sociedade contemporânea e relações privadas
Transcrição
sociedade contemporânea e relações privadas
ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E RELAÇÕES PRIVADAS CANOAS, 2015 1585 A REGULAÇÃO PRIVADA COMO INSTRUMENTO DO DIREITO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Cristian Ricardo Wittmann Roger de Moraes de Castro RESUMO: Este ensaio científico busca demonstrar a emergência da regulação privada de temas de direitos humanos a partir da qualificação da observação jurídica e da compreensão da policontexturalidade associada ao Direito. Os pressupostos medotológicos dizem respeito a matriz epistemológica pragmáticosistêmica e o método construtivista de Niklas Luhmann e sua Teoria dos Sistemas Sociais. Inicialmente são analisadas as características da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado e da histórica logicidade de sua separação. Em um segundo momento demonstra-se os pressupostos da sociedade contemporânea enquanto complexa e contingente associada a característica policontextural conforme demonstra Gunther Teubner. Partindo-se da análise de Alain Supiot acerca da diferença entre regulação e regulamentação sustenta-se que os instrumentos teoricamente privados tais como códigos corporativos e programas de cumprimento podem ser concebidos como instrumentos de interesse social e qualificando a observação jurídica para uma superação da dicotomia antes apresentada. Embora a pesquisa doutoral esteja em andamento, acredita-se que as compreensões sobre regulação policontextural, transconstitucionalismo e sociedade global são fortalecidas com a participação de organizações privadas na efetivação de garantias fundamentais. Justifica-se pela relevante análise da complexidade social contemporânea na superação de pressupostos jurídicos da modernidade. PALAVRAS-CHAVE: regulação privada; códigos de conduta; programas de cumprimento; policontexturalidade jurídica. 1 INTRODUÇÃO O resultado parcial da pesquisa, o qual se busca demonstrar neste ensaio, parte de uma epistemologia diferenciada baseada na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e aportes do jurista Gunther Teubner, a emergência de um constitucionalismo policontextural. Esta característica do Direito e da sociedade contemporânea pode ser observada como uma vantagem ao considerar a 1586 possibilidade de diferentes centros regulatórios, inclusive os privados. O problema de pesquisa volta-se ao seguinte questionamento: em que medida é efetiva a regulação privada de garantias fundamentais no Direito contemporâneo no contexto da policontexturalidade? Inicialmente, enquanto apresentação metodológica, indica-se o uso da matriz epistemológica pragmático-sistêmica1 e o método construtivista2 com fundamentos na Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann. Entende-se que ambos proporcionam um ponto de visa qualificado para observar não somente o tema proposto mas o Direito e a sociedade. Enquanto estrutura propõe-se três capítulos. O primeiro trata de qualificar a observação da sociedade e o sistema jurídico a partir da epistemologia adotada de forma compreender a sociedade como global e não mais vinculada exclusivamente aos Estados-nação. O segundo capítulo observa a emergência deste Direito policontextural e a possibilidade de novos sistemas de regulação. No último capítulo são conceituados os instrumentos de regulação privada, os códigos de conduta e os programas de cumprimento e exemplos que demonstram a regulação privada policontextural. 2 UMA DIFERENTE FORMA DE OBSERVAR A SOCIEDADE E O DIREITO Conforme a teoria de base eleita neste projeto tem-se que a sociedade é, na realidade, um sistema autopoiético e portanto, que se reproduz, ou melhor, se autorreproduz, onde nela somente participam comunicações. A concepção luhmanniana de Teoria dos Sistemas Sociais, e portanto de sociedade, possui contornos hoje que remetem a uma concepção biológica de autopoiese, teoria esta desenvolvida pelos biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco 1 2 ROCHA, L. S.. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1998, p. 96. Conforme o sociólogo alemão: "observada desde la posición constructivista, la función de la medotología no consiste únicamente en asegurar una descripción correcta (no errónea) de la realidad. Más bien se trata de formas refinadas de producción y tratamiento de la información internas al sistema. Esto quiere decir: los métodos permiten a la investigación científica sorprenderse a sí misma. Para eso se vuelve imprescindible interrumpir el coninuo inmediato de realidad y conocimiento del cual proviene la sociedad". LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007, p. 22. 1587 Varela, já em 1960, explicavam o surgimento e manutenção da vida a partir desta teoria de autorreprodução3. Mais tarde a mesma teoria foi transposta ao conhecimento4 e, de forma inédita, replicada na análise sociológica por Luhmann. Trata-se de uma teoria sistêmica de cunho autopoiético aplicada aos sistemas sociais. Contudo, na observação de Luhmann, existe uma autonomia entre o sistema biológico e social, cada um possuindo sua autopoiese específica e particular.5 Significa dizer, que enquanto o sistema biológico possui a vida como unidade básica de análise, constituindo também sua base reprodutiva, a sociedade, na condição de sistema social, pode ser descrita como um sistema noético, ou seja, um sistema cujo princípio ordenador é o sentido. Significa dizer que no sistema social as unidades do sistema não são os sistemas humanos ou cognitivos, mas sim as comunicações, isto é, tendo como unidade básica de análise os atos comunicativos.6 Neste sentido a sociedade passa a ser observada como um sistema autopoiético, um sistema auto-referencial7, em que seus elementos são 3 4 5 6 7 “[...] o ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que acontece como unidade separada e singular como resultado do operar, e no operar, das diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de interações e relações de proximidade que o especificam e realizam como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, configurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extensão. É a esta rede de produções de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede [...]”. MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, p. 12. Vale citar um dos fundamentos da teoria cognitiva autopoiética que leva a conclusão de que o que se observa depende do observador: “[...] tudo o que é dito é dito por alguém.” MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001, p. 32. Cabe mencionar aqui que, ao contrário de Luhmann, que defende a posição de que os sistemas sociais não são sistemas vivos, Fritjof Capra considerando a organização humana, defende que os sistemas sociais podem ser vivos em diversos graus: “Quanto a mim, prefiro conceber a autopoiese como uma das características específicas da vida. Entretanto, ao discutir as organizações humanas, vou defender também a tese de que os sistemas sociais podem ser “vivos” em diversos graus”. CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Cultrix, 2002, p. 94. TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engracia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 63-64. TEUBNER, Gunther. O Direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engracia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 32 e seguintes. 1588 produzidos e reproduzidos pelo próprio sistema, graças a uma sequência interna de interação circular e fechada8. Nestas interações, como já é de se concluir, Luhmann identifica a comunicação como o elemento central das redes sociais, utilizado como modo particular de reprodução pelos sistemas sociais autopoiéticos. As comunicações são produzidas e reproduzidas, formando uma rede de comunicação que constituem os elementos do sistema e que não podem existir externamente – motivo esse que, resumidamente, justifica que esta concepção não compreende as pessoas como membros da sociedade, e sim exclusivamente a comunicação. Motivo esse que corrobora na superação dos limites físicos e geográficos atrelados a concepção de diferentes sociedades com base nos diferentes Estados. De maneira simples são cinco as principais características de tal concepção: 1) a essência do sistema é reduzir a complexidade a partir da sua distinção do ambiente a partir de um código binário que identifica aquilo que está dentro ou fora do sistema; 2) o sistema não é um organismo, mas a diferença entre o sistema e o ambiente a partir de suas operações e a partir delas são produzidos componentes e a estrutura do sistema - sempre a partir do mecanismo de autorreferência que mantém a circularidade e a autopreservação do sistema; 3) devido ao limite do sistema não existe troca direta entre ele e o ambiente, restando como conceitos de relações a observação externa, ressonância, acoplamento operacional e acoplamento estrutural; 4) cada sistema se diferencia em subsistemas a partir de suas funções; 5) sistemas funcionalmente diferenciados operam individualmente, sem ver as operações do sistema social (ambiente), sendo que o sistema social percebe as operações de cada sistema como restritos as suas funções9. Sobre a não mais utilização de características territoriais-geográficas para a definição de sociedade pode-se identificar uma razão. Por se tratar de uma 8 9 Convém mencionar que ao falar em interação circular e fechada, está se falando no processo de clausura operacional, uma operação interna do sistema essencial para assegurar a identidade do sistema e logo, possibilitar sua abertura. Também ao se referir à interação circular estamos nos referendo não a um circulo vicioso, mas a um circulo virtuoso, onde ocorre sempre uma perspectivação em espiral. Cf. KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, pp. 2-3. 