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© Casa de Santo Antônio
DICIONÁRIO DA RELIGIOSIDADE POPULAR
cultura e religião no Brasil
Conceituação, pesquisa e texto: Franciscus Henricus van der Poel
Sobre o autor: João das Neves
Introdução: Carlos Rodrigues Brandão
Apresentação: Lélia Coelho Frota
Pela Província Santa Cruz: Francisco Carvalho Neto, ofm
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Index Consultoria em Informação e Serviços Ltda.
Poel, Francisco van der
P744
Dicionário da religiosidade popular : cultura
e religião no Brasil / Francisco van der Poel (Frei Chico).—
Curitiba : Nossa Cultura, 2013.
1152 p. : il.
ISBN 978-85-858066-102-6
1. Religiosidade popular – Brasil – Dicionários. 2. Cultura
popular – Brasil – Dicionários. I. Frei Chico. II. Título.
CDD (20. ed.) 248.2
CDU ( 2.ed.) 248.2
IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Produção Gráfica, Revisão e Arte-finalização: Posicom
IMPRESSÃO:
GRÁFICA E EDITORA POSIGRAF S.A.
EDITORA NOSSA CULTURA LTDA
Editores: Samuel Ramos Lago
Paulo Fernando Ferrari Lago
Editor-assistente: Claudio Kobachuk
Marketing: Renata Sklaski
Comercial: Rosângela Britto
Rua Grã Nicco, 113 - Bloco 3 - 5º andar
Mossunguê – Curitiba – PR – Brasil
Tel: (41) 3019-0108 – Fax: (41) 3019-0108
http://www.nossacultura.com.br
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Dicionário da Religiosidade Popular
COLABORADORES
PARCEIRA PRINCIPAL:
REVISÃO DA BIBLIOGRAFIA FINAL:
Maria Lira Marques Borges, artesã de Araçuaí (MG)
Elenice Rêgo dos Santos Cunha, assessora do Sistema de
Bibliotecas da PUCMG, em Belo Horizonte (MG)
ORIENTAÇÃO GERAL:
TRADUÇÕES DO LATIM, FRANCÊS E
Lélia Coelho Frota, da Associação Brasileira de Críticos de
CASTELHANO:
Arte, ABCA/AICA
Hamilton Francischetti e Leilah M.T. Atem Francischetti
PESQUISA DA RELIGIOSIDADE POPULAR
BRASILEIRA ATUAL:
Alunos do Centro Ecumênico de Atualização Litúrgico-Musical (CELMU) em Agudos (SP), entre 1994 a 2009
REVISÃO GERAL DO CONTEÚDO:
Carlos Rodrigues Brandão, doutor em ciências sociais pela
Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em antropologia do simbolismo pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP)
REVISÃO TÉCNICA DE 1422 VERBETES
AFRO-BRASILEIROS (2003):
Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade
Cândido Mendes/ RJ
Diretora: Rosana Heringer, doutora em sociologia pelo
IUPERJ
Coordenação: Osmundo Pinho, doutor em ciências sociais pela UNICAMP e pesquisador do Centro de Estudos
Afro-Brasileiros da UCAM-RJ
Línguas africanas: Robson Cruz, doutorando em antropologia e sociologia no IFCS/UFRJ
Tráfico e escravidão: Mariana Pinho Candido, PhD Candidate in African History a York University, Toronto
Religiões afro-brasileiras: Claude Lepine, livre-docente,
pós-doutora pelo CNRS, doutora em antropologia social pela
USP e professora aposentada/voluntária na UNESP/Marília
Religiões afro-brasileiras: Rita de Cássia Amaral, doutora
e pós-doutora em antropologia social pela USP
História da África: Carlos Franco Liberato de Souza, mestre em estudos de Ásia e África - Especialização em África
- no Centro de Estúdios de Ásia e África de El Colégio de
México e professor do Departamento de História da UFS
DESENHO DAS CAPITULARES:
Maria Lira Marques Borges
FOTOGRAFIA:
Francisco van der Poel, “FX” (269 fotos)
Vilmar Oliveira (67 fotos)
Deniston Diamantino (21)
Acervo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
(CNFCP) 15 fotografias:
Francisco Moreira da Costa (14) e José Moreira Frade (1)
Geraldo Lara (1)
Henrique Cristiano Matos (1)
Júnia Bertolini (1)
Marconi Pereira Rocha (1)
CAPA:
Cruzeiro dos martírios; a direita pretos velhos e cabocla
Jurema; a esquerda Kelma, Wilma, e Eliane, caboclinhas de
congados Belo Horizonte (MG)
SECRETARIA:
Manoel Nascimento Nunes Neto, licenciado em Letras;
Reginaldo Barroso, Alisson Rodrigues de Jesus e Leonardo
Antônio Andrade Alves
REVISÃO LÍNGUA PORTUGUESA:
Hamilton Francischetti, Léia Elias Coelho,
Wesley Pioest e Tania Growoski
Dicionário da Religiosidade Popular
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CONSULTORIA
de Aquino (ISTA), em Belo Horizonte (MG); frei Celso
Márcio Teixeira OFM, doutor em teologia e historiador;
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE
Centro de Documentação e Disseminação de Informações, frei Olavo Timmers OFM (†1990), cronista
Belo Horizonte (MG)
ATUALIZAÇÃO DE ESTATÍSTICAS:
ARTE E ETNOGRAFIA:
MEDICINA POPULAR:
Dr. João Amilcar Salgado, diretor do Centro de Memória
Lélia Coelho Frota, da Associação Brasileira de Críticos de da Medicina de Minas Gerais (UFMG)
Arte, ABCA/AICA
CINEMA:
MÚSICA:
Manoel Nascimento Nunes Neto, graduado em Cinema Adhemar Campos Filho (†1997), pesquisador da música
barroca mineira em Prados (MG) e compositor; frei Joel
pela FAAP - SP
Postma OFM, diplomado em música sacra em Haia (HoECONOMIA:
landa); padre Jocy Neves Rodrigues (†2007) pesquisador do
Leopoldo Thiesen, doutor em filosofia pela Universidade Departamento de Assuntos Culturais (DAC) da UniversiEstadual de Campinas (UNICAMP/SP)
dade Federal do Maranhão (UFMA)
FILOLOGIA E ANTROPOLOGIA CULTURAL:
PSICOLOGIA:
José Manuel Pedrosa, professor de teoria da literatura e críDr. Carlos Alberto Corrêa Salles, presidente do Instituto
tica literária da Universidade de Alcalá (Madrid)
C.G. Jung, Belo Horizonte (MG); Dr. José Jorge de Morais
Zacharias, psicólogo, músico e estudioso do candomblé queFOLCLORE:
to, São Paulo (SP)
Henrique Weitzel, mestre em letras, de Juiz de Fora (MG),
Jupira Duffles Barreto, diplomada na Escola Nacional de
Música, no Rio de Janeiro (RJ), Sebastião Rocha, educa- TEOLOGIA:
dor popular, antropólogo e presidente do Centro Popular
de Cultura e Desenvolvimento, em Belo Horizonte (MG), Frei Bernardino Leers OFM, doutor em teologia; frei
Zanoni Neves, mestre em antropologia social pela Unicamp Luís Fernando Peixoto OFM, doutor em Teologia; padre
(SP) e Domingos Diniz, professor na escola Guignard de Alberto Antoniazzi, doutor em teologia
Belas Artes, em Belo Horizonte (MG), todos confrades
da Comissão Mineira de Folclore (CMFL). Maria Aliete REFLEXÃO CRÍTICA:
Farinho Galhoz, investigadora do Centro de Tradições Populares Portuguesas “Prof. Manuel Viegas Guerreiro”, da Geralda Soares, pedagoga e indigenista de Araçuaí (MG);
Universidade de Lisboa
Rodolfo A. Cascão Inácio, educador popular, diretor de
teatro popular e ecologista, de Belo Horizonte (MG); Rui
HISTÓRIA:
Anastácio, comunicador social, violeiro e ecologista no proMaria da Conceição de Rezende, diretora artística do Museu jeto “Saúde e Alegria”, no Pará; Vilmar Oliveira e Tadeu
da Arquidiocese de Mariana (MG), e Dr. Celso Falabella
Martins, promotores culturais no vale do Jequitinhonha;
de Figueiredo Castro, administrador de empresas, ambos
confrades do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Reginaldo Veloso, educador popular, liturgista, composiGerais (IHGMG); frater Henrique Cristiano Mattos, tor e poeta, Recife (PE); dom José Belisário da Silva OFM,
doutor em história e professor no Instituto Santo Tomás São Luís (MA)
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Dicionário da Religiosidade Popular
AGRADECIMENTOS
Aos colaboradores e conselheiros mencionados.
Ao saudoso dom Luciano Mendes de Almeida pela sintonia
e pelo incentivo pessoal.
Ao povo do Vale do Jequitinhonha (MG), aos hansenianos
da Colônia de Santa Isabel em Betim MG e a numerosos Ao professor Samuel Ramos Lago, e a Giem Guimarães da
representantes dos diversos cultos afro-brasileiros, pela con- Editora Posigraf que acreditaram neste dicionário diferente.
fiança em mim depositada.
À editora Nossa Cultura que assumiu generosamente a ediAos meus superiores franciscanos: dom Diogo Reesink, ção, publicação e distribuição do Dicionário.
Patrício de Moura Fonseca, Luciano Brod, dom Dario
Aos meus conterrâneos de Zoeterwoude, Holanda, pelo
Campos e Francisco Carvalho Neto, por terem me
apoio solidário através do leilão anual “Missieveiling”.
incentivado a prosseguir no trabalho de pesquisa e promoção
da cultura popular. Também aos freis João Maria van Dam, Não é possível lembrar aqui todos os amigos colaboradores.
Francisco Duarte, Moisés Bastos, Dari Bernardino Pinto e
Obrigado a todos.
a muitos outros confrades, pela compreensão.
O autor declara, para os devidos fins de direito, que não foi possível identificar quem detém os direitos de alguns textos e/ou imagens constantes deste
Dicionário. Se, porventura, ocorreu alguma omissão involuntária quanto a créditos de fotos, os direitos encontram-se reservados aos seus titulares.
Dicionário da Religiosidade Popular
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FX
DONA MARIA JOSÉ RIBEIRO, BANDEIREIRA DO CONGADO DE N. SRA. DO ROSÁRIO (SETE LAGOAS, MG. 2002)
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Dicionário da Religiosidade Popular
OFERECIMENTO AO BRASIL MESTIÇO
ao mestre da folia e companheiros
aos rezadores e benzedeiras, às pastorinhas
e ao “velho”, aos cristãos e mouros da cavalhada ao
almirante e aos marujos da chegança, às dançadeiras e
tocadores de São Gonçalo aos festeiros, leiloeiros e mordomos
de bandeira e mastro, aos congadeiros, aos reinados do rosário
de Maria, aos capitães e oficiais, aos caboclinhos, aos que em junho
festejam Santo Antônio, São João, São Pedro, São Marçal e a Senhora
Santana aos romeiros de Aparecida do Norte, do Círio de
Nazaré e do padre Cícero de Juazeiro, aos devotos
da Santa Cruz e do Senhor do Bom-Fim
às caixeiras e à tribuna do Divino
Espírito Santo aos
penitentes e aos
encomendadores
de almas ao
santeiro e à
bordadeira do
sagrado aos
pagadores de
promessas
às erveiras e raizeiros, aos pajés, caciques e seus povos, aos filhos de Nzambi, às zeladoras
mães de santo, aos pais de santo, aos ogãs e aos filhos de santo, às lideranças populares da
luta pela sobrevivência, pela igualdade e pela terra aos contadores da história de índios e
escravos, dos antepassados do Brasil mestiço enfim, a todos os praticantes da esperança
num Deus compassivo e libertador de seu povo.
Dicionário da Religiosidade Popular
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PALAVRA DO AUTOR
Começo do princípio do início de alguma coisa...
Ao leitor, paz e bem!
Prandi, Carlos Rodrigues Brandão, Alba Zaluar, Maria
de Lourdes Borges Pereira, Dulce Martins Lamas e Lélia
Por dez anos, entre 1968 e 1978, tive o privilégio de mo- Coelho Frota, percebi que a tarefa não ia ser fácil.
rar no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas. A partir
de Araçuaí, em parceria com Maria Lira Marques, passei a Em busca de um padrão, desejava reunir informações que fosregistrar as rezas, benditos, batuques, técnicas de trabalho, sem representativas do universo religioso e cultural do povo
remédios, sabenças e histórias do povo do Vale. O Jequiti- brasileiro. Foi aí que optei por não escrever um manual, mas
nhonha mudou o meu modo de pensar sobre a verdadeira uma espécie de abecedário. Então, passei a garimpar e peneireligião: aprendi que quem pretende entender a religiosidade rar na fé do povo tudo que estava ao meu alcance: descrições
popular e ter o direito de explicar seus significados há de se de festas, romarias, costumes; os rituais com rezas, gestos,
tornar simples com os simples e pobre com os pobres. Con- benditos e pontos; depoimentos populares - e coloquei as
fesso que a fé dessa gente me levou a uma espécie de conver- palavras do povo sempre em itálico; dados socioeconômicos,
são. Na arte de pensar como eles, estou apenas começando a história do Brasil e da igreja, o confronto popular-oficial,
a tudo aprender.
as contribuições da antropologia, da teologia, da sociologia
e tantas outras informações. Os “links” (sempre em negrito)
Em 1978, mudei-me para Betim, região central de Minas. entre os verbetes permitem ampliar as pesquisas.
Mergulhei então na religiosidade popular. Estudei e viajei,
compartilhei festas e romarias, visitei terreiros, naveguei pelo Busquei associar tudo aquilo que possibilita o aproveitario São Francisco, caminhei pelo Nordeste. Tudo isso me mento criativo, em busca de um “pensamento redondo” e
levou a uma leitura ampla e profunda da realidade brasileira: não apenas linear. Uma boa dose de intuição me soprou que
a violência do Brasil colonial no qual a religião chegou com a
ficaria melhor chamar aquele abecedário com o nome “Dicruz e a espada, a romanização da igreja no final do império
cionário da Religiosidade Popular” e assim realçar o trabae na república, os leigos da Ação Católica, Dom Hélder
lho sistemático, a busca da coerência e o grau da organização
Câmara, as comunidades de base, a teologia da libertação, os
do material reunido. Na realidade, trata-se de um primeiro
carismáticos, a Pastoral da Terra, o avanço dos evangélicos,
passo, um princípio do muito que ainda há por fazer.
enfim, pode-se escrever a história do povo brasileiro também
sob a perspectiva da religião. Veja como é curioso: 61% da
Não havia outro dicionário para me servir de modelo,
população brasileira se declara católica, mas apenas 15% dos
mas havia muito material a ser avaliado: pesquisas no
católicos frequentam regularmente a sua igreja.
Jequitinhonha e outras regiões; literatura disponível sobre
Em 1985, ainda em Betim, fui transferido para a colônia o assunto; documentos em arquivos do Brasil e de Portugal;
de Santa Isabel. Nos 16 anos seguintes, foi escrita a maior conversas com antropólogos que viveram na África bantu.
parte do presente Dicionário. A regência do coral Tangarás Quarenta anos de esforços resultaram na presente obra
de Santa Isabel me deu a oportunidade de vivenciar com os enciclopédica, que reúne 8.570 verbetes e 6.433 notas de
hansenianos uma experiência bonita de superação do sofri- rodapé! Mas não custa lembrar: quanto mais a pessoa estuda,
tanto mais ela percebe seu pouco saber.
mento humano pela arte.
Após publicar alguns livros e artigos, e já imaginando reunir
em uma obra maior as minhas reflexões, investigações e
registros do Jequitinhonha com os trabalhos de estudiosos
da cultura popular brasileira como Renato Almeida, Luís da
Câmara Cascudo, Paulo Freire, Ronaldo Vainfas, Reginaldo
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Dicionário da Religiosidade Popular
Uma das dificuldades do estudioso da Religiosidade Popular é lidar com assuntos que não cabem nas nossas teorias: a
espinhela caída, as simpatias aplicadas, o transe, para citar
só alguns. Preconceitos não faltam. Sem estigmatizar nem o
pobre, nem o rico, a pobreza há de acabar!
A experiência religiosa dos pobres é de grande importância
para qualquer igreja cristã. No Brasil católico atual, há muitas comunidades populares que continuam manifestando
sua fé num Deus vivo através de formas culturais de origem
indígena, africana e lusa. A força da cultura popular está
justamente na sua harmonia com a vida real e com a memória dos pobres. Um povo que possui organização, lideranças
próprias, ideais e projetos, tem a sua visão da história e sabe
avaliar o curso dos acontecimentos. Por exemplo, se eu pergunto a um valejequitinhonhense se ele é pobre, vou ouvir:
“não sou pobre, mas sou fraco”. Ora, fraco aí é o oposto de
poderoso. Do fundo de sua consciência ele sabe que há neste
mundo dos homens uma escala de valores, que é posta em
questão no casamento da roça, no bumba meu boi, no testamento de Judas, no palhaço da folia de reis ou no carnaval.
Para o homem da roça, o humor e a irreverência diante das
autoridades são partes essenciais da cultura. Hoje sei que
perguntas não ficam sem respostas, mas é preciso saber ouvir para entender – sempre prestar muita atenção.
em dinheiro, em paredes ou em para-choques de caminhão
foram levados a sério. Diante dos meus olhos, muitas coisas
aconteceram, e parte significante delas está nesta obra, passos de uma caminhada na qual me vejo apenas no começo
do princípio.
O ponto de vista das culturas populares é que dá sentido aos verbetes. Quando escrevemos: “Santo Onofre toma
conta da despensa e protege as famílias pobres contra a
fome”, estamos registrando um saber coletivo referendado
pela tradição, com apoio da bibliografia em pé de página.
O mesmo vale para as informações sobre plantas medicinais e outros remédios.
Este “Dicionário da Religiosidade Popular”, de linguagem
fácil, quer ser uma obra útil para educadores, artistas, intelectuais, comunicadores, lideranças populares, agentes de
pastoral católicos e evangélicos, agentes dos cultos afro-brasileiros e da pajelança, praticantes de outras religiões, em
outras palavras, para todos aqueles que desejam conhecer e
O “Dicionário da Religiosidade Popular” mostra as prin- promover a religiosidade popular brasileira.
cipais manifestações religiosas populares do Brasil e suas
origens. Relata uma história de sofrimentos e exclusão, de Ao trazer os mais variados pontos de vista sobre religião
massacres e escravidão. Recorda a organização e a resis- e vida na sociedade brasileira esperamos contribuir para o
tência popular. A vida e a experiência religiosa dos povos acerto da caminhada da igreja que amamos.
indígenas são lembradas, especialmente no seu entrelaçamento com os cultos afro-brasileiros e tradições orais ca- “A igreja é o povo de Deus” proclamou o Concílio Vaticano
tólicas oriundas da Europa medieval. Atenção especial é II, em 1965, e uma evidência foi redescoberta. Logo depois,
dada às mudanças recentes no país, tais como a migração num momento de lúcida fé, os bispos da América Latina
do povo para as grandes cidades e a conscientização dos reunidos em Medellín, em 1968, fizeram a “opção preferenafrodescendentes, dos quais os bantos formam a maioria. cial e bíblica pelos pobres” e, consequentemente, propuseHá 1.422 verbetes sobre assuntos afro-brasileiros. A escas- ram a valorização da religiosidade popular na igreja. Mais
sez de estudos recentes sobre os migrantes e sobre a reli- tarde, em Santo Domingo, em 1992, surge a necessidade de
giosidade popular urbana contribui para o caráter provisó- uma evangelização nova e inculturada. Em 2007, o Conrio da obra. Por aí se vê que não temos qualquer pretensão selho Episcopal dos Bispos da América Latina (CELAM),
de resumir, muito menos de esgotar o assunto.
em Aparecida do Norte (SP), renovou a opção pelos pobres.
Este é o nosso caminho.
Temas muito variados são abordados neste Dicionário no
qual a vida e a religião não se separam. A necessidade de Sou eternamente grato a amigos que foram de grande valia:
união na diversidade de culturas, classes e religiões apare- Lélia Coelho Frota, antropóloga, grande conhecedora da
ce em vários verbetes. A mestiçagem, antes vista negativa- cultura brasileira, conselheira constante, que durante vinte
mente, hoje é entendida como um valor típico da identidade anos contribuiu para melhorar esta obra. Sua morte na manacional brasileira. A globalização provoca uma afirmação drugada de 27 de maio de 2010 impediu que escrevesse seu
da individualidade das nações, por via da afirmação do seu prometido prefácio.
patrimônio cultural.
Maria Lira Marques Borges, mulher, mestiça, pintora, canNa busca da raiz do que seja “popular”, o Dicionário dá voz tora, pesquisadora, sempre pronta para esclarecer o pensar e
a benzedeiras, foliões, congadeiros, romeiros, mães de santo, o sentir do povo sofrido do Vale, que desenhou com terras
pajés, contadores de histórias, cordelistas, lideranças sociais. do Jequitinhonha as iluminuras que iniciam cada nova letra
Suas opiniões e seus imaginários prevalecem em assuntos deste Dicionário.
como o aborto, a modernagem, o autoritarismo do vigário.
Privilegiamos expressões culturais surgidas e mantidas em Manoel Nunes Nascimento, Leonardo Antônio Andrade
vida comunitária: dizeres, versos de roda, cantos, histórias, Alves e os eficientes secretários que me socorreram na pesrituais. Também “dizeres” anônimos e livremente escritos quisa e na gramática.
Dicionário da Religiosidade Popular
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Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo que durante sete
meses fez a revisão do conteúdo do dicionário e escreveu a
introdução.
João das Neves, diretor e dramaturgo dedicado ao teatro popular, que apresenta o autor da obra.
De modo especial, agradeço a meus superiores franciscanos
que me liberaram para a pesquisa e promoção da religiosidade popular e aos confrades que me apoiaram. Uma obra
dessa envergadura exige algo além do afinco: um cálice de
obsessão, pelo menos.
Não faz sentido falar em religião sem que haja um Deus vivo
presente no mundo. A experiência religiosa na vida do pobre
constitui o fio de ouro deste Dicionário.
Finalmente, mesmo estando no começo do princípio do início de alguma coisa, nunca desanimei, pois aprendi com os
pobres deste país que O POUCO COM DEUS É MUITO.
Frei Francisco van der Poel
Nota 1: Este Dicionário possui três tipos de fontes bibliográficas: (1) obras citadas nas 6.433 notas de rodapé; (2) bibliografia final com 1.400 livros e (3)
bibliografia complementar em 885 verbetes.
Nota 2: A maioria dos livros citados encontra-se no “Acervo Frei Chico”, na biblioteca da PUCMG em Belo Horizonte (MG).
Nota 3: O método adotado neste Dicionário pode e deve ser aprimorado em outras edições e, para tanto, peço a ajuda de todos os que gostarem de usá-lo.
No desejo de termos uma obra interativa e em constante atualização, peço que enviem suas sugestões e críticas para o email: [email protected]
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Dicionário da Religiosidade Popular
INTRODUÇÃO
Um mundo posto num livro
Quem acaso folheie este livro cujo nome, Dicionário, bem
sugere a sua vocação e a sua estrutura, mas que na humildade de seu autor esconde a sua dimensão e a sua densidade, e
que, com um pouco mais chegaria às 1152 páginas, poderia
imaginar o seu autor como um desses religiosos de longas
barbas, pernas frágeis, e cujas maiores viagens irão de uma
cela franciscana a uma capela e desta a uma biblioteca. Uma
casa de livros piedosos, onde por anos e anos velhos e novos
livros se apoiam em incontáveis estantes. Um desses frades
vindos do Norte do mundo - pois o seu nome e o seu sobrenome bem o sugerem - que ainda prega os seus sermões com
fortes “erres” carregados de acentos estrangeiros. Um velho
holandês cujas viagens de agora, quando os cabelos e a barba
já imitam as neves de sua terra natal, raramente ultrapassam
os muros do convento onde ele viveria, em algum lugar das
Minas Gerais.
ruelas entre as lamas de janeiros e as poeiras de julhos, dos
bairros de periferia, dos povoados sertanejos, dos arraiais
mineiros dos sertões. Enfim, dos recantos onde, no Brasil
e em Minas Gerais, vivem as mulheres e os homens que ao
longo de quase todos os mais de oito mil verbetes deste livro
“penam” as suas vidas (a expressão é bastante comum entre
eles), vivem os seus duros labores e trabalhos de todos os
dias, parem e criam os seus filhos e, em outros momentos
– aqueles que mais estarão presentes aqui – a sós, aos pares,
em pequenos grupos de parentes, amigos ou vizinhos, ou em
comunidades maiores, dizem as suas preces, revivem a sua
fé, festejam solidariamente os seus santos e realizam as suas
celebrações, romarias, procissões, rezas, festas, folguedos ou
o que seja.
Comemorações coletivas das muitas maneiras de sentir e
crer em seres que, entre um Deus-Todo-Poderoso e a imagem de uma Santa-Cruz, são os incontáveis sujeitos sagrados que uma antiga, múltipla e fervorosa religiosidade popular ano após ano rememora e celebra. Celebra e preserva
como uma entre tantas outras tradições religiosas populares,
neste nosso mundo acelerado em que tudo e todos - de máquinas eletrônicas a deuses - são obrigados por nós, os seres
humanos de nosso tempo, a deixar apressadamente de serem
quem são, para mudar, para transformar-se em algo novo,
diverso, sem raízes, para continuar existindo entre nós e a
nosso favor.
Alguma coisa no parágrafo acima pode ser verdadeira: a origem europeia, a cor da barba e dos cabelos, a residência em
Minas. Até mesmo a frequência assídua à capela do convento e, sejamos francos, uma presença ainda mais assídua
à biblioteca. Não apenas a do convento, mas sobretudo a de
sua cela. Um quarto que precisou tornar-se bem maior do
que a cela que deveria abrigar um frade, pois além dele, o
quarto de nosso autor é também a morada de inúmeros livros, incontáveis revistas, folhetos, almanaques populares,
cordéis ou o que seja. E, mais ainda, de objetos de cultura e
de vida religiosa, entre imagens de santos e outros artefatos
populares, que quase ameaçam fazer de um lugar de orar, No próprio duplo nome pessoal com que se apresenta aos
dormir, ler e escrever, também um pequeno museu.
outros, o autor deste trabalho se divide. E este é o seu
primeiro travesso segredo. Pois ele se chama Franciscus
Uma outra parte do que está sugerido no primeiro parágrafo Henricus van der Poel OFM, um solene nome entre o
é bem ilusória. Pois quem queira encontrar o homem que ao Latim e o Holandês. Mas, em toda a parte por onde passou
longo de quarenta anos pesquisou e escreveu este Dicioná- entre os seus 43 anos de vida aqui no Brasil, ele é conhecido
rio, deverá sair por aí, entre sinuosas estradas de terra. Deve- sempre como: Frei Chico. Nome, aliás, com que prefere se
rá percorrer caminhos do Norte de Minas, especialmente os apresentar quando conhece alguém. E assim também é o seu
que acompanham de perto e de longe as curvas das margens Dicionário, que contém um pouco de Franciscus e bastante
do rio Jequitinhonha. Deverá deixar as cidades grandes, o mais de Chico, como veremos logo a seguir.
centro dos centros urbanos, os prédios das cidades universitárias, as ruas asfaltadas dos bairros “médios” ou “nobres”, Frei Chico, antes de haver sido o autor deste e de outros limesmo das cidades menores. E deverá sair em busca das vros, foi e segue sendo um andarilho da fé em busca da vida,
Dicionário da Religiosidade Popular
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das crenças e da arte do povo. Ao longo hábito marrom (desbotado) que cobre o seu corpo e ao branco “cordão de São
Francisco”, ele acrescentou o violão, que muitas vezes carrega para onde vai e, dentro dos bolsos, uma ocarina e uma
gaita de boca. E leva algo mais. Leva por costume pequenas
cadernetas e lápis e canetas com que, por anos a fio, anotou
ao vivo raros e preciosos instantes do saber, crer e viver a fé
dos vários povos que habitam isto a que costumamos dar o
nome genérico de “povo brasileiro”. E por anos a fio ele repetiu este gesto de pesquisa atenta em um momento de festa a
um santo padroeiro, no intervalo de uma dança ritual ou de
uma reza de terço. De vez em quando ele comete a santificada travessura de acrescentar a tudo isto um pequeno palhaço
de pano que carrega pendurado em seu cordão franciscano.
da arte do povo brasileiro, de Lélia Coelho Frota 2. Como
outros dicionários, apresenta dimensões desproporcionais
e, em seu caso, plenamente justificáveis, pois como o
próprio autor reconhece, as dimensões do que pesquisa são
na verdade inesgotáveis.
É o resultado de uma coleta de muitos anos de tradições religiosas brasileiras que aqui comparecem em uma criteriosa
ordem alfabética. De algum modo temos neste livro tudo o
que é essencial na experiência de fé, crença, memória, prece,
prática, ritual, celebração, cenários, cenas e objetos de culto
religioso do povo brasileiro... “de A a Z”.
No entanto, o leitor notará logo entre as primeiras páginas
uma aparente transgressão. E ela é justamente uma das inovações mais relevantes neste Dicionário/Abecedário. Frei
Chico transferiu na versão final para a sua introdução o que
seria o subtítulo de sua obra, o que revela sua sábia compreensão daquilo com que está lidando: começo do princípio do
início de alguma coisa. Um dicionário mais rigorosamente acadêmico deveria conter apenas os verbetes de maneira
diretamente ligados ao seu tema original. Assim, um livro
como este deveria conter somente os verbetes das múltiplas
realidades da religiosidade popular brasileira.
Ao contrário de outros inúmeros investigadores de tradições
populares brasileiras e autores de estudos acadêmicos ou não
sobre seus muitos temas, que apenas estudam, pesquisam e
escrevem, Frei Chico, ao lado de pesquisar a religiosidade
popular, adquiriu o costume de vivê-la intensamente. Ele
soube aprender a tocar os instrumentos musicais de uma Folia de Santos Reis, soube decorar longos benditos e rezas e,
junto com Lira Marques, do Vale do Jequitinhonha, soube
e sabe como cantar as canções tradicionais unindo sua voz
com a dos corais que, do Vale à Colônia Santa Izabel, em
Betim, ele ajudou a criar.
Frei Chico foi além desta prática, prudente e aconselhável, mas limitante. Ele olhou e estudou a “religiosidade do
E, mais do que tudo, ele soube viver como sua a fé rústica povo brasileiro” desde seus outros ignorados ou contraditóe sertaneja de uma gente que até hoje peregrina dias e noi- rios ângulos. Esta é a razão pela qual a presença de ideias,
tes em busca de um lugar onde um santo não reconhecido doutrinas, instâncias e movimentos da Igreja Católica, por
pela Igreja é cultuado pelo povo, como o Padre Cícero. Ou exemplo, estarão presentes em inúmeros verbetes. O mesmo
uma gente que, entre a roça de Candomblé e o adro de uma acontece com momentos em que o seu dicionário trata de
pequena capela rural, gasta o dinheiro de muitos dias de tra- problemas causados pela secular e opressora desigualdade
balho para que alguns orixás ou uma santa sejam celebrados social em nosso país. Enfim, ao afirmar em sua introdução
em seus dias com fé e festa.
que pretendeu trabalhar com um “pensamento redondo”, o
autor apenas sugere de longe o que esta expressão curiosa
Este Dicionário da Religiosidade Popular foi pensado antes pretende dizer de fato. O “popular” da religiosidade do povo
como um abecedário. Seria um nome mais popular e tra- brasileiro não é enquadrado aqui apenas em sua dimensão
dicional. No entanto, as suas dimensões e a seriedade com mais “tradicionalmente” folclórica. Seria fácil fazer assim.
que seus temas são tratados obrigaram nosso Frei Chico a
reconhecê-lo como um dicionário.
Sob o olhar deste frei músico, cantor, criador de corais e
investigador persistente, acostumado a conviver com a vida
Este enorme livro não é um dicionário qualquer, no cotidiana, bem mais do que apenas com alguns momentos
sentido mais profissional do termo, embora guarde com os das tradições pias ou de “devoção e diversão” das nossas fesbons dicionários um parentesco bem próximo. Não deve tas populares, o que o Dicionário desdobra, verbete a verbeser confundido com uma versão mais restrita e sacral do te, é a experiência de vida de pessoas e povos. Povos e pesnotável Dicionário do folclore brasileiro1 de Luís da Câmara soas que vão de indígenas a negros em suas etnias, e deles às
Cascudo que, merecidamente, recebeu recentemente uma mulheres e aos homens lavradores, seringueiros, pescadores
nova e bem-cuidada edição. Também não se confunde e quantos mais ofícios e modos de vida haja entre os dias das
com o inestimável Pequeno (apenas no formato) dicionário difíceis vidas dos diferentes povos do Brasil.
1 Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 10. ed. São
Paulo: Global, 2001.
12
Dicionário da Religiosidade Popular
2 Frota, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – século XX. 2005. Aeroplano Editora, Rio de Janeiro. 439 pp.
Por isso e por algo mais, este livro-dicionário pode ser lido
de diferentes maneiras. Pois além de abrigar um “pensamento redondo”, ele envolve o que bem poderia ser uma “obra
aberta”. O leitor pode ir a ele como se vai a um Dicionário da
Língua Portuguesa, ou a um dicionário técnico e específico,
em busca de uma única palavra contida em um verbete. Esta
palavra pode ser mais genérica e abstrata, como “economia”,
por exemplo. Ou pode ser mais concreta e específica, como
“povo”, ou mais ainda, como “congo” ou “congada”.
