Baixar PDF
Transcrição
Baixar PDF
OS CLÁSSICOS DA FILOSOFIA NO CONTEXTO DA QUÍMICA Marcos A. P. Ribeiro 3 (PQ)*, Lisandro Bacelar da Silva Bejarano 2 (PQ). *[email protected] 1 (PG), Nélson R. R. Núcleo de Pesquisas em Ensino de Química (IQ-UFBA), sala 216, Barão de Geremoabo, 147, 1,2 Ondina, Salvador. 40170-115, BA – Brasil. Investigações em Filosofia, química e currículo (UESB), José Moreira Sobrinho, s/n, 3 Jequiezinho, Jequié, 45206510, BA- Brasil. Resumo Este trabalho analisa a relação da química e do ensino da química com os clássicos da filosofia. Para tanto toma como objeto, de um lado a filosofia da química e de outro a literatura em educação química, para assim analisar quais clássicos são mais utilizados e como este campo de pesquisa poderia ser mais bem delineado em trabalhos futuros da educação química. Nossos resultados apontam de um lado uma variedade de autores pensados pela filosofia da química, de outro, aponta Bachelard como o autor mais integrado em quase sua hegemonia no ensino de química, sendo esta integração, entretanto, não como um autêntico filósofo da química. Desta forma, este trabalho aponta para uma área de investigação ainda em seus inícios e imensamente promissora na educação química, sobretudo quando propoêm-se o alargamento da racionalidade técnica, empoderamento dos professores e humanização como fins da formação em ciencia e química. Palavras chaves: clássicos da filosofia, química, filosofia da química, ensino de química Introdução A didática da ciencia e da química propõe como objetivo e finalidade do currículo o empoderamento e a humanização alargada. A comunidade dos educadores química no Brasil propõe a superação a superação da racionalidade técnica. Estes objetivos, obviamente, defendem, mesmo que implicitamente um valor acentuado às ciencias críticas, sobretudo a Filosofia. Qual então é a relação entre os clássicos da filosofia e a química, e também o seu ensino. Entender como esta relação é feita deve fornececer pistas importantes para pensar estratégicas no sentido dos objetivos acima relatados. De um lado a relação e filosofia tem sido pensada pela emergente disciplina filosofia da química, de outra o campo da educação química, no Brasil, tem sido pensada desde anos 1980. Logo, é possível, justificável e necessário pensar como e quais autores clássicos da filosofia tem sido integrados neste debate, objetivo que nos propomos. Ressaltamos, entretanto, que se trata de uma primeira aproximação panorâmica e literária do campo. Analisa tanto a literatura em filosofia da química como em educação química. Os clássicos da filosofia e a química Redescobrindo os clássicos da filosofia tem sido um programa de pesquisa na filosofia da química. Muitas aproximações têm sido feita, até mesmo Rousseau tem sido aproximado da química (BENSAUDE-VINCENT; BERNARDI, 1999). Os mais analisados e com cujo sistema filosófico tem sido estabelecido um diálogo estão na tabela abaixo, neste trabalho problematizamos mais a obra de Bachelard. Um dos clássicos mais importante que tem sido retomado é Kant. O legado de Kant na química (LEQUAN, 2000; CARRIER, 2001; VASCONI, 1996; VAN BRAKEL, 2006) foi importante para o negligenciamento no contexto da filosofia e da filosofia da ciência. Na obra Metaphysical foundations of natural science (KANT, 1786), Kant considerava a química uma arte sistemática, que possui apenas generalizações empíricas e intuições a priori e não pode ser matematizada, sendo uma ciência a posteriori e, portanto, não propriamente uma ciência. Em Opus postumus, traduzido para o inglês em 1992, Kant, após contato com a obra de Lavoisier, faz uma releitura e toma a química como uma ciência própria. Van Brakel (2012) analisa que esse legado ainda está presente na literatura atual. Por exemplo, Mainzer (1999, p. 137) defende que a “química esta envolvida em uma crescente metodologia matemática… assim, química é uma ciência no sentido kantiano”. Rutenberg (2009) discute a epistemologia dualista construída por Kant e utilizada por Paneth (1962) quanto aos problemas dos observáveis, do atomismo e do realismo. Earley (2006) analisa a influência de Prigogine na mecânica estatística e aproxima uma metafísica de processos em química. Lombardi (2012), como descrito acima, tem retomado a obra de Prigogine para defender um pluralismo ontológico na química. Percebemos pela tabela que o clássico mais integrado ao ensino tem sido Gaston Bachelard e, recentemente, Peirce, Cassirer e Wittegtein. Os demais clássicos ainda tem pouca contribuição. Tabela 1 Clássicos da filosofia e problemas relacionados à química Clássico Leibniz Cassirrer Kant Aristóteles Peirce Bachelard Filosofia da química no mundo A química tem uma