1589 sociedade que se caracteriza na comunicação, não existem barreiras comunicacionais visíveis. As barreiras geográficas são substituídas por limites, pela diferença ente sistema e ambiente que não operam como barreiras clara - a exemplo do sistema jurídico que opera pelo binômio "legal/ilegal" daquela comunicação social. Especialmente hoje, a partir do invento da imprensa e mais ainda da internet houve não somente um aumento mas uma densificação da rede de comunicação da sociedade de modo a não existir mais uma relação dependente ou não do incremento ou da diminuição demográfica já que existe um desenvolvimento suficiente para a manutenção da capacidade de autorreprodução do sistema social10. Com tais pressupostos o sociólogo alemão optou por denominar como sociedade mundial. Pela comunicação alcançar todo o globo terrestre somente pode haver uma só sociedade de maneira a não mais existir divisões territoriais como normalmente estamos habituados a visualizar e perceber - muito da influência da concepção de Estado. Ao mesmo tempo Luhmann entende que a expressão sociedade do mundo tende a expor a construção, por parte de cada sociedade, de um mundo próprio no qual se desenvolve o paradoxo do observador do mundo: Por una parte significa que sobre el globo terrestre - y en todo el mundo alcanzable comunicativamente - sólo puede existir una sociedad; éste es el aspecto estructural y operativo del concepto. Al mismo tiempo, sin embargo, la expresión sociedad del mundo debe indicar que cada sociedad (y si observamos en retrospectiva también las sociedades de la tradición) construye un mundo y así disuelve la paradoja del observador del mundo; la semántica correspondiente que entra entonces a consideración debe ser plausible y debe estar adaptada a las estructuras 11 del sistema sociedad . 10 O sociólogo alemão ensina que "En lo que concuerdan todos los sistemas funcionales y en lo que no se distinguen es en el hecho de su operar comunicativo. Considerada en abstracto, la comunicación [...] es la diferencia que el sistema no hace ninguna diferencia. Como sistema de comunicación, la sociedad se distingue de su entorno, pero éste es un límite externo y no interno. Para todos los sistemas parciales de la sociedad los límites de la comunicación (la diferencia de la no-comunicación) son los límites externos de la sociedad. En esto y sólo en esto coinciden. Toda diferenciación interna debe y puede relacionarse con este límite externo ya que ella crea para cada uno de los sistemas parciales distintos códigos y programas. En la medida en que comunican todos los sistemas parciales participan de la sociedad; en la medida en que comunican de todo distinto, se distinguen entre sí." LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2007, p. 113. 11 LUMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Cidade do México: Herder, 2007, p. 113. 1590 Merece crítica da mesma forma aqueles que promovem discussões exclusivamente em torno de "sistema internacional" ou de "relações internacionais" por não conseguirem se desvincular do pressuposto do Estadonação. Os sistemas são diferenciados funcionalmente e, portanto, baseados em um código binário comunicacional e não distinguidos por geografia de determinado ente estatal como se fosse possível pensar em uma sociedade dividida em subsociedades. A manutenção da percepção da divisão territorial, por exemplo, traz também a ilusão do controle dos riscos como será abordado no decorrer do trabalho: a sociedade, enquanto complexa e contingente, é fruto de decisões e portanto sempre sujeita aos riscos dos mais diversos e que, como todos, ignoram as pretensas barreiras territoriais e geográficas. Dessa forma "[...] society is not a communicative and normative unity which can be fully represented by one sovereign or parliamentary body"12. Constata-se que a sociedade do mundo nada mais é que o sobrevir do mundo na comunicação. Embora tais argumentos sejam postos com a denominação de sociedade mundial, advoga-se aqui pela por outra nomenclatura: global. Denomina-se aqui como global a partir dos pressupostos de Gunther Teubner que, ao conceituar a ideia de ordem global busca superar a própria linguagem 'internacional' pelas suas relações entre o nacional e internacional e suas definições geográficas ainda alicerçadas no Estado-nação. Desta maneira justifica-se a eleição pelo global em detrimento das outras possibilidades, que, embora contingente esta decisão demonstra-se adequada nas palavras do jurista alemão quando se refere a uma ordem jurídica global: o direito global (não: 'inter-nacional'!), nesse sentido, é um ordenamento jurídico sui generis que não pode ser avaliado segundo os critérios de aferição de sistemas jurídicos nacionais. [...] esse ordenamento jurídico, já amplamente configurado nos dias atuais, distingue-se do direito tradicional dos Estados-nações por determinadas características, que podem ser explicadas por processos de diferenciação no bojo da própria sociedade mundial. Porque, por um lado, se o direito global possui pouco respaldo político e institucional no plano mundial, por outro lado, ele está 12 SAND, Inger-Johanne. Polycontextuality as an alternative to Constitutionalism. In: JOERGES, C; SAND, I.; TEUBNER, G. Transnational Governance and Constitutionalism. Portland: Hart Publishing, 2004, p. 43. 1591 estreitamente acoplado a processos sociais e econômicos dos quais 13 recebe os seus impulsos mais essenciais. A sociedade atual é formada por relações entre Estados, entendida como uma coletividade de sociedades diferentes no Direito, política, economia dentre outras características. Lembra-se que esta coletividade não possui uma organização central e dessa maneira permite, desde já, a pulverização de decisões em meio a diferentes organizações internacionais sem olvidar a relevância que assumem outras organizações privadas por exemplo. 3 A POLICONTEXTURALIDADE JURÍDICA ILUMINANDO OS CENTOS DE DECISÃO Enquanto modo de operação tradicional do Direito, o mesmo é orientado a partir da programação condicional, ou seja, produção do passado quando a construção do sentido jurídico já está orientado anteriormente. Existe a possibilidade, hoje crescente, de orientação a partir da programação finalística com a consideração do futuro na reflexão da decisão em busca da produção da diferença14. Fundado na repetição do tempo e todos seus elementos comunicacionais, hoje o Direito se mostra preocupado com o futuro, ou seja, na limitação das consequências relevantes de uma decisão: como las consecuencias futuras de las decisiones son interdependentes en alto grado, tanto más cuanto que las consecuencias hipotéticas de las alternativas se han de incluir en la decisión jurídica, la orientación a las consecuencias nos lleva forzosamente a desdibujar las diferenciaciones 15 actuales, sea en el aspecto profesional, sea en el organizativo. Conceitualmente o Direito se classifica em um sistema autopoiético funcionalmente diferenciado e, portanto, carrega consigo as características já apresentadas quando do sistema social global. Seu código binário específico que permite a diferenciação do ambiente é o "legal/ilegal" e, portanto, o Direito é o único sistema que pode operar esta diferenciação. Embora o Direito possua a 13 TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional. Revista Impulso. Piracicaba, 14(33): 9-31, 2003, p. 11. 14 FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 67. 15 LUHMANN, Niklas. Sistema juridico y dogmatica juridica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 9. 1592 exclusividade de operar a partir nos limites de suas comunicações, vale mencionar a sua capacidade de ressonância. A programação do sistema jurídico está calcado em normas no sentido amplo, comunicações jurídicas que se revestem desde orientações, leis a decisões judiciais - ou seja, toda comunicação que opera na diferenciação do código binário apontado. Toda essa comunicação deste sistema parcial busca a realização da função precípua do Direito, função esta que atrai interesse particular na universalidade da comunicação social: a possibilidade de estabilização das expectativas16. Quando determina comunicação passa a operar a partir da disputa entre legal e ilegal a mesma está inserida dentro da concepção jurídica de sistema, e pelo tanto, há uma transformação de tal evento em um evento jurídico - seja um evento inicialmente econômico, social, religioso e científico como bem podem envolver as nanotecnologias. Justamente a eficácia social do Direito, enquanto sistema, depende da sua capacidade de refletir internamente com base em sua própria complexidade seletiva: a eficácia social do direito depende, entre outros fatores, da sua capacidade de reproduzir determinadas interações sociais, interna e seletivamente, como acontecimentos jurídicos, quando lhe são colocadas à disposição do seu ambiente, como condições marginais, ou 17 da capacidade de se imunizar contra elas. A compreensão da dogmática jurídica tem levado em conta, como categoria dominante, a ideia de validade da norma jurídica - com forte apelo na teoria normativista de Hans Kelsen18. Nos tempos recentes de hipercomplexidade a validade é colocada em segundo plano em privilégio da efetividade do Direito19. Exemplos são os mais diversos da importância da efetividade. Organizações 16 "El derecho es un sistema funcionalmente diferenciado de la sociedad moderna [[...].], cuya función es mantener estables las expectativas [...] aun en caso de que resulten vanas. Dichas expectativas son normas que permanecen estables independentemente de su eventual violación." DERECHO. In: CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Claudio. Glosário sobre la teoría Social de Niklas Luhmann. México: ITESO/Editorial Anthropos, 1996, p. 54. 17 TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 31 18 Ver KELSEN, HANS. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 19 Lembra Leonel Severo Rocha: "Como se podem pensar possibilidades de racionalidade de um outro tipo para o Direito? Uma primeira alternativa que surge, e é interessante, é a ideia de efetividade. Se a validade de um sistema normativo é dada por uma hierarquia, agora, a validade é trocada ou colocada em segundo plano. Então, o mais importante para o sistema do Direito não mais normativo - passa a ser a efetividade" ROCHA, L. S.. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ___, Leonel S.; KING, Michael; SCHWARTZ, G.. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 32. 