Muitos verbetes sugerem uma segunda leitura. Ela será mais
demorada do que a primeira, mas também mais proveitosa.
Entre temas e situações culturais convergentes, em várias situações um verbete remeterá o leitor a outro. E, quando lido
e consultado, este segundo verbete poderá enviar o leitor
atento a outro... ou outros. Assim, a entrada no Dicionário
em nome da procura do conhecimento ou reconhecimento
de uma única palavra, poderá levar o leitor a uma breve ou
longa (melhor longa do que breve, no caso) leitura cruzada.
culturais ou especificamente religiosas existiram e existem
ainda hoje, entre os povos e as etnias de negros trazidos
como escravos ao Brasil?”. Ao entrar com perguntas deste
feitio, o leitor poderá consultar criticamente o Dicionário
organizando por sua conta e risco o próprio fio de suas
sequências e interações de leitura.
Muitos anos, incontáveis momentos de entrevistas, de partilhas, de anotações in loco e, depois, de leituras, de consultas
e de estudos foram necessários para, um dia, o autor iniciar
este livro. Um livro que começa antes de seu início e deve
terminar bem depois de seu final. Trabalho de um investigador incansável, que contou com uma equipe da qual me
alegro muito ter feito parte.
Uma obra aberta em pelo menos dois sentidos. Primeiro
porque pode ser “entrada, percorrida e saída” desde vários
pontos, em diferentes páginas e através de diversos percursos. Um livro que, dependendo do caso, pode começar a ser
lido em uma das últimas páginas e terminar em uma das
O leitor poderá seguir a própria indicação das sequências primeiras. Um livro destinado a diferentes leituras, porque
sugeridas em cada verbete. Assim, ele percorrerá toda uma aberto a diversas perguntas e densidades de “procuras”.
“linha”, ou uma “carreira” de palavras-verbete correlatas.
Sairá deste percurso com o conhecimento de toda uma sé- E também um livro inacabado. Talvez mesmo, inacabável.
rie de saberes que se entrecruzam e completam. E este é o
momento em que este Dicionário salta de sua função de um Pois quando o seu autor o anuncia como “o começo do prin“dicionário” mais formal e rígido, para tornar-se um quase- cípio do início de alguma coisa...”, ele sabe muito bem que
-livro completo sobre um tema interativo de, ou à volta de, de tudo o que “os povos do Povo Brasileiro” vivem, creem,
nossas religiosidades populares.
sentem, pensam, criam, partilham e praticam, até mesmo
as mais de mil páginas deste Dicionário abarcam mesmo
Assim, o leitor poderá fazer uma leitura “católica”, uma lei- apenas um começo. Elas contemplam somente uma parcela
tura “ jeje”, uma leitura “bantu”, ou uma leitura “yorubá” e são, portanto, um primeiro passo. Entre tantos livros e dide nossas culturas populares. Da mesma maneira, inician- cionários sobre tantos temas distantes e próximos ao que se
do o seu percurso no verbete “folia”, ele poderá ir à “folia poderá ler neste livro, faltava justamente um livro como este.
do Divino” e, dela, à “Festa do Divino Espírito Santo” ou
mesmo às interações entre a “igreja oficial” e as “tradições Faltava o olhar atento e entusiasmado de um homem de
populares” em torno de cada uma das três pessoas da San- religião, um frade franciscano. Mas, de modo algum um
tíssima Trindade.
olhar ortodoxo e catequético. Nada menos “catequético”,
nada menos “ortodoxo” do que este livro de um valor inesE desta leitura cruzada ou interativa, poderá sugerir uma timável. Porque bem ao contrário do que costuma aconteterceira. Ela será por certo mais difícil e animará apenas aos cer com os livros de homens das diferentes denominações
que virão ao nosso Dicionário com preocupações bem maio- cristãs, o itinerante Dicionário de Frei Chico não parte da
res do que a consulta a um verbete ou o conhecimento de pergunta bem conhecida: “o que é que nós temos para enuma cadeia temática de verbetes interativos. O livro de Frei sinar ao povo brasileiro?”. Sua temerária pergunta é a exata
Chico poderá facultar, a quem queira, uma leitura proble- oposta: “o que é que nós temos a aprender com o povo bramática. Não no sentido de que ela venha a ser uma leitura sileiro?”. E ela se desdobra assim: “de que maneiras, através
cheia de problemas. E é bem possível que seja, dependendo de suas duras experiências de vida de povo-e-pobre, essa
dos propósitos do leitor. Problemática no sentido de que o gente que aqui aparecerá crendo, orando, cantando, danleitor pode “entrar no livro” para investigar toda uma com- çando, partilhando a fé e a vida, tem a nos dizer, a nos enplexa questão, toda uma trama de problemas etnográficos.
sinar, como algo de próprio, de verdadeiramente seu, como
um múltiplo testemunho?”
Um exemplo: “como ao longo de nossa história algumas
tradições populares do Nordeste do Brasil surgiram e foram Vivemos um tempo em que inúmeros livros, vindos das
se transformando?”. Outro exemplo: “que diferenças étnicas, mais diferentes origens filosóficas, ideológicas, políticas ou
Dicionário da Religiosidade Popular
13
práticas, insistem em nos querer ensinar como viver, como
sentir, como pensar e como agir. Vivemos também um tempo
em que, cansados de nós mesmos e dos outros com quem
compartimos frações de nossas vidas, fugimos da experiência
real de nosso mundo cotidiano. Fugimos da vida que vivemos
e dos desafios que ela nos propõe e nos refugiamos em livros,
filmes e viagens internéticas povoadas de estranhos seres de
outros mundos, de outras galáxias, de outras irrealidades.
Há toda uma crescente pressão “globalizada” que nos força
a migrarmos da pessoa ao personagem e da realidade ao
simulacro. Que o diga o sucesso que obtêm as produções
midiáticas que aos poucos nos querem fazer crer que a
misteriosa substância de nossas vidas reais é virtual, e que
as virtualidades de seus espetáculos e simulacros é que são a
nova e irreversível realidade.
Que uma celebração de negros devotos em seu terreiro, que
um demorado canto de alguma comunidade indígena no
largo da aldeia, que uma romaria nordestina em busca de
um lugar sagrado no meio dos sertões, que uma pequena
Folia de Santos Reis, que torna os nossos natais camponeses
tão mais belos do que o simulacro dos natais de falsas neves,
renas e noéis, nos tragam de volta à verdadeira realidade e
ao real encantamento de nossas próprias vidas. De nossos
próprios mundos de vida. Que a imorredoura lembrança do
que de Norte a Sul deste país pluriétnico e multicultural
ainda se crê, cria e convive entre as tradições populares aqui
descritas, nos ajude a não esquecer quem de fato somos, de
onde viemos e qual a realidade verdadeira de nosso próprio
ser e conviver.
Que a leitura apressada, lenta ou frequente deste Dicionário
da religiosidade popular nos ajude neste tão urgente e precioso reencontro conosco mesmos, através das raízes de nossas
culturas e das tradições religiosas de nosso povo.
Carlos Rodrigues Brandão
Rosa dos Ventos – Caldas – Sul de Minas
Dezembro de 2011, em tempo de espera da saída das Folias
de Santos Reis por todo o Brasil.
14
Dicionário da Religiosidade Popular
SOBRE O AUTOR
O caminho não existia
“Este palhaço chama-se Frei Chico. Ele vai comigo em tudo
o que faço: palestras, shows e até cantoria de buteco. Sou
anarquista, mas também sou representante da Igreja oficial.
Se de um lado uso o hábito franciscano, de outro está a roupa colorida, a calça enrolada e o brinco na orelha. Sou sério
e irreverente. Dou aula, mas não sei nada.”
Afinal, quem é este cidadão do mundo que se esconde atrás
do palhaço que carinhosamente é tratado como seu homônimo brasileiro? O nome é pomposo: Francisco van der Poel.
Difícil de pronunciar, este van der Poel, vindo lá das Holandas, a sugerir, quem sabe, uma ascendência nobre, onde reis,
rainhas, duques e viscondes não se misturavam à plebe inculta e rude das cidades medievais. Mas Frei Chico, o nosso,
é diferente. Preso à corda branca do hábito de franciscano,
que jamais deixou de usar, está o palhacinho de calças listradas e sorriso perene a lembrar que a religiosidade popular
sempre se traduz em festa. Porque é na festa da religião que
se vivenciam as alegrias capazes de exorcizar as dores e tristezas do dia a dia. Religião como festa. Coisa tão simples e
tão difícil de entender pelas pessoas sérias, cujo pensamento
ortodoxo as conduz à intolerância e ao menosprezo.
Horizonte. Enviado para o Vale em fins de 1968, em plena
vigência da ditadura, lá permaneceria durante 10 anos. Ao
lado dos oprimidos, aprendeu a amar o Brasil. A convivência
diária com uma população extremamente pobre, mas capaz
de manter viva sua cultura de extraordinária riqueza, mostrou a Frei Chico que “o povo guarda suas coisas enquanto têm sentido para ele”. É aí que pulsa uma religiosidade
peculiar, alegre e generosa, plena de humor e festança. Ele
sabia e sabe que ajudar o povo é, em primeiro lugar, dar valor
àquilo que ele já tem: seus ideais, seus líderes, sua história,
sua arte e cultura.
E foi entre seus líderes anônimos que Frei Chico encontrou
dona Filó, cozinheira da casa paroquial, com ela aprendendo
cantos de beira-mar, benditos de santos, batuques e cantos
do Rosário, com os quais elaborou o primeiro repertório do
Coral Trovadores do Vale, por ele criado. Músico de formação erudita, soube perceber e acolher como diamantes raros
aquelas canções que vinham de tempos imemoriais.
Foi entre líderes anônimos que iria encontrar Maria Lira
Marques Borges, artesã e cantora do coral que até hoje é
referência obrigatória para todos os corais do Vale que a ele
se sucederam. Maria Lira que, apaixonada como Frei Chico
pela cultura de sua gente, o conduziu à residência de colegas
do coral e Vale do Jequitinhonha adentro, onde quer que
houvesse uma canção, uma rezadeira, um bendito, numa
pesquisa incansável e sistemática, ponto de partida para este
DICIONÁRIO.
Quando, em 1968, Frei Chico aportou ao Vale do Jequitinhonha, seu primeiro sentimento deve ter sido de frustração, pois “não queria gastar a vida limitando-me a um
trabalho pastoral com o 10% dos católicos que frequentam
as igrejas dos padres”. Mas a frustração não se estendia à sua
vocação sacerdotal, que logo encontrou sua razão de ser no
envolvimento com rezas e benditos, com as folias, os pontos
de terreiro, com o candomblé e as músicas de trabalho. Ali, E, em consequência dessas andanças, travou conhecimento
onde a religião é vivida visceralmente.
com Lélia Coelho Frota, poeta pelo dom dos deuses, pesquisadora incansável da arte do povo brasileiro pelo dom de
Sua curiosidade o levou a correr Brasil afora, embebendo-se um coração de norma culta, mas aberto para a beleza ímpar
e se comovendo, estimulando e registrando toda e qualquer da arte popular. Com ela, sua convicção de estar no caminho
manifestação de um universo religioso ignorado e discrimi- certo se solidificou. Com ela, pôde estabelecer um diálogo
nado pela Igreja oficial.
cujo fruto mais saboroso aqui está para ser por todos nós
saboreado e reverenciado.
Frei Chico foi parar no Vale do Jequitinhonha (MG), quase que por acaso. A Província Franciscana da Santa Cruz O caminho não existia, se fez como nas palavras do poeta
(PSC), a que pertence, tinha e ainda tem sua sede em Belo “ao andar”. Do Vale do Jequitinhonha à Colônia Hanseniana
Dicionário da Religiosidade Popular
15
de Santa Isabel, do Coral Trovadores do Vale aos Tangarás
de Santa Isabel. Frei Chico não é apenas um pesquisador.
É antes um vivenciador, pois não pesquisa a distância ou
através de mergulhos esporádicos. Pesquisa compartilhando.
Talvez por isso chame o seu DICIONÁRIO de “O começo
do princípio de alguma coisa...”. Por isso ainda, deve ter
percebido, desde sempre, que tão inseparável do hábito
franciscano, que desvela sua sólida formação intelectual,
está o palhacinho pendente do cordão branco, recordação da
casa materna, onde atrás corria um rio. O Reno. O Araçuaí,
o Jequitinhonha, o São Francisco, todos os rios do Brasil
misturam-se às memórias de sua infância. Frei Chico, seu
violão, sua ocarina e o inseparável palhacinho percorreram
todo o Brasil, sempre ao lado do povo: aprendendo, revelando
e valorizando sua cultura, razão de ser deste DICIONÁRIO
DA RELIGIOSIDADE POPULAR.
João das Neves
Diretor e dramaturgo dedicado ao teatro popular.
16
Dicionário da Religiosidade Popular
FX
APRESENTAÇÃO
Lélia Coelho Frota
(† Rio de Janeiro, 25 de maio de 2010)
Opinião de Lélia Coelho Frota
“A obra se baseia na experiência do historiador Francisco
van der Poel OFM, membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais e da Comissão Mineira de
Folclore, que vem ministrando cursos e palestras em diversas
universidades brasileiras. Como pesquisador de gabinete e
de campo, Francisco van der Poel apresenta no “Dicionário
da Religiosidade Popular” um alentado corpo de 8570
verbetes, que procuram dar conta de seu interesse e estudos
sistematizados sobre a religião no Brasil. Abrange todos os
credos, católicos, afro-brasileiros, protestantes, judaicos, e
até indica centros de zen-budismo no país ou árabes, entre
outros menos praticados. Não tem, portanto, qualquer viés
de proselitismo. A vasta bibliografia que acompanha essa
obra pioneira no Brasil, é o próprio testemunho da sua
amplitude de pensamento e do seu caráter interdisciplinar.
Estão ali títulos da área da história, da antropologia social, do
folclore, da arte, da música. Da mesma forma que Gilberto
Freyre construiu sua antropologia a partir da presença afrobrasileira entre nós, a obra de Darcy Ribeiro tem como
um dos seus fulcros principais o estudo de sociedades
indígenas, a de Roberto da Matta, basicamente, o estudo
do brasileiro através de alguns traços determinantes da sua
inserção no universo social, como por exemplo as oposições
complementares público/privado, cotidiano/carnaval, casa/
rua, entre outras, Francisco van der Poel nos apresenta aqui
uma monumental primeira abordagem da religiosidade no
país. Dá-se nesta obra, com certeza, um relevo especial
às religiões das camadas pobres do país, praticamente
desconhecidas do grande público. O autor não se detém,
contudo, apenas aos ritos e usos cotidianos da ligação com o
sagrado no âmbito rural, ou mesmo da pobreza nas cidades,
mas também aborda largamente religiões de aparecimento
urbano e disseminadas pelo país inteiro, como a umbanda,
deixando igualmente claras as suas imbricações com o
kardecismo. Grandes criações do povo brasileiro, como o
samba urbano, por exemplo, têm também na obra indicadas
as suas ligações com o sagrado. Quase todos os verbetes da
obra, como por exemplo, alimentação, medicina popular,
música, entre centenas de outras entradas, têm averbados
em itálico as palavras dos sujeitos sociais que as proferem
ou escrevem.
Esta é uma obra que servirá de fonte básica de consulta para
estudos brasileiros em vários âmbitos do conhecimento a
jornalistas, a cineastas e mídia audiovisual em geral, escritores, estudantes, e aos próprios atores sociais que constam
dela. A obra não se limita ao registro dos séculos XX e XXI,
mas vai também a fontes históricas do passado, buscando
tornar explícitos comportamentos e mentalidades que hoje
fluem com circularidade, sempre em transformação, por todos os segmentos sociais da nossa população.
A obra possui inegavelmente, ao valorizar a riqueza do tema,
muitas escolhas de verbetes que apontam para uma busca
de justiça social, para o atingimento de uma solidariedade
maior entre os diferenciados segmentos da nossa sociedade.
Cada leitor retirará dela o que lhe interessar ou motivar, pois
o objetivo do autor é fazer um grande painel do seu tema,
painel pioneiro, que tem, como uma das decorrências do seu
conteúdo revelar muita riqueza transcultural do nosso povo.
Riqueza que estará presente - entre outros fatores socioeconômicos -, pela sua beleza e verdade, na sociedade justa
que queremos construir.” (Texto escrito em 2009 para recomendar
a edição do Dicionário).
Dicionário da Religiosidade Popular
17
PELA PROVÍNCIA SANTA CRUZ
Os franciscanos ao longo da história octocentenária da Ordem, para além das presenças missionárias, atuações em paróquias, dedicação à educação nos colégios e universidades,
promoções sociais e culturais, contribuíram de modo muito
expressivo e com marcas significativas no campo da investigação e da pesquisa. Esse dicionário que agora vem a lume
é resultado de mais de quarenta anos de dedicação do nosso
Frei Francisco van der Poel, - que para todos será sempre
chamado de Frei Chico. Um trabalho silencioso de pesquisa
e escuta da alma do nosso povo. Agradecemos a ele pela sua
dedicação e também, de modo muito especial, à fraternidade
franciscana da Província Santa Cruz, que o liberou para tal
serviço a fim de que pudesse se dedicar com entrega e empatia ao conhecimento e ao diálogo com as culturas e religiões
diferentes desse nosso imenso Brasil. Mas não é um livro de museu. Pelo contrário, a fé que se descortina nas páginas do Dicionário está viva, de uma forma ou
de outra. Algumas tradições estão mais granuladas, outras modificaram seu formato, outras permanecem em pleno vigor. Os
olhos atentos poderão perceber quão presente e viva está a fé “de
uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas aguenta”.
Mesmo não tendo nascido em nossas terras, Frei Chico,
assim como tantos outros frades holandeses, se enveredou
de tal forma em nosso Brasil, que hoje tem mais propriedade que muitos de nós para poder falar das coisas de nosso povo. Não se contentou com uma visão panorâmica da
fé popular, mas desbravou a mata fechada da consciência
religiosa de nossa gente. E reconhecemos contentes que
o Brasil apresentado por nosso irmão é um belo mosaico
miscigenado, de coloridos europeus, africanos e indígenas
que, numa feliz metamorfose, deu e continua a dar sentido
à vida de muitos homens e mulheres de nossa terra.
Em muitas passagens, nos deparamos com tradições de nossa infância, nos reportamos a nossos pais e avós. Voltamos
no tempo para contemplar no rosto sofrido de nosso povo,
sua forte reverência pelo Sagrado Nome do Criador, cultuado por diferentes raças, cores e línguas.
Assim, demonstrando nossa felicidade pelo sucesso de nosso confrade, em nome de todos os franciscanos, parabenizo
nosso irmão, Frei Chico van der Poel, por este trabalho tão
esperado, e que, finalmente, chega até nós. Auguramos que
este dicionário ajude a muitos a entender melhor a gênesis
religiosa de nosso povo, permanecendo, porém, o alerta feito
pela Sarça a Moisés: que devemos sempre tirar nossas sandálias dos pés, porque este lugar é santo (cf. Ex 3,5).
O sinônimo que se usa para verbete é ‘voz’. Pois nesta obra,
Frei Chico nos faz ouvir muitas vozes, como numa roda de
conversa. Ali estão as mulheres do interior, o homem do campo, de pouco estudo, de sabedoria experimentada nas curvas
da vida. Na mesma roda estão os especialistas, gente entendida nos mais diversos assuntos e que não só deixaram suas
vozes no interno do dicionário, como também colaboraram
com nosso confrade para que esta obra fosse possível. A todos
Frei Chico dá a palavra, sem a pretensão de sintetizar os arguSão Francisco de Assis, em sua Regra, dizia que os frades
mentos. Aqui todos têm vez e voz, o iletrado e o especialista.
deveriam se alegrar quando estivessem entre os pobres
(cf. RnB 9,2), pois foi justamente no meio deles que Frei
Chico se inspirou para compor esta obra que chega agora às Uma peculiaridade salta aos olhos: conscientes de nossas
nossas mãos. Há alguns anos, entre os frades se dizia que “os ‘raízes’ culturais, o dicionário não se limita a elas, mas antes,
pobres são nossos mestres” e pelo presente dicionário, nosso nos possibilita conhecer ‘o fruto’ de toda a mistura de raças
e crenças que nosso Brasil produziu ao longo de sua história.
confrade dá mostras desta verdade.
18
Dicionário da Religiosidade Popular
Frei Francisco Carvalho Neto ofm
Ministro Provincial
ABREVIAÇÕES E CONVENÇÕES
A
a.a. = autor anônimo ou desconhecido
a.C. = antes de Cristo
ACN = Associação Costa Norte
adj. = adjetivo
A.M. = ave-maria
A.T. = Antigo Testamento
abr. = abril
AC = Acre
ago. = agosto
AL = Alagoas
AM = Amazonas
AP = Amapá
Art. = artigo
Assoc. = associação
B
BA = Bahia
Bibl. = Biblioteca
C
c. = cerca de (usa-se para datas aproximadas)
Cân. = cânone, artigo.
Cap. = Capítulo.
CE = Ceará
cf. = confira ou compare
cm = centímetro
CM = Congregação da Missão (lazaristas)
Col. = Coleção.
Comp. = Companhia.
Côn. = Cônego.
Conc. = Concílio
D
déc./décs. = década/décadas
dez. = dezembro
DF = Distrito Federal
Doc./doc. = documento
dr. = doutor
E
ed. = edição/edições
Ed. = Editora
ES = Espírito Santo
et al. = e outros
Expr./expr. = expressão
F
fasc. = fascículo
fev. = fevereiro
fls. = folhas
G
GATT = Acordo Geral de Tarifas e Comércio
G.P. = glória-ao-pai
GO = Goiás
H
hab. = habitantes
h = horas
I
IHWH = Javé, nome de Deus
Inf. = Informante
J
jan. = janeiro
jun. = junho
jul. = julho
K
km = quilômetro
L
Livr. = Livraria
M
m. = metro
M. = mártir
MA = Maranhão
mai. = maio
mar. = março
MG = Minas Gerais
MS = Mato Grosso do Sul
MT = Mato Grosso
Dicionário da Religiosidade Popular
19
N
N. = nome, fulano
n. = número ou nota
N.B. = latim: Nota Bene, note bem.
N.S.J.C. = Nosso Senhor Jesus Cristo
N.T. = Novo Testamento
nac. = nacional
No = Número
nov. = novembro
SE = Sergipe
séc./sécs. = século/séculos
set. = setembro
sic = assim mesmo no original
SJ = Sociedade de Jesus (Jesuítas)
SP = São Paulo
sr. = senhor
SSVP = Sociedade de São Vicente de Paula (Vicentinos)
Subst. = substantivo
O
T
OFM = Ordem dos Frades Menores (Franciscanos)
OFM Cap = Ordem dos Frades Menores (Capuchinhos)
OFS = Ordem Franciscana Secular (Ordem terceira de S. Francisco)
OP = Ordem dos Pregadores (Dominicanos)
Org. = Organizador ou organização
OSB = Ordem de São Bento ( Beneditinos)
out. = outubro
t. = tomo
Tb./tb. = também
TEN = Teatro Experimental do Negro
tip. = tipografia
TO = Tocantins
typ. = typographia.
P
UNESCO = Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência
e a cultura
p. = página
P. = pergunta
P.F.E. Santo = Pai, Filho, Espírito Santo
P.N. = pai-nosso
P.N. A.M. G.P. = pai-nosso, ave-maria, glória-ao-pai
PA = Pará
PB = Paraíba
PE = Pernambuco
PI = Piaui
p. = página
p.ex. = por exemplo
pp. = páginas
Pp. = Papa
PR = Paraná
Prov. = provérbio
Psal. = Psalmus, termo latino que significa “salmo”
Publ. = Publicação
R
R. = resposta
Refr. = refrão.
RJ = Rio de Janeiro
RN = Rio Grande do Norte
RO = Rondônia
RR = Roraima
RS = Rio Grande do Sul
S
S. = São
s.d. = Sem data
S.S. = Sua Santidade (título do Papa)
Ssmo. = Santíssimo
Sb = Sabedoria
SC = Santa Catarina
SDB = Sociedade de Dom Bosco (salesianos)
20
Dicionário da Religiosidade Popular
U
V
V. = virgem
v. = volume/ tomo
V.S. = Vossa Senhoria
SÍMBOLOS
>> = mais sobre o assunto
□ = ilustração
† = falecimento; sinal da cruz
w = subdivisão em verbete.
(...) = em citações, indica texto deixado fora.
[Iconogr.] = Iconografia.
[texto] = insere explicação do autor.
§ = parágrafo
ABREVIAÇÕES BÍBLICAS
1Cor = 1ª carta aos Coríntios
1Cr = 1º livro das Crônicas
1Jo = 1ª carta de João
1Mc = 1º livro de Macabeus
1Pd = 1ª carta de Pedro
1Rs = 1º livro dos Reis
1Sm = 1º livro de Samuel
1Tm = 1ª carta a Timóteo
1Ts = 1ª carta aos Tessalonicenses
2Cor = 2ª carta aos Coríntios
2Cr = 2º livro das Crônicas
2Jo = 2ª carta de João
2Mc = 2º livro de Macabeus
2Pd = 2ª carta de Pedro
2Rs = 2º livro dos Reis
2Sm = 2º livro de Samuel
2Tm = 2ª carta a Timóteo
2Ts = 2ª carta aos Tessalonicenses
3Jo = 3ª carta de João
Ab = Abdias
Ag = Ageu
Am = Amós
Ap = Apocalipse
At = Atos dos Apóstolos
Br = Baruc
Cl = carta aos Colossenses
Ct = Cântico dos Cânticos
Dn = Daniel
Dt = Deuteronômio
Ecl = Eclesiastes (Coélet)
Eclo = Eclesiástico (Sirácida)
Ef = carta aos Efésios
Esd = Esdras
Est = Ester
Ex = Exodo
Ez = Ezequiel
Fl = carta aos Filipenses
Fm = carta a Filêmon
Gl = carta aos Gálatas
Gn = Gênesis
Hab = Habacuc
Hb = carta aos Hebreus
Is = Isaías
Jd = Carta de Judas
Jl = Joel
Jn = Jonas
Jo = Evangelho segundo João
Jó = Jó
Jr = Jeremias
Js = Josué
Jt = Judite
Jz = Juízes
Lc = Evangelho segundo Lucas
Lm = Lamentações
Lv = Levítico
Mc = Evangelho segundo Marcos
Ml = Malaquias
Mq = Miquéias
Mt = Evangelho segundo Mateus
Ne = Neemias
Nm = Números
Os = Oséias
Pr = Provérbios
Rm = carta aos Romanos
Rt = Rute
Sf = Sofonias
Sl = Salmos
Tb = Tobias
Tg = Tiago
Tt = carta a Tito
Zc = Zacarias
Dicionário da Religiosidade Popular
21
COMO USAR
FESTA (1) | [Do latim, “festa” e “dies festus”. Com origem remota do latim “feriae”,
“ferias”, dias de paralisação dos trabalhos em honra dos deuses.] O mesmo que
função, brinquedo, festejo (MA); ver Lazer; Prazer. w A festa popular acontece
na comunidade com solidariedade e alegria. Pode ser organizada, mas há gratuidade, é contagiante e tem sentido escatológico. Quer dizer, celebra uma infinita
esperança no futuro e mostra a relatividade das coisas; ver Festa do Divino (reflexão); Lúdico. A festa nos eleva e mostra algo maior do que nós. Diz um verso
goiano: Esta festa não se acaba/ esta festa não tem fim./ Se esta festa acabar, ai
meu Deus,/ o que será de mim.// ver Felicidade; Festividade estruturante; Fantasia.
♦ Subdivisão no verbete. Num dia de festa, espontaneamente são feitas coisas que
em outros dias não se faz: dançar, vestir roupa bonita, convidar parentes e amigos,
soltar foguetes, comer com fartura. É preciso querer a festa. Dizem: O melhor da
festa é esperar por ela. w Anotamos um depoimento popular de Nova Era (MG):
Aguentar, a gente aguenta. Porque a vida não é só sofrer não senhora. A gente
adoece e sara; é pequeno, depois fica grande; uns estão morrendo, mas têm outros
que ‘tão nascendo. Têm as horas de alegria também. Igual quando nasce um fio, as
plantação dá certo, tem festa de congado... E, Geraldo Vandré canta: Hoje é dia
de festa/ todos vão se encontrar./ Toda dor, todo pranto/ hoje vão se acabar.// ver
Sofrimento. w Várias festas do povo coincidem com a abundância de colheitas; ver
Apartação. w A festa popular cria e mantém tradições. Pedro Bandeira diz: As festas
do meu sertão/ é reisado e vaquejada,/ é dibuia do feijão,/ adjunto, agrupamento.//2 w Tudo o que foi dito acima tb vale para a festa religiosa. O carnaval e as
festas juninas são festas católicas. w No congado em Nova Lima (MG), diz o canto
de uma embaixada: Oi meus caros varsais/ que povo é aquele/ que vem entrando/
para o reino adentro,/ sem cumprir minha licença?// Se for povo bom de guerra,/ dê
um grito de guerra e mais guerra./ Se for povo bom de festa,/ dê o grito de festa e
mais festa.// ô patrão, é o povo do rosário,/ joelho dobrado e calcanhar desconjuntado/ que vem festejar o rosário de Maria.// Hoje é dia dela?/ É sim senhor./ Hoje é
dia dela?/ É sim senhor.// 3 w Segundo um preconceito do velho socialismo e do
capitalismo utilitário, “a festa popular é fuga”. Mas parece que o contrário é verdade:
quanto mais opressão e pobreza, tanto mais festa (liberdade celebrada). Para o
pobre, a festa é o único dia certo do ano. Este não pode faltar. É um momento de
esperança. A boa comida, a roupa bonita e a união de todos permitem acreditar
que o mundo presente pode mudar; ver Comunhão; Irreverência; Desordem; Ressaca. w Ver tb. Racionalismo; Relação das Faustíssimas Festas; Mutirão; Leilão. w
>> REIS, João José. A morte de uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil
do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1991; TINHORÃO, José Ramos.
As festas no Brasil Colonial. São Paulo, Ed. 34, 2000; JANES, István & KANTOR,
Iris. Festa, cultura e sociabilidade na América Portuguesa. (2v.) São Paulo, Hucitec/
USP/FAPESP/Impr. Oficial, 2001; AMARAL, Rita. Festa à brasileira: sentidos do
festejar no País que não é sério. Site: www.ebooksbrasil.org (2000); COX, Harvey.
A Festa dos foliões. Petrópolis, Vozes, 1974.
_________________________________________________
1
GOMES, Núbia Pereira de Magalhães; PEREIRA, Edimilson de Almeida. Mundo Encaixado:
significação da cultura popular. Belo Horizonte, Mazza. Juiz de Fora: UFJF, 1992. p. VII.
2
BANDEIRA, Pedro. O Sertão e viola. Folheto. p. 75.
3
DINIZ, Domingos. (Coord. e texto.) Manifestações Folclóricas no Município de Nova Lima.
Nova Lima, Prefeitura Municipal, 2000. pp. 133-134.
22
Dicionário da Religiosidade Popular
FESTA | nome
do verbete
(1) Primeira parte
do verbete
[Do latim, ou do grego etc.]
Etimologia
♦ Subdivisão no verbete
Negrito: encaminha para um
verbete que contém informações relacionadas ao assunto
Itálico: distingue
o falar do povo.
Notas de rodapé
ver significa veja o verbete
COMUNHÃO (neste caso)
e os seguintes, se houver,
separados por ponto e vírgula
até o próximo ponto final.
Ver tb. encaminha para
mais verbetes relacionados
ao assunto.
>> significa: mais sobre
o assunto. Bibliografia
complementar.
Títulos de livros e revistas estão sublinhados
para evitar equívocos com o negrito, que remete
a outros verbetes, e com o itálico, que identifica
o falar do povo.
Dicionário da Religiosidade Popular
23
A.m.
A
A.M. | Abá
“Sem ler livro nenhum Marcela descobriu a precisão vital de rezar pelos antepassados se quisermos a cura.”
(Adélia Prado, em “Manuscritos de Filipa”)
A.M. | Letras iniciais da mais tradicional saudação à
mãe de Jesus: “Ave Maria!”; ver Saudações de Nossa
Senhora. w Monograma encontrado em medalhas e
outros objetos dedicados a Nossa Senhora. w Em livros e folhetos de oração, A.M. refere-se à oração da
ave-maria (cf. Lc 1,28). Às vezes, A.M. aparece em
conjunto com P.N. (pai-nosso) e G.P. (glória ao pai),
p.ex.: uma oração contra os inimigos pode trazer
no final P.N., A.M., G.P. w Ver tb. Rosário; Folheto
de Orações.
A.M.D.G. | Letras iniciais da frase, em latim, Ad
Maiorem Dei Gloriam, “para a maior glória de Deus”
(1Cor 10,31). w Divisa dos jesuítas encontrada em
igrejas e em documentos.