línguafilosófica semelhante ao sistema de Leibniz (Restrepo e Villaveces, 2012) A química tem hum pensamento simbólico (Schummer, 1997) Epistemologia dualista kantiana na química na dualidade do conceito de elemento usado em química (Paneth, 1962) Negligenciamento da química: consideração da química como ciência imprópria (Van Brakel, 2006) Uma vista aristotélica da química, como alternativa a vista corpuscular, baseado no entendimento fenomenológico termodinânimo derivado da ideia aristotélica de “duas opiniões contraditórias do misto”. (Needham, 2002) Influência da química em seu sistema filosófico Representações icónicas, pragmatismo e lógica relacional (Seibert, 2001) Sob influência da química Bachelard cria uma noção dinâmica de substância. (Nordmann, 2006). O conceito de fenomenotecnia e a compreensão do real como um processo de realização é uma influência da química (Bensaude-Vincent, 2009) Ensino da química no Brasil Não integrado Representação estrutural (Araujo-neto, 2009) Não integrado Não integrado Representações químicas (Gois, 2007) Diversos artigos, teses, monografias. Principais temas: Obstáculos epistemológicos, erro, história recorrente, Whitehead Hegel Duhem Polanyi Wittgenstei n Platão Fonte: As enzimas devem ser entendidas nos seus contextos e processos (Stein, 2004) Realismo estrutural de processos mais adequado a química (Earley, 2006, 2008) Utilizou a química para ilustrar a dialética da quantidade e qualidade. A filosofia da química poderia ser uma parte substâncial da filosofia da natureza de Hegel. (Van Brakel, 1999) Uma vista aristotélica da química, como alternativa à vista corpuscular e baseado no entendimento fenomenológico termodinâmico derivado da ideia aristotélica de “duas opiniões contraditórias do misto”. (Needham, 2002) O conhecimento tácito na química (Nye, 1993, 2002, 2011) Química como um jogo de linguagem (Cerruti, 1998) A química moderna aproxima-se da química platónica (Visintainer, 1998) Não integrado Não integrado Não integrado Um artigo Uma tese de doutorado (Gois, 2012) Não integrado elaboração própria Entretanto, pelo debate da filosofia da química identificamos que Aristóteles tem sido estudado principalmente para pensar os tipos da química e utilizado por Needham (2000, 2002a, 2002b) para construir uma ontologia da química macroscópica. Nesses trabalhos também tem sido muito referido Duhem, principalmente sua obra Le mixte et la combinaison chimique (1902), traduzida pelo próprio Needham para o inglês somente em 2002. Nela buscase uma ontologia para a química macroscópica em alternativa ao corpuscularismo. Needham usa os conceitos de modalidade, mistura e potencialidade, empregados por Aristóteles e incorporados por Duhem, para construir, como descrito, uma ontologia de objetos contínuos e a macroscópica. Essa tem sido objeto de um trabalho muito específico de Needham. Seibert (2001) considera que a química esteve no coração do trabalho filosófico de Peirce, nomeadamente, na forma de pragmatismo, pensamento relacional, teoria dos grafos e a semiótica. Peirce trabalhou com a química analítica qualitativa desde os oito anos de idade e teve contato com a química orgânica já em seu início. No final do século XIX e início do século XX, houve intenso desenvolvimento da química orgânica; os objetos já não podiam ser determinados e instanciados simplesmente pela composição, peso e conectividade, sendo considerado necessário o desenvolvimento de novas formas de modelos e representações. Impunha-se a criação de uma grafia própria, de uma semiótica própria para a química. Para Seibert (2001), corroborado por Schummer (2003), isto influenciou o trabalho de Peirce. Restrepo e Villaveces (2012) afirmam que a química é uma linguagem filosófica, que seu sistema é muito próximo do sistema filosófico de Leibniz. Van Brakel (1999) considera que a filosofia da química poderia ser uma parte considerável da filosofia natural de Hegel. Segundo Bensaude-Vincent (2005), a química também foi importante na concepção de teorias como sistema de classificação de fenômenos em Duhem e no realismo de Meyerson. Bensaude-Vincent (2005) considera que a tradição francesa foi a única corrente filosófica que não negligenciou a química e que influenciou a filosofia bachelardiana, com o conceito de fenomenotecnia e no entendimento do real como realização. Nordmann (2006) vai mais longe e considera que a química influenciou Bachelard a introduzir uma concepção química e dinâmica de substância, vislumbrando a possibilidade da uma metaquímica. Segundo Nordmann (2006, p. 352), a metaquímica, indiferente ao problema da existência e da fundação última da realidade. concerne a processos pelos quais a realidade é transformada. A metafísica específica as condições de possibilidade do conhecimento objetivo, e a metaquímica informa e traça a prática científica. Assim, entendendo a noção de substância no que considera como uma metaquímica, Bachelard (1978) visualiza que nas sínteses realizadas pelos químicos, a teoria ou projetos teóricos exercem um papel de mobilizador das construções de novas substâncias, multiplicador de realizações, ocorrendo uma espécie de {...