1593 privadas, transnacionais já que operam globalmente por meio da internet - por exemplo o site de aluguel de imóveis "Airbnb", adotam procedimentos normativos internos que permitem identificar que, independentemente da validez de tais contratos com as ordens nacionais, buscam a efetividade da garantia do negócio para todos os participantes. Exemplos de organizações que não operam exclusivamente pela internet também existem, como a marca têxtil global "GAP" que identifica por meio de códigos de conduta e um programa de cumprimento que, ao ser constantemente aprimorado, busca implementar decisões privadas de forma a garantir direitos fundamentais como os relacionados com a erradicação do trabalho infantil, desenvolvimento local/regional onde suas fábricas estão inseridas dentre outras políticas20. Hoje, em decorrência de acordos e o maior controle sobre as práticas de lavagem de dinheiro, é possível observar a implementação de programas similares em todas as instituições financeiras. Exemplos como esses demonstram a pulverização de comunicações jurídicas, não sendo mais possível conceber que o efetivo exercício da função do Direito esteja exclusivamente centrado na ideia de Estado e muito menos em concepções territoriais-geográficas. Superando a organização social entre territórios, entende-se que a sociedade é policontextural. Essa policontexturalidade, como definida por Teubner e demonstrada anteriormente, apoia-se na diferenciação entre centro e periferia de Niklas Luhmann21 onde o que definiria esta posição é unicamente o ponto de observação, ou seja, o local de onde parte a decisão. Lembra Flores que "o 'Direito da sociedade' não pode ser reduzido à figura do juiz ou da Constituição", sendo necessário "[...] considerar tudo isso em uma perspectiva sistêmicocomplexa, onde emerge a importância de repensarmos os contornos da noção de 20 Este tema será abordado no decorrer deste ensaio. Ver LUHMANN, Niklas; DE GEORGI, Raffaele. Teoría de la sociedad. Guaralajara: Universidad de Guadalajara: 1993. 21 1594 'Organização'"22. Por sua vez, a organização baseia sua autorreprodução com base na decisão23. Mantendo sua concepção autopoiética, lembra-se que enquanto sistema parcial o Direito assegura sua autonomia e sua incerteza. Seu futuro somente pode ser desenvolvido a partir dos limites do sistema, e não externamente. Buscar a certeza em uma sociedade e um Direito contingente é ignorar, ou manter-se ingênuo e alheio, os avanços da comunicação e a própria característica autopoiética. Manter-se associado à noção tradicional de povo, território e governo, ou seja, à noção tradicional de Estado é não perceber a natureza de alta complexidade da sociedade atual. Os desafios são inúmeros, mas o imaginário base de que o Estado mantém o monopólio da regulação jurídica não mais se coaduna com a era de incerteza e insegurança na qual se encontra a sociedade e o Direito. Ainda, a relação de causalidade normalmente identificada pelo Direito quando da sua decisão não se coaduna com a gestão reflexiva e policontextural dos riscos. Torna-se primordial [...] afastar-se da causalidade e aproximar-se da circularidade construtivista [...]" de forma a viabilizar "uma explicação reflexiva da decisão jurídica, ou seja, uma teoria não normativista da decisão jurídica"24. Reflexividade também corrobora com a indução de condutas por parte dos demais sistemas e organizações. O direcionamento com base no Direito é possível seja a partir de uma comunicação normativa geral ou por atos jurídicos específicos e a consequente perturbação sistêmica orientada. Embora lembra-se que cada sistema/organização orienta sua comunicação a partir da recursividade circular fechada de seus atos, e que é impossível a orientação externa desse funcionamento, o Direito pode irritar os demais sistemas provocando uma compatibilização de comportamentos: 22 FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 63. 23 Cf. LUHMANN, Niklas. Organización y decisión. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, Herder, 2010. 24 SILVA, Artur Stamford de. Teoria reflexiva da decisão jurídica: observações a partir da teoria dos sistemas que observam. In: SCHWARTZ, G. (Org.). Juridicização das Esferas Sociais e Fragmentação do Direito na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 37-8. 1595 Quando sistemas recursivos e auto-organizados pode realizar valores próprios, em razão de perturbações externas, então o direito pode tentar, por produção normativa geral ou por atos jurídicos especiais, produzir perturbações de forma orientada e, apesar de todo o caos individual, irritar os sistemas recursivos de maneira que eles consigam mudar de um estado atrator a outro, com o qual o objetivo legal seja, pelo menos, 25 compatível. Essa compatibilização recíproca de comportamentos proporciona também um maior sincronismo no paralelismo temporal. Veja que cada sistema possui sua complexidade interna completamente diferenciada do seu ambiente e demais sistemas, característica conhecida como paralelismo temporal - uma defasagem temporal. Segundo Flores a "defasagem na concepção temporal do Direito gera a impressão de existirem duas concepções temporais distintas e desconectadas: um Tempo da sociedade, altamente dinâmico e, paralelamente, um Tempo específico do Direito, extremamente conservador, fruto de uma racionalidade moderna que acentua demasiadamente o passado"26. A situação regulatória será mais efetiva quanto mais maleável for a comunicação, permitindo que organizações e sistemas ajustem mutuamente seus comportamentos de forma a produzir uma organização das expectativas de forma recíproca efetiva e duradoura. Trata-se de sincronizar, e não impor, comunicar e não mais ordenar, regular e não mais regulamentar lembra Alain Suipot27. Regular passa por reconhecer a autonomia da complexidade jurídica frente ao seu ambiente - seja a sociedade seja os demais sistemas parciais de comunicação. Reconhecer também que o Direito global, não mais internacional, somente vai possuir efetividade quanto mais se tornar reflexivo e compatível temporalmente com os demais sistemas e organizações sociais - sejam privadas ou públicas. A policontexturalidade torna-se fundamental, já que as organizações empresariais não mais operam nacionalmente e sim "[...] procuram novas formas de organização de trabalho" e tampouco "se contentam com a subordinação, já não 25 TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 38. 26 FLORES, Luis Gustavo Gomes. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de partida para novas reflexões. In: BARRETO, Vicente de P.; DUARTE, Francisco C. Direito da sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73, p. 65. 27 SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 146. 1596 querem trabalhadores somente obedientes"28 da mesma forma que os consumidores como um todo não esperam mais que seus produtos e suas experiências tenham de ficar restritas a determinado território. A emergência de normas globais, autoproduzidas por organizações privadas são um novo exemplo da contratualização do Direito a partir de centros e periferias. Historicamente as atividades de atores privados têm sido reguladas pelos contextos jurídicos de cada Estado, todavia, cada vez mais os entes públicos possuem dificuldade de dar efetividade a regulação quando se trata de atividades transnacionais de empresas que atuam globalmente. Por tal motivo é que se torna cada vez mais importante buscar alternativas a partir da insuficiência do modelo atual de imposição de comportamento: Global laws are regarded as self-regulations which are made by private actors. Essentially, the activities of private actors have been regulated by laws of each state. But, in certain fields, states or interstate organizations have some difficulty in regulating transnational activities caused by or involving private actors which are becoming more and more important in the global society. In such fields as economics, activities are essentially 29 transnational . Não se trata de uma compreensão liberal, ou neoliberal, de Estado e Direito, mas o reconhecimento do paralelismo temporal entre a sociedade e o sistema jurídico quando arraigado a uma observação de mínima complexidade. A emergência de tais normas não pode ser barrada no contexto atual, mas pode ser induzida de forma a dar coerência e integridade ao sistema jurídico entre sua periferia e centro e vice-versa já que se trata do ponto de observação. Miguel Reale já alertava que "[...] nenhuma estrutura social é uma unidade maciça e mononuclear, mas sim uma unitas ordinis ou 'unidade de sentido', ou seja, uma composição de múltiplos fatores que se correlacionam em função de um ou mais motivos"30. Fundamental desta forma o reconhecimento de novos instrumentos de regulação, como são os códigos de conduta e seus programas de cumprimento, instrumentos privados de cunho voluntário oriundos do fenômeno da autorregulação. 28 SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 154. 29 KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, p. 9. 30 REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 87. 1597 4 POSSIBILIDADES DE REGULAÇÃO NÃO-ESTATAL Historicamente os textos constitucionais possuem basicamente dois objetivos: limitar o poder do soberano e constituir uma ordem jurídica própria. Esta tem sido a fonte originária de todo ordenamento jurídico de algum país e serve de legitimação para todo o Direito objetivo de cada nação. Já observou Miguel Reale que as fontes e modelos jurídicos não se esgotam no Estado embora dele emana uma centralidade no dizer o Direito. Cogitar a existência de instrumentos privados não é algo recente na doutrina jurídica. Miguel Reale, já a algum tempo, identificava nos contratos uma das fontes e modelos do Direito31. Mesmo não prevendo a dimensão da utilização específica dos instrumentos ora analisados, o jurista brasileiro já indicava o contrato enquanto fonte negocial, fonte essa hoje muito usual na estabilização das expectativas sociais funcionando em determinados contextos como efetivos instrumentos de garantias fundamentais, limitação da autonomia privada e o nascedouro de obrigações vinculantes a terceiros. Observa-se hoje um contínuo processo de solução dos conflitos, sejam individuais ou coletivos, mediante decisões negociadas - com ou sem a participação do Estado. Com a policontexturalidade proposta por Teubner nos parece adequado compreender que a produção normativa ocorre nos mais diferentes pontos da sociedade, não estando mais delimitado pelos limites tradicionalmente arraigados na concepção de Estados nacionais. Leonel Severo Rocha, ao explicar e exemplificar esta especial concepção de sociedade proposta pelo jurista alemão comenta acerca da emergência de uma série de comunicações jurídicas, autônomas a partir de sua própria lógica, que, dependendo do ponto de observação podem estar tanto no centro quanto na periferia do sistema jurídico: Teubner afirma que é preciso se pensarem novos tipos de direitos que surgiram na periferia, mas que também têm autonomia, como se fossem o centro: os direitos softs, soft law, direitos híbridos, direitos de contratos 31 "Na usual afirmação de que 'o contrato tem força de lei entre as partes' já se albergava o reconhecimento de que a 'autonomia da vontade ' é fonte geradora de regras de direito, mas esta asserção só adquiriu plenitude de significado quando Kelsen, ao mesmo tempo que reduzia o Direito a um sistema de normas, alargava o sentido normativo, libertando-nos definitivamente do legalismo, isto é, do incontrastado domínio das normas legais" REALE, Miguel. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 73. 1598 internacionais, direitos de organizações internacionais, que têm uma lógica própria. E que começam a surgir, paralelos ao Estado, na globalização. O surpreendente, exemplifica Teubner, é que grandes multinacionais, ao regularem a sua atuação, seguem os direitos, têm regras e, às vezes, códigos de ética (para seus interesses). Em poucas palavras, a grande empresa tem códigos de atuação normativas, que 32 não são necessariamente os mesmos dos países. A partir o surgimento associado ao enfretamento aos escândalos corporativos de cunho contábil, os programas de conformidade remetem a data de 1986 e a partir de 1991 permite uma punição diferenciada para organizações que possuem iniciativas para detectar e prevenir crimes.33 Um dos grandes desafios frente a capacidade reflexiva da doutrina jurídica é a possibilidade de criar programas condizentes com a conciliação interna do discurso jurídico com as implicações do ambiente (sistemas sociais)34. No contexto contratual são identificados três níveis de conflitos no sistema contratual, o primeiro quanto à interação, o segundo sob o prisma institucional e o terceiro no âmbito da sociedade. No nível da interação o conflito se dá entre acordo contratual e moral da interação quanto ao feixe de expectativas informais que não necessariamente estão expressas nas declarações. Quanto ao nível institucional há o conflito entre contrato e instituições sociais, demonstrando que o contrato está inserido em um contexto mais amplo de prerrogativas e restrições que tais declarações devem levar em conta. No âmbito da sociedade o conflito se dá entre o contrato e o seu ambiente, ou seja, sistemas sociais funcionais como política, economia, família, cultura e religião que acabam por aumentar a complexidade de tal decisão frente ao modo clássico de análise dos contratos. Uma das grandes importâncias da existência dos códigos de conduta corporativos e dos programas de cumprimento é quanto as perspectivas de responsabilidade das organizações quando do, potencial ou efetivo, dano/crime/prática abusiva a partir das suas atividades. De outro lado tais programas podem se tornar 32 ROCHA, L. S.. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ___, Leonel S.; KING, Michael; SCHWARTZ, G.. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 39-40. 33 Cf. BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Building a World-Class Compliance Program: best practices and strategies for success. Nova Jersei: John Wiley & Sons, 2008, pp. 45-71. 34 Cf. TEUBNER, Günther. Níveis de conflito no “sistema contratual”. In: ____, Günther. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 239-42. 1599 instrumentos de grande contribuição para as boas práticas e para dar efetividade aos Direitos Humanos buscando a máxima sempre lembrada de Bobbio: "[...] que o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los"35. Mais, sociologicamente analisando é possível perceber a emergência de limitações voluntárias à autonomia negocial, a busca da efetiva prestação de garantias fundamentais e a constituição de uma ordem jurídica autônoma com direitos e obrigações com terceiros. Não se pode olvidar que a efetividade está intimamente relacionada com os sistemas regulatórios. Em se tratando da perspectiva da relação das organizações tidas como privadas e àquelas tidas como públicas sempre houveram dois objetivos. Essas sempre buscaram meios para controlar aquelas que, por sua vez, buscaram meios de desenvolver sistemas de governança próprios de forma a controlar a cadeira produtiva onde quer que estivesse localizada geograficamente. 36 O Departamento de Justiça dos Estados Unidos define esses como programas de cumprimento estabelecidos pela gestão corporativa para prevenir e detectar a má-conduta e assegurar que as atividades corporativas são conduzidas de acordo com todas as regras, regulações e leis civis e criminais. O mesmo órgão norte-americano encoraja esse policiamento realizado pela própria corporação, incluindo divulgações voluntárias para o governo de quaisquer problemas que a corporação tome conhecimento por conta própria. Indica ainda a insuficiência de que a simples existência de programas de cumprimento justificaria a imunidade da empresa por condutas criminosas realizadas pelos seus empregados, diretores e agentes. Pelo contrário, orienta o referido órgão que a existência de tais condutas ilegais implica no entendimento de que o programa de conformidade não esteja sendo bem aplicado podendo gerar ações do Estado independentemente da existência de tais programas37. 35 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 22. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, p. 2. 37 "Compliance programs are established by corporate management to prevent and to detect misconduct and to ensure that corporate activities are conducted in accordance with all applicable criminal and civil laws, regulations, and rules. The Department encourages such 36 1600 Exemplos de regulações globais e autônomas são os mais diversos motivo pelo qual advoga-se pelo reconhecimento e uma qualificada observação jurídica acerca desse assunto. Um bom exemplo disso é a "Internet Society", uma associação privada que define as regras e regulação da evolução do protocolo internet ao redor do mundo. Dentro desse contexto sites como o eBay fornece um espaço comercial para as pessoas usarem e ele é quem decide as regras para que os usuários resolvam suas disputas jurídicas. Essa mesma organização estabeleceu mecanismos de avaliação da performance dos compradores e vendedores - sistema esse que virou um modelo e foi replicado em diferentes outros sites como é o caso do "Mercado Livre" e outros sistemas de comércio. Os domínios, endereços de sites e os endereços IP (internet protocol) são regulados por regras editadas pela Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy (UDRP) que é uma organização privada sem fins lucrativos criada pela Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICAAN) que, por sua vez, é uma associação norte-americana privada: For example, the Internet Society is a private association which makes rules and regulates the evolution of Internet protocol of all over the world. eBay supplies an online market for people to use. eBay decides detailed and formalized rules for users and has established a mechanism to resolve disputes among users. It also made a system which evaluates performance of buyers and sellers on the online market. The systems and the rules of eBay became a model of other online markets. The assignments of domain names and IP addresses are regulated by rules made by Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy (UDRP) which is an private non-profit organization built on the Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN). ICANN is an American private 38 association. Os programas de cumprimento, também conhecidos como programas de conformidade, são somente um dos exemplos de normas autônomas. Eles, corporate self-policing, including voluntary disclosures to the government of any problems that a corporation discovers on its own. However, the existence of a compliance program is not sufficient, in and of itself, to justify not charging a corporation for criminal conduct undertaken by its officers, directors, employees, or agents. Indeed, the commission of such crimes in the face of a compliance program may suggest that the corporate management is not adequately enforcing its program. In addition, the nature of some crimes, e.g., antitrust violations, may be such that national law enforcement policies mandate prosecutions of corporations notwithstanding the existence of a compliance program." US DEPARTMENT OF JUSTICE. Memorandum: principles of Federal Prosecution of Business Organizations. Disponível em: <http://www.justice.gov/sites/default/files/dag/legacy/2007/07/ 05/mcnulty_memo.pdf> Acesso em 20 jan. 2015. 38 KAWAMURA, Satoko. The formation of Global Economic Law: under aspects of the autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012, pp. 9-10. 1601 originalmente desenvolvido em inglês sob a expressão compliance programs, nada mais são que um contexto de estar atuando de acordo com o que está estebelecido em normas gerais, especificações ou legislação. Na realidade os programas de cumprimento nada mais são que medidas internas que qualquer entidade pode adotar afim de assegurar que estará cumprindo com um contexto legal específico, ou seja e em termos pragmático-sistêmicos, trata-se de comunicação específica a partir do código "legal/ilegal" enquanto campo específico da comunicação jurídica de forma a organizar as expectativas internas daquela organização. Trata-se de cumprimento da lei e mais. Verifica a aderência das atividades e processos aos requisitos legais onde para cada atividade tornase uma obrigação estar ciente de todas as implicações e consequências legais. Essa perspectiva se coaduna com a proposta de uma regulação eficaz a partir da concepção de Teubner: A regulação (direcionamento) somente é bem-sucedida em poucos casos, nos quais os programas auto-regulativos (sic) concretos do direito 'coincidentemente' se coadunam com os programas auto-regulativos (sic) concretos da economia, isto é, quando o processamento econômico 39 de diferenças vai 'mais ou menos' ao encontro da intenção legislativa. Não se pretende aqui desenvolver uma concepção de análise dos programas de cumprimento, oriundos dos respectivos códigos de conduta, como um benefício para a própria organização. Pelo contrário. Trata-se de demonstrar como tais contratos possuem uma dimensão não somente regulatória, mas também social. Embora não se olvide que o objetivo das corporações seja o lucro40, tem-se observado uma crescente importância do conceito de corporate citizenship no mundo organizacional, ou seja, cidadania empresarial pela prática de condutas fiéis ao Direito e pela participação da organização nos assuntos públicos41. Da mesma forma não se ignora o fato de que a conduta cidadã da organização possa ser - e muitas vezes é - uma forma de alcançar mais lucros considerando uma característica contemporânea do consumidor. Mas, como 39 TEUBNER, Gunther. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005, p. 43. 