A CARTA MISTERIOSA DO PADRE CÍCERO
ROMÃO BATISTA SOBRE OS SINAIS DO FIM DO
MUNDO | Folheto de autor desconhecido impresso
em Juazeiro do Norte (CE). Os versos aqui
selecionados falam das profecias de padre Cícero
(1844-1934) e mostram que existe uma continuidade
entre o patriarca de Juazeiro e o frei Damião (18981997): Este meu livrinho é/ pra quem tem fé em Jesus/
que morreu pra nos salvar/ crucificado na cruz/ (pra
quem) crer na Virgem da Conceição/ e Deus Pai da
criação/ quem nos dá conforto e luz.// Jesus Espírito
Divino/ Eterno Pai verdadeiro/ deixai que eu faça um
aviso/ que abala o mundo inteiro/ o padre Cícero
Romão/ visitou frei Damião/ na matriz de Juazeiro.//
Agora recentemente/ o frei Damião estava/ dormindo
e teve um sonho/ que o padre Cícero chegava/ com
uma carta na mão/ junto com uma oração/ e na
sua mão entregava.// Quando frei Damião acordou,
um anjo em forma de pombo deixou cair-lhe nas
mãos a carta com avisos do padre Cícero: Meus
filhos, o mundo velho/ sei que brevemente cai/ é a
lei de Lúcifer/ dessa vez o povo sai/ já avisei muita
gente/ agora eu vim novamente/ e o mundo está vai
não vai.// Seguem conselhos para pais de família,
mulheres casadas e para moças solteiras, p.ex.:
Deixem de farra, uso e dito/ anarquia e sedução/
moda, escândalo e orgia/ namôro e chumbegação/
quem nada disso deixar/ nunca poderá chegar/ no
trono da salvação.// Outros avisos são contra jogo,
espiritismo, xangô e catimbó. O folheto encerra
esta parte dizendo: Feiticismo e bruxaria/ é arte do
satanaz/ e quem faz mal ao próximo/ nunca acertará
jamais/ com a entrada triunfal na mansão celestial/
do Rei dos reis, Pai dos pais.// Seguem as profecias
do fim do mundo: Meus filhos, o nosso mundo/ está
muito diferente/ daqui pra 85/ há de morrer muita
gente/ verão soluços e gemidos/ aflição e alaridos/
choro e ranger de dentes.// Meus filhos, o nosso
mundo/ está sendo castigado/ morte, traição e
roubos/ vai surgir de todo lado/ Devido a necessidade/
muitos não tem vontade/ de roubar mas é forçado.//
Meus filhos, eu vos aviso/ para deixarem o pecado/
eu vim do reino da Glória/ por Jesus Cristo enviado/
Noé também avisou/ mas ninguém acreditou/ fora
tudo castigado.// Foi palavra que Deus disse/ na
Escritura Sagrada/ que por causa de orgia/ a nação
é castigada/ e nossa presente era/ dois mil anos
24
Dicionário da Religiosidade Popular
não intera/ breve será consumada.//(...) Nos
últimos dias verão/ o oceano gemendo/ o mundo
pegando fogo/ as pedras se derretendo/ a luz do
sol se apagando/ e o céu escurecendo.// Termina
recomendando a Oração de Nossa Senhora do
Monte Serrat; ver Sagrada Escritura.
A MOÇA QUE VIROU COBRA | Folheto do poeta
popular Severino Gonçalves; ver Moça.
A MORRER CRUCIFICADO | Hino tradicional cantado na quaresma, durante a via-sacra. Suas 21 estrofes constam do “Cânticos Espirituais” (1876), p.
114. Trata-se de uma tradução livre do Stabat Mater,
com música brasileira1. São transcritas aqui apenas
as estrofes 1-6 e 14: A morrer crucificado/ teu Jesus
é condenado/ por teus crimes, pecador.// Com a cruz
é carregado/ e do peso acabrunhado/ vai morrer por
teu amor.// Com o madeiro oprimido/ cai Jesus desfalecido/ pela tua salvação.// De sua mãe dolorosa/
no encontro lastimosa/ vê a viva compaixão.// Em
extremo desmaiado/ de Simeão, obrigado,/ aceita a
viva compaixão.// O seu rosto ensanguentado/ por
Verônica enxugado/ contemplemos com amor.//(...)
Meu Jesus, por vossos passos/ recebei em vossos
braços/ este grande pecador.// w Ver tb. Pranto de
Nossa Senhora.
A
NEGRA
DA
TROUXA
MISTERIOSA
PROCURANDO TU | Folheto do poeta Rodolfo
Coelho Cavalcante, que traz exemplos de ética, moral
e moralismo na religiosidade popular. A “Negra da
Trouxa” apareceu na Bahia. Foi assim: Um viajante
de Feira (de Santana)/ com a negra se encontrou,/
ofereceu-lhe carona,/ mas ela não aceitou,/ dizendo
que só queria,/ mostrar a mercadoria/ que o Satanáz
mandou.// A negra desceu a trouxa/ da cabeça e foi
mostrando/ ao viajante que ali ficou só observando,/
cada objeto que ela/ tirava da trouxa dela/ ia o
rapaz se assustando.// Minissaia, soutien,/ vestido
curto, lascado,/ tamanco alto da moda/ esmalte
roxo, encarnado.../ peruca loura e comprida,/ Elixir
de Longa Vida/ para homem já cansado...// Lápis
para sobrancelha,/ maiô para se banhar,/ baton de
creme-de-nata/ para mulher se enfeitar;/ cachaça
Cana-Caiana/ fabricada em Itabaiana/ de ver a
palha voar!// Maconha, LSD,/ patuá de macumbeiro/
para mulher ganhar homem,/ rosário de feiticeiro.../
do inferno o panorama,/ retrato de “mulher-dama”/
que usa rapaz solteiro.// A negra tirou da trouxa/ as
modinhas atuais/ por exemplo: “Bebo Sim”,/ “Jesus
Cristo” e outras mais,/ que o povo na zombaria/ canta
de noite e de dia/ nos piores lupanais!// Tinha “Todo
Mundo Nu”,/ “Casamento de Maria”/ e o “Procurando
Tu”/ com sentido de anarquia./ Foi mostrando outras
mais,/ que todo e qualquer rapaz/ do interior já sabia.//
“Ovo de Codorna” era,/ disse a negra em gargalhada/
pelos capetas d’agora/ no inferno mais cantada.../
Mostrou brinquedo de gente,/ por exemplo: uma
corrente/ de mulher nua, gravada.// A negra tirou
da trouxa/ “O Choro da Quebradeira”,/ olhos de
mulher devassa,/ lábios de namoradeira,/ algemas
de criminosos,/ retratos de mentirosos,/ bagunça de
fim de feira!...// A negra não satisfeita/ expôs o troço
miúdo:/ calça curtinha de homem,/ óculo de moça,
graúdo,/ pemba, cruz, foice e baralho,/ rosário, figa,
chocalho,/ adornos de cabeludo!// Havia dentro
da trouxa/ orgulho, ódio, ambição,/ falsidade,
hipocrisia,/ homicídio, sedução,/ sequestros e
utopias,/ calúnias e vilanias,/ luxo, prostituição!...//
Mulher falsa ao seu marido,/ desrespeitos paternais,/
falta de decoro público,/ desobediência aos pais,/
costumes introvertidos,/ algemas para bandidos,/
tarados sexuais!...// Bebedores de aguardente/ que
1 CARVALHO, Filipe Rosa. Cantar e rezar. Lisboa: [S.n.] 1954. p. 96.
Consta como um “canto brasileiro”.
destruíram seus lares,/ homens que vivem do jogo/
nos ambientes vulgares/ mãe cruel, vituperina,/
que o próprio filho assassina/ semelhantes aos
chacais.// A negra bazofiando/ dentro da trouxa tirou/
um caderno avermelhado/ e ao viajante mostrou/ o
porvir da humanidade,/ os cáus da sociedade/ que
até o moço chorou.// Nos versos seguintes, há uma
previsão para o mundo a partir de 1970. O autor do
cordel termina dizendo: A negra pegou a trouxa/ e
partiu para adiante.../ Naquela hora caiu/ para trás
o viajante./ Valei-me, Mãe dolorosa,/ que a Negra
Misteriosa/ não agarre o Cavalcante!// Existem
semelhanças entre os pecados enumerados da
trouxa e certos pecadores encontrados no inferno.
w Ver tb. Humor; Moda.
A NÓS DESCEI DIVINA LUZ | Hino tradicional cantado no início do terço cantado das novenas, especialmente no pentecostes e na festa do Divino. Tb.
a santa missão começava sempre com este hino: A
nós descei, Divina Luz,/ em nossas almas acendei/ o
amor, o amor de Jesus.// Sem vós, Espírito Divino,/
cegos só podemos errar/ e do mais triste desatino/ no
mais profundo abismo/ sem fim, sem fim penar.// w
As festas oficiais geralmente começavam com o hino
latino ao Espírito Santo: veni-creator.
A VIDA DE PEDRO CEM | Folheto do poeta João
Martins de Athayde que mostra o exemplo do avarento que acaba castigado, pois na riqueza não se
pode confiar como diz a expr. popular: O homem que
junta dinheiro, não tem fé em Deus; ver Confiança.
w Alguns versos iniciais: Pedro Cem era o mais rico/
que nasceu em Portugal/ Sua fama enchia o mundo/
seu nome andava em geral/ não casou com rainha/
por não ter sangue real.//(...) Em cada rua ele tinha/
cem casas para alugar/ Tinha cem botes no porto/ e
cem navios no mar/ Cem lanchas e cem barcaças/
tudo isso a navegar.// Tinha cem fábricas de vinho/
e cem alfaiatarias/ cem depósitos de fazenda/ cem
moinhos, cem padarias/ e tinha dentro do mar/ cem
currais de pescarias.//(...) Diz a história onde li/ em
todo esse passado/ que Pedro Cem nunca deu/ uma
esmola a um desgraçado/ Não olhava para um pobre/
nem falava com criado.// Pedro Cem, muito rico e
nada caridoso, teve vários sonhos avisando que seria
castigado e sua riqueza iria se acabar. Mesmo assim,
não ajudava ninguém e dizia: Porque ainda que Deus/
querendo me castigar/ não afundará num dia/ meus
cem navios no mar/ as cem fazendas de gado/ custarão se acabar.//(...) E as centenas de contos/ nos bancos depositados/ e tudo isso em poder/ de homens
acreditados/ ainda Deus querendo isso/ seus planos
serão errados.// Depois disso, Pedro Cem começou
a receber notícias de navios afundados, riquezas
roubadas, bancos quebrados, vinhos derramados e
gado adoentado. O que sobrou não dava para pagar
nem a décima parte dos prejuízos. Lançando a mão
à mochila/ saiu no mundo a vagar/(...) // Ele dizia nas
portas:/ Uma esmola a Pedro Cem/ que já foi capitalista/ ontem teve, hoje não tem./ A quem já neguei
esmola/ hoje a mim nega também.//(...) Não desespero, pois sei/ que grande crime espio (expio)/ nasci em
berço dourado/ dormi em colchão macio/ hoje morro
como os brutos/ neste chão sujo e frio.// Quem planta
flores, tem flores/ quem planta espinho tem espinho./
Deus mostra ao espírito fraco/ o que nega ao mesquinho/ a virtude de um negócio/ a boa ação um pergaminho.// w O folheto lembra o dito popular bastante
conhecido: Quem tudo quer, tudo perde!
ABÁ | [Do iorubá “àbá”, sugestão.] No candomblé iorubá, princípio segundo o qual as coisas têm objetivo,
direção. 2 Esperança. w Segundo Monique Augras, é
2 SODRÉ, Muniz; LIMA, Luís Felipe de. Um vento sagrado: história
Abacé | Abc do São Francisco ou Abc do Rio São Francisco
um dos três poderes de Olorum: o princípio da existência (iuá), a força sagrada (axé) e o princípio da
permanência (abá).3 w Segundo Volney Berkenbrock,
"abá é a terceira das forças de Olorun que sustentam
e possibilitam o sistema orum-aiyê”.4 ver Orum.
ABACÉ | O mesmo que gongá.
ABADÃ | Nome dos tambores usados no babaçuê;
são de madeira, com couro de um lado só.
ABAIXO DE DEUS | Expr. usada ao falar de pessoa
ou coisa muito importante, p.ex., Abaixo de Deus é
fulano que me ajuda.// Abaixo de Deus foi a jendiroba que me curou. w Prov.: Acima de Deus nada;
abaixo de Deus tudo.
ABALUAÊ ou ABALUAIÊ | O mesmo que Obaluaiê.
ABARÁ | [Do fon “ablă”.] Bolinho preparado com
massa de feijão-fradinho, temperado com pimenta,
azeite de dendê e cebola. Algumas vezes é misturado com camarão, enrolado em folha de bananeira e
cozido em água. w No candomblé iorubá, comida de
santo oferecida aos Ibeji, a Iansã e a Obá.
ABARÉ | [Do tupi “aua’re”, clérigo ou frade.] Nome
que os índios davam aos padres desde o séc. XVI,
particularmente aos jesuítas.5 Ao missionário jesuíta
Leonardo Nunes (†1554) chamavam “abaré-bebê”,
padre que voa. w Na umbanda, médium desenvolvido.
ABASSÁ | O mesmo que gongá.
ABATÁ | [Do iorubá “bàtá”, tambor com dois lados
em forma de ampulheta.] Pequeno tambor de origem iorubá com um couro em cada extremidade. É
usado nos terreiros da nação nagô, pendurado no
pescoço do tocador, sendo batido dos dois lados. A
palavra iorubá “bàtá” significa tambor para o culto de
Egungun e de Xangô. Ritmo cadenciado para Xangô,
Iansã, Oxalá, Odudua. w Batacotô, tambor de guerra
de origem iorubá. Esses tambores foram destruídos
durante a Revolta dos Malês (1835) e sua importação foi proibida a partir de 1855. Batá-kotô, toque de
guerra usado igualmente pela sociedade “Geledé”
(máscara), na ilha de Itaparica (BA). Durante muito
tempo seu uso significava pena de prisão ou morte. w
No Maranhão, tambor cilíndrico usado nas casas de
tambor de mina.
ABC | Versos de roda (Itinga-MG): Fui caçar no ABC/
A letra da minha paixão/ Eu achei a letra Mê/ Coloquei
no coração.// ver Alfabeto antigo. w Totalidade do
saber sobre um assunto. Carta ou cartinha do ABC:
cartilha; ver Abecedário. w Forma antiga de poesia:
séries de versos que começam pelas letras do alfabeto. São encontrados inclusive na Bíblia. Há, p.ex.,
quatro ABCs no livro das Lamentações 1 a 3. No ano
de 393, Santo Agostinho compôs um “Psalmus
abecedarius” contra a seita de Donato. w Um "ABC
dos Exemplos” consta do Compêndio Narrativo
do Peregrino da América, texto moralista do padre
baiano Nuno Marques Pereira (1652-1718). w Forma de poesia popular em que cada estrofe começa
com uma letra do alfabeto, do A ao Z, terminando às
vezes com o til. Quando falam de fatos recentes, os
abecês tb. são chamados de “pasquins” ou pisquins.6
No Rio Grande do Sul, existe o ABC da guerra dos
Farrapos. É frequente na literatura de cordel: ABC
do Amor, ABC da Meretriz, ABC dos Aposentados,
ABC de João Augusto, ABC da Cachaça. w Os versos na sequência do ABC facilitam a memorização e
de vida de um adivinho da tradição Nago-Ketu brasileira. Rio de
Janeiro: Mauad, 1996. p. 175.
3 AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose. Petrópolis: Vozes,
1983. p. 58.
4 BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás: um estudo sobre
a experiência religiosa no candomblé. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 187.
5 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário histórico das palavras
portuguesas de origem tupi. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos,
1982. p. 41.
6 Discos Marcus Pereira. MPL 9392, 1979.
a participação. Às vezes, são de grande seriedade,
como no ABC do Vaqueiro em Tempo de Seca (CE)
na letra “O”: Ó bom Deus de piedade/ A mim me queira livrar,/ Enquanto vida tiver/ E bens alheios tratar.// 7
w Existem diversos ABCs religiosos: ABC de Nossa
Senhora, ABC das almas, ABC de Santo Antônio;
ver Abecedário de natal; Canto Popular. w Na sua
"Missa Breve" (1973), Edu Lobo canta: Eu disse um
A por nosso amor/ eu disse um B, brandosa e bela./
Eu disse um C, corpo querido/ Depois um D da dor
da terra/ Esperança aberta/ Festa ferida/ Guerra dos
homens/ Hora roída/ Eu disse um Q, querença antiga/ Eu disse um Rê, rosa ferida/ Num S eu sou salve
rainha/ Depois num T, treva daninha/ Última espera/
Vida Vazia/ (X) Choro sangrado/ Zelando o mundo.//
ver Música Popular Brasileira (MPB).
ABC DAS ALMAS | Encontrado no livrinho “Mês das
Almas do Purgatório”8 no final do ofício das almas.
Ambos, ofício e ABC, são textos moralistas em linguagem erudita. Algumas letras: Ai de nós que se
dilata/ a nossa ardente prisão./ Quando veremos a
Deus/ no reino da salvação?// Bem podiam nossos
filhos,/ nossos irmãos, nossos pais,/ moderar nossos
tormentos,/ dar alívio aos nossos ais.// Com sufrágios, com pedidos,/ a Deus, nosso Salvador/ p’ra
tirar-nos destas chamas/ pelo seu divino amor.//
Não peques, pois que os pecados/ condenam sendo
mortais,/ estas chamas só consomem/ simples pecados veniais.// Purgatório onde existimos,/ chamado
“igreja purgante”,/ é o lugar que habitamos/ entre
fogo devorante.// ver Irmão das almas.
ABC DE BOM JESUS DA LAPA | ABC conhecido
entre os barranqueiros do rio São Francisco.
ABC DE NATAL | ver Abecedário de natal.
ABC DE NOSSA SENHORA | O canto parece ser
antigo, pois há fragmentos dele em várias regiões do
país. Em Ponte dos Carvalhos (PE), padre Geraldo
Leite, conhecedor da religiosidade popular, recuperou e divulgou o ABC de Nossa Senhora na déc. de
1970: Diz um A Ave Maria; diz um B Bondosa e bela;
diz um C Cofre de graça; diz um D Divina estrela./ Diz
um É Esperança nossa; diz um Fê Fonte de amor; diz
um Guê Guia do povo; diz um Agá Humilde flor./ Diz
um I Imaculada; diz um Ji Janela aberta; diz um Ká
Koros de anjos; diz um Lê Luz sempre certa./ Diz um
Mê Mãe dos mortais; diz um Nê Nuvem de brilho; diz
um Ó Orai por nós; diz um Pê Por vossos filhos./ Diz
um Quê Querida mãe; diz um Rê Rainha da Paz; diz
um Si Socorrei sempre; diz um Tê Todos mortais./ Diz
um U Única saída; diz um Vê Vale fecundo; diz um
Xis Xis dos mistérios; diz um Zê Zelai o mundo.// 9
ver Alfabeto antigo. w Enquanto a igreja não divulga
nas suas publicações a riqueza dos textos tradicionais
da religiosidade popular, as editoras espiritualistas
percebem o desejo do povo de encontrá-los. Por isso,
pesquisam e os publicam em manuais de bruxaria e outras obras esotéricas. No "Verdadeiro Livro da Cruz de
Caravaca", (Ed. Espiritualista, RJ, s.d.), consta da p. 49,
uma variação deste ABC: Ave Maria; Bondosa e bela;
Cheia de Graça; Divina Rosa.// És uma vida; Fulgente
Luz; Ganhaste o céu; Honras Jesus.// Imenso amor; Jamais sem fim; Kirie, o teu filho; Louvou-te, assim.// Mãe
da alegria; Nos vendavais; Oras, Maria; Pelos mortais.//
Quando, Senhora; Rezo contrito; Sinto nessa hora; Tudo
infinito.// Um teu perdão; Virá por fim; X de um mistério,/
Zelar por mim.// w Existe tb. um ABC de Nossa Senhora
Aparecida. Diz o verso do til: Til é letra derradeira/ que
7 ROMERO, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: José
Olímpio, 1954. v. 1. pp. 27-230.
8 PEREIRA, José Basílio. Mês das almas do purgatório. 11. ed.
Salvador: Mensageiro da Fé, 1947. pp. 119-122.
9 No LP “Nação do Divino”, disco independente.
Abc
pede por nosso bem./ Milagrosa padroeira,/ abençoai-nos, amém.// 10 w Ver tb. Fecundidade.
ABC DE NOSSA SENHORA APARECIDA | Segundo
Luís da Câmara Cascudo, o “Abecedário em louvor à
milagrosa Nossa Senhora da Conceição Aparecida”
é lembrança de sua coroação em Aparecida do Norte
(SP), em 8 de setembro de 1904. Ficou bastante conhecido pelo Sul do Brasil. Alguns versos: À vós, pura
e imaculada/ Conceição Aparecida/ vem rezar ajoelhada/ a minh’alma desvalida.// Beijando-vos com
fervor/ o vosso manto sagrado/ confesso-vos meu
amor/ contrito e resignado.// Conceição Aparecida/
neste Itaguassu formoso,/ dai-me a paz “apeticida”,/
fazei-me sempre ditoso.// Domingos Martins Garcia,/
foi um dos três pescadores/ que vos acharam, divina/
salvação dos pecadores.// Era Felipe Pedroso/ um
outro, que, na canoa/ foi um pescador ditoso que o
Pai celeste abençoa.// Falta-me agora falar/ de João
Alves, pescador,/ que quando as redes colhia/ abraçou-vos com amor.// 11 ver Nossa Senhora Aparecida.
ABC DIVINO | Canto registrado em Paracatu (MG).
Mostra que nem todo ABC emprega todas as letras
do alfabeto. (Refr.) O ABC Divino/ foi feito com fundamento/ recorda sua vida/ levantai seu pensamento.//
Versos: As almas se bem soubessem/ consideravam
toda hora/ a morte e a paixão de Cristo/ e as dores
de Nossa Senhora.// A lançada que lhe deram/ de
tão longe traspassou/ Traspassou Jesus no peito/ e
Maria no coração.// O madeiro era tanto/ a Jesus
acompanhavam/ em suas faces cuspiam/ e suas
barbas puxavam.// Abri as portas, Senhora/ dá horta
pelo jardim/ pelas vossas cinco chagas,/ não fechai
assim pra mim.// No dia 25 de agosto,/ é de ver o sol
correr/ e também tem de ver/ a terra toda tremer.//
Quem souber e não ensinar/ quem ouvir, não aprender/ quando for no dia do juízo/ todos hão de arrepender.// Essas três letras, Senhora/ foi feita por mão
do Senhor/ justo é o fim do mundo/ misericórdia, Senhor.// Misericórdia meu Deus/ Misericórdia Senhor/
Misericórdia vos peço/ a nós grandes pecadores.//
Vou rezar este bendito/ pra o Senhor do Bonfim/ pra
livrar nós do castigo/ para sempre amém, Jesus.// 12
ABC DO JUAZEIRO | Poesia de Francisco
Germano, poeta sertanejo do Rio Grande do Norte.
Versos iniciais: Agora peço atenção/ ao povo e ao
companheiro/ pra tratar de um ABC/ peço licença
primeiro/ e esta deve ser tanta/ segundo a beata
santa/ do padre do Joazeiro.// Bem me parece este
padre/ um Sagrado Testamento/ vindo para nos livrar/
de tanto iludimento/ Deus mandou-o nos avisar/
para nós acompanhar/ o melhor regulamento.//
Conduz este padre santo/ a favor dos pecadores,/
primeiramente a virtude/ do maior dos pregadores,/
uma santidade exata/ e uma santa beata/ da Santa
Mãe das Dores.// Devemos o acompanhar/ e fazer o
que ele manda/ Vamos fazer deixação/ da cegueira
em que se anda,/ com a vista tão escura, ele mesmo
nos procura/ e nós tirando de banda...//13 ver Sermão.
ABC DO NEGRO | ver ABC dos Negros.
ABC DO SÃO FRANCISCO ou ABC DO RIO SÃO
FRANCISCO | Encontramos dois ABCs com este
nome: um anônimo e outro de Jove da Mata. Anterior
a esses, achamos um texto registrado da boca do remeiro Seu Tomé por Manoel Ambrósio, em 1912: “...
conheço muito estes logá, como as palmas de m’eas
mão; e vocês qué vê? Mió conte Deus: Negoço do
10 SANT’ANNA, José. Folclore poético: quadras anônimas. Olímpia:
Museu de História e Folclore Maria Olímpia, 1997. p. 88.
11 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000. pp. 79-81.
12 Cantos Regionais, na diocese de Paracatu. Unaí: 1979. (mimeografado) p. 5.
13 Apud: CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio
de Janeiro: Ediouro, 2000. pp. 135-138.
Dicionário da Religiosidade Popular
25
Abc
Abc do Senhor Bom Jesus de Iguape | Abc dos Reis
Juazeiro./ Nobreza de Santa Sé./ Riqueza de Pilão
Arcado./ Usura do Chique-Chique./ Pabulage da Barra./ Prego d’Urubu./ Fome da Carinhanha./ Fartura
do Sargado./ Preguiça do São Romão./ Cachaça do
Pracatu./ E acrescenta: Antão, seu piloto? Que não
sou individe que anda com gerematia; não baculo a
ninguém; nunca baculei. Cond’eu digo uma coisa,
pod’s’iscrevê.14 w No primeiro, o poeta anônimo, em
vez de seguir as letras do alfabeto, enumera os portos dando a cada um sua cor local: Juazeiro das lordeza/ Casa Nova da carestia/ Sento Sé da nobreza/
Remanso da valentia.// Pilão Arcado da desgraça/ Xiquexique dos “bundões”/ Icatu só dá cachaça/ Barra
só dá ladrões.// Morpará fora do mapa/ Bom Jardim
da rica flor/ Urubu da Santa Cruz/ Triste o povo da
Lapa/ se não fosse o Bom Jesus.// Cariranha é bonitinha/ Malhada é que não é./ Passo fora no Morrinho/
Pago imposto em Jacaré./ Januária é da cachaça,/
São Francisco é da desgraça,/ São Romão feitiçaria,/
Pirapora da p...// 15 w O segundo ABC, de Jove da
Mata, trata da injustiça no vale do Rio São Francisco (1941): A justiça em São Francisco/ tem se tornado
famosa,/ vulgarizou o seu nome/ numa baila vergonhosa/ quer na roça ou na cidade/ o seu nome está na
prosa.// Basta dizer que o fórum/ parece mais um covil/ o juiz que o preside/ afeiçoou-se ao lôdo vil/ de ser
baixo e turbulento/ é este o seu perfil.// Com a nova
Constituinte/ a coisa modificou,/ o ministro da justiça/
o direito reformou,/ em São Francisco, ao contrário,/
no ostracismo ficou.// Desde que o mundo é mundo/
São Francisco é falado,/ e agora mais do que nunca/
São Francisco está danado,/ com sua justiça faminta/ tal corvos em bando alado.//(...) Getúlio Vargas,
o Presidente/ governador da Nação/ governa todo o
Brasil,/ mas São Francisco não./ São Francisco é governado/ fora de legislação!// Haja vista o que se deu/
numa viagem que fiz/ encontrava o fazendeiro/ era
uma surpresa infeliz,/ perguntava apavorado/ Será
gente do juiz!//(...) Judas vendeu o grande mestre/ e
depois se arrependeu./ Em São Francisco a justiça,/
por vezes, já se vendeu;/ e se há arrependimento,/
isto lá nunca se deu!//(...) O juiz de São Francisco/ é
sem dó e sem entranhas,/ contra os pobres roceiros/
move grandes campanhas/ e pra defender o capital/
não lhes faltam artimanhas!// Parece que aquele homem/ não conhece a caridade,/ por isso vive agindo/
com brutal ferocidade,/ não respeitando pobreza/
viuvez, nem orfandade.//(...) “Yoyozinho” do céu/ que
é grande justiceiro/ habita lá nas alturas/ mas vê o
universo inteiro,/ olhai para o São Francisco/ e desarmai o bandoleiro.// Zangue zangue quem zangar/
meu abecê escrevi/ e canto com causa justa/ as misérias que já vi./ É o extrato da história/ da terra onde
nasci!//(...) Til é um acento gráfico/ e com ele vou fundar/ as misérias de São Francisco/ faz vergonha de
contar/ e se ofende a vosmecês,/ por Deus queiram
me desculpar.// “Yoyozinho” é entidade conhecida na
umbanda do vale do rio São Francisco. O folclorista
Saul Martins disse: “Este poema nasceu a 21 de maio
de 1941, na fazenda Mata do Engenho. Foi escrito
com o sangue do coração! Foi escrito num momento
em que eu teria de transformar-me em bandido e arrancar a vida de um juiz inefasto que arrancou o pão
da boca de meus filhos, justamente num momento
em que eles mais precisavam. Depois de muito ponderar e meditar as coisas, resolvi tornar-me poeta em
vez de bandido e cantar a minha própria dor! Rogoberto Ferreira da Silva, juiz de Direito de São Fran14 AMBRÓSIO, Manoel. Brasil interior: palestras populares, folk-lore das margens do S. Francisco. São Paulo: Instituto Histórico e
Geográfico de Minas Gerais, 1934. pp. 206-207.
15 TRIGUEIROS, Edilberto. A língua e o folclore da Bacia do São
Francisco. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1977. p. 25.
26
Dicionário da Religiosidade Popular
cisco, que homem horroroso! Acompadrou-se com o
ditador da terra, homem que só conhece como Deus
do Céu e da terra dinheiro! Em nome da justiça, com
seus processos mais ou menos cúpidos invadia as
fazendas e vendia o gado a seu compadre.”16
ABC DO SENHOR BOM JESUS DE IGUAPE | Consta do livro “Novo Goffiné Brasileiro”; ver Bom Jesus
de Iguape. Texto semelhante ao ABC do Senhor
Bom Jesus de Mattosinhos.
ABC DO SENHOR BOM JESUS DE MATTOSINHOS
| Encontrado em folha impressa e amarelada: A, B
e C quero escrever/ em louvor ao Bom Jesus/ Bom
Jesus allumiae-me/ com vossa divina luz.// Amoroso
Bom Jesus/ venho aqui visitar,/ O prazer que se me
offerece/ eu não vos posso explicar.// Bem me custa
vir vos ver,/ nesse throno assim atado!/ Bom Jesus,
tantos tormentos/ por causa do meu pecado.// Como
não hei de sentir/ grande dor no coração?/ Por vossa misericórdia/ Bom Jesus, dai-me perdão.// Divino
meu Bom Jesus,/ Divina consolação!/ Por vossa misericórdia/ livrai-me de tentação.// Eu sou um romeiro
vosso/ que a vós venho em romaria./ Peço-vos, meu
Bom Jesus,/ que andeis sempre em minha guia!//
Faltou minha retentiva,/ mas quero a continuar,/ com
vossa divina luz/ para me allumiar.// Guiai-me por
bom caminho,/ Bom Jesus de compaixão!/ Por vossa misericórdia/ livrai-me de tentação.// Hoje aqui já
imagino/ qual a tua imaginação./ Bom Jesus, quando me for/ à triste separação.// Imaculado cordeiro,/
immolado à salvação/ dos humanos pecadores,/ tem
de mim dó, compaixão.// Já tenho de mim tristeza/
no meio desta alegria,/ Bom Jesus, vossa lembrança/
vae na minha companhia.// Kalendário vou contar!/
de dias de terna ausência/ deste templo, deste altar,/
q’habitaes com complacência.// Lembrar-me-hei eu
de vós/ em qualquer longas alturas/ Bom Jesus de
piedade/ remédio das creaturas.// Mas eu tenho uma
esperança/ de outro prazer alcançar/ Bom Jesus,
favorecei-me/ que eu espero cá voltar.// Nem por isso
vos custou/ como a mim mal parecia/ o Bom Jesus
me ajudou,/ venho em sua companhia.// Oh quantos
milagres vejo/ que não se pode contar!/ Bom Jesus,
vosso remédio/ a todos pode curar.// Por muitos que
aqui vejo/ outros que já não existe/ Menino em taxo
a ferver/ Bom Jesus lhe acudiste.// Que exemplo fizeste a quem/ o rosário abandonou/ uma cobra no
pescoço/ de Maria Jesus tirou.// Resplandece vossa
igreja/ com ternura e alegria/ Bom Jesus crucificado/
Filho da Virgem Maria.// Só vós viestes ao mundo/
para remir o peccador/ Bom Jesus de misericórdia/
Bom Jesus crucificado.// Todos pedimos perdão/ de
nosso grande peccado/ por vossa misericórdia/ Bom
Jesus crucificado.// Uni-nos ao vosso peito,/ pela
lança transpassado,/ para que por vosso amor/ nos
livremos do pecado.// Vos acharam lá na praia/ vos
lavaram em água pura/ Bom Jesus de piedade,/ remédio da creatura.// Xacoco, chego a vós/ com meu
coração rendido./ Bom Jesus me perdoai/ quando vos
tenho offendido.// Ynclito é vosso nome/ emquanto o
mundo viver/ Bom Jesus allumiai-me/ para nunca vos
offender.// Zephiros brandos e brisas,/ auras plácidas
e aragem,/ nos mandai as vossas velas/ para virmos
de romagem.// ~ (til) é a última letra,/ vai pedindo clara luz!/ Bom Jesus allumiai-me,/ para sempre. Amém,
Jesus.// Trata-se de qual “Senhor Bom Jesus”? Parece que o Senhor “nesse throno assim atado” (letra B)
e que “acharam lá na praia” é o “Senhor Bom Jesus
de Iguape”. Pode-se ainda observar a coincidência
nos versos da letra E com o respectivo verso do ABC
citado no verbete Bom Jesus de Iguape.
16 Apud: AZEVEDO, Teófilo de. Literatura popular do Norte de
Minas. São Paulo: Global, 1978. pp. 113-116.
