos. Esse enraizamento permitiria à escola mergulhar na problemática comunitária e refletir sobre as possibilidades palpáveis quanto à solução dos problemas ligados ao desenvolvimento local e evitaria a reprodução de modelos importados, normalmente urbanos, além de frear a alta taxa de evasão e o êxodo rural muito comum entre alunos dessa escola. Os professores têm uma formação essencialmente urbana e a maioria deles são leigos, com curso superior incompleto ou ainda cursando alguma universidade da região; (analises, cap. VII, 196). O currículo e o projeto político pedagógico são inadequados ao contexto. Construídos segundo as concepções de técnicos dos governos federal, estadual e municipal, percebe-se claramente a falta de debate existente entre o corpo docente e a direção da escola no redimensionamento curricular para as questões de interesse local; Os livros didáticos existentes nessa escola são os mesmos normalmente formulados no centro-sul do país e distribuídos de maneira generalizada nas outras regiões tornando a ação didático-pedagógica um apêndice da realidade e da cultura urbana do centro-sul, desvinculada, portanto, das questões tanto regionais, quanto locais; (analises, cap. VII. 198, 199) O material didático e de apoio escolar para professores e alunos sofre dificuldade extremas de produção e compreensão local; (análises) Heterogeneidade de idade (enorme discrepância idade/série na sala pesquisada); Na escola existe uma grande quantidade de salas multisseriadas; 332 O calendário escolar é completamente dissonante na sazonalidade entre o ensino e produção agrícola das comunidades de seu entorno, o que eleva substancialmente a evasão escolar durante os períodos de colheitas; (análises, 198,199) o tempo/transporte é um obstáculo excludente maior, pois nem o aluno fica na lavoura ou na comunidade nem fica na escola: nos períodos de chuva, quando o transporte quebra, ou na época da colheita, a escola fica praticamente vazia segundo a diretora; As instalações físicas são precárias, salas inadequadas; ambiente sanitário inadequado; prédio mal construído e com péssimas condições de equalização e higiene. Apesar de estar localizado na zona rural e com amplo espaço para a construção e ampliação, o prédio escolar é completamente fechado, com dificuldades de ventilação e equalização adequada. Toda a área agrícola ao lado da escola não é aproveitada enquanto espaço educativo e de formação técnicoexperimental agrícola; (foto, p.164, f.7) A área de lazer estava, à época da pesquisa, completamente abandonada. 3.1 – Primeiro, a educação pública oferecida pela escola “C” aos alunos das comunidades rurais onde ela está instalada não ultrapassa os limites necessários para empreender as novas variáveis em jogo na educação do campo (LDB/96; DOBEC/02), ou seja, não quebra o paradigma atual de educação rural brasileira, principalmente no tocante a problemáticas essenciais para o desenvolvimento de uma educação emancipatória, não leva em consideração questões como: contextualização histórica, econômica e social das comunidades envolvidas, nem a apropriação de elementos básicos de instrumentalização dos educandos para convivência “no e para” o “meio rural” numa perspectiva do seu desenvolvimento. Enfim, o ensino não aponta para projetos futuros de transformação e engajamento na vida da juventude, não qualifica profissionalmente e a estrutura curricular, de um modo geral, se estrutura numa educação bancária (Freire,1974) sem nenhuma relação com as comunidades locais. 333 IV – Proposição da Tese por uma educação do campo de qualidade no meio rural da Bahia e do Brasil A nossa pesquisa demonstra que uma educação que se ambiciona do campo e para o campo necessitar estar lastreada de seis pilares fundamentais, tais como: os projetos políticos-pedagógicos e a grade curricular, que devem estar alicerçados a sustentabilidade comunitária e ao desenvolvimento comunitário; a problematização histórica e a construção da identidade e da cultura dos que ali vivem; a um ensino instrumentalizado, interdisciplinar e complexo; a educação pela pesquisa; as disciplinas dos fenômenos ditos de globalização; a formação dos professoresmonitores, compreendida principalmente no engajamento desses com o campo; a importância do financiamento das escolas para o campo; e por fim o calendário e a sazonalidade agrícola da qual fazem parte as escolas do campo. 