sociedade contemporânea e relações privadas

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sociedade contemporânea e relações privadas
ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E
RELAÇÕES PRIVADAS
CANOAS, 2015
1585
A REGULAÇÃO PRIVADA COMO INSTRUMENTO DO DIREITO NA
SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Cristian Ricardo Wittmann
Roger de Moraes de Castro
RESUMO: Este ensaio científico busca demonstrar a emergência da regulação
privada de temas de direitos humanos a partir da qualificação da observação
jurídica e da compreensão da policontexturalidade associada ao Direito. Os
pressupostos medotológicos dizem respeito a matriz epistemológica pragmáticosistêmica e o método construtivista de Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas
Sociais. Inicialmente são analisadas as características da dicotomia entre Direito
Público e Direito Privado e da histórica logicidade de sua separação. Em um
segundo momento demonstra-se os pressupostos da sociedade contemporânea
enquanto complexa e contingente associada a característica policontextural
conforme demonstra Gunther Teubner. Partindo-se da análise de Alain Supiot
acerca da diferença entre regulação e regulamentação sustenta-se que os
instrumentos teoricamente privados tais como códigos corporativos e programas
de cumprimento podem ser concebidos como instrumentos de interesse social e
qualificando a observação jurídica para uma superação da dicotomia antes
apresentada. Embora a pesquisa doutoral esteja em andamento, acredita-se que
as compreensões sobre regulação policontextural, transconstitucionalismo e
sociedade global são fortalecidas com a participação de organizações privadas na
efetivação de garantias fundamentais. Justifica-se pela relevante análise da
complexidade social contemporânea na superação de pressupostos jurídicos da
modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: regulação privada; códigos de conduta; programas de
cumprimento; policontexturalidade jurídica.
1 INTRODUÇÃO
O resultado parcial da pesquisa, o qual se busca demonstrar neste ensaio,
parte de uma epistemologia diferenciada baseada na Teoria dos Sistemas Sociais
de Niklas Luhmann e aportes do jurista Gunther Teubner, a emergência de um
constitucionalismo policontextural. Esta característica do Direito e da sociedade
contemporânea pode ser observada como uma vantagem ao considerar a
1586
possibilidade de diferentes centros regulatórios, inclusive os privados. O problema
de pesquisa volta-se ao seguinte questionamento: em que medida é efetiva a
regulação privada de garantias fundamentais no Direito contemporâneo no
contexto da policontexturalidade?
Inicialmente, enquanto apresentação metodológica, indica-se o uso da
matriz epistemológica pragmático-sistêmica1 e o método construtivista2 com
fundamentos na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Entende-se que
ambos proporcionam um ponto de visa qualificado para observar não somente o
tema proposto mas o Direito e a sociedade.
Enquanto estrutura propõe-se três capítulos. O primeiro trata de qualificar a
observação da sociedade e o sistema jurídico a partir da epistemologia adotada
de forma compreender a sociedade como global e não mais vinculada
exclusivamente aos Estados-nação. O segundo capítulo observa a emergência
deste Direito policontextural e a possibilidade de novos sistemas de regulação. No
último capítulo são conceituados os instrumentos de regulação privada, os
códigos de conduta e os programas de cumprimento e exemplos que demonstram
a regulação privada policontextural.
2 UMA DIFERENTE FORMA DE OBSERVAR A SOCIEDADE E O DIREITO
Conforme a teoria de base eleita neste projeto tem-se que a sociedade é,
na realidade, um sistema autopoiético e portanto, que se reproduz, ou melhor, se
autorreproduz, onde nela somente participam comunicações. A concepção
luhmanniana de Teoria dos Sistemas Sociais, e portanto de sociedade, possui
contornos hoje que remetem a uma concepção biológica de autopoiese, teoria
esta desenvolvida pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco
1
2
ROCHA, L. S.. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1998, p.
96.
Conforme o sociólogo alemão: "observada desde la posición constructivista, la función de la
medotología no consiste únicamente en asegurar una descripción correcta (no errónea) de la
realidad. Más bien se trata de formas refinadas de producción y tratamiento de la información
internas al sistema. Esto quiere decir: los métodos permiten a la investigación científica
sorprenderse a sí misma. Para eso se vuelve imprescindible interrumpir el coninuo inmediato de
realidad y conocimiento del cual proviene la sociedad". LUHMANN, Niklas. La sociedad de la
sociedad. México: Herder, 2007, p. 22.
1587
Varela, já em 1960, explicavam o surgimento e manutenção da vida a partir desta
teoria de autorreprodução3. Mais tarde a mesma teoria foi transposta ao
conhecimento4 e, de forma inédita, replicada na análise sociológica por Luhmann.
Trata-se de uma teoria sistêmica de cunho autopoiético aplicada aos
sistemas sociais. Contudo, na observação de Luhmann, existe uma autonomia
entre o sistema biológico e social, cada um possuindo sua autopoiese específica
e particular.5 Significa dizer, que enquanto o sistema biológico possui a vida como
unidade básica de análise, constituindo também sua base reprodutiva, a
sociedade, na condição de sistema social, pode ser descrita como um sistema
noético, ou seja, um sistema cujo princípio ordenador é o sentido. Significa dizer
que no sistema social as unidades do sistema não são os sistemas humanos ou
cognitivos, mas sim as comunicações, isto é, tendo como unidade básica de
análise os atos comunicativos.6
Neste sentido a sociedade passa a ser observada como um sistema
autopoiético, um sistema auto-referencial7, em que seus elementos são
3
4
5
6
7
“[...] o ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que
acontece como unidade separada e singular como resultado do operar, e no operar, das
diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de interações e relações de
proximidade que o especificam e realizam como uma rede fechada de câmbios e sínteses
moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, configurando
uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extensão. É a
esta rede de produções de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os
componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a
produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um
contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou
deixam de participar nessa rede [...]”. MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. De
máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997, p. 12.
Vale citar um dos fundamentos da teoria cognitiva autopoiética que leva a conclusão de que o
que se observa depende do observador: “[...] tudo o que é dito é dito por alguém.” MATURANA,
Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da
compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 32.
Cabe mencionar aqui que, ao contrário de Luhmann, que defende a posição de que os sistemas
sociais não são sistemas vivos, Fritjof Capra considerando a organização humana, defende que
os sistemas sociais podem ser vivos em diversos graus: “Quanto a mim, prefiro conceber a
autopoiese como uma das características específicas da vida. Entretanto, ao discutir as
organizações humanas, vou defender também a tese de que os sistemas sociais podem ser
“vivos” em diversos graus”. CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida
sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Cultrix, 2002, p. 94.
TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engracia
Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 63-64.
TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engracia
Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 32 e seguintes.
1588
produzidos e reproduzidos pelo próprio sistema, graças a uma sequência interna
de interação circular e fechada8. Nestas interações, como já é de se concluir,
Luhmann identifica a comunicação como o elemento central das redes sociais,
utilizado
como
modo
particular
de
reprodução
pelos
sistemas
sociais
autopoiéticos. As comunicações são produzidas e reproduzidas, formando uma
rede de comunicação que constituem os elementos do sistema e que não podem
existir externamente – motivo esse que, resumidamente, justifica que esta
concepção não compreende as pessoas como membros da sociedade, e sim
exclusivamente a comunicação. Motivo esse que corrobora na superação dos
limites físicos e geográficos atrelados a concepção de diferentes sociedades com
base nos diferentes Estados.
De maneira simples são cinco as principais características de tal
concepção: 1) a essência do sistema é reduzir a complexidade a partir da sua
distinção do ambiente a partir de um código binário que identifica aquilo que está
dentro ou fora do sistema; 2) o sistema não é um organismo, mas a diferença
entre o sistema e o ambiente a partir de suas operações e a partir delas são
produzidos componentes e a estrutura do sistema - sempre a partir do mecanismo
de autorreferência que mantém a circularidade e a autopreservação do sistema;
3) devido ao limite do sistema não existe troca direta entre ele e o ambiente,
restando como conceitos de relações a observação externa, ressonância,
acoplamento operacional e acoplamento estrutural; 4) cada sistema se diferencia
em subsistemas a partir de suas funções; 5) sistemas funcionalmente
diferenciados operam individualmente, sem ver as operações do sistema social
(ambiente), sendo que o sistema social percebe as operações de cada sistema
como restritos as suas funções9.
Sobre a não mais utilização de características territoriais-geográficas para
a definição de sociedade pode-se identificar uma razão. Por se tratar de uma
8
9
Convém mencionar que ao falar em interação circular e fechada, está se falando no processo de
clausura operacional, uma operação interna do sistema essencial para assegurar a identidade do
sistema e logo, possibilitar sua abertura. Também ao se referir à interação circular estamos nos
referendo não a um circulo vicioso, mas a um circulo virtuoso, onde ocorre sempre uma
perspectivação em espiral.
Cf. KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the
autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, pp. 2-3.
1589
sociedade
que
se
caracteriza
na
comunicação,
não
existem
barreiras
comunicacionais visíveis. As barreiras geográficas são substituídas por limites,
pela diferença ente sistema e ambiente que não operam como barreiras clara - a
exemplo do sistema jurídico que opera pelo binômio "legal/ilegal" daquela
comunicação social. Especialmente hoje, a partir do invento da imprensa e mais
ainda da internet houve não somente um aumento mas uma densificação da rede
de comunicação da sociedade de modo a não existir mais uma relação
dependente ou não do incremento ou da diminuição demográfica já que existe um
desenvolvimento
suficiente
para
a
manutenção
da
capacidade
de
autorreprodução do sistema social10.
Com tais pressupostos o sociólogo alemão optou por denominar como
sociedade mundial. Pela comunicação alcançar todo o globo terrestre somente
pode haver uma só sociedade de maneira a não mais existir divisões territoriais
como normalmente estamos habituados a visualizar e perceber - muito da
influência da concepção de Estado. Ao mesmo tempo Luhmann entende que a
expressão sociedade do mundo tende a expor a construção, por parte de cada
sociedade, de um mundo próprio no qual se desenvolve o paradoxo do
observador do mundo:
Por una parte significa que sobre el globo terrestre - y en todo el mundo
alcanzable comunicativamente - sólo puede existir una sociedad; éste es
el aspecto estructural y operativo del concepto. Al mismo tiempo, sin
embargo, la expresión sociedad del mundo debe indicar que cada
sociedad (y si observamos en retrospectiva también las sociedades de la
tradición) construye un mundo y así disuelve la paradoja del observador
del mundo; la semántica correspondiente que entra entonces a
consideración debe ser plausible y debe estar adaptada a las estructuras
11
del sistema sociedad .
10
O sociólogo alemão ensina que "En lo que concuerdan todos los sistemas funcionales y en lo
que no se distinguen es en el hecho de su operar comunicativo. Considerada en abstracto, la
comunicación [...] es la diferencia que el sistema no hace ninguna diferencia. Como sistema de
comunicación, la sociedad se distingue de su entorno, pero éste es un límite externo y no
interno. Para todos los sistemas parciales de la sociedad los límites de la comunicación (la
diferencia de la no-comunicación) son los límites externos de la sociedad. En esto y sólo en esto
coinciden. Toda diferenciación interna debe y puede relacionarse con este límite externo ya que
ella crea para cada uno de los sistemas parciales distintos códigos y programas. En la medida en
que comunican todos los sistemas parciales participan de la sociedad; en la medida en que
comunican de todo distinto, se distinguen entre sí." LUHMANN, Niklas. La sociedad de la
sociedad. Cidade do México: Herder, 2007, p. 113.
11
LUMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2007, p. 113.
1590
Merece crítica da mesma forma aqueles que promovem discussões
exclusivamente
em
torno
de
"sistema
internacional"
ou
de
"relações
internacionais" por não conseguirem se desvincular do pressuposto do Estadonação. Os sistemas são diferenciados funcionalmente e, portanto, baseados em
um código binário comunicacional e não distinguidos por geografia de
determinado ente estatal como se fosse possível pensar em uma sociedade
dividida em subsociedades. A manutenção da percepção da divisão territorial, por
exemplo, traz também a ilusão do controle dos riscos como será abordado no
decorrer do trabalho: a sociedade, enquanto complexa e contingente, é fruto de
decisões e portanto sempre sujeita aos riscos dos mais diversos e que, como
todos, ignoram as pretensas barreiras territoriais e geográficas. Dessa forma "[...]
society is not a communicative and normative unity which can be fully represented
by one sovereign or parliamentary body"12. Constata-se que a sociedade do
mundo nada mais é que o sobrevir do mundo na comunicação. Embora tais
argumentos sejam postos com a denominação de sociedade mundial, advoga-se
aqui pela por outra nomenclatura: global.
Denomina-se aqui como global a partir dos pressupostos de Gunther
Teubner que, ao conceituar a ideia de ordem global busca superar a própria
linguagem 'internacional' pelas suas relações entre o nacional e internacional e
suas definições geográficas ainda alicerçadas no Estado-nação. Desta maneira
justifica-se a eleição pelo global em detrimento das outras possibilidades, que,
embora contingente esta decisão demonstra-se adequada nas palavras do jurista
alemão quando se refere a uma ordem jurídica global:
o direito global (não: 'inter-nacional'!), nesse sentido, é um ordenamento
jurídico sui generis que não pode ser avaliado segundo os critérios de
aferição de sistemas jurídicos nacionais. [...] esse ordenamento jurídico,
já amplamente configurado nos dias atuais, distingue-se do direito
tradicional dos Estados-nações por determinadas características, que
podem ser explicadas por processos de diferenciação no bojo da própria
sociedade mundial. Porque, por um lado, se o direito global possui pouco
respaldo político e institucional no plano mundial, por outro lado, ele está
12
SAND, Inger-Johanne. Polycontextuality as an alternative to Constitutionalism. In: JOERGES, C;
SAND, I.; TEUBNER, G. Transnational Governance and Constitutionalism. Portland: Hart
Publishing, 2004, p. 43.
1591
estreitamente acoplado a processos sociais e econômicos dos quais
13
recebe os seus impulsos mais essenciais.
A sociedade atual é formada por relações entre Estados, entendida como
uma coletividade de sociedades diferentes no Direito, política, economia dentre
outras características. Lembra-se que esta coletividade não possui uma
organização central e dessa maneira permite, desde já, a pulverização de
decisões em meio a diferentes organizações internacionais sem olvidar a
relevância que assumem outras organizações privadas por exemplo.
3 A POLICONTEXTURALIDADE JURÍDICA ILUMINANDO OS CENTOS DE
DECISÃO
Enquanto modo de operação tradicional do Direito, o mesmo é orientado a
partir da programação condicional, ou seja, produção do passado quando a
construção do sentido jurídico já está orientado anteriormente. Existe a
possibilidade, hoje crescente, de orientação a partir da programação finalística
com a consideração do futuro na reflexão da decisão em busca da produção da
diferença14. Fundado na repetição do tempo e todos seus elementos
comunicacionais, hoje o Direito se mostra preocupado com o futuro, ou seja, na
limitação das consequências relevantes de uma decisão:
como las consecuencias futuras de las decisiones son interdependentes
en alto grado, tanto más cuanto que las consecuencias hipotéticas de las
alternativas se han de incluir en la decisión jurídica, la orientación a las
consecuencias nos lleva forzosamente a desdibujar las diferenciaciones
15
actuales, sea en el aspecto profesional, sea en el organizativo.
Conceitualmente o Direito se classifica em um sistema autopoiético
funcionalmente diferenciado e, portanto, carrega consigo as características já
apresentadas quando do sistema social global. Seu código binário específico que
permite a diferenciação do ambiente é o "legal/ilegal" e, portanto, o Direito é o
único sistema que pode operar esta diferenciação. Embora o Direito possua a
13
TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico
Transnacional. Revista Impulso. Piracicaba, 14(33): 9-31, 2003, p. 11.
14
FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de
partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da
sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 67.
15
LUHMANN, Niklas. Sistema juridico y dogmatica juridica. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1983, p. 9.
1592
exclusividade de operar a partir nos limites de suas comunicações, vale
mencionar a sua capacidade de ressonância. A programação do sistema jurídico
está calcado em normas no sentido amplo, comunicações jurídicas que se
revestem desde orientações, leis a decisões judiciais - ou seja, toda comunicação
que opera na diferenciação do código binário apontado. Toda essa comunicação
deste sistema parcial busca a realização da função precípua do Direito, função
esta que atrai interesse particular na universalidade da comunicação social: a
possibilidade de estabilização das expectativas16.
Quando determina comunicação passa a operar a partir da disputa entre
legal e ilegal a mesma está inserida dentro da concepção jurídica de sistema, e
pelo tanto, há uma transformação de tal evento em um evento jurídico - seja um
evento inicialmente econômico, social, religioso e científico como bem podem
envolver as nanotecnologias. Justamente a eficácia social do Direito, enquanto
sistema, depende da sua capacidade de refletir internamente com base em sua
própria complexidade seletiva:
a eficácia social do direito depende, entre outros fatores, da sua
capacidade de reproduzir determinadas interações sociais, interna e
seletivamente, como acontecimentos jurídicos, quando lhe são
colocadas à disposição do seu ambiente, como condições marginais, ou
17
da capacidade de se imunizar contra elas.
A compreensão da dogmática jurídica tem levado em conta, como
categoria dominante, a ideia de validade da norma jurídica - com forte apelo na
teoria normativista de Hans Kelsen18. Nos tempos recentes de hipercomplexidade
a validade é colocada em segundo plano em privilégio da efetividade do Direito19.
Exemplos são os mais diversos da importância da efetividade. Organizações
16
"El derecho es un sistema funcionalmente diferenciado de la sociedad moderna [[...].], cuya
función es mantener estables las expectativas [...] aun en caso de que resulten vanas. Dichas
expectativas son normas que permanecen estables independentemente de su eventual
violación." DERECHO. In: CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosário
sobre la teoría Social de Niklas Luhmann. México: ITESO/Editorial Anthropos, 1996, p. 54.
17
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep,
2005, p. 31
18
Ver KELSEN, HANS. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
19
Lembra Leonel Severo Rocha: "Como se podem pensar possibilidades de racionalidade de um
outro tipo para o Direito? Uma primeira alternativa que surge, e é interessante, é a ideia de
efetividade. Se a validade de um sistema normativo é dada por uma hierarquia, agora, a validade
é trocada ou colocada em segundo plano. Então, o mais importante para o sistema do Direito não mais normativo - passa a ser a efetividade" ROCHA, L. S.. Observações sobre a observação
Luhmanniana. In: ___, Leonel S.; KING, Michael; SCHWARTZ, G.. A verdade sobre a
autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 32.
1593
privadas, transnacionais já que operam globalmente por meio da internet - por
exemplo o site de aluguel de imóveis "Airbnb", adotam procedimentos normativos
internos que permitem identificar que, independentemente da validez de tais
contratos com as ordens nacionais, buscam a efetividade da garantia do negócio
para todos os participantes. Exemplos de organizações que não operam
exclusivamente pela internet também existem, como a marca têxtil global "GAP"
que identifica por meio de códigos de conduta e um programa de cumprimento
que, ao ser constantemente aprimorado, busca implementar decisões privadas de
forma a garantir direitos fundamentais como os relacionados com a erradicação
do trabalho infantil, desenvolvimento local/regional onde suas fábricas estão
inseridas dentre outras políticas20. Hoje, em decorrência de acordos e o maior
controle sobre as práticas de lavagem de dinheiro, é possível observar a
implementação de programas similares em todas as instituições financeiras.
Exemplos como esses demonstram a pulverização de comunicações jurídicas,
não sendo mais possível conceber que o efetivo exercício da função do Direito
esteja exclusivamente centrado na ideia de Estado e muito menos em
concepções territoriais-geográficas.
Superando a organização social entre territórios, entende-se que a
sociedade é policontextural. Essa policontexturalidade, como definida por Teubner
e demonstrada anteriormente, apoia-se na diferenciação entre centro e periferia
de Niklas Luhmann21 onde o que definiria esta posição é unicamente o ponto de
observação, ou seja, o local de onde parte a decisão. Lembra Flores que "o
'Direito da sociedade' não pode ser reduzido à figura do juiz ou da Constituição",
sendo necessário "[...] considerar tudo isso em uma perspectiva sistêmicocomplexa, onde emerge a importância de repensarmos os contornos da noção de
20
Este tema será abordado no decorrer deste ensaio.
Ver LUHMANN, Niklas; DE GEORGI, Raffaele. Teoría de la sociedad. Guaralajara: Universidad
de Guadalajara: 1993.
21
1594
'Organização'"22. Por sua vez, a organização baseia sua autorreprodução com
base na decisão23.
Mantendo sua concepção autopoiética, lembra-se que enquanto sistema
parcial o Direito assegura sua autonomia e sua incerteza. Seu futuro somente
pode ser desenvolvido a partir dos limites do sistema, e não externamente.
Buscar a certeza em uma sociedade e um Direito contingente é ignorar, ou
manter-se ingênuo e alheio, os avanços da comunicação e a própria característica
autopoiética. Manter-se associado à noção tradicional de povo, território e
governo, ou seja, à noção tradicional de Estado é não perceber a natureza de alta
complexidade da sociedade atual. Os desafios são inúmeros, mas o imaginário
base de que o Estado mantém o monopólio da regulação jurídica não mais se
coaduna com a era de incerteza e insegurança na qual se encontra a sociedade e
o Direito.
Ainda, a relação de causalidade normalmente identificada pelo Direito
quando da sua decisão não se coaduna com a gestão reflexiva e policontextural
dos riscos. Torna-se primordial [...] afastar-se da causalidade e aproximar-se da
circularidade construtivista [...]" de forma a viabilizar "uma explicação reflexiva da
decisão jurídica, ou seja, uma teoria não normativista da decisão jurídica"24.
Reflexividade também corrobora com a indução de condutas por parte dos
demais sistemas e organizações. O direcionamento com base no Direito é
possível seja a partir de uma comunicação normativa geral ou por atos jurídicos
específicos e a consequente perturbação sistêmica orientada. Embora lembra-se
que cada sistema/organização orienta sua comunicação a partir da recursividade
circular fechada de seus atos, e que é impossível a orientação externa desse
funcionamento, o Direito pode irritar os demais sistemas provocando uma
compatibilização de comportamentos:
22
FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de
partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da
sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 63.
23
Cf. LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Cidade do México: Universidad
Iberoamericana, Herder, 2010.
24
SILVA, Artur Stamford de. Teoria reflexiva da decisão jurídica: observações a partir da teoria
dos sistemas que observam. In: SCHWARTZ, G. (Org.). Juridicização das Esferas Sociais e
Fragmentação do Direito na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2012. p. 37-8.
1595
Quando sistemas recursivos e auto-organizados pode realizar valores
próprios, em razão de perturbações externas, então o direito pode tentar,
por produção normativa geral ou por atos jurídicos especiais, produzir
perturbações de forma orientada e, apesar de todo o caos individual,
irritar os sistemas recursivos de maneira que eles consigam mudar de
um estado atrator a outro, com o qual o objetivo legal seja, pelo menos,
25
compatível.
Essa compatibilização recíproca de comportamentos proporciona também
um maior sincronismo no paralelismo temporal. Veja que cada sistema possui sua
complexidade interna completamente diferenciada do seu ambiente e demais
sistemas, característica conhecida como paralelismo temporal - uma defasagem
temporal. Segundo Flores a "defasagem na concepção temporal do Direito gera a
impressão de existirem duas concepções temporais distintas e desconectadas:
um Tempo da sociedade, altamente dinâmico e, paralelamente, um Tempo
específico do Direito, extremamente conservador, fruto de uma racionalidade
moderna que acentua demasiadamente o passado"26.
A situação regulatória será mais efetiva quanto mais maleável for a
comunicação, permitindo que organizações e sistemas ajustem mutuamente seus
comportamentos de forma a produzir uma organização das expectativas de forma
recíproca efetiva e duradoura. Trata-se de sincronizar, e não impor, comunicar e
não mais ordenar, regular e não mais regulamentar lembra Alain Suipot27. Regular
passa por reconhecer a autonomia da complexidade jurídica frente ao seu
ambiente - seja a sociedade seja os demais sistemas parciais de comunicação.
Reconhecer também que o Direito global, não mais internacional, somente vai
possuir efetividade quanto mais se tornar reflexivo e compatível temporalmente
com os demais sistemas e organizações sociais - sejam privadas ou públicas. A
policontexturalidade torna-se fundamental, já que as organizações empresariais
não mais operam nacionalmente e sim "[...] procuram novas formas de
organização de trabalho" e tampouco "se contentam com a subordinação, já não
25
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep,
2005, p. 38.
26
FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de
partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da
sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 65.
27
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 146.
1596
querem trabalhadores somente obedientes"28 da mesma forma que os
consumidores como um todo não esperam mais que seus produtos e suas
experiências tenham de ficar restritas a determinado território.
A emergência de normas globais, autoproduzidas por organizações
privadas são um novo exemplo da contratualização do Direito a partir de centros e
periferias. Historicamente as atividades de atores privados têm sido reguladas
pelos contextos jurídicos de cada Estado, todavia, cada vez mais os entes
públicos possuem dificuldade de dar efetividade a regulação quando se trata de
atividades transnacionais de empresas que atuam globalmente. Por tal motivo é
que se torna cada vez mais importante buscar alternativas a partir da insuficiência
do modelo atual de imposição de comportamento:
Global laws are regarded as self-regulations which are made by private
actors. Essentially, the activities of private actors have been regulated by
laws of each state. But, in certain fields, states or interstate organizations
have some difficulty in regulating transnational activities caused by or
involving private actors which are becoming more and more important in
the global society. In such fields as economics, activities are essentially
29
transnational .
Não se trata de uma compreensão liberal, ou neoliberal, de Estado e
Direito, mas o reconhecimento do paralelismo temporal entre a sociedade e o
sistema jurídico quando arraigado a uma observação de mínima complexidade. A
emergência de tais normas não pode ser barrada no contexto atual, mas pode ser
induzida de forma a dar coerência e integridade ao sistema jurídico entre sua
periferia e centro e vice-versa já que se trata do ponto de observação. Miguel
Reale já alertava que "[...] nenhuma estrutura social é uma unidade maciça e
mononuclear, mas sim uma unitas ordinis ou 'unidade de sentido', ou seja, uma
composição de múltiplos fatores que se correlacionam em função de um ou mais
motivos"30. Fundamental desta forma o reconhecimento de novos instrumentos de
regulação, como são os códigos de conduta e seus programas de cumprimento,
instrumentos
privados
de
cunho
voluntário
oriundos
do
fenômeno
da
autorregulação.
28
SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 154.
29
KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the
autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, p. 9.
30
REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São
Paulo: Saraiva, 1994, p. 87.
1597
4 POSSIBILIDADES DE REGULAÇÃO NÃO-ESTATAL
Historicamente os textos constitucionais possuem basicamente dois
objetivos: limitar o poder do soberano e constituir uma ordem jurídica própria.
Esta tem sido a fonte originária de todo ordenamento jurídico de algum país e
serve de legitimação para todo o Direito objetivo de cada nação. Já observou
Miguel Reale que as fontes e modelos jurídicos não se esgotam no Estado
embora dele emana uma centralidade no dizer o Direito. Cogitar a existência de
instrumentos privados não é algo recente na doutrina jurídica. Miguel Reale, já a
algum tempo, identificava nos contratos uma das fontes e modelos do Direito31.
Mesmo não prevendo a dimensão da utilização específica dos instrumentos ora
analisados, o jurista brasileiro já indicava o contrato enquanto fonte negocial,
fonte essa hoje muito usual na estabilização das expectativas sociais funcionando em determinados contextos como efetivos instrumentos de garantias
fundamentais, limitação da autonomia privada e o nascedouro de obrigações
vinculantes a terceiros. Observa-se hoje um contínuo processo de solução dos
conflitos, sejam individuais ou coletivos, mediante decisões negociadas - com ou
sem a participação do Estado.
Com a policontexturalidade proposta por Teubner nos parece adequado
compreender que a produção normativa ocorre nos mais diferentes pontos da
sociedade, não estando mais delimitado pelos limites tradicionalmente arraigados
na concepção de Estados nacionais. Leonel Severo Rocha, ao explicar e
exemplificar esta especial concepção de sociedade proposta pelo jurista alemão
comenta acerca da emergência de uma série de comunicações jurídicas,
autônomas a partir de sua própria lógica, que, dependendo do ponto de
observação podem estar tanto no centro quanto na periferia do sistema jurídico:
Teubner afirma que é preciso se pensarem novos tipos de direitos que
surgiram na periferia, mas que também têm autonomia, como se fossem
o centro: os direitos softs, soft law, direitos híbridos, direitos de contratos
31
"Na usual afirmação de que 'o contrato tem força de lei entre as partes' já se albergava o
reconhecimento de que a 'autonomia da vontade ' é fonte geradora de regras de direito, mas
esta asserção só adquiriu plenitude de significado quando Kelsen, ao mesmo tempo que reduzia
o Direito a um sistema de normas, alargava o sentido normativo, libertando-nos definitivamente
do legalismo, isto é, do incontrastado domínio das normas legais" REALE, Miguel. Fontes e
modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 73.
1598
internacionais, direitos de organizações internacionais, que têm uma
lógica própria. E que começam a surgir, paralelos ao Estado, na
globalização. O surpreendente, exemplifica Teubner, é que grandes
multinacionais, ao regularem a sua atuação, seguem os direitos, têm
regras e, às vezes, códigos de ética (para seus interesses). Em poucas
palavras, a grande empresa tem códigos de atuação normativas, que
32
não são necessariamente os mesmos dos países.
A partir o surgimento associado ao enfretamento aos escândalos
corporativos de cunho contábil, os programas de conformidade remetem a data
de 1986 e a partir de 1991 permite uma punição diferenciada para organizações
que possuem iniciativas para detectar e prevenir crimes.33 Um dos grandes
desafios frente a capacidade reflexiva da doutrina jurídica é a possibilidade de
criar programas condizentes com a conciliação interna do discurso jurídico com as
implicações do ambiente (sistemas sociais)34.
No contexto contratual são identificados três níveis de conflitos no sistema
contratual, o primeiro quanto à interação, o segundo sob o prisma institucional e o
terceiro no âmbito da sociedade. No nível da interação o conflito se dá entre
acordo contratual e moral da interação quanto ao feixe de expectativas informais
que não necessariamente estão expressas nas declarações. Quanto ao nível
institucional há o conflito entre contrato e instituições sociais, demonstrando que o
contrato está inserido em um contexto mais amplo de prerrogativas e restrições
que tais declarações devem levar em conta. No âmbito da sociedade o conflito se
dá entre o contrato e o seu ambiente, ou seja, sistemas sociais funcionais como
política, economia, família, cultura e religião que acabam por aumentar a
complexidade de tal decisão frente ao modo clássico de análise dos contratos.
Uma das grandes importâncias da existência dos códigos de conduta corporativos
e dos programas de cumprimento é quanto as perspectivas de responsabilidade
das organizações quando do, potencial ou efetivo, dano/crime/prática abusiva a
partir das suas atividades. De outro lado tais programas podem se tornar
32
ROCHA, L. S.. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ___, Leonel S.; KING,
Michael; SCHWARTZ, G.. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p. 39-40.
33
Cf. BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Building a World-Class Compliance
Program: best practices and strategies for success. Nova Jersei: John Wiley & Sons, 2008, pp.
45-71.
34
Cf. TEUBNER, Günther. Níveis de conflito no “sistema contratual”. In: ____, Günther. O Direito
como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, p. 239-42.
1599
instrumentos de grande contribuição para as boas práticas e para dar efetividade
aos Direitos Humanos buscando a máxima sempre lembrada de Bobbio: "[...] que
o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los"35. Mais,
sociologicamente analisando é possível perceber a emergência de limitações
voluntárias à autonomia negocial, a busca da efetiva prestação de garantias
fundamentais e a constituição de uma ordem jurídica autônoma com direitos e
obrigações com terceiros.
Não se pode olvidar que a efetividade está intimamente relacionada com os
sistemas regulatórios. Em se tratando da perspectiva da relação das
organizações tidas como privadas e àquelas tidas como públicas sempre
houveram dois objetivos. Essas sempre buscaram meios para controlar aquelas
que, por sua vez, buscaram meios de desenvolver sistemas de governança
próprios de forma a controlar a cadeira produtiva onde quer que estivesse
localizada geograficamente. 36
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos define esses como
programas de cumprimento estabelecidos pela gestão corporativa para prevenir e
detectar a má-conduta e assegurar que as atividades corporativas são conduzidas
de acordo com todas as regras, regulações e leis civis e criminais. O mesmo
órgão norte-americano encoraja esse policiamento realizado pela própria
corporação, incluindo divulgações voluntárias para o governo de quaisquer
problemas que a corporação tome conhecimento por conta própria. Indica ainda a
insuficiência de que a simples existência de programas de cumprimento
justificaria a imunidade da empresa por condutas criminosas realizadas pelos
seus empregados, diretores e agentes. Pelo contrário, orienta o referido órgão
que a existência de tais condutas ilegais implica no entendimento de que o
programa de conformidade não esteja sendo bem aplicado podendo gerar ações
do Estado independentemente da existência de tais programas37.
35
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 22.
BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational
Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível
em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, p. 2.
37
"Compliance programs are established by corporate management to prevent and to detect
misconduct and to ensure that corporate activities are conducted in accordance with all
applicable criminal and civil laws, regulations, and rules. The Department encourages such
36
1600
Exemplos de regulações globais e autônomas são os mais diversos motivo pelo qual advoga-se pelo reconhecimento e uma qualificada observação
jurídica acerca desse assunto. Um bom exemplo disso é a "Internet Society", uma
associação privada que define as regras e regulação da evolução do protocolo
internet ao redor do mundo. Dentro desse contexto sites como o eBay fornece um
espaço comercial para as pessoas usarem e ele é quem decide as regras para
que os usuários resolvam suas disputas jurídicas. Essa mesma organização
estabeleceu mecanismos de avaliação da performance dos compradores e
vendedores - sistema esse que virou um modelo e foi replicado em diferentes
outros sites como é o caso do "Mercado Livre" e outros sistemas de comércio. Os
domínios, endereços de sites e os endereços IP (internet protocol) são regulados
por regras editadas pela Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy
(UDRP) que é uma organização privada sem fins lucrativos criada pela Internet
Corporation for Assigned Names and Numbers (ICAAN) que, por sua vez, é uma
associação norte-americana privada:
For example, the Internet Society is a private association which makes
rules and regulates the evolution of Internet protocol of all over the world.
eBay supplies an online market for people to use. eBay decides detailed
and formalized rules for users and has established a mechanism to
resolve disputes among users. It also made a system which evaluates
performance of buyers and sellers on the online market. The systems
and the rules of eBay became a model of other online markets. The
assignments of domain names and IP addresses are regulated by rules
made by Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy (UDRP) which
is an private non-profit organization built on the Internet Corporation for
Assigned Names and Numbers (ICANN). ICANN is an American private
38
association.
Os programas de cumprimento, também conhecidos como programas de
conformidade, são somente um dos exemplos de normas autônomas. Eles,
corporate self-policing, including voluntary disclosures to the government of any problems that a
corporation discovers on its own. However, the existence of a compliance program is not
sufficient, in and of itself, to justify not charging a corporation for criminal conduct undertaken by
its officers, directors, employees, or agents. Indeed, the commission of such crimes in the face of
a compliance program may suggest that the corporate management is not adequately enforcing
its program. In addition, the nature of some crimes, e.g., antitrust violations, may be such that
national law enforcement policies mandate prosecutions of corporations notwithstanding the
existence of a compliance program." US DEPARTMENT OF JUSTICE. Memorandum: principles
of
Federal
Prosecution
of
Business
Organizations.
Disponível
em:
<http://www.justice.gov/sites/default/files/dag/legacy/2007/07/ 05/mcnulty_memo.pdf> Acesso em
20 jan. 2015.
38
KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the
autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, pp. 9-10.
1601
originalmente desenvolvido em inglês sob a expressão compliance programs,
nada mais são que um contexto de estar atuando de acordo com o que está
estebelecido em normas gerais, especificações ou legislação. Na realidade os
programas de cumprimento nada mais são que medidas internas que qualquer
entidade pode adotar afim de assegurar que estará cumprindo com um contexto
legal específico, ou seja e em termos pragmático-sistêmicos, trata-se de
comunicação específica a partir do código "legal/ilegal" enquanto campo
específico da comunicação jurídica de forma a organizar as expectativas internas
daquela organização. Trata-se de cumprimento da lei e mais. Verifica a aderência
das atividades e processos aos requisitos legais onde para cada atividade tornase uma obrigação estar ciente de todas as implicações e consequências legais.
Essa perspectiva se coaduna com a proposta de uma regulação eficaz a partir da
concepção de Teubner:
A regulação (direcionamento) somente é bem-sucedida em poucos
casos, nos quais os programas auto-regulativos (sic) concretos do direito
'coincidentemente' se coadunam com os programas auto-regulativos
(sic) concretos da economia, isto é, quando o processamento econômico
39
de diferenças vai 'mais ou menos' ao encontro da intenção legislativa.
Não se pretende aqui desenvolver uma concepção de análise dos
programas de cumprimento, oriundos dos respectivos códigos de conduta, como
um benefício para a própria organização. Pelo contrário. Trata-se de demonstrar
como tais contratos possuem uma dimensão não somente regulatória, mas
também social. Embora não se olvide que o objetivo das corporações seja o
lucro40, tem-se observado uma crescente importância do conceito de corporate
citizenship no mundo organizacional, ou seja, cidadania empresarial pela prática
de condutas fiéis ao Direito e pela participação da organização nos assuntos
públicos41. Da mesma forma não se ignora o fato de que a conduta cidadã da
organização possa ser - e muitas vezes é - uma forma de alcançar mais lucros
considerando uma característica contemporânea do consumidor. Mas, como
39
TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep,
2005, p. 43.
40
A CORPORAÇÃO. Direção: Jennifer Abbott; Mark Achbar. Zeitgeist Films, 2003. 1 DVD (145
min), son., color.
41
DÍEZ, Carlos Gómez-Jara. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o dano ambiental:
a aplicação do modelo construtivista de autorresponsabilidade à Lei 9605/98. Tradução de
Cristina Reindolff da Motta. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, pp. 26 e seguintes.
1602
observado, a efetividade da prestação da garantia torna-se cada vez mais
relevante no contexto atual, e se demonstra que contratos particulares voluntários
podem ser mais um instrumento deste Direito policontextural que possa se
equiparar em determinadas características a textos constitucionais fragmentados
no sistema jurídico.