ABC DOS NEGROS | Tb. chamado Alfabeto do Negro (São Sebastião do Maranhão-MG). w Poesia longa que divulga a discriminação do negro; ver Religião e realidade social. w Leonardo Motta colheu uma
versão do ABC dos Negros, no Maranhão: A: Agora
tocou à sorte/ dizer o que o peito sente,/ falar dos “13
de maio”/ que também querem ser gente.// B: Bacalhau de couro cru/ com três palmos de comprido,/ é
o que dá ensino a negro/ mode não ser atrevido.//(...)
J: Jogo de branco é dinheiro/ de caboco é frecharia/
vida de cabra é cachaça/ de negro é feitiçaria.//(...)
V: Viola desafinada/ não pode tocar lundu./ manguá
em costa de negro/ é quem tira calundu.//(...) “Til”:
Til como letra do fim/ por ser acento moderno/ inda
tenho fé de ver/ “13 de maio” no inferno.// Segundo
Luís da Câmara Cascudo, este texto é posterior a
13 de maio de 1888 e anterior a 15 de novembro de
1889.17 ver Bacalhau. w As estrofes seguintes são
parte de uma versão encontrada no vale do Jequitinhonha (MG): Andava em algum tempo/ quando tinha
imperador/ as coisas andavam melhor/ porque negro
tinha senhor./ As coisas todas arruinaram/ depois que
negro forrou.//(...) Cara de negro é terrível/ é coisa
sem formosura./ Tudo de negro não presta/ só tem
boa dentadura./ Foi o que Deus confiou/ para negro
roer rapadura.// Devemos imaginar/ e prestar bem
atenção/ que ainda não se sabe/ de onde veio esta
nação,/ se foi obra do capeta ou livosia do cão.//(...)
Homem negro não é/ é coisa que eu garanto./ Deus
não quer nada com negro/ nem negro nada com santo./ Negro é como urubu/ na hora que toma espanto.//(...) Oração de negro é coco,/ barriga de negro
é mala,/ doce de negro é sabão,/ casa de negro é
cangalha,/ queixo de negro é miséria,/ desengano de
negro é bala.// Razão negro nunca teve/ pelas más
ações que faz./ Festa que negro vai/ não pode acabar
em paz./ Pois eles já vão mandados/ por ordem de
satanás.//(...) Uns negros vivem morrendo/ fazendo
papel do cão./ Tanto os negros como as negras/ só
vivem na má intenção.// 18 Numa versão registrada por
Leonardo Mota lemos: Nêgo não nasce, aparece!/ e
não morre, bate o cabo!/ Branco dá a alma a Deus/ E
nêgo dá a alma ao diabo.// 19
ABC DOS PREGUIÇOSOS | ver Preguiça.
ABC DOS REIS | Em Serro (MG), padre Celso de
Carvalho registrou: Alegrai-vos, Mãe de Deus,/ Mãe
do nosso Sumo Bem./ Cantamos com alegria:/ Cristo
nasceu em Belém.// Bem a barcos e baraços/ sibilou
a serpente;/ cantamos com alegria/ os reis magos
do Oriente.// Correi pastores das aldeias/ deixando
vosso cajado./ Ajudai os três monarcas/ a fazer o
seu reinado.// Das três pessoas divinas/ iguais na sabedoria/ uma desceu do céu à terra/ por verdadeiro
Messias.// Entre palhinhas deitado/ achou-se o meu
bom Jesus/ que desceu a este mundo/ para nos encher de luz.// Feliz pode já cantar/ a descendência de
Adão:/ Nasceu o Menino Deus/ para a nossa redenção.// Grande alegria tiveram/ os três reis orientais/ A
jornada empreenderam/ deixando seus tronos reais.//
Humildes, cheios de glória,/ perseguiram na jornada/
guiados por uma estrela/ de areia fabricada.// Indo
com grande alegria/ e com toda a devoção,/ visitar
o Deus Menino/ e prestar adoração.// Julgando finda
a jornada/ a Herodes perguntavam/ aonde nasceu
Jesus.// Lembrando pode informar/ que lêra nas
profecias/ que em Belém era nascido/ o verdadeiro
Messias.// Mostrando ser inocente/ como quem quer
17 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000. pp. 75-77.
18 POEL, Francisco van der. O rosário dos homens pretos. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1981. pp. 110-112.
19 MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão
cearense. 2. ed. Rio de Janeiro: A Noite, 1953. p. 82.
Abc dos Ricos ou da Carapuça | Abiã
adorar,/ recomenda aos três monarcas/ para notícia
lhe dar.// Não podia os três monarcas/ deixarem de
prosseguir/ a jornada que fizeram/ sem da cidade
sair.// Ordenou o Santo Verbo/ provisão sem dar
por verso./ Foi guiar os três monarcas/ no caminho
adverso.// Por chegar em boa hora/ quando a luz do
céu sumiu/ tendo findado a jornada/ novo caminho se
abriu.// Quando chegaram a Belém,/ finda a bendita
jornada/ logo viram uma estrela/ da cidade retirada.//
Resplandecia o Menino/ a Virgem e São José./ Rei
Herodes perguntou/ que menino este é?// Soberano
Rei da Glória,/ com toda sabedoria,/ que desceu do
céu à terra/ por verdadeiro Messias.// Toda a santa
companhia/ do alto império se moveu./ Na Lapinha de
Belém/ pareceu o Menino Deus.// Uvindo uma grande
voz/ que lá do céu lhe dizia:/ este é o Filho amado/
da Virgem Santa Maria.// Vinde todos bem contentes/ no presépio adorar/ aquele Deus humanado/ que
veio para nos salvar.// Xegaram e viram o infante/ no
presépio reclinado./ e por José e Maria/ humildemente adorado.// Zunindo por toda a terra,/ com prazer
e alegria,/ só Herodes e ‘Adiava’/ sofreram malincunia.// O til também é letra/ porque serve de padrão/
para exemplo deste mundo/ e de todo folião.//20 w Ver
tb. Abecedário de natal.
ABC DOS RICOS OU DA CARAPUÇA | G: Grande
no mundo é só Deus/ Esse é o primeiro sem segundo./
(...) // H: Homem, filho do pecado,/ Não se ilude com capital.// Se não fazer obras boas,/ sua riqueza não vale,/
perde todo bem no mundo,/ inda perde o Tribunal.// J: Já
que Deus é justo/ como nós sabemos que é,/ o inferno
já tá cheio/ de capitão e coroné,/ de homem rico e orgulhoso/ que trai o pobre em má fé.// M: Muito dinheiro faz
a guerra,/ faz orgulho e soberba,/ faz o homem pronunciar,/ sem ter sabedoria/ faz nêgo entrar no fogo/ sem
sentir a agonia.// Observemos o final típico: Til é a letra
do fim,/ junto com o ponto final.// Só assenta a carapuça/ para o seu fulano de tal,/ que gosta de vender caro/
pra ajuntar capital.// Em quem assenta essa carapuça/
muitas horas até duvida,/ sentado no seu cantinho/ seus
carinhos e bebida,/ deixando o tempo correr,/ fazendo
sempre pra vida.// A valença é desculpar/ coronel e
cidadão,/ quem mata, não quer ter crime,/ quem rouba
não quer ser ladrão,/ quem peca quer ser um santinho/
quem mente quer ter razão.// Quem achou interessante/
que desejar conhecer/ quem foi o inventor/ do delicado
ABC,/ Foi Virgílio Tomas da Silva,/ criado de Vocemecê.// (Inf.: Jesuíno Pereira da Rocha, 14/05/1982, que
aprendeu em 1926 com o mestre Virgílio, professor rural
na região de Água Suja.)21
ABÊ ou ABÉ | [Do fon “Agbè”, divindade que representa o mar.] Na Casa Grande das Minas (São
Luís-MA), a vodum Senhora do Mar, irmã gêmea de
Badé. w Em candomblé iorubá: ver Iansã. w Em candomblé banto: ver Matamba.
ABÉ BAXÉ DE ORI | No candomblé iorubá, a feitura
do santo, parte da iniciação; ver Ori.
ABEBÉ ou ABEBÊ | [Do iorubá “abêbê”, abano.] No
candomblé iorubá, leque ritual portado pelas iabás,
orixás femininos. Símbolo do poder materno. 22 w
Leque-de-Oxum feito em metal amarelo. Insígnia de
Oxum. As filhas de Oxum dançam com o abebé. w
Iemanjá usa um leque de metal prateado. w Logunedé usa o abebê.
ABECEDÁRIO | Uma espécie de dicionário de informações variadas em ordem alfabética e de linguagem simples destinado a uma ampla gama de
20 CARVALHO, Celso de. Pe. O ciclo de natal num velho recanto de
Minas. Diamantina: 1950. (manuscrito) pp. 6-9.
21 Apud: SOUZA, José Evangelista de. Raízes e histórias: a saga de
viver. Petrópolis: Vozes, 1989. pp. 205-211.
22 SODRÉ, Muniz; LIMA, Luís Felipe de. Um vento sagrado: história
de vida de um adivinho da tradição Nago-Ketu brasileira. Rio de
Janeiro: Mauad, 1996. p. 175.
ouvintes e leitores. w O "Compêndio Narrativo do
Peregrino da América”, de autoria de Nuno Marques
Pereira, publicado em 1728, foi extraído do abecedário composto por um homem falecido no reino de
Portugal, para deixar uma “regra com que se haviam
de governar os filhos”. A obra de Nuno M. Pereira foi
muito divulgada no séc. XVIII, alcançando 6 edições.
Popularizou-se no Brasil no séc. XIX, depois que o
cel. João José Carneiro de Mendonça, de Paracatu
(MG), o retomou com o título de “Abecedário Moral”.
A letra “A” da primeira edição portuguesa do Peregrino diz: Amor de Deus seja estudo/ da vossa melhor lição/ propondo no coração/ amar a Deus sobre
tudo.//23 w O termo "abecedário" aparece como sinônimo de ABC: ver Abecedário de natal.
ABECEDÁRIO DE NATAL | Poesia declamada pelos bastiãos da folia dos santos reis, em Londrina
(PR): Com A, eu escrevo anjo/ Que voando desceu
do céu/ Para anunciar Maria/ Foi o anjo Gabriel.//
Com B, escrevo bondoso/ O nosso pai de bondade/
Que mandou seu filho ao mundo/ Pra salvar a humanidade.// Com C, escrevo Cristo/ O filho do Criador/
Que nas suas pregações/ Pregava a paz e o amor.//
Com D, escrevo Davi/ Que é filho de Jessé/ O principal ascendente/ De Maria e de José.// Com E, escrevo esperança/ Lembrando aquela estrela/ Que guiou
os três Reis Santos/ Numa missão verdadeira.// Com
F, escrevo feliz/ Aquele dia sagrado/ Em que os três
reis se ajoelharam/ Nos pés do menino amado.// Com
G, eu escrevo glória/ À sempre virgem Maria/ Por
conceber e dar à luz/ Ao glorioso rei Messias.// H,
não falo Herodes/ Pois prefiro escrever hino/ Que os
anjos cantarolavam/ Quando nasceu Deus menino.//
Com I, escrevo inocente/ Recordando a profecia/ “Era
Raquel que chorava/ Os filhos que já não via”.// Com
J, escrevo justiça/ Também escrevo Jesus./ Quando
nasceu em Belém/ Encheu o mundo de luz.// Com L,
eu escrevo Lapa/ Lugar em que Jesus nasceu/ Os
galos todos cantaram/ Nasceu o rei dos Judeus.// O
M lembra Maria/ A Santa mãe protetora/ Pra exemplo
de humildade/ Pôs seu filho em manjedoura.// Com
N, escrevo natal/ Dia da natividade./ É de todas a
maior data/ No mundo da cristandade.// Depois vem
a letra O,/ Que me recorda a oração/ rezada em Jerusalém/ Pelo velho Simeão.// O P, forma uma palavra/
Que está sempre em minha mente/ Ofertada pelos
magos/ Pois P me lembra os presentes.// O Q, é um
quebra-cabeça/ Ponto de interrogação./ É necessário dar quorum/ Pra decidir a questão.// O R me
lembra os reis !/ Não pode ser diferente/ Os maiores
reis da terra/ Dos reinos do Oriente.// Depois vem a
letra S/ Que me lembra santidade/ Pai, filho e espírito
santo/ No mistério da trindade.// O T são os testamentos/ Que Deus deixou para o povo/ Ver a Escritura
Sagrada/ Tem o velho e tem o novo.// O U me lembra
união/ Uma palavra sagrada/ Na vida, pode ter tudo/
Sem união, não tem nada.// Com V, escrevo vitória !/
E a vida que Deus me deu./ Vivam os meus três reis
santos !/ E viva o filho de Deus !// Com X eu escrevo
xá/ Que da Pérsia é soberano/ Faço um jogo de xadrez/ E dou dez (X) para os romanos.// O Z quer dizer
zeloso/ É o filho de Maria./ Ele é o alfa e o ômega/
Encerrando a profecia.//24
ABEL | [Do hebraico, sopro ou vaidade.] Segundo filho
de Adão e Eva, foi o primeiro homem a oferecer um
sacrifício (de animais) a Deus. Era pastor de ovelhas, e
Caim, seu irmão mais velho, agricultor. Quando Deus
aceitou o sacrifício de Abel, Caim sentiu ciúme e o
matou. Na procissão de cinzas e outras procissões
23 SOUZA, Antonio Cândido de Mello e. Abecedários. In: RECORTES. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. pp. 257-266.
24 GARBOSI, Francisco. Mensagens e embaixadas de folia de reis.
Londrina: Bird Gráfica, 1994. pp. 1-73.
Abi
da semana santa, Abel é uma das figuras bíblicas
que aparecem. w Vítima de homicídio, símbolo da
inocência. w Diz um adivinho popular: Se Abel matou
Caim,/ como ter conhecimento:/ Está escrito no Velho/
ou no Novo Testamento? R.: Em nenhum. Foi Caim
que matou Abel.25 w Uma charada recolhida na Bahia
diz: Já houve um homem no mundo/ o qual sem culpa
morreu./ Nasceu primeiro que o pai/ sua mãe nunca
nasceu./ Sua avó foi sempre virgem/ até que o neto
morreu.// R.: Abel. Nota: a avó é a “mãe terra”.26
ABELHA | Inseto que produz mel e cera desde a
criação do mundo. É cantada na modinha de viola “A
Vida das Abelhas” do violeiro José Lopes Moreira, de
Santa Isabel (SP): Abelha é um bicho abençoado/ eu
não tenho medo dela/ proquê o mel é remédio/ pra curá
as coisa da goela./ E tem uma cera bonita,/ é uma cor
meio amarela./ Diz que é muito abençoado,/ é do que
uso fazer vela,/ é que levam pra Pirapora,/ e tem serventia em tudo/ quanto é capela.//27 w Existem orações
para amansar as abelhas e evitar as picadas; p.ex., São
Pedro quando andou no mundo/ vestido de perneira e
gibão/ maribondo, esconde seu ferrão.// (Inf.: Alcides,
Araçuaí-MG/1977.) w Ditado: Pelas abelhas de São Pedro pagam as de São Paulo. w Abelhas figuram entre os
atributos de Santo Ambrósio, dono uma melíflua retórica, e de Santa Rita, casta como as abelhas.
ABENÇA | Forma popular de pedir a bênção.
ABENÇOAR | O mesmo que dar a bênção ou benzer.
w Pedir ao Deus Criador que abençoe a vida dos homens; ver Benzedor; Benzedeira. w Ao fazer adobes,
o trabalhador abençoa o primeiro que sai da forma riscando nele uma cruz. w A visita da folia dos santos reis
a uma casa é considerada uma bênção. Em Paracatu
(MG), os foliões cantam: Os três reis aqui chegou/ todos
três encarriado/ abençoando os morador/ e essa bendita morada.//28 Na religiosidade popular, distinguem-se
bichos abençoados: aranha, joão-de-barro, galo e lavandeira; e bichos amaldiçoados: bode, pato e burro;
ver Natal e seus símbolos; Animais e religião. Semente
abençoada: ver Algodão. w Na umbanda, os pretos
velhos abençoam o povo e ajudam a vencer as demandas. Vários pontos cantados falam desta bênção, p.ex.,
um ponto de Maria Mina da Bahia (RJ): Andei sete noite,
andei sete dia/ chegou Maria Mina/ com seu povo da
Bahia./ Pimenta lá da Costa/ azeite de dendê/ Chegou
Maria Mina/ pra seus filhos vir benzê./ Chegou Maria
Mina/ dona do Gongá/ Chegou Maria Mina/ que veio
trabalhar.// ver Tia Maria do Rosário. Tb. os caboclos
abençoam o povo. w Em alguns benditos de penitência, encontramos as palavras (de Jesus): Ajoelhem-se,
meus filhos,/ que eu vos quero abençoar.// ver Nossa
Senhora pediu. Tb. na bênção final da missa o povo
costuma ajoelhar-se. No interior, ainda há meninos que
ajoelham ao pedir a bênção aos pais.
ABERÉM | [Do mina “gblɛ̌n”, massa de milho fermentada.] Bolinho feito de arroz ou de milho moído, salgado
e cozido, embrulhado em folhas secas de bananeira.
w No candomblé iorubá, comida de santo oferecida a
Oxumarê e Omolu.
ABIÃ | [Do iorubá, “abíiyùn”, nascido do (colar de)
coral.] Iniciante no candomblé iorubá. O estado de
abiã é um estágio inicial da iniciação. Aquele que já
fez o bori, a lavagem das contas, mas ainda não fez
o santo; ver Orô. Com a iniciação o abiã passa a filho
de santo ou iaô; ver Ouvir.
25 SANT’ANNA, José. Folclore poético: quadras anônimas. Olímpia:
Museu de História e Folclore Maria Olímpia, 1997. p. 101.
26 CABRAL, Alfredo do Vale. Achegas ao estudo do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro,
1978. p. 107.
27 Apud: LIMA, Rossini Tavares de. Moda de viola: poesia de
circunstância. São Paulo: Laser Press, 1997. pp. 56.
28 MELLO, Antônio de Oliveira. Minha terra: suas lendas e seu folclore. 2. ed. Paracatu: Prefeitura Municipal de Paracatu, 1985. p. 171.
Dicionário da Religiosidade Popular
27
Abl
Ablução | Abra a Porta, Povo, Que Lá Evém Jesus
ABLUÇÃO | Lavar para purificar ritualmente. Para
participar do culto é preciso cuidar da limpeza interior e exterior, tirar o sujo, a doença e o pecado. Para
isso existem as fontes nos santuários; ver Banho;
Lavagem do santo. w Abluções rituais existem tb. em
irmandades do rosário e nos cultos afro-brasileiros;
ver Lavagem de igreja.
ABÔ | [Do iorubá “àgbo”, infusão de folhas para uso
medicinal.] O mesmo que água dos axés. w No candomblé iorubá, água ritual preparada com as ervas
dos orixás, maceradas e fermentadas, à qual vai se
acrescentando o sangue dos sacrifícios e outros
elementos. O abô é guardado numa talha de barro
para ser usado em banhos durante a iniciação e em
outros rituais; ver Banho de abô. Antes de fermentada, recebe o nome de amaci. w Seu uso existe tb.
na umbanda.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA | A Declaração dos
Direitos do Homem (26 de agosto de 1789), na França, reforçou a luta pelo abolicionismo. Na Inglaterra,
a escravidão foi abolida em 1833; em Portugal e
domínios, em 1869; nos EUA, em 1862. w No Brasil,
desde o começo da escravidão, houve escravos que
se revoltavam ou fugiam e formavam quilombos, e
houve a república de Palmares; ver Zumbi; Revolta
dos Malês. w A abolição, assinada em 1888, resultou
de um processo lento e gradual durante praticamente
todo o séc. XIX; em 1815, foi firmado o tratado no qual
Portugal e Inglaterra concordavam em restringir o tráfico ao sul do Equador; em 1826, após a Independência (1822), o Brasil se comprometeu em acabar com
o tráfico de escravos dentro de três anos, coisa que
não aconteceu; em 1838, acabou a escravidão nas
colônias inglesas; em 1845, os ingleses, desde 1843
proibidos de comprar e vender escravos em qualquer
parte do mundo, aprovam o Bill (lei) Abeerden, que os
autoriza a apreender os navios negreiros com destino
ao Brasil; os ingleses tb. pressionaram o governo brasileiro a aprovar a lei Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico negreiro; em 1871, foi assinada a Lei do
Ventre Livre. A campanha abolicionista crescia, contribuindo para desacreditar o sistema escravista, que
acabou gradualmente. Houve um movimento de intelectuais a favor da libertação. O baiano Luís Gonzaga
Pinto da Gama (1830-1882), ex-escravo, jornalista e
orador, combateu corajosamente o regime escravocrata em São Paulo (SP). O jurista mineiro Agostinho
Marques Perdigão Malheiros publicou “A ilegitimidade da propriedade constituída sobre escravos” (1863)
e a “Escravidão no Brasil, Ensaio histórico-jurídico-social” (3v.,1866-1867). Considerava a abolição da
escravatura “um ato de inteira justiça, de humanidade, e da mais alta conveniência pública; é a aurora
da verdadeira felicidade, é o verbo criador da nossa
futura sociedade.” (Introd. da obra.); ver Joaquim
Nabuco. A partir de 1880, em meio à urbanização,
industrialização e aumento do trabalho assalariado,
o movimento abolicionista contou com maior apoio
popular e foram fundadas associações públicas; ver
Sociedade Brasileira contra a Escravidão. Em Mossoró (RN), a emancipação dos escravos ocorreu em
30 de setembro de 1883. Até hoje a cidade celebra a
“festa da Abolição” nesta data. No Ceará, os jangadeiros liderados por Francisco José do Nascimento, apoiaram a abolição, ali conseguida em 1884; ver
Greve dos jangadeiros; Sociedade Perseverança e
Porvir; Sociedade Cearense Libertadora. Em 1885,
foi promulgada a Lei dos Sexagenários. Nessa
mesma época, Antônio Bento de Souza e Castro
organizou os “caifazes”, grupo abolicionista radical
que se envolvia diretamente na luta pela liberdade
dos escravos. Os próprios escravos, desde junho de
1886, organizavam fugas em massa; ver Quilombo do
28
Dicionário da Religiosidade Popular
Jabaquara. Na província fluminense houve mais de
20 mil alforrias entre 1873 e 1885. Em 1887, o Clube
Militar pediu que o exército fosse dispensado da caça
aos escravos fugidos. Foi assim que os fazendeiros,
grupo forte no governo, se viram obrigados a aceitar o inevitável. w Brasil, Cuba e Porto Rico foram as
últimas nações do Ocidente a manter a escravidão.
Porto Rico aboliu a escravidão em 1873 e Cuba em
1886; ver Navio Negreiro. w Em treze de maio de
1888, o projeto de lei de Rodrigo Augusto da Silva,
aprovado pela Câmara dos Deputados, foi assinado
pela regente princesa Isabel anulando a instituição
da escravidão e sua legislação. A nova lei foi chamada “Lei Áurea”. w Tb. em 1888, em Bom Jesus
da Lapa (BA), uma famosa romaria reuniu, durante
oito dias, imensa multidão de ex-escravos vindos do
sertão baiano para dar graças ao Bom Jesus pela assinatura da Lei Áurea. w José do Patrocínio convenceu a opinião pública sobre a não indenização dos
proprietários de escravos e, enquanto os ex-donos
de escravos contratavam mão de obra assalariada, o
ex-escravo foi excluído do progresso. Como ficaram
os escravos depois da abolição? Esta questão não
foi resolvida, teve graves consequências e continua
atual; ver Lamento do negro. Em 1883, Joaquim Nabuco escreveu “O Abolicionismo”. w Muitos abolicionistas, intelectuais e populares eram monarquistas. w
Hoje, alguns movimentos e grupos associados a festas populares afro resgatam a participação histórica
do próprio negro nas lutas pela liberdade. Numerosos
ternos de congado e moçambique comemoram a
abolição da escravidão no dia treze de maio, quando
cantam sobre suas lutas com destaque para a princesa Isabel; ver São Benedito e a princesa Isabel.
Imaginamos que os negros do Congo, Angola e Moçambique, que conservam sua identidade lembrando
sempre de seus reinados de origem, talvez por isso,
não questionem a monarquia; ver Reinados na África. Entretanto, é importante observar que os quilombolas bantos e iorubás do quilombo de Palmares
(AL) estabeleceram um sistema político semelhante
ao que seria hoje uma república; ver Quilombo; Rei
Congo. w >> BUTLER, Kim D. Freedoms Given, Freedoms Won: Afro-Brazilians in Post-Abolition Sao Paulo and Salvador. New Brunswick, N.J., and London:
Rutgers University Press, 1998; CONRAD, Robert.
Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Brasília: INL,
1975; CARDOSO, Flamarion (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988; SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon
e a abolição da escravatura - uma investigação cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; MATTOS, Hebe; RIOS, Ana Lugão. Memórias do cativeiro, família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
ABORTO | O aborto tornou-se um problema de saúde
pública. A prática clandestina do aborto causa anualmente a morte de milhares de mulheres no Brasil;
ver Vida. w Estudos recentes feitos nos principais países latino-americanos destacam dois aspectos desta
questão: sua dimensão e a omissão por parte das
classes dirigentes civis e religiosas. As autoridades
sabem que a lei existente é impraticável; para encarcerar mulheres e médicos infratores seria necessário
construir inúmeros presídios. Todas as estatísticas
são aproximativas devido à ilegalidade e ao sigilo dos
abortos realizados em condições desumanas. Não é
possível continuar na omissão. É necessário encarar
o inevitável, com dignidade. Certamente quem sofre
mais com um aborto é a própria mulher. w A prática
é tradicionalmente condenada tanto entre os cristãos
quanto entre praticantes de várias outras religiões.
Para judeus, cristãos e islamitas a vida é sagrada.
Os humanos são criaturas e imagens do Senhor da
vida e filhos de Deus, e vêm daí as consequências
éticas e os preceitos. Responsáveis pelo progresso
da genética e suas possibilidades técnicas avançadas, homens e mulheres procuram situar-se: quando
começa a vida de uma pessoa humana? Segundo
diversos documentos recentes da igreja, a vida começa na concepção. w Na história popular da porca
dos sete leitões, encontrada em várias regiões do
Brasil, o aborto provocado é condenado. É considerado um pecado grave. No folheto “A Mãe que botou o Filho na Lata do Lixo” (c.1980), Cezanildo J.A.
e Minelvino F.S. escrevem: É infeliz sem capricho/
instinto de bicho bruto/ a mãe que produz um fruto/
e bota na lata do lixo/ como que sacode um bicho/
pra outro bicho comer./ Faz vergonha até dizer/ que
u’a mãe pratica isso./ Na casa de Jesus Cristo/ não
entra quando morrer.// No tempo da julgação/ quando
a força soberana/ suspender a cinza humana/ que
está debaixo do chão/ é triste a situação/ de quem
não tiver capricho/ apenas ouve um cuchicho:/ Mulher, e cadê os teus?/ Chorando ela diz a Deus:/ Botei
na lata do lixo.// É difícil avaliar até onde essas duas
condenações sejam representativas no mundo da
religiosidade popular. Hoje, dado o grande número
de abortos cometidos, esse tema tornou-se polêmico
para o povo. De qualquer maneira, seria necessário
avaliar a questão do aborto no contexto maior do pensar popular sobre a vida e o sofrimento. w Entre os
índios: ver Suicídio. w Ver tb. Controle da natalidade;
Gravidez; Pecado social; Nascimento.
ABRA A PORTA: CARTILHA DO POVO DE DEUS
(Livro) | Cartilha publicada em 1979 (Paulinas. 500
p.); em 2008, após 27 edições, contava cerca de 400
mil exemplares vendidos. w A obra compreende material para 80 reuniões em CEBs, liturgia do culto e
da missa dominical, orações para ocasiões diversas
e 300 cantos; tb. folias, excelências, benditos e regras do bem viver. Essas regras reúnem provérbios,
explicações sobre direitos humanos, estatuto da terra, organização de sindicatos, plantas medicinais e
muitos conselhos. Constam dessa cartilha orações
das páginas mais usadas das cartilhas do séc. XIX.
w A autoria é de um grupo de agentes de pastoral. O
nome da obra foi inspirado num canto popular do reis
de boi e outro da semana santa. Ambos rezam: Abra
a porta, povo, que lá evém Jesus.
ABRA A PORTA, POVO, QUE LÁ EVÉM JESUS |
Canto da quaresma e da semana santa (Itinga-MG/1972) conhecido em todo o Brasil, com variações: Abra a porta, povo, que lá evém Jesus./ Ele
vem cansado com o peso da cruz.// Sai de porta em
porta, sai de rua em rua/ Meu Deus da minha alma
sem culpa nenhuma.// Hoje tem três dias que procuro
Jesus/ encontrei com Ele nos braços da cruz.// De
que vale poder com tanta nobreza?/ Se perder o céu,
perde toda riqueza.// O peso da cruz é nosso pecado./
Nós queremos ser grandes, somos castigados.// Somos castigados, perdoai, Senhor./ Que será de nós
sem vosso favor?// Madalena, depressa. Cireneu,
vem ver./ Lá se vai meu Filho, Ele vai morrer.// Que
Jesus é meu e eu sou de Jesus./ Jesus vai comigo e
eu vou com Jesus.// Em Olímpia (SP), cantam: Abra a
porta céu/ que lá evém Jesus/ Ele vem cansado/ c’o
peso da cruz.// Vem de braço aberto,/ coração ferido/
quanto sangue derramado/ Senhor Jesus Cristo.// Jesus é meu,/ Eu sou de Jesus,/ Maria vem comigo/ Eu
vou com Jesus.//29 A linguagem dramática dos textos
faz supor que este canto pertenceu ao teatro litúrgi29 SANT’ANNA, José. Aspectos folclóricos da Quaresma no Município de Olímpia. In: FESTIVAL DO FOLCLORE, 24, 1988, Olímpia.
Anuário do 24. Festival do Folclore. Olímpia: [S.n.], 1988. p. 13.
Abracadabra | Ação Católica Brasileira
co antigo; ver Auto; Linguagem do encontrar. w Nas
secas do interior da Bahia, o bendito Abra a porta
é cantado nas procissões de penitência para pedir chuva. Em Paratinga (BA), cantam: Abra a porta,
Pedro,/ que la evém Jesus/ etc.// Estas procissões
vão de cruzeiro em cruzeiro. (Inf.: Carlos Fernando
Filgueiras de Magalhães, Paratinga-BA/1999.) w Em
algumas casas do candomblé de caboclo, do jarê e
da umbanda (RJ e MG), este bendito do Senhor dos
Passos virou ponto de Oxalá velho, ou Oxalufã; ver
Mesa de Santa Bárbara.
ABRACADABRA | Antiga fórmula mágica, talvez
derivada de Abraxas ou surgida das quatro primeiras
letras do alfabeto. Compare com a palavra a-be-ce-dário. Às vezes, é encontrada num triângulo preenchido com suas letras. Na religiosidade popular não é
um termo frequente. w Palavra que desencadeia um
truque mágico em espetáculos. w Palavreado confuso.
ABRAÇO | Gesto importante que faz parte da comunicação entre as pessoas. No abraço há contato corporal, as pessoas se tocam, se apertam, se olham e
se cheiram. O abraço faz parte da cultura brasileira.
Verso de roda (Araçuaí-MG): Da laranja eu quero o
tampo/ Da lima eu quero um pedaço/ Da sua boca
eu quero um beijo/ Do seu corpo quero um abraço.//
Um batuque associa o engenho de cana ao abraço
humano (Araçuaí-MG/1975): O engenho novo ‘tá
moendo/ Eu quero ser seu amor sinhá/ Moe a cana
e esfarinha o bagaço/ Na volta do “braço” (peça do
engenho) me dê um abraço.// w No mundo moderno, da comunicação eletrônica, o abraço não pode
desaparecer. w Existem abraços rituais: entre compadres na festa de São João, entre devotos e foliões
do Divino ou dos santos reis, abraços de paz entre os
cantadores de desafios na festa da santa cruz, entre
mouros e cristãos. Outros tantos abraços são dados
nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário e nos
cultos afro-brasileiros.
ABRAXAS ou ABRASAX | Palavra presente em livros esotéricos e cabalísticos que lhe atribuem várias
explicações. w Originalmente, Abraxas é o misterioso nome divino encontrado nos escritos do gnóstico
egípcio Basílides (séc. II). As sete letras de Abraxas
significariam o número 365, explicado como riqueza
de espírito, ou 365 manifestações da divindade durante o ano. Mais tarde, passou a representar certa
pedra com símbolos gnósticos entre os quais está o
pentáculo; ver Cabala.
ABREVIAÇÕES | Abreviações como I.H.S., X.P.T.O,
I.N.R.I., J.M.J., S.A.T.G., P.N., A.M. podem ter um
significado enigmático e sagrado; ver Letra.
ABRIR | Dar acesso: abrir o coração, abrir os olhos.
Acessar: abrir a porta, o cofre, o sacrário, o oratório. Abrir uma cova, uma escola, chagas; ver Abrir
e fechar; Chagas abertas, coração ferido. w Numa
abertura, valores ficam expostos, mistérios são vislumbrados, segredos revelados, crimes descobertos.
Criam-se formalidades legais contra invasões ou
roubos. É preciso proteger a privacidade. Algumas
aberturas exigem cuidados, outras vêm acompanhadas de delicadezas. Há rituais de abertura, alguns solenes. w São Pedro tem a chave do céu. A
expr. “Foi um céu aberto!” indica grande felicidade.
w Na missa conga, há o canto que pede a abertura da porta da igreja para que entre o povo negro.
w Começar: abrir o jogo, o diálogo, abrir a mesa;
no ofício divino, “abrir os lábios” significa iniciar a
oração da manhã (matinas ou laudes): “Abri os meus
lábios ó Senhor; minha boca anunciará vosso louvor.”