40 A CORPORAÇÃO. Direção: Jennifer Abbott; Mark Achbar. Zeitgeist Films, 2003. 1 DVD (145 min), son., color. 41 DÍEZ, Carlos Gómez-Jara. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o dano ambiental: a aplicação do modelo construtivista de autorresponsabilidade à Lei 9605/98. Tradução de Cristina Reindolff da Motta. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013, pp. 26 e seguintes. 1602 observado, a efetividade da prestação da garantia torna-se cada vez mais relevante no contexto atual, e se demonstra que contratos particulares voluntários podem ser mais um instrumento deste Direito policontextural que possa se equiparar em determinadas características a textos constitucionais fragmentados no sistema jurídico. Toma-se como exemplo o casso da "GAP Inc." que, além de possuir um código de conduta próprio42, esteve envolvida em escândalos acerca de trabalho infantil em uma de suas fornecedoras. A empresa define seu código de conduta de negócios como "a commitment we make to our shareholders, customers and each other not only out of a legal obligation, but because it’s the right thing to do", complementando que We each make important contributions to protecting our company and its reputation. Recognizing right from wrong, and understanding the ethical implications of our choices, is fundamental to doing what’s right at Gap Inc. We are each responsible for applying the standards outlined in our Code of Business Conduct to our work, every day. Observando referido documento, existem preocupações da organização nos seguintes tópicos: como empoderar o consumidor para expor suas preocupações; trabalhando com integridade; ter uma prática ética; afastando conflitos de interesse; proteção da marca; entendendo as linhas políticas da política empresarial, e; recursos para fazer o que é correto43. Todas essas características dão um novo molde ao negócio, também contratual, com seus fornecedores que antigamente somente envolvia um retorno financeiro pela produção de determinados produtos. Hoje existe uma preocupação, ao menos expressada, em quem está produzindo e como se está produzindo aqueles produtos e a própria instituição. Por conta desta nova política empresarial é que houve a necessidade de demandar um nível de conduta uniforme de toda sua cadeia produtiva. Os novos padrões aumentam o valor da companhia. Inicialmente reduzem custos e aumentam a qualidade dos produtos. Secundariamente esta visão de 42 Interessante característica é o fato de que tal código está disponível em nove idiomas. GAP INC. History. 2015. Disponível em <http://www.gapinc.com/content/gapinc/html/aboutus/ourstory.html>. Acesso em 13 abr. 2015. 43 GAP INC. Our Cord of Business Conduct. 12/2012. Disponível em <http://www.gapinc.com/content/dam/gapincsite/documents/COBC/COBC_english.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2015. 1603 responsabilidade social corporativa serve como resposta lucrativa pela demanda dos consumidores por produtos produzidos em determinada maneira. Por fim esta nova maneira de gerenciar a cadeia produtiva de forma socialmente responsável está relacionada também com boas práticas de governança corporativa, ou seja, atrai novos acionistas e um retorno mais sustentável do lucro a eles. Tais práticas foram iniciadas em 1992 com o estabelecimento de padrões ao redor do mundo. Em 2004 a "GAP Inc." começou a editar seu Relatório de Responsabilidade Social e em 2006 começou a ter uma atenção ao trabalho colaborativo com ONGs.44 Posteriormente foi estabelecido o documento Code of Vendor Conduct45 que, baseado em padrões laborais aceitos internacionalmente e em convenções internacionais, estabelece os padrões mínimos exigidos que todos os fornecedores deveriam praticar para realizar negócios com a "GAP Inc.". Verificase que, considerando a possibilidade desta organização trabalhar em regiões onde a legislação seja de pouca incidência ou a prática cotidiana das empresas pouco fiscalizadas pelo Estado local, acaba que tais padrões são mais fortes e protetivos que a própria realidade local/regional externa às fábricas. Inclusive o código de conduta de fornecedores estabelece a possibilidade de fiscalização inesperada e punições unilaterais em caso de descumprimento, incluindo a suspensão de encomendas, o fim do relacionamento e/ou a implementação de um plano de ação corretivo.46 Mesmo com o estabelecimento dessas políticas, em outubro de 2007 houve a divulgação de trabalho infantil próximo a condição de escravidão em uma das fábricas na Índia. Um dia após ter tomado ciência das denúncias na mídia a organização identificou que houve uma subcontratação por parte de um de seus fornecedores e imediatamente cessou a compra deste fornecedor e preveniu que os produtos oriundos daquela fábrica fossem vendidos em suas lojas. O mais inesperado deste episódio foi que a partir das sanções aplicadas tomou-se 44 Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, pp. 12-13. 45 GAP INC. Code of Vendor Conduct. Disponível em: <http://www.gapinc.com/content/attachments/ gapinc/COVC_070909.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015. 46 Cf. GAP INC. Code of Vendor Conduct. Disponível em: <http://www.gapinc.com/content/ attachments/gapinc/COVC_070909.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015, p. 15 1604 conhecimento que aquelas crianças que naquela fábrica trabalhavam voltaram a uma situação de vulnerabilidade estando elas e suas famílias desamparadas, quando então a empresa notou que a sanção aplicada a empresa causou uma repercussão da mesma forma negativa. Prontamente identificou que uma política de um plano de ação para remediar o problema, com a obrigação do fornecedor de prover uma remuneração, educação e oportunidades dignas àquele entorno que anteriormente havia sido explorado. Hoje existe uma política de financiamento de organizações não-governamentais ao redor do mundo que advogam em causas de direitos fundamentais e o incentivo para que apoiem práticas sustentáveis em suas regiões.47 Embora ainda incipiente, a temática dos códigos de conduta e programas de cumprimento parecem demonstrar que tais documentos podem sim vir a ser um instrumento auxiliar no emaranhado de possibilidades jurídicas de regulação, em especial a partir da policontexturalidade. Talvez tenhamos chegado na época onde os contratos substituem o Direito, redes de relacionamento substituem uma comunidade política, interesses substituem o território e o regulado passa a se tornar regulador48. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pode-se inferir que a observação sobre a sociedade, o Direito e os institutos estabelecidos pode ser qualificada de forma diferente. É possível identificar que geograficamente a diferenciação delimitados não da se sociedade por meio de Estados demonstra adequado ao contexto contemporâneo. Em homenagem a Teubner adotou-se no trabalho a perspectiva de uma sociedade e um Direito global, não mais inter"nacional" levando em conta a característica autopoiética. Associado a isso ainda existe a característica policontextural, onde a prática do código binário jurídico, ou de outro sistema 47 Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, pp. 11 e seguintes. 48 Cf. BACKER, Larry Catá. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015, p. 26. 1605 social por exemplo, é praticado não mais exclusivamente por atores privilegiados. Neste ponto há uma grande oportunidade para as instituições não-Estatais. Com a superação da verticalidade e da exclusividade por uma horizontalidade decisional baseada dentre centro e periferia do sistema há a possibilidade de que organizações privadas, dentre inúmeras outras possibilidades, comunicarem sob a lógica jurídica e criarem padrões como podem ser considerados os instrumentos analisados no terceiro capítulo. Por fim analisou-se as características dos códigos de conduta e programas de cumprimento. Muito embora tais instrumentos sejam associados a minimização dos prejuízos em casos de condenação das empresas, esses institutos, conforme demonstrou-se, podem ser equiparados, em específicas características, a fragmentos constitucionais empresariais autônomos em relação ao Estado e a região onde possam ser aplicados. Acredita-se que se tenha cumprido, embora com resultados parciais da pesquisa, em demonstrar a possibilidade de regulação privada autônoma de práticas efetivas de direitos fundamentais. REFERÊNCIAS A CORPORAÇÃO. Direção: Jennifer Abbott; Mark Achbar. Zeitgeist Films, 2003. 1 DVD (145 min), son., color. BACKER, L. C. Multinational Corporations as Objects and Sources of Transnational Regulation. ILSA Journal of International & Comparative Law. Vol 14, No 2, 2008. Disponível em <http://ssrn.com/abstract=1092167>, Acesso em abril de 2015. BIEGELMAN, M. T.; BIEGELMAN, D. R. Building a World-Class Compliance Program: best practices and strategies for success. Nova Jersei: John Wiley & Sons, 2008. BOBBIO, N. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CAPRA, F. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla, São Paulo: Cultrix, 2002. DERECHO. In: CORSI, G.; ESPOSITO, E.; BARALDI, C. Glosário sobre la teoría Social de Niklas Luhmann. México: ITESO/Editorial Anthropos, 1996. 1606 DÍEZ, C. G.-J. A responsabilidade penal da pessoa jurídica e o dano ambiental: a aplicação do modelo construtivista de autorresponsabilidade à Lei 9605/98. Tradução de Cristina Reindolff da Motta. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. FLORES, L. G. G. Teoria das três matrizes de Leonel Severo Rocha - um ponto de partida para novas reflexões. In: BARRETO, V. P.; DUARTE, F. C. Direito da sociedade policontextural. Curitiba: Appris, 2013, pp. 49-73. GAP INC. Code of Vendor Conduct. Disponível em: <http://www.gapinc.com/content/attachments/gapinc/COVC_070909.pdf>. Acesso em 13 abr. 2015. GAP INC. History. 2015. Disponível em <http://www.gapinc.com/content/gapinc/html/aboutus/ourstory.html>. Acesso em 13 abr. 2015. GAP INC. Our Cord of Business Conduct. 12/2012. Disponível em <http://www.gapinc.com/content/dam/gapincsite/documents/COBC/COBC_english .pdf>. Acesso em: 13 abr. 2015. KAWAMURA, S. The formation of Global Economic Law: under aspects of the autopoietic system. Japão, Shiga: Ryokoku University: 2012. KELSEN, H. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. LUHMANN, N.; DE GEORGI, R. Teoría de la sociedad. Guaralajara: Universidad de Guadalajara: 1993. LUHMANN, N. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007. LUHMANN, N. Organización y decisión. Cidade do México: Universidad Iberoamericana, Herder, 2010. LUHMANN, N. Sistema juridico y dogmatica juridica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001. MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. De máquinas e seres vivos: autopoiese – a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. REALE, M. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994. 1607 ROCHA, L. S. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1998. ROCHA, L. S. Observações sobre a observação Luhmanniana. In: ___, L. S.; KING, M.; SCHWARTZ, G. A verdade sobre a autopoiese no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. SAND, I.-J. Polycontextuality as an alternative to Constitutionalism. In: JOERGES, C; SAND, I.; TEUBNER, G. Transnational Governance and Constitutionalism. Portland: Hart Publishing, 2004. SILVA, A. S. Teoria reflexiva da decisão jurídica: observações a partir da teoria dos sistemas que observam. In: SCHWARTZ, G. (Org.). Juridicização das Esferas Sociais e Fragmentação do Direito na Sociedade Contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. SUPIOT, A. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. TEUBNER, G. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional. Revista Impulso. Piracicaba, 14(33): 9-31, 2003. TEUBNER, G. Direito, sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Editora Unimep, 2005. TEUBNER, G. O Direito como Sistema Autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. US DEPARTMENT OF JUSTICE. Memorandum: principles of Federal Prosecution of Business Organizations. Disponível em: <http://www.justice.gov/sites/default/files/dag/legacy/2007/07/05/mcnulty_memo.p df> Acesso em 20 jan. 2015. 1608 PESQUISA CLÍNICA DE MEDICAMENTOS NO BRASIL: ANÁLISE QUANTITATIVA DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA ESTADUAIS DA REGIÃO SUL DO BRASIL Selma Rodrigues Petterle Luís Paulo Petersen Andreazza Gislaine Maria Fregapani RESUMO: O presente estudo pretende apresentar os resultados parciais obtidos na pesquisa quantitativa de julgados proferidos por três Tribunais de Justiça Estaduais, quais sejam, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina e o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, entes que integram a federação brasileira e que compõem a denominada Região Sul do Brasil, sobre um tema específico, qual seja, a pesquisa clínica com medicamentos, que é realizada no Brasil e em todo o mundo, diariamente. Trata-se de testar, aprovar e incorporar medicamentos no sistema de saúde brasileiro, o que não é possível sem a participação de uma multiplicidade de atores (sujeitos de pesquisa, membros de comitês de ética, autoridades reguladoras, sociedade civil organizada, dentre outros) e papéis desempenhados. Face ao panorama traçado, difícil não vislumbrar o papel dos juízes, decidindo conflitos. Metodologicamente cabe explicitar que foram utilizados vários critérios para o mapeamento aqui apresentado: a pesquisa se deu nos sites oficiais dos referidos tribunais; a partir de lapso temporal e palavras-chave de pesquisa previamente definidas, apresentando-se, por ora, a análise quantitativa preliminar das decisões judiciais coletadas. Nesse contexto, cabe ainda destacar que este artigo está vinculado a projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Processo no 475998/2013-8, Edital Universal no 14/2013, “Pesquisa Clínica com Medicamentos no Brasil: Observatório de Jurisprudência”), cujo problema central diz respeito a perquirir quais são os conteúdos que têm sido delineados pelos juízes no Brasil, sobre o tema. Considerado um conteúdo já lançado por jurisprudência gaúcha (acerca do dever dos laboratórios patrocinadores de fornecer o medicamento após o término da pesquisa) e outros que serão mapeados durante a construção do observatório de jurisprudência, vislumbra-se o relevante papel desempenhado pelos juízes. Nesse contexto verifica-se, paradoxalmente, que uma violação ou a rejeição de um direito em realidade não o infirma, mas, ao contrário, o afirma, já que é a partir da negação de um direito, no contexto fático, que o próprio Direito se (re) constrói, notadamente a partir da decisão judicial, movimento que acaba por evidenciar as complexas zonas de interpenetração entre outros vários sistemas e o sistema 1609 jurídico. Assim, se, por um lado, o Direito se retroalimenta, circular e internamente, por outro, sofre influências (ou provocações) quando em zonas limítrofes ou de contato com outros sistemas sociais, questão que também pode ser estudada à luz da ideia da (re) construção Direito a partir de suas fontes. Trata-se, portanto, de pesquisa com evidente aplicação prática, na medida em que mapear as decisões judiciais (e futuramente, em artigo posterior, os fundamentos empreendidos pelos juízes) relativamente aos direitos reconhecidos às pessoas que participam de pesquisas clínicas com medicamentos possibilita também aprofundar as reflexões acerca das diversas formas de atuação dos poderes públicos (leia-se juiz, legislador e administrador) e também dos particulares, que desempenham, conjuntamente, relevante papel no que diz com a construção do conteúdo do direito à saúde. PALAVRAS-CHAVE: pesquisa jurisprudência; brasil; região sul. clínica; medicamentos; observatório; 1 INTRODUÇÃO Quando se debate acerca do direito à saúde, invariavelmente remete-se a discussão jurídica a problemas do cotidiano dos indivíduos, desde a questão da distribuição de medicamentos, até a promoção de atendimento suficiente em hospitais públicos e privados e de acesso a tratamentos médicos qualificados. Em particular, quanto ao direito-dever de acesso a medicamentos, a necessidade de novos fármacos ou mesmo de aperfeiçoamentos dos remédios existentes impulsiona uma análise específica sobre a pesquisa clínica de medicamentos, na medida em que toda a disponibilização de novos medicamentos oferece, ao menos em tese, esperança de tratamento e perspectiva de cura e melhora de expectativa vida aos portadores de moléstias prejudiciais à saúde. São quatro as fases das pesquisas clínicas com medicamentos49, sendo que as três primeiras antecedem o registro do produto perante as autoridades Alerte-se, quanto à relevância da definição das várias fases das pesquisas clínicas, que no 49 Brasil há Resolução Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (RDC 39/2008, alterada em 2013 pela RDC 38/2013) sobre pesquisa clínica com medicamentos ou produtos para a saúde passíveis de registro sanitário, no seguinte sentido: 1ª) fase I: estudos de farmacologia humana; 2ª) fase II: estudos terapêuticos ou profiláticos de exploração; 3ª) fase III: estudos terapêuticos ou profiláticos confirmatórios; 4ª) fase IV: ensaios pós-comercialização. 1610 estatais competentes (PETTERLE, 2013, 2012). Inicialmente, na Fase I, são realizados estudos com algumas dezenas de pessoas, entre voluntários sadios ou pacientes - análise da absorção, distribuição, metabolismo, excreção e toxicidade da droga; na Fase II, realizados estudos que envolvem a análise da utilidade clínica do novo medicamento e sua relação dose-resposta; na Fase III, realizados estudos com avaliação de eficácia e segurança, através da simulação do uso clínico habitual do medicamento; por fim, os estudos de fase IV ocorrem após o registro perante as autoridades estatais e, portanto, com o produto disponível ao público para comercialização (portanto já testado, aprovado e incorporado). Destinam-se, estes ensaios, a avaliar possíveis efeitos secundários ainda desconhecidos (FLETCHER, 2006), bem como outras novas indicações ou associações (combinações) para o produto, ou quem sabe uma nova via de administração, ou até mesmo realizar uma análise da relação custo-efetividade, do novo fármaco aprovado com outras opções anteriormente existentes (GOLDIM, 2007). Esclareça-se que a pesquisa com novos fármacos, medicamentos, vacinas e testes diagnósticos no Brasil foi regulamentada por órgão vinculado ao Ministério da Saúde (o Conselho Nacional de Saúde), mais especificamente pela Resolução CNS no. 251/1997, observadas as normas gerais constantes na Resolução CNS 196/1996 (revogada) e, atualmente, pela Resolução CNS 466/2012, além de Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Resolução RDC 39/2008, e RDC38/2013). Abstraídos os parâmetros protetivos já estabelecidos pelo direito internacional (SARLET, PETTERLE, 2014) e sua recepção no Brasil, enfatize-se, ademais, que não há legislação (lei em sentido formal) que regulamente a pesquisa clínica de medicamentos no Brasil. Trata-se, como se pode verificar a partir das referidas fases das pesquisas clínicas, de testar, aprovar e incorporar medicamentos no sistema de saúde brasileiro. Assim como acompanhá-los de forma sistemática e permanente, o que não é possível sem a participação de uma multiplicidade de pessoas, órgãos e instituições (os sujeitos de pesquisa, os membros de comitês de ética, as diversas autoridades reguladoras, sociedade civil organizada, dentre outros), com diversos papéis. 