} inversão do realismo; a imensa realização levada a cabo pela Química moderna caminha em contracorrente do estudo realista. A descrição de substâncias obtidas por síntese é de ora em diante uma descrição normativa, metodológica, claramente crítica. Legitima um racionalismo químico.( BACHELARD, 1978, p.33). Que tipos de transformações produz uma representação durável do mundo que pode ser pensado como uma representação? Para Nordmann (2006, p. 354), o sentido da metafísica é construir uma imagem objetiva e cognocível do mundo, a causa formal e final da investigação científica. A metaquímica consiste em fazer da estabilidade sintética das representações a causa material e eficiente da investigação científica. Earley (2006, 2011), Stein (2004) e Harré (2010, 2011) têm aproximado a química da filosofia de Leibiniz e Whitehead. Segundo Earley, a ontologia tradicional trabalhava com o par substância/atributos e, com a influência atual, há uma passagem para uma ontologia fundada no dinamismo mais próximo da filosofia de Whitehead. Esse debate tem avançado e Earley (2011) propõe um realismo estrutural processual como mais condizente com o contexto da química, inclusive como uma visão de mundo mais própria para integrar os currículos de química. Após esta análise faz-se necessário pensar mais detalhadamente a contribuição de Gaston Bachelard. Identificamos aqui um problema muito pertinente: existe uma necessidade de repensar a obra deste autor – que inclui livros essencialmente dedicados a análises epistemológicas da Química, como O Materialismo Racional e Pluralismo Coerente da Química Moderna – como um autêntico filósofo da química. A especificidade da química, os clássicos da filosofia, o ensino de química e uma releitura da obra de Bachelard Uma primera características é reconhecer a química por uma filosofia pluralista: contextualidade e níveis. Para Bachelard (1990, p. 74), “conhece-se claramente aquilo que se conhece grosseiramente. Se se pretende conhecer distintamente, o conhecimento pluraliza-se, o núcleo unitário do conceito explode”. Defende Laszlo (2012, [não paginado]): nós (professores) devemos fazer nossos alunos entender a exuberância de pluralidade de ponto de vistas das explicações químicas, não como confusão, mas ajudá-los a penetrar na complexidade. Muitas heurísticas coexistem. Nenhuma é privilegiada em função última. Elas são muitas formas de ajudar-nos ao longo do curso. Todo o currículo de química deveria ser pensado pelos diversos níveis e contextos químicos. A Ciência Química impõe uma agenda de discussão no âmbito dos programas de formação inicial e continuada de docentes de Química que é própria da Filosofia da Química, o que inclui uma ampla variedade de eixos temáticos que vão desde o estatuto das leis e teorias químicas a tópicos metodológicos como experimentação, instrumentação e síntese química (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013). A química não é um campo disciplinar homogêneo e o pluralismo é inerente e constitutivo (RIBEIRO; COSTA PEREIRA, 2012). Na filosofia da química, o pluralismo é um tema recorrente (LOMBARDI; LABARCA, 2005; LOMBARDI, 2012; LOMBARDI; LLORED, 2012; LASZLO, 2012; BACHELARD, 2009). “Falar de química como um campo unificado obscurece a pluralidade de métodos e tradições históricas e objetivos científicos deste campo, bem como as variedades de projetos interdisciplinares que os químicos trabalham.” (SCHUMMER, 1998). A química é uma ciência impura (BENSAUDEVINCENT;SIMON, 2008). A polissemia dos conceitos e das representações químicas é uma característica do pluralismo da linguagem química (LASZLO, 2012). Para além do fato de a teoria em que se baseia a conceitualização da química não ser unificada1, essa ciência tem sido reiteradamente caracterizada por vários tipos de pluralismo. Reconhecendo que a ciência contemporânea de um modo geral e mais especificamente a química contemporânea não podem ser compreendidas por uma única filosofia em particular, Bachelard (1978) introduz a noção de perfis epistemológicos, sugerindo que somente uma análise filosófica espectral – no seio da qual se inserem como bandas do espectro nocional perspectivas filosóficas como o realismo, racionalismo clássico, racionalismo complexo e racionalismo dialético – poderia determinar o modo pelo qual essas diversas filosofias reagem ao nível de um determinado conhecimento objetivo. Para caracterizar a filosofia das ciências seremos então conduzidos a um pluralismo filosófico, o único capaz de informar os elementos tão diversos da experiência e da teoria, elementos estes tão diferentes no seu grau de maturidade filosófica. Definiremos a filosofia das ciências como uma filosofia dispersa, como uma filosofia distribuída. Inversamente, o pensamento científico surgir-nos-á como um método de dispersão bem ordenado, como um método de análise aprofundada, para os diversos filosofemas maciçamente agrupados nos sistemas filosóficos. {...