Toma-se como exemplo o casso da "GAP Inc." que, além de possuir um
código de conduta próprio42, esteve envolvida em escândalos acerca de trabalho
infantil em uma de suas fornecedoras. A empresa define seu código de conduta
de negócios como "a commitment we make to our shareholders, customers
and each other not only out of a legal obligation, but because it’s the right thing to
do", complementando que
We each make important contributions to protecting our company and its
reputation. Recognizing right from wrong, and understanding the ethical
implications of our choices, is fundamental to doing what’s right at Gap
Inc. We are each responsible for applying the standards outlined in our
Code of Business Conduct to our work, every day.
Observando referido documento, existem preocupações da organização
nos seguintes tópicos: como empoderar o consumidor para expor suas
preocupações; trabalhando com integridade; ter uma prática ética; afastando
conflitos de interesse; proteção da marca; entendendo as linhas políticas da
política empresarial, e; recursos para fazer o que é correto43. Todas essas
características dão um novo molde ao negócio, também contratual, com seus
fornecedores que antigamente somente envolvia um retorno financeiro pela
produção de determinados produtos. Hoje existe uma preocupação, ao menos
expressada, em quem está produzindo e como se está produzindo aqueles
produtos e a própria instituição. Por conta desta nova política empresarial é que
houve a necessidade de demandar um nível de conduta uniforme de toda sua
cadeia produtiva.
Os novos padrões aumentam o valor da companhia. Inicialmente reduzem
custos e aumentam a qualidade dos produtos. Secundariamente esta visão de
42
Interessante característica é o fato de que tal código está disponível em nove idiomas. GAP
INC.
History.
2015.
Disponível
em
<http://www.gapinc.com/content/gapinc/html/aboutus/ourstory.html>. Acesso em 13 abr. 2015.
43
GAP
INC.
Our
Cord
of
Business
Conduct.
12/2012.
Disponível
em
<http://www.gapinc.com/content/dam/gapincsite/documents/COBC/COBC_english.pdf>. Acesso
em: 13 abr. 2015.
1603
responsabilidade social corporativa serve como resposta lucrativa pela demanda
dos consumidores por produtos produzidos em determinada maneira. Por fim esta
nova maneira de gerenciar a cadeia produtiva de forma socialmente responsável
está relacionada também com boas práticas de governança corporativa, ou seja,
atrai novos acionistas e um retorno mais sustentável do lucro a eles. Tais práticas
foram iniciadas em 1992 com o estabelecimento de padrões ao redor do mundo.
Em 2004 a "GAP Inc." começou a editar seu Relatório de Responsabilidade Social
e em 2006 começou a ter uma atenção ao trabalho colaborativo com ONGs.44
Posteriormente foi estabelecido o documento Code of Vendor Conduct45
que, baseado em padrões laborais aceitos internacionalmente e em convenções
internacionais,
estabelece
os
padrões
mínimos
exigidos
que
todos
os
fornecedores deveriam praticar para realizar negócios com a "GAP Inc.". Verificase que, considerando a possibilidade desta organização trabalhar em regiões
onde a legislação seja de pouca incidência ou a prática cotidiana das empresas
pouco fiscalizadas pelo Estado local, acaba que tais padrões são mais fortes e
protetivos que a própria realidade local/regional externa às fábricas. Inclusive o
código de conduta de fornecedores estabelece a possibilidade de fiscalização
inesperada e punições unilaterais em caso de descumprimento, incluindo a
suspensão de encomendas, o fim do relacionamento e/ou a implementação de
um plano de ação corretivo.46
Mesmo com o estabelecimento dessas políticas, em outubro de 2007
houve a divulgação de trabalho infantil próximo a condição de escravidão em uma
das fábricas na Índia. Um dia após ter tomado ciência das denúncias na mídia a
organização identificou que houve uma subcontratação por parte de um de seus
fornecedores e imediatamente cessou a compra deste fornecedor e preveniu que
os produtos oriundos daquela fábrica fossem vendidos em suas lojas. O mais
inesperado deste episódio foi que a partir das sanções aplicadas tomou-se
44
Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational
Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível
em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, pp. 12-13.
45
GAP
INC.
Code
of
Vendor
Conduct.
Disponível
em:
<http://www.gapinc.com/content/attachments/ gapinc/COVC_070909.pdf>. Acesso em 13 abr.
2015.
46
Cf. GAP INC. Code of Vendor Conduct. Disponível em: <http://www.gapinc.com/content/
attachments/gapinc/COVC_070909.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015, p. 15
1604
conhecimento que aquelas crianças que naquela fábrica trabalhavam voltaram a
uma situação de vulnerabilidade estando elas e suas famílias desamparadas,
quando então a empresa notou que a sanção aplicada a empresa causou uma
repercussão da mesma forma negativa. Prontamente identificou que uma política
de um plano de ação para remediar o problema, com a obrigação do fornecedor
de prover uma remuneração, educação e oportunidades dignas àquele entorno
que anteriormente havia sido explorado. Hoje existe uma política de
financiamento de organizações não-governamentais ao redor do mundo que
advogam em causas de direitos fundamentais e o incentivo para que apoiem
práticas sustentáveis em suas regiões.47
Embora ainda incipiente, a temática dos códigos de conduta e programas
de cumprimento parecem demonstrar que tais documentos podem sim vir a ser
um instrumento auxiliar no emaranhado de possibilidades jurídicas de regulação,
em especial a partir da policontexturalidade. Talvez tenhamos chegado na época
onde os contratos substituem o Direito, redes de relacionamento substituem uma
comunidade política, interesses substituem o território e o regulado passa a se
tornar regulador48.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se inferir que a observação sobre a sociedade, o Direito e os
institutos estabelecidos pode ser qualificada de forma diferente. É possível
identificar
que
geograficamente
a
diferenciação
delimitados
não
da
se
sociedade
por
meio
de
Estados
demonstra
adequado
ao
contexto
contemporâneo. Em homenagem a Teubner adotou-se no trabalho a perspectiva
de uma sociedade e um Direito global, não mais inter"nacional" levando em conta
a característica autopoiética. Associado a isso ainda existe a característica
policontextural, onde a prática do código binário jurídico, ou de outro sistema
47
Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational
Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível
em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, pp. 11 e seguintes.
48
Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational
Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível
em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, p. 26.
1605
social por exemplo, é praticado não mais exclusivamente por atores privilegiados.
Neste ponto há uma grande oportunidade para as instituições não-Estatais.
Com a superação da verticalidade e da exclusividade por uma
horizontalidade decisional baseada dentre centro e periferia do sistema há a
possibilidade
de
que
organizações
privadas,
dentre
inúmeras
outras
possibilidades, comunicarem sob a lógica jurídica e criarem padrões como podem
ser considerados os instrumentos analisados no terceiro capítulo. Por fim
analisou-se as características dos códigos de conduta e programas de
cumprimento.
Muito embora tais instrumentos sejam associados a minimização dos
prejuízos em casos de condenação das empresas, esses institutos, conforme
demonstrou-se, podem ser equiparados, em específicas características, a
fragmentos constitucionais empresariais autônomos em relação ao Estado e a
região onde possam ser aplicados. Acredita-se que se tenha cumprido, embora
com resultados parciais da pesquisa, em demonstrar a possibilidade de regulação
privada autônoma de práticas efetivas de direitos fundamentais.
REFERÊNCIAS
A CORPORAÇÃO. Direção: Jennifer Abbott; Mark Achbar. Zeitgeist Films, 2003. 1
DVD (145 min), son., color.
BACKER, L. C. Multinational Corporations as Objects and Sources of
Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law.
Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso
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1608
PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS NO BRASIL: ANÁLISE
QUANTITATIVA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA ESTADUAIS
DA REGIÃO SUL DO BRASIL
Selma Rodrigues Petterle
Luís Paulo Petersen Andreazza
Gislaine Maria Fregapani
RESUMO: O presente estudo pretende apresentar os resultados parciais obtidos
na pesquisa quantitativa de julgados proferidos por três Tribunais de Justiça
Estaduais, quais sejam, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e o Tribunal de Justiça do
Estado do Paraná, entes que integram a federação brasileira e que compõem a
denominada Região Sul do Brasil, sobre um tema específico, qual seja, a
pesquisa clínica com medicamentos, que é realizada no Brasil e em todo o mundo,
diariamente. Trata-se de testar, aprovar e incorporar medicamentos no sistema de
saúde brasileiro, o que não é possível sem a participação de uma multiplicidade
de atores (sujeitos de pesquisa, membros de comitês de ética, autoridades
reguladoras, sociedade civil organizada, dentre outros) e papéis desempenhados.
Face ao panorama traçado, difícil não vislumbrar o papel dos juízes, decidindo
conflitos. Metodologicamente cabe explicitar que foram utilizados vários critérios
para o mapeamento aqui apresentado: a pesquisa se deu nos sites oficiais dos
referidos tribunais; a partir de lapso temporal e palavras-chave de pesquisa
previamente definidas, apresentando-se, por ora, a análise quantitativa preliminar
das decisões judiciais coletadas. Nesse contexto, cabe ainda destacar que este
artigo está vinculado a projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Processo no 475998/2013-8,
Edital Universal no 14/2013, “Pesquisa Clínica com Medicamentos no Brasil:
Observatório de Jurisprudência”), cujo problema central diz respeito a perquirir
quais são os conteúdos que têm sido delineados pelos juízes no Brasil, sobre o
tema. Considerado um conteúdo já lançado por jurisprudência gaúcha (acerca do
dever dos laboratórios patrocinadores de fornecer o medicamento após o término
da pesquisa) e outros que serão mapeados durante a construção do observatório
de jurisprudência, vislumbra-se o relevante papel desempenhado pelos juízes.
Nesse contexto verifica-se, paradoxalmente, que uma violação ou a rejeição de
um direito em realidade não o infirma, mas, ao contrário, o afirma, já que é a partir
da negação de um direito, no contexto fático, que o próprio Direito se (re) constrói,
notadamente a partir da decisão judicial, movimento que acaba por evidenciar as
complexas zonas de interpenetração entre outros vários sistemas e o sistema
1609
jurídico. Assim, se, por um lado, o Direito se retroalimenta, circular e
internamente, por outro, sofre influências (ou provocações) quando em zonas
limítrofes ou de contato com outros sistemas sociais, questão que também pode
ser estudada à luz da ideia da (re) construção Direito a partir de suas fontes.
Trata-se, portanto, de pesquisa com evidente aplicação prática, na medida em
que mapear as decisões judiciais (e futuramente, em artigo posterior, os
fundamentos empreendidos pelos juízes) relativamente aos direitos reconhecidos
às pessoas que participam de pesquisas clínicas com medicamentos possibilita
também aprofundar as reflexões acerca das diversas formas de atuação dos
poderes públicos (leia-se juiz, legislador e administrador) e também dos
particulares, que desempenham, conjuntamente, relevante papel no que diz com
a construção do conteúdo do direito à saúde.
PALAVRAS-CHAVE:
pesquisa
jurisprudência; brasil; região sul.
clínica;
medicamentos;
observatório;
1 INTRODUÇÃO
Quando se debate acerca do direito à saúde, invariavelmente remete-se a
discussão jurídica a problemas do cotidiano dos indivíduos, desde a questão da
distribuição de medicamentos, até a promoção de atendimento suficiente em
hospitais públicos e privados e de acesso a tratamentos médicos qualificados. Em
particular, quanto ao direito-dever de acesso a medicamentos, a necessidade de
novos fármacos ou mesmo de aperfeiçoamentos dos remédios existentes
impulsiona uma análise específica sobre a pesquisa clínica de medicamentos, na
medida em que toda a disponibilização de novos medicamentos oferece, ao
menos em tese, esperança de tratamento e perspectiva de cura e melhora de
expectativa vida aos portadores de moléstias prejudiciais à saúde.
São quatro as fases das pesquisas clínicas com medicamentos49, sendo
que as três primeiras antecedem o registro do produto perante as autoridades
Alerte-se, quanto à relevância da definição das várias fases das pesquisas clínicas, que no
49
Brasil há Resolução Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC 39/2008,
alterada em 2013 pela RDC 38/2013) sobre pesquisa clínica com medicamentos ou produtos
para a saúde passíveis de registro sanitário, no seguinte sentido: 1ª) fase I: estudos de
farmacologia humana; 2ª) fase II: estudos terapêuticos ou profiláticos de exploração; 3ª) fase III:
estudos terapêuticos ou profiláticos confirmatórios; 4ª) fase IV: ensaios pós-comercialização.
1610
estatais competentes (PETTERLE, 2013, 2012). Inicialmente, na Fase I, são
realizados estudos com algumas dezenas de pessoas, entre voluntários sadios ou
pacientes - análise da absorção, distribuição, metabolismo, excreção e toxicidade
da droga; na Fase II, realizados estudos que envolvem a análise da utilidade
clínica do novo medicamento e sua relação dose-resposta; na Fase III, realizados
estudos com avaliação de eficácia e segurança, através da simulação do uso
clínico habitual do medicamento; por fim, os estudos de fase IV ocorrem após o
registro perante as autoridades estatais e, portanto, com o produto disponível ao
público para comercialização (portanto já testado, aprovado e incorporado).
Destinam-se, estes ensaios, a avaliar possíveis efeitos secundários ainda
desconhecidos (FLETCHER, 2006), bem como outras novas indicações ou
associações (combinações) para o produto, ou quem sabe uma nova via de
administração, ou até mesmo realizar uma análise da relação custo-efetividade,
do novo fármaco aprovado com outras opções anteriormente existentes
(GOLDIM, 2007).
Esclareça-se que a pesquisa com novos fármacos, medicamentos,
vacinas e testes diagnósticos no Brasil foi regulamentada por órgão vinculado ao
Ministério da Saúde (o Conselho Nacional de Saúde), mais especificamente pela
Resolução CNS no. 251/1997, observadas as normas gerais constantes na
Resolução CNS 196/1996 (revogada) e, atualmente, pela Resolução CNS
466/2012, além de Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Resolução RDC 39/2008, e RDC38/2013). Abstraídos os parâmetros protetivos já
estabelecidos pelo direito internacional (SARLET, PETTERLE, 2014) e sua
recepção no Brasil, enfatize-se, ademais, que não há legislação (lei em sentido
formal) que regulamente a pesquisa clínica de medicamentos no Brasil.
Trata-se, como se pode verificar a partir das referidas fases das
pesquisas clínicas, de testar, aprovar e incorporar medicamentos no sistema de
saúde brasileiro. Assim como acompanhá-los de forma sistemática e permanente,
o que não é possível sem a participação de uma multiplicidade de pessoas,
órgãos e instituições (os sujeitos de pesquisa, os membros de comitês de ética,
as diversas autoridades reguladoras, sociedade civil organizada, dentre outros),
com diversos papéis.
1611
Essa grandiosa meta, que envolve necessariamente muitos atores, têm
um perfil de construção coletiva do conhecimento na área de saúde, na qual o
Brasil também se insere. Apenas para dar um exemplo, a pandemia do HIV/AIDS
(FLETCHER, 2006) parece ser um bom exemplo para ilustrar as inúmeras formas
de conjugação de esforços no sentido de vencer desafios de saúde pública, em
âmbito mundial. Busca-se, em complementação a outras tantas medidas
preventivas (como as campanhas sobre o indispensável uso da camisinha) e/ou
medicamentosas
já
implementadas
(adesão
aos
antiretrovirais,
inclusive
quebrando o elo da transmissão vertical), criar alguma vacina contra o HIV/AIDS.
As pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Praça Onze (CARDOSO, 2008),
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participa de vários ensaios
clínicos de vacinas (preventivas) contra o HIV/AIDS, dentre eles o Protocolo de
pesquisa HVTN 055, envolvendo a Therion Biologics Corporation, em colaboração
com a rede mundial de pesquisas de vacinas anti-HIV/AIDS (HIV Vaccine Trials
Network - HVTN) e com apoio financeiro dos Institutos Nacionais de Saúde
Americanos (National Institutes of Health, NIH). Tamanha é a envergadura e a
repercussão dos projetos na comunidade que o centro conta com um Comitê
Comunitário de Acompanhamento de Pesquisa (CCAP), que, além de estreitar os
laços entre a comunidade e os pesquisadores, discute e avalia permanentemente
a participação voluntária nesses projetos, zelando pelo respeito dos direitos
dessas pessoas. Note-se a complexidade agregada por esses projetos de
pesquisa, já que o fenômeno envolve, como dito, muitos atores e intrincados
papéis,
como
o
desempenhado
pelos
pesquisadores
(e
suas
equipes
multidisciplinares de trabalho), assim como pelos integrantes dos comitês
institucionais de ética em pesquisa, além de autoridades estatais, bem como os
financiadores do projeto, com distintas contrapartidas, vislumbrando-se, também,
as diversas tensões que estão em jogo.
Ademais, para além da criação de mais um novo produto para a saúde
(uma vacina para comercialização), busca-se um meio preventivo para senão
acabar pelo menos reduzir drasticamente os alarmantes índices de contaminação
com o HIV/AIDS, questão que evidentemente transcende a criação de um novo
produto. Sabe-se que através de pesquisas clínicas levadas a cabo com rigor
1612
metodológico se logrará quem sabe obter a generalização de um (novo)
conhecimento científico e que tais pesquisas dependem da participação de
voluntários, sem os quais possivelmente não serão (ou não seriam) obtidos
quaisquer resultados. De tal sorte, as pessoas que, em um dado momento da vida
e pelas mais variadas motivações pessoais, candidatam-se, de livre e espontânea
vontade, para participar de um experimento (científico), acabam por contribuir
significativamente para essas descobertas científicas.
Justamente com base na preocupação de proteger esses sujeitos de
pesquisa é que se concebeu todo um sistema calcado em vários mecanismos
protetivos como, dentre outros, o consentimento informado (CLOTET, 1995), que
garante (ou deveria garantir) o pleno exercício da liberdade, por essas pessoas
envolvidas diretamente com o objeto do estudo. A participação do indivíduo na
pesquisa clínica de medicamentos enseja o reconhecimento da vulnerabilidade
desse sujeito, que impõe deveres de proteção, embora o sujeito disponha de
capacidade para exercer voluntariamente a decisão de se submeter à
experimentação clínica (CEZAR, 2012).
O princípio ético do respeito pelas pessoas50 se refere ao reconhecimento
da autonomia da generalidade dos indivíduos e de proteção daqueles que
possuem uma autonomia diminuída. Deste princípio, decorre a necessidade do
consentimento informado, o qual inclui a obrigatoriedade de informação,
compreensão e voluntariedade (NEVES, 2007). A promoção da saúde, portanto,
deve ser realizada com responsabilidade de proteger, em especial, os indivíduos
participantes das pesquisas clínicas e que se apresentam numa condição de
vulnerabilidade. A preocupação quando da promoção da saúde deve ser
materializada em reconstruir os conceitos da medicina, sem atribuir à saúde o
caráter de produto de consumo, porém utilizando as ciências e a medicina para
O Documento das Américas: Boas Práticas Clínicas, elaborado na IV Conferência Pan-
50
Americana para harmonização da regulamentação farmacêutica, na República Dominicana, de
02 a 04 de março de 2005, dispõe acerca dos princípios éticos, baseados primariamente na
Declaração de Helsinki, que devem ser a base para a aprovação e condução dos ensaios
clínicos, quais sejam o respeito pelas pessoas, beneficência e justiça e devem permear todos os
princípios de Boas Práticas Clínicas.
1613
alcançar uma melhor qualidade da vida social e protegendo, em especial o direito
à qualidade de vida (VERDI, 2007).
Os
interesses
das
partes
envolvidas
na
pesquisa
clínica
com
medicamentos experimentais, seja do sujeito submetido à pesquisa, do médico
pesquisador ou mesmo do patrocinador da pesquisa, tem como finalidade comum
a busca de uma otimização de resultados em relação à questão da saúde. Em
verdade, a preocupação com o restabelecimento da situação de saúde – e,
portanto, de equilíbrio - da sociedade como um todo é o norte que deve orientar
aqueles envolvidos com a pesquisa científica.
Não há como negar, portanto, a possibilidade de que exista um conflito de
interesses secundários, de ordem econômica ou até mesmo política. Até porque a
própria pesquisa não se sustenta ou mesmo se justifica sobre um pilar
eminentemente teórico, mas, também, possui num sentido amplo uma relação
com a política, tendo o pesquisador uma crescente responsabilidade diante da
importância da pesquisa clínica (GADAMER, 1999). Se o interesse do
pesquisador deveria se mover cientificamente de modo desinteressado em
relação às conclusões de pesquisa, na prática, o que se identifica é uma
vinculação econômica muito mais marcante do pesquisador em relação ao seu
objeto de pesquisa do que se poderia imaginar. Nesse contexto, a possibilidade
de alcançar o lucro com a venda de um fármaco conduz a pesquisa clínica
(CEZAR, 2014).
Do ponto de vista formal, por outro lado, pode não ser o interesse do
indivíduo que se vincula à pesquisa clínica - sujeitando-se a ela como paciente ou
objeto de estudo; portanto, de forma distinta do que se esperaria da participação
do pesquisador. O participante e pesquisado não necessariamente se encontra
vinculado ao estudo clínico a partir de uma condição de altruísmo. Muito antes é
alimentado pelo interesse livre de participação, possivelmente estabelecido a
partir de uma situação egoísta de enfoque: a submissão a um tratamento
alternativo ou ainda disposto a uma esperança de cura - se não pessoal, ao
menos de cunho coletivo. É um interesse que, por consequência, ainda que
medido a partir de uma pretensão utilitarista e pessoal, impõe, abstratamente, o
reconhecimento de uma consciência livre e autônoma, na busca de resultados de
1614
interesse privado relativo à sua saúde. É, portanto, um movimento de aderência à
pesquisa científica por um sujeito livre que visa restringir a própria liberdade de
forma consciente, ainda que com uma finalidade específica: a reconstrução do
equilíbrio atingido pela doença.
Face ao panorama traçado, difícil não vislumbrar o papel dos juízes,
decidindo conflitos. Nesse contexto, um dos conteúdos que tem sido reconhecido
é a obrigação (do laboratório patrocinador) de fornecer o medicamento após a
conclusão da pesquisa clínica, em sede doutrinária (CEZAR, 2009, 2012). O
fenômeno da judicialização dessas pesquisas no Brasil decorre, via de regra, da
busca do sujeito que ingressa na pesquisa clínica de medicamentos (inclusive
experimental), pelas mais diversas razões (como obter benefícios à saúde,
condição clínica, interesse/necessidade no fornecimento do medicamento
experimental, dentre outros). Este estudo, portanto, tem como objeto apresentar
os dados e resultados parciais apurados na pesquisa jurisprudencial, de caráter
por ora quantitativo, a partir da análise das decisões dos Tribunais de Justiça
Estaduais dos Estados que integram a Região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul,
Santa Catarina e Paraná).
2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO
Foram estabelecidos vários critérios para a pesquisa jurisprudencial. O
primeiro critério foi o lapso temporal. Nessa fase inicial, de resultados ainda
parciais, os dados mapeados se referem aos julgados do período de 05 de
outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, até 31.12.2013.
As decisões foram coletadas nos sites oficiais de três Tribunais de Justiça
estaduais, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o
Tribunal de Justiça do Santa Catarina (TJSC) e o Tribunal de Justiça do Paraná
(TJPR).
Advirta-se que nem todos os Tribunais publicam, nos respectivos sites,
todas as decisões prolatadas, o que pode significar que os dados estão
subestimados. Ademais, não há um sistema de indexação padrão para as
decisões (cada Tribunal têm um sistema próprio). Por tais razões, foram utilizadas
1615
seguintes palavras-chave de pesquisa: “pesquisa clínica”, “investigação clínica”,
“medicamento experimental” e “pesquisa envolvendo seres humanos”, bem como
anotadas as datas em que foram coletadas.
Os dados do mapeamento de decisões dos três Tribunais da Região Sul
do Brasil (RS, SC e PR) que são apresentados no presente estudo se tratam de
resultados parciais da análise quantitativa de julgados que possuem, como objeto,
relação aos termos “pesquisa clínica”, “investigação clínica”, “medicamento
experimental” e “pesquisa envolvendo seres humanos”. Oportunamente, este
estudo será desenvolvido também com análise qualitativa, a fim de permitir uma
análise crítica mais específica quanto aos resultados das demandas e, inclusive,
quanto aos fundamentos das decisões judiciais.
Do mapeamento de decisões dos Tribunais de Justiça da Região Sul foi
apurado um total de 178 (cento e setenta e oito) decisões de acordo com os
critérios estabelecidos nos termos indicados acima, sendo identificadas 37 (trinta
e sete decisões) que tratam de demandas que possuem como objeto a pesquisa
clínica com medicamentos e, por outro lado, foram descartadas 141 (cento e
quarenta e uma) decisões que se referem a temas que não se relacionam ao
tema de investigação do Observatório.
Outra questão a enfrentar aqui é a definição de critérios para exclusão, já
que algumas decisões judiciais poderão ser excluídas do universo da pesquisa,
por não estarem diretamente vinculadas ao tema proposto (objeto da ação não é
relativa à pesquisa clínica; matéria tributária como controvérsia predominante;
regime de contratação e remuneração de servidores públicos como controvérsia
predominante; óbices procedimentais, sem exame da matéria de fundo), critérios
que estão sendo reformulados ao longo da realização da pesquisa.
Nesse sentido, é possível visualizar os dados coletados na pesquisa
jurisprudencial de cada Tribunal de Justiça da Região Sul, conforme se
depreende das tabelas abaixo:
Análise quantitativa de decisões do TJRS
Palavras-chave
Identificadas
Descartadas
Pesquisa clínica
1
2
1616
Investigação clínica
0
9
Medicamento experimental
25
14
Pesquisa envolvendo seres humanos
1
0
Total
27
25
Palavras-chave
Identificadas
Descartadas
Pesquisa clínica
0
0
Investigação clínica
0
0
Medicamento experimental
0
4
Pesquisa envolvendo seres humanos
0
0
Total
0
4
Palavras-chave
Identificadas
Descartadas
Pesquisa clínica
2
2
Investigação clínica
0
14
Medicamento experimental
8
96
Pesquisa envolvendo seres humanos
0
0
Total
10
112
Análise quantitativa de decisões do TJSC
Análise quantitativa de decisões do TJPR
Total de decisões dos Tribunais
Estaduais da
Região Sul do Brasil
37
141
Decisõesjudiciaisrelacionadasàpesquisaclínicacom
medicamentos(37)esuadistribuição.
1617
TJRS
TJPR
TJSC
Depreende-se daí que do mapeamento inicial quantitativo de 37 (trinta e
sete) julgados sobre o tema (pesquisa clínica com medicamentos), junto aos
bancos de dados oficiais dos três Tribunais de Justiça que compõem a Região Sul
do país, restou identificada uma demanda no percentual de 72,97% junto ao
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; sendo o percentual de
27,03% das demandas junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e, por
sua vez, nenhuma demanda foi identificada no Tribunal de Justiça do Estado de
Santa Catarina.
A partir dos quantitativos, em números absolutos e percentuais, verificase um elevado quantitativo de demandas ajuizadas no Estado do Rio Grande do
Sul (aproximadamente 3/4), seguido pelo Estado do Paraná (aproximadamente
1/4) e a ausência de demandas no Estado de Santa Catarina, o que indica a
relevância de um estudo qualitativo dos julgados, ou seja, a análise crítica dessas
decisões judiciais.
1618
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos dados apresentados no presente trabalho impõem-se a
conclusão de que o Estado do Rio Grande do Sul possui uma demanda
significativamente superior aos outros Estados da Região Sul acerca de litígios
judiciais vinculados à pesquisa clínica com medicamentos, fato este que desperta
a importância de prosseguir o estudo através da pesquisa qualitativa das decisões
mapeadas. O percentual de demandas acerca da pesquisa clínica com
medicamentos julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
remete também à existência de alguns casos pontuais (como o caso da pesquisa
clínica com o medicamento laronidase, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
único no Brasil a sediar este estudo pioneiro e, consequentemente, para onde se
deslocaram várias crianças provenientes de outros estados da federação) e
demarca também uma posição diferenciada desta Corte em relação às demais, o
que será objeto de outro artigo.
Destaque-se que a pesquisa jurisprudencial quantitativa tem, por ora, um
caráter ainda provisório e que prosseguirá com o mapeamento das decisões
judiciais de Tribunais de outras regiões do Brasil, para que sejam identificados,
em um primeiro momento, aspectos qualitativos preliminares (identificação das
partes e seus procuradores; o pedido e razões de pedir; o acolhimento ou não do
pedido, assim como os fundamentos da decisão, dentre outros) e, posteriormente,
a análise crítica dos fundamentos das decisões.
Ademais, essa matéria tem sido objeto de frequentes discussões, seja no
Senado Federal, que realizou, em março de 2014, Audiência Pública na
Comissão de Assuntos Sociais, para analisar o modelo regulatório da pesquisa
clínica com medicamentos no Brasil, além da tramitação de vários projetos de
lei51. Analisar criticamente os principais argumentos aportados pelos juízes e
51
Projetos de Lei no Senado Federal:
1) PLS 323/2001, sobre normas e requisitos para a pesquisa médica em seres humanos;
2) PLS 25/1992, com proibição de realização de ensaios clínicos nas fases I e II no teste de
fármacos produzido por tecnologia estrangeiras;
3) PLS 78/2006, que estabelece punições para as violações às diretrizes e normas concernentes
às pesquisas que envolvem seres humanos e determina a corresponsabilidade do pesquisador,
1619
refletir acerca do fenômeno da judicialização da pesquisa clínica com
medicamentos no Brasil descortinará uma série de problemáticas a enfrentar,
dentre elas a discussão acerca do marco regulatório brasileiro, assim como
servirá de aporte para fomentar novos estudos sobre o tema.
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<http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>.
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_____. Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 38/2013. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0038_12_08_2013.htm
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_____. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Banco de dados on line de
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_____. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Banco de dados on
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_____. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Banco de dados on
line de jurisprudência. Acesso no período de maio/junho de 2014.
do patrocinador e da instituição pela indenização devida aos sujeitos das pesquisas por
eventuais danos ou prejuízos, pronto para a pauta na CCTICI;
4) PLS 396/2007, dispondo sobre a obrigatoriedade da continuidade do tratamento de sujeito de
pesquisa em seres humanos com fármaco, medicamento, nova formulação ou nova combinação
de fármacos, por meio da sua dispensação gratuita pela instituição pesquisadora no decorrer da
pesquisa até a efetiva comercialização, e pelo fabricante, quando já comercializado, e sobre a
divulgação dos resultados da pesquisa.
Projetos de Lei na Câmara dos Deputados:
1) PL 3.569/1997, com incentivos fiscais para a pesquisa clínica e desenvolvimento tecnológico na
área de saúde;
2) PL 7.086/2000, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres
Humanos;
3) PL 2.473/2003, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres
Humanos e requerimento REQ 229/2009, de audiência pública para discutir este PL.
1620
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1621
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PROTEÇÃO: OS DESAFIOS À GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE. IN: Bioética,
vulnerabilidade e saúde. Aparecida/sp: Idéias & Letras: Centro Universitário São
Camilo, 2007.
1622
INTERDIÇÃO CIVIL, CUIDADO E RELAÇÕES FAMILIARES: UMA ANÁLISE A
PARTIR DE FAMÍLIAS ENVOLVIDAS.
Helena Moura Fietz52
RESUMO: No processo judicial de interdição civil cabe a um Juiz de Direito
declarar a “incapacidade para os atos da vida civil” do sujeito a ser interditado
que, a partir da interdição, passa a depender de um curador para gerenciar seus
bens e sua pessoa. Este processo pode ser iniciado pelos pais ou tutores,
cônjuge ou outros parentes daquele que se quer interditar, ou ainda pelo
Ministério Público. O foco deste trabalho é a perspectiva dos familiares envolvidos
em casos de possível interdição civil e os aspectos que envolvem a tomada de
decisão de ingressar ou não com este processo. A análise se dará a partir um
olhar antropológico sobre a narrativa de dois casos com os quais tive contato
durante o ano de 2014. Desta forma, o universo empírico deste trabalho serão os
relatos de duas mulheres moradoras de uma periferia da cidade de Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, que, frente à possível interdição de um de seus familiares,
decidiram por não leva-la a diante. Será feito o exercício, portanto, de falar da
interdição a partir de dois casos de “não interdição”, ou de duas “interdições de
fato”. Com isto se busca refletir sobre as noções de doença, cuidado e economia
familiar, pensando sobre o modo como são acionadas nas falas de minhas
interlocutoras e, principalmente, na maneira como influenciaram a decisão destas
famílias de não ingressar com o pedido de interdição.
PALAVRAS-CHAVE: Interdição Civil – Doença – Cuidado – Relações Familiares.
1 INTRODUÇÃO
“E se eu morrer antes, quem cuida dele?” Foi com esta pergunta que Dona
Jurema respondeu minha indagação sobre o porquê havia escolhido não interditar
seu filho Jair, que com mais de 40 anos hoje é morador de rua e recebe do
governo o Benefício de Prestação Continuada (BPC) após ter sido diagnosticado
52
Advogada, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais/Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no ano de 2008. Atualmente (2014), é mestranda do
Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal Do Rio Grande
do Sul. Sua pesquisa de mestrado centra-se no processo judicial de interdição civil enquanto um
espaço interdisciplinar aonde se comunicam os discursos da medicina, do direito e das famílias
envolvidas. [email protected].
1623
por médicos peritos do INSS como portador de doença mental. O tema de minha
pesquisa de mestrado em Antropologia Social é a interdição civil e foi durante
minhas primeiras incursões a campo em uma localidade de baixa renda da cidade
de Porto Alegre – que, em março de 2014, conheci Dona Jurema. Desde nosso
primeiro encontro, esta moradora da região contou a história de seu filho e os
detalhes de sua narrativa me fizeram pensar que ele havia sido interditado sendo
ela sua curadora. Daí minha surpresa ao saber que ela havia decido não interditar
Jair por medo de que se algo acontecesse com ela, que já é mais velha, ninguém
poderia cuidar de “seu menino”. Sua história me fez pensar sobre as diferentes
dimensões envolvidas na decisão das famílias de ingressar ou não com o pedido
de interdição. É esta reflexão que proponho desenvolver ao longo deste trabalho.
Ressalto que por questões éticas optei por manter o sigilo da identidade de meus
interlocutores, utilizando nomes fictícios.
Durante o ano em que venho realizando esta pesquisa pude perceber
também que a interdição civil ou curatela53 é algo próximo do cotidiano das
pessoas. Não é raro que, ao conversar sobre minha pesquisa, ouça relatos de
pessoas que se sentem provocadas pelo tema. Estas narrativas vêm
acompanhadas de histórias bastante enriquecedoras sobre aquele a ser
interditado e também sobre as relações familiares envolvidas. É justamente
pensando em toda essa complexidade, nas consequências e resultados de uma
interdição, que parto da hipótese de que a decisão das famílias de ingressarem
ou não com o processo judicial de interdição civil vai além da “incapacidade” do
sujeito a ser interditado. De tal modo que se pode observar situações em que
estão presentes questões familiares relacionadas a temáticas acerca da
economia da família e/ou ao cuidado para com o interdito.
53
O instituto da curatela, segundo autores do Direito, destina-se a “reger a pessoa ou administrar
bens de pessoas maiores, porém incapazes de reger sua vida por si, em razão de moléstia,
prodigalidade ou ausência” (VENOSA, 2007:421) e é definido pelo Código Civil Brasileiro de
2002 nos artigos 1767 a 1783. Segundo o art. 1767 Código Civil Brasileiro estão sujeitos a
curatela : I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não
puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em
tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os pródigos.” Detalharei
as características deste instituto e também do processo de interdição civil no corpo deste
trabalho.
1624
O foco deste trabalho é a perspectiva dos familiares envolvidos em casos
de possível interdição civil. A análise se dará a partir da narrativa de dois casos
que tive contato durante o ano de 2014. Desta forma, o meu universo empírico
serão os relatos de duas mulheres residentes na região estudada que, frente à
possível interdição de um de seus familiares, decidiram por não leva-la a diante.
Farei o exercício, portanto, de falar da interdição a partir de dois casos de “não
interdição”, ou de como chamarei a partir de agora, de duas “interdições de fato”.
Com isso quero dizer que nos casos específicos sobre os quais refletirei neste
trabalho, o poder judiciário, por opção dos familiares, não foi acionado para que
se fizesse a declaração de incapacidade dos sujeitos.
Pensar o processo de interdição judicial a partir de situações em que o
mesmo não ocorreu é uma maneira interessante de problematizar categorias
como as de cuidado, doença e economia familiar. O que busco aqui é refletir, a
partir da fala de minhas interlocutoras, sobre estas noções - de doença, cuidado e
economia familiar-, pensando sobre o modo como são acionadas em suas falas e,
principalmente, na maneira como influenciaram a decisão destas famílias de não
ingressar com o pedido de interdição.
As narrativas escolhidas se mostram
representativas destas questões com as quais tenho me deparado em meu
campo de pesquisa - realizado episodicamente durante os meses de março a
dezembro de 2014 em Porto Alegre. Atento-me, ainda, para o fato de que ambas
são mulheres, o que suscita um debate sobre o gênero daquelas consideradas
“cuidadoras” do sujeito cuja “capacidade” para gerir a própria vida está em
questão.
Como anteriormente mencionado, partirei minha análise da experiência dos
atores (Kleinmann, 1995), buscando entender como os conflitos morais que
emergem na tomada de decisão sobre a interdição ou não estão relacionados
com questões de família, e, principalmente, com expectativas em torno da noção
de cuidado. É Kleinmann (1995) que me inspira a trabalhar com a experiência
enquanto aquilo que media e transforma a relação entre contexto e pessoa. Para
isso é importante prestar atenção no que está em jogo (what is in stake) para os
atores em um mundo local particular. Isso porque, ao se analisar o que está em
jogo nos deparamos com categorias cruciais para que se possa trabalhar a
1625
dimensão da experiência. Ao passo que ao trabalharmos com essas categorias
será possível acessar o mundo moral em que estes sujeitos estão inseridos.
Acompanhar as narrativas de casos de possível interdição é acessar histórias
familiares mais amplas, que incluem questões afetivas, econômicas e morais que
afetam a decisão sobre o ingressar ou não com a ação de interdição. É isto que
pretendo fazer a partir das noções de cuidado e economia. Para tanto, irei me
valer da noção de “economia do cuidado” da antropóloga estadunidense Vivian A.