1611 Essa grandiosa meta, que envolve necessariamente muitos atores, têm um perfil de construção coletiva do conhecimento na área de saúde, na qual o Brasil também se insere. Apenas para dar um exemplo, a pandemia do HIV/AIDS (FLETCHER, 2006) parece ser um bom exemplo para ilustrar as inúmeras formas de conjugação de esforços no sentido de vencer desafios de saúde pública, em âmbito mundial. Busca-se, em complementação a outras tantas medidas preventivas (como as campanhas sobre o indispensável uso da camisinha) e/ou medicamentosas já implementadas (adesão aos antiretrovirais, inclusive quebrando o elo da transmissão vertical), criar alguma vacina contra o HIV/AIDS. As pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto Praça Onze (CARDOSO, 2008), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participa de vários ensaios clínicos de vacinas (preventivas) contra o HIV/AIDS, dentre eles o Protocolo de pesquisa HVTN 055, envolvendo a Therion Biologics Corporation, em colaboração com a rede mundial de pesquisas de vacinas anti-HIV/AIDS (HIV Vaccine Trials Network - HVTN) e com apoio financeiro dos Institutos Nacionais de Saúde Americanos (National Institutes of Health, NIH). Tamanha é a envergadura e a repercussão dos projetos na comunidade que o centro conta com um Comitê Comunitário de Acompanhamento de Pesquisa (CCAP), que, além de estreitar os laços entre a comunidade e os pesquisadores, discute e avalia permanentemente a participação voluntária nesses projetos, zelando pelo respeito dos direitos dessas pessoas. Note-se a complexidade agregada por esses projetos de pesquisa, já que o fenômeno envolve, como dito, muitos atores e intrincados papéis, como o desempenhado pelos pesquisadores (e suas equipes multidisciplinares de trabalho), assim como pelos integrantes dos comitês institucionais de ética em pesquisa, além de autoridades estatais, bem como os financiadores do projeto, com distintas contrapartidas, vislumbrando-se, também, as diversas tensões que estão em jogo. Ademais, para além da criação de mais um novo produto para a saúde (uma vacina para comercialização), busca-se um meio preventivo para senão acabar pelo menos reduzir drasticamente os alarmantes índices de contaminação com o HIV/AIDS, questão que evidentemente transcende a criação de um novo produto. Sabe-se que através de pesquisas clínicas levadas a cabo com rigor 1612 metodológico se logrará quem sabe obter a generalização de um (novo) conhecimento científico e que tais pesquisas dependem da participação de voluntários, sem os quais possivelmente não serão (ou não seriam) obtidos quaisquer resultados. De tal sorte, as pessoas que, em um dado momento da vida e pelas mais variadas motivações pessoais, candidatam-se, de livre e espontânea vontade, para participar de um experimento (científico), acabam por contribuir significativamente para essas descobertas científicas. Justamente com base na preocupação de proteger esses sujeitos de pesquisa é que se concebeu todo um sistema calcado em vários mecanismos protetivos como, dentre outros, o consentimento informado (CLOTET, 1995), que garante (ou deveria garantir) o pleno exercício da liberdade, por essas pessoas envolvidas diretamente com o objeto do estudo. A participação do indivíduo na pesquisa clínica de medicamentos enseja o reconhecimento da vulnerabilidade desse sujeito, que impõe deveres de proteção, embora o sujeito disponha de capacidade para exercer voluntariamente a decisão de se submeter à experimentação clínica (CEZAR, 2012). O princípio ético do respeito pelas pessoas50 se refere ao reconhecimento da autonomia da generalidade dos indivíduos e de proteção daqueles que possuem uma autonomia diminuída. Deste princípio, decorre a necessidade do consentimento informado, o qual inclui a obrigatoriedade de informação, compreensão e voluntariedade (NEVES, 2007). A promoção da saúde, portanto, deve ser realizada com responsabilidade de proteger, em especial, os indivíduos participantes das pesquisas clínicas e que se apresentam numa condição de vulnerabilidade. A preocupação quando da promoção da saúde deve ser materializada em reconstruir os conceitos da medicina, sem atribuir à saúde o caráter de produto de consumo, porém utilizando as ciências e a medicina para O Documento das Américas: Boas Práticas Clínicas, elaborado na IV Conferência Pan- 50 Americana para harmonização da regulamentação farmacêutica, na República Dominicana, de 02 a 04 de março de 2005, dispõe acerca dos princípios éticos, baseados primariamente na Declaração de Helsinki, que devem ser a base para a aprovação e condução dos ensaios clínicos, quais sejam o respeito pelas pessoas, beneficência e justiça e devem permear todos os princípios de Boas Práticas Clínicas. 1613 alcançar uma melhor qualidade da vida social e protegendo, em especial o direito à qualidade de vida (VERDI, 2007). Os interesses das partes envolvidas na pesquisa clínica com medicamentos experimentais, seja do sujeito submetido à pesquisa, do médico pesquisador ou mesmo do patrocinador da pesquisa, tem como finalidade comum a busca de uma otimização de resultados em relação à questão da saúde. Em verdade, a preocupação com o restabelecimento da situação de saúde – e, portanto, de equilíbrio - da sociedade como um todo é o norte que deve orientar aqueles envolvidos com a pesquisa científica. Não há como negar, portanto, a possibilidade de que exista um conflito de interesses secundários, de ordem econômica ou até mesmo política. Até porque a própria pesquisa não se sustenta ou mesmo se justifica sobre um pilar eminentemente teórico, mas, também, possui num sentido amplo uma relação com a política, tendo o pesquisador uma crescente responsabilidade diante da importância da pesquisa clínica (GADAMER, 1999). Se o interesse do pesquisador deveria se mover cientificamente de modo desinteressado em relação às conclusões de pesquisa, na prática, o que se identifica é uma vinculação econômica muito mais marcante do pesquisador em relação ao seu objeto de pesquisa do que se poderia imaginar. Nesse contexto, a possibilidade de alcançar o lucro com a venda de um fármaco conduz a pesquisa clínica (CEZAR, 2014). Do ponto de vista formal, por outro lado, pode não ser o interesse do indivíduo que se vincula à pesquisa clínica - sujeitando-se a ela como paciente ou objeto de estudo; portanto, de forma distinta do que se esperaria da participação do pesquisador. O participante e pesquisado não necessariamente se encontra vinculado ao estudo clínico a partir de uma condição de altruísmo. Muito antes é alimentado pelo interesse livre de participação, possivelmente estabelecido a partir de uma situação egoísta de enfoque: a submissão a um tratamento alternativo ou ainda disposto a uma esperança de cura - se não pessoal, ao menos de cunho coletivo. É um interesse que, por consequência, ainda que medido a partir de uma pretensão utilitarista e pessoal, impõe, abstratamente, o reconhecimento de uma consciência livre e autônoma, na busca de resultados de 1614 interesse privado relativo à sua saúde. É, portanto, um movimento de aderência à pesquisa científica por um sujeito livre que visa restringir a própria liberdade de forma consciente, ainda que com uma finalidade específica: a reconstrução do equilíbrio atingido pela doença. Face ao panorama traçado, difícil não vislumbrar o papel dos juízes, decidindo conflitos. Nesse contexto, um dos conteúdos que tem sido reconhecido é a obrigação (do laboratório patrocinador) de fornecer o medicamento após a conclusão da pesquisa clínica, em sede doutrinária (CEZAR, 2009, 2012). O fenômeno da judicialização dessas pesquisas no Brasil decorre, via de regra, da busca do sujeito que ingressa na pesquisa clínica de medicamentos (inclusive experimental), pelas mais diversas razões (como obter benefícios à saúde, condição clínica, interesse/necessidade no fornecimento do medicamento experimental, dentre outros). Este estudo, portanto, tem como objeto apresentar os dados e resultados parciais apurados na pesquisa jurisprudencial, de caráter por ora quantitativo, a partir da análise das decisões dos Tribunais de Justiça Estaduais dos Estados que integram a Região Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). 2 DESENVOLVIMENTO DO ARTIGO Foram estabelecidos vários critérios para a pesquisa jurisprudencial. O primeiro critério foi o lapso temporal. Nessa fase inicial, de resultados ainda parciais, os dados mapeados se referem aos julgados do período de 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, até 31.12.2013. As decisões foram coletadas nos sites oficiais de três Tribunais de Justiça estaduais, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o Tribunal de Justiça do Santa Catarina (TJSC) e o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Advirta-se que nem todos os Tribunais publicam, nos respectivos sites, todas as decisões prolatadas, o que pode significar que os dados estão subestimados. Ademais, não há um sistema de indexação padrão para as decisões (cada Tribunal têm um sistema próprio). Por tais razões, foram utilizadas 1615 seguintes palavras-chave de pesquisa: “pesquisa clínica”, “investigação clínica”, “medicamento experimental” e “pesquisa envolvendo seres humanos”, bem como anotadas as datas em que foram coletadas. Os dados do mapeamento de decisões dos três Tribunais da Região Sul do Brasil (RS, SC e PR) que são apresentados no presente estudo se tratam de resultados parciais da análise quantitativa de julgados que possuem, como objeto, relação aos termos “pesquisa clínica”, “investigação clínica”, “medicamento experimental” e “pesquisa envolvendo seres humanos”. Oportunamente, este estudo será desenvolvido também com análise qualitativa, a fim de permitir uma análise crítica mais específica quanto aos resultados das demandas e, inclusive, quanto aos fundamentos das decisões judiciais. Do mapeamento de decisões dos Tribunais de Justiça da Região Sul foi apurado um total de 178 (cento e setenta e oito) decisões de acordo com os critérios estabelecidos nos termos indicados acima, sendo identificadas 37 (trinta e sete decisões) que tratam de demandas que possuem como objeto a pesquisa clínica com medicamentos e, por outro lado, foram descartadas 141 (cento e quarenta e uma) decisões que se referem a temas que não se relacionam ao tema de investigação do Observatório. Outra questão a enfrentar aqui é a definição de critérios para exclusão, já que algumas decisões judiciais poderão ser excluídas do universo da pesquisa, por não estarem diretamente vinculadas ao tema proposto (objeto da ação não é relativa à pesquisa clínica; matéria tributária como controvérsia predominante; regime de contratação e remuneração de servidores públicos como controvérsia predominante; óbices procedimentais, sem exame da matéria de fundo), critérios que estão sendo reformulados ao longo da realização da pesquisa. Nesse sentido, é possível visualizar os dados coletados na pesquisa jurisprudencial de cada Tribunal de Justiça da Região Sul, conforme se depreende das tabelas abaixo: Análise quantitativa de decisões do TJRS Palavras-chave Identificadas Descartadas Pesquisa clínica 1 2 1616 Investigação clínica 0 9 Medicamento experimental 25 14 Pesquisa envolvendo seres humanos 1 0 Total 27 25 Palavras-chave Identificadas Descartadas Pesquisa clínica 0 0 Investigação clínica 0 0 Medicamento experimental 0 4 Pesquisa envolvendo seres humanos 0 0 Total 0 4 Palavras-chave Identificadas Descartadas Pesquisa clínica 2 2 Investigação clínica 0 14 Medicamento experimental 8 96 Pesquisa envolvendo seres humanos 0 0 Total 10 112 Análise quantitativa de decisões do TJSC Análise quantitativa de decisões do TJPR Total de decisões dos Tribunais Estaduais da Região Sul do Brasil 37 141 Decisõesjudiciaisrelacionadasàpesquisaclínicacom medicamentos(37)esuadistribuição. 