} Os diferentes problemas do pensamento científico deveriam pois receber diferentes coeficientes filosóficos. Em particular, o grau de realismo e de racionalismo não seria o mesmo para todas as noções. É pois ao nível de cada noção que, em nossa opinião, se colocariam as tarefas precisas da filosofia das ciências. 1 As duas grandes teorias são a Teoria de Ligação de Valência e a Teoria das Orbitais Moleculares, com bases totalmente diferentes e de que derivam conceitos também muito diferentes, que na generalidade dos compêndios de Química aparecem indiferenciados, situação que contribui para a grande dificuldade de aprendizagem da Química. Cada hipótese, cada problema, cada experiência, cada equação reclamaria sua filosofia. (BACHELARD, 1978, p. 8-9). Esse pluralismo constitutivo (RIBEIRO;COSTA PEREIRA, 2012), ontológico (BACHELARD, 2009), metodológico (SCHUMMER, 1997, 2006), epistemológico (BACHELARD, 2009) e axiológico (KOVAC, 2002) mobiliza variados atores e contextos (indústria, economia, academia); variados estilos de pensamento (razão prática e teórica, heurístico, diagramático, relacional e processual); variados recursos cognitivos como classificação (HARRÉ, 2005), visualização (GILBERT, 2009), intuição (TALANQUER, 2005), imaginação (HOFFMANN, 2003); variados valores pessoais e culturais: estéticos, inovativos, criativos, utilitários; e uma fenomenologia inscrita em complexas relações ontológicas, envolvendo a categorização dos tipos naturais, relacionalidade, recursividade, lógica relacional e mereológica e uma relação constitutiva com os instrumentos de medida. Segundo Bachelard (2009, p. 7): o pensamento químico oscila entre um pluralismo e a redução da pluralidade. Assim, primeiro se vê que a química não hesita em multiplicar as substâncias elementares, em considerar compostos heterogêneos, surgidos muitas vezes do acaso experimental; esse é o primeiro tempo da descoberta. Depois, uma espécie de escrúpulo intervém. Sente-se a necessidade de um princípio de coerência, tanto para compreender as propriedades das substâncias compostas como para captar o verdadeiro teor das substâncias elementares. A fusão desses dois movimentos é orientada por um pensamento tácito. Contudo, mesmo tácito, é um pensamento imensamente eficaz e basta um princípio ou um conceito para trazer sistematicidade para o misto confuso da pluralidade e heterogeneidade da química. Uma segunda característica da química é sua filosofia intercultural: comunidade e ação. Reconhecer a química por sua capacidade de intervenção e pela interculturalidade evitaria uma ambiguidade evidenciada em comum dos professores. O currículo escrito foca na dimensão gnoseológica; a imagem da química foca na fala dos professores na dimensão praxiológica. Harré e Rutemberg (2012) defendem que a filosofia de Van Brakel é uma filosofia intercultural. Não existe a possibilidade de construção de categorias a priori, de um ponto de vista transcendental. A posição do eu é trocada pelo nós. O sujeito epistêmico, como em Habermas, dá-se, contrariamente a Kant, na história, na práxis. Por isso, a práxis é uma categoria central na química e na pedagogia química. As categorias químicas são negociadas à luz da práxis, à luz de sua história. E assim, o diálogo, a linguagem e a comunicação têm uma importância central na epistemologia da química e, consequentemente, no seu ensino. Por exemplo, Van Brakel faz isso quando defende a não existência de tipos naturais da química e se opõe ao essencialismo químico, como também insere outra categoria central na filosofia da química, que é sua historicidade. Nos trabalhos de Schummer (2006, 1998, 1999) e, mais propriamente, em Bachelard (1990), está explícita a filosofia da química dentro de uma perspectiva materialista e ativa. Bachelard (1990) descreve a química como a ciência da matéria caracterizada por materialismo ordenado e materialismo erudito. Frequentemente, esse materialismo está inscrito em um paradoxo: a investigação da unidade e o trabalho frequente de diferenciação, unidade que se ordena