4.1 - Os projetos políticos pedagógicos e a grade curricular nas escolas do campo devem ter como base o contexto da comunidade da qual fazem parte. O ensino e a aprendizagem devem invocar a série de especificidades e variáveis inerentes às comunidades presentes nas escolas, essas variáveis se submentem às duas mais importantes categorias: a do desenvolvimento e da educação: O desenvolvimento requer que a construção curricular e os projetos políticos pedagógicos estejam alicerçados com as demandas locais e inovações. Portanto, a estrutura disciplinar se coloca na tentativa de abarcar a totalidade e a complexidade das dificuldades inerentes numa determinada comunidade rural. Essa estrutura curricular deve se alimentar principalmente das demandas agrícolas, econômicas e ambientais em sua totalidade e complexidade; No plano da educação, todos os elementos que fazem parte da comunidade local são colocados na mesa, no processo de ensino aprendizagem. Assim, vale dizer que o ensino deve estar lastreado tanto das histórias locais (histórias de vida etc.), dos costumes, da cultura e até mesmo dos aspectos de ordem religiosa. Todos esses elementos são fundamentais, pois, na medida em que eles são abordados de forma positiva, transformam-se em um poderoso instrumento de fortalecimento e empoderamento da identidade das comunidades envolvidas. 4.2 - Um aprendizado complexo: A totalidade da comunidade deve ser levada em consideração no processo de ensino e aprendizagem, não havendo separação entre 334 o todo e as partes, a vida social e a vida comunitária, o campo e a cidade; a técnica e o saber, o mundo local e o mundo exterior; a plantação, o ambiente e ecologia. 4.3 - A instrumentalização, e a inovação técnica devem ser inseridas a partir de um conjunto de especificidades não ligadas apenas à produtividade agrícola, mas a uma preocupação mais horizontalizada, quer dizer, levando-se em consideração também aspectos da saúde e higiene, do desenvolvimento agrícola e do meio ambiente. A instrumentalização e a inovação técnica são essenciais nas escolas do meio rural, pois o jovem rural não se depara apenas, pelo que se observou no seu dia a dia, com um tipo de problemática ou com questões estritamente agrícolas, mas com uma multidimensionalidade de problemas e desafios que vão desde à maneira de como utilizar e otimizar os recursos naturais (para a saúde, ecologia, alimentação etc.); à administração básica da sua propriedade assim como, na utilização e implementação das máquinas e utensílios agrícolas até a compreensão das formas de créditos e de economia. Assim, a educação do campo deve ser compreendida como um todo em seus desafios no que se requer para isso, um ensino instrumentalizado e inovação técnica, construído de maneira interdisciplinar e complexa para ser capaz de conduzir os alunos e suas famílias a congregarem o seu contexto, sem separações dos diversos desafios e problemáticas que os cercam, unindo elementos universais e particulares, garantindo respostas eficientes para cada tipo de situação demandada. 4.4 - Tornar a educação pela pesquisa um elemento fundamental, o que já acontece nas escolas em regime de alternância. Esse é a nosso ver, um dos grandes desafios a serem enfrentados pelas escolas do meio rural na Bahia e no Brasil. O propósito é de garantir a adequação necessária ao seu funcionamento, a pesquisa se fazendo presente e necessária nas comunidades e nas propriedades dos agricultores. Neste sentido, a educação pela pesquisa seria a nosso ver, a mola propulsora para a construção de novas descobertas capazes de encontrar soluções tanto técnicas, quanto científicas para as comunidades que lhes circundam, invertendo a lógica maléfica da educação bancária num campo onde os horizontes estão a perder de vistas. A pesquisa no campo traz as inquietações das propriedades para serem divididas com os monitores e professores dessas escolas, sendo que ali ganham compreensões mais sistemáticas e retornam a serviço das comunidades locais. 335 4.5 - Disciplinas acerca dos fenômenos ditos de globalização no contexto local: Essas devem estar compreendidas nas disciplinas gerais das escolas: Matemática, Geografia, História, Biologia, Química, Português e Computação. Na escola “B” pesquisada, mesmo estas disciplinas ganharam contornos inovadores, citando, como exemplo, a Matemática que é ensinada enquanto medida de espaçamento das plantas, da medição na construção de casas e barcaças, entre outros campos de medidas na área rural; a Química e a Biologia, que são discutidas em seu campo morfológico, como nascimento e cultivo das plantas e tipos de adubação. Portanto, mesmo com disciplinas consideradas mais gerais nas escolas do meio rural, será necessário fazer necessariamente um outro recorte na direção das questões que englobam os contextos locais. 4.6 - Amarrar o regime de alternância ou sazonalidade para o campo: Este elemento pode ser compreendido a partir de duas variáveis: a que opta pela pedagogia da alternância enquanto metodologia alternativa e já experimentada, ou a que optaria por outro modelo tradicional de ensino para o campo, mesmo em escola pública rural, mas que respeitasse minimamente os momentos de plantio e de colheita (sazonalidades) dos agricultores familiares. E o exemplo para essa conclusão, vem da escola “C”, na qual, na época de colheitas do “cravo”, a evasão fica evidente, o que a diretora retrucava, colocando que “não se pode impedir que os alunos de ajudar seus pais nestes períodos” Esse exemplo pode perfeitamente ser generalizado para outras escolas do meio rural brasileiro. 