Zelizer (2011).
Antes de iniciar a descrição das narrativas que apresentarei aqui, se faz
necessário contextualizar o processo judicial de interdição a partir de uma
perspectiva legal, a fim de compreender o que “está em jogo”, quais os
pressupostos, implicações e consequências de ingressar com esta ação jurídica
em particular. Além disso, é importante também discorrer brevemente sobre as
noções de “doença” – que está diretamente ligada à declaração ou não da
“incapacidade” do sujeito (Zarias, 2005), e de cuidado, para melhor situar as
narrativas com as quais trabalharei. Com isto, pretendo refletir sobre as
negociações envolvidas na tomada de decisão dos familiares sobre interditar ou
não o sujeito cuja “capacidade” é por eles questionada. Em seguida, apresentarei
os relatos, foco central deste trabalho.
2 O PROCESSO JUDICIAL DE INTERDIÇÃO: UMA PERSPECTIVA LEGAL
Para compreender as razões da “não interdição”, é necessário entender o
que é o processo judicial de interdição civil e quais são suas consequências para
aquele que será interditado. Primeiramente, é importante deixar claro que ao falar
deste processo estou falando de um espaço interdisciplinar, aonde se comunicam
os discursos e saberes jurídico, médico – mais especificamente da psiquiatria e
psicologia- e familiares (Zarias, 2005). A interdição civil se dá por uma decisão
proferida por um Juiz de Direito após um processo judicial do qual fazem parte,
entre outros atores, aquele a ser interditado, aquele que propõe a ação de
interdição (pais ou tutores, o cônjuge ou outros parentes ou, ainda, o Ministério
Público), o Ministério Público e, em grande parte dos casos, psiquiatras ou
1626
psicólogos que atuam como peritos judiciais. Segundo o Código Civil Brasileiro de
2002, aqueles que “não possuírem discernimento” ou “não conseguirem exprimir
sua vontade” não podem ser considerados “capazes para os atos da vida civil”.
Dessa forma, após um trâmite judicial que envolve interrogatório do juiz,
parecer do Ministério Público e na maioria das vezes a realização de perícia, o
magistrado decide pela declaração ou não da “incapacidade” do sujeito, a qual
pode ser total ou parcial, permanente ou temporária (Venosa, 2007; Pontes de
Miranda, 1954). Ao declarar esta “incapacidade”, o juiz nomeia um “curador”, ou
seja, uma pessoa que ficará responsável por administrar os bens e/ou a pessoa
do interditado. A partir deste momento, o interditado só poderá exercer certos
direitos mediante a representação de seu curador.
É importante destacar, que o termo curatela, que também é usado pelo
poder judiciário para designar tal ação judicial, deriva do latim curare, e tem o
sentido de cuidar. Assim, o curador, será aquela pessoa responsável por cuidar
da pessoa e dos bens do interditado (Venosa, 2007; Medeiros, 2005). Têm-se um
ato que objetiva, em última instância, proteger aquele que é considerado
vulnerável por não ser “capaz” de realizar os “atos da vida civil” sem a devida
representação. O caráter ambíguo da medida estaria justamente no fato de que,
para que se atinja essa proteção, o interdito acaba por ter certos direitos negados,
como o de representar a si mesmo (Medeiros, 2005), o que promoveria, segundo
alguns autores, uma “exclusão pelo papel” no mesmo patamar da exclusão que é
feita por meio da internação institucional dos doentes mentais (Chaves, 2013).
Estamos diante de uma medida cujas consequências são bastante significativas
para a vida do sujeito cuja “incapacidade” é declarada.
É importante salientar ainda que, segundo autores do Direito, a capacidade
é presumida, enquanto a “incapacidade” deve ser comprovada (Venosa,2007). É
nesta comprovação que entra em cena o saber da Medicina através da realização
de perícias para “avaliação da capacidade” e elaboração de laudos que buscam
auxiliar o juiz em sua tomada de decisão. Há, portanto, uma interconexão entre as
noções de doença e “capacidade civil” (Zarias, 2005), aonde a perda de
discernimento para gerir sua vida ou seus bens está comumente ligada a alguma
1627
enfermidade que é responsável por esta perda da “capacidade”. É sobre esta
conexão entre doença e capacidade que falarei a seguir.
3
“PROBLEMAS
DA
CABEÇA”:
RELACIONANDO
“DOENÇA”
E
“CAPACIDADE CIVIL”.
As noções de “doença” e “capacidade civil”, segundo o antropólogo
Alexandre Zarias (2005), são centrais na interdição civil e o nexo-causal entre
ambas pode ser observado em diversas fases deste processo. Há uma presunção
de que o sujeito que deve ser interditado não só é “incapaz para os atos da vida
civil”, mas também é doente e é essa doença que dá causa a “incapacidade”.
Segundo o autor, a conexão é tão forte que, ainda que nem todo “doente” seja
“incapaz para os atos da vida civil”, todo aquele considerado “incapaz” é “doente”
sob a perspectiva dos saberes do Direito e da Medicina.
Tal fato é corroborado pela fala de psicólogas que entrevistei e que
atuaram como peritas em casos de interdição elaborando laudos de “avaliação de
capacidade” que servem para auxiliar o Juiz em sua tomada de decisão. Segundo
elas, a falta de discernimento para os atos da vida civil está comumente
relacionada a alguma enfermidade mental descrita pelo CID-1054 ou pela DSM55.
Inclusive afirmaram que para que os laudos que elaboram tenham “validade” para
os juízes, ou seja, sejam legitimados, é importante que o sujeito avaliado – nos
casos em que opinam de forma favorável a interdição – esteja classificado em
uma das doenças descritas por estes sistemas de classificação. Nos casos aqui
analisados, falo especificamente de sujeitos que, segundo seus familiares,
possuem alguma “doença mental” e que por isso sua interdição foi cogitada.
Desta forma, a percepção que estes atores têm sobre o que é um problema
mental se mostra crucial para a análise.
54
CID- 10 é uma Classificação Internacional de Doenças elaborada pela Organização Mundial de
Saúde que busca padronizar a codificação de doenças em geral.
55
O DSM, ou Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorder, é um manual elaborado pela
Associação Americana de Psiquiatria em que estão listados os transtornos mentais e também
quais são os critérios para diagnostica-los.
1628
Não pretendo aqui discorrer longamente sobre a noção de “doença”, mas é
importante trazer à tona a diferença entre as noções de illness e disease56 e como
estas estão ligadas a questão da “doença mental”. Enquanto a disease é a
perspectiva do médico sobre a doença, uma racionalidade científica e que se
enquadra em um modelo explicativo biomédico, a illness seria a experiência
humana da doença, o modo como os sujeitos vivem a situação, uma expressão
mais subjetiva daquela condição (Ware, 1992; Singer, 2004). Se a disease é
aquela diagnosticada por um médico em termos biomédicos, a illness é a
interpretação do paciente sobre a doença. Ao trabalhar com a narrativa dos
familiares sobre a possível “doença mental” daquele cuja interdição se está
considerando, acessa-se sua visão sobre aquilo que consideram ser a “doença”
de seu familiar. Nos dois casos aqui analisados, estamos diante de pessoas que
identificaram que seus parentes têm “problemas de cabeça”, ainda que não
utilizem os termos biomédicos para descrevê-los. Entretanto, esses “problemas
de cabeça” fizeram com que considerassem a interdição de seu parente ou, em
última instância, que tenham realizado a sua “interdição de fato”, o que leva a crer
que o nexo causal entre as noções de “capacidade” e “doença” tem início antes
mesmo do processo judicial. É interessante perceber, também, que minhas
interlocutoras falaram não só em “doença”, mas também que seus parentes
tinham uma “deficiência”, usando estas duas palavras quase como sinônimos,
razão pela qual julgo importante tecer algumas breves considerações também
sobre este tema a fim de tornar ainda mais claro o modo como pretendo trabalhar
com esta questão ao longo deste trabalho.
A ONU, em dezembro de 2006, elaborou a Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência57, que busca garantir os Direitos Humanos daqueles
que vivem com alguma deficiência física ou mental. Neste documento, em seu
artigo primeiro, a Organização definiu as pessoas com deficiência como aquelas
que “tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial,
os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação
56
Optei por não traduzir os termos illness e disease do Inglês por entender que eles são melhores
para a compreensão da diferença entre os modelos explicativos quando se fala de “doença”. No
decorrer deste trabalho, entretanto, se usará a noção de “doença” de forma ampla.
57
http://www.un.org/disabilities/convention/conventionfull.shtml
1629
plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”. Deste modo, pessoas que
sofrem de alguma “doença mental” estariam sujeitos a esta regulamentação
(Szmukler et al, 2014). Note-se, também, que a deficiência passa a ser definida
muito mais em caráter político do que biomédico, o que pode ser considerado um
avanço desta convenção em relação às anteriores (Diniz, 2009).
A deficiência seria uma limitação de capacidade, se diferenciando da
“doença” por ser crônica, ou seja, não sendo passível de cura (White e Ingstad,
1995), diferença esta que não apareceu na fala de minhas interlocutoras.
Evidente que, assim como ocorre com a doença, nem toda pessoa deficiente será
considerada “incapaz para os atos da vida civil” e tampouco pretendo aqui esgotar
a discussão sobre tão vasto tema. Entretanto, o fato de que a palavra aparece no
relato de minhas interlocutoras para se referir àqueles de quem cuidam é bastante
interessante para que se faça uma análise também a partir desta perspectiva,
levando-a para fora do discurso biomédico e trazendo-a a partir da fala de
pessoas que convivem com esta experiência e refletindo sobre questões morais
que dizem respeito a ela (idem). Este “modelo social da deficiência”, que a vê
para além das definições biomédicas e leva em consideração as questões
políticas e culturais que a circundam, permite percebê-la como uma nova maneira
de se habitar o corpo e tira a questão do âmbito do privado e do cuidado
doméstico para a vida pública (Diniz, 2009). O processo de interdição é uma das
esferas públicas para qual ela foi trazida (Zarias, 2005).
Além disso, este modo de análise também traz á tona questões como as
diferenças entre gênero e condição social ao se lidar com a “deficiência”. Nos
casos aqui analisados, estamos diante de cuidadoras mulheres que vivem em
uma área pobre e urbana, o que torna relevante a questão não só da atitude em
relação à pessoa que se está cuidando, mas também em como a família gerencia
os parcos recursos financeiros disponíveis para a economia doméstica (White e
Ingstad, 1995). Mesmo fazendo parte da esfera pública, a “deficiência” – e mais
especificamente nos casos aqui analisados a “doença mental” – requer uma série
de cuidados domésticos e que são, muitas vezes, não remunerados. Para ir a
diante na discussão que pretendo travar, é importante discorrer também sobre a
1630
noção de cuidado para com aquele considerado doente e também sobre a
economia do cuidado (Zelizer, 2011).
4 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CUIDADO
O cuidado tem sido tema de diversas pesquisas recentes na área da
Sociologia e Antropologia e sua recorrência na fala daqueles com quem tenho
trabalhado, torna necessário que se teça algumas breves considerações sobre
como pretendo abordá-lo em neste trabalho.
Segundo as autoras Hirata e
Guimarães (2012), o cuidado é tanto uma prática quanto uma disposição moral
sendo que “cuidar do outro, preocupar-se, estar atento às suas necessidades,
todos esses diferentes significados, relacionados tanto à atitude quanto à ação,
estão presente na definição do care.” (HIROTA e GUIMARÃES, 2012:1).
Salientam, ainda que a noção de care reflete realidades sociais distintas em
diferentes sociedades.
A questão é amplamente trabalhada por Vivian A. Zelizer em sua obra
(2005, 2011), onde define o cuidado como as relações que apresentam “atenção
pessoal contínua e/ou intensiva que aumenta o bem-estar daquele que a recebe”
(Zelizer, 2011:277 tradução minha). Com esta visão bastante ampla, sua definição
acaba abarcando diversos tipos de relações que vão desde a da manicure com a
sua cliente até a da mãe com seu filho. É fundamental, todavia, que estejam
presentes a intimidade e a pessoalidade da relação e que ela aumente o bemestar daquele que recebe o cuidado.
Entre outras considerações a autora chama a atenção para as conexões
existentes entre economia e cuidado. Traçando um paralelo entre intimidade e
trabalho (labor), defende que o cuidado deve ser considerado um trabalho mesmo
quando não remunerado e independente de trazer satisfação pessoal. Afirma que
para que se possa perceber esta conexão, é necessário acabar com uma visão
dicotômica de mundo em que estas duas esferas pertencem a espaços separados
e que não se conectam. Nos casos que trago aqui, se está diante do que a autora
define como “cuidado não remunerado em ambiente intimo”, ou seja, casos de
sujeitos que cuidam de seus familiares sem receber uma compensação monetária
1631
para tanto. Ainda assim, estamos diante de um trabalho em que relações viáveis
estão em constante construção e onde sentidos são negociados a todo o
momento (Zelizer, 2011).
Após esta breve contextualização, passo ao foco central deste trabalho: a
narrativa de minhas interlocutoras que ao se depararem com casos de possível
declaração de incapacidade de seus familiares optaram por não ingressar com a
ação judicial. Com isto, pretendo problematizar o uso das noções de doença,
cuidado e economia em suas narrativas, a fim de refletir sobre as negociações
envolvidas na decisão de se ingressar ou não com o processo judicial de
interdição.
5 CUIDADO, DINHEIRO E RELAÇÕES FAMILIARES: A NÃO INTERDIÇÃO DE
SILVANA.
Conheci Margarida em um mutirão realizado pela Defensoria Pública do
Estado do Rio Grande do Sul na Associação Comunitária em maio de 2014. Havia
avisado os servidores que pesquisava casos de interdição civil e então eles me
chamavam sempre que um destes aparecia para o atendimento. Margarida
chegou sorridente e concordou em me contar sua história. Estava ali para saber
um pouco mais sobre o que deveria ser feito para sua sobrinha Silvana receber o
Benefício de Prestação Continuada (BPC) e foi informada de que para isso o mais
fácil seria interditá-la. Falou um pouco sobre seu caso e combinamos de nos
encontrarmos em sua casa para conversarmos um pouco melhor. Margarida é
moradora da região e vive em uma bonita casa com a fachada pintada de roxo em
uma das ruas perto da escola municipal. Recebeu-me na varanda, onde havia
uma mesa com quatro cadeiras para que conversássemos e falamos sobre sua
família, seu filho e seu marido. Ao lado de sua casa morava seu pai, divorciado de
sua mãe, e algumas casas para frente, na mesma rua, morava a mãe com a
sobrinha.
Disse-me que sua prima tem 35 anos de idade, mas tem um “retardo” e por
isso não pode cuidar de si mesma. Segundo Margarida, Silvana é uma “pessoa
muito boa” que já nasceu com esse “retardo”, mas os médicos nunca
1632
conseguiram diagnosticá-la, tanto que “nem toma remédio nem nada”. Para ela, a
“deficiência” da prima não era nada muito grave, mas fazia com que ela sequer
soubesse dizer o mês em que nasceu ou responder perguntas básicas sobre si e
ficasse “dançando e cantando pela rua”. Para a prima, Silvana seria como uma
criança e ao falar sobre ela, Margarida com um olhar que misturava complacência
e preocupação, exclamou: “tadinha, não entende as coisas”. Contou-me, ainda,
que a prima vivia com o pai - tio materno de Margarida-, a mãe e os irmãos
naquele local, mas que há cerca de quatro anos o pai morreu e a mãe e os irmãos
se mudaram para a praia e nunca mais procuraram Silvana. Como ela não tinha
com quem ficar foi morar com a mãe de Margarida, Dona Lindalva, que tem 69
anos de idade e cuida da sobrinha deste então, mesmo com uma renda mensal
de apenas um salário mínimo.
Por conta dos escassos recursos financeiros, os outros irmãos de
Margarida também acabam “ajudando quando dá, com roupa e coisas”. Como
sabiam que Silvana tinha direito a receber um salário porque era “doente”,
queriam “entrar na justiça” para que ela recebesse o que tem direito, mas que o
problema era convencer a mãe, já que ela “não queria problema com os parentes”
ou ser acusada de estar cuidando da sobrinha somente para ficar com o dinheiro
dela. Segundo Margarida, a mãe tinha medo que os irmãos de Silvana voltassem
e quisessem “pegar as coisas dela” e completou dizendo firmemente que “não
pode ter medo, né? O que ia ser dessa mulher se minha mãe não morasse perto?
Ninguém nunca veio ver se ela tá bem. Minha mãe é tia de sangue dela, tem
direito, é ela quem cuida.”.
Então chegaram a mãe e a sobrinha para nossa conversa. Silvana é magra
e pequena, com cabelos pretos curtos e cacheados não aparentava ter a idade
que tem. Durante nossa conversa, Margarida e Lindalva fazem várias perguntas
para a moça, em algo que me lembrou muito a “avaliação de capacidade” feita
pelas peritas nos processos de interdição. Perguntavam sobre a data de seu
nascimento, sobre o valor do dinheiro e pediram para que contasse a história da
noite em que se perdeu na vizinhança quando foi comprar pão, só sendo
encontrada na manhã seguinte depois da família ter passado a noite acordada
buscando por ela. Silvana ri ao lembrar que estava dormindo dentro da padaria:
1633
tinha ido até o fundo da loja e não percebeu quando fecharam a porta, como não
tinha como sair, acabou dormindo ali mesmo. E foi bastante enfática ao me dizer
que “não havia comido nada, nem um pão, porque minha tia me ensinou a não
pegar o que é dos outros.” Durante todo nosso encontro, tive a sensação de que
tentavam mostrar como de fato Silvana não tinha condições de cuidar de si e que
se portava como uma criança.
Nesta conversa ficou clara a percepção que tinham da “doença mental” de
Silvana. Algo que elas não sabiam bem o que era, mas que fazia com que se
portasse como uma criança, que não soubesse cuidar de si e que, por isso,
necessitasse da assistência constante de sua tia. A moça era, segundo a tia e a
prima, como uma “criança grande”, que não gostava de tomar banho e sequer
sabia trocar o absorvente, que “ia com todo mundo” na rua e que não “sabe das
coisas”. Neste caso, conforme as duas, os médicos nunca conseguiram
diagnosticar o que de fato havia de errado com sua prima, ainda assim, para ela e
para sua mãe, não havia dúvidas quanto à “deficiência” da moça e quanto ao fato
de que isso requeria cuidados especiais por parte das duas. Durante a fala das
três, pude perceber como a todo instante deixavam claro não só a “incapacidade”
de Silvana para cuidar de si mesma, como também o esforço que faziam para
cuidar dela, para alimentá-la, vesti-la e garantir a ela a higiene básica.
Note-se que estamos falando de uma família que vive em uma área da
cidade de Porto Alegre aonde os recursos financeiros são, na maioria das vezes,
escassos. Tanto que Dona Lindalva vive somente com sua aposentadoria de um
salário mínimo e é com esse dinheiro que garante não só o cuidado, mas também
o sustento de sua sobrinha. Quando Margarida procurou a defensoria para buscar
informações sobre o benefício que sua prima poderia ter direito, estava querendo
uma ajuda financeira para sua mãe e também, segundo ela, garantir uma maior
“liberdade” para a sobrinha. Em nosso encontro, perguntei a Silvana o que faria
com o dinheiro se recebesse alguma coisa e ela respondeu que “colocaria os
dentes”, pois não possuía os dentes da frente, pegaria um “cartão Tri” (passagem
de ônibus antecipada) para “usar no pescoço e poder andar por aí” e o restante
daria para a tia, que era quem cuidava dela. O cuidar envolve também um grande
encargo financeiro para aquela família e até mesmo Silvana estava ciente disto.
1634
O que havia ali era um cuidado para com a sobrinha que envolve afeto,
atenção e o auxílio para as tarefas do dia a dia. A fala e os gestos da tia e prima
não deixam dúvida do carinho que têm por ela. Ao comentar algo sobre Silvana,
viravam para ela e perguntavam se era assim mesmo, tocavam-lhe o braço e
elogiavam as pequenas vitórias dela que agora já ajudava a tia a varrer a casa, ia
ao mercado sozinha e estava aprendendo a cozinhar. O tratamento quase infantil
dado a ela era retribuído com olhares e caretas que pareciam corroborar a
descrição de que a prima parecia uma criança em um corpo de mulher. Mas ainda
havia a necessidade de dinheiro. Isso porque o cuidado é uma questão que
envolve não só atenção, mas também diz respeito à forma como os recursos
familiares serão disponibilizados, assim como a vontade de que esse cuidado seja
a prioridade em relação a outras necessidades da família (White e Ingstad, 1995).
A desinstitucionalização que ocorre no Rio Grande do Sul desde os anos
1990 colocou as famílias no centro do cuidado para com aqueles que possuem
alguma doença mental. Assim, a família seria um substituto do Estado para prover
o cuidado – e quando necessário também o tratamento – daqueles que
necessitam (Biehl, 2008). E é claro que estas atribuições geram onerações
financeiras que o Estado busca sanar através do pagamento do Benefício de
Prestação Continuada (BPC) no valor de um salário mínimo mensal. Era este
auxílio financeiro que Margarida estava buscando quando procurou a Defensoria
Pública e foi aconselhada a interditar sua prima. A economia e o cuidado têm
muitos pontos de intersecção, sendo possível falar, nos termos de Vivian a.
Zelizer (2011) em uma “economia do cuidado”. Filio-me ao seu entendimento
quando coloca que estas chamadas relações de cuidado aumentam o bem estar
daqueles que a recebem e que é preciso estar atenta a todas as dimensões desta
relação – a qual também envolve fatores econômicos – para se capturar sua
essência.
No caso em questão, estamos falando de uma família com parcos recursos
financeiros, cujo cuidado para com a sobrinha representa sacrifícios em termos
econômicos. Entretanto, dias após a conversa que tivemos em sua casa,
Margarida me disse que a mãe havia decido não acionar o poder judiciário, não
pedir a interdição e sequer o benefício para sua sobrinha. Segundo ela, Dona
1635
Lindalva “não queria se incomodar” e tinha medo que os irmãos de Silvana ou a
mãe da moça aparecessem depois e “criassem confusão” com ela. Preferiu não
causar nenhum problema nem para ela e nem para sobrinha, pois temia ser
acusada de que estivesse cuidado dela somente para “ganhar dinheiro”. Além
disso, receava que a tirassem de sua casa, aonde sabia que estava bem
assistida. Seguiria cuidando da sobrinha da maneira que pode e que fez até
então.
6 “E SE EU MORRER QUEM VAI CUIDAR DELE?”: A “INTERDIÇÃO DE
FATO” DE JAIR.
Dona Jurema é uma senhora com mais de 60 anos, pequena e com um
leve sobrepeso, caminha com certa dificuldade por conta de dores na perna.
Trabalhou a vida inteira como doméstica e camareira, depois de muitos anos se
aposentou e agora vive com o dinheiro de sua aposentadoria de um salário
mínimo. Disse-me que já trabalhou muito nessa vida e por isso agora quer só
saber de descansar. Sempre que a vejo está vestindo alguma camiseta
promocional e carrega uma sacola ecológica com seus pertences. Durante este
ano em que venho desenvolvendo minha pesquisa, conversei diversas vezes com
ela sobre os mais variados assuntos, mas foi a situação de seu filho que nos
aproximou pela primeira vez.
Conhecemo-nos
na
Associação
Comunitária
depois
de
ter
sido
aconselhada a procura-la para falar sobre seu filho. Desde então tivemos muitas
conversas informais e uma entrevista, onde pude saber muita coisa sobre ela e
seu filho, de modo que a ordem dos fatos que passo a narrar não são exatamente
a ordem em que eles me foram contados. Segundo Jurema, seu filho Jair ficou
muito tempo preso no presídio de Charqueadas por ter assassinado um carteiro.
Para ela, Jair fora condenado injustamente, pois o crime teria sido cometido por
dois vizinhos com os quais ele costumava andar apesar da insistência da mãe
para que não convivesse com aquelas pessoas. Como ele era, segundo ela, o
mais bobo dos três, os outros dois teriam cometido o crime e ele acabou sendo
1636
acusado e condenado injustamente. Por esse motivo, teria ficado dezenove anos
encarcerado e “teria perdido sua juventude naquele lugar”.
Jair hoje é morador de rua e vive pelo centro de Porto Alegre, normalmente
perto do Mercado Público, mas Jurema nem sempre sabe aonde encontra-lo.
Segundo ela, “o juiz teria visto” que ele era inocente, mas que não teria dado para
“soltar direto”, porque ele “ficou com problemas na cabeça” e começou a usar
drogas na cadeia. Por isso foi encaminhado para o Instituto Psiquiátrico Forense
(IPF), onde ficou internado por mais alguns anos. Durante este período, Jurema
lutou para conseguir o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para o filho, indo
diversas vezes ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para solicitar a
realização de perícias. Com um misto de revolta pelo ocorrido e orgulho por ter
enfim atingindo seu objetivo, contou sua saga de idas e vindas a pé do IPF até a
sede do INSS, de como duas pericias haviam sido realizadas dizendo que Jair
não tinha problema nenhum e que “como as perícias estavam marcadas para
domingo” ela desconfiou e resolveu “procurar a justiça”.
Quando o poder
judiciário foi acionado teria sido percebido que aqueles médicos que haviam feito
as perícias anteriores sequer estavam vinculados ao IPF, foram realizadas três
novas perícias e foi comprovado que Jair não poderia viver uma vida
“independente” e por isso passou a receber o benefício mensal no valor de um
salário mínimo.
Apesar do esforço de sua mãe, ele não volta para casa em razão dos
“problemas de cabeça” e do uso contínuo de drogas. Estes “problemas” – a
doença em si e também o vício em entorpecentes – teriam se desenvolvido no
presídio e Jurema diz que são decorrentes de ter perdido a juventude preso por
um crime que não cometeu. A mãe já o internou algumas vezes depois que ele
voltou às ruas, mas como a determinação judicial é para que fique “três semanas
e depois tem que sair, não adianta para nada”. Disse que não deu o endereço e
nem o telefone para o filho, pois senão ele a fica importunando para conseguir
dinheiro para as drogas, mas construiu uma casa para ele em outra localidade e
que essa ele sabe onde é e “só não vai porque não quer”. Quando perguntei se
seu filho era interditado ela me respondeu de forma categórica que não. Achei
curioso e não entendi muito bem a razão. Quando a indaguei, Jurema afirmou
1637
que já era velha demais e que algo podia acontecer com ela antes do que com
seu filho e “se eu morrer, quem vai cuidar dele?”. Por isso preferiu, segundo ela,
não fazer a interdição formal do filho.
Mas é Dona Jurema quem administra o dinheiro de Jair e quem, da
maneira que pode, zela por seu cuidado. Por seu envolvimento com drogas, não
deixa o cartão do banco com ele e é ela quem vai todo mês sacar o dinheiro do
filho e o entrega aos poucos. A cada dois ou três dias, enche sua sacola com
roupas limpas de Jair, pega cerca de R$ 50 ou R$ 70 reais e vai de ônibus até o
centro de Porto Alegre o procurar. Costumava levar comida também, mas um dia
viu que ele dividia o que ela levava com os animais e “até com uma prostituta”
que ficava na mesma praça que ele. Desde aquele dia parou de levar alimentos,
pois “não ia ela deixar de comer para que ele entregasse a comida para aquela
mulher.” Temos aqui um exemplo daquilo que Zelizer (2011) chamou de máximo
da “atenção pessoal contínua e/ou intensiva”: o cuidado da mãe para com o filho.
Preocupada com o que aconteceria com Jair se algo acontecesse com ela
antes dele falecer, Jurema optou por não interditá-lo. Ainda assim, ficava com
todos seus documentos e cartões com medo de que ele os perdesse, gastasse
todo dinheiro de uma só vez ou que os deixasse em “uma boca” em troca de
drogas. O aspecto econômico também esta presente neste caso, pois o filho
recebe um benefício mensal no valor de um salário mínimo e é esse dinheiro que
garante o seu sustento. Jurema me disse que muitas pessoas a acusam de usar o
dinheiro do filho, de ficar com tudo para ela, mas afirmou não se importar com o
que falam, pois somente ela pode saber tudo que faz para cuidar de Jair.
O que faz com o dinheiro de seu filho, na realidade, é muito próximo
daquilo que acontece nos casos em que há a interdição: o “curador” passa a ser
responsável pelos bens do interditado que não possuí o discernimento para gerir
sua vida e seus bens. Trata-se de um processo judicial em que se busca,
segundo alguns autores do Direito, da Assistência Social e da Antropologia a
proteção do sujeito que não mais pode responder por suas ações e deve, assim,
ser representado (Venosa, 2007; Medeiros, 2005; Zarias, 2005). Ainda assim,
Jurema optou por não interditar o filho justamente para protegê-lo no caso de algo
acontecer com ela. A não interdição do filho era também um ato de cuidado.
1638
Mesmo não morando com Jair, todo dia primeiro do mês, ela vai até o
banco para receber o benefício do filho e a cada dois dias vai até o centro de
Porto Alegre para assegurar-se de que ele está bem, de que terá roupas limpas e
dinheiro para sobreviver durante os próximos dias. A saúde mental de seu filho é,
segundo ela, problemática, o que o torna agressivo e desconfiado e, os anos em
que esteve preso, o tornaram não só “doente da cabeça”, mas também usuário de
drogas. É ela quem vai até o posto de saúde “pegar com a médica” os remédios
que Jair deve tomar e que vai entregando aos poucos ao filho e dizendo toda a
vez como ele deve toma-los. Aqui, ao contrário do caso anterior, há um
diagnóstico médico que corrobora o entendimento de Jurema e que garantiu a
seu filho a concessão do benefício mensal, mas ainda assim cabe a ela o seu
cuidado.
Como já mencionei, o cuidado tem sido cada vez mais deixado a cargo do
ambiente doméstico e das famílias, fenômeno este que não ocorre somente no
Brasil, mas também em outros países como Canada, Estados Unidos, França e
Reino Unido (Zelizer, 2011; Weber, 2006; Armstrong, 2005). E o peso do cuidado
para com os familiares em ambientes domésticos usualmente recaí sobre as
mulheres (White e Ingstad, 1995; Weber, 2006). Segundo Hirata e Guimarães
(2012), no Brasil, questões referentes ao cuidar têm sido ligadas ao feminino,
principalmente quando estamos falando do cuidado familiar, o qual não é
profissionalizado e independe de remuneração. E em comunidades periféricas de
baixa renda como na qual venho realizando minha pesquisa, esse cuidado é
muitas vezes relegado às mulheres mais velhas, que já não mais trabalham em
razão da idade avançada e, na maioria das vezes, vivem com a renda de sua
aposentadoria ou de pensão deixada por seu cônjuge. É isto que ocorre nos dois
casos aqui apresentados, o que faz com que a tarefa que lhes foi designada
acabe exigindo sacrifícios não só econômicos, mas também físicos.
Ainda assim, em nenhum momento na fala destas mulheres percebi
qualquer sentimento de revolta ou indignação pela tarefa de cuidar. Pelo
contrário, cuidar de seus parentes – filho e sobrinha - consideravam “doentes
mentais”, daqueles que não podem, segundo elas, administrar a própria vida e
bens sem seu auxílio é o que deve ser feito. Coube a elas, dentro da dinâmica
1639
familiar em que estão inseridas, este papel. A própria ideia de não interditar
aqueles de quem cuidam se mostrou como um ato de proteção para com eles e
também para com elas próprias. Ainda que a “incapacidade” seja evidente para
elas, a interdição não se justifica.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mais do que tecer conclusões, com este trabalho busquei refletir sobre a
experiência de famílias que se deparam com um possível caso de interdição e
sobre as negociações e interesses envolvidos na tomada de decisão em não
ingressar com o processo judicial. Trabalhar a “interdição civil” a partir de casos
de “não interdição” se mostra interessante para refletir sobre as formas como a
“incapacidade” é negociada e vivenciada pelos atores que se deparam com esta
situação. Nos casos aqui apresentados, as noções de cuidado, doença e
economia apareceram de forma direta e indireta tanto na fala como na prática de
minhas interlocutoras, o que mês pensa-las como “categorias cruciais”
(Kleinmann, 1995) para pensar o mundo local do qual fazem parte.
O modo como estas famílias percebem e experenciam a doença mental de
um de seus membros, independente da existência de laudo médico que a
corrobore, é fundamental para a forma como lidam com a situação. Isto acaba
afetando o cuidado que tem com eles, a forma como demonstram e praticam este
ato de cuidar, bem como trazendo implicações tanto para as relações familiares
quanto para a
economia familiar. E todas estas dimensões estão fortemente
relacionadas a decisão destas famílias pela não interdição daqueles que
consideram, conforme pude perceber por meio de suas falas e práticas,
“incapazes” de um modo que muito se assemelha a noção trazida pelo poder
judiciário, ou seja, pessoas que não possuem o discernimento necessário para
gerir sua vida e/ou bens. Coube a Jurema e Lindalva determinar que Jair e
Silvana não possuíam a capacidade necessária, incumbindo-se do papel de suas
cuidadoras de uma forma que muito se assemelha aquele dos curadores
designados pela justiça nos processos de interdição civil. Foi a experiência destas
famílias que busquei acessar com este trabalho.
1640
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1642
REFLEXOS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NO DIREITO PRIVADO:
CRISE DA CONFIANÇA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Caroline Nogueira Teixeira de Menezes
Maristela Medina Faria
RESUMO: A complexidade da realidade econômica, política e social exige uma
nova abordagem da ciência jurídica. Isso implica na necessidade de revisão da
própria estrutura de organização e aplicação do Direito, criando assim uma nova
metodologia jurídica, bem como, uma nova abordagem a respeito das mudanças
ocorridas no campo do direito no contexto da pós-modernidade. Dessa forma, o
presente estudo pretende analisar como as mudanças da sociedade
contemporânea influenciaram para uma crise da confiança nas relações de
consumo. A confiança é o princípio diretriz da sociedade, sobretudo nas relações
contratuais. No entanto, no contexto da sociedade hipercomplexa, apenas os
mecanismos tradicionais de interação não são suficientes para garantia da
confiança, o que ocasiona uma "crise" generalizada. Diante disso, destaca-se os
instrumentos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que deve
prevalecer uma interpretação protetiva e justa para os mais fracos a fim de
propiciar uma real promoção dos direitos fundamentais. Para tanto, este trabalho
dogmático utilizará método de abordagem indutivo e método de procedimento
monográfico bibliográfico e documental.
PALAVRAS-CHAVE:
confiança.
sociedade
contemporânea;
contratos
de
consumo;
1 INTRODUÇÃO
É um fenômeno mundial a sensação de incerteza e insegurança, bem
como um ambiente de complexidade e imprevisibilidade inerente à sociedade
contemporânea. Autores denominam esta sociedade com diferentes termos,
como “era global”58 (Martin Albrow), “modernidade tardia”59 (Anthony Giddens),
58O autor em seu livro The Global Age irá discorrer sobre aspectos da modernidade, bem como
da sociedade contemporânea que a denominará de “era global”. 59Em um de seus artigos intitulado de “Risco, confiança, reflexividade” no livro “Modernização
Refexiva” Giddens denomina a sociedade contemporânea de modernidade reflexiva ou
modernidade tardia. 1643
“modernidade líquida60” (Zygmunt Bauman), “sociedade de risco”61 (Ulrich Beck)
entre outros termos, mas é consenso entre eles que os indivíduos estão
vivenciando profundas contradições e paradoxos e que ao mesmo tempo em que
estão envolvidos em um sentimento de esperança se tornam desesperançosos.
A sociedade contemporânea possui uma extrema complexidade e é
marcada por grandes transformações sociais, políticas, culturais e jurídicas. Este
contexto ocasiona grandes incertezas na sociedade e faz com que muitas práticas
habitualmente
adotadas
na
típica
modernidade
se
tornem
ineficientes,
inadequadas e até mesmo obsoletas para a nova conjuntura social.
Isso acarreta uma revisão nas condutas e práticas que os indivíduos
tradicionalmente se utilizam, a fim de se adaptarem à realidade de uma sociedade
hiperglobalizada62. Este tipo de sociedade é o principal sinal de que os tempos
mudaram e uma nova percepção da sociedade deve ser adotada.
Não há como falar de pós-modernidade sem falar de sociedade de
consumo e de consumidor, os quais são os sujeitos ativos deste fenômeno, o
estudo dos riscos está intimamente ligado à análise das relações de consumo, já
que, obviamente, quando o fornecedor lança no mercado um produto ou um
serviço, junto com eles lança também possíveis riscos à saúde e à segurança dos
seus consumidores.
Com efeito, o que se vê, atualmente é a produção em larga escala, com os
objetivos de superação de lucro e alcance de um número cada vez maior de
consumidores. É a busca, sem precedentes, pelo lucro, que faz com que o
fornecedor deixe de pensar na qualidade e na segurança dos produtos e serviços
que está colocando no mercado de consumo, aumentando os riscos e,
60Bauman no livro “Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester” defende a utilização da
terminologia “modernidade líquida” para denominar a sociedade contemporânea.
61Ulrich Beck, por sua vez, quando se refere ao estagio atual da sociedade, utiliza o termo
“sociedade de risco”. Conferir: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra
modernidade. Ed.34.São Paulo, 2010.
62Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 26) entende que “os processos de globalização mostranos que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais,
políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo.” Por sua vez, Giddens
(1991, p.60) define globalização como “a intensificação das relações sociais em escala mundial,
que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por
eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético
porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito
distanciadas que os modelam.”
1644
consequentemente diminuindo a confiança nestas relações. Surge assim a
necessidade de olhar o direito das relações de consumo de forma diferente,
embora com a utilização de princípios modernos e pós-modernos como a boa-fé
objetiva e a informação.
Assim, o presente estudo tem como escopo analisar como as mudanças da
sociedade contemporânea influenciaram para uma crise da confiança nas
relações de consumo, bem como quais tem sido as medidas adotadas na
tentativa de sanar as consequências negativas advindas do atual contexto.
Para tanto, em um primeiro momento será feito a análise da sociedade
moderna e a sua relação com o Direito. Em um segundo momento será analisado
o contexto da sociedade contemporânea e o surgimento de uma sociedade de
consumo, para enfim analisar a crise da confiança nas relações de consumo. No
presente trabalho dogmático será utilizado o método de abordagem indutivo e
método de procedimento monográfico bibliográfico e documental.