pela complexidade. Para Schummer (1998, p. 149), ciências materiais, como a química, […] não têm ambição para generalizações metafísicas. Entretanto, procuram por um sistema sutilmente sofisticado de conceitos materiais, de forma a descrever, tanto quanto possível, a diversidade de fenômenos materiais com precisão e sem ambiguidade. Um conjunto de conceitos materiais é um sistema de classificação, se cada conceito permite, pelo menos, uma discriminação binária de fenómenos materiais e todos os conceitos são logicamente independentes uns dos outros. Essa classificação não é (nem pode ser) dedutivamente inferida a partir da “essência desmaterializada da matéria”. Em vez disso, ele é (e deve ser) desenvolvida a partir de alguns conceitos de material primitivo passo a passo através da diferenciação de conceito e introdução, e por meio da verificação empírica para o seu poder real discriminação. É pelo número acrescido de substância que se institui a ordem. “Não é, como queria o tradicional espírito filosófico, do lado da unidade da matéria que se encontram as raízes da coerência das doutrinas. É do lado da complexidade ordenada.” (BACHELARD, 1990, p.43). Na química, a unidade é, a posteriori, terminal. Para Bachelard (1990), esta é a característica do intermaterialismo, a essência da própria química. Mais ainda, o materialismo bachelardiano é uma filosofia implicada numa atitude de confronto entre sujeito e objeto; ação esta sempre mediada pela resistência que a matéria oferece ao sujeito que a enfrenta no cotidiano do trabalho científico. A superação de obstáculos epistemológicos diversos permeia a vontade, o desejo de descoberta da sua intimidade, da construção do conhecimento. Nesse embate, o químico, mais do que qualquer outro cientista constata que uma observação passiva, neutra é incapaz de possibilitar o entendimento da realidade material ( BULCÃO, 2009). Um desdobramento natural da pedagogia química é dialetizar a prática de ensino e pesquisa em química. Parentes (1990) defende como um dos desdobramentos da epistemologia bachelardiana dialetizar a relação professor/aluno, química/sociedade. Outro desdobramento da nossa tese, e também defendido por Parentes, é introduzir a polêmica principalmente mediante as problematizações das tensões químicas: parte/todo, micro/macro, modelo/realidade, ciência/técnica, academia/indústria, ideográfico/nomotético, estático/dinâmico, monismo/pluralismo. Uma terceira característica da química é sua epistemologia histórica: narrativa e aproximações. O carácter histórico, ideográfico da química tem sido reiterado na filosofia da química e está explícito nos trabalhos de Lamża (2010), Näpinen (2007), Rein (2004), Earley (2004, 2012) e Bensaude-Vincent (2009). A historicidade e uma perspectiva sintética, top down, devem ser inseridas no currículo da química. Tradicionalmente, analisa-se por uma perspectiva Bottom Up. Ao analisar o estilo do pensamento químico, Bensaude-Vincent (2009) identifica que o pensamento químico caracteriza-se por criar o seu objeto e por uma supremacia da relação sobre a substância e da representação sobre a realidade. A química realiza uma epistemologia do aprender em uma práxis de laboratório2, não existindo uma identidade trans-histórica. Suas teorias são 2 Embora haja laboratórios em quase todas as ciências, segundo Bensaud-Vincent (2009) o laboratório é uma invenção química. narrativas de experimentos, são representações construídas para dar sentido à prática científica, apresentando um ponto de vista pragmático. Segundo Bachelard (2009) e Nordmann (2006), a metaquímica orienta a prática científica. Não trabalha com categorias a priori e sim com uma razão prática, a posteriori. Kovac (2002) defende que a química utiliza-se de uma razão prática. A química é uma ciência histórica, ideográfica. Lamża (2010), ainda, defende que a química pode ser uma ciência pan-ideográfica, que ela deve ser entendida dentro de sua própria narrativa histórica e que os químicos contam história enquanto trabalham nos laboratórios (HOFFMANN, 1993). Logo, no ensino não se trata de introduzir a história da química, dado que a própria química tem um carácter histórico. A epistemologia da química é caracterizada por um “conhecer através do fazer” (BENSAUDE-VINCENT, 2009). As práticas em química não são feitas para testar hipóteses teóricas; como já denunciava Caldin (1961), químicos não usam a mediação dos instrumentos para entender o fenómeno natural, como fazem os físicos. Para Hoffmann (1993, 2007), os químicos fazem história enquanto criam moléculas, e as teorias são narrativas de experimentos. O fazer químico se constitui numa ação racional de criação de objetos e fenômenos. É claro para Bachelard