O mesmo acontece em ofícios populares. No ofício
das almas: Abrirei meus lábios/ em tristes assuntos/
para sufragar/ aos fiéis defuntos.// No ofício de São
Francisco: Abrireis meus lábios/ com respeito tanto,/
aos justos louvores/ de Francisco Santo.// No ofício
do Senhor Bom Jesus dos Passos: Abramos os
lábios/ com divina luz,/ louvemos os passos/ de
Cristo Jesus.//
ABRIR A MESA | Iniciar trabalhos de adivinhação.
Além da preparação do jogo usado, a abertura poderá incluir alguma oração.
ABRIR A PORTA | O abrir da porta faz parte dos
rituais das folias; ver Chegada; Abrir e fechar; Linguagem do encontrar. w Ao visitar uma casa, o reisado
de São Raimundo Nonato (PI/2001) canta: Abri-nos a
porta/ que nós quer entrar/ Senhor dê licença na sala
cantar.// Entramos, entramos/ com muita alegria/ Vamos dar louvor/ é a Virgem Maria.// Entramos, entramos/ com amor e fé/ Vamos dar louvor ao Senhor São
José.// Entramos, entramos/ com amor e luz/ Vamos
dar louvor/ ao Senhor Bom Jesus.// (Comunidade de
São Victor.) Em Caracol (PI), os reiseiros cantam:
Vós ‘mincê’, dona da casa,/ abra a porta e saia fora/
Meteu a chave na porta/ retiniu mais de uma hora.//
Porta aberta mesa franca/ recebeis com alegria/ É
como a Virgem Maria/ recebeu seu bento Filho.//
ABRIR E FECHAR | Abrir portas e janelas para o
ano-novo entrar; ver Abrir a porta. w Oração para
abrir uma porta fechada: ver São Marcos. w O senhor
São Pedro abre a porta do céu; ver Chave. w Nas
novenas e terços populares, aparecem cantos para
abrir e para fechar o oratório. w Quem anda de “corpo
aberto” é vulnerável. Existem rituais para fechar o
corpo; ver Amarrar e soltar. w Em Contagem (MG), o
capitão do congado dirige a Nossa Senhora do Rosário e ao rei congo a seguinte embaixada: Oh, Rainha
Senhora e meu Rei Sinhô/ êta dois nome adorado,/ o
nome de Rei e Rainha Senhora!/ Chegô na porta do
céu,/ Estava trancado/ com cadeado de bronze./ O
cadeado arrebentô,/ caiu no chão/ o chão tremeu,/ a
terra geme./ Nossa Senhora disse:/ ‘Entra, meu filho,/
vem vê o rosário de Maria.’/ Hoje chegou o nosso dia/
com prazer e alegria/ Viva o rosário de Maria.//30 w
Nos cultos afro-brasileiros, é o guardião (Exu, Nzila,
Aluvaiá, Bará) quem abre ou fecha os caminhos. w
Ver tb. Horas Abertas.
ABSINTO | Planta cheirosa proveniente da Europa;
uma espécie de losna. w Na umbanda, usada para
afastar maus espíritos. Para o mesmo fim, usam arruda, alho, artemísia e espada-de-são-jorge.
ABSTINÊNCIA | Privação voluntária; ver Abstinência
da carne; Austeridade. Em 1998, a bula papal “Incarnationis Mysterium” recomenda, para o ano inaugural
do terceiro milênio, a abstinência do fumo e do álcool como gesto de solidariedade com os necessitados. w Em sinal de respeito, muitos casais populares
não mantinham relações sexuais nas sextas-feiras
da quaresma; ver Quinta-feira santa; Celibato; Castidade. w Os penitentes de Juazeiro (BA) observam
a abstenção do ato sexual durante três dias após a
autoflagelação. É crença, entre os disciplinadores,
que as feridas que não cicatrizam espontaneamente resultam do não cumprimento desta abstenção.31
ver Disciplina. w A prof.a Eugênia Dias Gonçalves,
de Belo Horizonte (MG), ouviu dos congadeiros: Os
capitães-mestres não podem fazer sexo sete dias antes da festa. Se ele desobedecer, vai chegar a lamba
(desgraça, palavra que se evita falar em qualquer língua). Fazer sexo deixa a pessoa com o corpo aberto
e nestes dias de rituais internos e externos, o ar está
impregnado de forças, os capitães de outros reinos
30 GOMES, Núbia Pereira de Magalhães; PEREIRA, Edimilson de
Almeida. Negras raízes mineiras: os Arturos. Juiz de Fora: EDUFJF,
1988. p. 275.
31 ARAÚJO, Nélson de. Pequenos mundos: um panorama da cultura
popular da Bahia. Salvador: UFBA/ EMAC, 1986. t.2: Litoral Norte/
Nordeste, o São Francisco, Chapada Diamantino e Serra Geral da
Bahia. p. 114.
Aca
chegam carregados de força e quem infringiu as regras fica sem condições de resisti-las.32 ver Congado.
Tb. os brincantes do maracatu rural de Nazaré da
Mata (PE) praticam a abstinência sexual.
ABSTINÊNCIA DE CARNE | Costume de não comer
carne; ver Tabu alimentar. w Um dos cinco tradicionais mandamentos da igreja era não comer carne
nas sextas-feiras da quaresma, a partir dos 7 anos.
Hoje esta forma de fazer penitência foi reduzida à
quarta-feira de cinzas e à sexta-feira santa, a partir 14 anos, mas muita gente continua cumprindo o
antigo mandamento substituindo a carne por peixe ou
ovos; ver Bacalhau; Bula da santa cruzada.
ABUNDÂNCIA | O mesmo que fartura. w Abundância socializada: ver Festividade estruturante.
ABUSÃO (BUSÃO) | Superstição. w No Brasil e em
Portugal, fala-se das "abusões do povo".
ABUSO | Aviso para quem abusa: Com Deus não se
brinca. w A velha rezadeira Luiza Teixeira Ramalho
disse à sua irmã Rufina, então com 80 anos, que
passava mal após uma caminhada de duas léguas na
chapada (Araçuaí-MG/1978): Não se pode abusar da
bondade de Deus! w Ver tb. Simonia; Abusão.
ACABÁ | ver Akabá.
ACAÇÁ | [Do fon “akasá”.] Bolinho feito de arroz ou
milho macerado. Depois de cozido, é enrolado em folha de bananeira; comida afro-baiana. w Refrigerante
feito de fubá mimoso fermentado em água com açúcar. w No candomblé iorubá, comida de santo servida
para Oxalá, Nanã, Iemanjá, Ibeji e tb. para Exu.
ACADEMIA MARIAL NACIONAL | Foi instalada
em 1985, por ocasião do XI Congresso Eucarístico
Nacional em Aparecida do Norte (SP), e funciona na
basílica. “Estuda e divulga os conhecimentos de Nossa Senhora numa extensão mais científico-histórico-cultural do que propriamente devoto-cultual”.33
ACALMAR | Para acalmar criança nervosa existem
banhos, preces e simpatias. w Tb. existem orações
para amansar inimigos ou acalmar animais.
ACALANTO | Cantiga de ninar. O termo “acalanto”
não é popular.
AÇÃO | Realizar alguma coisa. É fazendo que se
aprende, pois surge a experiência repetida. O saber possibilita a ação planejada e a prática refletida.
Agir e saber enriquecem-se mutuamente. w No entender de Paulo Freire, a educação pretende fazer o
homem sujeito de sua ação, isto é, torná-lo capaz de
assumir plenamente a sua condição de cidadão, de
assumir compromissos e ser por eles responsável. 34
w A ação humana transforma o mundo: ver Cultura;
Trabalho. w A simpatia é uma ação de teor mágico;
ver Trabalho (3). w Ver tb. Ação de graças; Projeto
social alternativo.
AÇÃO CATÓLICA BRASILEIRA | A “ação católica”
começou na Itália, em 1922, como mobilização dos
leigos durante o surgimento do fascismo. w Sugerida
pelo papa Pio XI, foi fundada no Brasil em 1929 pelo
cardeal dom Sebastião Leme da Silveira Cintra
(1882-1942). Finalidade: organização da missão do
leigo católico na igreja e no mundo. Esta militância
católica teve grande importância social e política e
era bastante ligada ao episcopado. Seus militantes
desejavam “restaurar tudo em Cristo”; ver Evolução.
De 1934 a 1945, foi presidida pelo pensador católico
Alceu Amoroso Lima. Os novos estatutos (1959) reforçaram as especializações: juventude estudantil ca32 GONÇALVES, Eugênia Dias. Identidade Negra e Religião.
FUNDAC INFORMA. Belo Horizonte, ano 2. fev./1995. p. 2.
33 MAIA, Antônio. CM. Pequeno dicionário de Nossa Senhora. Belo
Horizonte: O Lutador, 1986. p. 17.
34 Apud: VIOLA, Solon Eduardo Annes. Direitos humanos. In:
STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José.
(orgs.). Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autênticas, 2008.
p. 134.
Dicionário da Religiosidade Popular
29
Aca
Ação da Cidadania Contra a Miséria e pela Vida | Aço
tólica (JEC), juventude operária católica (JOC) e juventude universitária católica (JUC). Em 1960, surgiu
a ação católica operária (ACO). Pelo seu método, ver,
julgar e agir, ligava a Bíblia à vida. Em boa medida,
a Ação Católica fez a igreja aproximar-se da questão
social; ver Associação. Após 1964 foram dissolvidas
as diversas equipes nacionais, mas o espírito e a prática da ação católica brasileira continuam presentes
na atuação de movimentos da igreja como a pastoral
operária e a pastoral universitária; ver Esquerda. w
A Ação Católica passou por problemas internos. Em
1999, dom José Maria Pires escreveu: "O problema
era que a Ação Católica fora definida pelos Papas
como a participação dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja. A hierarquia não tinha condições de
dar, numa opção política correta, o passo que o laicado católico estava dando. (...) Nessa época, jovens
universitários da Paraíba me procuraram pedindo
não só apoio moral, mas também participação pessoal em uma de suas lutas políticas. Eu lhes observei
que, embora concordando com a posição deles, não
julgava dever participar diretamente das ações propostas. Deviam contentar-se com meu apoio moral.
Eles não se convenceram nem me convenceram. Ao
deixarem a residência episcopal, registraram seu inconformismo com minha atitude gravando, com carvão, na parede externa da casa, os seguintes dizeres:
O Bispo Quer Luta Abstrata.”35 Ver tb. Romanização;
Comunidade eclesial de base; Sociedade Perfeita;
Igreja e política. w >> LIMA, Alceu Amoroso. Pela
Ação Católica. Biblioteca de Ação Católica, 1. Rio de
Janeiro: Empresa Ed. ABC Ltda., 1935; LIMA, Alceu
Amoroso. Elementos da Ação Católica. Rio de Janeiro: A.M.C., 1938; DALE, Romeu. OP. (org.) A Ação
Católica Brasileira. Coleção Cadernos de História
da Igreja no Brasil, 5. São Paulo: Loyola/CEPEHIB,
1985; BEOZZO, José Oscar. Pe. Cristãos na Universidade e na Política. Petrópolis: Vozes, 1984.
AÇÃO DA CIDADANIA CONTRA A MISÉRIA E
PELA VIDA | Ação inspirada e liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, conhecido como “Betinho”
(1935-1997). Desde 1992, o movimento interpela cada
cidadão sobre os fundamentos de nossa constituição
como povo criador e senhor de direitos humanos e
exige ações concretas. Olha os problemas do país a
partir dos valores éticos e dos princípios democráticos do convívio humano. Visando a garantir os direitos
da cidadania para todos, estabelece como prioritário
acabar com a fome e a miséria, distribuir alimentos e
renda, criar condições de trabalho digno e dar acesso
aos recursos da sociedade. Isso tudo questiona a lógica do desenvolvimento, e nos faz lutar para que os
cidadãos sejam os verdadeiros atores e beneficiários
do desenvolvimento; ver Ética; Terceiro mundo.
AÇÃO DE GRAÇAS | Cerimônia pública e solene de
agradecimento; ver Rezar. w Todo "obrigado" tem
uma história.36 w Jesus reuniu seus apóstolos para
uma ação de graças especial na Última Ceia. "Eucaristia” significa ação de graças; é a celebração da
memória desta ceia e de tudo o que ela representa.
w Nas grandes festas religiosas, era tradição cantar
no final da missa o canto do te-deum, “em ação de
graças”. w A ação de graças é dada principalmente
a Deus. A toda hora se diz: graças a Deus. w Na imprensa, faz-se publicação de graças recebidas por
meio de pequenos anúncios; ver Promessa. w Uma
popular ação de graças acontece no final do Círio de
35 PIRES, José Maria. Dom. Cultura, igreja, liberdade. Coração
informado, n.3. Belo Horizonte: PUCMG/Instituto Jacques Maritain,
1999. pp. 8-9.
36 Expressão do monge beneditino Marcelo Barros, no Curso de
Liturgia, na Faculdade da Assunção de Ipiranga, em São Paulo
(SP), 1981.
30
Dicionário da Religiosidade Popular
Nazaré. w Ver tb. Dia Nacional de Ação de Graças.
AÇÃO PASTORAL | O cristão deve agir com inteligência e coerência, evitando oportunismo e esperteza.
O agente de pastoral está a serviço do povo de
Deus; ver Ministério. Respeitar a religiosidade popular é essencial na ação pastoral. w A pastoral carece
de organização. É preciso definir objetivos e prioridades. Em outras palavras, a ação pastoral da igreja
necessita de um projeto claro e de um planejamento
viável. O agente competente tb. deve saber improvisar. w O Plano de Pastoral de Conjunto da CNBB é
um importante exemplo de ação pastoral organizada;
ver Campanha da Fraternidade; Opção pelos pobres;
Evangelização. w Em 2011, na diocese de São José
dos Campos (SP), foi publicado um folheto com todas as comissões, pastorais e movimentos pastorais
existentes na catedral de São Dimas. Nesta paróquia
existem as seguintes comissões: (1) para o laicato, vida
e família; (2) para a ação missionária e cooperação intereclesial; (3) para animação bíblico-catequética; (4)
para liturgia; (5) para o ecumenismo e diálogo inter-religioso; (6) para o serviço da caridade, justiça e paz; (7)
para cultura, educação e comunicação social; (8) para
os movimentos eclesiais, novas comunidades e associações. Num total de 51 grupos, equipes e movimentos tradicionais e recentes, destacamos: encontros de
casais, defesa da vida, dízimo, pastoral dos edifícios,
equipes de liturgia e acolhida, ministros extraordinários
da eucaristia, da bênção e do consolo, coral, evangelização/discipulado, catequese para todas as idades,
pastoral da saúde, pastoral da sobriedade, campanha
da fraternidade, vicentinos, apostolado da oração, clube da vovó, mutirão popular, movimento carismático e
obra assistencial; ver Ação social. w Eventos (festas,
romarias) podem ter resultados permanentes e, até,
trazer mudanças estruturais para a igreja, povo de
Deus. No Círio de Nazaré de 2007, dom Orani João
Tempesta, arcebispo de Belém, expôs com clareza
os objetivos da ação da igreja nesta festa. w Ver tb.
Conflito pastoral.
AÇÃO SOCIAL | Atuar numa sociedade em transformação. Trabalhar as questões sociais, tais como: miséria extrema, desigualdade, baixa escolaridade em grande parte da população, inacessibilidade aos tratamentos
de saúde para pessoas menos favorecidas, discriminação por sexo, raça ou religião, violência doméstica
e urbana, violência sexual, corrupção no poder público;
ver Projeto social alternativo; Serviço social; Política social. w No Brasil colonial, várias irmandades mantinham
obras sociais; ver Irmandade (em São Paulo); Obras de
misericórdia. Hoje, dioceses, paróquias e congregações
religiosas praticam a ação social de vários modos; ver
Ação pastoral. Tradicionalmente, obras filantrópicas não
pagam imposto. w O engajamento da igreja oficial em
grandes obras sociais pode ser questionado; ver Revelação; Assistencialismo; Neoliberalismo. w >> NOVAES,
Regina. (ed.) Pobreza e trabalho voluntário: estudos
sobre a ação social católica no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: ISER, 1995.
ACARAJÉ | [Do iorubá “àkàrà”, bolinho de feijão, e “jë”,
comer.] Bolinho feito de feijão-fradinho amassado, frito em
azeite de dendê e servido com molho de pimenta e camarão. Comida afro-baiana: ver Cozinha nagô. w No candomblé iorubá, comida de santo servida a Iansã e Obá,
naturalmente sem pimenta nem camarão. Tb. é oferecida
a Oiá, Xangô, Oxum e Exu. O acarajé de Oxum pode conter camarão seco moído. w Em candomblé banto: comida
de Ngurucema; ver Candomblé banto (entrevista).
ACAUÃ (CAUÃ, MACAUÁ, UACAUÃ) | Ave noturna
de mau agouro. Uma espécie de gaviãozinho que vive
em pequenos bandos e come cobras. w Gabriel Soares
de Sousa escreveu em "Tratado Descritivo do Brasil
em 1587”: “Quando o gentio vai de noite pelo mato que
se teme das cobras vai arremedando estes pássaros
para as cobras fugirem.”37 w Osvaldo Orico escreveu:
"O lúgubre e arrastado gemido desta ave, ecoando na
mata, deflagra uma enfermidade nervosa que se conhece pelo nome de ‘cantar de acauan’.” Apontam-se vários
casos em Faro (PA) e Parintins (AM).38 w Bernardo Elis
escreveu: "Pelos morros eram as acauãs, com o mais
rouquenho grito de maldição: cauã, cauã! Os soldados
ouviam e se benziam. As mulheres balbuciavam uma jaculatória. Era sinal de mau agouro”.39 w Em Goiás, observa-se: "Acauan, quando canta perto da casa, pressagia a morte e a desgraça. Chama a seca para o sertão.
Para conjurar o agouro, ‘queima-se-lhe o bico’: toma-se
um tição em brasa, aponta-se no rumo do canto, e reza-se um Creio em Deus Padre”.40 w A expr. “Acauã morreu
na mão dele” significa sujeito seguro, avarento.
ACHIRÉ | [Do iorubá, “wá ÿiré”, vir brincar.] No candomblé iorubá, fim do transe num filho de santo.
ACIDENTE DE TRABALHO | □ O Brasil tem um dos
piores índices de acidentes de trabalho em todo o mundo. A busca do lucro máximo é responsável pelas condições do trabalho em ambientes perigosos e nocivos à
saúde do trabalhador. Causas de acidentes: desprezo
do patrão pelo trabalhador, ganância do rico e despreparo do trabalhador; ver Capitalismo. w A hora do
perigo é um dos momentos religiosos; ver Desastre.
w Entre os ex-votos deixados nas salas de milagres há
inúmeros relacionados a acidentes de trabalho; ver Risco de morte. w Um acidente de trabalho com um carro
de boi está ligado às origens da romaria do Divino Pai
Eterno, em Trindade (GO).
ACIDENTE DE TRÂNSITO | Lamentavelmente, no
Brasil, 40 mil pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito (2011). A metade das mortes é
provocada pela ingestão de bebidas alcoólicas. Outras causas: excesso de velocidade, imprudência e
péssimas estradas. w À beira das estradas, o lugar
de um acidente fatal é marcado por uma cruz. Muitos
motoristas carregam no carro um terço ou um São
Cristóvão pequenino e rezam nas capelinhas ao longo das rodovias; procuram a proteção divina ao viajar; ver Anjo da guarda. Outros, para escapar de ciúme, ódio e mau-olhado, penduram um chifre ou uma
figa na traseira do seu caminhão. w Sempre aparece
alguém que coloca uma vela acesa ao lado da vítima
que jaz morta na rua ou na estrada. É uma vela-guia
para aquela alma. w Muitos ex-votos, deixados nas
salas de milagres dos grandes santuários, relatam
como pessoas se salvaram de acidentes de trânsito, com a graça de Deus. Em Congonhas (MG), no
santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, encontramos a mensagem: “Barroso, 14 de setembro de
1994: Fui atropelado em São Paulo, quebrei as duas
pernas e quase faleci na cirurgia por problemas anestésicos. Minha esposa pediu ao Senhor Bom Jesus e
fiquei curado. R.N.”41 ver Desastre. w Na 25ª romaria
estadual de motociclistas em Farroupilha (RS), em 18
de maio de 2003, havia 12 mil motos na procissão em
honra de Nossa Senhora de Caravaggio, e todos
os participantes ergueram seus capacetes pedindo a
proteção divina nas viagens.
AÇO | Várias orações contra os inimigos contrapõem o ferro ao aço, p.ex., (MG): Você é o ferro, eu
37 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em
1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 271.
38 ORICO, Osvaldo. Mitos ameríndios e crendices amazônicas. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 126.
39 ÉLIS, Bernardo. O tronco: romance. São Paulo: Martins, 1956.
p. 75.
40 TEIXEIRA, José de Aparecida. Folklore goiano: cancioneiro,
lendas, superstições. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.
pp. 423 e 427.
41 Apud: VITARELLI, Flávio. Turismo religioso: jubileu do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos Congonhas do Campo. 1997. Monografia.
(Especialização) Universidade Federal de Ouro Preto. p. 144.
Acorda Maria | Acordar
Aco
ACIDENTE DE TRABALHO: EX-VOTO, UMA PROVA DE FÉ. (APARECIDA DO NORTE-SP, 1975)
sou o aço./ Com dois você me vê, com três eu te embaraço./ Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.// w Vera Guimarães, de Olinda (PE), registrou uma
oração contra mau-olhado: Leva o que trouxeste,/
Deus me benza com a Santíssima Cruz (fazer o sinal
da cruz)/. Deus me defenda dos maus olhos e maus-olhados/ e de todos os males que a mim desejar (†)//.
Tu és o ferro, eu sou o aço (†),/ tu és o demônio e
eu te embaraço (†),/ em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, Amém. (†)//42 ver Envultar-se. w Faca
de aço: ver Vara boleante para castigar o demônio.
ACORDA MARIA | Faz mal beber água de noite (RJ
e Nordeste) sem primeiro tocar com a mão na água
e dizer três vezes: Acorda, Maria!; ver Redemoinho.
Na convicção de muitos, faz mal beber água depois de
meia-noite sem acordá-la. w A mesma convicção encontramos em Portugal: "Não se deve beber depois da
meia-noite sem primeiro a acordar. Quer dizer: baldeá-la com o caneco ou copo, pois a água está a dormir e
faz mal o bebê-la sem a despertar."43 No Concelho de
Loulé, tb. em Portugal, Idália F. Custódio anotou: “Nunca devemos beber água, à noite, quando acordamos,
sem abanar o copo, porque pode fazer mal. Primeiro,
diz-se: ‘Jesus’, e depois abana-se o copo, três vezes,
e diz-se: Acorda, Maria, acorda!”.44 w No Nordeste brasileiro, Gonçalves Fernandes encontrando o mesmo
costume, vê nele a presença das religiões de origem
afro, onde Maria, identificada com Oxum, dona das
águas doces, estaria dormindo na água.45
42 Apud: SOUTO MAIOR, Mário. Orações que o povo reza. São
Paulo: IBRASA, 1998. p. 107.
43 BRAGA, Alberto V. De Guimarães: tradições e usanças populares. Esposende: Esposendense, 1924. p. 95.
44 CUSTÓDIO, Idália Farinho; GALHOZ, Maria Aliete. Memória tradicional de Vale Judeu. Loulé: Câmara Municipal, 1996. v. II. p. 234.
45 FERNANDES, Gonçalves. O folclore mágico do nordeste: usos
costumes, crenças e ofícios mágicos das populações nordestinas.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. pp. 82-83.
ACORDA POVO | Tb. chamada bandeira de são joão.
w Em Pernambuco, festa religiosa de muita alegria
na véspera de São João, que pode incluir o banho
do santo. No Recife e em outras cidades de Pernambuco, é realizada em uma das procissões nas quais
ainda se dança. Um dos cantos reza: Acorda, povo,/
que o galo cantou/ é São João/ que anunciou.// Que
bandeira é essa/ que vamos levar/ é de São João/
para festejar.// Se São João soubesse/ quando era
seu dia/ descia do céu/ com prazer e alegria.// A festa
termina com uma comemoração na casa dos padrinhos do cortejo escolhidos anualmente. Em Recife
(PE), nesta festa de São João Batista, uma parte do
povo identifica o santo com Xangô.
ACORDAR | Deus fez o galo para acordar os homens; ver Caju. w Para acordar na hora certa e sem
despertador basta dizer: São Pedro, me acorde
tal hora! (Inf.: Laury Cristiny B. Pereira, Fortaleza-CE/1997.) ver Amanhecer; Bênção; Relógio. w Na
hora de levantar, muita gente costuma fazer o sinal
da cruz; ver Pelo-sinal; Salvação do dia. w Acordar
cedo para trabalhar: ver Madrugada; Roda de São
Gonçalo em Goiás. w Há festas, p.ex., a festa do
Divino, que acordam o povo com a alvorada; chamam os cristãos para a festa e a louvação. w Alguns
congados iniciam a festa do rosário com a matina. w
Levantar do sono é uma expressão associada à conversão, principalmente na quaresma e na encomendação das almas. Na semana santa em Porteirinha
(MG/2009), registrou-se o bendito: Bendito e louvado
seja/ a paixão do redentor/ para nos livrar das culpas/
morreu em nosso favor.// Acorda, pecador, acorda,/
do sono em que está dormente/ lembra-te das benditas almas/ que estão no fogo ardente.// ver Alimentação das almas; Recomendação; Pecador agora é
tempo; Alerta pecador; Injustiça. w Na noite de sexta-feira santa, o povo de Itinga (MG) canta: Quem tiver
dormindo acorda,/ vamos adorar Jesus.// ver Adoração da santa cruz; Bendita e louvada seja a paixão. w
Segundo a tradição (cf. Lc 2,8-20), anjos acordaram
os pastores nos arredores de Belém para anunciar-lhes o nascimento de Jesus: ver Pastorinhas em
Pacoval (PA). As pastorinhas e os reis magos de
hoje vão acordar o povo. Mello Moraes Filho (18441919) registrou, na Bahia, o canto de chegada de um
rancho natalino: Do letargo em que caístes/ acordai,
nobres senhores,/ vinde ouvir notícias belas/ que vos
trazem os pastores.// Nesta noite tão ditosa é bom
que vós não durmais/ porque tão alta ventura/ não é
justo que percais.//46 ver Reisado. A folia dos santos
reis tem versos para acordar os moradores de uma
casa (Itanhaém-SP): Acordai se estais dormindo/
este sono tão profundo./ Acordai e vinde ver/ as maravilhas do mundo.//47 Outros cantam (SP): Acordai
quem está dormindo/ levantai quem está acordado/
Venha ver o Deus menino/ na sua porta parado.//
ver Flor da laranjeira. w Nas festas juninas: São João
está dormindo, São Pedro está acordado: ver São
João Batista; Sarandagem; Capelinha-de-melão;
Folia de Santo Antônio. w Uma oração popular de
Santo Agostinho diz: “Enquanto estou acordado,
penso em Deus.” w Para a hora de dormir, encontramos em Betim (MG/1981), as palavras: Senhor, meu
Jesus Cristo/ minha alma vos entrego./ Se eu morrer,
alumiai-me/ Se eu viver, acordai-me. ver Com Deus
me deito; Benzer. w Por ocasião da morte de parentes e amigos é costume passar a noite acordado: ver
Vigília; Louvor de anjo no vale do Jequitinhonha. Vigília para agradecer uma graça recebida: ver Velação.
w Acordar com o pensamento na mulher: ver Santa
46 MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. p. 59.
47 RANGEL, Zilda Moreira. Natal em família. In: BOLETIM do Museu
de Folclore Rossini Tavares da Silva. dez./1992.
Dicionário da Religiosidade Popular
31
Aco
Acordeão | Adão
Barbosa. w Duas frases de para-choque dizem: A
esperança é o sonho do homem acordado. // Dormiu
no volante, acordou na eternidade.// w A morte é um
sono do qual não acordamos; ver Despedida; Sepultura. w Orações de fechar o corpo pedem para não
morrer dormindo nem acordado; ver Oração contra
os inimigos; Medo. w "Acordar" tem um significado
figurativo: ficar esperto, começar a compreender,
mexer-se; ver Simples; Princesa Isabel; Treze de
maio. Na capoeira angola, grão-mestre Dunga cantou (Belo Horizonte-MG/2000): Acorda povo, é hora,
gente,/ jogo de pau está matando muita gente.// A
gente planta uma cultura/ aí vem eles, quer tirar o que
é da gente.// Acorda povo, é hora, gente,/ a capoeira
tá matando muita gente.// Acorda, pai, acorda, mãe,/
jogo de pau está matando muita gente.// w Acordar a
plantação: ver Eclipse; Lua. w Acordar a água depois
da meia-noite: ver Acorda Maria; Rio. w Acordar o
deus que morreu no solstício: ver Toco de São João.
ACORDEÃO | Órgão portátil de palhetas inventado pelo alemão Frederico Buschmann, em 1822. w
O mesmo que sanfona, harmônica; tb. fole ou gaita
(RS). w Chegou ao Brasil na primeira metade do séc.
XIX. O sanfoneiro nordestino Luiz Gonzaga do
Nascimento (1912-1989) trouxe o instrumento para o
primeiro plano na música popular brasileira. O músico
paraibano Sivuca (Severino Dias de Oliveira, falecido em 14 de dezembro de 2006) recebeu o apelido
de diabo louro da sanfona e contribuiu para a valorização do acordeão. w O acordeão de oito baixos é
conhecido como pé de bode. w É usado em folias,
congados, catupés, quadrilhas e na festa da santa cruz; ver Polifonia popular. w Entre os descendentes de alemães no Rio Grande do Sul, é comum o
uso da gaita e do violão em celebrações nas igrejas,
p.ex., na comunidade de Santa Cecília, no município
de Cerro Largo (RS).
AÇORES | Vários elementos da religiosidade brasileira tiveram origem em Portugal: a festa do Divino no Maranhão, marujos, a espiritualidade dos
oratorianos, pão-por-deus e a devoção do Santo
Cristo; ver Mesa do Divino Espírito Santo; Erisipela. Em Itajaí (SC), a grande festa da marejada une
a culinária açoriana ao pescado do Brasil. w Ver tb.
Colonização; Gado; Marquesa. w >> BRAGA, Teófilo.
Cantos populares do Arquipélago Açoriano. Ponta
Delgada: Universidade dos Açores, 1982 (cf. ed. de
1869); BARCELOS, J.M. Soares de. Dicionário de
falares dos Açores: vocabulário regional de todas as
ilhas. Coimbra: Edições Almedina, 2008.
ACOSSI SAPATÁ | Em candomblé jeje no Maranhão,
vodum das doenças de pele. w Em candomblé iorubá: ver Obaluaiê. w Identificado com São Lázaro.
ACRÓSTICO | De alguns manuais antigos religiosos
consta um acróstico do nome de Maria. w Ver tb. Letra.
AÇÚCAR | [Do árabe “as-sukkar”.] Os grandes engenhos costumavam possuir uma bonita capela ao
lado da casa-grande; ver Cana-de-açúcar. w Desde
o final do séc. XIX, os antigos engenhos de madeira vêm sendo substituídos pelas usinas. w O açúcar
é muito usado nas doenças da garganta e do peito.
Manoel Diégues Júnior assinala o seu uso no Nordeste para tratamento de tuberculose, rouquidão,
gripe, sarna e hemorragias nos olhos. w É tb. usado
em doces como alfenim e manjar, distribuídos aos
organizadores e atores das cerimônias religiosas da
semana santa, da festa do Divino e outros rituais do
povo. w >> FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia
do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste
do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; RIBEIRO, Joaquim. Folclore do Açúcar. Rio de Janeiro:
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1977.
ACUDIR | Sinônimo de salvar e ajudar. w A expr. “foi
32
Dicionário da Religiosidade Popular
um Deus nos acuda” indica uma aflição geral. w Oração (Divinópolis-MG): Com Deus me deito, coberta me
cobre./ Se a morte vier, Nossa Senhora me acode.//
ACULTURAÇÃO | O conceito surgiu na Alemanha, no
início do séc. XX, e se referia à mudança de um sistema cultural por causas externas. A partir de 1928,
passou a ser usado por antropólogos anglo-saxões.48
w Nos EUA, o termo inicialmente significava "a modificação de uma cultura primitiva pelo contato com
uma cultura avançada”.49 Mas, acabou por significar
a adaptação de certa cultura a outra que se impõe
com arbitrariedade, como na colonização. Trata-se
de um conceito ultrapassado, dados os preconceitos
raciais e culturais que sugere. w Atualmente, a igreja
católica usa o termo "inculturação”, visando a uma
evangelização que busca a encarnação da palavra
de Deus na vida de um povo; ver Cristianização. w O
prof. Carlos A. Moreira Azevedo disse, no fim do congresso “Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas” (1993): "A adaptação missionária foi substituída pela indigenização, aculturação, contextualização
e, finalmente, inculturação, que também já começa a
ser esquecida em favor da evangelização das culturas. Todo este morrer e erguer de palavras esconde
um novo modo de ser e construir a Igreja, porque só
gente realmente convertida pelo Evangelho pode ser
autenticamente missionária".50 w Em outro sentido,
quem vai morar em outro país passa necessariamente por um processo de aculturação; ver Enculturação.
w Ver tb. Linguagem; Transculturação; Eclesiocentrismo. w >> RAMOS, Arthur. A aculturação negra
no Brasil. São Paulo: Comp. Ed. Nacional, 1942. (As
duas partes do livro tratam da herança do negro e da
assimilação e aculturação no Brasil.)