2 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E O DIREITO
A sociedade, no momento moderno, estava fortemente caracterizada por
homens que se ergueram a partir da inabalável confiança na habilidade humana e
na crença da superioridade da razão sobre as forças da natureza, explodindo
assim, os grandes projetos da humanidade (BAUMAN, 2011, p. 85).
Este pensamento foi a base do ideário moderno. Como consequência
deste excesso de confiança, a “modernidade, trouxe a sensação avassaladora de
fragmentação, efemeridade e mudança caótica” (HARVEY, 1992, p. 21). Ou seja,
para Bradbury e McFarlane (1976, p. 46 apud HARVEY, 1992, p. 32) a
modernidade, tratava-se, na concepção daqueles que viveram tais mudanças:
de uma extraordinária combinação entre o futurista e o niilista, o
revolucionário e o conservador, o naturalista e o simbolista, o romântico
e o clássico. Foi a celebração de uma era tecnológica e a sua
condenação; uma excitada aceitação da crença de que os velhos
regimes da cultura tinham chegado ao fim e a um profundo desespero
diante desse temor; uma mistura de convicções de que as novas formas
eram fugas do historicismo e das pressões da época com convicções de
que essas formas eram precisamente a expressão viva dessas coisas.
1645
Embora o termo “modernidade” seja bem mais antigo ao da época aqui
abordada, este termo ganhou enfoque apenas no século XVIII, a partir do esforço
dos pensadores iluministas em buscar um conhecimento baseado na razão pura,
em verdades absolutas, nos ideais de ordem e progresso, na emancipação
humana e, principalmente, na busca para compensar as limitações do
conhecimento religioso, filosófico e do senso comum que predominavam até
então.
Nesse sentido, a exaltação da ordem como uma desejável realização
capaz de construir um mundo estável, seguro, coerente, sólido e puro eram uma
das mais importantes pretensões modernas. Inclusive, alguns escritores da
época, como alegou Habermas (apud HARVEY, 2010, p. 23), estavam tão
possuídos “da extravagante expectativa de que as artes e ciências iriam promover
não somente o controle das forças naturais como também a compreensão do
mundo e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos
seres humanos” que se esqueceram dos males que daí poderiam surgir.
Neste contexto, o julgador, ao interpretar a lei, deveria ater-se à literalidade
do texto legal, para que não invadisse a seara do Poder Legislativo. O juiz deveria
restringir-se à vontade da lei e a aplicação do direito seria amparada no dogma da
subsunção, pelo que o raciocínio jurídico consistiria na estruturação de um
silogismo.
O direito, no momento moderno, era fortemente caracterizado pela dicotomia
existente entre direito público e direito privado. Nesta perspectiva, um dos traços
fundamentais do direito privado era regular as relações jurídicas entre
particulares, ambiente este totalmente dominado pela autonomia da vontade,
enquanto que o direito público era responsável por regular as atividades
relacionadas à vontade do Estado63. Esta ideologia tem sua origem no direito
romano (FACCHINI NETO, 2010, p. 40).
63No século XVIII a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada se apresenta na forma de
separação entre sociedade política e sociedade econômica. A sociedade política era
representada pelos citoyen, que representavam os interesses públicos, já os bourgeois
representavam a sociedade econômica que defendiam apenas seus interesses privados. O
ambiente dicotômico, Estado e Sociedade, Política e Economia, direito e Moral, também propicia
uma maior distinção entre as esferas pública e privada, favorecendo também a divisão entre o
direito público e o direito privado (FACCHINI NETO, p.2010, p. 40).
1646
Neste sentido, Tepedino (2011, p. 259) afirma que:
as relações do direito público com o direito privado apresentam-se bem
definidas. O direito privado insere-se no âmbito dos direitos naturais e
inatos dos indivíduos. O direito público é aquele emanado pelo Estado
para a tutela de interesses gerais. As duas esferas são quase
impermeáveis, atribuindo-se ao Estado o poder de impor limites aos
direitos dos indivíduos somente em razão de exigências dos próprios
indivíduos.
Fica claro que, as relações privadas na sociedade da era moderna são
marcadas por uma forte concepção de propriedade absoluta e plena, bem como
total liberdade contratual, seria o que Facchini Neto (2010, p. 42) chamou de
“reino da não intervenção estatal”.
Importante contribuição para demonstração deste contexto é trazida por
Benjamin Constant (s/d, s/p.) que faz uma interessante distinção entre a liberdade
dos antigos e dos modernos. Segundo o autor, a liberdade dos antigos se resumia
à possibilidade de participação nos processos das decisões políticas mais
importantes para a sociedade política, produzindo as normas gerais, bem como
julgando os casos concretos. Por outro lado, a liberdade dos modernos está na
simples possibilidade de o indivíduo guiar sua vida livremente, sem nenhuma
intervenção estatal. O indivíduo é o soberano das decisões referentes à sua vida
privada, daí advém a noção de autonomia privada do direito privado.
Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2012, p.23) afirmam que para o
direito privado moderno:
O sujeito de direito foi tomado como sujeito racional e livre, que dotado
das condições necessárias pode, especialmente nas relações jurídicas
de direito privado, autoregrar a sua vida. Única exceção ao sistema foi a
admissão do regime de incapacidade de fato, em que a perda do
discernimento pessoal e, ainda, a necessidade de proteção da pessoa
contra si mesma, deixava de reconhecer-lhe capacidade para conduzir a
própria vida, conforme grau de comprometimento das suas condições
pessoais.
Com efeito, o direito moderno era pautado, principalmente, sobre o ideal
liberal de que todos os indivíduos são totalmente iguais em direitos e deveres e,
portanto devem estar submetidos ao mesmo direito. Esse ideal que permeou todo
o desenvolvimento da sociedade na época moderna impossibilitava o tratamento
diferenciado entre as pessoas que estivessem sujeitas ao direito (MARQUES;
MIRAGEM, 2012, p. 22).
1647
Em síntese, pode-se afirmar que a sociedade da época moderna é
marcada por um Estado Liberal, mais preocupado com o ideal de liberdade entre
os indivíduos e tendo o Estado como inimigo dos cidadãos (BONAVIDES, 2004,
p.40). Além disso, como sociedade de menor complexidade, era caracterizada,
principalmente, por conflitos individuais, bem como pelo domínio do ideal
positivista.
No entanto, esta arrogância típica do espírito moderno provocou uma
espécie de cegueira a respeito das consequências de todas as novas descobertas
e avanços deste período, impedindo-os de vislumbrar os problemas que o
progresso prometido poderia provocar. Consequência disso foi uma sociedade
desencantada, exausta das metanarrativas e em busca de um modo de vida
menos coletivo e mais individual, mais leve e consumista, mais líquido e frenético,
denominados por alguns de pós-modernidade (HARVEY, 1992, p. 44)64.
3 UMA ANÁLISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O SURGIMENTO DE
UMA SOCIEDADE DE CONSUMO
Longe de discorrer sobre todas as correntes de pensamento ou de se
atrever a conceituar tal expressão, já que vai depender da intenção de valorizá-la
ou criticá-la, parte-se da ideia que a “pós-modernidade” é uma realidade, mas
ainda tem-se muitos resquícios da modernidade.
Neste sentido, para Bittar (2008, p. 133-134):
A pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a
modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto é fato.
Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus
valores (impregnados do ideário burguês, capitalista e liberal), ainda
permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo
que a simples superação imediata da modernidade é ilusão.
Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou
uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o
viver transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois
tempos, entre dois universos de valores – enfim, entre passado erodido e
presente multifário.
64Harvey (1992, p. 44) defende que: “Quanto ao sentido do termo, talvez só haja concordância em
afirmar que o ‘pós-modernismo’ representa alguma espécie de reação ao modernismo ou de
afastamento dele. Como o sentido de modernismo também é muito confuso, a reação ou
afastamento conhecido como ‘pós-modernismo’ o é duplamente.” 1648
Santos (1999, p.77) sustenta que há um descompasso entre o excesso por
um lado e a insuficiência por outro e isso é o principal responsável pela atual
situação. Esta é para o autor a fase de transição marcada por uma sensação de
crise e:
[...] como todas as transições são simultaneamente semi-cegas e semiinvisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação.
Por esta razão, lhe tem sido dado o nome inadequado de pósmodernidade. Mas à falta de melhor, é um nome autêntico na sua
inadequação.
Não é possível afirmar que a era moderna acabou, já que na sociedade
contemporânea muitos aspectos típicos da modernidade ainda estão fortemente
estáveis, daí a incoerência do termo “pós-modernidade”, mas pode-se afirmar que
vive-se uma situação de transição, de mudanças de perspectivas e de
paradigmas, de modo que a simples superação da modernidade é mera ilusão.
Para Sarmento (2010, p. 45):
[...] de fato existe uma crise na Modernidade, gerada sobretudo pela
tendência alienante da razão instrumental. Mas parece-nos que, ao invés
de abandonar o ideário da Modernidade, deve-se aprofundá-lo,
sobretudo nas sociedades periféricas [...]. É preciso, neste sentido,
adotar um conceito mais alargado de razão, que se proponha a discutir
criticamente também os fins da ação humana, o que a razão instrumental
positivista se negava a fazer. E, a partir de uma perspectiva racional,
cumpre insistir, mais e mais na luta pela implementação dos grandes
valores do iluminismo, de liberdade, igualdade, democracia e
solidariedade.
O fato é que, não há unanimidade no termo a ser utilizado para denominar
o atual estágio da sociedade, e esse é justamente um dos sinais da
contemporaneidade, qual seja, a falta de consenso (BITTAR, 2008, p.132). O
único consenso que há é a sensação de incerteza e insegurança, bem como um
ambiente de complexidade e imprevisibilidade.
Uma tendência deste cenário é o problema de identidade, da falta de
pontos de referências duradouros e sólidos como consequência da liquidez dos
conceitos, pois como estes são flexíveis, fluidos e incertos ocasiona um
esvaziamento não só dos conceitos predominantes (ordem e progresso, por
exemplo), mas também de todo alicerce da sociedade.
Bauman (2011, p. 70) sustenta que:
[...] dificilmente há um ponto de referência único, no qual a atenção
poderia ser fixada de forma segura e confiável, absolvendo aqueles que
buscam a orientação do irritante dever de vigilância constante e a
incessante retração de passos já dados ou até então só pretendidos.
1649
Nenhuma orientação disponível parece ter expectativa de vida mais
longa que as próprias pessoas em busca de orientação, por mais
abominavelmente curtas que suas próprias vidas corpóreas possam ser.
Vivencia-se uma evolução científica que traz inerente riscos65 imprevisíveis,
os quais estão a prescrever uma nova reformulação das práticas e procedimentos
tradicionalmente utilizados na sociedade e a atual situação demonstrou que o
desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam dar conta dos riscos que
elas mesmas contribuíram para criar66.
Beck (2006, p. 1) afirma que:
[...] com nossas decisões passadas sobre energia atômica e nossas
decisões presentes sobre o uso de tecnologia genética, genética
humana, nanotecnologia e ciência informática, desencadeamos
consequências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até
incomunicáveis que ameaçam a vida na Terra.
Na sociedade contemporânea hiperglobalizada, de nada valeria os
mecanismos próprios do direito público para proteção dos direitos humanos se
não houvesse uma atuação conjunta também da atividade econômica privada,
assim, tanto as políticas públicas quanto a atividade econômica privada devem
estar sujeitas ao controle jurídico, já que estes mecanismos podem intensificar
ainda mais a exclusão social, bem como o desrespeito ao princípio da dignidade
da pessoa humana, fundamental em um Estado Democrático de Direito
(TEPEDINO, 2009, p. 43). Desta feita, na sociedade contemporânea, superada
está a clássica dicotomia existente na sociedade moderna entre direito público e
direito privado.
Na atualidade há uma enorme diversificação, bem como intensificação das
demandas da pessoa humana sendo que o status normativo não é capaz de
acompanhar todas esta dinâmica da sociedade tecnológica, isso porque muitas
65Beck (Incertezas fabricadas: entrevista. [22 de maio de 2006]. Revista IHU On-Line, no. 181)
defende que: “[...] Quando falo de ‘sociedade de risco’, é nesse último sentido de incertezas
fabricadas. Essas ‘verdadeiras’ incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e
respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global. Em todas essas
novas tecnologias incertas de risco, estamos separados da possibilidade e dos resultados por
um oceano de ignorância.”
66Para Beck (Incertezas fabricadas: entrevista. [22 de maio de 2006]. Revista IHU On-Line, no.
181): “[...] A novidade da sociedade de risco repousa no fato de que nossas decisões
civilizacionais envolvem conseqüências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a
linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao
público global na eventualidade de catástrofe (como em Cherrnobyl e também nos ataques
terroristas - terror attacks - sobre Nova Iorque e Washington)”. 1650
vezes se apresenta excessivamente rígido, arcaico e totalmente dissonante da
realidade que vivência (TEPEDINO, 2009, p. 44).
A confiança, então, passa a ser fundamental nesta sociedade de risco,
neste trabalho, especialmente, quanto aos riscos produzidos pela sociedade e
contra ela em função dos produtos e serviços oferecidos ao consumidor,
salientando o papel da confiança para eventualmente mitigar o risco ou a
sensação de sua existência.
Além disso, na sociedade contemporânea “alguns aspectos da sociedade
industrial tornam-se social e politicamente problemáticos”, dessa forma, a
sociedade toma algumas decisões e pratica ações, baseando-se nos padrões da
antiga sociedade industrial, por outro lado, o sistema judicial e a política são
tomados por debates típicos do dinamismo da pós-modernidade (BECK, 1997,
p.16).
Para Norberto Bobbio (2004, p.211):
o tempo vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido;
algumas vezes mais lento. As transformações do mundo que
vivenciamos nos últimos anos, sejam por causa da precipitação da crise
de um sistema de poder que parecia muito sólido e, alias, ambicionava
representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos
progressos técnicos, suscitam em nós o dúplice estado de espírito do
encurtamento e da aceleração dos tempos. Sentimo-nos às vezes à
beira do abismo e a catástrofe impende. Nós nos salvaremos? Como nos
salvaremos? Quem nos salvará?
Com os olhos atentos, percebe-se novos contextos, novos hábitos. Assistese a uma flexibilização do monopólio estatal de produção de normas de conduta
em prol de um pluralismo jurídico, cujas fontes não estatais não se submetem aos
mecanismos de legitimação democrática da lei, causando assim, um grande
desconforto para as massas.
O espaço público e privado cada vez mais se confundem, pois “defronte de
tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus
significados originários: o privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o
direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão.” (TEPEDINO,
2011, p. 261).
Ademais, a sociedade se torna uma sociedade de consumo, a qual se
baseia na “promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que
nenhuma sociedade do passado pôde alcançar” (BAUMAN, 2008, p. 63), de
1651
forma que o consumo se torna a forma do indivíduo não ser excluído do meio
social.
Para Bauman (2011, p.65):
Vivemos hoje numa sociedade global de consumidores, e os padrões de
comportamento de consumo só podem afetar todos os outros aspectos
de nossa vida, inclusive a vida de trabalhado e de família. Somos todos
pressionados a consumir mais, e, nesse percurso, nós mesmos nos
tornamos produtos nos mercados de consumo e de trabalho.
Este período, ainda é marcado pela massificação dos contratos, bem como
a "incorporação de milhões de pessoas ao mercado de consumo e a necessidade
do estabelecimento de práticas comerciais e contratuais com todos estes novos
potenciais contratantes, a necessidade de estipulação de contratos padronizados,
[...]" (MIRAGEM, 2013, p. 274) faz surgir “a própria identidade desta massa de
contratantes dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo, os
consumidores.” (MIRAGEM, 2013, p. 274).
Na sociedade atual o consumidor adquiriu um status de grande importância,
sendo um dos principais atores sociais, como defende Marques (2013, p.04):
Fora essa inferioridade e submissão estrutural na relação contratual e
esse desiquilíbrio de forças típicos da sociedade de informação e de
risco, hoje em dia se deve proteger o consumidor, não somente porque
este é um player (ator) econômico importante da globalização, mas
porque ele é – e aqui quero defender esta tese – um símbolo da
globalização, ser consumidor é um novo papel sociológico na sociedade
atual: ser consumidor faz parte da “vida normal” de hoje, é a atual
imagem de pessoa ou de indivíduo pleno em tempos de globalização
econômica e cultural!
Ou seja, o consumidor na sociedade contemporânea é extremamente
relevante para o direito, em diversos aspectos, seja porque é a parte mais fraca
da relação jurídica ou porque vive-se em tempos de uma grande intensificação
das relações consumeristas que cada vez estão mais complexas e dinâmicas.
Assim, o tradicional direito não é mais suficiente para disciplinar estas relações,
surgindo então o Código de Defesa do Consumidor como instrumento de tutela da
parte mais fraca da relação, qual seja, o consumidor.
Este ambiente ainda é marcado por grandes contradições, isso porque as
atuais relações de trabalho são instáveis, há o aumento do desemprego e a
desvalorização do salário médio. Ter acesso a esta multiplicidade de objetos e
serviços disponíveis torna-se inviável, ainda mais considerando que, grande parte
1652
não tem sequer acesso aos bens de consumo básicos, caracterizando uma
sociedade de excluídos e marginalizados. Assim:
Expostos a um bombardeio ininterrupto de publicidade por uma média
diária de três horas de televisão (a metade de todo seu tempo ocioso),
os trabalhadores são persuadidos a ‘necessitar de mais coisas. E para
comprar aquilo de que agora necessitam, eles precisam de dinheiro.
Para ganhar dinheiro, trabalham mais horas. (BAUMAN, 2011, p. 65).
Dito isso, a sociedade contemporânea é sem dúvida alguma uma
“sociedade de consumo e de produção em massa, sociedade de serviços,
sociedade da informação, altamente acelerada, globalizada e desmaterializada” e
são justamente estas características que acarretam novas realidades, novas
situações e conflitos para o direito (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p.18-19).
Para Marques (2007, p. 21), justamente neste contexto, "em que nossos
tempos parecem fadados ao aumento dos litígios e da desconfiança entre
agentes econômicos (classes e instituições)", que a confiança, por meio da
cláusula geral da boa-fé objetiva e do dever anexo da informação, deve assumir
papel de grande relevância como forma de diminuição da complexidade e como
instrumento para redução de conflitos.
4 REPERCUSSÕES DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NA RELAÇÃO DE
CONSUMO: CRISE DA CONFIANÇA
O momento pós-moderno tornou-se um grande desafio para o direito,
sobretudo para o direito civil, pois trata-se de “tempos de ceticismo quanto à
capacidade da ciência do direito de dar respostas adequadas e gerais aos
problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade
avassaladora.” (MARQUES, 2007, p. 25).
Os reflexos da metamorfose cultural e social ocorridos na sociedade
contemporânea foram imediatos no direito, especificamente no campo do direito
privado. Sobre as repercussões do paradigma pós-moderno no fenômeno jurídico,
discorre Cláudia Lima Marques (2014, p.168):
Com a sociedade de consumo massificada e seu individualismo
crescente nasce também uma crise sociológica, denominada por muitos
de pós-moderna [...]. Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do
abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do
modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a
1653
evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência dos
valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito mais
influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais
dos cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise de
desconstrução, de fragmentação, de indeterminação à procura de uma
nova racionalidade, de desregulamentação e de deslegitimação de
nossas instituições, de desdogmatização do direito; para outros, é um
fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o
direito.
Da mesma forma, o ilustre autor Erik Jayme67 elencou quatro elementos da
pós-modernidade que influenciaram na nova roupagem dada ao direito privado.
Primeiramente temos o pluralismo, tanto no que diz respeito às fontes legislativas,
quanto aos sujeitos da relação contratual, ativo e passivo, criando-se, assim, uma
perspectiva plural e um diálogo de fontes entre as diversas existentes. A
comunicação, outro elemento, como método de legitimação, instrumento de
informação e valorização da confiança. Consequentemente a ela, a narração,
toma lugar a partir das transformações na interpretação das leis e na filosofia do
direito. Por fim, a última característica a afetar o direito civil é o retorno dos
sentimentos, consistente na adoção de sentimento no discurso jurídico, bem
como na busca por novos elementos sociais, ideológicos, que se resumem no
imponderável.
É claro que a teoria do contrato não ficou imune a estas transformações. A
nova concepção de contrato passou a ser mais social, pois não apenas a
manifestação da vontade (soberania da vontade) tornou-se relevante, mas
também, seus efeitos na sociedade.
Ademais, os contratos tradicionalmente estáticos deram lugar aos contratos
complexos e dinâmicos. O economicamente relevante passou a ser o imaterial, os
fazeres e serviços complexos ou o bem imaterial, ou seja, o contrato deixou de
ser apenas um instrumento econômico para ser também um instrumento para a
tutela dos direitos fundamentais, e a informação passou a integrar o contrato. Ou
seja, “o deficit de informações, que por um longo período foi utilizado como
instrumento para obtenção de maiores proveitos negociais, torna-se um dos mais
ameaçadores vícios de adequação e justiça contratuais.” (XAVIER, 2006, p. 134).
67 Para Erick Jayme (1996, p. 274) “Il y a quatre phénomènes exprimant simultanément certaines
valeurs qui jouent um role primordial dans la culture postmoderne: le pluralisme, la
communication; la narration; le retour dês sentiments”.
1654
Neste sentido, no novo modelo contratual, há mais do que apenas a garantia
da autonomia da vontade, há também um acompanhar mais atento para o
desenvolvimento da prestação, um valorizar da informação e da confiança
despertadas (MARQUES, 2014, p.180).
E o Código de Defesa do Consumidor é o grande exemplo desta nova
teoria contratual, pois conforme ensina Lôbos (1995, p. 32) "é a adequada
resposta do direito ao fenômeno crescente da oligopolização e globalização da
economia, que tornou o consumidor um figurante passivo e hipossuficiente,
afetando a própria noção atual de cidadania".
Percebe-se então, que apesar da teoria do contrato tratar-se de uma teoria
mais social, pautada na boa-fé, verifica-se sua insuficiência para tutelar as
relações privadas no contexto atual de uma sociedade hipercomplexa como a
atual, gerando, assim, uma nova crise no contrato68: a da confiança!
Um dos focos desta desconfiança no Brasil pode ser encontrado na própria
dogmática e na forma como a interpreta-se e aplica-se aos casos concretos que
surgem na sociedade. Há autores, entre ele Gustavo Tepedino, que defenderão
que para sanar esta crise será necessária uma perspectiva civil constitucional
(MARQUES, 2014, p.193).
O Código de Defesa do Consumidor impôs a transparência nas relações
contratuais (art. 4°, caput, do CDC), o princípio da boa-fé-objetiva (art. 4°, III, do
CDC), bem como a interpretação dos contratos conforme a confiança despertada
(arts. 30, 34, 35, 47 e 48 todos do CDC), que segundo Marques (2014, p. 280):
a proteção da confiança no vínculo contratual, que dará origem às
normas cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do
contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de
cada parte, através da proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma
interpretação pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação
contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram
garantir ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido,
assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e
serviços.
Inicialmente, segundo Menezes Cordeiro (2001, p. 1234), "a confiança
exprime situação em que uma pessoa adere, em termo de atividade ou de crença,
68Marques (2007, p. 22) afirma que: "Em síntese apertada, podemos afirmar que a primeira crise
do contrato nasceu, na Revolução Industrial, com a massificação da produção e da distribuição
indireta, depois do próprio contrato standard e foi respondida pelo direito do consumidor.". 1655
a certas representações passadas, presentes ou futuras que tenha por efetiva".
Daí porque, a confiança abrange o cumprimento das expectativas legítimas.
Tal tema é tratado com prioridade por Marques (2014, p. 188), a partir dos
estudos de Luhmann:
Segundo Niklas Luhmann, em uma sociedade hipercomplexa como a
nossa, quando os mecanismos de interação pessoal ou institucional,
para assegurar a confiança básica na atuação não são mais suficientes,
pode aparecer uma generalizada 'crise da confiança' também na
efetividade do próprio direito.
Verifica-se, que a crise da confiança69 é consequência da fase atual da
sociedade de momento pós-moderno, uma resposta à "massificação das
contratações e das práticas negociais de mercado" (MIRAGEM, 2008, p. 151),
bem como o incremento do mercado consumidor traz consigo um aumento na
gama de produtos e serviços oferecidos pelos fornecedores, estes carregados de
novos possíveis riscos e danos, perpetuando-se a espiral da incerteza. Neste
sentido, Miragem (2008, p. 150):
Embora possa parecer paradoxal, em alguma medida isto se dá em
razão de uma crise de confiança pela qual passa a sociedade de
informação, cuja hipercomplexidade e hiperinformação dão conta de uma
ruptura na crença em comportamentos tradicionais, em comportamentos
padrões, reclamando-se a necessidade e estabelecimento de garantis da
aplicação e efetividade do direito, por intermédio da proteção da
confiança individual e social.
Na sociedade atual é bem comum contratos extensos e complexos
sinalizando que nada mais é pressuposto e tudo deve estar devidamente
detalhado no contrato. Há uma crise generalizada na confiança seja por parte do
consumidor e até mesmo pelo fornecedor. Conforme Marques (2014, p.187-188)
“hoje também os consumidores estão desconfiados, querem segurança, esperam
proteção da lei, sabem seus direitos de consumidores e não aceitam mais a falta
de qualidade, de informação, de cuidado ou de lealdade [...].”.
A autora (2011, p.187) segue afirmando que:
Se a crise da pós-modernidade pode ser vista como uma crise de
desconfiança no direito, em seus instrumentos e instituições (inclusive o
contrato), está na hora de uma reação, reação esta através do direito
privado como instrumento de realização das expectativas legítimas do
homem comum, o leigo, o consumidor.
69Segundo Cláudia Lima Marques (2007, p. 25) " esta 'nova' crise teria ocorrido após os atentados
de 11.09.2001, em Nova Iorque, que afetou a base comum de todas as relações - hoje
globalizadas - que é a confiança, afetando assim, o contrato e o direito, que deveriam justamente
formalizar, concretizar e regular estes vínculos de confiança: é a crise da confiança."
1656
Com isso, a confiança tão descrita pelos antigos passa a reassumir
atuação de base da sociedade e estrutura das relações, conforme já bem
assinalava Luhmann (1996, p. 121), para o qual a confiança é o elemento central
da vida em sociedade e resultado de uma necessidade da complexidade da vida
moderna.
Neste sentido, para este autor, a confiança pode ser analisada em três
planos, quais sejam a de que é preciso ter confiança e confiar nessa confiança; a
segunda enfoca as expectativas compartilhadas reciprocamente entre indivíduos;
e por fim, a confiança se estrutura em expectativas generalizadas em sistemas e
organizações (LUHMANN, 1996, p. 121).
A partir desta confiança, as expectativas de comportamento são
generalizadas, compensando "a falta de informações sobre condutas futuras e o
risco quanto a incertezas". (ARAÚJO, 2009, p. 12).
A relevância da confiança também é exposta por Larenz (apud MARQUES,
2014, p. 186), para o qual a confiança é princípio diretriz do direito, sobretudo das
relações contratuais, pois uma pessoa deve poder confiar na conduta do alter e
também poder atuar nas relações alheias, ou seja, "as condutas na sociedade,
devem fazer nascer expectativas legítimas naqueles em que despertamos a
confiança, os receptores de nossas informações". (MARQUES, 2007, p. 30).
Tal é sua importância no contexto atual, que o Código de Defesa do
Consumidor instituiu o princípio da proteção da confiança do consumidor em dois
aspectos:
1) a proteção da confiança no vínculo contratual, que dará origem às
normas cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do
contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de
cada parte, através da proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma
interpretação pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação
contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram
garantir ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido,
assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e
serviços. (MARQUES, 2014, p. 280).
Ademais, outra motivação para a crise da (des)confiança na sociedade atual
é a falta de informação ou o excesso dela. Sua relevância também se justifica,
pois, conforme bem expôs Erik Jayme, um dos elementos da pós-modernidade é
1657
a comunicação70. Neste sentido, destaca-se a importância dos deveres anexos
da boa-fé objetiva71 de informação e transparência nas relações de consumo.
Até mesmo porque, com as mudanças substanciais sofridas nas relações
contratuais, os deveres principais deixam de ser os únicos exigíveis (a boa-fé, por
exemplo), pois necessário também o cumprimento dos deveres laterais, em
especial o da informação.
Dito isso, o “dever de informar” adquire fundamentais contornos nos tempos
atuais informação e pode ser vista sob inúmeras variáveis. No âmbito
constitucional, a informação encontra guarida em pleno exercício da cidadania,
pois, na sociedade contemporânea, massificada e globalizada, somente um
indivíduo bem informado é capaz de exercer os diversos papéis reservados a ele,
inclusive o de consumidor (BARBOSA, 2013, p. 147).
Nesse aspecto, tem-se o reconhecimento do direito à informação como
direito fundamental do consumidor, decorrente não só do reconhecimento da
dignidade da pessoa humana como fundamento principal do ordenamento
jurídico, mas também do reconhecimento da "informação como valor, e a vontade
(no sentido de autonomia) como elemento material da atuação dos sujeitos".
(BARBOSA, 2013, p. 148).
O direito à informação também encontra grande arsenal no Código de
Defesa do Consumidor, cujo direito básico é estabelecido em seu art. 6°, III, mas
também é acompanhado por deveres específicos de informação ao consumidor,
conforme bem expõe Miragem (2008, p. 122):
O direito básico à informação do consumidor, estabelecidos no art. 6°, III,
do CDC, é acompanhado de uma série de deveres específicos de
informação ao consumidor, imputados ao fornecedor nas diversas fases
da relação de consumo, como é o caso dos artigos, 8° e 10 (informação
sobre riscos e periculosidade), 12 e 14 (defeitos de informação), 18 e 20
(vícios de informação), 30,31,33,34 e 35 (eficácia vinculativa da
informação, sua equiparação à oferta e proposta, e as consequências da
violação do dever de informar), 36 (o dever de informar na publicidade),
70 Inclusive, para alguns autores, a pós-modernidade, é conhecida como a era da informação.
Nesse sentido, veja CASTELIS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura
- A sociedade em rede. 5 ed,, São Paulo: Paz e Terra, 1999.
71 "Contudo, o dever de informar não é apenas a realização do princípio da boa-fé. Na evolução
do direito do consumidor assumiu feição cada vez mais objetiva, relacionando à atividade lícita
de fornecimento de produtos e serviços. A teoria contratual também construiu a doutrina dos
deveres anexos, deveres acessórios ou deveres secundários ao da prestação principal, para
enquadrar o dever de informar." (LÔBO, 1995, p. 604)
1658
46 (a ineficácia em relação consumidor, das disposições contratuais não
informados), 51 (abrangência pelo conceito de cláusula abusiva,
daquelas que não foram suficientemente informadas ao consumidor), 52
e 54 (deveres específicos de informação nos contratos), todos do CDC.
O direito à informação do consumidor, portanto, "constitui-se em uma das
bases da proteção normativa do consumidor no direito brasileiro, uma vez que
sua garantia tem por finalidade promover o equilíbrio de poder de fato nas
relações entre consumidores e fornecedores […].” (MIRAGEM, 2008, p. 123).
Por isso, a necessidade de revitalização da confiança e a exaltação da
informação na sociedade contemporânea, pois, se antes a ideia do desequilíbrio
contratual na execução dos contratos foi catalizadora para o desenvolvimento de
um direito protetivo do consumidor, atualmente, o catalizador é o desequilíbrio
informativo, cuja informação está umbilicalmente ligada ao desenvolvimento da
personalidade do indivíduo e seus direitos fundamentais72 (MARQUES, 2014, p.
179).
Para alcançar a mesma eficácia dos contratos, como outrora era realizado
com louvor pelo princípio da boa-fé objetiva, e sobretudo, garantir as expectativas
legítimas dos consumidores, necessário se faz socorrer aos instrumentos típicos
da pós-modernidade, qual seja, a informação, bem como a própria confiança,
modelo mãe da boa-fé73.
Este diálogo de valores se dá como forma de solucionar a atual crise da
confiança na sociedade, cuja “fase atual da pós-modernidade está a necessitar
uma resposta de valorização do paradigma da confiança, pois nossos tempos
parecem fadados ao aumento dos litígios e da desconfiança entre agentes
econômicos (classes e instituições).” (MARQUES, 2007, p. 11).
E esta mudança encontra suporte no próprio direto privado, sobretudo no
Código de Defesa do Consumidor, o qual atua como instrumento social de
alocação de riscos, remediando a desconfiança entre as pessoas, a fim de
72 O direito à informação é, pois, uma das novas concretizações do respeito à dignidade da
pessoa humana e manutenção da liberdade de ambos, fornecedor e consumidor, em uma
sociedade pós-industrial, que necessita essencialmente de direitos com efeitos distributivos.
73 "Daí a necessidade do estabelecimento de novo paradigma objetivo nos contratos de
consumo, que tenha em consideração, principalmente, um standard de qualidade e segurança
que podem ser esperados por todos, contratantes, usuários atuais e futuros" MIRAGEM (2008, p.
151).
1659
alcançar a maior segurança possível entre os envolvidos e viabilizar a realização
dos objetivos contratuais almejados (MARQUES, 2007, p. 39).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fato é que a sociedade contemporânea passa por um momento pósmoderno que inevitavelmente acarreta transformações em todos os setores da
vida do indivíduo, e é claro que o direito, especificamente, no que se refere às
relações contratuais consumeristas, não fica imune a estas transformações, bem
como aos impactos desta nova era.
A
sociedade
contemporânea,
que
é
hiperglobalizada,
tem
como
características a ubiquidade, liberdade e velocidade, estas inerentes à sociedade
de consumo brasileira o que ocasiona que o atual direito privado seja dominado
por uma sensação constante de desconfiança entre todos os agentes econômicos
acarretando, inevitavelmente, uma dicotomia entre “contrato e delito”. Estes,
quase sempre caminham juntos.
Assim, a proteção da confiança nas relações consumeristas é fundamental
para o direito privado estando estritamente relacionada com a boa-fé, bem como
com a ética contratual, a transparência nas relações e a imprescindibilidade de
proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental de um Estado
Democrático de Direito.
Diante do contexto da sociedade contemporânea surge, então, um novo
paradigma na regulação dos contratos de consumo, conservando a necessidade
de proteção do princípio da boa-fé objetiva e revitalizando a proteção da
confiança, de forma que as legítimas expectativas dos consumidores sejam
respeitadas. Para tanto, utiliza-se de alguns institutos típicos da pós-modernidade
como a informação, isso porque o tradicional direito positivado não consegue
mais absorver todos os conflitos que surgem na atual sociedade, especialmente
no que se refere à relação consumerista.
Tal postura só se torna possível graças ao Código de Defesa do
Consumidor que se apresenta como um dos principais instrumentos da sociedade
contemporânea na proteção das relações consumeristas, especialmente na
1660
proteção da confiança, garantindo assim a proteção e efetivação dos direitos
fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, qualquer investigação sobre a crise da confiança no Direito, por
mais completa que se proponha ser, é insuficiente sob o ponto de vista dos
infinitos desdobramentos, bem como com relação à efemeridade do objeto em
análise, por isso o presente estudo, como já foi dito, objetivou apenas trazer à
baila a importância deste tema e a necessidade de debate sobre o assunto para
superação dos inconvenientes.
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Acesso em: 10 de abril de 2015.
1664
LEI MENINO BERNARDO: UM ENFOQUE SOCIOLÓGICO, PSICOLÓGICO E
POLÍTICO
Maria Carolina Santini Pereira da Cunha,
RESUMO: Este trabalho debate a Lei Menino Bernardo, originalmente fundada
como Lei da Palmada e rebatizada com um caso de destaque internacional.
Analisa-se, com a presente lei, a possibilidade de trazer mudanças efetivas na
sociedade, sua eficácia para coibir agressões e influenciar nas relações privadas.
Aborda-se o caso originário da Lei: o crime sob os aspectos sociológico e
psicológico, a fim de elucidar o motivo do desamparo das vítimas diante do
sistema penal. Diante desse panorama, encontra-se o Estatuto da Criança e do
Adolescente, o qual ilustra a discussão legislativa.
PALAVRAS-CHAVE: lei; menino Bernardo; violência familiar.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo uma reflexão em torno do tema proposto.
Aborda-se outros crimes brasileiros relacionados ao caso central: crianças
assassinadas por seus genitores e demais vítimas de criminosos com transtorno
de personalidade antissocial. A metodologia visa a um estudo analítico,
centralizado no Caso Bernardo, em Três Passos/RS, ocorrido em abril de 2014. O
ensaio divide-se em três seções: a primeira trata do surgimento e formação da lei
desde o seu projeto, incluindo os motivos que conduziram a mudar sua
denominação, e o dispositivo existente no ECA, concertente ao conceito familiar;
explica uma patologia mental da qual as vítimas ficam à mercê do sistema que
não previu legislação adequada. A segunda, exemplifica-se essa problemática por
crimes cometidos no Brasil e suas semelhanças com o caso designado,
fornecendo análise dos casos Nardoni, Richthofen e Eloá Cristina. A terceira,
lança mão de críticas, apresentadas de forma a analisar, repensar e refletir sobre
o sistema penal e toda a sociedade brasileira, a partir das falhas dos casos em
pauta. Por fim, apresentam-se as conclusões obtidas.