que o conhecimento químico contemporâneo, diferentemente do senso comum, é compreendido no seio de uma ontologia técnica. Mesmo a pureza de uma substância é percebida como um processo de construção técnica. “Já que a substância está dada, naturalmente dada, não é pura. Será pura quando a técnica a tiver purificado.” (BACHELARD, 1990, p.99). O químico, ao entrar no laboratório, não se satisfaz com o real dado, com o fenômeno natural, uma vez que a objetividade é construída mediante o emprego de técnicas e métodos racionais por parte do cientista que, rejeitando as primeiras intuições derivadas da observação da natureza, se envolve num mundo recomeçado, fenomenotecnicamente estruturado, denominado real científico (BACHELARD, 1990; LOPES, 1996; BERTOCHE, 2006; BULCÃO, 2009). A ideia de construção do objeto científico consiste na afirmação de que não há nem sujeito nem objeto previamente constituídos, sendo ambos construídos ao longo do processo cognoscente. Para Bachelard, a ciência de hoje não tem mais como objetivo a descoberta de fenômenos ou a descrição de leis; sua meta é formular organizações racionais que sejam tecnicamente realizáveis. A ideia de construção rompeu com a noção de dado, mostrando que na ciência contemporânea o que se chamava dado já é um resultado obtido através do diálogo entre razão e experiência (BULCÃO, 2009, p.23). Mesmo o processo de observação, longe de neutro, é pleno de reflexividade ao mesmo tempo em que transcende o imediato e reconstrói o real, ao seguir planos teóricos de observação. Daí o caráter polêmico do conhecimento químico contemporâneo, que para Bachelard se torna ainda mais claro quando se busca entender a relevância dos instrumentos no interior da observação e experimentação científica, dada a necessidade de que “o fenômeno seja triado, filtrado, depurado, fundido no molde dos instrumentos, produzido no plano dos instrumentos. Ora, os instrumentos não são outra coisa senão teorias materializadas. Isso decorre dos fenômenos que levam consigo por todos os lados a marca teórica.” (BACHELARD, 1978, p.96). Uma quarta característica da química e sua filosofia relacionista: diagramaticidade e relacionalidade. Uma filosofia relacionista problematiza os limites do essencialismo na química e tensões como estático/dinâmico, substância/processos, relação/substância. Bensaude-Vincent defende que uma das características da química é a supremacia da representação sobre a realidade e da relação sobre a substância. Claramente, a autora defende uma filosofia relacionista para a química. Também Bachelard coloca que as propriedades químicas são relacionais. Uma substância química, para Bachelard, só ganha sentido no conjunto de todas as outras. A essa tarefa mental Bachelard dá o nome de coordenação e comunidade. Essa ideia é muito próxima da noção epistemológica defendida por alguns filósofos da química, favoráveis a uma epistemologia química de relações internas e ao conhecimento químico como uma rede de relações (SCHUMMER, 1998; BERNAL; DAZA, 2010; SOUKUP, 2005). Bernal e Daza (2010) e Soukup (2005) explicitam a química como uma ciência das relações peculiares. Em um caminho semelhante, Schummer (1998) considera que o conhecimento químico pode ser entendido logicamente como uma rede de relações, em que os nós da rede são as substâncias puras, empiricamente determinadas, e as conexões são as diversas relações e processos químicos. O núcleo químico da química pode ser descrito nos seguintes passos: Primeiro, definem-se propriedades materiais como o núcleo da investigação em química. E analisando a lógica das propriedades materiais encontra-se um sistema de relações na qual as substâncias são os nodos e as interconexões são as diversas relações das substâncias. A identificação das substâncias básicas oferece dificuldades e são feitas instrumentalmente. A organização das substâncias constitui um sistema de classificação que se estabelece por similaridade; as classificações necessitam de uma teoria fundante, que ainda não existe em química, contudo ela possui um alto poder de previsão e sistematização. A linguagem de signo estabelece um novo nível de sistematização e predição teórica. O núcleo químico da química é então considerado a investigação química das propriedades materiais, os sistemas em rede da classificação e a linguagem simbólica. (SCHUMMER, 1998, p. 150). Para Schummer (1998), a química lida com propriedades materiais, objetos empíricos. Propriedades materiais são relacionais. O estudo das propriedades requer um conhecimento sistemático em nível experimental; uma clarificação das espécies químicas e das propriedades materiais dependentes da instrumentação química; uma série de sistemas de classificação