AD IESUM PER MARIAM | [Latim, a Jesus por Maria.] Lema da congregação mariana desde sua origem, em 1563.
ADÃO | □ O primeiro homem, portanto não nascido,
mas criado por Deus (Gn 1 - 2); ver Alma de Adão.
Adão, feito de barro e do sopro de Deus Criador,
afastou-se de Deus. w Às vezes é chamado Santo Pai
da humanidade. Existem imagens de Santo Adão.
w A moda de viola da criação do mundo, registrada
em Goiás, diz: Este mundo foi criado/ por um grande
onipotente/ Deus formou ele em seis dias/ e fez tudo
diferente/ fez os campo e fez os mato/ fez tudo quanto é vivente/ Fez Adão e fez a Eva/ e pôs no mundo
pra semente.//51 w O cearense Patativa do Assaré
disse: No mêrmo tempo que Deus/ fez o céu, o má e o
chão,/ fez também de barro o home/ que é justamente
esse Adão;/ Ele era um belo vivente,/ santo, fié, inocente/ mas depois foi traiçoêro/ fez uma grande desorde/ pru que não cumpriu as orde/ do nosso Deus
verdadêro.//52 w O poeta João Martins Athayde, no folheto “O Valor da Mulher”, escreveu: A primeira pessoa da Trindade/ como Pai Criador teve a lembrança/
de dar sua aparênça e semelhança/ a Adão como
prova de amizade/ e se Deus quis dar essa sumidade/
a Adão foi porque bem pretendia/ que o homem tivesse autonomia/ sobre todos os viventes deste mundo/
por ser ele o vivente mais profundo/ entre os feitos
da grande sabedoria.// w O poeta Manoel d’Almeida
48 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 3.
ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.
49 MORRIS, William. The american heritage illustrated dictionary of
the english language. New York: Dell, 1970. Verbete: “acculturacion”.
50 AZEVEDO, Carlos A. Moreira. Discurso de Encerramento. In:
CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, MISSIONAÇÃO
PORTUGUESA E ENCONTRO DE CULTURAS, 1993, Braga.
Actas... Braga: Fundação de Evangelização e Culturas, 1993. p. 57.
51 TEIXEIRA, José de Aparecida. Folklore goiano: cancioneiro,
lendas, superstições. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.
p. 265.
52 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. 4. ed. Petrópolis:
Vozes, 1982. pp. 183-184.
ADÃO, O SANTO PAI DA HUMANIDADE. PERSONAGEM
ARQUETÍPICA. (DESENHO A LÁPIS DE FX)
Filho escreveu "Encontro de Lampião com Adão no
Paraíso”. Alguns versos: Lampião virou-se rápido/ de
um lado da macieira/ avistou um homem nu/ como
numa brincadeira/ cobria um palmo na frente/ uma
folha de parreira.// Quando Adão se declara dono do
pomar, Lampião propõe: Nós podemos decidir/ caso
meu amigo queira/ na cabeçada, no murro,/ no pontapé na rasteira,/ quem ganhar fica com tudo/ quem
perder sai na carreira.// Quando Adão exalta a beleza
de Eva, Lampião diz: Duvido/ dessa sua opinião/ que
essa sua mulher tenha/ mais beleza e perfeição/ do
que Maria Bonita/ a Rainha do Sertão.// Adão rebate:
Pensa que não o conheço/ na vida de cangaceiro/ Sei
até que carregou/ a mulher de um sapateiro/ quando assombrava os Estados/ do Nordeste brasileiro.//
Lampião pergunta como o conhece. Adão respondeu
sorrindo/ numa risada normal:/ Ouvindo os noticiários/ da Rádio Nacional/ da Globo, da Bandeirantes,/
da Tupi e da Jornal.// Como se vê, a criatividade do
poeta deixa Adão bem abrasileirado; ver Mitologia
popular. w A expr. do Pai Adão indica coisa antiga. No
tempo em que Adão era cadete: em tempos remotos.
w Há uma charada sobre Adão muito conhecida: Um
homem houve no mundo/ que sem ter culpa morreu,/
nasceu primeiro que o pai,/ sua mãe nunca nasceu/
sua avó esteve virgem/ até que o neto morreu.// Câmara Cascudo registrou esta versão de Bernardo
Cintura e uma variante que consta do romance “História da Donzela Teodora”: Pergunta o sábio a ela:/
Adarrum ou Adarrun | Adivinhação (2)
Que homem foi que viveu/ porém nunca foi menino,/
existe mas não nasceu;/ a mãe dele ficou virgem/
até quando o neto morreu?// Este homem foi Adão/
que da terra se gerou,/ foi feito já homem grande,/
não nasceu. Deus o formou./ A terra foi a mãe dele/
e nela se sepultou.// Foi feito mas não nascida/ essa
nobre criatura./ A terra era a mãe dele/ serviu-lhe de
sepultura/ para Abel, o neto dela/ fez-se a primeira
abertura.//53 Jacopo de Varazze (1229-1298) escreveu, na Legenda Áurea: “Foi conveniente que o filho
de uma virgem, isto é, o Adão feito da terra quando
esta ainda era virgem, fosse vencido pelo Filho de
uma Virgem. Foi poderoso aquele que venceu com
sua sabedoria e expulsou o diabo que tinha exortado e derrubado o primeiro homem.”54 w Adão e Eva
desfilam entre as figuras bíblicas das procissões
da semana santa. Em Santo Antônio do Monte (MG),
vão semeando na terra; ver Costela de Adão. Adão,
pai dos penitentes: ver Quarta-feira de cinzas. w O
pecado de Adão: Eu inté fico abusado,/ seu doutô,
quando magino/ em Adão, esse marvado,/ sacudi
nois no pecado//.55 ver Estrela do céu; Procissão de
cinzas; Fiado; Ferro. w Adão e a enxada: ver Agricultura e religião. w A expr. "Somos filhos de Maria,
descendência de Adão” está no canto das seis
horas. w Segundo os foliões de São Benedito, em
Óbido (PA/1997), o próprio Jesus falou a Adão: Abençoai com a mão direita,/ com a esquerda não quero
não.// w Frase de para-choque: Feliz foi Adão que
não teve sogra nem caminhão. w A dupla sertaneja
Nilo e Nelo resume tudo que supomos que a maioria
dos brasileiros sabe sobre o primeiro casal humano:
Adão foi o primeiro homem que no mundo Deus criou/
depois com muita cautela com sua costela a mulher
formou./ Então lhes deu o paraíso e fez um aviso para
o casal:/ Não coma o fruto proibido que é concebido
fruto do mal.// Ali tudo era belo foi o jardim que Deus
formou/ Mas pra estragar o ambiente veio a serpente
o casal tentou/ A mulher chamada Eva não vendo as
trevas que causaria/ comeu o fruto proibido ela e o
marido e tudo perdia.// Foi assim que veio o anjo e
expulsou-os do paraíso/ Por causa da tentação Eva
e Adão perderam o juízo/ Por causa desta vaidade a
humanidade saiu mal/ Nascemos todos manchados
com o pecado original.// Depois do nosso batismo é
que nos livramos deste pecado/ E por lembrança de
Adão todo o cristão só vê este ditado/ Ele perdeu o
paraíso, teve prejuízo por uma cobra/ E o povo ainda
diz: Adão foi feliz que não tinha sogra.// w Ver tb. Lilite. w >> PAPINI, Giovanni. O Diabo. Lisboa: Livros do
Brasil Ltda., 1953. pp. 126-130.
ADARRUM ou ADARRUN | [Do fon “adănhŭn”, tambor de fúria.] No candomblé iorubá, ritmo específico e
intenso de atabaques e agogôs para chamar qualquer
orixá e favorecer o transe dos filhos de santo. w Parece ser a mesma dança do trovão que Geoffrey Gorer
assistiu no Daomé, denominada de "adahoun".56
ADÊ | [Do iorubá “adé”, coroa adornada com franjas.]
No candomblé iorubá, coroa ou diadema de metal ou de
seda bordada, com pingentes de contas escondendo o
rosto. Usado pelas iabás: Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã.
Tb. usado por Xangô e Oxalufã. Na África, era a coroa
dos reis e das rainhas das nações iorubás que podiam
provar ser descendentes do herói mítico e antepassado,
Odudua; ver Reinados na África. w Capacete de Obá.
ADERALDO (1882-1967) | Aderaldo Ferreira de Araú53 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000. pp. 217-218.
54 DE VARAZZE, Jacopo. Legenda áurea: vida dos santos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 698-699.
55 ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá. 4. ed. Petrópolis:
Vozes, 1982. p. 184.
56 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3.
ed. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 15.
Adi
jo, cantador e poeta cearense, nasceu em Crato (CE).
Ficou cego aos 18 anos, mas tornou-se um violeiro,
cantador popular em todo o Nordeste brasileiro. Improvisava versos de modo genial; ver Peleja; Imaginário.
ADEUS | Palavra corrente que resume a expr. “A
Deus”, isto é, da sua vontade dependerá um próximo
encontro; ver Saudar e abençoar. w Na despedida
do defunto, nas incelências (Ponte dos Carvalhos-PE): Desceu um anjo do céu/ para abrir o Paraíso./
Adeus, irmão, adeus, irmão,/ até o dia do juízo.// Outro canto de Belém (PA) diz: Adeus, minha casinha,
eu já vou me embora/ Recomendo a Deus e a Nossa
Senhora.// Adeus, minha família, eu já vou me embora/ Recomendo a Deus e Nossa Senhora.// (Inf.:
Genival Lima da Silva, Agudos-SP/1999.) w No fim
de um baile pastoril publicado por Manoel Querino,
na Bahia, todos cantam: Adeus Belém fortunoso./ Jesus, Maria e José./ Se de vós nós apartamos,/ vinde
conosco na fé.// Na mesma obra, Carlos Ott registrou
em Aporá (BA), o canto de despedida da pastorinha
borboleta: Adeus, Senhores, adeus,/ Já são horas de
partir/ entre a bonina e a açucena/ já são horas de
dormir.// Adeus, Senhores, adeus,/ já vou me retirar/
deixo saudades a todos/ e saudades vou levar.//57
No Rio de Janeiro, pastorinhas cantam: Boa noite,
meus senhores,/ um adeus queremos dar./ A aurora
vem raiando/ não podemos demorar.//58 w No Espírito
Santo, Guilherme Santos Neves registrou um verso
de despedida da folia dos santos reis: Adeus, casa,
adeus, terreiro,/ adeus, ó dono também,/ os três Reis
lá vão embora,/ voltarão o ano que vem.//59 ver Pedir licença. w Em Conceição do Mato Dentro (MG),
a marujada canta no final da festa: Adeus, adeus, eu
já vou me embora/ Eu vou com Deus e Nossa Senhora.// (Inf.: irmã Maria Luiza Andrade Carneiro,
Agudos-SP/1999.) w Em Rosário (MA), um cantador
da dança do lelê joga seu verso final: Adeus, ó dona
de casa/ digo adeus e já me vou/ Vou correndo mundo afora/ Santo Antônio por protetor.//60
ADIVINHAÇÃO (1) | [Do latim “ad-divinare”, ir aos
deuses para saber.] Busca de conhecimentos sobre
o que está oculto: objetos perdidos, afogado desaparecido, amor, doença, feitiço ou coisa-feita, o futuro
da nação (no fim do ano). w Às vezes, a adivinhação
acontece no culto, mostrando que a resposta é uma
graça divina; ver Perguntas e respostas; Enigma.
Uma das formas antigas é o oráculo, que traz uma
revelação divina e misteriosa por intermédio de um
vidente; ver errar w Em muitas religiões, a adivinhação é confiada ao sacerdote. Na Grécia antiga e
em Roma, a adivinhação era o ofício de 16 áugures
sacerdotais que revelavam o futuro pela análise dos
sonhos, pela observação dos astros, dos fenômenos
meteorológicos ou voo e canto dos pássaros; ver Astrologia. w Embora a Bíblia diga: "Não pratiqueis adivinhações nem encantamentos” (Lv 19,31), o sumo
sacerdote dos judeus usa o urim e tumim como
oráculos. Quando Saul viu o exército dos filisteus,
“consultou a YHWH, mas este não lhe respondeu,
nem por sonho, nem pela sorte, nem pelos profetas.
Saul disse então: ‘Buscai-me uma nigromante...’” (1
Sm 28,6-7). No Novo Testamento, os apóstolos tiram
a sorte quando da substituição de Judas, o apóstolo
traidor (At 1,26). Agem assim com liberdade e confiando na providência divina. w O profeta anuncia
a sorte do povo, em nome de Deus. w Adivinhação e
provérbio são formas de sabedoria, respectivamente
escondida e revelada. Há mitos e histórias em torno
de adivinhos. w Em algumas culturas, ocorre a consulta aos antepassados. w Outro meio de adivinhação é a consulta a livros sagrados. São Francisco
de Assis (c.1181-1226) praticava o sorteio apostólico: depois de rezar, abria o Novo Testamento três
vezes, e considerava os textos encontrados resposta
divina à pergunta previamente colocada.61 Os evangélicos consultam a caixinha de promessas com
versículos bíblicos. w Em muitos casos, “adivinhar”
e “tirar a sorte” são sinônimos; ver Experiências de
São João; Sortes de Santo Antônio; Têmporas de
Santa Luzia. w O curador popular faz olhada ou revista. A adivinhação vale-se principalmente da intuição. w Nas festas juninas, encontramos as adivinhas
de São João: ver São João Batista; Experiências de
São João. w Na hora da aflição, muitos devotos recorrem ao recado do santo, principalmente de Santo
Antônio. w Adivinhação a favor das almas: ver Sorteio
espiritual em favor das almas do purgatório. w Há
poucos anos, era comum ver nas praças o tocador de
realejo e seu papagaio, que tirava a sorte. w Recear
má sorte: ver Agouro; Juízo divino. w Videntes usam o
tarô e o baralho comum: ver Cartomancia. Revistas
e jornais publicam horóscopos. Ciganos preferem
a quiromancia. Alguns usam a bola de cristal. w
José G. C. Magnani disse: "Frente à imprevisibilidade
do dia a dia, as práticas e jogos divinatórios têm o
particular efeito de produzir no aparato psíquico de
seus usuários um fortalecimento da sensação de autoconfiança, eliminando ou reinterpretando os focos
de tensão e medo".62 w Adivinhação como forma de
lazer: dar resposta com sagacidade a charadas e
perguntas. A adivinha é mais praticada no meio rural
do que na cidade; ver Perguntar. Na déc. de 1950,
Alceu Maynard Araújo escreveu: “Uma das recreações sadias que preenchem de modo proveitoso as
horas de lazer dos moradores de Piaçabuçu (AL) é a
decifração de adivinhas. Sábado à noite, nos grupos
de conversa, quando não estão contando estórias de
trancoso, o centro de interesse da reunião familiar é
a adivinha. Não raro, nas feiras, à sombra de uma
árvore, há um grupo de pessoas (ali estão homens
idosos, moços e meninos e nunca faltam algumas
senhoras) em torno de um colocador de adivinhas.”
O autor cita Mané do Dôre, conhecido colocador de
adivinhas em festas e reuniões: “Em sentinelas não
gosto de botá adivinhas; quando me aperreiam mucho então ponho algumas de religião para não faltá
com o respeito ao falecido.” E exemplifica: Qual foi
o caminho que se cansou, qual foi a água que teve
sede, qual foi a vida que morreu? R.: Cristo. São Luiz
tem na frente, São Miguel tem atrás, nas donzelas
já no fim e as casadas não têm mais? R.: A letra “L”.
Quando Deus andou no mundo, onde pôs a mão na
mulher? R.: Na munheca.63
ADIVINHAÇÃO (2) | No candomblé iorubá existe o
jogo do edilogun ou dilogun, praticado com búzios,
de quatro a 32, mas geralmente, com 16. Os búzios,
cortados transversalmente, são jogados sobre uma
esteira ou dentro de um círculo de colares rituais dos
orixás, caindo, alguns com o lado cortado para cima,
outros para baixo. Cada combinação corresponde
57 MORAIS FILHO, Mello et al. Bailes pastoris na Bahia. Salvador:
Progresso, 1957. pp. 72 e 239.
58 LAMAS, Dulce Martins. Pastorinhas, pastoris, presépios e
lapinhas. Rio de Janeiro: Olímpica, 1978. p. 131.
59 NEVES, Guilherme Santos. Folclore brasileiro: Espírito Santo.
Rio de Janeiro: Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1978.
p. 60.
60 FERRETTI, Sergio; CÉCIO, Valdelino; MORAES, Joila. Dança do
Lelê. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978. p. 19.
61 LEGENDA dos Três Companheiros. n. 29. (c.1240) In: SILVEIRA,
Ildefonso; REIS, Orlando dos (org.). Francisco de Assis, escritos e
biografias de S. Francisco de Assis: crônicas e outros testemunhos
do primeiro século franciscano. Petrópolis: Vozes, 1981. p. 668.
62 MAGNANI, José Guilherme Cantor. Travessia. São Paulo, 1991,
p. 7.
63 ARAÚJO, Alceu Maynard. Escorço do folclore de uma comunidade. São Paulo: Prefeitura Municipal de São Paulo, Divisão do Arquivo
Histórico, 1962. pp. 107-108 e 267.
Dicionário da Religiosidade Popular
33
Adj
Adjá ou Adejá | Adventistas do Sétimo Dia
a um signo ou odu de Ifá que permitirá interpretar
as respostas dos orixás. Exu é o intermediário que
leva pedidos e respostas. Alguns sacerdotes de Ifá
(tb. chamado “Orumilá”), os babalaôs, utilizavam o
opelê, colar aberto nas pontas, feito com oito meias-nozes de dendê, ou búzios, enfiadas numa trança
de palha ou corrente de metal. No Brasil, o uso do
opelê parece estar diminuindo. Para consultar o orixá
e saber se aceitou uma oferenda tb. são usadas a noz
chamada “obi” ou uma cebola, partidas ao meio; esta
modalidade de jogo só permite obter duas respostas:
sim ou não. w Em candomblé banto, a consulta aos
búzios é frequente; ver Calundu; Olhar. Adivinhação
(ngombe): ver Cesto de adivinhação; Zamburá. w >>
SHAW. Eva. The Wordsworth Book of Divining the Future. Hertfordshire: Wordsworth Editions, 1997.
ADJÁ ou ADEJÁ | [Do iorubá “ààjà”, sineta metálica
de uso ritual.] Pequeno sino de duas ou três campanas, de origem iorubá, usado nos candomblés, no
xangô e na umbanda. Tocado pela mãe de santo,
invoca os orixás e incentiva o transe. Convida tb. à
cerimônia de dar comida ao santo. w Uma espécie
de maracá ritual.
ADJUNTO | No Nordeste, reunião de vizinhos para
um trabalho comum. Ajuntamento de trabalhadores
para tarefas pesadas em lavoura e outros serviços;
uma forma de mutirão. Associado à diversão e festa
pelo clima alegre e amigável de sua realização. w Adjunto da horta é chá de ervas medicinais (MG).
ADJUTÓRIO (DIJITÓRIO) | Ajuda, auxílio. O termo é
antigo. w Em 1972, Camillo Martins Vianna escreveu:
Colono velho de guerra/ do êrmo do meu Pará/ dá o
teu adjutório/ prá mata poder ficar/ tua ajuda é valiosa/ e muito irás lucrar.//64 w Denominação de mutirão
em Minas Gerais e em diversos estados do Nordeste
e Centro-Oeste do Brasil. O adjutório dura mais de
um dia. w Clister, purgante.
ADMIRAR | [Do latim, olhar para, mirar.] Admiração
por ver o invisível quando acontece um milagre (do
latim, “miraculum”); ver Fé; Sentimentos religiosos.
w O olhar de um admirador pode pôr mau-olhado.
w Diz um dos benditos da semana santa em Itinga
(MG): A cruz balanceou/ e o povo admirou/ não admira, minha gente,/ que esta cruz é do Senhor.// w No
diálogo religioso, a existência de tantos elementos
comuns a religiões tão diversas causa admiração.
ADO | [Do iorubá “àádùn”, milho moído e torrado misturado com azeite de dendê e sal.] Doce de milho torrado moído e misturado com mel e azeite de dendê.
w No candomblé iorubá, comida de santo de Oxum.
ADOBÁ e ADOBALÊ | ver Bater cabeça.
ADOBE (ADOBRE) | [Do árabe “attobi”.] Tijolo não
cozido, ou seja, bloco de barro feito numa forma e
secado ao sol, usado para construir as paredes das
casas. Antigamente de uso geral, hoje só é usado
por pobres; ver Macaúbas. w Ao fazer adobes, o trabalhador pobre costuma riscar uma cruz no barro molhado do primeiro deles, a fim de que o serviço resulte
bem-feito e abençoado (Araçuaí-MG).
ADORAÇÃO DA CRUZ | Cerimônia que constitui a
parte principal da liturgia oficial na sexta-feira santa. O sacerdote desnuda o crucifixo cantando: “Eis
o lenho da cruz do qual pendeu a salvação do mundo.” A assembleia responde: “Vinde adoremos.” O
“impropéria” cantado durante o beijo da cruz contém
as palavras: “Agios ó Theos; Sanctus Deus”. A cerimônia lamentosa e impressionante deixou rastros
na religiosidade popular. w Ritual popular na semana
santa. Em Itinga (MG), o povo reunido canta à noite:
Ê bendito (sic) a santa cruz (2x)/ quem tiver dormin64 Apud: SALLES, Vicente. Repente & Cordel. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Folclore, 1985. p. 136.
34
Dicionário da Religiosidade Popular
do acorda, vamos adorar a santa cruz.// ver Santo
Deus. w Ver tb. Salvação de uma cruz.
ADORAÇÃO DAS QUARENTA HORAS | ver quarenta horas de adoração.
ADORAÇÃO DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO | No
tempo de São Tomás de Aquino (séc. XIII), a igreja insistia muito na devoção ao Santíssimo Sacramento
para diminuir os excessos da veneração às relíquias.
Foi assim que os relicários (ostensórios e custódias)
passaram a exibir a hóstia consagrada. O concílio Tridentino (1545-1563) incentivou a adoração do Santíssimo; ver Eucaristia. w A adoração do Santíssimo
acontecia principalmente em uma cerimônia constituída de cânticos, orações, incensamento e bênção
do Santíssimo. Antigamente, era realizada em todos
os domingos e dias de festa; ver Corpus Christi. w
Outras formas da adoração ao Santíssimo: adoração
das quarenta horas; adoração perpétua ou lausperene, que acontece com o Santíssimo Sacramento
exposto apenas em algumas igrejas; adoração diurna durante os dias de carnaval, quando a igreja fica
aberta para as visitas; vigília noturna de adoração,
parte de algum retiro espiritual; Hora Santa. No caso
da adoração perpétua (lausperene), os adoradores
costumam comparecer de acordo com horários preestabelecidos semanalmente ou mensalmente.
ADORAR | [Do latim “adorare”, de “ad + ós (oral)”,
levar à boca, levar a mão à boca e jogar o beijo até
o distante objeto adorado. Jó 31,27 diz: “Nunca os
adorei e não lhes atirei beijos com a mão. Segundo
outros: do latim “orare ad”, orar em direção à (divindade), cf. admirar.] Na liturgia oficial, são beijados o
Evangelho, a cruz e o altar. w Segundo o novo Catecismo da Igreja Católica (1999), “a adoração do Deus
único liberta o homem de se fechar em si mesmo, da
escravidão do pecado e da idolatria do mundo” (no
2097).65 O teólogo alemão Karl Rahner explica que
o elemento adorativo de todo relacionamento com
Deus é realizado de maneira própria, mas sempre
como um reconhecimento da diferença infinita entre Deus e toda criatura.66 ver Rezar; Oração. w Em
Olímpia (SP), cantam: Eu vos adoro/ toda hora e todo
momento/ ó meu doce pão do céu/ meu Santíssimo
Sacramento.//67 É tradição ajoelhar-se para adorar a
Deus na hóstia consagrada: ver Adoração do Santíssimo Sacramento. w As pastorinhas e os reis magos
adoram o Deus Menino no presépio. Em Caraí (MG),
a folia dos santos reis canta: Já vieram os três reis
magos/ lá do lado do Oriente/ procurando adorar/ o
Menino onipotente.// (Inf.: Joaquim Pereira de Souza,
1980.) w Em Atibaia (SP/1976), diz o rei ao capitão
numa embaixada: Tá terrível capitão/ homem grande de vimente / quem é que deu licença/ de dançar
aqui na frente?// O capitão responde: Quem me deu
a licença/ me deu a licença inteira/ Quem me deu a
licença/ é nosso Deus verdadeiro.// E o rei: Nosso
Deus verdadeiro/ nóis devemo de adorá/ Só que adoro Deus do céu/ Mas capitão eu não vou adorar.//68
w Em textos populares, raras vezes encontramos o
termo "adorar" no sentido de venerar, de ter devoção. No folheto “O exemplo de um ateu/ que atirou
na imagem de São José”, de Francisco Sales Areda,
lemos: Então quando Renovato/ findou os trabalhos
seus/ chamou todo mundo e disse:/ nunca mais serei
ateu/ Vou adorar São José/ e pedir perdão a Deus.//
65 IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. 9. ed. São
Paulo: Loyola, 2006. p. 552.
66 RAHNER, Karl; VORGRIMLER, Herbert. Klein teologisch
woordenboek. Hilversum: Paul Brand, 1965. p. 11.
67 SANT’ANNA, José. Aspectos folclóricos da Quaresma no Município de Olímpia. In: FESTIVAL DO FOLCLORE, 24, 1988, Olímpia.
Anuário do 24. Festival do Folclore. Olímpia: [S.n.] 1988. p. 12.
68 GIRARDELLI, Elsie da Costa. Ternos de Congos: Atibaia. Rio de
Janeiro: Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1981. p. 68.
No folheto “O Sonho do Pe. Cícero Romão Batista”, o
autor anônimo faz o padre defender Maria diante de
um protestante com as palavras: Eu adoro sua imagem/ seu puro e sagrado nome/ pois quando chamo
por ele/ logo satanaz se some/ e quem a tem por devoção/ não passa nem sede nem fome.// Nunca deixo
de adorar/ a imagem de Maria/ conduzo-a sobre o
meu peito/ como fiel companhia/ e só me apartarei
dela/ quando unir-me a terra fria.// Peço em minhas
orações/ qu’ela não me falta a luz/ como também o
retrato/ do coração de Jesus/ porque na última viagem/ é Ele quem me conduz.// ver Folia de Santo Antônio. Como já foi dito, tal uso da palavra “adorar” é
raro; ver Homenagem ao Santo. w Alguns protestantes acusam injustamente os católicos de idolatria, ou
seja, de adorarem imagens. w Adoração do dinheiro:
ver Neoliberalismo.
ADORO SÃO ROQUE | Brincadeira de criança registrada por Alceu Maynard Araújo, em Alagoas: “Uma
criança é escolhida para ser o ‘São Roque’. Um a um
os participantes vão se ajoelhando diante do ‘santo’ que
faz todas as caretas e micagens possíveis com o fito de
provocar riso. Enquanto o ‘santo’ faz os trejeitos, a pessoa genuflexa vai dizendo repetidas vezes: ‘Adoro São
Roque, sem rir e sem chorar.’ Caso ria, substituirá o ‘São
Roque’, caso permaneça sem rir, será substituído por
outro ‘adorador’.”69 Brincar na religião: ver Humor.
ADRIÃO MÁGICO | Segundo o folheto “Luta e Vitória de São Cipriano contra Adrião Mágico”, de Joaquim Batista de Sena, foi com Adrião mágico que São
Cipriano, o feiticeiro, aprendeu a profissão. O poeta
escreveu: Neste tempo no Egito/ adotavam o despotismo/ tinha Adrião Feiticeiro/ o chefe do feiticismo/
que sucumbia o povo/ no mais temeroso abismo.//
w Existe tb. Santo Adrião (mártir, 300 d.C.), um dos
tradicionais protetores contra a peste.
ADUBALÉ | [Do iorubá “dojúbolê”, curvar-se respeitosamente.] O mesmo que dobalê e bater a cabeça.
w Nos cultos afro-brasileiros da Bahia e de Pernambuco, uma saudação respeitosa das pessoas que
têm um orixá masculino diante do peji e da autoridade religiosa. O filho de santo deita-se de bruços e
toca no chão com a cabeça. Quando entram em fila
no barracão, no início de uma cerimônia pública, os
filhos de santo devem executar esta saudação diante
da orquestra, se houver, e diante da mãe de santo.
ADUFE ou ADUFO | [Do árabe “al-adof”.] Pequeno tambor quadrado de origem moura, era conhecido na África
e em Portugal. Tem couro dos dois lados e é tocado com
a mão em folias, cantorias no Nordeste e na Amazônia.
É encontrado em terreiros de xangô, em Pernambuco.
Nas regiões central e sul, observamos seu uso no cururu, no fandango e no congado. w Diz Romualdo Ferreira
dos Santos: Alto suspira a viola/ e responde baixo o adufo:/ tira tufo, mete tufo/ elegante cabriola.//70
ADULTÉRIO | É considerado pecado gravíssimo, principalmente a infidelidade da esposa. Machismo: ver
Prostituição. w Sobre a fidelidade: ver Queijo (do céu).
ADVENTISTAS DO SÉTIMO DIA | Movimento milenarista iniciado por William Miller (1782-1848), que baseado
em Dn 9,24 predisse a segunda vinda de Cristo para o
ano de 1843. A vidente Ellen Gould White garantiu a continuidade da igreja e introduziu a observância do sábado,
que substituiu a do domingo, e deu origem ao nome sabatista. Os adventistas ou sabatistas não tomam álcool nem
comem carne de porco. Sempre anunciam que o fim do
mundo está próximo; ver Manuel Lacunza; Milenarismo. w
São muito ativos na difusão de seus ensinamentos. Pela
69 ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore nacional. 2. ed. São Paulo:
Melhoramentos, 1967. v. 2: Danças, recreação, música. p. 339.
70 SANTOS, Romualdo Ferreira dos. O Barqueiro do Tocantins.
Carolina (MA), 1921. Apud: SALLES, Vicente. Repente & Cordel. Rio
de Janeiro: Instituto Nacional do Folclore, 1985. p. 70.
Advento | Afogar
rádio AWR (adventist world radio, rádio mundial adventista) os adventistas do sétimo dia alcançam, a partir dos
EUA, todos os continentes. w Sua primeira igreja no Brasil
foi fundada em 1896, em Gaspar Alto (SC). Apesar de no
Brasil constituírem uma pequena minoria - possivelmente
não chegam a 10 mil -, suas publicações periódicas atingem tiragens de centenas de milhares de exemplares.
Mantêm numerosos programas de rádio, cursos por correspondência e propaganda nas ruas, em outdoors. Realizam tb. notável assistência social por meio de clínicas,
hospitais, escolas e empreendimentos agrícolas.
ADVENTO | [Do latim, vinda.] Tempo de preparação
para o natal que constitui-se de quatro domingos e entrou no ritual romano no séc. VI. w O advento não é um
tema popular, mas o povo conhece São João Batista
e é grande a fé em Nossa Senhora da Conceição, cuja
festa (8 de dezembro) cai no advento; ver Nossa Senhora do Ó. A folia dos santos reis Bendito e louvado seja/
o menino Deus nascido/ que no ventre de Maria/ nove
meses esteve escondido.// Em Itinga (MG), desde o séc.
XIX realiza-se em 7 de dezembro a limpa do caminho
do Senhor da Boa Vida. w Eis alguns versos modernos
do "Advento Nordestino", de Reginaldo Veloso: O sertão seco pela chuva a suspirar;/ dos oprimidos geme o
peito em oração:/ Vem, ó Senhor, nos libertar, não tarde
mais,/ junte esse povo e realize a promissão!// (Refr.) Lá
vem, lá vem,/ já se aproxima a Redenção.// A terra presa
nas mãos de tão pouca gente/ dos desterrados é imensa
a multidão,/ tomando rumo sem destino nas estradas,/
eles têm fome de justiça, terra e pão.//(...) O desemprego, a fome rondam a cidade,/ dos miseráveis é sem fim a
procissão/ Quantas crianças pela rua abandonadas/ sua
revolta sobe em meu coração.// Um “Santo Dia” já raiou
pro operário/ vencido o medo, sai às praças o peão;/ É
um só grito por emprego e por salário,/ abala fere, mas
o grito escutarão!// A voz do anjo, sussurou nos teus
ouvidos:/ Ave Maria, serás mãe da salvação!/ Maria-Igreja, vai dizer aos oprimidos/ que a terra nova já se
encontra em gestação.// Dos encurvados as cabeças se
levantam/ dos explorados unem-se as cansadas mãos./
E os gemidos vão virando um forte canto,/ o pobre unido
é sinal da redenção!// (Mimeografado. Recife/1985). O
texto é cantado, p.ex., nas romarias da terra. “Santo
Dia”: ver Santo Dias da Silva.