1665
2 O PROJETO DE LEI: DA PALMADA AO CASO MENINO BERNARDO
A deputada Teresa Surita do PMDB-RR relatou o projeto, o qual prevê que
pais que “maltratarem os filhos sejam encaminhados ao programa oficial de
proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou
psiquiátrico, além de receberem advertência.” Enquanto que a criança agredida,
“deverá ser encaminhada a tratamento especializado.” A proposta previu multa de
três a vinte salários mínimos “para médicos, professores e agentes públicos que
tiverem conhecimento de agressões a crianças e adolescentes e não
denunciarem às autoridades. A lei foi proposta em 2003, sendo polêmica, e
levantou diversas discussões, tendo sido aprovada pela Câmara dos Deputados,
em 21 de maio de 2014, após acordo aceito pela bancada evangélica
especificando que “os pais ou responsáveis somente serão punidos se infligirem
sofrimento físico à criança ou adolescente até 18 anos de idade”; e, no Senado,
no dia 4 de junho (WIKIPÉDIA, 2015). O Projeto de Lei estreou sua tramitação na
Câmara dos Deputados em 2003, redigido por Maria do Rosário, do PT-RS, sob o
número 2.654/2003, obtidos pareceres “pela aprovação na Comissão de
Seguridade Social e Família, Comissão de Educação e Cultura e Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania, parando sua tramitação no plenário”. A lei
foi sancionada com o intuito de alterar a Lei nº 8.069/1990, que dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para estabelecer o direito da criança
e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou
de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996 (BRASIL, 2014). Em entrevista, Luiz Flávio Gomes aponta que “a norma não
prevê punições penais, mas encaminhamento para tratamento.” Desse modo, “se
a lei penal não surte efeito preventivo, menos ainda uma lei sem punição
estabelecida” (RODRIGUES; TOMÉ, 2014). No ECA, há a garantia de, conforme
artigo 17, inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança ou
adolescente. O dispositivo estabelece ser dever de todos garantir a dignidade dos
menores, “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, segundo o artigo 18. Ademais, há
previsão legal também no Código Civil (art.1681, I) da perda do pátrio poder a
1666
pais cujo castigo aos filhos for imoderado. Finalmente, o Código Penal criminaliza
maus-tratos para quem “abusar dos meios de correção e disciplina (art.136), além
do crime de lesões corporais no contexto de violência doméstica (art.129, §9º)”
(ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). Desde 2001, “a Global Initiative to End all
Corporal Punishment of Children” recebe apoio de “organizações multilaterais de
defesa de direitos humanos, ONGs internacionais e locais e indivíduos-chave,
capazes de dar visibilidade à causa. Mundialmente, a ONG Save the Children tem
sido o principal agente a promover a elaboração de leis específicas sobre o tema”.
No Brasil, “a ONG Save the Children apoia a Rede Não Bata, Eduque, cuja
principal porta-voz desta causa no país e articuladora da elaboração e tramitação
do PL 7672/10, no Congresso Nacional, é a apresentadora de TV Xuxa
Meneghel” que tem desempenhado papel importante nesta rede, manifestando-se
em programas de televisão e em eventos relacionados ao tema dos direitos das
crianças (RIBEIRO, 2013, p.292-308). A partir da década de 80, este projeto
produzia
estudos
relacionados
à
violência
familiar,
castigos
físicos,
encomendados pela ONU ao Laboratório de Estudos da Criança (Lacri) do
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP (RIBEIRO, 2013,
p.292-308). Essa pesquisa “chamava atenção para a normalização e a
legitimação do castigo físico como prática educativa na sociedade brasileira,
sustentando que tais comportamentos replicam a violência e a retroalimentam”
(ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). “O PLS foi uma representação por
cumprimento das recomendações da ONU e não por uma demanda social”
(RIBEIRO, 2013, p.295 apud ROCHA et al, 2014, p.6). Poucas reuniões e
audiências públicas foram realizadas da proposta apresentada, compostas por
uma comissão de deputados que pouco debateram sobre a criação da norma,
“preocupando-se os parlamentares apenas em aprovar uma lei que fosse ao
encontro dos dados trazidos pelo relatório da ONU, reivindicada pelas ONGs
influentes bem como artistas famosos” (RIBEIRO, 2013, p.299 apud ROCHA et al.
2014, p.6). Em junho de 2014 (NÉRI; PASSARINHO. 2014) foi aprovado o PLS
7672/2010 o qual propunha a inicialmente denominada “Lei da Palmada”, então
intitulada Lei Menino Bernardo. O dispositivo da lei supracitada, elaborada em
2010, tornou perceptível que o próprio legislador demonstra estar ciente da
1667
dificuldade quanto à sua concretização74. Ademais, seu conteúdo estabelece a
obviedade de não se maltratar crianças. Contudo, casos como este são incógnitos
inclusive para profissionais, que desconhecem o motivo da inevitável reincidência.
Segue uma possível explicação.
A lei da palmada traz um fato a ser combatido. Bernardo Uglione Boldrini,
11 anos, desapareceu e foi encontrado morto. Foram presos como suspeitos o
pai, a madrasta e sua amiga. Primeiramente, depara-se com a dificuldade de
determinar o limite em que a palmada seria um corretivo educacional aos filhos e
a partir de que momento se torna agressividade cruel, principalmente porque a
violência é escondida. No caso em questão a madrasta contou à vítima uma
história, iludindo-o que comprariam uma TV depois noticiaram que era um
aquário. Por fim, afirmava que ele precisava tomar uma injeção. Houve, portanto,
premeditação a fim de ludibriar um inocente, com dissimulação por parte da
ofensora ao enteado. Este foi enterrado em uma cova rasa, na área rural de
Frederico Westphalen, no dia 14 de abril de 2014, a cerca de 80 quilômetros de Três
Passos, onde ele morava com a família, que alegou ter visto Bernardo pela última vez
às 18h do dia 4 de abril, “ia dormir na casa de um amigo, que ficava a duas quadras
de distância da residência da família”. Revelou-se então o sofrimento passado pelo
menino, por um histórico de violência e humilhações. Dia 6 de abril, conforme notícia,
o pai do menino disse ter ido à casa do amigo, “mas foi comunicado que o filho não
estava lá e nem havia chegado nos dias anteriores. No início da tarde do dia 4, a
madrasta foi multada por excesso de velocidade”: trafegando a 117 km/h, Graciele
“seguia em direção a Frederico Westphalen. O Comando Rodoviário da Brigada
Militar (CRBM) disse que ela estava acompanhada do menino. O pai registrou o
desaparecimento do menino no dia 6, e a polícia começou a investigar o caso” (In:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardoboldrini/noticia/2014/05/pericia-analisa-assinatura-de-pai-de-bernardo-em-receita
74
PLS 7672/2010, item 17: “Sabemos, no entanto, que uma coisa é proclamar os direitos, outra é,
efetivamente, gozá-los. Neste momento, envidamos esforços no sentido de dar materialidade a
reivindicações dos movimentos e aperfeiçoar mecanismos legais que já se constituem em
conquista histórica e institucional para o desenvolvimento e sustentabilidade de políticas de
públicas para a infância e a adolescência, garantindo todos os direitos das crianças e
adolescentes e protegendo-os de qualquer forma de sofrimento e limitação a seu pleno
desenvolvimento.”
1668
usada-em-crime.html). O erro desta lei sobressai em seu objeto: não foram
palmadas a causa mortis do menino, e sim uma injeção letal. “Segundo as
investigações da Polícia Civil, Bernardo foi morto com uma superdosagem de um
sedativo.” Foi noticiado sobre o inquérito policial, o qual “apontou que Leandro
Boldrini atuou no crime de homicídio e ocultação de cadáver como mentor,
juntamente com Graciele”. De acordo com a polícia, “ele também auxiliou na compra
do remédio em comprimidos, fornecendo a receita Leandro e Graciele arquitetaram o
plano, assim como a história para que tal crime ficasse impune” (In:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardoboldrini/noticia/2014/09/chegava-com-olheiras-e-malvestido-diz-empresaria-queacolhia-bernardo.html). Cabe esclarecer que tal crime é sui generis, cometido por
criminosos com Transtorno de Personalidade Antissocial75. Assemelha-se ao
Caso Nardoni76. São crimes característicos, tais como: “assassinos em série, pais
que matam seus filhos, filhos que matam seus pais, estupradores, [...]
estelionatários, [...] políticos corruptos[...]” (SILVA, 2010, p.45). Deve-se fazer uma
análise desses criminosos inatos, pois a preocupação com essa patologia ainda
não alcançou o Brasil. A propósito, o primeiro estudo sobre psicopatas só foi
publicado em 1941, com o livro The Mask of sanity, de Hervey Cleckley. Na
introdução de seu livro, o psiquiatra diz tratar de um assunto muito conhecido,
embora ignorado de maneira geral pela sociedade (SILVA, 2010, p.74-75). Há
descrença quanto a sua existência, e dela não se deve esperar qualquer melhora
– não há tratamento para o referido transtorno. Entretanto, eles sao capazes e
imputáveis. Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.20) refere que sociopatas
desprezam escolher a alternativa correta, embora tenham capacidade de discernir
entre certo e errado: “A parte racional ou cognitiva dos psicopatas é perfeita e
íntegra, por isso sabem perfeitamente o que estão fazendo”. Diante dessa
perspectiva, a legislação brasileira comete grave equívoco ao classificar essa
75
Publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na Classificação Internacional de
Doenças CID-10, este transtorno é denominado Transtorno de Personalidade Dissocial, Código:
F60.2. . A Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR) utiliza o termo Transtorno de
Personalidade Antissocial, como estabelece a autora Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.39).
76
A menina Isabella de Oliveira Nardoni, 5 anos, foi arremeçada do 6.º andar de um prédio em
São Paulo. Seu pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, foram condenados
pela morte e estão presos.
1669
patologia como semi-imputável. Silva (2010, p.41) exemplifica de maneira
esclarecedora que “psicopatas são indivíduos que podem ser encontrados em
qualquer raça, cultura, sociedade, credo, sexualidade, ou nível financeiro”. Nesse
sentido, vivem “infiltrados em todos meios sociais e profissionais, camuflados de
executivos bem-sucedidos, líderes religiosos, trabalhadores, “pais e mães de
família”, políticos, etc.” A violência é universal: a cada minuto pessoas são
espancadas, torturadas, violentadas, em todo o mundo. Os fisicamente frágeis ou
emocionalmente vulneráveis estão em perigo contínuo. Milhares de pessoas são
vítimas nesse exato momento – escondidos em porões, sequestrados,
maltratados inclusive por parentes: seja pelos pais, seja pelos filhos. Eles estão
por toda parte, cercando suas vítimas. “Assim como os vampiros da ficção, os
psicopatas estão sempre de tocaia”. Silva (2010, p.41) insiste de maneira
contundente: “agindo [...] nas ruas, em plena luz do sol, procurando suas “presas”,
às mesas de seus escritórios envolvidos em negociações escusas ou mesmo sob
o teto acolhedor de um lar que em instantes será devastado” (SILVA, 2010, p.46).
Então, o que fazer de útil: criar uma lei “anti-psicopatas”? A questão é que o
Estado não tem como saber nem como fiscalizar, dada a extrema dificuldade de
identificar esses seres sem emoção, sem empatia, manipuladores, enrustidos de
pessoas normais. Como relata Silva (2010, p.46), eles “estão por toda parte,
perfeitamente disfarçados de gente comum, e assim que suas necessidades
internas de prazer, luxúria, poder e controle se manifestarem, eles se revelarão
como
realmente
são:
feras
predadoras.”
Falta
uma
análise
feita
por
criminologistas especializados em violência, que pesquisem para encontrar uma
forma de combate eficiente, e alertar a população. Observa-se coincidências e
procura-se saber por que há semelhanças nesses crimes mencionados. Analisase na próxima seção, um estudo de caso comparando crimes brasileiros:
Richthofen, Eloá Cristina e o Caso Nardoni mais detalhadamente.
3 CASE STUDY: CRIMES BÁRBAROS NO BRASIL
Outro caso famoso foi o Homicídio de Manfred von Richthofen e Marísia
von Richthofen, cometido pelos irmãos Cravinhos, a mando da filha do casal
1670
Suzane von Richthofen, em São Paulo. Para comprovar as afirmações
apresentadas na seção anterior, apresenta-se uma provocação que contraria a
lógica da Lei da Palmada: no Caso Richthofen deveria ser criada uma lei para
maus tratos aos pais? Entendemos não ser esse o caso. Primeiro, porque as
doentias mentes em debate são imorais; e segundo, porque devido a serem
desprovidas de sentimentos, deturpam qualquer dispositivo. Por isso, uma lei não
coibirá seu comportamento. Condená-los poderia “livrar” o mundo de doentes
mentais, mas não trará a vítima de volta. Há diversos outros casos ocorridos no
país. Entre crimes de pais que assassinaram seus filhos estão o Caso Isabella
Nardoni e o Caso Bernardo Boldrini. Em ambos, os genitores-assassinos foram
auxiliados pela madrasta do relacionamento “pós-casamento”.
Na noite de sábado, 29 de março de 2008, a menina Isabella de Oliveira
Nardoni, de 5 anos, foi jogada da janela do prédio onde seu pai, Alexandre
Nardoni, morava com a esposa, anna Jatobá, e seus dois filhos. A princípio o
casal alegou que o crime havia sido cometido por um intruso, mas os dois foram
considerados culpados por um júri popular. Suas penas foram 31 e 26 anos,
respectivamente. O delegado Calixto Calil Filho disse que a versão de tentativa
de invasao do apartamento, apresentada por Alexandre Nardoni, não esclarecia o
caso. No dia 31 de março, ocorreu o enterro de Isabella. A incoerência da história
relatada pelo pai e pela madrasta da menina foi evidenciada após os trabalhos
dos peritos. Através de ilustrações realizadas com base na planta do
apartamento, demonstrou-se que a versão do pai era incompatível com os dados
preliminares coletados pela perícia. A polícia havia pedido a prisão temporária do
pai e da madrasta de Isabella. No dia 6 de abril, houve a reconstituição do trajeto
percorrido, de carro, pela família na noite de sábado. De acordo com a
investigação, Isabella teria sido assassinada entre 23h30 e 23h50. Em seguida,
teria a morte de Isabella sido provocada por asfixia ou pela queda? Se o pai
relatou que a deixou dormindo em seu quarto, por que a menina foi jogada do
quarto dos irmãos? Se Isabella foi deixada trancada sozinha no apartamento,
quem teria entrado? A perícia já havia concluído que a tela de proteção,
localizada no quarto de onde a menina havia sido jogada, fora cortada com uma
faca e uma tesoura. Uma reportagem apresentou as três hipóteses de causa
1671
mortis de Isabella Nardoni: estrangulamento, convulsão, ou parada respiratória
provocada pela queda de quase 20 metros de altura. Laudos comprovavam o
envolvimento direto do casal na morte da criança. Houve três laudos, cujo
conteúdo foi apresentado: “o do IML, sobre o corpo de Isabella; um fornecido pela
criminalística, sobre o horário de entrada do carro na garagem do prédio; e um
último sobre cenário do crime, feito pelo Núcleo de Crimes Contra a Pessoa”. Por
meio desses laudos, “foi possível afirmar que Alexandre Nardoni havia jogado a
filha do sexto andar, e que as marcas de esganadura no pescoço da menina eram
compatíveis com as mãos da madrasta”. O casal Nardoni foi a júri popular em 24
de março de 2009. “O julgamento, que começou em 22 de março de 2010, durou
cinco dias. O julgamento terminaria até a meia-noite do dia 26 de março” (In:
Coberturas, caso Isabella Nardoni. Acesso em 12.12.2014, disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-isabellanardoni/o-julgamento.htm).
Por derradeiro, é pertinente trazer o Caso Eloá Cristina, por ser um
exemplo em que a polícia deixou o criminoso livre para prosseguir no crime diante
das câmeras. O Sequestro de Eloá Cristina Pimentel ocorreu de 13 a 17 de
outubro de 2008, na cidade de Santo André. O Caso Eloá Cristina foi o mais longo
sequestro em cárcere privado já registrado pela polícia do estado de São Paulo.
Marcos do Val, um dos maiores especialistas em negociações, brasileiro que
trabalha na Swat (Grupo de elite da polícia americana preparado para enfrentar
situações de emergência), foi entrevistado no programa Fantástico. Ao assistir os
principais momentos do cerco em Santo André, apontou falhas na operação.
“Entre elas, o fato de a polícia não ter atirado no seqüestrador Lindemberg Alves,
de 22 anos, e de ter permitido a volta da estudante Nayara Silva, de 15, ao
cativeiro” no dia 16. Critica o policial que “Isso é o maior absurdo dos absurdos.
Em nenhum lugar do mundo já existiu uma situação dessas” (Swat teria atirado
em
seqüestrador,
diz
especialista
em
negociações.
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html).
In:
Outra
oportunidade perdida pela polícia de terminar o sequestro no dia 15 foi quando
Eloá, 15 anos, “lançou uma corda improvisada e recolheu o almoço. Seu corpo
ficou inclinado para fora da janela e Lindemberg apareceu atrás da ex-namorada”.
1672
Comenta o especialista que a SWAT usaria tal momento como vantagem para
executar o sequestrador. “Permitir que a negociação se arrastasse por cinco dias
foi o primeiro erro: em uma situação passional como essa, quanto mais tempo
leva, mais inconstante a pessoa fica.” A Swat, diz Val, “estabelece o prazo
máximo de 24 horas para libertar o refém, mas nunca foi preciso esperar tanto. A
negociação mais longa que a Swat de Dallas fez até hoje durou nove horas. A
partir daí é invasão.” Aproveitar a madrugada sem deixar amanhecer o dia.
Segundo ele, outra tática seria a triangulação, em que dois policiais estariam de
tocaia em escadas laterais à janela, “fora do ângulo de visão de Lindemberg. Um
terceiro policial ficaria na janela do andar de cima, pronto para descer de rapel”.
No ataque, “um dos policiais na escada agarraria Eloá e tentaria proteger a
cabeça dela. O outro daria cobertura enquanto o terceiro viria de cima e daria um
tiro no seqüestrador. Tudo isso ao mesmo tempo.” Diversas outras falhas foram
apontadas pelo especialista, “erros que conduziram a um desfecho trágico”. Por
exemplo, os policiais usaram excesso de explosivo na invasão; sem prever a
“possibilidade de haver obstáculos atrás da porta”, o que atrasou a entrada da
equipe.
Desse modo, disse Val, houve tempo de o seqüestrador pegar a arma e
disparar para onde quisesse. Em vez disso, os policiais deviam ter entrado
“simultaneamente pela frente, janela e fundos, com o uso de bombas de luz e
som, que deixariam o seqüestrador desnorteado”. Assim, o “policial que estava
posicionado na escada, além de atrasado – a explosão já havia acontecido –
demorou muito para subir. Ademais, as imagens revelam que a polícia “teve
dificuldade para conter Lindemberg. A Swat utiliza uma técnica que leva menos
de
um
segundo
para
imobilizar
o
agressor.”
(In:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html). Inclusive no
socorro às vítimas: “o médico, sozinho, lutou para atravessar o tumulto, enquanto
o caminho deveria estar livre para a equipe de paramédicos, com macas. Eloá foi
carregada no colo por um policial, um procedimento incorreto; a cabeça ferida da
jovem esbarrou no corpo do médico” (Swat teria atirado em seqüestrador, diz
especialista em negociações. In:
1673
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html). Tal exemplo
mostra profissionais despreparados diante de agressores patológicos, agindo
como amadores, o que remete ao problema educacional do Brasil. Não há
especialização nesse assunto. Além disso, a polícia é carente de treinamento e
de recursos.
– caso eloá “passional” um caso passional não dura + q poucas horas.
Em relação a este crime, aparentemente passional, recorre-se a Silva
(2010, P.95) para apontar que os psicopatas apresentam níveis reduzidos de
autocontrole, tidos como “cabeça-quente” ou “pavio-curto”, tendem a responder às
frustrações e às críticas com violência súbita, ameaças e desaforos. Ofendem-se
com facilidade, tornando-se violentos por motivos triviais e banais. Embora haja
intensidade na explosão de agressividade e violência, após esse momento “os
psicopatas voltam a se comportar como se nada tivesse ocorrido.” Ao “perder o
controle” eles sabem exatamente o limite pretendido de suas ações, a fim de
magoar, amedrontar ou machucar alguém. Descrevem “seus episódios agressivos
como uma resposta natural à provocação a que foi submetido.” A partir disso,
colocam-se de vítima da situação.
O Instituto Geral de Perícias (IGP) apontou nos laudos que falhas na coleta
e armazenamento do material da cena do crime do Caso Bernardo. As análises
que poderiam revelar como o menino foi morto ficaram prejudicadas. O material
apreendido deveria ter sido enviado de imediato para análise, e não dias depois
(Zero hora, 2014). Sindicância apurou que houve falha da guarnição por não ter
sido feito o Boletim de Atendimento. “A Brigada Militar de Três Passos abriu
Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o policial militar que deixou de
registrar ocorrência da noite em que esteve na casa do médico Leandro Boldrini,
em agosto de 2013, para apurar uma denúncia de gritos na região”. Trata-se de
atendimento ocorrido “no dia em que o médico teve uma briga com o filho
Bernardo Uglione Boldrini — registrada em vídeo com os gritos de socorro do
menino”
(In:
IRION,
Adriana.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/bm-abre-processo-contrapolicial-que-esteve-na-casa-de-bernardo-em-noite-de-briga-4639614.html). Notase que as vítimas ficam à mercê da (in)segurança pública.
1674
É de se perguntar, então, por que os agentes públicos esperaram até ser
tarde demais, quando o crime já ocorreu? No Caso Bernardo, foram feitas
diversas tentativas de pedido de ajuda: a criança procurou ajuda externa, mas
ninguém acreditou. Por quê? Cabe aqui também uma reflexão sobre todo o
sistema judiciário. Deveria o Ministério Público ter investigado, na época, as
queixas da vítima; mas não agiu, enquanto o caso se tornava mais grave, até o
crime ser destinado ao júri – quando o menino já não vive.
4 CRÍTICAS AO SISTEMA JUDICIÁRIO: OS AGENTES PÚBLICOS, O ECA E
O CC
Houve ingresso em juízo por parte da vítima, conforme estabelecido no
ECA, “XII – oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em
separado ou na companhia dos pais, [...] têm direito a ser ouvidos [...] sendo sua
opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente [...].”
Porém, uma das características da psicopatia é saber mentir. “Não economizam
charme nem recursos que os tornem mais atraentes no exercício de suas
mentiras. Para algumas pessoas, eles se mostram suaves e sutis, tal como galãs
de TV e de cinema.” (SILVA, 2010, p.76) Segundo notícias, o pai o convenceu
que ia trata-lo bem e o menino aceitou voltar a morar com ele. Evidencia-se que o
magistrado laborou em equívoco, ao decidir que o menor continuasse com seus
familiares-algozes, que só o viam e queriam como fonte de renda. No entanto,
analisando-se sua decisão, pode-se encontrar explicações embasadas na
legislação do motivo pelo qual, sendo puramente positivista, seria possível atuar
com esse posicionamento amparado por disposição legal. De acordo com o artigo
1630, do Código Civil, “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto
menores”. O artigo seguinte aborda que “durante o casamento e a união estável,
compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro
exercerá com exclusividade”. O artigo 1632, CC diz que “a separação judicial, o
divórcio [...] não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito,
que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”. Percebe-se
claramente que a criança é referida no dispositivo como algo pertencente ao
1675
adulto, seu genitor. Tal dispositivo parece contrariar o artigo 15 do ECA, que
dispõe que a “criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à
dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como
sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”.
Ou seja, em seu conteúdo denota dignidade da criança como pessoa, e direitos
constitucionais garantidos. Por outro lado, o art.1635, do CC prevê a extinção do
poder familiar, no inciso V, “por decisão judicial, na forma do artigo 1638”. Do
mesmo modo, o art.1637, do referido código estabelece que houver abuso de
autoridade por parte do pai ou da mãe, “faltando aos deveres a eles inerentes [...],
cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida
que lhe pareça reclamada pela segurança do menor [...], até suspendendo o
poder familiar, quando convenha.” Nesse sentido, o artigo 1638, CC. é explícito:
perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho
II - deixar o filho em abandono
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
Era sabido na cidade que o menino Bernardo ficava do lado de fora de
casa, sem poder entrar, como noticiado. Ainda que não houvesse conhecimento
dos abusos, era evidente, pelas olheiras do menino, que este sofria maus-tratos.
O artigo 16 do ECA explicita que “o direito à liberdade compreende os seguintes
aspectos: [...] VII - buscar refúgio, auxílio e orientação”. Um ponto-chave da
questão, que seria uma possibilidade de o juiz mantê-lo com o pai, está no livro II,
na parte especial do capítulo 3, que trata das medidas específicas de proteção:
X – prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da
criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os
mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto
não for possível, que promovam a sua integração em família substituta.
Em contrapartida, ironicamente, alguns advogados lucraram uma causa tão
desafiadora. Um pequenino
foi encontrado morto e isso é real, mas defesas
estrategistas criam fantasmas, para livrar seus clientes, seguindo o raciocínio de
que basta plantar uma dúvida e pronto: in dubio pro reo. Com criatividade, se usa
a legislação como mero artefato, podendo-se distorcer o significado de
depoimentos, documentos, etc., para encaixar no processo, e inviabilizá-lo.
Aqueles que defendem seus clientes nesses termos – sabendo de sua culpa e,
além de garantir seus direitos, criam tese absolvitória – soam iguais a eles, por
1676
sua lógica e comportamento. Colocam-se em posição de autoridade, como quem
possui um segredo importante, e tem poder; mas, na verdade, o “segredo” – que
é a lei – não foi criado para satisfazer as evidenciadas paixões de ganhar o “jogo”
a qualquer custo. Essa falta de limites na dinâmica processual penal causa
impacto
aos
desconhecedores
do
Direito,
disciplina
cheia
de
brechas
interpretativas.
Em seguida, uma lei sobre palmadas? A violência ocorrida era moral
(FREITAS, 2014). Houve tortura psicológica, como revelam os vídeos obtidos do
celular do acusado, divulgados pela mídia. O vídeo foi obtido em uma perícia no
telefone celular de Leandro Boldrini, pai do menino Bernardo. O material foi anexado
ao processo e será usado como prova pela acusação (In: G1, Defesa da madrasta de
Bernardo pede veto à imprensa em audiências, 2014). Seria necessária uma lei para que
as pessoas, ou pelo menos os agentes públicos, ouçam os gritos por socorro das
vítimas? Já havia previsão no ECA, em seu art.5º: “nenhuma criança ou
adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer
atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”
A respeito dos direitos fundamentais, no ECA em seu capítulo I (Do direito
à vida e à saúde), título II, art.7º dispõe que a criança e o adolescente “têm direito
a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas
que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em
condições dignas de existência.” Trata-se, na realidade, não apenas de falta de
cidadania e de solidariedade, que a burocracia estabelecida em lei não pode
amenizar, mas também de uma complexidade social. As pessoas vêem, e fingem
que não vêem; ouvem, como se não fosse nada, em vez de comunicar à polícia
ou ao Conselho Tutelar. Até porque, no caso em questão, foi uma assistente
social – amiga da madrasta – que ajudou a matá-lo. Nesse contexto, é irônico o
artigo 13 do ECA no sentido da responsabilidade delegada ao Conselho Tutelar:
“os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou
adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da
respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.” Com a nova
redação, pela Lei Nº 13.010, de 26 de junho de 2014 (a denominada Lei Menino
1677
Bernardo), este artigo sofreu a seguinte alteração: “Os casos de suspeita ou
confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos
contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho
Tutelar da respectiva localidade [...].”
Percebe-se contradições legislativas. Divergem o Código Civil e o Estatuto
da Criança e do Adolescente, que busca uma interpretação e direitos
constitucionais,
preocupando-se
com
o
bem-estar
dos
menores.
Em
contrapartida, há dificuldade de efetivação, visto que o próprio dispositivo soa
utópico em sua concretização.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas as mortes antes referidas, poderiam ter sido evitadas se os órgãos
competentes tivessem agido de modo mais atento, e portanto responsável. Em
contrapartida, defesas estrategistas criam fantasmas para livrar seus clientes
seguindo o raciocínio de que basta plantar uma dúvida e pronto: in dubio pro reo.
Como um “segredo”, uma propriedade exclusiva de um grupo de “iniciados”, a lei
penal e processual penal é utilizada apenas para ganhar o “jogo” a qualquer custo
– e impactar aos leigos, os desconhecedores do Direito. De que serve, no
presente momento criar uma lei, senão de hipocrisia para simular diligência?
Entretanto, o cadáver da vítima não mente. Torna-se mais difícil solucionar um
caso ou evitar que um crime maior aconteça, quando falham as pessoas que
estão por trás de cargos públicos, de fardas e uniformes. Do mesmo modo, não
se espera que pais assassinem seus filhos – tal ato é inimaginável – não se está
preparado para lidar com essas situações, muitas vezes por incredulidade, uma
vez que o elemento surpresa dificulta a iniciativa, e é parte do arsenal de truques
de muitos sociopatas. É custoso, e por isso, resiste-se a admitir que não há
limites para a perversidade de pessoas portadoras desse tipo de patologia mental.
Por outro lado, é desconcertante perceber que por trás de órgãos públicos, não
há necessariamente cidadãos empenhados em fazer bem o seu trabalho, mas é
também possível que haja pessoas passivas, desinteressadas, ignóbeis.
Precisamos ficar inconformados, urge lutar pela vida: além da nossa, das pessoas
1678
ao redor, por uma questão de humanidade. A chamada “Lei Menino Bernardo”
resta apenas como homenagem a uma mais uma vítima de assassinato pelo
próprio genitor; a seguir como está, não solucionará nada nem impedirá que
novos casos aconteçam diariamente: crianças sendo mortas – Isabellas e
Bernardos, imperceptíveis. As pessoas, em seu cotidiano, estão distraídas demais
vivendo suas vidas enquanto ocorrem crimes hediondos a todo momento. O
Vídeo oficial da Copa do Mundo de 2014 com o clipe da Shakira e sua música
Dare (La La La) espantou e incomodou algumas pessoas, por parecer africano e
não brasileiro: "Estamos no Brasil, aqui não tem leões, tigres de bengala nem
animais selvagens à solta" – soavam os comentários. Poderíamos rever a
possibilidade de, ao menos metaforicamente, haver sim, muitos selvagens entre
nós.
REFERÊNCIAS
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Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF,
11 jan. 2002. Disponível em:
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29.03.2015.
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Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
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do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jul. 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 30 de
dezembro de 2014.
BRASIL. Lei 13.010, de 26 de junho de 2014. Dispõe sobre a Lei Menino
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BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 7672/2010. Disponível em:
<http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=483
933>
1679
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jurídicos. Lei 13.010/2014. Acesso em 13.12.2014, disponível em:
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em 12.12.2014, disponível em:
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1681
O CONTROLE DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL
THE CONTROLLING POWER OF ADVERTISEMENT IN THE TOBACCO
INDUSTRY IN BRAZIL
Sergio Gonçalves Macedo Jr.77
Maria Cláudia Mércio Cachapuz78
RESUMO: Na sociedade contemporânea, a publicidade cumpre uma importante
função social e econômica na sociedade. É imprescindível ao funcionamento do
mercado de consumo; porém pode ser, ao mesmo tempo, veículo de ilicitudes
que vêm a lesar os consumidores. Ao procurar promover a aquisição de um
produto ou a utilização de um serviço, pode incorrer em enganosidades e abusos,
acarretando diferentes tipos de prejuízos ao seu público-alvo. Pode ser, assim,
objeto de controle em três esferas distintas: judiciária, administrativa e privada. No
caso da publicidade do tabaco no Brasil, o controle na esfera privada, durante
muitos anos, mostrou-se insuficiente no mote de minorar o seu potencial lesivo
aos consumidores. Não obstante todos os malefícios causados pelo tabagismo, a
autorregulamentação publicitária no setor de produtos fumígenos não foi capaz
de promover o controle adequado de suas peças de marketing, de tal forma que
apenas com o incremento regulatório proporcionado pela intervenção do controle
legal, já nas últimas décadas, é que os efeitos perniciosos do tabagismo
começaram a ser mitigados no país, com a significativa redução do número de
tabagistas.
PALAVRAS-CHAVE: publicidade; controle; consumo; tabaco.
ABSTRACT: In contemporary society, advertising plays an important role in social
and economic society. It is essential to the functioning of the consumer market; but
can be, at the same time, vehicle of illegal acts that come to harm consumers.
Advertising, by seeking to promote the purchase of a product or the use of a
service, may incur into misleadings and abuses, causing different types of damage
to its target audience. It may, therefore, be subject to control in three distinct
areas: judicial, administrative and private. In the case of tobacco advertising in
Brazil, the control in the private sphere, for many years, has been insufficient on
mitigating the potential to harm consumers. Despite all the harm caused by
smoking, advertising self-regulation in the tobacco products sector was unable to
77
78
Mestrando do Programa de Pós-Graduação da UNILASALLE
Doutora em Direito Civil pela UFRGS. Professora do Mestrado em Direito e Sociedade do
Centro Universitário La Salle - UNILASALLE. Juíza de Direito.
1682
promote the proper control of its marketing pieces, such that only the regulatory
increment provided by the intervention of legal control, as in the past decades, is
that the harmful effects of smoking began to be mitigated in the country, with a
significant reduction in the number of smokers.
KEYWORDS: advertising; control; consumption; tobacco.
1 INTRODUÇÃO
Com o intuito de investigar a efetividade dos sistemas de controle da
publicidade do tabaco no Brasil, busca-se identificar, neste estudo, a base
conceitual desta forma de comunicação e suas formas ilícitas de manifestação,
para, após, analisar a relação existente entre a produção e consumo de produtos
fumígenos no país e o incremento regulatório do controle de sua publicidade.
Forma de comunicação que tem como objetivo promover a aquisição de
um produto ou a utilização de um serviço, a publicidade constitui um dos temas
mais complexos do Direito do Consumidor. É um fato jurídico em constante
transformação que, em suas múltiplas facetas, desafia o legislador, o aplicador do
Direito e a doutrina. Está presente no dia a dia de todos os indivíduos, que são
expostos, a despeito de sua vontade, a diferentes espécies de apelos de
marketing, como o anúncio publicitário, o teaser, o puffery e o merchandising. E,
se por um lado, é imprescindível ao funcionamento do mercado de consumo, por
outro, pode ser veículo de ilicitudes que, com frequência, lesam os consumidores.
O fato da eficiência da publicidade depender do seu poder de persuasão faz com
que, muitas vezes, as agências abram mão de mensagens enganosas ou apelos
abusivos.
Vivemos em uma sociedade marcada pelo consumismo79, fruto de
inúmeras influências do meio no qual os indivíduos estão inseridos, que as
79
A sociedade de consumo é fruto das modificações econômicas, sociais e culturais que
transformaram a sociedade ocidental pré-industrial desde o século XIX e abriga um processo
denominado de “espetacularização do consumo”. Guy Debord (1997) estudou o caráter
espetacular do capitalismo, mostrando estar ele ligado à ótica da acumulação do capital. Afirma
que o espetáculo une o lado da produção ao lado do consumo, transformando indivíduos em
consumidores plenos; que ele é produzido pela indústria cultural e atinge os indivíduos em
praticamente todos os atos de sua vida cotidiana, sendo quase que onipresente.
1683
incentivam a uma aquisição contínua de bens e serviços, como forma de
sustentar a produção e o crescimento econômico. E a maior parte destas
influências decorre das técnicas de marketing. Assim, plenamente integrada ao
modo de produção capitalista e inegavelmente necessária à economia de
mercado, a publicidade adquire cada vez mais espaço e influência na
contemporaneidade, quando os meios de comunicação têm se diversificado e a
circulação da informação tem se intensificado em proporções jamais vistas. Nesse
contexto, os efeitos da publicidade sobre a sociedade também são majorados, de
forma que eventuais ilicitudes passam a ter um potencial lesivo muito mais
significativo.
A publicidade é o alicerce que serviu de base para a constituição deste tipo
de sociedade e tem inegável influência no incentivo e, até mesmo, na formação
de gostos e costumes, podendo, inclusive, chegar a potencializar hábitos nocivos
como o do tabagismo na sociedade em que está inserida; de tal forma que,
mesmo com todo o potencial maléfico das inúmeras substâncias agressivas
presentes nos produtos fumígenos, a publicidade pode alcançar sucesso no mote
de persuadir pessoas a consumirem-nos e, além de consumir, a convencer outras
pessoas a fazer o mesmo, chegando, inclusive, ao ponto de acreditar que o
costume de fumar poderia vir a ser elegante e charmoso.
Assim, no caso do tabaco no Brasil, a publicidade foi protagonista no
fenômeno de disseminação do hábito de fumar e, mais, na sua glamorização, em
que pese todos os conhecidos, comprovados e contundentes malefícios que o
fumo causa à saúde. Ela foi definitiva na “criação” de um estilo de vida e na
formação de uma imagem que associava o tabagismo ao sucesso e ao bemestar. Conseguiu, desta forma, a “façanha” de auxiliar significativamente o
incremento do vício do tabagismo na sociedade, mesmo entre aqueles que nunca
haviam tido contato direto com a nicotina e o alcatrão, substâncias que, de outra
forma, dificilmente teriam o poder, por si só, de despertar a atenção e a
curiosidade entre tantas pessoas que ainda não as tivessem sequer
experimentado.
1684
E, diante das, então, implicações perniciosas que este tipo de publicidade
pôde trazer à sociedade brasileira, que mecanismos de controle específicos
estavam disponíveis e/ou foram acionados, com maior ou menor grau de
eficiência, de forma a, pelo menos, abrandar seus efeitos?
Ante as garantias constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência
(art. 170 CF/88), bem como das disposições referentes às possíveis restrições,
genericamente, à publicidade de produtos que possam ser nocivos à saúde e,
especificamente, à publicidade do tabaco (art. 220 CF/88), como se processou o
controle da publicidade dos produtos fumígenos no mote da proteção do
consumidor no Brasil?
2 PUBLICIDADE
A palavra publicidade deriva de “público”, do latim publicus, e expressa o
ato de tornar público, vulgarizar, divulgar. Em um primeiro momento, este termo
foi empregado na sua acepção jurídica, adquirindo conotação comercial apenas
no início do século XIX, quando a palavra “propaganda”, associada aos abusos e
métodos de divulgação das ideias nazi-fascistas, tornou-se indesejável.
Segundo Vidal Serrano Nunes Júnior (2001, p. 16), publicidade é “o ato de
comunicação, de índole coletiva, patrocinado por ente público ou privado, com ou
sem personalidade, no âmago de uma atividade econômica, com a finalidade de
promover, direta ou indiretamente, o consumo de produtos e serviços”;
propaganda, por outro lado, é “toda forma de comunicação, voltada a público
determinado ou indeterminado, que, empreendida por pessoa física ou jurídica,
pública ou privada, tenha por finalidade a propagação de ideias relacionadas à
filosofia, à política, à economia, à ciência, à religião, à arte ou à sociedade”.
Valéria Chaise (2001, p. 8) conceitua publicidade como “a forma ou meio
de comunicação com o público que tem como objetivo promover a aquisição de
um produto ou a utilização de um serviço”. E Cláudia Lima Marques (1999, p. 345)
a define como “toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou
indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou
serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado”.