4.7 - A questão da formação de professores/monitores para atuar na escola do campo é provavelmente o elemento mais importante dentre os vários elementos já citados e deve partir principalmente do compromisso e do engajamento dos que desejam atuar nas escolas do campo. Os professores e monitores para as escolas do meio rural devem ser escolhidos segundo o seu grau de interesse para atuar nas escolas do meio rural. Esses profissionais devem ter em mente o seu engajamento junto às populações desfavorecidas. Neste sentido, o respeito ao seu modo de vida, a suas falas, a suas histórias deve ser considerado como elemento propulsor do processo de ensino aprendizagem e não o contrario. 336 Garantir que esse profissionais tenham a competência técnica necessária ao trabalho no meio rural, ou seja, que eles correspondem ao perfil e que eles foram formados adequadamente para o exercício do ser professor/monitor para o meio rural. Garantir que as condições do exercício de trabalho desses profissionais devam ser adequadas levando-se em consideração todos os elementos de ordem logística. Neste sentido, a educação para o meio rural deve romper com a imagem de que os profissionais de ensino que para lá se dirigem, o fazem por falta de opção. Esse caso é bastante corriqueiro na educação do campo brasileira e também foi observado, na escola “A”, onde três professores contratados por essa escola, sem uma análise prévia de compromisso e engajamento, pediram demissão depois de concluírem o curso de Pedagogia. Na persistência dessa situação, a educação do campo ficará completamente comprometida. 4.8 - O Estado enquanto provedor e financiador da educação para o campo: tanto dos CEFFAs, quanto de escolas tradicionais para o meio rural. A pesquisa mostrou que as dificuldades em obter financiamentos perenes para as escolas em alternância levamnas a um verdadeiro quebra-cabeça entre os seus dirigentes ao final de cada ano letivo. Por exemplo, a escola “A” que, no final de 2008, teve que reduzir o número de alunos de uma turma, já que não possuía condições de financiamento para sustentá-la. O reconhecimento e financiamento do Estado estão fundamentados na Constituição Federal/88, segundo a qual “estudar é um direito de todos”, na Lei de Diretrizes e Bases para Educação (LDB/96) e no recorte das Diretrizes Operacionais de Base para a Educação do Campo (DOBEC/02). A nossa proposição é a de que o Estado deve financiar de maneira completa as escolas em alternância. E no caso das escolas tradicionais do meio rural que atuam em pequenas comunidades familiares, este deve junto com as municipalidades locais, fazer avançar os princípios de educação de qualidade para o meio rural como estes descritos acima para que futuramente tenhamos uma educação inclusiva que busca o caminho do desenvolvimento a e superação das diversas formas de pobreza recorrentes nas comunidades rurais familiares no Brasil. 337 O investimento financeiro e na formação adequada dos professores e monitores ; currículos que respeitam as demandas locais; escolas com estrutura adequada, enfim. Consideramos que o investimento correto nas escolas do campo é crucial para que funcionem de maneira adequada. No caso dos CEFFAS o Estado deve garantir a liberdade e autonomia inerentes à suas propostas pedagógicas. Essa autonomia é importante na medida que essas escolas procurem identificar as suas especificidadese os contextos que lhes são próprios e apropriados, para assim poderem construir a sua proposta pedagógica, mediando esses elementos de especificidade contextuais e estruturando a dinâmica dos saberes que deverão ser veiculados nos currículos e programas pedagógicos por cada instituição em seus locais específicos. 4.9 – O papel das municipalidades na educação do campo: Silva (2002) afirma que com a eleição de alguns prefeitos comprometidos eleitos em 2002, apesar de algumas iniciativas, não houve nenhum resultado mais significativo no sentido de melhorar a qualidade da educação oferecida aos homens, mulheres e crianças do meio rural brasileiro. No desenvolvimento da nossa pesquisa ficou evidente o descaso das municipalidades de Ilhéus, Valença e Tancredo Neves com a educação oferecida ao meio rural de suas municipalidades, o que pode ser visto nos capítulos XIII e IX. Uma das razões para o descaso está na falta de compromisso e político e de competência técnica dos gestores municipais com essas populações. Na verdade, pensar e estruturar a educação para o meio rural nos municípios dá trabalho e é um grande desafio... Portanto, como vimos, a maioria das Secretarias de Educação municipais prefere fazer “pouco caso” com a educação que deve ser oferecida para o meio rural, se limitando a fazer o transporte dos estudantes da zona rural para as escolas da cidade e vice-versa, o que contraria a Resolução CNE/CEB nº 2 de 28 de abril de 2008, que sugere que o “transporte seja feito intra-campo”. O