ADVOGADO | [Do latim “ad-vocare”, chamar para
perto.] Profissional que dá assistência jurídica e moral a quem é acusado. w O Divino Espírito Santo é
advogado: ver Paráclito. O povo conta com sua ajuda
no dia do juízo. Vários benditos rezam: Divino Espírito Santo/ divino consolador,/ consolai a nossa alma/
quando deste mundo for.// w Uma frase de para-choque: Não mexe comigo, Jesus é meu advogado. w Na
oração salve-rainha, Nossa Senhora é chamada de
advogada nossa. Tem o título de Nossa Senhora do
Bom Despacho. Na comunidade de Major Ezequiel,
em Alvinópolis (MG/1994), o congado canta: Eu não
matei,/ eu não roubei,/ eu não fiz nada/ eu sim, eu
não.// Mas o povo estão dizendo/ que hoje é dia do meu
jurado./ Eu vou pedir Nossa Senhora/ para ser minha
advogada./ Eu sim, eu não.// Canto igual foi registrado
na comunidade dos Arturos, em Contagem (MG).71
w Na Bahia, uma oração da noite pede para livrar da
condenação eterna: Minha Virgem da Conceição,/ vós
me dá a consolação/ e seja a minha advogada./ que
no impino da meia-noite/ eu vou encontrar com Jesus
Cristo (o juiz)/ Ele vem dizendo três vezes ao dia/ e três
vezes à noite:/ Abra a porta do céu/ e fecha a porta do
inferno./ Que desta morte não morrerei,/ as graças de
Deus alcançarei. Amém.// 72 ver Auto da Compadecida.
71 GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. Mundo encaixado:
significação da cultura popular. Belo Horizonte: Mazza Edições,
1992. p. 43.
72 SOUZA, José Evangelista de. Raízes e histórias: a saga de viver.
w Santo protetor: p.ex., Santa Bárbara é “advogada” contra raios e trovões; ver Palavras santíssimas e
orações devotas. Outros santos advogados: ver Santa
Rita de Cássia; Santa Ifigênia; Simão Stock. w Segundo o Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP), "os
advogados e outros doutores só têm dois caminhos
nas suas profissões: um deles é emprestar seu conhecimento para os movimentos populares e não ficar
separado deles; pelo contrário, estar firmemente junto
nas lutas pelas transformações da sociedade: o outro
caminho é ficar ‘na sua’, isto é, mesmo tendo simpatia
pelo povo, ‘cuidar da sua vida’ numa posição individualista. Esta posição é conservadora: ajuda as forças
que não querem mudanças na sociedade, forças que
pretendem conservar tudo como está”.73 ver Direito insurgente; Lei; Justiça. w É difícil o pobre conseguir um
bom advogado; ver Inclusão. Seria preciso aumentar a
número dos advogados na Defensoria Pública, função
essencial à justiça74. Além do mais, seria necessário
que o advogado fosse um mestre em cidadania; ver
Cadeia. w Na convicção popular, é quase impossível o
advogado salvar-se: ver Alma de Adão.
AFEFÉ | [Do iorubá “afëfë”, vento.] Em candomblé
iorubá, orixá dos ventos calmos. w Na nação nagô,
vento da tempestade, comandado por Iansã. Este
vento leva os espíritos dos mortos para o orum.
AFILHADO | A pessoa batizada é chamada de afilhada ou afilhado pelo padrinho e pela madrinha. O
afilhado pede a bênção a seus padrinhos e conta com
o apoio deles. Trata-se de uma forma de parentesco
espiritual; ver Compadrio; Compadre. w Afilhado de
Nossa Senhora da Conceição é quem teve como
madrinha Nossa Senhora da Conceição, representada por outra pessoa na hora do batismo. w Versos
cantados em Portugal: "Nossa Senhora da Lapa/ da
Lapa e da Lapinha/ chamai-me vós afilhada/ que eu
vos chamarei madrinha".75
AFILHADO DE FOGUEIRA ou AFILHADO DE SÃO
JOÃO | ver Batismo na fogueira de São João; Fogueira.
AFINAÇÃO | Os tambores do candombe, jongo,
caxambu e dos tamborzeiros do rosário são afinados perto de uma fogueira. No Maranhão, as caixeiras do Divino colocam suas caixas no sol para o
mesmo fim. w O canto da folia de reis começa com
a afinação dos instrumentos, um momento particularmente importante. Segundo Wagner Neves Diniz
Chaves, “ali não se afinam apenas cordas e couros,
mas também sensibilidades musicais. É o momento de um tipo de comunicação baseada no que se
ouve, em que olhares e o som em si exercem função
mais expressiva do que palavras. É o instante em
que rabequeiros, violeiros, caixeiros e tocadores
de violão buscam um limiar possível de interação
harmônica e musical. O consenso ali criado, todavia é negociável, e alguns instrumentos e pessoas
são mais qualificados para orientar tal processo.
(...) A afinação pode ser lida como um veículo ritual
presente na folia com vistas a comunicar expressivamente, seja por meio do som, de gestos, do tom
de voz ou da postura corporal, que alguma transformação está em curso: se na chegada da folia as
pessoas se cumprimentam, conversam e brincam
em tom descontraído, agora, na afinação, a postura
é de mais concentração, introspecção e seriedade.
A atitude de reverência, que se intensifica durante
o canto, já pode ser notada. O canto não se inicia
Petrópolis: Vozes, 1989. p. 63.
73 PRESSBURGER, Miguel. (Entrevistador) Um trabalhador fala:
O Direito, a Justiça e a Lei. (Coleção: Socializando Conhecimentos,
folheto n. 5) Rio de Janeiro: Instituto Apoio Jurídico Popular/FASE,
1988. p. 3.
74 Constituição Federal, cap IV, tit. 4.
75 AFONSO, Antônio Nogueira. Cancioneiro popular da região de
Mogadouro. Bragança: Esc. Tipográfica, 1970. p. 92.
Afo
sem que esse limiar seja coletivamente percebido
e aceito por todos os tocadores.”76 w Há pessoas
que por meio de algum feitiço conseguem desafinar
os tambores de um congado ou as violas de uma
folia, mas tb. existem rituais que fazem os instrumentos voltarem ao normal. Isso foi registrado em
Minas Gerais, Goiás e Pará; ver Tamborzão; Jongo.
Dois foliões contam o que aconteceu numa folia em
Abadia de Goiânia: O presépio estava num quarto
separado do salão. Os instrumentos afinados, nós
entramos. Começou a cantoria e os instrumento
tudo desafinado. Parou a cantoria, afinou, insistiu
outra vez: desafinado. Foi três insistência, e os instrumentos desafinado.(…) O palhaço dessa folia era
o Zacarias, palhaço famoso. Ele estava de fora. Entrou
e pediu licença pro véio Gabriel: Ocês espera um pouquinho, que vamo consertar esses instrumento. Aí os
folião todos ajoelharam e ele deu uma volta entre os
folião. Nós levantamos e ele disse: Pode tocá que tá
bom! E estava!(…) O que o palhaço fez, não sei. Sei
que foi uma oração. Quem tem fé, vence. E essa é a
razão de que o palhaço não pode ser qualquer um.77
AFLIÇÃO | Na hora de sofrimento, carestia, perigo,
angústia, agonia, o povo recorre às orações fortes e
promessas. w Na aflição, o povo diz: Deus é pai e é mãe.
Tb. rezam o credo. Existem as orações ao Senhor do
Bonfim e a Bom Jesus dos Aflitos. Outros invocam São
Judas Tadeu, Santa Rita de Cássia e outros santos. Em
Manhuaçu (MG), registramos: Me vale, Nossa Senhora
dos aflitos, e Nossa Senhora das angústias só que pode
me valer no estado em que me acha. (3x) Depois rezam-se 3 A.M. a Santa Maria Eterna. (Inf.: Raimundo Hilário
de Barros, 1999.) Em Janaúba (MG), registramos: Maria
se viu aflita/ aflita no pé da cruz/ assim me vejo aflita/ Me
vale, meu Bom Jesus. (Inf.: Maria Inês Silva Souza, 2004.)
w Conselho: Não aumentar a aflição do aflito. w As almas
aflitas são lembradas na encomendação das almas. De
um papelzinho de intenção de missa (Divinópolis-MG)
consta: Pelas almas mais aflitas isoladas que morreram
matadas, queimadas, afogadas. ver Oração às almas;
Almas do purgatório. w Ver tb. Apocalipse; Pesadelo. w
>> FREY, Peter Henry; HOWE, Gary. Duas respostas à
aflição: umbanda e pentecostalismo. In: Debate e Crítica.
São Paulo, n. 6. jul./1975.
AFOGADO | Nome de um prato típico em São Paulo.
É uma comida forte, de carne cozida, servida p.ex.,
na festa do Divino em Mogi das Cruzes e em São
Luís do Paraitinga. w Ver tb. Afogar.
AFOGAMENTO | Em Santa Catarina, o mesmo que
engasgo. Em Tubarão, registram-se duas simpatias
para desafogar: dar três voltas com o prato em que
a pessoa estava comendo; virar um tição de fogo
de modo que a ponta queimada fique voltada para
fora.78 Ao mesmo tempo, reza-se: São Brás, São Lucas, São Moço,/ se é espinha ou osso/ para baixo ou
para cima,/ sai-te deste pescoço.// 79 Tb. é conhecida
a oração Homem bom, mulher má (SC).
AFOGAR | Existem várias orações para não morrer
afogado: ver Nossa Senhora do Desterro; Oração de
Nossa Senhora do Monte Serrat; Oração da santa
cruz; Oração de Cristo. w Segundo L.C. Cascudo,
"a crença jangadeira no nordeste é que a alma dos
76 CHAVES, Wagner Neves Diniz. Recebeis meu Bom Jesus com
sua nobre folia: reflexões sobre a eficácia do canto nas folias norte
mineiras do alto-médio São Francisco. In: Textos escolhidos de
cultura e arte populares. v. 3. nov./2006. Rio de Janeiro, UERJ,
Instituto de Artes. p. 83.
77 MOREYRA, Yara. Memórias de Folias. In: REVISTA Goiana de
Artes. 5 (1): jan.-jun./1984. pp. 64-65.
78 CABRAL, Oswaldo. A medicina teológica e as benzeduras. In:
REVISTA do Arquivo Municipal. Ano XXIV, v. 160. São Paulo (SP),
Departamento Municipal de Cultura, 1957. p. 72.
79 CABRAL, Oswaldo. A medicina teológica e as benzeduras. In:
REVISTA do Arquivo Municipal. Ano XXIV, v. 160. São Paulo (SP),
Departamento Municipal de Cultura, 1957. p. 125.
Dicionário da Religiosidade Popular
35
Afo
Afonjá | Afro-Brasileiro
afogados só aparece aos pescadores". E mais: "Espírito de afogado no mar não anda em cima das ondas.
Aparece até a cintura ou somente a cabeça de fora.
Não é esqueleto, mas um corpo inchado, amarelo,
balofo, com os olhos brancos. Quem pisa in riba
d’água sem afundar é Santo”.80 w Nos vales dos rios
São Francisco e Jequitinhonha, a pessoa afogada e
desaparecida é procurada à noite colocando-se na
água uma cuia ou coité, que vai boiando com vela
acesa dentro, em busca do corpo. Este é encontrado
pelos mergulhadores no lugar onde a vela para e começa a girar (Bom Jesus da Lapa-BA).81 Eliana Flora
aborda o mesmo assunto no seguinte texto rimado:
“Quando alguém morre afogado/ e não se achou o
coitado,/ deverão pôr uma vela/ acesa numa gamela,/ e soltar dentro do rio./ Onde fizer rodopio, mostra
por este sinal,/ que o morto está no local.”//82 w As
almas dos afogados são invariavelmente lembradas
nas preces das encomendações das almas; ver
Oração às almas. No Rio Grande do Norte e em todo
o Nordeste, acontece a procissão dos afogados. w
Quem vai dormir com sede corre o perigo de o anjo
da guarda afogar-se: ver: Água.
AFONJÁ | [Do iorubá “Àfõnjá”.] No candomblé iorubá, um dos nomes de Xangô. w Afonjá é o Xangô da
casa real de Oyo que veio para o Brasil. Segundo a
tradição, ele gostava de utilizar folhas em suas práticas mágicas. Afonjá é tido como filho de Banhani; ver
Axabó; Ilê Axé Opô Afonjá. w Segundo o historiador
africano Ki-Zerbo (1922-2006), "Afonjá foi um general,
isto é kakanfô, do alafin Aolé. Empreendeu inúmeras
batalhas, sendo considerado um grande comandante
militar. Foi nomeado, pelos seus feitos, governador de
Ilorin; no entanto, cai em desgraça junto ao obá. Rezava a tradição que os generais derrotados deveriam
suicidar-se. Afonjá recusa-se a seguir o costume e
investe contra o obá. O alafin envia contra ele um exército que é batido graças ao apoio dos peules de Malam
Alimi. Quando quis desembaraçar-se destes aliados
incômodos, foi destroçado por completo... suicida-se
então, e Ilorin torna-se um emirado peule”.83
AFOXÉ | [Do iorubá “aföÿë”, encanto.] Em São Paulo,
instrumento de percussão: piano de cuia ou cabaça sacudida; ver Xequeré. w Bloco típico do carnaval da Bahia.
Tem caráter religioso e é chamado candomblé de rua; ver
Babalaotim. Uns acham que os afoxés, à semelhança
do maracatu nação pernambucano, originaram-se nas
festas de coroação do Rei Congo, ligadas à irmandade
de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Já
outros dizem que se fundamentam em preceitos ligados
ao culto dos orixás. Ambos podem estar certos. w Os blocos vão para as ruas no domingo e na terça-feira de carnaval, sempre à tarde. Alguns afoxés conhecidos: Filhos
de Gandhi (fundado em 1949), Badauê, Filhas de Oxum.
Na ilha de Itaparica: Filhos da Ilha. Blocos afro modernos:
Olodum (1979), Ilê Aiyê (1974), Muzenza (1981). w Há
tb. o afoxé de caboclo, espécie de candomblé de pobre.
w Aconteceu: em novembro de 1993, o cardeal arcebispo de Salvador, dom Lucas Moreira Neves, proibiu que
dois de seus padres celebrassem uma missa de ação de
graças pelo aniversário do bloco afro Ilê-Aiyê, formado
apenas por negros. Segundo a revista Veja, “a missa, realizada anualmente desde 1979 na igreja do rosário de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho, é
uma mistura de liturgia com danças e batuques africanos.
O cardeal decidiu proibi-la neste ano por achar que se havia tornado um ritual muito parecido com o candomblé.”
Em nota oficial, ele explicou que “a Igreja não recomenda
celebração de missas especiais para grupos não católicos”.(…) “Sua decisão produziu faíscas dentro e fora da
igreja. Um dos padres atingidos, o frei angolano Tomé
Herculano Lopes, 36 anos, resolveu desafiá-lo e celebrou
o aniversário do Ilê-Aiyê com um culto ecumênico”.84 É
muito importante observar que celebraram com frei Tomé,
uma mãe de santo e o pastor de uma igreja batista. Mas,
enquanto uns afirmam que não é fácil ser cardeal na
Bahia, outros observam que na igreja, é difícil ser negro.
w Ver tb. Inculturação; Hilária Batista de Almeida. w >>
RISÉRIO, Antônio. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio,
1981; MORALES, Anamaria. MOURA, Milton. “World of
Fantasy, Fantasy of the World: Geographic Space and Representation of Identity in the Carnaval of Salvador, Bahia.”
In: PERRONE, Charles e DUNN, Christopher. The Internationalization of Brazilian Music. Gainesville: University
of Florida Press, 2001. pp. 161-176 .
ÁFRICA | Continente com 53 países e 800 milhões
de habitantes (2002), de grande diversidade cultural e religiosa. w Com a descoberta dos sinais mais
antigos da origem do homem na África oriental,
precisamente no Quênia, o continente passou a
ser considerado a terra-mãe da humanidade. Os
vestígios mais antigos de hominídeos na África
são de 3,2 milhões de anos. O geneticista brasileiro Sérgio Danilo Pena disse: “Todos viemos de
um antepassado africano”.85 w É difícil resumir a
história africana, que vai da Antiguidade (Egito,
Núbia, Etiópia) até ao movimento Pan-Africanista e
a recente expansão do Islã nas partes norte, ocidental e oriental do continente. O historiador Joseph
Ki-Zerbo (1922-2006) de Burkina Faso 86, em “História da África Negra” (2v.), destaca a importância
da África na história universal e se empenha em
desmantelar a barragem de mitos erguidos contra
essa história. Fala da necessidade da história escrita por africanos e baseada em fontes africanas,
de acordo com a historiografia moderna.87 Sobre a
história pré-colonial: ver Reinados na África; Banto;
Iorubá. w A expansão portuguesa na África começou em 1415 com a conquista de Ceuta, no norte do
Continente. Para os portugueses, o feito faz parte
da fase final da reconquista. Em 4 de abril de 1418,
o papa Martinho V concedeu favores espirituais a
quem ajudasse o rei dom João I na guerra contra
os mouros e outros infiéis “que infligiam os cristãos
com repetidos insultos, cativeiros e assassínios”. 88
Em 1434, os cabos Não e Bojador foram deixados
para trás, e os navios de dom Henrique abriram caminhos para o sul: Senegal e Cabo Verde (1439),
Costa do Ouro (1442), Elmina, em Benim (1471),
Cabo de Santa Catarina e São Tomé (1472), Foz
do Zaire ou Congo (1482), Cabo Negro (1485). Os
portugueses pretendiam descobrir até onde se estendiam as terras dos “infiéis” (mouros), negociar
com outros povos e convertê-los ao cristianismo.
Imaginavam uma aliança com o fabuloso Preste
João. Para este tipo de descobrimento, dom Henrique contava com as finanças da Ordem de Cristo. Os portugueses fixaram-se no Golfo da Guiné,
80 CASCUDO, Luís da Câmara. Religião no povo. João Pessoa:
Imprensa Universitária da Paraíba, 1974. p. 65.
81 UNGER, Edyla Mangabeira. O sertão do velho Chico. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 35.
82 FLORA, Eliana. Crendices populares. Guaratinguetá: Papelaria
Vieira, 1945. p. 168.
83 KI-ZERBO, Joseph. Apud: PESSOA DE BARROS, José Flávio
Pessoa de. Xangô no Brasil: a música sacra e suas relações com
mito, memória e história. In: CULTURA Vozes. n. 5, set.-out./2000.
p. 111.
84 BATUQUE no Altar. In: VEJA. 10/11/1993. pp. 94-95.
85 ISTO É. 1424-15/01/1997. A igualdade dos desiguais (entrevista
com Norton Godoy). p. 5.
86 Alto Volta era o nome colonial de Burkina Faso, que se tornou
independente em 1960. Desde 1983, o país se chama Burkina Faso,
“terra de homens dignos”.
87 KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Mem Martins (Portugal): Publicações Europa-América, 1972. v. 1. pp. 10-11 e 38-39.
88 REMA, Henrique Pinto. História das Missões Católicas da Guiné.
Braga: Franciscana, 1982. p. 16.
36
Dicionário da Religiosidade Popular
onde começaram um grande tráfico de escravos
em direção a Portugal e, mais tarde, ao Brasil; ver
Escravidão; Elmina; Catolicismo africano. w Para o
negro brasileiro, a África é a grande pátria da sua
origem. Hoje muitos falam na “mãe África”; ver Pequena África; Missa dos filhos do rosário. w Os povos bantos vieram do Congo, Angola, Moçambique e Guiné; ver Aruanda. Os nagôs, iorubás, jejes,
quetos, malês, vieram principalmente da Nigéria,
do Sudão e de Daomé; ver Benim; Afro-brasileiro.
w Apesar do sistema escravocrata, os cativos conservaram muitos elementos vitais da raíz africana.
Hoje, suas danças, línguas, culinária e crenças diversas, fazem parte da cultura brasileira. w Sobre
a religião na África, bastam aqui as seguintes observações: no Brasil, a experiência religiosa das
nações africanas faz-se presente principalmente
nos cultos afro-brasileiros e nas irmandades de
Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos;
ver Resistência. Os escravos malês eram islamitas;
ver Islã; Pureza afro-brasileira. w Por várias vezes
ouvimos dizer que, na quaresma, os orixás voltam
para a África: ver Lorogum. w No passado, viajantes, missionários, administradores e intelectuais
europeus divulgaram constantemente a imagem de
uma África primitiva e bárbara, sempre repetida nas
escolas, nas igrejas e nos meios de comunicação
para justificar a exploração no passado e explicar
a situação do momento. w Hoje, o continente africano, rico e populoso, passa por crises econômicas,
políticas e culturais. A mídia nos mostra guerras e
genocídios, a incidência da aids, multidões morrendo de fome, secas, gente morrendo em campos
minados, frente à postura omissa da comunidade
internacional.89 Frei Fabiano Satler, missionário brasileiro em Moçambique de 1998 a 2005, reflete: “Há
um estereótipo relacionado com os países africanos
onde os mesmos são mostrados unicamente sob a
perspectiva de misérias, guerras, lutas tribais, doenças e corrupção. Infelizmente, tais estereótipos
escondem a riqueza cultural, religiosa e humana
presente nesses países. Se é verdade que tais iniquidades se fazem presentes de uma maneira mais
ou menos intensa no dia a dia dos países africanos,
também é verdade que esses povos não perdem a
capacidade de celebrar com intensidade e alegria
os acontecimentos quotidianos. O que se opõe à
alegria é a tristeza, não o sofrimento. A iniquidade
presente no dia a dia não é obstáculo para a celebração da alegria do triunfo do Crucificado-Ressuscitado sobre tais iniquidades.” (Belo Horizonte-MG,
Páscoa/2009.) w Segundo as Pontifícias Obras Missionárias, em 1960 havia 24 milhões de católicos
no continente africano. Em 2008 chegaram a 123
milhões.90 w >> SOUSA, Manoel de Faria y. Africa
portugueza. Lisboa, 1861; MAQUET, J. Les Civilizations Noires. Paris: Marabout Université, 1966; OLIVER, Roland. A experiência africana: da pré-história
aos dias atuais. Rio de Janeiro: Zahar, 1994; COSTA
E SILVA, Alberto da. A enxada e a lança: a África
antes dos portugueses. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996; MAESTRI, Mário. História da África
negra pré-colonial. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1988; PAULME, Denise. As Civilizações Africanas.
Lisboa: Coleção Saber, 1977; THORNTON, John. A
África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Campus, 2004.
AFRO-BRASILEIRO | Pertencente à África e ao Brasil, ao mesmo tempo. Há os que preferem o termo “ne89 KAPUSCINSKI, Ryszard. Ébano: minha vida na África. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
90 SIM (Serviço de Informação Missionária). n. 2. abr.-jun./2008.
p. 12.
Afrodescendente | Agnus Dei e Ágnus-Dei
gro brasileiro” e outros preferem “afrodescendente”. w
Segundo o IBGE no Censo de 2010, “pardos e negros”
somavam 50,7% da população brasileira; ver Negro.
No Brasil, existem diversos cultos afro-brasileiros. w
Raul Lody, autor do "Dicionário de arte sacra e técnicas afro-brasileiras", escreveu: "Estão encarnadas no
patrimônio do material brasileiro matérias-primas, ferramentas, domínios tecnológicos, motivos, modelos,
formas resultantes, cores, texturas, cheiros, sons, preferências de maior ou menor conteúdo africano, sem
simplificar os casos ocorrentes como meros detentores de raízes ou influências. Talvez falar em afro-brasileiro seja redundância, por estarem e serem brasileiros
componentes da África, ou melhor, de "Áfricas" culturalmente diferenciadas. Brasileiros conceitualmente
analisados têm África latente e África expressa."91 w
Outras influências: ver Mestiço. w Ver tb. Pureza afro-brasileira; Cristianismo nos cultos afro-brasileiros. w
>> BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel
Rufino dos. Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas afro-brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura; Fundação Cultural Palmares, 1994; ROBERTO, Benjamin.
A África está em nós: história e cultura afro-brasileira.
João Pessoa: Grafset, 2004; DUARTE, Eduardo de
Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 4 v.
AFRODESCENDENTE | ver afro-brasileiro.
AFUZILADOS (s.d.) | Dois soldados, os irmãos Meira, fuzilados por indisciplina, são lembrados pelo
povo de São Gabriel (RS) e considerados intercessores em causas perdidas. Têm seu culto em uma
pequena capela erguida dentro do quartel, no lugar
onde foram fuzilados, e onde hoje seus devotos acendem velas. Há ex-votos e flores.
AGANJU | [Do iorubá “Aganjú”.] Um dos nomes de
Xangô. No candomblé iorubá, filho de Obatalá (céu)
e Odudua (terra). Em alguns mitos, irmão e esposo de
Iemanjá e pai de Orungã (o espaço). w Na umbanda, a grande terra, região selvagem. Aganju é Xangô
velho. w Na Bahia, é identificado com São Miguel.
AGASALHO | Capa, blusa, pano ou cobertor que protege do frio ou da chuva. Todo ano, no inverno, fazem-se campanhas do agasalho. w O mesmo que pousada.
Nas suas andanças, a folia dos santos reis poderá pedir
agasalho (Jequitibá-MG): Ó senhor dono da casa/ santos reis está aqui/ com a sua companhia/ um agasalho
vem lhe pedir.// Senhor dono da casa/ santos reis aqui
está/ pedindo um agasalho/ para a companhia descançar.// Os três reis quando andaram/ assim eles fazia/ viajava a noite toda/ e descansava de dia.// Em Goiás, cantam: Santo Reis evém girando/ cansadinho do trabalho./
Procurou vossa morada/ para pedir um agasalho.//92
AGASSU | Em candomblé jeje, vodum que representa a família real de Daomé.
AGBÊ ou ABÊ | [Do fon “Agbè”, divindade que representa o mar.] No candomblé jeje, orixá feminino que
representa as águas do mar. O culto a Agbê acontece
na praia.
AGENOR MIRANDA ROCHA (1907-2004) | Nascido
em Angola, de pais portugueses católicos. Seu nascimento já era aguardado pelos cultores do calundu
(espírito, força vital do antepassado). Aos 4 anos vai
para Salvador (BA) com a família, adoece e fica desenganado pelos médicos. Mãe Aninha (Ana Eugênia dos Santos, nascida em 1869), ialorixá fundadora do ilê Axé Opô Afonjá, joga os búzios para ele
e vê que sua cura dependia de ser “feito” em Oxalá.
91 LODY, Raul. Dicionário de arte sacra & técnicas afro-brasileiras.
Rio de Janeiro: Pallas, 2003. p. 18.
92 TEIXEIRA, José de Aparecida. Folklore goiano: cancioneiro,
lendas, superstições. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1941. p. 66.
Os pais consentem e Agenor é iniciado, curando-se instantaneamente. Após sete anos de iniciado,
búzios e opelê são jogados para ele, indicando que
“trazia” o cargo de oluô - oráculo - que Agenor exerceu a vida toda. Jorge Amado (1912-2001) escreveu:
“Profundo conhecedor dos segredos de Ifá, Agenor
jogou os búzios de adivinhação para a escolha de
várias mães de santo, entre as quais Stella de Oxóssi, do Axé Opô Afonjá, e Tatá, do Engenho Velho.
Assim, toda uma estirpe e uma hierarquia das religiões afro-brasileiras saíram de suas mãos sábias”. 93
Muniz Sodré e Luís Filipe de Lima94 esclarecem que
o oráculo de Ifá não é a única arte divinatória entre
os iorubás, mas que é a mais importante, exigindo
aprendizado longo e aprofundado. Só o iniciado
passa a conhecer o imenso corpus literário que faz
parte dessa tradição: os textos sagrados, que consistem em 256 odus, tidos eles mesmos como entes sagrados, emanados do céu para a terra, e em
essés, “passagens em prosa e verso transmitidas
por Ifá a seus filhos e discípulos enquanto ele ainda
estava na terra”. As adivinhações abrangem o manejo dos iquins (16 nozes de palmeira), opelê (colar
de Ifá) e ibô (conjunto de búzios para o achamento
do essé que se adapte). Agenor ganhou a vida como
professor no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e
sempre exerceu gratuitamente a sua função de oluô:
olhador. Aberto a todas as religiões, pediu a bênção
do papa. Só admitia o sacrifício de animais nos cultos em casos excepcionais; advertia para o perigo
de interesse financeiro nos mesmos e foi sem dúvida uma das mais importantes personalidades religiosas do Brasil. w Publicou o livro "Os candomblés
antigos do Rio de Janeiro. A nação ketu: origens,
ritos e crenças" (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994).
w Sob o título "Caminho de Odu", Reginaldo Prandi
publicou em 1998 o caderno escrito pelo prof. Agenor em 1928, contendo "os odus do jogo de búzios
com seus caminhos, ebós, mitos e significados". O
texto foi revisto pelo próprio Agenor.95 ver Odu. w >>
REBOUÇAS FILHO, Diógenes. Pai Agenor. Salvador: Corrupio, 1998.
AGENTE DE PASTORAL | Aquele que faz trabalho
pastoral diretamente com o povo e em nome da igreja oficial, p.ex., padre, irmã, dirigente do culto, agente da pastoral da saúde e da catequese paroquial.
A principal tarefa desses agentes de pastoral é
acompanhar o povo na sua experiência religiosa.
Na ação pastoral, o clero e os dirigente leigos do
culto precisam conhecer a religiosidade popular e
suas várias formas culturais. É importante a valorização dos agentes religiosos - rezadeira do terço,
benzedeira, mestre da folia, capitão do congado - da
própria comunidade; ver Ministérios populares. w O
agente de fora precisa conhecer o povo e a realidade local pela inserção; ver Pastoral da religiosidade
popular; Momentos religiosos. w A quem trabalha na
periferia o teólogo Clodovis Boff avisa: "O agente de
pastoral deve reconhecer sua situação de classe e
o caráter de classe de seu pensar e agir. E isso sem
disfarce, com toda honestidade. Ser de uma classe ou outra pertence ao destino histórico de cada
um. Não depende de uma escolha voluntária. E tal
pertença marca a consciência e o modo de vida de
93 AMADO, Jorge. Prefácio a SODRÉ, Muniz; LIMA, Luís Felipe de.
Um vento sagrado: história de vida de um adivinho da tradição Nago-Ketu brasileira. Rio de Janeiro: Mauad, 1996. p. 7.
94 SODRÉ, Muniz; LIMA, Luís Felipe de. Um vento sagrado: história
de vida de um adivinho da tradição Nago-Ketu brasileira. Rio de
Janeiro: Mauad, 1996.
95 PRANDI, Reginaldo (org.) Caminhos de Odu: os odus do jogo de
búzios, com seus caminhos, ebós, mitos e significados, conforme
ensinamentos escritos por Agenor Miranda Rocha em 1928 e por ele
revistos em 1998. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
Agn
cada um. É falso dizer-se igual ao povo, identificado
com ele, quando se é de outra classe. Essa atitude
mistifica a relação com o povo e leva à dominação
sob pretexto de igualdade. Por outro lado, esse reconhecimento deve ser feito sem falsas culpas e má
consciência, sem satanizar a própria situação social
nem canonizar o povo. Há vantagens e desvantagens em cada uma delas”.96 ver Classe média; Espiritualidade; Satanização. w Em muitos encontros
com agentes de pastoral, nas décs. de 1970 a 1990,
constatamos que é comum se denominar a religiosidade do povo de "ambígua" e "alienante". Ela seria
"não autêntica, mas supersticiosa", "tradicionalista e
avessa ao progresso”. Dizem: “Temos que procurar
seus valores para aproveitá-los numa linha libertadora” e “analisar bem para aproveitar melhor”; ver
Preconceito; Religiosidade popular nos documentos
da igreja. w Muitos agentes parecem considerar o
povo passivo quando querem "interferir", "conscientizar", "evangelizar"; ver Concílio Tridentino. Não
percebem que o povo fraco é sábio, astucioso e
tem humor; ver Irreverência. Portanto, o caminho
da religiosidade popular para uma igreja popular
só será possível quando houver respeito e vontade
de valorizar o povo que se expressa através desta
religiosidade. Ao agente, cabe dar assessoria; ver
Pastoral da religiosidade popular. w Ver tb. Mal-estar da igreja no Brasil.
AGENTES DE PASTORAL NEGROS (APN) | Grupo
fundado em São Paulo, em 14 de março de 1983,
por padres, religiosos, religiosas e leigos; luta pela
conscientização e valorização do negro. Sua organização se dá por meio de um “quilombo central” em
São Paulo e quatro quilombos grandes, abrangendo
todo o Brasil. w Diz o padre Antônio Aparecido: "Ao
mesmo tempo em que aprofundam a consciência da
negritude, os agentes de pastoral negros (APN)
vão recuperando as suas origens culturais na liturgia. É efetivamente uma nova maneira de viver
e celebrar a fé cristã enquanto negro, assumindo a
negritude nas celebrações e na luta que alimenta
a resistência cotidiana”.97 ver Organização dos negros no Brasil; Resistência.
AGIOS, Ó THEOS, AGIOS ISCHIROS, AGIOS
ATHANATOS | [Grego: Santo Deus, Santo forte,
Santo imortal.] Estas palavras fazem parte da liturgia
oficial da adoração da santa cruz, na sexta-feira
santa. w Já foram empregadas em antigas bênçãos
contra bruxaria. Hoje, ainda fazem parte de algumas
orações populares, como o Amabilíssimo Senhor e
a oração de Santo Agostinho.