1685
Pode ser institucional ou promocional, dependendo do objetivo que
persegue. A institucional é aquela que pretende institucionalizar a marca,
anunciando a própria empresa, e não um produto. A promocional, por sua vez,
objetiva promover a venda de produtos e serviços. Além disso, existem variadas
técnicas publicitárias, entre as quais se pode citar o teaser, o puffing, a
publicidade redacional, a propaganda subliminar, a publicidade comparativa e o
merchandising.
2.1 A Publicidade na Constituição Federal
O art. 5º da nossa Constituição Federal determina ao Estado, em seu inc.
XXXII, a promoção, na forma da lei, da defesa do consumidor. A norma se insere
no quadro dos direitos e garantias fundamentais outorgados pela Constituição e,
portanto, teve vigência imediata. Na mesma esteira, o seu art. 170, ao definir os
fundamentos da ordem econômica e lhe indicar a finalidade, destaca, como um de
seus princípios essenciais, a defesa do consumidor.
Segundo Walter Ceneviva (1991), o art. 170 reforça tal finalidade ao
reiterar o mencionado no art. 5º, mas assegura a todos, simultaneamente, o livre
exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de
órgãos públicos, afirmando, outrossim, a liberdade da concorrência, que se
pressupõe leal.
O art. 48 do Ato das Disposições Transitórias determinou o prazo de 120
dias para que o Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do
Consumidor. O prazo foi, no entanto, desrespeitado pelos próprios parlamentares
que o determinaram, mas serviu como indício das preocupações que, em certo
momento da história nacional (1988), privilegiaram as relações de consumo de
maneira a impedir abusos que, então, nelas despontavam.
Nas palavras de Ceneviva:
Com o desenvolvimento da sociedade industrial, ficou evidente que o
consumidor, tomado individualmente, não tinha condição qualificada para
defender seus direitos contra eventuais prejuízos advindos do consumo
ante fornecedores ou mais poderosos ou providos de meios e
conhecimentos
técnicos
cujo
enfrentamento
se
mostrava
excessivamente oneroso. Constatado que havia interesses comuns no
1686
universo dos consumidores, compreendeu-se que eram defensáveis
coletivamente, até mesmo quando não considerados um a um. Sob
inspiração da doutrina estrangeira mais avançada, colheu-se, na doutrina
pátria a noção dos interesses difusos – de amplo espectro –
compreendendo bens de vida juridicamente relevantes e, por isso,
dignos de proteção do Direito, embora pertencentes a pessoas sem
vínculo jurídico entre elas e até sem conhecimento obrigatório das
recíprocas necessidades. A Constituição de 1988 incorporou os
interesses coletivos à sua normatividade, ora lhes dando essa
denominação, ora os chamando de difusos. (CENEVIVA, 1991, p. 83).
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi finalmente legislado no ano
de 1990, por meio da Lei n.º 8.078, arraigado a princípios constitucionais e, mais
especificamente, aos do Direito do Consumidor, incrementando o ordenamento
jurídico pátrio, regulando a publicidade e balizando a caracterização da
publicidade disfarçada (art. 36), bem como das ilicitudes de suas manifestações
(art. 37) – enganosidade e abusividade - de forma a viabilizar o seu controle legal,
que veio a se somar ao sistema autorregulamentar. Assim, o legislador brasileiro,
através do CDC, rechaçou a publicidade enganosa ou abusiva em todos os níveis
de tutela, ensejando a aplicação de sanções administrativas, dentre as quais a
contrapropaganda, propiciando a retirada do ar de publicidades viciadas, com
eventuais ressarcimentos por danos causados aos consumidores, vinculando o
fornecedor à oferta publicitária, criminalizando determinadas condutas e criando
mecanismos processuais para otimizar o acesso à justiça.
Nas palavras de Walter Ceneviva (1991, p. 86), “vieram a reboque da falta
de sintonia entre o direito escrito e os fatos sociais, pois era muito anterior a
necessidade provocada pelas transformações sócio-econômicas, de suprir as
deficiências do direito privado para garantir a massa crescente de novos conflitos
causada pelo consumismo”.
Quanto à livre criação publicitária, a Constituição protege, como direitos
fundamentais, em seu art. 5º, a manifestação do pensamento e a liberdade de
expressão. Pelo inciso IX do art. 5º, o constituinte definiu em termos amplos os
contornos do direito à liberdade de expressão, que já fora previsto no seu inciso
IV.
Conforme Gilmar Mendes (MENDES, COELHO e BRANCO, 2007, p. 351),
“o âmbito de proteção da liberdade de expressão é amplo, abarcando todos os
1687
atos não violentos que tenham como objetivo transmitir mensagens, bem como a
faculdade de não se manifestar”.
Para Daniel Sarmento (2014), existem diferentes razões de ordem moral e
pragmática que dão esteio à proteção da liberdade de expressão. Trata-se, em
primeiro lugar, de uma garantia essencial ao livre desenvolvimento da
personalidade e à dignidade da pessoa humana: “Com efeito, a possibilidade de
cada indivíduo interagir com o seu semelhante tanto para expressar as próprias
ideias e sentimentos como para ouvir aquelas expostas pelos outros, é vital para
a realização existencial” (SARMENTO, 2014, p. 255). Outra razão de grande
relevância é a garantia da democracia, que pressupõe um espaço público aberto,
plural e dinâmico, no qual haja o livre confronto de ideias, o que se torna possível
apenas sob a condição da garantia da liberdade de expressão.
A publicidade também é protegida pela liberdade de expressão. Com
efeito, há quem defenda o contrário, por entender que a publicidade não está
protegida pela liberdade de expressão pelo fato de que ela não objetiva a
discussão de ideias, mas sim a obtenção de lucro por parte de agente
econômicos80. Levanta-se, ainda, a hipótese de que a publicidade não gozaria
dessa proteção porque se volta, precipuamente, para a criação artificial de
desejos e necessidades contingentes nos consumidores, nada tendo a ver com o
nobre propósito da liberdade de expressão, de tornar possível o debate de temas
de interesse público.
Contudo, predomina o entendimento de que tal proteção se estende à
publicidade, mesmo que ela não esteja no epicentro desta direito fundamental.
Nesse sentido, Daniel Sarmento, ao colaborar em obra Coordenada por José J.
G. Canotilho sobre a Constituição Federal (CANOTILHO, 2014), comenta:
[...] é importante ressaltar que, numa sociedade capitalista, a busca de
ganhos econômicos está também presente em diversas outras
atividades comunicativas desenvolvidas por particulares, cuja cobertura
pela liberdade de expressão ninguém questiona. Ademais o domínio da
liberdade de expressão não se circunscreve aos temas considerados de
interesse público, abrangendo todos os subsistemas sociais, inclusive o
econômico. E não é uma exclusividade do discurso publicitário a
tentativa de influenciar as atitudes e condutas humanas, pois esta é uma
característica presente, em maior ou menor escala, na comunicação que
80
Nesse sentido, R. A. Shiner, da Universidade de Oxford (SHINER apud SARMENTO, 2014, p.
274).
1688
ocorre nos mais variados domínios, como o político, religioso, artístico,
etc.. Não bastasse, a publicidade comercial, quando despida de vícios,
desempenha um papel importante que tem nexo íntimo com os valores
da liberdade de expressão, que é municiar o indivíduo com informações
para que ele possa, a partir de suas próprias valorações, realizar
escolhas autônomas sobre o que é bom para o seu próprio consumo.
(SARMENTO, 2014, p. 274).
De fato, a publicidade não se situa no epicentro do direito fundamental à
liberdade de expressão, como ocorre, por exemplo, com os discursos político,
artístico, religioso ou científico. Está, é verdade, em uma zona mais afastada, na
qual a proteção constitucional é menos intensa (SARMENTO, 2014). E é por este
motivo que podem ser aceitas restrições mais contundentes à liberdade de
expressão nesta seara, como as voltadas à proteção ao consumidor (arts. 5º,
XXXII e 170, V, da CF). Entre tais restrições, sobressaem as insculpidas no CDC,
já referidas acima. Há restrições, inclusive, de imposição constitucional, que,
referentes à comunicação social81, estão prescritas nos parágrafos 3º, inc. II, e 4º
do artigo 220 da Constituição, em nome da tutela de bens jurídicos relevantes,
como a saúde, o meio ambiente e a proteção à criança e ao adolescente. Neste
contexto, Daniel Sarmento (2014, p. 275) salienta, porém, que “é sempre
necessário analisar a validade de cada medida restritiva, o que envolve tanto o
respeito à reserva da lei formal como o acatamento do princípio da
proporcionalidade”.
2.2 Publicidade Ilícita
Consoante o regime jurídico estabelecido pelo CDC, toda publicidade que
violar os deveres jurídicos nele definidos, na realização, produção e divulgação de
Na lição de José Afonso da Silva, comunicação Social é a denominação mais apropriada da
81
chamada “comunicação de massa”, mas o sentido permanece como o de comunicação
destinada ao público em geral, transmitida por processo ou veículo, dito meio de comunicação
social. O art. 399 do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos bem definia seu conceito e
natureza, ao estatuir que “o sistema de comunicação social compreende a imprensa, o rádio e a
televisão e será regulado por lei, atendendo à sua função social e ao respeito à verdade, à livre
circulação e à difusão universal da informação, à compreensão mútua entre os indivíduos e aos
fundamentos éticos da sociedade”. (SILVA, 2009, p. 824).
1689
mensagens publicitárias, será ilícita82. Existem duas espécies de publicidade
ilícita: a publicidade enganosa e a publicidade abusiva, referidas no CDC, no
caput do seu art. 3783. A definição de consumidor equiparado, estabelecida no art.
29 e no parágrafo único do art. 2º deste Código, calou fundo na jurisprudência
brasileira em matéria de publicidade ilícita conforme salienta Cláudia Lima
Marques:
Em um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais, a
jurisprudência brasileira foi exemplar ao estabelecer que a publicidade
abusiva e enganosa atinja a todos, mesmo aqueles excluídos do
consumo, àqueles aos quais a publicidade não se dirige, pois não
possuem as condições para consumir, mas que através das televisões,
placares e outdoors deste imenso país são atingidos, expostos a estas
práticas comerciais abusivas. Em uma belíssima visão de plenitude do
consumidor equiparado como sujeito de direitos (em potencial), como
pessoa, mais do que como homo economicus ou ser razoável,
estabeleceu uma visão de consumidor digno. (MARQUES, 1999, p. 675).
Os contornos da publicidade ilícita, ao serem definidos no CDC, são,
também, frutos de um novo paradigma objetivo de boa-fé, confiança e
transparência, que passou a dominar o regime da publicidade no Brasil.
2.2.1 Publicidade Enganosa
Publicidade enganosa é aquela que leva ou induz o consumidor a erro na
aquisição do bem ou serviço. Para ser determinada como enganosa, impõe-se a
aferição
da
intensidade
enganosa
inserida
nela.
Ou
seja,
envolve,
necessariamente, para o intérprete, a verificação do grau de engano nela contido
(CENEVIVA, 1991, p. 116).
Segundo Cláudia Lima Marques (1999, p. 676), “a característica principal
da publicidade enganosa, segundo o CDC, é a de ser suscetível de induzir ao erro
o consumidor, mesmo que seja através de suas ‘omissões’. A interpretação dessa
norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o ‘erro’ é a falsa noção da
realidade, falsa noção esta potencial, formada na mente do consumidor por ação
82
Embora cumpra uma importante função social e econômica na sociedade, a publicidade deve
sempre pautar-se pelos princípios básicos que guiam as relações entre fornecedores e
consumidores, especialmente o da boa-fé (MARQUES, 1999).
83
Art. 37, CDC: É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
1690
da publicidade”. Nesse sentido, o CDC proíbe a publicidade enganosa, em seu
art. 37.
Walter Ceneviva (1991, p. 116) explica que “a enganosidade se contém no
falso da mensagem, inteiro ou parcial”. Segundo ele, “o elemento objetivo do
engano estará presente quando a publicidade se mostrar capaz de induzir em
erro o consumidor, pessoa física ou jurídica, a respeito da natureza,
características, qualidade, quantidade, propriedades, origem e preço do produto e
do serviço” (CENEVIVA, 1991, p. 116). A proibição da publicidade enganosa vem
ao encontro do objetivo do CDC de oferecer garantias ao consumidor, no sentido
de que ele possa fazer escolhas livres e racionais. Existem dois tipos básicos de
publicidade enganosa: por comissão e por omissão.
Na publicidade enganosa por comissão, o fornecedor afirma algo capaz de
induzir o consumidor em erro, ou seja, diz algo que não é. Já na publicidade
enganosa por omissão, o anunciante deixa de afirmar algo relevante e que, por
isso mesmo, induz o consumidor em erro, isto é, deixa de dizer algo que é
(BENJAMIN, 2001, p. 289). No ensinamento do mestre Antônio Herman
BenjamIn:
Na caracterização da publicidade enganosa não se exige a intenção de
enganar por parte do anunciante. É irrelevante, pois, sua boa ou má-fé.
A intenção (dolo) e a prudência (culpa) só ganham destaque no
tratamento penal do fenômeno. Logo, sempre que o anúncio for capaz
de induzir o consumidor em erro – mesmo que tal não tenha sido querido
pelo anunciante -, caracterizada está a publicidade enganosa.
Assim ocorre porque o que se busca é a proteção do consumidor e não a
repressão do comportamento enganoso do fornecedor. E, para fins
daquela, o que importa é uma análise do anúncio em si mesmo,
objetivamente considerado. Já para esta, diversamente, a intenção ou
culpa do agente é sopesada.
Tudo o que se exige é prova de que o anúncio possui a tendência ou
capacidade para enganar, mesmo que seja uma minoria significante de
consumidores. A essência do desvio (a enganosidade) não é a má-fé, a
negligência, ou mesmo o descumprimento de um dever contratual ou
paracontratual. Em suma: uma prática é enganosa mesmo quando
inexiste qualquer intenção de enganar. Pelo mesmo raciocínio, não elide
a enganosidade os esforços efetuados pelo anunciante no sentido de
preveni-la. Finalmente, o fato de ser uma determinada prática enganosa
corrente no mercado, não dá salvo-conduto aos seus adeptos para
utilizá-la em detrimento dos consumidores. (BENJAMIN, 2001, p.
290).
Uma mensagem publicitária pode ser enganosa não apenas quando diz
expressamente algo capaz de induzir em erro, mas também quando, mesmo não
1691
o dizendo claramente, a informação realmente passada difere do significado real
da mensagem. Por outro lado, como referido, a publicidade pode ser enganosa
por omissão. Se ela pode ser enganosa comissivamente em virtude “do que diz”,
pode também enganar por omissão em função “do que não diz”, pela omissão de
dados essenciais.
Importante ressaltar que a proteção do consumidor contra publicidade
enganosa leva em conta somente sua capacidade de indução em erro. A
enganosidade é aferida, pois, em abstrato. Ou seja, não se exige que o
consumidor tenha, de fato e concretamente, sido enganado. Nas palavras de
Antônio Herman Benjamin (2001, p. 291), sobre a publicidade enganosa, “o que
se busca é sua ‘capacidade de induzir ao erro o consumidor’, não sendo, por
conseguinte, exigível qualquer prejuízo individual. O difuso – pela simples
utilização da publicidade enganosa -, presumido jure et de jure, já é suficiente”.
Paulo Jorge Scartezzini Guimarães (2001, p. 117) aponta que o legislador
sancionou duas espécies de publicidade ilícita dentro do gênero “enganosa”.
Existe a publicidade falsa, que é aquela identificada pela não-veracidade da
mensagem comunicada; e a enganosa em sentido estrito, que consiste naquela
que, de qualquer modo, mesmo por omissão, tenha potencial de induzir o
consumidor em erro84.
A publicidade falsa também não se confunde com a fraudulenta: na
primeira, há descrição errada do objeto ou omissão de dados relevantes, com
culpa; na segunda, a ação antijurídica tem o fito de se aproveitar da boa-fé alheia,
com dolo (CENEVIVA, 1991, p. 118).
2.2.2 Publicidade Abusiva
A publicidade abusiva é aquela que contém mensagens ofensivas aos
valores éticos e sociais da pessoa e da família. Não visa a proteger os aspectos
materiais do consumo (o bolso do consumidor), mas outros valores tidos como
relevantes para a sociedade, tais como a igualdade das pessoas, a defesa
84
No mesmo sentido, Maria Luiza de Sabóia Campos (1996, p. 226) e Junqueira de Azevedo
(1996, p. 29).
1692
ambiental, a proteção dos direitos da criança ou dos hipossuficientes, etc.
(RODYCZ, 1994, p. 67). Na lição de Cláudia Lima Marques (1999, p. 680), “a
publicidade abusiva é, em resumo, a publicidade antiética, que fere a
vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais básicos, que fere a
própria sociedade como um todo”.
O Código de Defesa do Consumidor não define a publicidade abusiva. Esta
opção, consoante o ensinamento de Vidal e Yolanda Serrano (NUNES JUNIOR;
SERRANO, 2003, p. 120), “prende-se ao fato de que qualquer definição poderia
ficar aquém das expectativas do legislador. Deste modo, optou por uma
enumeração, que, além de arrolar hipóteses, serve de parâmetro para a
identificação de outras mensagens publicitárias de caráter abusivo”. Tendo em
vista que, ao exemplificar a propaganda abusiva, o legislador utilizou a expressão
entre outras, o elenco das cláusulas abusivas não é taxativo. Sendo assim, o juiz
poderá identificar outras hipóteses de publicidade abusiva, dependendo dos
casos concretos. Nas palavras de Wilson Carlos Rodycz (1994, p. 69), “vale frisar
que a enumeração de hipóteses é meramente exemplificativa, podendo haver
outras que igualmente serão taxadas de abusivas e ilegais”.
Desta forma, pode-se considerar abusiva a publicidade quando ela instiga
ou estimula, de modo eficaz, uma das ações indicadas no § 2º do art. 37 do CDC,
quando desrespeita valores ambientais, ou quando é capaz de causar riscos
coletivos aos consumidores85. Assim, o anunciante que não obedece ao disposto
no § 2º do art. 37 está, violando, também, o princípio da dignidade da pessoa
humana, estabelecido no art. 1º da Constituição Federal.
3 CONTROLE DA PUBLICIDADE
A publicidade patológica pode ser objeto de controle em três esferas
85
A respeito da publicidade abusiva, Roberta Densa (2007, p. 102) assevera que o legislador,
sabedor de que a publicidade é meio de influenciar pensamentos, valores, comportamentos, e
modificar condutas na sociedade de consumo, entendeu por bem intervir e controlar toda vez
que aqu ela se demonstrar abusiva, para que não haja ameaça à sociedade e aos valores
morais, que são o alicerce dela, os quais os anunciantes devem respeitar, em nome da própria
estabilidade jurídico-social vigente.
1693
distintas: judiciária, administrativa e privada (RODYCZ, 1994, p. 71). Consoante
ensina o magistrado Wilson Carlos Rodycz,
Na esfera judiciária, o instrumento processual mais importante à
disposição do consumidor é a ação civil pública (Lei n.º 7.347/85), para a
qual estão legitimados ativamente tanto o Ministério Público como as
associações de consumidores constituídas com essa finalidade; por essa
via é possível buscar a cessação da veiculação de campanha publicitária
considerada abusiva, com pedido de concessão de liminar, a imposição
de contrapublicidade e a reparação dos danos causados. Há isenção de
custas judiciais e de sucumbência em caso de improcedência da ação,
salvo litigância de má-fé. No âmbito criminal, há quatro fatos típicos
relativos à publicidade (arts. 67 a 69, CDC), quais sejam:
fazer ou promover publicidade enganosa;
idem em relação à publicidade abusiva;
fazer ou promover publicidade capaz de induzir o consumidor a se
comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança;
deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à
publicidade. (RODYCZ, 1994, p. 71-72).
Na esfera administrativa, a publicidade ilícita pode vir a ser objeto de ações
de controle por parte dos órgãos administrativos criados para tal fim. Dentre
outras sanções administrativas, a lei prevê a possibilidade de imposição de
contrapropaganda. Já no âmbito privado, o controle cabe ao CONAR (Conselho
Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), o qual aplica seu Código de
Ética. O CONAR pode recomendar a sustação da divulgação de anúncio que
considere ofensivo a seu estatuto, bem como impor outras sanções desse jaez
(RODYCZ, 1994, p. 72).
A proteção ao consumidor em matéria publicitária
advém, portanto, das leis, das entidades estatais e de instituições criadas para
sua defesa e do autocontrole de anunciantes e agências de propaganda
(CENEVIVA, 1991, p. 88).
3.1 Sistemas de Controle
Existem três sistemas de controle da publicidade atualmente em prática em
nossa sociedade: o sistema autorregulamentar (privado), o sistema legal (estatal)
e o sistema misto.
O entendimento de que a publicidade era uma simples forma de promoção
de vendas que não pressupunha qualquer compromisso ou responsabilidade de
1694
que a promovia, está completamente superado em todas as ordens jurídicas que
primam pelos interesses dos consumidores. Conforme ensina Valéria Chaise:
Várias práticas e mecanismos do mercado, até as primeiras décadas do
século XX eram ignoradas, como as condições gerais de contrato,
contrato celebrado mediante formulários e cláusulas predispostas,
aliadas à influência que exerce a publicidade para impor uma marca,
para orientar o público a utilizar determinado produto, inclusive para
despertar a vontade de adquirir bens e serviços que, de outro modo, teria
ignorado. Tudo isso confirma a necessidade, dentro da política de
proteção ao consumidor de haver certo controle sobre a publicidade
(CHAISE, 2001, p. 24).
Ao elaborar o CDC, o legislador brasileiro conferiu à publicidade a
importância que ela tem hoje no mercado.
3.1.1 Sistema Autorregulamentar
O Sistema Autorregulamentar consiste no controle interno da publicidade
realizado por órgão privado e ligado ao próprio setor publicitário. Nesse sistema,
códigos de ética ou de conduta promovem a autorregulamentação ou
autodisciplina da atividade. Valéria Chaise destaca que:
A autorregulamentação foi decorrência da necessidade de manter a
confiança dos consumidores nas mensagens veiculadas. Os
profissionais da publicidade se aperceberam de que, no momento em
que a publicidade deixasse de convencer os consumidores, não mais
cumpriria
sua
função
primordial.
Um
dos
objetivos
da
autorregulamentação, portanto, é melhorar a imagem social da
publicidade.
São características fundamentais da autorregulamentação: a) a presença
de uma associação de empresários estabelecida segundo o direito
privado e de livre adesão; b) a existência de regras éticas para garantir a
correção das mensagens e evitar a arbitrariedade dos órgãos de
controle; c) a criação de órgão ou órgãos de controle competentes para
vigiar o respeito às regras estabelecidas; d) a capacidade para impor
sanções aos infratores; e) a existência de poder de pressão para o
cumprimento da sanção. (CHAISE, 2001, p. 25-26).
Uma vantagem do sistema autorregulamentar é a possibilidade que ele traz
para o consumidor a solução do conflito mediante a arbitragem e a composição,
evitando as custas e a morosidade do procedimento judicial, tal qual o efeito
oferecido por um Termo de Ajustamento de Conduta ao evitar uma Ação Civil
Pública junto ao Ministério Público. De outra banda, existe a desvantagem, nesse
sistema, da falta de coerção ou de obrigatoriedade de vinculação das empresas e
dos profissionais às sanções impostas pelo Código de Autorregulamentação.
1695
No Brasil a autorregulamentação publicitária cabe ao Conselho Nacional de
Autorregulamentação publicitária (CONAR), criado em 1980, e é regida pelo
Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que consiste em um
conjunto de normas de caráter privado aprovadas por entidades representativas
do mercado publicitário. O CONAR é uma associação civil formada por agentes
do mercado publicitário, como anunciantes, agências e veículos de comunicação,
que, espontaneamente, aderem ao quadro social. Conforme a já referida
desvantagem do sistema autorregulamentar, os atos do CONAR não têm força
cogente, constituindo-se apenas como recomendações, opiniões, conselhos ou
pareceres.
O art. 50 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária prevê
certas penalidades aos possíveis infratores, quais sejam: a) advertência; b)
recomendação de alteração ou correção do anúncio; c) recomendação aos
veículos no sentido de que sustem a divulgação do anúncio; d) divulgação da
posição do CONAR com relação ao anunciante, à agência e ao veículo, através
de veículos de comunicação, em face do não acatamento das medidas e
providências preconizadas. Porém, a imposição de qualquer dessas sanções tem
caráter somente moral, já que o CONAR não tem o poder de determinar que uma
determinada publicidade ilícita deixe de ser veiculada.
2.1.2 Sistema Legal
O sistema legal é aquele pelo qual a regulamentação da publicidade cabe
exclusivamente ao Estado. Por esse sistema, o controle das práticas ilícitas é
viabilizado através de leis esparsas ou codificadas. A grande vantagem do
sistema legal é o poder coercitivo emanado do Estado.
Consoante o ensinamento de Valéria Chaise (2001, p. 28), é tão óbvia a
necessidade da existência do sistema legal para o controle das práticas
publicitárias, que a “Diretiva da Comunidade Econômica Européia nº 84/450
repudia o modelo exclusivamente autorregulamentar e sugere que os EstadosMembros estipulem meios adequados e eficazes para o controle da publicidade
enganosa, os quais seriam, em síntese, o controle judicial e o controle
1696
administrativo. A Diretiva esclarece, também, que o controle administrativo e
judicial não exclui o controle voluntário”.
2.1.3 Sistema Misto
Nesse
sistema,
somam-se
o
controle
voluntário
da
publicidade
(autorregulamentar) com o controle estatal (legal). Segundo Valéria Chaise (2001,
p. 25-26), “o CDC adotou o sistema misto, ressalvando-se que o controle estatal,
que tem lugar no sistema misto brasileiro, só diz respeito às publicidades
abusivas e enganosas”. Consoante a lição da mestre Judith Martins-Costa:
A alocação, na Lei n.º 8.088/90, do direito dos consumidores à proteção
contra a publicidade enganosa e abusiva (art. 6º, IV) e de seus
consectários – o princípio da identificação da mensagem publicitária (art.
36), o da veracidade da mensagem publicitária (art. 37, §1º), o da
vinculação contratual da mensagem (art. 30), o da não abusividade (art.
37, §2º), o do ônus probandi a cargo do fornecedor (art. 38) e o da
correção do desvio publicitário (art. 56, VII) – suscitou esforços
interpretativos conducentes à definição de certos pontos de apoio ao
preenchimento do seu conceito, uma vez que, sob uma mesma
expressão, “publicidade enganosa”, visou a lei interditar uma série de
práticas faticamente distintas entre si. (MARTINS-COSTA, 1993, p. 7980).
O fato de a publicidade abusiva ferir valores sociais faz com que a defesa
do consumidor contra este tipo de ilicitude possa ser, também, coletiva. Assim, os
Ministérios Públicos Estadual e Federal e as Associações de Defesa dos
Consumidores fazem uso constante de ações civis públicas para atacar
publicidades abusivas no mercado brasileiro86-87. De forma que, no Brasil, a parte
do controle estatal do sistema misto conta com a Ação Civil Pública como um
instrumento fundamental para o controle da publicidade ilícita, para qual tem
legitimidade o Ministério Público e as associações de proteção aos consumidores.
Conforme Valéria Chaise:
86
A pioneira Associação de Proteção ao Consumidor (APC), de Porto Alegre, moveu uma Ação
Civil Pública contra a publicidade veiculada pela televisão, que incitava crianças à pratica de
delitos (invasão de supermercados etc.) para poder consumir produtos alimentícios do
fornecedor. A ação constituiu verdadeiro leading case no Direito brasileiro, pelo menos no campo
civil; vide Revista de Direito do Consumidor, n. 1. (MARQUES, 1999, p. 680).
87
Mencione-se a atuação dos PROCONS, por exemplo a ação do PROCON – PGE/SP contra a
publicidade do “Tênis da Xuxa” , que incentivava a destruição de sapatos velhos pelas crianças
em liquidificadores de forma a receber os novos tênis. (MARQUES, 1999, p. 680).
1697
Por essa via, é possível buscar a cessação de veiculação de campanha
publicitária considerada ilegal, com pedido de concessão de liminar de
plano ou após justificação prévia, devendo, nessa última hipótese, ser
citado o réu, conforme o § 3º do art. 84 do CDC. É possível, também, a
imposição de contrapublicidade e a reparação de danos morais e
patrimoniais causados, conforme o art. 6º, inciso VI do CDC. (CHAISE,
2001, p. 31).
A Constituição Federal de 1988 incorporou os interesses coletivos à sua
normatividade, seja por tal denominação, seja chamando de difusos. Mas também
os caracterizou sob outras formas: interesse coletivo na atividade econômica do
Estado (art. 173), interesses da coletividade servidos pelo sistema financeiro (art.
192), atividades fundamentais do Ministério Público na defesa de interesses
sociais e individuais indisponíveis (art. 127), ou na promoção do inquérito civil ou
da ação civil pública para proteção dos interesses difusos ou coletivos (art. 129,
III). Outrossim, o art. 5º da Constituição, em seu inciso XXI, defere legitimidade
às entidades associativas, quando expressamente autorizadas, para representar
seus filiados judicial ou extrajudicialmente.
4 O CASO DO TABACO
O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de tabaco e o principal
exportador. A cultura do tabaco, claramente, tem grande importância econômica,
com significativos reflexos na geração de empregos e de tributos. É vultoso,
portanto, o porte da indústria do tabaco no país, o que traz evidentes implicações
econômicas e, inclusive, políticas.
Ao mesmo tempo, o tabagismo é considerado pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) a principal causa de morte evitável no mundo. A organização
estima que um terço da população mundial adulta seja fumante (47% de toda a
população masculina mundial e 12% da feminina)88. No Brasil, a cada hora, cerca
de dez pessoas morrem em decorrência de doenças relacionadas ao fumo. São
cerca de 200 mil mortes anuais89. Além de todos os dramas familiares que as
88
Fonte: Portal Brasil. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/saude/2009/11/tabagismo1>
Acesso em 04 jun 2014.
Fonte: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Disponível em
<http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=dadosnum&link=mundo.htm> Acesso em 04
jun 2014.
89
1698
enfermidades causadas pelo tabagismo geram, o custo do tratamento destas
doenças representa um grande fardo tanto para os pacientes quanto para o
Estado.
A fumaça do cigarro tem mais de 4.700 substâncias tóxicas. O alcatrão, por
exemplo, é composto de mais de 40 compostos cancerígenos. Já o monóxido de
carbono (CO) em contato com a hemoglobina do sangue dificulta a oxigenação e,
consequentemente, ao privar alguns órgãos do oxigênio, causa doenças como a
aterosclerose (que obstrui os vasos sanguíneos). A nicotina é considerada pela
OMS uma droga psicoativa que causa dependência. Ela também aumenta a
liberação de catecolaminas, que contraem os vasos sanguíneos e aceleram a
frequência cardíaca, causando hipertensão arterial. Enfim, o tabagismo está
relacionado a mais de 50 doenças sendo responsável por 30% das mortes por
câncer de boca, 90% das mortes por câncer de pulmão, 85% das mortes por
bronquite e enfisema, 25% das mortes por doença do coração e 25% das mortes
por derrame cerebral. Está incluído no grupo dos transtornos mentais e de
comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa, segundo a Décima
revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), sob o código CID-1090.
Segundo o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), o
tabaco também tem relação com a impotência sexual e infertilidade masculina. Os
mesmos prejuízos também são atribuídos ao cachimbo e ao charuto. Apesar de
não serem tragáveis, possuem uma concentração de nicotina maior, que é
absorvida pela mucosa oral.
A indústria do tabaco frequentemente se utiliza de argumentos
relacionados a direitos humanos para defender suas práticas. Assim, resguardam
a premissa segundo a qual as pessoas teriam o direto de fumar onde quisessem
e, as empresas, o direito de anunciar seus produtos livremente, em decorrência
do exercício da liberdade de expressão, como um dos direitos fundamentais,
relacionado à dignidade humana. Sob esse ponto de vista, as empresas do setor
90
Fonte: Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID) - Informações Sobre
Drogas/Tipos
de
Drogas/Tabaco.
Disponível
em
<http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11287&rastro=IN
FORMA%C3%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS%2FTipos+de+drogas/TabacoMinistério
da
Saúde> Acesso em 06 jun 2014
1699
do tabaco estariam autorizadas a fazer publicidade livremente91. É fato que, nas
palavras de Daniel Sarmento,
Toda e qualquer conteúdo de mensagem encontra-se prima
faciesalvaguardado constitucionalmente, por mais impopular que seja.
Aliás, um dos campos em que é mais necessária a liberdade de
expressão é exatamente na defesa do direito à manifestação de ideias
impopulares, tidas como incorretas ou até perigosas pelas maiorias, pois
é justamente nestes casos em que ocorre o maior risco de imposição de
restrições, como assentou com propriedade o STF, no julgamento da
ADPF 187, que versou sobre a chamada “Marcha da Maconha”
(SARMENTO, 2014, p. 256).
No entanto, liberdade de expressão não significa liberdade comercial. A
publicidade de produtos perigosos, mas legais, como determinados venenos ou
armas de fogo, não é permitida. E muitos produtos farmacêuticos que, inclusive,
podem salvar vidas estão excluídos de várias formas de publicidade. Como
referido acima, o direito fundamental à liberdade de expressão pode ser
relativizado diante da necessidade de tutela de bens jurídicos da importância da
saúde e do meio ambiente e admite restrições na medida em que possa vir a
redundar em potencial lesivo a outrem.
A liberdade de expressão incide em diferentes contextos, que podem ir
desde as interações intersubjetivas pessoais até a atuação dos meios de
comunicação de massa. Em matéria de comunicação realizada em contextos
intersubjetivos, a liberdade de expressão destina-se a proteger tanto os interesses
do emissor da mensagem, que, então, pode se manifestar livremente, como os do
seu receptor, que, assim, pode ter aceso a ideias e pontos de vista diferenciados.
No entanto, em matéria de comunicação social, o foco é a proteção e a promoção
dos direitos e interesses dos cidadãos em geral que constituem o público-alvo dos
veículos de mass mídia, ficando em segundo plano a tutela dos interesses dos
detentores desses veículos (SARMENTO, 2014). Não obstante a garantia
constitucional da liberdade de expressão, consoante preleciona Daniel Sarmento:
[...] o próprio constituinte admitiu a instituição de restrições à propaganda
em questão (sic), notadamente em relação a produtos, prática e serviços
que possam ser nocivos a saúde e ao meio ambiente. O constituinte,
neste ponto, visou simultaneamente a dois objetivos. Em primeiro lugar,
quis corrigir uma assimetria de informações existentes entre o fornecedor
91
Fonte:
Aliança
de
Controle
do
Tabagismo
(ACT).
Disponível
em
<http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/630_ColombiaCorteConstitucional_publicidade_C830-10.pdf> Acesso em 08 jun 2014
1700
e o consumidor, já que estes, muitas vezes, não tem como saber os
danos que determinados produtos ou serviços acarretam. As restrições à
propaganda, portanto, visam a permitir que o consumidor faça uma
escolha mais informada no campo do consumo.
Em segundo lugar, quis o constituinte proteger outros bens jurídicos
extremamente importantes na nossa ordem constitucional, como a saúde
e o meio ambiente. Infere-se da Constituição uma autorização para que
o legislador busque, através da regulação da propaganda, desestimular
o consumo de determinados produtos de efeitos deletérios sobre a
saúde humana e meio ambiente, como o tabaco. No que concerne ao
tabaco, aliás, a interpretação da Constituição deve considerar a
Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, promulgada através do
Decreto n.º 5.608/2006, em que o país se compromete
internacionalmente a adotar medidas restritivas da respectiva
propaganda comercial, haja vista a plena convergência axiológica entre
dita Convenção e a nossa ordem constitucional. (SARMENTO, 2014, p.
2040).
Uma vez dependente da nicotina, o fumante não tem livre escolha sobre o
ato de fumar ou não fumar. Após a instalação da dependência, a oportunidade da
“escolha”, antes aparentemente clara e idônea, esvai-se sutilmente perante o
surgimento da “necessidade”, alavancado pela nicotina, que, de forma
dissimulada, transforma a opção em imperativo. A liberdade de fumar é, assim,
uma falsa liberdade. E, para além desta constatação, é preciso ter claro que
qualquer “liberdade” não inclui o direito de causar prejuízo ao próximo.
As evidências de que o fumo passivo também implica em danos à saúde
são claras.O fumo passivo aumenta os riscos das mesmas doenças que podem
ser causadas pelo fumo ativo. Sete não fumantes morrem por dia em
consequência do fumo passivo. O tabagismo passivo aumenta em 30% o risco de
câncer de pulmão e em 24% o risco de infarto92. Mesmo diante de todos esses
comprovados malefícios provocados pelo tabagismo, a sua publicidade sempre
fora liberada. Durante décadas, todas as mídias veiculavam mensagens
publicitárias de fumo, cigarros, charutos e assemelhados, avultando o consumo e
financiando a produção.Consoante Fernanda Nunes Barbosa e Mônica Andreis
(2012, p. 69):
As técnicas de indução ao consumo, na maior parte das vezes,
trabalham justamente de forma indireta, por meio da promoção da
marca, cuja associação com o produto será feita em momento posterior
e, frequentemente, sem a completa e adequada percepção do público
alvo. Não fosse o papel da publicidade do tabaco definidor para o seu
92
Fonte: Portal Brasil. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/saude/2009/11/tabagismo1>
Acesso em 04 jun 2014.
1701
consumo, não teria, a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco,
assinada e ratificada pelo Brasil, referido em seu preâmbulo estarem as
Partes "seriamente preocupadas com o impacto de todos os tipos de
publicidade, promoção e patrocínio destinados a estimular o uso de
produtos de tabaco".