transporte do campo para cidade é um meio muito proveitoso para os gestores municipais, já que no custo do transporte também é possível embutir o custo do clientelismo político e da corrupção. A nossa proposta é que as Secretarias Municipais de Educação criem suas próprias “diretorias de educação para o campo”. Essas diretorias teriam o papel de pensar e promover o debate político, técnico e administrativo sobre qual o tipo de 338 educação que deve ser oferecida às suas zonas rurais de cada município em particular e assim se encarregar de pensar os casos específicos de cada município junto aos setores interessados, ONGs, Sindicatos Rurais e movimentos sociais engajados. Partir deste pressuposto é também partir do pressuposto que cada município tem suas especificidades agrícolas, econômicas e ambientais e que os currículos devem ser pensados a partir de cada especificida de concreta. V – Conclusão sobre a pedagogia do oprimido de Freire e o novo conceito da pedagogia do protagonismo juvenil A importância da pedagogia do « oprimido e dos temas geradores » calcada no pensamento de Paulo Freire (1974) reside na importância dada a problematização das questões de ordem histórica e social, o ser no mundo (o oprimido, sem terra, assentado) se compreendendo e se transformando a partir da crítica « histórico-social » rigorosa. Essa postura é fundamental quando se fala de agricultura familiar, de concentração histórica da terra e da denegação do homem e da mulher rural no Brasil. Ela é igualmente importante também, para se refletir sobre o papel da cultura no redirecionamento da postura que o homem não urbano precisa empreender sobre si mesmo, sobre o seu contexto e sobre as dimensões que a cultura local se interessa. No entanto, ao focar a sua pedagogia nos aspectos citados acima e assumir claramente uma definição política em relação a todos esses temas ligados a questão rural. O que podemos afirmar, na pedagogia da escola “ A” os elementos liados aos signos abstratos e a técnica e que precisam ser trabalhados de maneira adequada não são, e acabam por serem negligenciados. O que faz com que o aluno tenha uma postura extremamente crítico-política em relação ao mundo, mas uma atitude pouco ligada com a abstração e instrumentalização técnica no que concerne o seu desenvolvimento profissional e o desenvolvimento técnico da sua comunidade. Já o conceito de « protagonismo juvenil » enquanto proposta pedagógica da escola « B », ao contrário, ao dar ênfase exagerada principalmente aos aspectos técnicos acaba por negligenciar todos os outros temas (histórico-críticos e sociais) igualmente importantes na formação para uma reflexão educacional adequada dos filhos e filhas de camponeses que lá estudam. 339 VI - Enfim a defesa da tese: para que a educação do campo tenha sucesso A inadequação e ineficiência do ensino rural tradicional brasileiro (caso da escola “C”) precisam ceder espaço a propostas pedagógicas alternativas para o meio rural, como essas das duas outras escolas observadas neste estudo e na busca do que anseiam as pequenas comunidades rurais brasileiras. Ainda que muito precise ser feito no redimensionamento pedagógico e filosófico das escolas do campo, para nossa tese é possível afirmar que a pedagogia da alternância essa praticada hoje pelas CEFFAs, (o caso das escolas “A e B”) são sem dúvida, as que mais se aproximam de uma pedagogia apropriada e adaptada, para o meio rural brasileiro. Essa alternativa é viável na medida em que consegue-se articular saberes universais, pedagógicos e práticos, valoriza-se os espaços da prática social e da reflexão sobre essa prática e do diálogo com a cultura acumulada historicamente; problematizase a realidade social e suas contradições, instrumentaliza-se o educando e articula-se essa mesma realidade com a cultura local “para e pela” construção do currículo numa perspectiva sempre de desenvolvimento e emancipação dos sujeitos envolvidos. Desta forma, surge um novo entendimento entre o educando, a sua realidade histórico-crítica e social, o que o leva a compreender as novas dimensões em que ele se encontra situado no mundo. Isso só pode acontecer se não houver negligência nos aspectos pedagógicos sobre a importância da problematização da história, da cultura dos indivíduos e das suas comunidades, estruturada na sua prática social e da instrumentalização adequada para que esses possam atuar a partir daí com novas posturas, novos compromissos e novas atitudes diante do mundo, o que exige dos professores/monitores e das escolas do campo muito esforço, estudo, experimentações, coragem para inovar, arriscar e assumir desafios. 340 Referências Bibliográficas Abrão, J. C. (1986). O Educador a Caminho da Roça: notas introdutórias para a conceituação de educação rural. Campo Grande: Imprensa Universitária. Amado, J. (2010). O Menino Grapiúna. São Paulo: Companhia das Letras. Ambrósio, T. (2002). 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