AGNUS DEI e ÁGNUS-DEI | □ [Latim, cordeiro de
Deus.] [Iconogr.] O Cordeiro sobre um livro, com a cruz
e uma bandeira. w Nome dado a Jesus por São João
Batista (Jo 1,29; cf. Is 53,7-12 e Jr 11,19). w Desde o
séc. VII, nome de uma pequena prece que faz parte
das orações comuns da missa: "Agnus Dei, qui tollis
peccata mundi, miserere nobis (2x). Agnus Dei, qui
tollis peccata mundi, dona nobis pacem". As mesmas
palavras constam das ladainhas da igreja. Texto completo em português: "Cordeiro de Deus que tirais o
pecado do mundo, tende compaixão de nós. Cordeiro
de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz".
w Ágnus-dei: pequenino estojo contendo uma partícula de cera, feito de pano, plástico, metais preciosos ou outros materiais, apresenta, muitas vezes, a
efígie do Cordeiro de Deus, símbolo da salvação;
surgiu nas festas da páscoa. Nas igrejas de Roma,
96 BOFF, Clodovis. Como trabalhar com o povo. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1984. p. 16.
97 SILVA, Antônio Aparecido da. Pe. Negritude e Liturgia. In: A
VIDA em Cristo e na Igreja. (Revista de Liturgia) São Paulo, nov.-dez./1984. p. 3.
Dicionário da Religiosidade Popular
37
Agodô | Agregado
VILMAR OLIVEIRA
Ago
AGNUS-DEI, SÍMBOLO DA SALVAÇÃO. (BRASIL, SÉC. XX)
provavelmente a partir do séc. IV, havia o costume
de se distribuir entre os fiéis a sobra da cera do círio pascal do ano anterior. Ora, uma vez que o círio
fornecia pouca cera para a distribuição, passou-se
a consagrar, juntamente com o círio pascal, uma
quantidade de cera suficiente para os ágnus-dei. A
distribuição acontecia no domingo depois da páscoa.
No fim do séc. VI, foi encontrado um ágnus-dei na
relação dos presentes doados pelo papa Gregório,
o Grande, para Deodelinda, rainha dos lombardos.
Desde o papa Sixto VI (1471-1484), a cera, acrescida
de bálsamo e óleo do crisma, passou a ser benta exclusivamente pelo papa na semana da páscoa do primeiro ano de seu pontificado e de sete em sete anos.
Na bênção, o Santo Padre pede a Deus para os fiéis:
bom parto, boa morte e proteção divina contra desastres, inundações, incêndios, raios e tempestades, ciladas e tentações, em virtude dos mistérios
da vida, paixão e morte do Cordeiro de Deus, Nosso
Senhor Jesus Cristo. Alguns tipos de ágnus-dei levam o ano da bênção e o nome do respectivo papa.
w Do livro Lunário Perpétuo (pp. 222-224) consta
um pequeno “Tratado das Virtudes do Agnus-dei”. w
É mencionado na "Pastoral Coletiva dos Senhores
Bispos da Província Meridional do Brasil” (1915). w
Atualmente, o ágnus-dei é carregado debaixo da roupa e na carteira; colocado no berço das crianças;
tb. encontrado entre os balangandãs das baianas.
Há ágnus-dei em forma de medalha; ver Bentinho.
AGODÔ | O mesmo que Ogodô.
AGOGÔ | [Do iorubá “agogo”, sino.] Instrumento de
percussão com duas ou três campânulas de ferro, de
vários tamanhos, percutido por uma varetinha de metal. Às vezes, chamado “gã”. w Segundo Kasadi wa
Mukuna, um dos instrumentos musicais dos escravos
do Novo Mundo é "a campânula dupla de tons altos
(pequenos) e baixos (largos) ou femininos e masculinos, presa nas extremidades de uma haste metálica
curvada. Este tipo de campânula comum na África é
conhecido entre os bakongos de Zaire com o nome
de ngongi, e com o nome gerundial de nkobu entre
os lubas. No Brasil, adotou o nome yoruba de agogô.
38
Dicionário da Religiosidade Popular
(...) Para o curandeiro (africano), o agogô é valioso
instrumento para suas invocações." 98 w Usado em
candomblé, xangô, umbanda, nas escolas de samba
e na capoeira. w Responsável pelo início das músicas rituais no candomblé. Na mão do alabê, o agogô
dita o tipo de toque. w Instrumento característico de
Ogum, orixá do ferro.
AGONGONO | Vodum da Casa Grande das Minas.
AGONIA ou AGONEIO | Aflição, ânsia, vexame, falta
de paciência; ver Malinconia. Na agonia, benze-se a
casa com água benta; ver Sofrimento. w Agonia do
moribundo. Em Araçuaí (MG/1979), Mariana Esteves
da Silva disse: Na ânsia da morte, a gente chama por
Jesus. Quando não o diz em palavras, fala ao menos
no coração. Cita o bendito da morte: Quando a morte
vem/ ela vem sozinha/ Ela vem dizendo:/ esta hora é
minha.// Ó que ânsia forte/ ó que agonia/ Me vale, meu
Deus,/ e a Santa Maria.// Algumas orações pedem socorro para a hora da última agonia: ver Amado Jesus,
José, Joaquim, Ana e Maria; Arte do bem morrer; Ajudar a morrer; Hora da morte; Ofício da agonia. w Agonia de Jesus é um termo usado para dois momentos do
sofrimento: (1) a agonia no horto das oliveiras (Lc 22,
41-44) e (2) a agonia de Jesus crucificado; ver Senhor
da Agonia; Sermão da Agonia; Crucifixo; Bom Jesus
da Pobreza; Suor; Cálice da amargura. w Arquiconfraria da Santa Agonia: ver Arquiconfraria.
AGOSTO | Mês considerado aziago. Muita gente prefere não se casar em agosto. Dizem: Casar em agosto
traz desgosto. w Segundo alguns autores, as matanças
da Noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572,
na França, causaram o medo de azar nesse mês. Principalmente a primeira segunda-feira de agosto, é de
grande mau agouro; tb. a sexta-feira, 13 de agosto.
AGOURO (AGOIRO) | [Do latim “augurium”.] Em
sentido amplo, qualquer prognóstico bom ou mau
sobre “o que há de ser”, com fundamento na experiência dos antigos; ver Fazer mal. w Mau agouro:
que anuncia desgraça. Receio de mau resultado
98 KAZADI WA MUKUNA. Contribuição bantu na música popular
brasileira. São Paulo: Global, [197-].
em algum empreendimento; ver Aviso. Oposto de
alvíssaras. w Antigamente, agourar era tirar presságios do canto e do voo dos pássaros: ver Áugure.
w Galo cantando fora de hora é mau sinal. Coruja
rasgando mortalha anuncia a morte. Pássaros agourentos: alma-de-gato, acauã, anu, caburé, noitibó,
besouro e sapo. Grilo pode ser bom sinal ou mau
sinal. Louva-a-deus é de bom agouro; ver Esperança. w Diversas coisas são proibidas por agourar a
mãe; ver Tabu. Dizem que quem anda de costas está
agourando os pais. w Primeiro de agosto e treze
de agosto são dias aziagos. w Ver tb. Azar; Sonho;
Augúrio; Adivinhação.
AGRADECIMENTO | É costume no Brasil inteiro o
povo dizer: Graças a Deus; ver Ação de Graças; Gratidão. w Muitos agradecem a comida na hora da refeição dizendo: Deus abençoa. Em Crateús (CE), rezam:
Bendito e louvado seja/ o Senhor no Santíssimo Sacramento/ Deus é quem nos cria/ e nos dá sustento.//
A bênção, meu Pai do céu,/ a bênção, minha mãe do
céu,/ cobri-me com a vossa divina bênção. Amém.//99
ver Alimentos e religião. w O pobre romeiro ou o cego
poderão agradecer a esmola cantando: A quem deu
sua esmola/ Deus o leve num andor/ acompanhado
de anjos/ circulado de fulô/ Nossa Senhora o proteja/
quando deste mundo for.//100 ver Cantiga de cego. w
Ao receber qualquer ajuda é preciso dizer: Deus te
ajude ou Deus lhe pague. Mais agradecimentos:
Deus que conte seus passos.// Deus que te aumente.//
Deus que te dê a recompensa.// Deus te dê o que você
deseja.// Deus que não deixa faltar nada em sua casa.
w As folias agradecem a esmola, a comida e até a
dormida (o pouso). Em Caldas (MG), ao receber uma
leitoa e um frango, os foliões agradecem cantando:
Deus lhe pague sua leitoa/ os três reis que vai levar/
adjutório pra pobreza/ Deus põe outra no lugar.// Deus
lhe pague a sua oferta/ tem as asas de avoar/ Santos
Reus que leva esta/ Deus põe outra no lugar.//101 Em
Goiânia (GO), cantam um bendito de mesa: Bendito
louvado seja/ a família Nazaré/ na mesa se arrepresenta/ Jesus, Maria, José.102 Em Bom Jesus da Lapa
(BA), a folia do Divino canta: Obrigado minha gente/
pelo que vindes de dar/ O Divino Espírito Santo/ muito vos há de aumentar.// 103 w O cantador convidado
para cantar numa festa agradece: A viola tá contente/
e o coração obrigado/ No Reino do Céu se veja/ dos
anjos acompanhado.//(...) O sinhô já me pagou,/ já me
pagou com suas mão./ Agora o dinheiro é meu,/ vou
fazer repartição:/ Dou dois minréis a São Pedro,/ dou
outros dois a São João,/ dou mais dois a Santo Antônio,/ dois a São Sebastião./ E inda fica muita coisa
pr’eu tomar meus refilão,/ mas eu levo é o cobre todo:
Santo não tem precisão.//104 w O devoto agradece
mercês, graças e milagres recebidos deixando um ex-voto em um santuário ou fazendo a publicação de
graças recebidas.
AGREGADO | [Do latim “aggregare”, juntar, arrebanhar.] Morador tradicional em uma fazenda, muitas
vezes posseiro, que planta e cria em pequena escala, além de prestar serviços ao fazendeiro em troca
de pagamento inferior ao que é de praxe para o tra99 SANTOS, Eliésio dos. Cultura Popular e suas implicações na
Liturgia. In: A VIDA em Cristo e na Igreja. (Revista de Liturgia) n. 65.
set.-out./1985. p. 5.
100 WILLEKE, Venâncio. São Francisco das Chagas de Canindé:
resumo histórico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973. p. 140.
101 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Sacerdotes de viola. Petrópolis:
Vozes, 1981. pp. 24-25.
102 MOREYRA, Yara. Memórias de Folias. In: REVISTA Goiana de
Artes. 5 (1): jan.-jun./1984. pp. 95.
103 BARBOSA, Antônio. Bom Jesus da Lapa: antes de Monsenhor
Turíbio, no tempo de Monsenhor Turíbio, depois de Monsenhor
Turíbio. Rio de Janeiro: Jotanesi, 1995. p. 358.
104 MOTA, Leonardo. Cantadores: poesia e linguagem do sertão
cearense. 2. ed. Rio de Janeiro: A Noite, 1953. pp. 187 e 189.
Agressividade | Água (2)
balhador avulso. No Rio Grande do Sul, trabalhador
pobre que, na falta de campo próprio, mora em estância alheia com licença do respectivo proprietário
e mediante certas condições; ver Camponês; Colono; Preito; Feudalismo. w Lavrador pobre que vive
com sua família em casa fornecida pelo fazendeiro, a
quem dá semanalmente alguns uns dias de trabalho,
pagamento que no Nordeste é chamado cambão ou
condição. w Antigamente, era comum o sistema de
terra cedida: o dono deixava o agregado cultivar lavouras em roças de toco (terra de mata derrubada e
queimada na força do braço). Plantando mantimentos
e criando alguns animais, o agricultor tinha um prazo
estipulado para devolver, como pasto formado, os alqueires que o dono da terra lhe havia emprestado. No
mesmo sistema de troca de serviços, podia continuar
na fazenda começando outra derrubada na mata. Entretanto, com o crescimento da venda de cereais, os
fazendeiros passaram a preferir o sistema do arrendamento e da meia, lucrando a metade da colheita.
Ultimamente, mesmo a lavoura da meia vem sendo
negada pelo proprietário que, com os incentivos para
comprar tratores e fertilizantes, não precisa mais do
meeiro. Os donos de pastos e roças preferem, com
as técnicas modernas, o lucro cada vez maior. Além
disso, muitos fazendeiros preferem plantar capim e
criar gado, com poucos empregados e altos lucros.
Tb. o reflorestamento, feito por grandes empresas,
expulsa os posseiros. Assim, os agregados começam a migração para longe da terra: primeiro, nas
áreas mais pobres das pequenas cidades vizinhas,
mantendo-se como boias-frias, assalariados por dia
de trabalho; depois, para a miséria das favelas, das
praças e dos viadutos dos grandes centros urbanos.
Quem tem poder e dinheiro não pensa em reforma
agrária. w O trabalhador rural lembra com saudade da fartura dos tempos antigos, quando o dono da
terra deixava que ele criasse galinhas, porcos e até
algumas cabeças de gado, plantasse milho, arroz,
feijão e legumes para a alimentação da família. Tb.
lhe era permitido plantar algodão para fazer pano; ver
Compadrio. w O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão registrou o depoimento de um lavrador: Eu já disse que o governo devia assinar uma lei e obrigar esse
povo (os fazendeiros) a ter agregados; conforme o
tamanho da fazenda, a quantidade de agregado.105 w
Em Turmalina (MG), o camponês Vicente Nica disse:
Ainda não vi um despejo, mesmo, aqui, não, mas já
houve, né? (...) Eu confio em Deus e na nossa união.
Que nós não temos para onde ir. Eu estou disposto
a dizer pro Presidente da República que se eles não
for resolver esse problema, o recurso aqui de Mato
Grande e São Miguel é eles fazer um teste de bomba
atômica aqui dentro. (...) Cansei de tanto trabalhar,
sofro de esgotamento físico e nervos, sinto estafa.
Não tenho mais coragem de formar outra casa igual
a esta, formar outros pomares. Não! Eu acho que o
governo, se ele está querendo acabar com os brasileiros, tem que fazer deste jeito, mesmo. É mandar
bomba atômica neles. Estou disposto a morrer aqui.
Só não estou disposto a matar ninguém. A minha luta
é para reduzir com o número dos mortos que já estão
acontecendo, que já estão matando cada dia, dentro
do nosso país. (...) Eu era pessoa que nem nunca
tinha sido levado em delegacia, na presença do
delegado nem nada. Nunca tinha ocupado justiça,
graças a Deus. Tenho sido levado, entregue lá, mas
não entreguei ninguém (p. 28). Já plantei muita roça,
já colhemos e até vou plantar mais. Se Deus quiser,
vou plantar. Que a nossa profissão é essa. Mas têm
105 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer. Rio de
Janeiro: Graal, 1981. pp. 91-92.
pessoas que passaram por uma situação semelhante a essa e que não tiveram a mesma sorte, acabou
foi na rua, mesmo, sem um tostão na mão. E muitas
vezes, até sem emprego. Isso já aconteceu demais.
(...) O povo aqui dentro são um pessoal religioso. A
maioria é crente. Nós esperamos em Deus e não
usamos de violência. O que nós faz, a maioria, é
bater o joelho no chão e pedir a Deus, de dia e de
noite. Nós pede a Deus por nós que nós precisa tratar dos nossos filhos, e pede por eles, também, que
está pressionando nós, para que Nosso Senhor toque no coração deles. Eles têm as profissões deles.
Sabemos que eles também precisa de comer, beber
e viver, igual a nós. Que eles chegue a um nível,
também que eles abandone o egoísmo. (...) Nós não
queremos que eles seja naufragado, não. Que eles
viva bem e que nós possa permanecer aqui, todos
juntos. Sei de caso de três, todos com o coração
falhando. Por que é? De tanto trabalhar e passar
fome.106 w Segundo o poeta baiano Minelvino Francisco Silva, o povo da roça, no Brasil inteiro, já tem
consciência dos seus direitos mínimos à vida e ao
trabalho: Comparo nosso Brasil/ com um verdadeiro
mar/ e a pobreza à sardinha/ que vive sempre a nadar/ sem ter alimentações/ e os grandes tubarões/
querendo nos devorar. (...) Nossos amigos roceiros,/
plantai muito feijão/ plantai banana à vontade/ batata, abóbora e melão/ para podermos viver/ e para
nos defender/ das garras do tubarão.//107
AGRESSIVIDADE | Religião e agressividade são
consideradas coisas opostas, mas a cristandade traz
na sua herança santos guerreiros, cruzadas, cristãos e mouros, a guerra justa e a inquisição; ver
Violência. w Tb. na religiosidade popular encontramos
amostras diferentes de agressividade, como: passo
de Herodes, queima de Judas e o antigo desafio
entre folias. w Mito da índole pacífica do povo brasileiro: ver Sociedade brasileira; Briga; Discussão. w A
transformação cultural não acontece de modo neutro,
mas agressivo. A cultura humana é fruto de esforços
comuns desde as origens; ver Fluidez. Mas o projeto
do patrimônio cultural de todos, na realidade, não existe. É preciso que se diga a verdade. Escolas, igrejas e
meios de comunicação social raramente valorizam
a memória ou o projeto de comunidades fracas. Afinal,
um povo fraco e alienado é fácil de ser dominado; ver
Aculturação; Inculturação; Transculturação. w Ver tb.
Televisão; Discriminação; Dinheiro escrito.
AGRICULTURA | A agricultura tem tudo a ver com a
vida e a sobrevivência dos povos; ver Alimentação;
Fome. A migração e a urbanização causam grandes mudanças; ver Tecnologia; Natureza. w O Brasil
é grande produtor de café, cana-de-açúcar, soja,
banana, mandioca, cítricos, cacau e milho. w Até
hoje, o trabalhador rural das pequenas propriedades
é responsável por boa parte da produção de alimentos. Segundo censo agropecuário do IBGE, em 2009 a
agricultura familiar contava com 24,3% (80,25 milhões
de hectares) da área agrícola e era responsável “por
87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do
arroz, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das
aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo”, o que
significava 10% do PIB nacional. w A pobreza de boa
parte da população tem a ver com a má distribuição
das terras no Brasil. Enquanto a agricultura familiar vai
perdendo espaço, o economista Celso Furtado (1920106 VICENTE FALA: uma mão na terra, outra no coração. (Coleção:
Socializando conhecimentos. n. 9) Rio de Janeiro: AJUP/FASE,
1993. pp. 23, 29, 30.
107 SILVA, Francisco Minelvino. ABC dos Tubarões (folheto). In:
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Literatura popular em verso:
antologia. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1964. pp.
263-264.
Agu
2004) defende a reforma agrária contra o desemprego: “O movimento dos sem-terra é uma indicação de
que há muita gente querendo voltar à agricultura. (...)
Há terras aráveis abundantes não utilizadas e há aceitação pela população do retorno ao campo. Se 90% do
emprego criado nos últimos anos foi no campo, não foi
no setor moderno, não foi nas plantações de soja. Foi
no setor de subsistência”.108
AGRICULTURA E RELIGIÃO | Nas tradições antigas
da Europa e África, existem festas rituais dedicadas
aos deuses e deusas da chuva, da fertilidade e da colheita. Nas festas juninas, encontramos vestígios disso;
ver Solstício. w A urbanização trouxe mudanças para a
experiência religiosa da vida; ver Forças da natureza.
w Agricultura e religião continuam fortemente ligadas.
Na cultura popular, plantar e colher têm sua dimensão
religiosa; ver Algodão. Há orações contra cobras e lagartos; outras rezas acompanham as queimadas. Na
seca, fazem-se as procissões de penitência. Na fartura das colheitas, organizam-se festas populares. w A
artesã sergipana Josefa Alves dos Reis (Araçuaí-MG)
conta: Deus expulsou Adão e Eva do Paraíso e mandou trabalhar. Quando Adão bateu a enxada no chão, a
terra gemeu e saiu sangue, porque a terra era virgem.
E Deus falou que não gemesse mais. Tu mesma dais,
e tu mesma come. w Outros mitos: ver João do Mato;
Mandioca. w Em Itinga (MG), os cem grãos de milho
usados para contar as cem orações da festa da santa
cruz são, mais tarde, plantados ao redor da lavoura. w
No candomblé iorubá, Ogum e Orixá Ocô estão ligados
à agricultura; ver Ferramenta de Ogum.
ÁGUA (1) | Um dos quatro elementos; ver Humores
do corpo. w Os antigos usavam a água no juízo de
Deus. w Serve para o consumo humano, pesca, irrigação, transporte, indústria, energia e lazer. Dizem
que Águas passadas não movem moinhos; ver Rio
Amazonas; Rio São Francisco; Cacimba. w Como
referência cultural e social, a água encontra grande
expressão nas artes, religiões, mitologia, folclore, ciência e política. w Na música "Planeta Água",
Guilherme Arantes canta: Água que nasce da fonte/
serena do mundo/ e que abre um profundo grotão/(...)
águas escuras dos rios/ que levam a fertilidade ao
sertão./ Águas que banham aldeias/ e matam a sede
da população.//(...) Água dos igarapés/ onde Iara,
mãe-d’água/ é misteriosa canção.// w Apenas 2%
da água do planeta Terra é doce. O Brasil tem muita
água nos rios e no subsolo, mas é um grande desafio
garantir água para todos, especialmente para a população sofrida do polígono das secas. O planejamento
de ações para preservar a qualidade e a quantidade
dos cursos d'água, a chamada "gestão das águas",
está apenas começando. Já existe uma preocupação
de âmbito mundial pela distribuição justa da água,
elemento da natureza que deveria pertencer a todos;
ver Solidariedade; Ecologia. w O Censo de 2010
constatou que 82,9% dos domicílios estavam ligados
à rede geral de abastecimento de água; 10% das famílias buscava água em poços; outros retiravam água
de nascentes e lagos ou tinham outras soluções. Nas
periferias, a qualidade da água potável pode ser duvidosa. Um trovador baiano criticou o serviço público
assim: Ai, dona EMBASA/ preciso muito cuidar/ “água
do jegue”/ não deixe tornar voltar.//109
ÁGUA (2) | Sem água não há vida; ver Sede. Diz um
samba corrido, tradicional na Bahia: Ôi...Meu Santo
Antônio, eu quero água./ Água de beber, água de lavar./ Meu Santo Antônio, eu quero água/ Meu Deus,
108 FURTADO, Celso. Furtado defende reforma agrária contra
desemprego. In: FOLHA de São Paulo. 10/03/1997.
109 Baião da Falta d’água nos Bairros de Itabuna (BA), canto de
Minelvino Francisco Silva.
Dicionário da Religiosidade Popular
39
Água Benta | Água de Santo Inácio
eu quero água.//110 Nas secas, o povo pede chuva a
Deus e aos santos; p.ex., em Olímpia (SP/1994), cantam na procissão de penitência: Minha mãe santíssima/ do altar do céu/ dai uma gota-d’água/ pelo amor
de Deus.// Vós que estais no céu/ cheia de alegria/ dai
uma gota-d’água/ pão para cada dia.// 111 Em Januária
(MG), o povo penitente de Riacho da Cruz caminha 10
km no sol, de pés descalços, durante nove dias, rezando e cantando para molhar o cruzeiro no cemitério.
w Expr. popular: Não é bom cuspir na água, pois nela
fomos batizados; ver Batismo; Água benta. Segundo o
engenheiro e poeta Anibal Oliveira Freire (1998), “água
pura é cultura”. w Água e conselho só se dá quando
se pede.// A água o dá, a água o leva: ver Comerciante.
w O bendito de Bom Jesus da Pobreza reza: A riqueza deste mundo/ são águas que vão passando/ como
os ricos que vai morrendo/ e a riqueza vai ficando.//
A expr. “As águas correm para o mar” significa que o
dinheiro vai parar nas mãos dos ricos. w Dito popular:
Água só não lava língua de gente. w A água tem grande
valor simbólico, significa pureza, saúde e vida eterna.
w Em uma oração encontrada em Portugal, aparecem
vários elementos existentes no Brasil: "Senhor, dai-me água,/ pra mim me lavar;/ dai-me parte da santa missa/ pra minha alma se salvar.// Água divina os
mouros fez cristão./ São João batizou Cristo,/ lá no rio
Jordão,/ também nós fomos batizados/ pra ganhar a
salvação.//”112 ver São João Batista; Cristãos e mouros.
w Doentes são curados à beira do rio, ou mesmo dentro da água. Aconteceu em Saudades (SC/1951): Aos
três anos de idade, meu mano e eu fomos surpreendidos por um vírus, em forma de feridas na cabeça. Foi
aproveitado o máximo a medicina, mas nada adiantou.
Daí, minha mãe reuniu a família no rio, por nove dias, e
rezou uma oração em alemão, à Nossa Senhora. Durante a oração colocava nossas cabeças na correnteza
da água. Fomos curados. Não me lembro da oração.
(Inf.: Lia Maria Dreyer, Saudades-SC/1996.) ver Cultura alemã. w Com um raminho do monte e água da
fonte, a rezadeira benze diversos incômodos: erisipela, queimadura, fogo selvagem. A dor de cabeça é
benzida segurando-se uma garrafa de água sobre a
cabeça do doente. Em Coração de Jesus (MG), Joaquina Ferreira de Sena reza para dor de barriga: Água
do mar sagrado/ água de muita valia/ água fria corre
de noite, corre de dia/ corre toda hora do dia/ com os
poderes de Deus e da Virgem Maria/ assim passa essa
dor de barriga/ com os poderes de Deus e da Virgem
Maria.//113 Há orações para desterrar para as águas
do mar ou para uma água corrente os vários tipos de
mal; ver Sentimento; Brasa. Já outras orações são
feitas junto a um copo de água para o doente beber:
ver Benzimento; Queimadura. w A quem Deus quer dar
vida, água fria é o remédio. w Muitos centros de romaria têm alguma fonte ou água santa, onde os romeiros
bebem, enchem garrafas, lavam o rosto ou até tomam
banho, como a famosa água de Nossa Senhora de
Lourdes, na França. w Carregar água: ver Penitência. Na sexta-feira santa, na procissão do Senhor
morto, sempre há pessoas que carregam na cabeça
uma botija com água. Algumas servem a água para
o povo beber, outras a levam para casa como uma
coisa sagrada. O mesmo vimos na procissão de São
Francisco, em Canindé (CE). w A água constitui a
110 CD Samba-de-Roda no Recôncavo Baiano. CFCP-47 (Coordenação de Folclore e Cultura Popular) Funarte, Rio de Janeiro.
Cantado pelos Filhos de Varre-Estrada.
111 SANT’ANNA, José. Cai chuva, cai lá do céu. In: FESTIVAL DO
FOLCLORE, 31, 1995, Olímpia. Anuário do 31. Festival do Folclore.
Olímpia: [S.n.] 1995. p. 102.
112 CUSTÓDIO, Idália Farinho; GALHOZ, Maria Aliete. Memória
tradicional de Vale Judeu. Loulé: Câmara Municipal, 1996. p. 165.
113 AZEVEDO, Téo. Plantas medicinais e benzeduras. São Paulo:
Top-Livros, 1981. p. 50.
40
Dicionário da Religiosidade Popular
FX
Agu
ÁGUA, BENTA DURANTE UM PROGRAMA DE RÁDIO. (MG, 2008)
fronteira entre vivos e mortos: ver Rio Jordão; Dilúvio.
w Santos ligados à água: Santa Clara ajuda as lavadeiras; São João Batista tem sua imagem lavada e o
povo toma banho; São Pedro pescador manda a chuva. Vários santos têm seus benditos cantados pelos
penitentes das secas: São José, São Sebastião, São
Barnabé, Santa Teresa, Santa Maria Madalena, São
Miguel, Senhora Santana, Nossa Senhora da Piedade, Senhor do Bonfim e outros. w Imagens quebradas
ou estragadas são jogadas respeitosamente no meio
de um rio; ver Bandeira (2). w Para os índios, a água
é sagrada, e rios e fontes são morada dos espíritos.
Vários ritos de iniciação são realizados na lua cheia
em meio às águas. Há ritos para chamar a chuva; ver
Rituais indígenas. w Na convicção de muitos, faz mal
beber água depois de meia-noite sem acordá-la: ver
Acorda Maria. w "Água fonte de Vida" foi o tema da
campanha da fraternidade de 2004. w Nos cultos
afro-brasileiros, as orixás da água doce são Oxum,
Obá e Euá (nomes de rios africanos). Logunedé tb. é
ligado à água durante seis meses do ano, da mesma
forma que Oxumarê. As águas salgadas são representadas por Iemanjá ou Janaína. Nanã é ligada aos
pântanos; ver Águas de Oxalá. Na umbanda, além
dos orixás mencionados, há entidades ligadas à
água: caboclas Janaína e Iara, caboclo Ogum Beira-mar, Sereia do mar, pombagira Mara e os marinheiros. w Ver tb. Garimpo; Sonho; Barco; Entrudo. w >>
MALVEZZI, Roberto. Bendita Água. (Cartilha da Cáritas Brasileira e Comissão Pastoral da Terra.) Goiânia:
Terra, 2002.
ÁGUA BENTA | □ Água santificada pela oração da
igreja para abençoar ou benzer quando aspergida
sobre objetos e pessoas. Em muitas igrejas, há distribuição de água benta após as cerimônias noturnas
do Sábado de Aleluia; ver Liturgia. w No séc. VI, já
havia uma fórmula para a bênção da água; ver Aspersão; Pia de água benta. w O povo usa água benta
na agonia para espantar o demônio e a tentação;
ver Bala. Tb. é dada a doentes graves; ver São Bento;
Bruxaria. w Usada no batismo do mastro. w Conselho e água benta nunca fizeram mal a ninguém.//
Presunção e água benta, cada um toma o que quer.
w Segundo a fé popular, o batismo de Jesus no rio
Jordão foi uma bênção para as águas de todos os
rios e lagos. O povo na área rural no vale do rio São
Francisco acredita que a água colhida à meia-noite
da festa de São João Batista fica benta, e é usada para benzer e como remédio para homens e animais.114 w Existe o costume de rezar junto ao rádio às
18h, junto a um copo-d’água, para depois beber com
quem estiver por perto; ver Medalha; Vovó Rosa. w
>> GAUME. Mons. A Água Benta no séc. XIX. Porto:
(s.n.) 1873. (A obra, traduzida do francês, traz uma
série de cartas a um jovem estudante alemão.)
ÁGUA-BENTA | Um dos muitos apelidos da cachaça.
ÁGUA DE CHEIRO | Água perfumada com folhas
cheirosas, como a alfazema, a flor de laranjeira ou
mesmo com algum perfume destilado. Seu uso faz
parte da lavagem da igreja de Nossa Senhora da
Purificação, em Santo Amaro (BA). w Antigamente,
era usada no carnaval: ver Entrudo. w Em Pirapora
(MG), na bênção de Santo Antônio o padre asperge água benta sobre os fiéis com uma trouxinha de
ramos verdes de alecrim, hortelã, erva-cidreira e outras plantas cheirosas. w É usada por aspersão em
algumas festividades da umbanda. w Ver tb. Cinco
sentidos; Cheiro.
ÁGUA DE MILAGRE | Em muitos santuários é oferecida aos romeiros a água de alguma fonte milagrosa.
É mundialmente conhecida a água de Lourdes, na
França. w Em Bom Jesus da Lapa (BA), os romeiros
procuram a água milagrosa do Bom Jesus em cavernas e frestas nas rochas calcárias do santuário, principalmente a que escorre da pedra ao lado da cova
do monge. Já houve um tempo em que uma “água
de milagre” era engarrafada e distribuída gratuitamente com a autorização de dom João Muniz, bispo
da Barra do Rio Grande. Na garrafa havia um rótulo
impresso: “Esta água não se vende; se dá por qualquer esmola para o santuário.” Até 1953, o próprio
bispo recomendava aquela água, comparando-a com
a água do santuário de Lourdes, na França. Depois a
distribuição cessou. Hoje os romeiros retiram a água
em condições precárias de higiene.115
ÁGUA DE OXALÁ | ver Águas de Oxalá.
ÁGUA DE SANTA LUZIA | ver Santa Luzia (Salvador-BA).
ÁGUA DE SANTO INÁCIO | Segundo o folhetinho
da Novena de Santo Inácio de Loyola, impresso
pela Sede Padre Reus, em Porto Alegre (RS), com
a devida licença dos Superiores e Autoridade Eclesiástica (6. ed. 25º a 55º milheiro. c.1956), “é água
natural, pura, ordinária, geralmente potável, benta em
honra de Santo Inácio de Loyola, segundo a fórmula
prescrita para este fim pela Sagrada Congregação
dos Ritos e aprovada pelo Sumo Pontífice Pio IX,
em 30/08/1866. Segundo documento autêntico (Bolandistas), foi a própria Mãe de Deus que se dignou
de recomendar ao Pe. Jayme Amici SJ, moribundo
em 1728, o uso da ‘Água de Santo Inácio’ para obter a sua cura. Tem, pois, o uso da ‘Água de Santo
Inácio’ a recomendação do céu e a aprovação oficial
da Igreja”. Segundo o mesmo folhetinho, todos os
sacerdotes da Companhia de Jesus podem benzer
essa água, como tb. outros sacerdotes que obtiverem
do padre provincial faculdade para isso. Da importância e eficácia deste remédio celeste “dão eloquente
testemunho os inúmeros prodígios com que Deus o
acreditou por espaço de mais de dois séculos. Numerosas e grandes foram as graças espirituais e temporais alcançadas pela ‘Água de Santo Inácio’. Dum
modo especial experimentaram as mães a proteção
de Santo Inácio nas horas de angústia e sofrimento
114 O documentário em DVD “São João na Roça”, de Deniston Diamantino (c.1995), registra como “a fé na lembrança santa do Batismo
transforma e enriquece a água com poderes sagrados”.
115 BARBOSA, Antônio. Bom Jesus da Lapa: antes de Monsenhor
Turíbio, no tempo de Monsenhor Turíbio, depois de Monsenhor
Turíbio. Rio de Janeiro: Jotanesi, 1995. pp. 491-493.