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária nasceu de uma
ameaça ao setor: no final dos anos 70, o governo federal pensava em sancionar
uma lei criando uma espécie de censura prévia à propaganda. Se a lei fosse
implantada, nenhum anúncio poderia ser veiculado sem que antes recebesse um
carimbo “De Acordo” ou alguma chancela de anuência do Estado. Respondendo a
tal ameaça, o setor providenciou, em 1977, sua autorregulamentação, sintetizada
num Código, que teria a função de zelar pela liberdade de expressão comercial e
defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os
do consumidor. Logo após, em 1980, foi fundado o Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR), uma ONG encarregada de dar
efetividade ao Código93. Consoante o Código, os preceitos básicos que definem a
ética publicitária são:
- todo anúncio deve ser honesto e verdadeiro e respeitar as leis do país,
- deve ser preparado com o devido senso de responsabilidade social,
evitando
acentuar
diferenciações
sociais,
- deve ter presente a responsabilidade da cadeia de produção junto ao
consumidor,
deve
respeitar
o
princípio
da
leal
concorrência
e
- deve respeitar a atividade publicitária e não desmerecer a confiança do
público nos serviços que a publicidade presta.
O Capítulo III do Código trata das categorias especiais de anúncios e assim
estabelece o seu art. 44:
Art. 44: Pela sua importância econômica ou social, pelo seu volume,
pelas suas repercussões no indivíduo ou na sociedade, determinadas
categorias de anúncios devem estar sujeitas a cuidados especiais e
regras específicas, além das normas gerais previstas neste Código.
Essas regras específicas figuram mais adiante como "Anexos" a este
Código e, alguns casos, resultaram de valiosa colaboração de
Associações de Classe que prontamente se identificaram com o espírito
do presente Código. São eles, pela ordem:
[...]
94
Anexo J - Produtos de Fumo ;
93
Fonte: Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Disponível em
< http://www.conar.org.br> Acesso em 07 jun 2014.
94
Em relação à publicidade do fumo, o Anexo J assim dispõe:
- Não sugerirá que os produtos possuam propriedades calmantes ou estimulantes, que reduzam a
fadiga, a tensão ou produzam qualquer efeito similar.
- Não associará o produto a ideias ou imagens de maior êxito na sexualidade das pessoas,
insinuando o aumento da virilidade ou feminilidade dos fumantes.
1702
As restrições estabelecidas no Anexo J do Código, contudo, são brandas,
não representando, assim, reais empecilhos à publicidade dos produtos
relacionados ao tabagismo. Tratou-se apenas de alguns pontos específicos, cujas
limitações não seriam capazes, por si só, de impedir ou, sequer, intimidar a
promoção de tais produtos. De forma que o fomento do hábito do fumo
permaneceu sendo exercido pela indústria do tabaco por meio dos mass mídia.
Assim, mesmo após a redação do Código e a criação do CONAR, os reclames do
setor continuaram sendo produzidos e difundidos nos variados veículos de
comunicação, sem restrições mais severas, e em quaisquer horários.
Mais do que isso, as imagens de artistas e, mesmo, celebridades fumando
costumavam ser veiculadas em programas de televisão, filmes de cinema e
outras peças áudio-visuais, fazendo ou não parte de merchandisings, de forma a
emprestar um pretenso charme ao ato de fumar, incentivando a sua
glamourização.
Por outro lado, sendo adotado, no Brasil, o sistema misto de controle da
publicidade, a partir de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, a
legislação pátria passou a impor restrições à publicidade do tabagismo. No §4º do
seu art. 220, nossa Carta Magna já previa a legislatura restritiva, determinando
que a propaganda comercial de tabaco estaria sujeita a restrições legais e deveria
conter advertências sobre os malefícios do tabagismo. Contudo, em verdade, não
se tratava de sua proibição. Conforme assevera Wilson Carlos Rodycz (1994, p.
71), “a Constituição não proibiu a publicidade de derivados do tabaco [...]. Nos
§§3º e 4º do artigo 220, atribui competência ao legislador comum para, através de
- Não sugerirá ou promoverá o consumo exagerado ou irresponsável, a indução ao bem-estar ou à
saúde, bem como o consumo em locais ou situações perigosas ou ilegais.
- Não associará o uso do produto à prática de esportes olímpicos e nem se utilizará de trajes de
esportes olímpicos para promoção/divulgação de suas marcas.
- Não fará qualquer apelo dirigido especificamente a menores de 18 anos, e qualquer pessoa que,
fumando ou não, apareça em anúncio regido por este Anexo, deverá ser e parecer maior de 25
anos.
- Não empregará imperativos que induzam diretamente ao consumo.
- Na publicidade e nas publicações institucionais e legais, bem como nos anúncios classificados
de empresas produtoras de derivados de fumo, não haverá obrigatoriedade de inserção de
advertência, conforme facultado por lei, desde que as referidas peças não visem a promoção de
marcas de produtos destinados ao público consumidor. (Fonte: Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Disponível em < http://www.conar.org.br> Acesso
em 07 jun 2014.
1703
lei federal, regular as restrições que se imporão à publicidade desses produtos”. E
essa forma de tratar a questão não é exclusividade brasileira. Em países
europeus, adotou-se a mesma regra. Rodycz esclarece que:
Essa é a regra verificada também na Europa, onde o Conselho da
Comunidade Econômica, com fins de uniformizar as legislações dos
países-membros editou várias diretivas, dentre as quais a de nº 89/552,
pela qual, embora sem nominar de abusiva, propugnou pela imposição
de restrições específicas para a publicidade de bebidas alcoólicas (art.
15), e pela proibição da publicidade televisiva de cigarros e derivados do
tabaco (art. 13), bem como a de remédios e tratamentos médicos
sujeitos à prescrição médica (art. 14). (RODYCZ, 1994, p. 71).
A possibilidade de restrição à publicidade de produtos fumígenos,
inaugurada pela Constituição Federal de 1988, foi viabilizada pelo fato de que a
propaganda comercial não se enquadra na centralidade da liberdade de
expressão, de forma que acaba por merecer uma proteção mais branda. Só
assim, diante do princípio da proporcionalidade, seu caráter de “expressão” não
chegou a constituir óbice para a restrição promovida pela Carta. Nesse sentido,
Daniel Sarmento assevera:
As restrições à propaganda devem se conformar ao princípio da
proporcionalidade, tanto na sua dimensão mais tradicional, de proibição
de excesso, como também na sua faceta de proibição de proteção
deficiente. Na análise da ponderação subjacente à regulação da matéria,
deve-se levar em conta que a propaganda comercial é aspecto periférico
da liberdade de expressão, não sendo protegida tão intensamente pela
nossa ordem constitucional, e que, por outro lado, a tutela da saúde e
meio ambiente ostenta posição de destaque no sistema de valores da
Constituição. Nesta perspectiva, admite-se o controle tanto sobre
excessos regulatórios eventualmente cometidos pelo Estado (restrições
excessivas à propaganda), como também sobre uma exagerada
leniência na disciplina da questão (restrições insuficientes sobre a
propaganda). (SARMENTO, 2014, p. 2040).
Na esteira da restrição trazida pelo texto constitucional, o CDC, elaborado
em 1990, proibiu a publicidade enganosa e abusiva95. A Lei n.º 9.294/96, alterada
pelas Leis n.ºs 10.167/00 e 12.546/12, dispôs sobre as restrições ao uso e à
propaganda – lato sensu – de produtos fumígenos, nos termos do referido §4º do
art. 220 da CF/88. A partir da promulgação da Lei n.º 9.294/96, passou a ser
vedada, em todo o território nacional, a propaganda comercial de cigarros,
95
Wilson C. Rodycz salienta que há quem entenda que a publicidade de cigarros e bebidas
alcoólicas também estaria proibida pela parte final do §2º do artigo 37 do CDC, que classifica de
abusiva a publicidade capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou
perigosa à sua saúde (RODYCZ, 1994).
1704
cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou
não do tabaco, com exceção apenas da exposição dos referidos produtos nos
locais de vendas.
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 10.167/00,
a publicidade destes produtos sofreu mais contundente restrição, passando a ser
admitida apenas por meio de pôsteres, painéis e cartazes “na parte interna” dos
locais de venda.
Ainda com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12.546/12 à Lei n.º
9.294/96, também passará a ser exigida, a partir de 1º de janeiro de 2016, a
impressão de um texto de advertência adicional, nas embalagens de produtos
fumígenos vendidas diretamente ao consumidor, ocupando 30% da parte inferior
de sua face frontal,. A lei já determinava a inclusão das cláusulas de advertência
destacadas em 100% da face posterior e de uma das laterais das embalagens.
Estas restrições e limitações impostas pela legislação, que incrementaram
o controle legal da publicidade do tabaco no Brasil, aliadas à majoração da
tributação o setor e à proibição do fumo em ambientes fechados, acabaram por
redundar em significativos efeitos práticos na mitigação dos malefícios causados
pelo tabagismo, tanto no que se refere à saúde dos tabagistas, na esfera
individual, quanto no que tange às questões de saúde pública e de implicações
sócio-econômicas. Em comparação a todo o longo período no qual o controle da
publicidade
do
tabaco
exerceu-se
predominantemente
com
base
na
autorregulamentação, o impacto causado, em poucos anos, pela legislação
promulgada a partir da Constituição Federal de 1988, além de ter evitado um
grande número de óbitos, foi responsável, em parte, pela considerável diminuição
do número de fumantes no país.
Um estudo publicado na Revista PLoS Medicine96, feito pelo Instituto
Nacional do Câncer (INCA) em parceria com a Universidade de Georgetown, de
Washington (EUA), concluiu que o número de fumantes no Brasil caiu pela
metade nos últimos 20 anos graças às leis anti-fumo implementadas no país. De
acordo com a pesquisa, a inovação na legislação, aliada a medidas como
majoração de impostos sobre o cigarro e restrições ao fumo em ambientes
96
PLoS Medicine – Disponível em <http://journals.plos.org/plosmedicine/> Acesso em 03 jul 2014.
1705
fechados, evitou cerca de 420.000 mortes decorrentes de tabagismo entre 1989 e
2010. Estimativas dos impactos de tais medidas sobre o tabagismo no país em 20
anos apontam, ainda, que 14% da redução ocorreu devido à restrição de
publicidade desse tipo de produto; 10% dessa queda se deve aos programas de
tratamento contra o tabagismo; 8% dessa diminuição aconteceu por causa das
advertências dos problemas de saúde nas embalagens; e 6% da redução
aconteceu em decorrência das campanhas na mídia contra o cigarro.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da análise da evolução da publicidade de produtos fumígenos no Brasil,
pode-se observar que, muito embora os malefícios causados pelo tabagismo
sejam tantos e tão contundentes e aparentes, a autorregulamentação no setor
não foi capaz de promover o controle adequado de sua publicidade, de forma que
nem sequer restrições foram impostas aos anúncios publicitários, que
permaneceram sempre sendo veiculados em todos os meios de comunicação e
em quaisquer horários. A falta de restrições à área, em termos de regulamentação
autônoma, permitiu o fomento do comércio e o consequente fortalecimento da
indústria do setor, provocando o aumento contínuo do número de fumantes no
país.
Foi apenas a partir da Constituição Federal de 1988 que, com o incremento
do controle legal, a legislação anti-fumo passou a impor restrições à publicidade
no setor capazes de interferir positivamente nas consequências geradas pelo
hábito do tabagismo, que, então, já havia se tornado uma doença catalogada pela
Organização Mundial da Saúde com o CID-10.
Com o incremento regulatório proporcionado pela legislação (parte legal do
sistema misto), finalmente, o número de tabagistas no Brasil começou a ser
reduzido. Juntamente com a política de majoração tributária e com a proibição do
fumo em ambientes fechados, o controle legal da publicidade do tabaco fez com
que a quantidade de brasileiros fumantes tenha caído pela metade e com que o
número de novos tabagistas seja cada vez menor, o que tem gerado uma
inquestionável redução de custo social à nação.
1706
Não obstante a indústria do tabagismo valha-se do argumento de que os
apelos comerciais veiculados na publicidade de seus produtos devam estar
protegidos pelo direito fundamental à liberdade de expressão, os comprovados
prejuízos causados pelos fumantes aos não-fumantes - na qualidade de fumantes
passivos -, autorizaram o legislador brasileiro a relativizar este direito, visto que a
liberdade de um pode vir a ser restringida pelo fato de, do contrário, ter potencial
lesivo a outrem. Da mesma forma, foram relativizadas as garantias constitucionais
da livre iniciativa e da livre concorrência.
Ou seja, na análise da ponderação subjacente à regulação da matéria, o
conflito entre os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à saúde,
suscitou na legislatura brasileira, o reconhecimento da necessidade de se
relativizar o primeiro frente às consequências, não só anunciadas como também
comprovadas, da utilização dos produtos fumígenos. Ademais, não só em virtude
desta ponderação, mas também em razão do próprio caráter periférico que a
publicidade ocupa na liberdade de expressão, o legislador, alicerçado no novo
paradigma constitucional do final do século passado, deu azo a diplomas legais
que restringiram a publicidade do tabaco e que robusteceram o seu controle. A
partir deste cenário novel, a constatação foi de que, de fato, o número de
fumantes diminuiu significativamente, bem como houve um consequente
abrandamento dos efeitos deletérios do tabagismo, tanto na esfera individual
quanto na da saúde pública.
Destarte, conclui-se que a autorregulamentação do setor publicitário foi
insuficiente para conferir efetividade ao controle da publicidade dos produtos
fumígenos, cabendo ao legislador, na complementação do sistema misto de
controle da publicidade, o papel de mitigar os efeitos perniciosos do tabagismo no
Brasil.
1707
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excludente da responsabilidade civil da indústria do cigarro: proposta de reflexão.
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Malheiros, 2009.
1709
PRÁTICAS EMPRESARIAIS NAS CONDUTAS DOS CONSUMIDORES EM
BUSCA DE UM DESENVOLVIMENTO MAIS SUSTENTÁVEL
Anderson Von Heimburg, 97
Cristiane Feldmann Dutra,98
Suely Marisco Gayer,99
RESUMO: Este artigo aborda a temática do consumo sustentável, busca
conceituar o tema, relativamente novo em termos ambientais, demonstrando a
importância das práticas empresariais, no sentido de conscientizar o consumidor
a agir em nome da sustentabilidade, preservando recursos naturais e garantindo
sua permanência às gerações futuras. As empresas, diretamente ligadas ao
mercado e ao consumo em massa, possuem um papel fundamental na sua
conduta – desde a escolha das matérias-primas para fabricar determinados
produtos até a decisão acerca da sua durabilidade – ajudando, assim, a formar o
chamado “consumidor verde”.
PALAVRAS-CHAVE:
consumidor.
desenvolvimento
sustentável;
práticas
empresariais;
1 INTRODUÇÃO
97
Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (2011). Mestre em Direito pela UniRitter Laureate International Universities (2014). Possui
experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito
Internacional e Direito Penal Militar. Graduado pela Academia Militar das Agulhas Negra (2001)
com Especialização pela EsAO (2009). Professor de Teoria Geral do Estado e da Constituição,
Direito Internacional e Oratória da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Professor de
Direitos Humanos, Legislação Penal Militar e Legislação Militar no Centro de Preparação de
Oficiais da Reserva de Porto Alegre. Assessor Jurídico do Centro de Preparação de Oficiais da
Reserva de Porto [email protected].
98
Mestre em Direito, com enfase em Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis UniRitter- Laureate International Universities. Especialista em Direito do Trabalho e Processual
do Trabalho na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento- IDC (2010), Especialista em Direito
Civil Processual Civil na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento-IDC (2012).Possui
Graduação em Direito na Universidade Luterana do Brasil -ULBRA (2008). Pesquisadora da
Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter (2013-2014).
Pesquisadora do Grupo de Ciência Penal Contemporânea da UFRGS (2014). Email:
[email protected].
99
Mestre pelo curso de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter Laureate International Universities. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura, em
2002. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da UniRitterPós-graduada pela Escola
Superior da Magistratura, em 2002. . Graduada em Direito pela Universidade do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí em 2001. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da
UniRitter. Email: [email protected].
1710
Esse artigo pretende conceituar a ideia de consumo sustentável, expressão
que vem sendo cada vez mais utilizada em âmbito empresarial, bem como frisar a
importância de práticas empresarias na busca pela preservação dos recursos
naturais e sua influência nas ações dos consumidores.
Atualmente o mundo volta os olhos para a escassez dos recursos naturais.
Quando se fala em mercado, no sentido de práticas empresariais, é preciso
relacioná-lo aos atos praticados por aqueles que o impulsionam, ou seja, o
consumidor.
Desde o surgimento da Agenda 21, na Conferência das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrido no Rio de Janeiro, no ano de
1992, com objetivos de promover padrões de consumo e produção buscando
reduzir os impactos ambientais e, ao mesmo tempo, atender às necessidades
básicas da humanidade, buscou-se compreender o papel do consumidor, bem
como sua influência nas práticas empresariais.
2 O PROBLEMA DO CONSUMO MASSIFICADO
Nos dias de hoje, nos deparamos com uma realidade de consumo
completamente diferente daquela vista tempos atrás. Por muito tempo primou-se
por um consumo exacerbado e se deixou de lado os impactos que a larga
produção e consumo pudessem vir a causar ao meio ambiente.
Os problemas ambientais causados pelo homem decorreram, sobretudo,
do modo como esse sistema econômico (caraterizado por apresentar
uma economia de mercado, em que vigora a lei da oferta [produção], da
procura [consumo] de produtos, serviços ou capitais e do lucro), usava,
destinava e transformava os recursos naturais, gerando a degradação do
meio ambiente. Nesse sistema, quanto mais se consumir, maior será a
100
produção e maior o lucro .
É fato que a ótica em relação ao consumo mudou no decorrer do tempo.
Primeiramente, o poder era buscado através do acúmulo de riquezas, nos dias de
hoje, o poder significa possuir o maior número de bens possíveis e ainda, os mais
novos e tecnológicos.
100
SPÍNDOLA, Ana Luiza apud Flávia Galvão. Revista IOB de Direito Administrativo, p.109.
1711
Nesse contexto, há um claro atrito entre as necessidades ilimitadas dos
seres humanos (que aqui passo a tratar na condição de consumidores), tendo em
vista o caráter avaliativo do presente trabalho, e os recursos limitados do meio
ambiente.
O consumo em massa, a partir dai, conflita com a questão da
sustentabilidade, que inevitavelmente liga-se à ideia de ética ambiental.
A modernidade ocidental transformou a natureza num simples cenário no
centro do qual reina o homem e se auto-determina dono e senhor. O que
é certo é que, a partir do século XVII, o projeto moderno pretendeu
construir uma supranatureza, à medida da nossa vontade e do nosso
desejo de poder e de consumo. O homem passou a produzir bens numa
escala muito mais superior do que o necessário para satisfazer o seu
ciclo vital, sem perceber que para alcançar o seu objetivo era preciso
transformar constantemente a natureza. E como consequência destes
atos começou-se a viver no reinado do artifício, da máquina e da
101
automatização .
Sustentabilidade pode ser entendida como a capacidade dos seres
humanos interagirem com o mundo preservando o meio ambiente, objetivando
não comprometer os recursos naturais das gerações futuras. Ainda, pode ser
vista como a habilidade de sustentar ou suportar determinadas condições
impostas ou exigidas por alguém.
O conceito de sustentabilidade é complexo, pois atende a um conjunto de
variáveis interdependentes, mas podemos dizer que deve ter a capacidade de
integrar questões sociais e ambientais. Socialmente, é preciso respeitar o ser
humano,
para
que
este
possa
respeitar
a
natureza
e
assim
haver
sustentabilidade.
As questões que envolvem a sustentabilidade do planeta há muito tempo já
ultrapassam a esfera nacional e tal preocupação tem repercussão internacional,
na medida em que se pode perceber uma cooperação entre nações, no sentido
de desenvolver a adoção de padrões adequados à utilização e preservação de
recursos naturais esgotáveis.
101
BASTOS, Lucia Elena. O Consumo de Massa e a Ética Ambientalista. Revista de Direito
Ambiental, n.43, ano 11, 2006, p. 201.
1712
3 CONSUMO SUSTENTÁVEL
O consumo sustentável baseia-se na ideia de que o planeta não pode
suportar os velhos padrões utilizados nas últimas décadas para a extração,
produção, comercialização e descarte de bens.
A expressão “desenvolvimento sustentável” consiste no fato de que os
elementos pretendem se conciliar – desenvolvimento econômico e
preservação ambiental –, embora a construção de raciocínios seja
diferente. A noção de crescimento econômico, sobre a qual o objetivo do
desenvolvimento tem se assentado, é definida a partir de agregados
monetários homogêneos de produção, visando sempre à exploração dos
102
recursos naturais para uma maior produção, para gerar lucro .
Consumir de maneira sustentável significa consumir menos e melhor,
levando em consideração os impactos ambientais, sociais e econômicos
das empresas e dos seus produtos (cadeias produtivas).
Com relação à essa temática, o PNUMA – Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente – trouxe uma proposta conceitual, definindo que:
Consumo sustentável significa o fornecimento de serviços, e de produtos
correlatos, que preencham as necessidades básicas e dêem uma melhor
qualidade de vida, ao mesmo tempo em que se diminui o uso de
recursos naturais e de substâncias tóxicas, assim como as emissões de
resíduos e de poluentes durante o ciclo de vida do serviço ou do
produto, com a idéia de não ameaçar as necessidades das gerações
103
futuras .
Nesse sentido, com o advento da Agenda 21 foram estabelecidas como
metas, a promoção de padrões de consumo e produção que reduzam as
pressões ambientais e atendam às necessidades básicas da humanidade; bem
como o desenvolvimento de uma melhor compreensão do papel do consumo e da
forma de se implementar padrões mais sustentáveis.
Este consumo precisa ser sustentável em todos os sentidos: desde a
compra, o uso até o descarte, envolvendo condutas do consumidor – pessoa
física – e das empresas. É importante questionar-se sobre o consumo pessoal
sempre, como pode ser reduzido e melhorado em termos de qualidade e
preservação ambiental.
O consumo sustentável visa a um padrão de consumo diferente e
consciente e o meio que possuímos para tanto, não pode ser considerado outro,
102
103
GALVÃO, Flávia. Ob. cit., p. 112.
BAGIO, Andressa. Ob. Cit., p. 3
1713
senão a conscientização do consumidor. De nada adianta uma empresa trazer ao
mercado produtos biodegradáveis (a um custo relativamente mais alto) se os
consumidores sempre vão optar pelo mais barato, mesmo em detrimento do meio
ambiente.
Nessa senda Milaré:
O que causa preocupação é o desenvolvimento desenfreado, pois, ao
mesmo tempo, constitui uma aberração do desenvolvimento ao culto ao
consumismo e a criação de necessidades desnecessárias, impingindos
104
por um marketing distorcido .
Além disso, conceitos de reciclagem e reutilização dos materiais depois do
uso principal dos produtos, a fim de reduzir o consumo de materiais virgens
também são posturas que devem ser implementadas a partir da consciência
individual do consumidor em preservar recursos limitados às gerações futuras.
O consumo, de acordo com o conceito antes mencionado, leva
inevitavelmente, ao consumo de recursos naturais, isso ocorre de uma maneira
que a humanidade, no futuro não possa mais manter seus padrões de vida sem
correr o risco de destruir o sistema ecológico no qual vivemos e do qual depende
a vida. Essa acertiva pode ser comprovada com uma simples análise da
degradação ambiental realizada por empresas fornecedoras de produtos e
serviços.
Além disso, quanto mais tecnologia se desenvolve, mais se amplia o
impacto ao meio ambiente. Basta analisarmos a conduta de uma empresa,
peguemos como exemplo aqui, uma empresa que fabrica eletrônicos e os coloca
no mercado. Primeiro, adere à ideia de que os produtos hoje colocados no
mercado, em um curtíssimo espaço de tempo já deverão ser substituídos por
outros, e que os primeiro sequer servirão de base para os posteriores, devendo
ser absolutamente descartados, o que, sem análise profunda, já traz o problema
da sustentabilidade e da produção de lixo em excesso.
Na lógica da sociedade de consumo, tudo aquilo que deixa de auxiliar no
processo vital torna-se destituído de qualquer significado e utilidade.
O consumo insaciável do homem, agora não mais pelo que supre as suas
necessidades, mas por aquilo que é supérfluo.
104
MILARÉ, Édis apud Flávia Galvão, Ob. cit.,p. 114.
1714
3.1 Definição de Consumidor Verde
Quem estimula o consumo sustentável é o consumidor consciente ou
"verde".
Cristiane Derani trabalha com pressupostos de uma economia ambiental,
mencionando:
No momento em que se procura normatizar a utilização do meio
ambiente, trabalha-se com dois aspectos de sua realidade. O primeiro
considera o meio ambiente enquanto elemento do sistema econômico, e
o segundo considera o meio ambiente como sítio, um local a ser
apropriado para o lazer ou para as externalidades da produção,
tornando-se depósito dos subprodutos indesejáveis desta produção.
Procura-se normatizar uma economia (poupança) do uso de um bem, e
determinar artificialmente (sem qualquer relacionamento com as leis de
mercado) um valor para a conservação de recursos naturais. Estes são
105
os meios encontrados para “integrar os recursos naturais ao mercado .
O consumidor verde, chamado assim por ser mais consciente no ato de
comprar ou usar produtos com a possibilidade de colaborar com o planeta. O
"consumidor verde" sabe que se recusando a adquirir determinados produtos tem
o poder de desestimular a produção de artigos nocivos, mesmo que lenta e
gradativamente. Porisso evita aqueles que representem um risco à sua saúde ou
dos outros e que sejam agressivos à natureza na sua produção, uso ou descarte
final.
Seria, em poucas palavras, o consumidor responsável, seletivo e capaz e
consciente do seu papel fundamental.
Uma discussão sempre presente é se o consumidor tem a força para
mudar o mercado, ao optar por empresas e produtos verdes e deixando de
comprar produtos que não são amigáveis com o meio ambiente. Teoricamente,
essa pressão do consumidor, a força do mercado, obrigaria as empresas a serem
ambientalmente ecológicas ou a fecharem suas portas.
Mas deve se reconhecer que esta suposta preocupação ecológica é
meramente comercial e financeira, é uma mudança de paradigma(falando-se em
consumo sustentável) ainda regido pelo lucro, e não por uma honesta
preocupaçao ecológica da humanidade. Ainda não há uma conduta consciente
105
DERANI, Cristiane. Ob. Cit., p. 89.
1715
nem por parte do mercado, sequer por parte das empresas, quanto mais de um
consumidor individual e efetivamente preocupado com o futuro das gerações.
O conceito adotado pela CNUMAD para “desenvolvimento sustentável”106,
nas palavras da comissão Brundtland, é “o desenvolvimento que permite
satisfazer as necessidades das gerações presentes, sem comprometer a
capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades”.
Canotilho afirma que a sustentabilidade em sentido amplo procura captar
aquilo que a doutrina atual designa por “três pilares da sustentabilidade”: (i) pilar I
– a sustentabilidade ecológica; (ii) pilar II – a sustentabilidade econômica; (iii) pilar
III – a sustentabilidade social. Neste sentido, a sustentabilidade perfila-se como
um “conceito federador” que, progressivamente, vem definindo as condições e
pressupostos jurídicos do contexto da evolução sustentável. No direito
internacional, a sustentabilidade é institucionalizada como um quadro de direção
política nas relações entre os Estados (exs.: Convenção sobre as mudanças
climáticas, Convenção sobre a biodiversidade, Convenção sobre o patrimônio
cultural).107
4 AÇÕES EMPRESARIAIS NORTEADAS PELA ÉTICA AMBIENTAL E O
PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE
Estudos econômicos apuram que a empresa somente agirá em nome da
sustentabilidade se isso vier a trazer bons resultados econômicos para si mesma.
Uma empresa é ambientalmente sustentável em suas ações somente quando
isso possa repercutir a tal ponto, que venha trazer benefícios em forma de lucro.
106
Desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade
das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Comentário: Esta definição cunhada
pela Comissão Brundtland 1987 é muito sucinta, mas deixa sem resposta muitas perguntas
sobre o significado da palavra desenvolvimento e o social, os processos econômicos e
ambientais envolvidos. Risco de desastres está associada a elementos insustentáveis de
desenvolvimento, como a degradação ambiental, enquanto que, inversamente, a redução de
riscos de desastres pode contribuir para a realização do desenvolvimento sustentável, através da
redução das perdas e melhores práticas de desenvolvimento. UNISDR. United Nations Office
for Disaster Risk Reduction. terminology on disaster risk reduction. 2009, p. 29. Disponível
em:< http://www.unisdr.org/we/inform/ publications/ 7817>. Acesso em 17 jun. 2014.
107
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Princípio da sustentabilidade como Princípio
estruturante do Direito Constitucional. Revista de Estudos Politécnicos. Tékhne.n.13. Barcelos,
Portugal. jun. 2010.
1716
A repercussão que exala de práticas ambientais corretas faz com que
determinada empresa tenha maior renome, e com isso possa tornar-se forte no
ramo da competitividade.
Seria, basicamente, a adoção de práticas ambientais que possam
assegurar uma vantagem competitiva em relação às demais empresas do ramo.
A economia ambiental analisa os problemas ambientais a partir do
pressuposto de que o meio ambiente – precisamente a parte dele que
pode ser utilizada nos processos de produção e desenvolvimento da
sociedade industrial – é limitado, independentemente da eficiência
tecnológica para a sua apropriação. O esgotamento dos recursos
naturais, responsável pela assim chamada crise do meio ambiente, é
identificado em duas clássicas tomadas: com o crescente consumo dos
recursos naturais (minérios, água, ar, solo, matéria-prima) como bens
livres (free gifts of nature) e com os efeitos negativos imprevistos das
108
transações humanas .
Especialmente quanto ao tema aqui tratado, se verificou que empresas
ambientalmente responsáveis têm uma melhor reputação na comunidade, o que
pode levar a fidelidade à marca. Essas empresas também têm um risco diminuído
de serem alvos de ativistas ambientais, que podem manchar a reputação de seus
nomes. Justamente isso é o que leva uma empresa a adotar posturas para além
do que a lei exige. 109
Nesse diapasão, impor regulamentos e sanções, no sentido de obrigar
empresar a serem ambientalmente sustentáveis, com intervenção estatal efetiva,
surte menos efeito que estimular ações através das escolhas feitas pelos
consumidor.110 Paddock ressalta que, embora o regulamento seja o instrumento
mais direto e previsível para se fazer um controle ambiental do comportamento,
outros programas para deter ações de infratores têm se mostrado mais efetivos.
O referido autor apresenta forma de influenciar o consumidor a exercer influência
no mercado de consumo, chegando a sugerir maneiras de um programa de
cumprimento e execução em que gestores podem ser capazes de aproveitar
melhor seus ativos e influenciar vetores internos de economia e, ainda, ajudar a
construir valores públicos que suportam resultados ambientais mais sustentáveis.
Dentre as medidas, cita:
108
DERANI, Cristiano. Ob. Cit., p. 90.
PADDOCK, Leory. Ob. Cit.
110
Idem.
109
1717
• empregar uma gama completa de ferramentas de conformidade e
aplicação para resolver importantes problemas ambientais;
• elaborar programas de cumprimento e execução para alinhar melhor
principais incentivos;
• promover a aprendizagem e auto-avaliação;
•habilitar o público a influenciar diretamente a tomada de decisão
ambiental;
• incentivar a resolução colaborativa de problemas;
• apoiar o setor privado a execução de gestão de cadeia de
abastecimento;
111
• Reconhecendo o desempenho ambiental superior (grifo nosso)
O consumidor detém em suas mãos uma força que não é dimensionada
por ele. É justamente com ele que se encontram as mais almejadas ações que
uma empresa pode buscar. Além do poder econômico, com a escolha por
determinado produto, o consumidor traz repercussão em suas escolhas, fazendo
com que determinada empresa se torne mais forte, em termos competitivos.
Encaixam aqui as medidas sugeridas por Leroy Paddock, no sentido de habilitar o
consumidor a influenciar as medidas tomadas pelas empresas (fabricante,
fornecedor e comerciante) no sentido da preservação ambiental e ações
sustentáveis.
Além disso, construir uma boa reputação não é apenas a coisa certa a
fazer, é também um ponto de vantagem competitiva, porque fazendo a coisa certa
traz as melhores pessoas, melhora o valor da marca e se cria confiança com os
clientes.
Ponto importante nesse contexto é a conduta de colocação no mercado de
produtos com maior durabilidade (vida útil) combinado com a satisfação do
consumidor. A chamada durabilidade estendida não só preserva a utilização de
novos recursos naturais empregados na produção, como também diminui a
quantidade de lixo que deriva da inutilização e destruição de bens, para, então,
substituí-los por novos.
Em relação à tal prática, colaciono entendimento no sentido de trazer
vantagens econômicas às empresas:
Não se perca de vista a ótica macroeconômica da durabilidade. O
aumento da durabilidade dos produtos incrementa a competitividade
entre as empresas, pois quanto maior a vida útil do produto, menor é
custo do serviço que um produto presta por unidade de tempo. Menores
também são os investimentos gerados na reposição de peças e
estruturas danificadas pelo desgaste, importando em redução dos custos
111
PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.1.
1718
globais de manutenção. O modo mais viável, assim sendo, para que a
exploração das matérias-primas e outras fontes de recursos naturais
(renováveis ou não) seja sustentável, implica em garantir – sempre que
possível - a sua máxima duração, ou seja, o seu uso mais
prolongado,através da produção de bens de consumo resistentes,
duráveis, passíveis de consertos quando danificados, de recargas
quando esgotadas as suas capacidades energéticas, portanto, em
112
condições de uma ideal economia conservativa .
5 EXERCENDO O CONSUMO SUSTENTÁVEL
No ano de 1987, o relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente da
Organização das Nações Unidas, batizado de “Nosso Futuro Comum”, pautou-se
na ideia de conciliar proteção ambiental com o problema do desenvolvimento
econômico, ou seja, amenizar o antagonismo existente entre a satisfação das
necessidades dos consumidores e a preservação dos recursos naturais limitados.
Trouxe, ainda a necessidade de permitir capacidade aos países considerados de
terceiro mundo na busca pelo incremento de suas economias, tudo no sentido de
sustentabilidade.
Mais recentemente, o documento da Rio +20 “The future we want” definiu,
em seu item 225113, que os países reafirmam seus compromissos de eliminação
progressiva de combustíveis fósseis e perigosos, bem como desestimular o
consumo exagerado, que mina o desenvolvimento sustentável. (grifo nosso)
Em termos de adoção de ações que possam preservar o meio ambiente,
fundadas em sustentabilidade, chega-se à hipótese de existência de uma possível
regulação empresarial, com o objetivo de assegurar a preservação de recursos
ambientais mesmo com o avanço do mercado empresarial. Surge, nessa senda,
a expressão “motores internos de organização ambiental”114, no sentido de (auto)
regulação empresarial voltada à sustentabilidade.
Dentre as medidas propostas para se desenvolver uma postura
empresarial tendente à incentivar um consumo mais sustentável, conta-se com a
habilidade do público consumidor em influenciar o mercado. O consumidor possui
112
PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.3.
Doc ONU “The Future We Want”, Rio+20 2012. Disponível em :< <http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N12/381/64/PDF/N1238164.pdf?OpenElement> . Acesso em 17
jan.2015.
114
PADDOCK, Leroy. Ob. Cit.
113
1719
em suas mãos a maior concentração do poder, pode ele redirecionar
completamente o mercado, no sentido de garantir a preservação dos recursos
naturais limitados, basta para isso, adotar posturas que não deixem escolha às
empresas, que não é segredo, busca desenfreadamente o lucro.
No sentido desse estudo, o referido artigo ainda traz, pelo menos cinco
razões para que uma empresa voluntariamente possa regular sua práticas
ambientais para ganhar vantagem competitiva, seriam elas:
1. Redução de ineficiências de produção e saída de resíduos para
reduzir impactos ambientais e custos e aumentar de competitividade;
2. Empresas ambientalmente responsáveis atraem e retêm uma força
de trabalho de maior qualidade e trabalhador de maior satisfação leva ao
aumento da produtividade;
3. empresas ambientalmente responsáveis têm uma melhor reputação
na comunidade, que pode levar a mais fidelidade à marca. Essas
empresas também têm um risco diminuído de serem alvo de ativistas
ambientais, que podem manchar a reputação da marca. (já mencionado
anteriormente)
4. Responsabilidade ambiental reduz o risco de serem expostos novos
regulamentos, por exemplo, pressão de investidores para alterar
políticas, aumentando os custos do negócio;
5. Ambientalismo pode fornecer acesso ou criar um mercado
completamente novo com o potencial de crescimento de receita
115
significativa .
A maior barreira para exercer o consumo sustentável é o preço, já que
esse tipo de produtos é ainda mais caro, e mercados como o Brasil, não tem
ainda o poder aquisitivo para fazer essa mudança total. Não é possível ter uma
sociedade pobre ou em desenvolvimento consumindo produtos ecológicos com
preços acima do mercado.
Nesse sentido:
Quanto maior o preço da mercadoria (recursos naturais), menor a
quantidade de sujeitos que têm acesso a ela. Por causa do aumento da
dificuldade de acesso a estes “bens”, surge uma forma nova de exclusão
da concorrência no mercado. O aumento do custo da produção permite
maior concentração de capital, numa clara tendência monopolista. A
concorrência é paulatinamente reduzida e o mercado torna-se um
oligopólio de grandes grupos, que estão dispostos não somente a pagar,
como também a diminuir a incômoda concorrência. O pagamento e a
disposição a pagar são movimentos decorrentes da produção. Paga-se à
medida que se detém o poder de compra. No desenvolvimento desta
prática, não se alcança efetivamente o objetivo de conservação dos
recursos naturais. O que ocorre é a sumária transferência do uso da
natureza para faixas cada vez mais estreitas da sociedade. Um
115
Idem, p.5.
1720
instrumento que seria para afastar a poluição afasta a concorrência e
116
concede privilégios de poluir .
Outros pontos a serem levados em conta para uma "compra verde" são: a
postura da empresa em relação a temas ambientais, suas ações sustentáveis,
seus processos de produção, compra de matéria prima, mão de obra estrangeira,
como a empresa lida com o descarte de seus produtos, tudo deve ser pesquisado
e levado em conta na hora de consumir algum produto. Leroy Paddock chega a
afirmar que uma empresa é capaz de criar um regulamento, a ser respeitado
pelas demais, que as levam a um comportamento de proteção ambiental117.
Consumo sustentável não é apenas a ação empresarial de apresentar os
seus produtos em uma embalagem ecológica, mas sim conhecer tudo o que está
por trás, até o produto chegar ao mercado.