das espécies químicas, que não são passíveis de inferências dedutivas, e uma fundamentação apoiada na teoria das fórmulas estruturais. Essa descrição do conhecimento químico aproxima-o de uma estrutura reticular que lhe confere um alto poder de sistematicidade e previsibilidade. Cabe agora propor uma releitura da obra de Bachelard, o clássico da filosofia mais integrado no ensino de química no Brasil. A principal interprete da obra de Bachelard tem sido Alice Lopes em trabalhos datados da década de 1990. Após os seus trabalhos, pouco foi produzido, o que estranha o vazio literário. Em artigo dedicado a Bachelard, a autora coloca que Argumento em defesa do filósofo da desilusão no processo de construção do conhecimento a partir da perspectiva da valorização do erro e da retificação, em detrimento do processo de validação do conhecimento científico. Posteriormente, analiso a perspectiva descontinuísta de seu pensamento, ou seja, a noção de recorrência historica, o conceito de obstáculo epistemológico, de racionalismos setoriais e a filosofia do não. A autora considera que “uma das contribuições fundamentais da epistemologia histórica de Bachelard é a primazia do erro e a verificação em detrimento da verdade na construção do conhecimento científico. ( Lopes, P.33). Em toda sua obra, apesar da autora reconhecer a importância da química na construção do autor, não mostra espeficidade da química. A integração de Bachelard, na nossa compreensão, tem sido feita como na tabela abaixo. Tabela 3: Bachelard como um filósofo da química Filosofia e epistemologia Pedagogia Especificidade química Foco principal da leitura Antiga Proposta complementar Racionalismo setorial, Pluralismo, relacionista, materialismo racional, epistemologia histórica, descontinuidade Erro, retificação, obstáculos Pluralismo, Dialética, epistemológicos, polemica, relacionismo, aproximações vigilância epistemológica, perfil epistemológico Não problematiza Classificações, fenomenotecnia, relacionalidade, comunidade e coordenação, Fonte: elaboração própria Conclusões Uma primeira conclusão do nosso trabalho é a forma ainda incipiente como os clássicos tem sido pensado no ensino de química, preponderantemente a obra de Bachelard. Assim, nosso trabalho aponta para a urgência em se pesquisar tal tema. Aponta também, como um obstáculo em se atingir os objetivos pensados para educação em ciências e química de humanização, empoderamento dos professores e alargamento da racionalidade técnica. Em grande parte, as discussões epistemológicas nos cursos de formação inicial ou continuada de professores de Química são abordadas fundamentando-se em filósofos – como Kuhn, Lakatos, Popper e Feyerabend – cujas obras foram construídas tendo a Física como modelo de ciência natural (LABARCA; BEJARANO; EICHLER, 2013). E mesmo quando utilizado como referência, a obra de Bachelard tem sido feita a partir da sua contribuição para a física. Assim, o nosso trabalho aponta para a necessidade urgente, de pensar a obra de Bachelard como um autêntico filósofo da química. Isso iria dar mais foco a temáticas mais específicas e constitutivas da práxis química, como as classificações e a instrumentação. REFERÊNCIAS ARAUJO-NETO, W. N. (2009). Formas de uso da noção de representação estrutural no ensino superior de química. Trabalho de conclusão de curso (tese, Doutorado). USP, São Paulo. BACHELARD, G. (1976). Filosofia do novo espírito científico. Portugal: presencça. BACHELARD, G. A epistemologia. Tradução de Fátima Lourenço Godinho e Mário Carmino Oliveira. Lisboa: Edições 70, 2006. BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BACHELARD, G. Filosofia do não: filosofia do novo espírito científico; O novo espírito científico; A poética do espaço. In: Pessanha, J.A. M. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. BACHELARD, G. O materialismo racional. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1990. BACHELARD, G. O pluralismo coerente da química moderna. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. BENSAUDE-VINCENT, B.; BERNARDI, B. (eds.). (1999). Jean-jacques rousseau et la chimie.[S.l, s.d]. BENSAUDE-VINCENT. (2009). The chemists’ style of thinking. Ber.wissenschaftsgesch, [S.l], n.32, p.365–378. BENSAUDE-VINCENT.(2005). Chemistry in the french tradition of philosophy of science: duhem, meyerson, metzger and bachelard. Studies in history and philosophy of science, [S.l], v.36, n.4, p.627–848. BENSAUDE-VINCENT.; SIMON, J. (2008). Chemistry: the impure science. London, uk: imperial college press. BENSAUDE-VINCENT.; STENGERS, I. (1992). História da química. Instituto Piaget: Lisboa. BERNAL, A.; DAZA, E. E. (2010). On the epistemological and ontological status of chemical relations. HYLE-International Journal for Philosophy of Chemistry, Berlin, v.2, n.2. BERTOCHE, G. A objetividade da ciência. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2006. BULCÃO, M. O racionalismo da ciência contemporânea: introdução ao pensamento de Gaston Bachelard. Aparecida: Ideias & Letras, 2009. CERRUTI, L. (1998). Chemicals as instruments. HYLE--International Journal for Philosophy of Chemistry, Berlin, v.4, n.1, p.39-61 EARLEY, j. (2006a). Some philosophical influences on Ilya Prigogine’s statistical mechanics. Foundations of Chemistry. New York, v.8, n.3, p.271-283 EARLEY, j. (2008). Ontologically significant aggregation: process structural realism (psr). In: M. Weber &W. Desmond (eds.). The handbook of whiteheadian process thought.Frankfurt: Ontos Verlag, v.2 GILBERT, J. K. (2009). Visualization: a metacognitive skill. In science and science education. In:______. Visualization in Science Education. Holanda: Springer. Gois, J. (2007). Desenvolvimento de um ambiente virtual para estudo sobre representacão estrutural em química. (Dissertação de mestrado), Universidade de São Paulo, São Paulo. Gois, J. (2012). A significação de representações química e a filosofia de Wittgenstein. (Tese de Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo. HARRÉ, R. (2010). Causal concepts in chemical vernaculars. Foundations of Chemistry. New York, v.12, p.101-115. HARRÉ, R. (2011). Do explanation formats in elementary chemistry depend on agent causality? Foundations of Chemistry.New York, v.13, p.187–200. KANT, I. (1902). Gesammelte Schriften. Berlin: Academy of Science. LABARCA,M.; BEJARANO,N.; EICHLER,M.L. Química e filosofia: rumo a uma frutífera contribuição. Química Nova, 2013.v.xy, n.00, p.1-11. Laszlo (2012). (2012). Towards teaching chemistry as a language. Science & Education, New York, online first, 23 mar. LEQUAN, M. (2000). La chimie selon kant. Paris: Presses Universitaires de France. LOPES, A.R.C. Bachelard: o filósofo da desilusão. Cadernos Catarinenses de Ensino de Física, v.13, n.3, p.248-273, 1996. Mainzer (1999). (1999). Computational Models and Virtual Reality. New Perspectives of Research in Chemistry. HYLE - An International Journal for the Philosophy of Chemistry, Berlin, v.5, p.135-144. NEEDHAM, P. (2000). What is water? Analysis, [S.l], v.60, p.13-21. NEEDHAM, P. (2002).Pierre duhem mixture and chemical combination, and related essays. Dordrecht: Kluwer. NORDMANN, A. (2006). From metaphysics to metachemistry. In: Baird, Davis; Scerri, Eric; McIntyre, Lee (eds.). Philosophy of Chemistry: synthesis of a new discipline. Boston Studies in the Philosophy of Science, Dordrecht: Springer. NYE, M. J. (2002). Michael Polanyi. HYLE-International Journal for Philosophy of Chemistry, Berlin, v.8, n.2, p.123-12. NYE, M. J. (2011). Michael Polanyi and his generation: origins of the social construction of science. Chicago: University of Chicago Press. PANETH, F. A. (1962). The epistemological status of the concept of element.British journal for the philosophy of science, Oxford, v.13, n.1, p.144–60. RESTREPO, G.; VILLAVECES, J. (2012a).Mathematical Thinking in Chemistry.Foundations of Chemistry. New York, v.18, n. 1, p. 3-22. RUTENBERG (2009). Paneth, Kant, and he Philosophy of Chemistry. Foundations of Chemistry, New York, v.11, n.2. RUTHEMBERG, K. (2012). Philosophing chemistry. In: INTERNATIONAL SOCIETY FOR THE PHILOSOPHY OF CHEMISTRY - SUMMER SYMPOSIUM. 07-10 ago. 2012. Leuven, Bélgica. SCHUMMER, J. (1998). The chemical core of Chemistry: A conceptual approach. HYLE, International Journal for Philosophy of Chemistry, v.4, n.1, p.129–162. SEIBERT, C. (2001). Charley peirce’s head start in chemistry. Foundations of Chemistry. New York, v. 3, n.3, p.201-206. SOUKUP, R. W. (2005). Historical aspects of the chemical bond: chemical relationality versus physical objectivity. Monatshefte für chemie, v.136. STEIN, R. (2004). Towards a process philosophy of Chemistry. HYLE – International Journal for Philosophy of Chemistry, Berlin, v.10, n.1, p.522. TALANQUER, v. (2005). El Químico Intuitivo. Educación Química, México, v.16, n.4, p. 114-122, VAN BRAKEL, J. (1999). On the neglect of the philosophy of Chemistry. Foundations of Chemistry. New York, v.1, p.111–174. VAN BRAKEL, J. (2006). Kant’s legacy for the philosophy of Chemistry. In: BAIRD, D., et al. (Eds.) Philosophy of Chemistry, Springer: The Netherlands. VASCONI, P. (1996). Kant and Lavoisier’s Chemistry. In: MOSINI, V. (ed.). Philosophers in the laboratory. Rome: Euroma. VISINTAINER, J. R. (1998). An Infinity of Different Triangle Types: On the Chemistry of Plato's Timaeus. HYLE - An International Journal for the Philosophy of Chemistry, Berlin, v.4, n. 2, p.117-128.