Mas esse respeito existente nos regulamentos ambientais não é
suficiente para alcançar o objetivo maior da sustentabilidade, é
importante para aqueles que trabalham em programas de execução para
pensar sobre como eles podem aproveitar seu trabalho e influenciar
"condutoreseconômicos internos” de comportamento ambiental ajudam a
construir valores sociais que contribuem para alcançar resultados para
além do mero cumprimento. Os programas têm, por algum tempo,
suportado esforços que visam prevenir a poluição, incentivar o
desenvolvimento de melhores sistemas de gestão ambiental e promover
a auditoria ambiental, e todos podem ter um impacto sobre a economia
interna e com respeito aos valores. Mas regulamentos tipicamente não
têm avaliado a extensão que seus programas podem e devem
estrategicamente levar em conta naeconomia interna e valores sociais
como parte de um maior esforço dos órgãos ambientais para alcançar
118
resultados sustentáveis .
Este assunto já se encontra no âmbito empresarial brasileiro com a Agenda
21 Brasileira, pelo Instituto Akatu pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil, pelo
Centro de Estudos de Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (CES-FGV),
entre outros.
A Agenda 21, já citada anteriormente, tem por objetivo preparar o mundo
para os desafios do século 21, por meio de diretrizes elaboradas para promover
padrões de consumo e produção que reduzam as pressões ambientais e ao
mesmo tempo possam atender as necessidades básicas da humanidade, além de
desenvolver uma melhor compreensão do papel do consumidor e da forma de
implementar padrões de consumo mais sustentáveis.
116
DERANI, Cristiane. Ob. Cit. p. 95.
PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.4
118
PADDOCK, Leroy. Ob. Cit. p. 3
117
1721
Ainda, além das políticas públicas, que podem ser adotadas em conjunto
com o Estado, para modificação dessa cultura do consumo em massa, há
possibilidade de inserção do tema ambiental no mercado por meio de
instrumentos econômicos e de regulação. Dificilmente o mercado seria o
responsável pelo incentivo à essas experiências.
6 CONCLUSÃO
De todo exposto, percebe-se que a postura defendida de um consumidor
consciente envolve, antes de mais nada, ação cotidiana, e mesmo que de início
atinja poucas pessoas, deve ser adotada pelo resto de nossas vidas. As
empresas possuem forte influência no comportamento do mercado, podendo,
certamente, contribuirem para a preservação do meio ambiente de forma a
garanti-lo às gerações futuras, o que, de forma auspiciosa, também é do seu
interesse direto.
Quanto ao consumidor, é preciso consumir com consciência, o que envolve
uma postura de cidadania, porque mesmo que essa ação parta de um pequeno
grupo de pessoas, no decorrer do tempo, resultará em uma enorme diferença.
Há evidências que uma parcela dos consumidores estaria disposta até a
pagar uma “quantia” a mais para aquisição de determinado produto que (seja no
seu processo de fabricação, seja na sua origem social), provenha de uma
abordagem ambientalista ou natural, a exemplo de produtos oriundos da
Amazônia, no âmbito nacional ou internacional. Mas é importante lembrar que a
concorrência com produtos industrializados é sempre desleal.
Percebemos que uma empresa ou um processo, para ser válido dentro dos
conceitos atuais, deve ser economicamente rentável, ambientalmente compatível
e socialmente justa. Para coibir agressões inconsequentes e continuadas ao meio
ambiente, espera-se que haja uma política clara e abrangente, que envolva a
atuação
conjunta
de
governos,
empresários
e
comunidade.
Empresas,
progressivamente, estão percebendo que adotar medidas com base em
sustentabiidade, quer na produção, utilização e descarte de produtos e matériasprimas chamam a atenção do consumidor consciente, nominado de consumidor
1722
verde, e que, cada vez mais vai tomando força nesse cenário de produção em
massa.
Assim, o consumidor consciente é aquele que já percebeu o enorme poder
que tem em suas mãos. A ideia, então, não é a de que as pessoas deixem de
comprar o que julgam necessário, nem façam enormes sacrificios, mas que todos
saibam que fazendo uma pequena parte diariamente irão contribuir para grandes
resultados.
Vale lembrar, que a palavra central quanto ao tema deve ser sempre
conciliação.
REFERÊNCIAS
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SARLET, I. W. (Org.); KRELL, A. J. et al. Estado Socioambiental e Direitos
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CANOTILHO, J. J G. O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante
do Direito Constitucional. Revista de Estudos Politécnicos. Tékhne.n.13.
Barcelos, Portugal. jun. 2010.
BAGGIO, A. MANCIA, K. A proteção do consumidor e o consumo
sustentável: análise jurídica da extensão da durabilidade dos produtos e o
atendimento ao princípio da confiança, disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/02_409.pdf>. Acesso
em 20 de julho de 2013.
BASTOS, L. E. A. F. O consumo de massa e a ética ambientalista, Revista de
Direito Ambiental, ano 11, n. 43, julho-setembro de 2006. Editora Revista dos
Tribunais, p. 177-202.
DERANI, C. Direito Ambiental Econômico. 3ª. Edição. São Paulo: Saraiva,
2008.
GALVÃO, F. N. Desenvolvimento Sustentável e Capitalismo: Possibilidades e
Utopias, Revista IOB de Direito Administrativo, São Paulo: dezembro/2006, vol.
01, n. 12, p. 106-119.
PADDOCK, L. C. Beyond Deterrence: Compliance and Enforcement in the
Context of Sustainable Development. In: Ninth International Conference on
Environmental Compliance and Enforcement, 2011, p. 589 – 615.
1723
The Future We Want Rio+20. Disponível em: <http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N12/381/64/PDF/N1238164.pdf?OpenElement> .
Acesso em 17 jan.2015.
UNISDR: United Nations Office for Disaster Risk Reduction terminology on
disaster risk reduction. .2009, p. 29.Disponível em:<
http://www.unisdr.org/we/inform/ publications/ 7817>. Acesso em 19 dez. 2014.
1724
REDES COMERCIAIS
Arnaldo Rizzardo Filho,
RESUMO: Há aproximadamente setenta anos a economia vem se desenvolvendo
comercialmente através de redes comerciais, com a aproximação de empresários
visando o compartilhando e até a reprodução de bens imateriais, tais como a
identidade do negócio, o know how, a maneira de empreender, o trade dress,
dentre outros. O novo cenário, inédito até então, fruto de uma virtualização cada
vez maior da sociedade, forma-se a partir da ideia de “clonagem contratual” de
um negócio bem empreendido. As redes comerciais serão abordadas enquanto
sistemas sociais devidamente virtualizados para reprodução. Hoje, no Brasil, há
uma total inconsciência no que tange à ontologia das redes comerciais, e é a
partir da Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann, com a identificação das
expectativas sociais sobre o negócio em rede, das complexidades e das
contingências que efluem dos sistemas criados, que o artigo se desenvolverá.
Buscar-se-á entender todas as variáveis que compõem os negócios em rede para
então estruturá-los com as reduções generalizantes virtuais (contratos)
adequadas aos fins que se destinam. O artigo desenvolver-se-á partir de
considerações multiconceituais envolvendo Sociologia, Economia e Direito, bem
como análise legislativa e jurisprudencial referente às redes comerciais. Assim,
reputa-se possível identificar o correto Direito aplicável às redes comerciais. Se a
rede comercial possui uma função, o Direito a ela aplicado tem que estar de
acordo com sua função, e se a rede comercial forma um sistema social, o Direito
deve estar conforme as realidades fenomênicas que orbitam esse ambiente
sistematizado.
PALAVRAS-CHAVE: redes comerciais; teoria sistêmica; Niklas Luhmann.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos setenta anos o mercado varejista vem se organizando e se
expandindo través de redes comerciais. O sistema clássico possuía comerciantes
individualizados, com características próprias, que competiam entre si pelo
sucesso no mercado. O sistema evoluiu e acrescentou a esse cenário alguns
comerciantes atuando de forma coletiva, coordenada. Mas não uma coordenação
ilegal, como ocorre nos carteis; uma coordenação legal, como fazem as redes
1725
comerciais. Esses comerciantes se identificam como um grupo, e assim, se
organizaram como grupo, atuando e caracterizando-se de forma una, idêntica,
como uma verdadeira “clonagem”. É sobre esse fato especial, sobre essa ideia de
coletividade, que se propõe uma discussão de nível acadêmico sobre tudo o que
importa em relação às redes comerciais. Propõe-se uma discussão que envolva
conhecimentos sociológicos, jurídicos e econômicos sobre as redes comerciais. A
ideia na qual orbita a rede comercial será pensada em todas suas possíveis
dimensões. Ao final estará desnudado o fenômeno social rede comercial, e não
mais haverá dúvida sobre qual o melhor Direito a ser aplicado.
Economicamente, é importante entender o que as redes comerciais
significam enquanto evento econômico. Juridicamente, há três pilares que
sustentam as redes comerciais: os bens imateriais que identificam as empresas
de uma rede, os contratos que estruturam o sistema de atuação das redes, e as
responsabilidades que cada polo da rede tem (formatador da rede e aderentes à
rede). Hoje, o debate jurídico sobre redes comerciais pauta-se apenas sobre o
ângulo de vista da propriedade intelectual. Por isso, quando se fala em rede
comercial, fala-se praticamente apenas em know how e trade dress, institutos que
são tratados sob a ótica do direito real. Ocorre que há muito mais que direito real
nas redes comerciais. A análise sociológica, por sua vez, será realizada sob os
auspícios da Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann. Certo é que se podem trazer
argumentos oriundos das escolas mais tradicionais, que estudam os conflitos e os
rituais. No entanto, reputa-se mais eficaz entender as relações sociológicas
existentes em face das redes comerciais sob a Teoria Sistêmica, teoria que é
capaz de apreender todas as facetas deste objeto de estudo.
Muito embora não haja referência histórica no presente artigo, de forma
ampla o tema envolve uma análise evolutiva sobre os elementos que compõem o
conceito de rede comercial, como propriedade intelectual, comércio e contratos. A
valoração patrimonial da atividade intelectual (know how e trade dress), por
exemplo, consolidou após o Movimento Iluminista, mas tem sua origem no
Movimento Renascentista. A existência de bens intelectuais expandiu-se para
diversas áreas, como as obras literárias, as obras artísticas, as obras científicas,
as interpretações e as execuções dos artistas, etc. Leonardo da Vinci, já
1726
reconhecendo a importância de seu trabalho, registrava seus estudos, ideias e
protótipos através de códigos, preservando, dessa forma, o sigilo.
Sob a perspectiva das redes comerciais, em meados do século XX, nota-se
um movimento de união entre empresários e comerciantes, que passam a se
expandir coletivamente, compartilhando seus bens imateriais em troca de valor e
domínio econômico.
Presentemente, devido à jovialidade das redes comerciais, os problemas
são muitos. Em verdade, nem mesmos os problemas de direito real foram
superados, pois nem todos os bens industriais existentes são legalizados119. Mas
também se identificam problemas jurídicos nos campos contratual, obrigacional e
da responsabilidade civil.
A questão é que, de fato, a expansão empresarial através da formação
redes de empresas é uma realidade social digna de estudo. Exemplos como
McDonald’s e Yazigi mostram que essas empresas/marcas/negócios chegam a
ser confundidos com o próprio ramo do comércio em que estão inseridos. A
efetividade da rede é latente. O comércio desenvolvido em rede é um dos mais
recentes fenômenos evolutivos do mercado, que ocorre justamente no sistema do
varejo, aquele destinado à distribuição dos bens e serviços.
2 ABORDAGEM ECONÔMICA
Economicamente, redes comerciais significam ganhos competitivos e
benefícios para as empresas participantes. As redes proporcionam o aumento do
poder de barganha perante os fornecedores e a formação de uma imagem forte
capaz de se fazer presente em diversas bases geográficas, o que representa
potencialidade em ganho de clientela. Também ocorre aprendizagem coletiva e
inovação colaborativa no âmbito dessas redes. Essa nova estratégia é uma
verdadeira reestrutura hierárquica de negócios. Onde se tinha um empresário
com um negócio único ou com diversas filiais, passa-se a ter um empresário com
esse mesmo negócio e diversos outros empresários que atuam em regime de
119
Aqui adota-se todas as ideias de Niklas Luhmann no capítulo IV da sua Sociologia do Direito.
1727
cooperação para que o negócio cresça sob uma única bandeira e expanda-se
com custos e benefícios divididos entre todos os envolvidos.
Balestrini e Verschoore120 apontam os principais ganhos competitivos que
as redes comerciais (por eles chamada de redes de cooperação) proporcionam.
Há uma maior escala e poder de mercado, advindo do tamanho cada vez maior
da rede. Quanto maior a demanda, maior a sua capacidade de barganha, o que
gera benefícios em relação aos fornecedores. Também forma-se dentro da rede
uma inteligência coletiva, fruto da absorção de alteridade, o que acaba gerando
um movimento racional autopoiético121. Há, ainda, redução de custos e riscos,
devido ao compartilhamento do negócio com os aderentes à rede. Ademais,
outras vantagens são evidentes, principalmente em nível de marketing, devido
aos efeitos sociais que uma marca gera em seu ambiente de atuação.
As características administrativas e organizacionais para administração das
redes são evidenciadas por Sarita e Lastres122: “Esses novos formatos
organizacionais enfatizam a descentralização, a interação interna e com parceiros
de todos os tipos, fornecedores e clientes, os quais igualmente baseiam-se
crescentemente nas TIs e em informação e conhecimento”.
Novamente citando Balestrini e Verschoore123, “a sociedade informacional
possui como principal fator de produtividade e competitividade a capacidade dos
indivíduos e das organizações gerar, processar e transformar informações e
conhecimentos em ativos econômicos[...] o verdadeiro diferencial estratégico da
organização está muito mais em seu potencial de criar novos conhecimentos que
na tentativa de gerenciá-los”. Dessa transcrição ficam evidentes dois pontos: a
sociedade de informação e o conhecimento que a rede proporciona. Esses são
tópicos que merecem abordagem filosófica, principalmente com base na teoria
sobre o virtual de Pierre Lévy124. Segundo Lévy, “a virtualização pode ser definida
120
Balestrini, Alsones. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias de gestão na
nova economia. São Paulo: Bookman, 2008.
121
Aqui adota-se a teoria virtual de Pierre Lévy.
122
Lastres, Helena M. M., Sarita, Albalgi (organizadoras). Informação e globalização na era do
conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999, pág. 47.
123
Balestrini, Alsones. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias de gestão na
nova economia. São Paulo: Bookman, 2008, pág. 129.
124
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição)
1728
como o movimento inverso da atualização”,125 há um constante movimento de
passagem do atual ao virtual, uma “elevação à potência” da entidade
considerada. A virtualização é uma mutação de identidade, uma modificação
ontológica do objeto; por isso, enquanto a atualização é a solução de um
problema, a virtualização é o próprio problema. Enquanto o movimento da
atualização vai do problema à solução, o movimento da virtualização vai de uma
solução a um problema. O fato é que esse movimento (chamado por Lévy de
efeito Moebius) caminha em redes de virtualizações, uma ação apoiando-se em
outra, em uma historicidade total126. Há uma tendência autopoiética no movimento
atual-virtual-atual-virtual[...]que se alimenta da própria história gerada.127 Segundo
Lévy, existe um “espírito” compatível com a coletividade, com uma inteligência
múltipla, heterogênea, constantemente auto-organizadora ou autopoiética, que se
desenvolve a partir do “acolhimento da alteridade” do mundo ao seu redor.
Muitas diferenças devem ser observadas entre o negócio em rede e o
negócio independente. Enquanto em um negócio independente o empresário está
sozinho em uma situação mercadológica talvez completamente nova, não tendo
qualquer apoio administrativo, em uma rede comercial se dispõe de muitos
atrativos que lhe trazem maior segurança, tais como consultoria mercadológica,
administrativa, técnica e financeira. Também há a garantia de o negócio base da
rede já existir, ser conhecido e aceito no mercado. Efetivamente, a rede oferece
os produtos e serviços já desenvolvidos, testados e implantados no mercado.
Além disso, a rede disponibiliza de imediato ao aderente a marca, que
presumivelmente está implantada no mercado. No negócio independente, para
criar produtos ou serviços, desenvolvê-los, testá-los e implantá-los no mercado, o
know how deverá nascer do próprio empreendedor individual. Além do mais,
necessitará de tempo para conquistar o mercado.
Já se pode observar as peculiaridades que fazem parte da essência dos
negócios em rede. É possível dizer que o aderente à rede perde parcela de sua
autonomia; porém, basta um aprofundamento no estudo para perceber que o
125
O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª
edição), pág. 17.
126
A importância da historicidade para a formação do pensamento é latente.
127
Bem ao estilo de Niklas Luhmann.
1729
aderente recebe muitos benefícios da rede. Começa-se o negócio sabendo-se
muito a respeito dele próprio, como o melhor modo de administração, os melhores
fornecedores, os melhores pontos comerciais, as exigências dos clientes, etc.,
além de se ter um marca (imagem, identificação) já consolidada no mercado.
Usando os números apenas das redes comerciais formatadas em
franquias, disponíveis pela Associação Brasileira de Franchising, a evolução do
setor no Brasil é espantosa (os números abaixo correspondem a faturamento do
setor de franchising brasileiro em bilhões de reais nos respectivos anos)128:
Há, definitivamente, inúmeras questões econômicas relacionadas às redes
comerciais. O estudo aprofundado de cada uma dessas questões é de
importância capital para se entender a função das redes comerciais e como o
Direito deve estruturar esse fenômeno econômico de forma a organizar o
desenvolvimento.
3 ABORDAGEM JURÍDICA
Redes comerciais, ou redes de cooperação, ou sociedades informacionais,
envolvem análises jurídicas de propriedade intelectual, de direitos obrigacionais,
de direitos contratuais e de responsabilidade civil, comercial e consumerista.
Em relação à propriedade intelectual, constata-se na doutrina haver uma
lacuna na legislação pátria. Conforme explica Newton Silveira, “A Lei de
Propriedade Industrial não protege, entretanto, todas as invenções técnicas, mas
apenas as invenções industriais, ou seja, as que consistem em um novo produto
ou processo industrial”129. Ademais, a Lei de Propriedade Industrial trata dos bens
imateriais sob o estatuto da propriedade, passando longe das questões relativas
aos direitos e obrigações advindos da relação de cooperação existente nas redes.
Na área contratual e obrigacional, é possível notar, por uma simples
análise das leis que regem os contratos comerciais tendentes a formar redes,
uma total omissão quanto às técnicas de formatar uma rede, quanto às
128
http://www.portaldofranchising.com.br/numeros-do-franchising/evolucao-do-setor-de-franchising
Newton Silveira. Propriedade intelectual: propriedade industrial, direito de autor, software,
cultivares, nome empresarial, abuso de patentes, 5. Ed. Barueri/SP: Manole, 2014, pág. 06.
129
1730
obrigações que as redes geram para seus atores contratuais, e quanto as
expectativas em face dos consumidores e dos próprios membros da rede. As
redes comerciais formadas, por exemplo, pelo contrato de agência e distribuição
(artigos 710 e seguintes do Código Civil atual), não possuem nenhum regramento
quanto às obrigações de cooperação entre formatador e aderente das redes. Há
previsão apenas da obrigação do aderente em promover mediante retribuição a
realização de certos negócios em zona determinada. Para o aderente, há apenas
a proteção contra a concorrência, “caso contratada”. Em contrapartida, ao
aderente é imposta diligência e obediência hierárquica ao formatador da rede. No
mais, há previsão de que as despesas para efetuar o negócio corram a cargo do
agente/distribuidor/aderente, e direito à indenização se o proponente/formatador
da rede der causa ao fim do contrato sem justa causa. O grau de imprecisão é tão
grande que instituto de direito trabalhista é aplicado em relações comerciais.
Outro exemplo: na legislação que rege o contrato de franquia (Lei
8.955/94), há apenas a obrigação do franqueador (formatador da rede) fornecer
ao interessado em tornar-se franqueado (aderente à rede) uma Circular de Oferta
de Franquia por escrito contendo algumas informações sobre o negócio. Nada há
sobre as obrigações “durante” o negócio, como, por exemplo, a coordenação
entre os participantes da rede para manutenção de identidade de ação.
São essas apenas algumas das problemáticas desses novos contratos
comerciais que precisam melhor reflexão. Seguindo as palavras de David
Campbell e Hugh Collins, “não nos comprometemos, contudo, com o ponto de
vista segundo o qual o direito contratual deveria ser disciplinado por uma versão
de eficiência que aloca a liberdade de contratar em um pedestal. Em muitos
contratos, a necessidade de cooperação e adaptação, com vistas a obter uma
produção eficiente e competitividade, poderá apenas ser alcançada por meio de
contratos que estejam incompletos em seus projetos, mas sejam suplementados
por obrigações implícitas de cooperação e de proteção às expectativas razoáveis.
Esses tipos de contrato de longo-prazo, relacionais e de interação, demandam, de
tempos em tempos, uma sustentação jurídica que os proteja de contratempos, e a
sustentação deve exigir o reconhecimento de efeitos jurídicos às obrigações
1731
implícitas, caso isso ajude as partes a assegurarem os ganhos de eficiência de
suas transações”130.
Na linha do que entende Mark C. Suchman, os contratos “podem ser
claramente tomados como artefatos. Eles são produtos do esforço humano
consciente; eles são objetos materiais tangíveis e distintos; e tanto em forma
quanto em conteúdo, eles refletem uma ampla ordem de influências naturais e
sociais. O parentesco entre contratos e os tipos mais convencionais de cultura
material é particularmente óbvio, quando se enfoca os aspectos decorativos,
como, por exemplo, os selos, as bordas do papel folhadas a ouro, o tipo de papel
utilizado e assim por diante. Essa afinidade persiste; no entanto, mesmo quando a
atenção se volta para elementos mais substantivos, como determinados termos
ou frases ou certas combinações de previsões contratuais em operação. Pode-se
analisar o design e o estilo de uma cláusula de ressarcimento (clawback) da
mesma forma que se pode analisar o design e o estilo de um martelo [claw-head
hammer], atentando a características como: impacto e rigidez, construção e
acabamento, tamanho e peso”131.
O problema reflete nos nossos tribunais. O entendimento jurisprudencial
sobre as questões obrigacionais das redes é, hoje, desastroso, inclusive com
orientação jurisprudencial no sentido de o contrato de franquia, por exemplo, ser
caracterizado como um contrato de “risco”. Ora, nesse caso, somente quem adere
à rede é prejudicado, pois assumiu o “risco” de adquirir uma franquia. O paradoxo
é que, ao adquirir uma franquia, com toda aquela gama de bens intelectuais já
definitivamente desenvolvidos, o aderente espera justamente evitar os “riscos” de
um negócio independente. São muitos os pontos que levam a crer que não se
pode dar ênfase ao “risco” nos contratos de franquia. Mesmo assim, a
jurisprudência reiteradamente entende haver risco, como se vê nos julgamentos
oriundos do Tribunal de Justiça gaúcho.132
130
file:///C:/Users/Mano/Downloads/Para-que-serve-o-direito-contratual%20(1).pdf.
file:///C:/Users/Mano/Downloads/Para-que-serve-o-direito-contratual%20(1).pdf.
132
Apelação Cível Nº 70018858423, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em 25/04/2007. Apelação Cível Nº 70015554769,
Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angelo Maraninchi Giannakos,
Julgado em 13/09/2006. Apelação Cível Nº 70007889579, Quinta Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 01/04/2004.
131
1732
E esse é apenas um dos problemas que se tira da praxe forense. Todos
são problemas oriundos da má interpretação dos objetivos econômicos das redes,
da compreensão do evento que os contratos devem estruturar, das expectativas
obrigacionais que o negócio gera, da função que os bens imateriais possuem,
enfim, resultando na incompreensão do Direito que deve ser aplicado às redes
comerciais.
4 ABORDAGEM SOCIOLÓGICA
O sociólogo alemão Niklas Luhmann desenvolveu sua teoria do direito sob
o ponto de vista de um dever-ser não natural à sociedade. Luhmann analisa o
dever-ser a partir de sua função, assim abrindo caminho para um debate mais
direcionado e complexo em termos sociológicos. Na base da Teoria Sistêmica de
Luhmann os campos da ação e da experiência sensorial são os focos de análise,
pois é a partir daí que se formam as personalidades e os sistemas sociais como
diferentes estruturações de complexões de sentido. As personalidades e os
sistemas sociais são estruturas distintas de assimilação da experiência. Uma vez
que as indagações sobre as ações e experiências digam respeito à
personalidade, estar-se-á diante da psicologia; dizendo respeito às ações e
experiências no contexto funcional e estrutural de sistemas sociais, estar-se-á
diante da sociologia. O fato é que a relação do homem com o mundo se dá de
forma sensitiva, e existem elementares em todas as sociedades, modernas ou
arcaicas, que precisam ser pesquisadas para se chegar a uma ideal explicação
do Direito.
Assim, Niklas Luhmann, em sua Sociologia do Direito133, traça os paços de
sua teoria. O primeiro passo está na problemática do convívio humano
sensorialmente orientado, através dos conceitos de contingência e complexidade:
a sobrecarga do convívio humano é atenuada pela formação de estruturas de
expectativas. O segundo passo está na diferenciação entre estruturas cognitivas e
estruturas normativas de expectativas: dependendo do caso de desapontamento,
133
Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro, 1983
1733
estará prevista a assimilação ou não à frustração da expectativa. No caso de
assimilação da frustração, a estrutura será cognitiva – quando, por exemplo, não
se dá bom dia; no caso contrário, a estrutura será normativa – quando, por
exemplo, se rouba. O terceiro passo está justamente na determinação das
expectativas de comportamento que devem ser normatizadas, momento em que
há, devido à possibilidade de frustração, a necessidade de se manter a
estabilidade social.
Três são as dimensões, portanto: material, social e temporal. A dimensão
material diz respeito à identificação de complexões de expectativas; a dimensão
social diz respeito à institucionalização de complexões de expectativas; a
dimensão temporal diz respeito à normatização de complexões de expectativas.
Primeiro
identifica-se
uma
expectativa,
depois
ocorre
ou
não
sua
institucionalização, e por fim, em caso positivo, normatiza-se. A partir do
entendimento dessas três dimensões, é possível definir e descrever a função do
Direito como congruente, ou seja, como generalização de estruturas de
expectativas coerentes em todas as três dimensões. Nas palavras de Luhmann,
“o homem vive em um mundo constituído sensorialmente[...] o mundo apresenta
ao homem uma multiplicidade de possíveis experiências e ações, em
contraposição com seu limitado potencial em termos de percepção, assimilação
de informação, e ação atual e consciente. Cada experiência concreta apresenta
um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo
tempo complexas e contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre
existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência
entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais
experiências poderiam ser diferentes das esperadas[...] Em termos práticos,
complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de
desapontamento e necessidade de assumir-se riscos. Sobre essa situação
existencial desenvolvem-se estruturas de assimilação da experiência, que
absorvem e controlam o duplo problema da complexidade e da contingência.
Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um
bom resultado seletivo, são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se
1734
relativamente frente a desapontamento”134. Esses enfeixamentos normativos
contra desapontamentos estruturam o sistema jurídico vigente.
Aplicando a Teoria Sistêmica às redes comerciais, a primeira questão que
vem à tona é entender economicamente o evento. Conforme referido nas
abordagens anteriores, a formatação e a aderência a uma rede comercial é uma
estratégia comercial para se auferir maiores ganhos e benefícios comerciais. É
sob a função e propósito das redes comerciais que as complexões de
expectativas são identificadas e diferenciadas. É só a partir da identificação e
institucionalização das expectativas comportamentais que as redes geram que se
pode estruturar o negócio através de contratos que enfeixam expectativas
normativas.
O enfoque passa a ser, então, as expectativas que devem ser sustentadas
normativamente pelas redes comerciais, através das generalizações congruentes
que os contratos comerciais devem representar. As leis existentes hoje que
tratam dos contratos que formam redes comerciais pouco representam enquanto
paradigma cognocente, devido ao vazio ontológico que possuem em relação ao
evento enquanto fenômeno social gerador de expectativa.
Ao se estruturar normativamente uma rede de empresas, inúmeros direitos
e obrigações surgem entre as partes contratantes, decorrentes justamente dos
objetivos comerciais que esses as redes visam. Para o desenvolvedor/formatador
da rede, existem inúmeras obrigações que geram responsabilidade, sendo que,
talvez, a maior esteja em prover, fomentar, desenvolver a rede que criou.
Também se pode pensar na questão do ganho mercadológico, pois é isso que se
procura quando se pretende aderir a uma rede. Nota-se, efetivamente, haver um
hiato entre as considerações hoje institucionalizadas entre os comerciantes que
participam de redes e as disposições normativas existentes. Quem entra em uma
rede, ao invés de empreender individualmente, o faz coletivamente por um motivo
especial. A questão é entender o que significa a constituição de uma rede em
relação às expectativas dos aderentes da rede. As unidades/lojas das redes ficam
sujeitas à própria sorte, ou deve o formatador da rede continuar engendrando
134
Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro, 1983, págs. 45 e 46.
1735
esforços para mantê-la, desenvolvê-la, fomentá-la? Realmente, identifica-se na
prática um anseio de atualização, de reciclagem, de desenvolvimento
permanente, além de um sentimento de “filiação” por parte dos aderentes à rede
em relação ao formador da rede. Mas, geralmente, essa não é a preocupação do
formador da rede, que na maioria das vezes pensa e age com imediatismo,
apenas desenvolvendo um produto ou serviço para que os aderentes à rede
coloquem no comércio. A partir de então, quem entra para a rede acaba por atuar,
normalmente, desamparado de quem a formatou.
Abordagens sobre “perspectivas”, “contingências”, “sistemas” e “estruturas”
fazem parte da base teórica que melhor explica o contexto social em que as redes
estão inseridas. É a partir dessa base que se pode tentar aplicar o melhor Direito
possível a esse evento comercial.
A certeza é que na dimensão temporal, como visto na abordagem jurídica,
praticamente inexiste qualquer consideração sociológico-normativa relacionada à
criação de uma rede comercial. Está-se, ainda, em um nível normativo baixo, o
que se confirma pela simples análises das leis que regem os contratos
formadores de redes comerciais. Além dos contratos tipificados pela legislação,
muitas redes comerciais são formatadas por contratos atípicos (o que não as
tornam ilegais, devido ao princípio da atipicidade dos contratos) que também são
desprovidos de qualquer abordagem sociológica adequada sobre o que
representa a rede comercial enquanto sistema social.
Na dimensão social, onde os sentidos dos fenômenos são escolhidos, a
partir da interação social, nota-se como vetor de ação o princípio da cooperação
entre os formatadores das redes e aderentes às redes. Explica-se. Conforme
assevera Luhmann, a continuidade em participar de uma relação social,
intencional ou não, representa um consenso genérico com a situação. É a partir
da coparticipação social que se formam as autoevidências supostas no comum,
ou seja, a redução institucional das possibilidades. É nesse jogo de direitos e
obrigações que se institucionalizam as expectativas. Havendo um certo equilíbrio,
há institucionalização, e como todos os fenômenos sociais, esse equilíbrio muda
conforme for a evolução social. Como não há, na dimensão temporal, tratamento
adequado às obrigações do formatador da rede em relação ao sistema que criou,
1736
acaba nas mãos do Poder Judiciário a decisão sobre quais são essas obrigações.
Não havendo uma adequada orientação jurídica para julgar litígios envolvendo as
relações internas das redes comerciais, o valor ontológico da rede não é revelado.
Luhmann afirma que o Direito existe como um meio de integração da sociedade
em sua globalidade, representando, pelo menos dentro das fronteiras de uma
sociedade, as expectativas oficiais daquela sociedade. Assim, o desenvolvimento
de instituições jurídicas (como os negócios jurídicos que formam as redes
comerciais) dá-se a partir da “diferenciação de papeis especiais e de sistemas
parciais com poder decisório sobre o direito, de efeito vinculativo em termos
sociais”135. Como se percebe, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário precisam
estar conscientes do que significa sociologicamente uma rede comercial.
Finalmente, na dimensão material, ou dimensão do sentido prático, as
expectativas comportamentais normativas precisam ter um mínimo de base
cognitiva plausível, que não seja contraditória com todo o sistema que as cercam.
As dimensões temporal e social atuam dentro do que é possível no sentido
prático. É necessário haver uma mediação do mundo em comum, e são os
sentidos que fazem essa mediação. Para Luhmann o sentido funciona como
“síntese, intersubjetivamente acessível, de uma multiplicidade de experiências
possíveis”136. O sentido permite uma escolha dentro da multiplicidade de
oportunidades que existem, possibilitando um procedimento abreviado de
consciência que pula de sentido a sentido até a ação estar completa. Não é
preciso experimentar todas as possibilidades e todos os vieses que todas as
possibilidades têm, e todos os vieses do vieses[...] de sentido em sentido, de
síntese em síntese, a ação se desenrola. A teoria do conhecimento de Luhmann
parte dessa dimensão. A rede comunicacional que os sentidos formam seriam a
fonte de consciência da ação humana. Com a positividade do sistema, a partir da
virtualização da comunicação dos sentidos, seguindo a linha de raciocínio de
Pierre Lévy, vislumbra-se um ambiente totalmente autopoiético, acolhedor de
135
Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro, 1983, pág. 92.
136
Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro:
Edições Tempo Brasileiro, 1983, pág. 94.
1737
alteridade, que se forma no âmbito de cada rede comercial existente. Aí está a
fonte do conhecimento para a rede comercial: dentro do seu próprio sistema.
A relação entre expectativa comportamental e síntese é evolutiva. A
expectativa expressa uma intenção de que algo ocorra de determinada maneira.
A expectativa aponta para o futuro. Os sentidos, por sua vez, são sínteses de
muitas expectativas, possíveis e cambiáveis conforme a situação presente. A
questão última é, portanto, achar o sentido das redes comerciais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme ensina o professor Lênio Streck137, é necessário um giro, uma
superação das inconsistentes e contraditórias ações que hoje representam as
redes comerciais. Deve haver um compromisso ontológico com os institutos
formadores de redes comerciais. Os negócios em rede não possuem amparo
jurídico adequado em solo pátrio, o que se deve à desconsideração da
contribuição que a Sociologia Jurídica é capaz de dar.
A inteligência que se faz necessária sobre o assunto deve levar em conta,
obviamente, a questão da escolha entre ser pertencente a uma rede ou ser um
empresário independente. Na linha do que afirma Paulo Cesar Mauro, é claro que
ser um empresário franqueado, por exemplo, oferece muito menos riscos do que
ser empresário independente, autônomo, sem vinculação a uma rede138.
Não existe um “direito natural” sobre redes comerciais; o fenômeno
enquanto evento econômico é recentíssimo, não havendo possibilidade de se
fazer uma diferenciação entre direito novo e direito antigo aplicado às redes.
Estamos, definitivamente, na maternidade jurídica das redes comerciais.
A identificação dos princípios econômicos e sociais que regem as redes
comerciais é a melhor forma de se encontrar os seus princípios jurídicos.
Economicamente, as redes comerciais têm por princípio a aquisição de
vantagens mercadológicas. Socialmente, há a criação de um grupo, que age
137
Hermeneutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito /
Lênio Luiz Streck. 10 ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria de Advogado Editora, 2011.
138
Guia do franqueado: leitura obrigatória para quem quer comprar uma franquia. – 2 ed., São
Paulo: Nobel, 2013.
1738
sistematicamente e ritualisticamente. Há a criação de um sistema social cujas
ações são coordenadas em razão de uma entidade maior, que é a própria rede. O
que significa isso juridicamente?
Pois bem, a ação da rede enquanto grupo deve ser consciente e
direcionada ao benefício econômico. Deve haver uma técnica de ação que traga
proveito mercadológico aos aderentes da rede. Os comerciantes que fazem parte
de uma rede esperam ter proveitos econômicos em relação ao negócio individual,
oriundos da ampliação da capacidade de competição do grupo em relação ao
negócio individual. Espera-se uma potencialização da capacidade competitiva
dessas empresas, ou seja, um maior poder de mercado, decorrente do
crescimento do número de associados da rede. A redução de custos e riscos que
a rede proporciona é uma obviedade, e por isso há, implicitamente, obrigação de
ação nesse sentido. Também nota-se um acesso mais racional a soluções de
problemas, decorrente da absorção de alteridade que a rede permite devido à
ação em grupo. As redes desenvolvem-se organizadas em sistemas de
informação que disseminam soluções para problemas operacionais que surgem
no interior da rede. Assim, a aprendizagem é coletiva, formando-se uma
inteligência coletiva. Há um motivo econômico para se formatar um rede
comercial, e esse motivo é preponderante para se optar fazer parte da rede.
Em termos sociológicos, é preciso reduzir o comportamento altamente
complexo e contingente existente dentro de uma rede comercial de modo a
possibilitar expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a partir
das expectativas sobre tais expectativas. Na dimensão temporal, as normas são
capazes de estabilizar as estruturas de expectativas, orientando a ação. Na
dimensão social, a institucionalização das expectativas comportamentais
formatadas pelo formador da rede dá-se pelo consentimento dos aderentes da
rede. Se esses aderentes discordam das expectativas e não seguem no grupo
formado pela rede, em pouco tempo ela se desfaz, momento em que fica clara a
fraqueza do sistema formado. Finalmente, na dimensão material, da praticidade
do fenômeno, os sentidos que se formam em torno da rede comercial criada são o
que realente identificam-na. O Direito aplicado às redes comerciais deve levar em
1739
conta, portanto, o fato desse fenômeno ser uma estratégia econômicomercadológica, além de ser um verdadeiro sistema social.
É na generalização das expectativas comportamentais congruentemente
nessas três dimensões que se identifica o Direito a ser aplicado às redes
comerciais.
REFERÊNCIAS
BALESTRINI, A. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias
de gestão na nova economia. São Paulo: Bookman, 2008.
LASTRES, H. M. M.; SARITA, A. (orgs). Informação e globalização na era do
conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999.
LÉVY, P. O que é virtual?; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34,
2011 (2ª edição). Disponível em: <http://www.portaldofranchising.com.br/numerosdo-franchising/evolucao-do-setor-de-franchising>.
SILVEIRA, N. Propriedade intelectual: propriedade industrial, direito de autor,
software, cultivares, nome empresarial, abuso de patentes, 5. Ed. Barueri/SP:
Manole, 2014.
STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica
da construção do Direito. 10 ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria de
Advogado Editora, 2011.
Guia do franqueado: leitura obrigatória para quem quer comprar uma franquia. –
2 ed., São Paulo: Nobel, 2013.

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