1617 TJRS TJPR TJSC Depreende-se daí que do mapeamento inicial quantitativo de 37 (trinta e sete) julgados sobre o tema (pesquisa clínica com medicamentos), junto aos bancos de dados oficiais dos três Tribunais de Justiça que compõem a Região Sul do país, restou identificada uma demanda no percentual de 72,97% junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; sendo o percentual de 27,03% das demandas junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e, por sua vez, nenhuma demanda foi identificada no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. A partir dos quantitativos, em números absolutos e percentuais, verificase um elevado quantitativo de demandas ajuizadas no Estado do Rio Grande do Sul (aproximadamente 3/4), seguido pelo Estado do Paraná (aproximadamente 1/4) e a ausência de demandas no Estado de Santa Catarina, o que indica a relevância de um estudo qualitativo dos julgados, ou seja, a análise crítica dessas decisões judiciais. 1618 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos dados apresentados no presente trabalho impõem-se a conclusão de que o Estado do Rio Grande do Sul possui uma demanda significativamente superior aos outros Estados da Região Sul acerca de litígios judiciais vinculados à pesquisa clínica com medicamentos, fato este que desperta a importância de prosseguir o estudo através da pesquisa qualitativa das decisões mapeadas. O percentual de demandas acerca da pesquisa clínica com medicamentos julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul remete também à existência de alguns casos pontuais (como o caso da pesquisa clínica com o medicamento laronidase, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, único no Brasil a sediar este estudo pioneiro e, consequentemente, para onde se deslocaram várias crianças provenientes de outros estados da federação) e demarca também uma posição diferenciada desta Corte em relação às demais, o que será objeto de outro artigo. Destaque-se que a pesquisa jurisprudencial quantitativa tem, por ora, um caráter ainda provisório e que prosseguirá com o mapeamento das decisões judiciais de Tribunais de outras regiões do Brasil, para que sejam identificados, em um primeiro momento, aspectos qualitativos preliminares (identificação das partes e seus procuradores; o pedido e razões de pedir; o acolhimento ou não do pedido, assim como os fundamentos da decisão, dentre outros) e, posteriormente, a análise crítica dos fundamentos das decisões. Ademais, essa matéria tem sido objeto de frequentes discussões, seja no Senado Federal, que realizou, em março de 2014, Audiência Pública na Comissão de Assuntos Sociais, para analisar o modelo regulatório da pesquisa clínica com medicamentos no Brasil, além da tramitação de vários projetos de lei51. Analisar criticamente os principais argumentos aportados pelos juízes e 51 Projetos de Lei no Senado Federal: 1) PLS 323/2001, sobre normas e requisitos para a pesquisa médica em seres humanos; 2) PLS 25/1992, com proibição de realização de ensaios clínicos nas fases I e II no teste de fármacos produzido por tecnologia estrangeiras; 3) PLS 78/2006, que estabelece punições para as violações às diretrizes e normas concernentes às pesquisas que envolvem seres humanos e determina a corresponsabilidade do pesquisador, 1619 refletir acerca do fenômeno da judicialização da pesquisa clínica com medicamentos no Brasil descortinará uma série de problemáticas a enfrentar, dentre elas a discussão acerca do marco regulatório brasileiro, assim como servirá de aporte para fomentar novos estudos sobre o tema. REFERÊNCIAS BRASIL. Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012. Disponível em <http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf>. _____. Resolução nº 251 de 07 de agosto de 1997. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/1997/res0251_07_08_1997.html> _____. Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 39/2008. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/res0039_05_06_2008.htm l>. _____. Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 38/2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/rdc0038_12_08_2013.htm l>. _____. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Banco de dados on line de jurisprudência. Acesso no período de maio/junho de 2014. _____. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Banco de dados on line de jurisprudência. Acesso no período de maio/junho de 2014. _____. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Banco de dados on line de jurisprudência. Acesso no período de maio/junho de 2014. do patrocinador e da instituição pela indenização devida aos sujeitos das pesquisas por eventuais danos ou prejuízos, pronto para a pauta na CCTICI; 4) PLS 396/2007, dispondo sobre a obrigatoriedade da continuidade do tratamento de sujeito de pesquisa em seres humanos com fármaco, medicamento, nova formulação ou nova combinação de fármacos, por meio da sua dispensação gratuita pela instituição pesquisadora no decorrer da pesquisa até a efetiva comercialização, e pelo fabricante, quando já comercializado, e sobre a divulgação dos resultados da pesquisa. Projetos de Lei na Câmara dos Deputados: 1) PL 3.569/1997, com incentivos fiscais para a pesquisa clínica e desenvolvimento tecnológico na área de saúde; 2) PL 7.086/2000, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos; 3) PL 2.473/2003, sobre Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos e requerimento REQ 229/2009, de audiência pública para discutir este PL. 1620 CARDOSO, G. C. P. Ensaios clínicos com vacinas anti-HIV/AIDS: a rotina de incorporação de uma prática científica. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2008. CEZAR, D. O. Obrigação de fornecimento do medicamento após a conclusão de pesquisa. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009. _____. Pesquisa com medicamentos: aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012. _____. Pesquisas patrocinadas com medicamentos e proteção da confiança. MARTINS-COSTA, J. (org.). Modelos de Direito Privado. São Paulo, Marcial Pons, 2014 CLOTET, J. O. Consentimento Informado nos Comitês de Ética em Pesquisa e na Prática Médica: conceituação, origens e atualidade. Revista Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina, v. 3, n. 1, p. 59, 1995. FLETCHER, R. H.; FLETCHER, S. W. Epidemiologia clínica: elementos essenciais. Tradução de Roberta Marchiori Martins. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. GADAMER, H.-G. Verdade e método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 3ª edição. Petrópolis, Vozes, 1999. GOLDIM, J. R. A avaliação ética da investigação científica de novas drogas: a importância da caracterização adequada das fases da pesquisa. Revista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, v. 27, n. 1, p. 66-73, 2007. Também disponível em: <http://www.ufrgs.br/bioetica/fases.pdf>. NEVES, M. do C. P. Sentidos da Vulnerabilidade: característica, condição e princípio. In: Bioética, Vulnerabilidade e Saúde. Aparecida/SP: Idéias& Letras: Centro Universitário São Camilo, 2007 PETTERLE, S. R. A informação sobre pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil: do SISNEP à Plataforma Brasil. In: MACHADO, E. D.; CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. (Orgs.). Direitos fundamentais e democracia I [Recurso eletrônico on-line] 1ed. CONPEDI UNINOVE. Florianópolis: FUNJAB, 2013, v. 1, p. 253-274. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=24988d9aa627ea72>. _____. Liberdade de pesquisar, pesquisas clínicas e outras pesquisas científicas de risco envolvendo seres humanos: uma proposta de reformulação do atual sistema de controle implementado pelo Conselho Nacional de Saúde, à luz da Constituição brasileira. Tese de Doutorado em Direito. Programa de Pós- 1621 Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012. SARLET, W. S.; PETTERLE, S. R. Liberdade de pesquisa como direito humano e fundamental e seus limites: a pesquisa com seres humanos e os parâmetros protetivos estabelecidos pelo direito internacional e sua recepção no Brasil. Espaço Jurídico Journal of Law - JJL, v. 15, n. 1 (2014): jan./jun.2014. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/espacojuridico/article/view/3586/2548>. VERDI, M. I. M., ET AL. A PROMOÇÃO DA SAÚDE E A BIOÉTICA DA PROTEÇÃO: OS DESAFIOS À GARANTIA DO DIREITO À SAÚDE. IN: Bioética, vulnerabilidade e saúde. Aparecida/sp: Idéias & Letras: Centro Universitário São Camilo, 2007. 1622 INTERDIÇÃO CIVIL, CUIDADO E RELAÇÕES FAMILIARES: UMA ANÁLISE A PARTIR DE FAMÍLIAS ENVOLVIDAS. Helena Moura Fietz52 RESUMO: No processo judicial de interdição civil cabe a um Juiz de Direito declarar a “incapacidade para os atos da vida civil” do sujeito a ser interditado que, a partir da interdição, passa a depender de um curador para gerenciar seus bens e sua pessoa. Este processo pode ser iniciado pelos pais ou tutores, cônjuge ou outros parentes daquele que se quer interditar, ou ainda pelo Ministério Público. O foco deste trabalho é a perspectiva dos familiares envolvidos em casos de possível interdição civil e os aspectos que envolvem a tomada de decisão de ingressar ou não com este processo. A análise se dará a partir um olhar antropológico sobre a narrativa de dois casos com os quais tive contato durante o ano de 2014. Desta forma, o universo empírico deste trabalho serão os relatos de duas mulheres moradoras de uma periferia da cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, que, frente à possível interdição de um de seus familiares, decidiram por não leva-la a diante. Será feito o exercício, portanto, de falar da interdição a partir de dois casos de “não interdição”, ou de duas “interdições de fato”. Com isto se busca refletir sobre as noções de doença, cuidado e economia familiar, pensando sobre o modo como são acionadas nas falas de minhas interlocutoras e, principalmente, na maneira como influenciaram a decisão destas famílias de não ingressar com o pedido de interdição. PALAVRAS-CHAVE: Interdição Civil – Doença – Cuidado – Relações Familiares. 1 INTRODUÇÃO “E se eu morrer antes, quem cuida dele?” Foi com esta pergunta que Dona Jurema respondeu minha indagação sobre o porquê havia escolhido não interditar seu filho Jair, que com mais de 40 anos hoje é morador de rua e recebe do governo o Benefício de Prestação Continuada (BPC) após ter sido diagnosticado 52 Advogada, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais/Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) no ano de 2008. Atualmente (2014), é mestranda do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal Do Rio Grande do Sul. Sua pesquisa de mestrado centra-se no processo judicial de interdição civil enquanto um espaço interdisciplinar aonde se comunicam os discursos da medicina, do direito e das famílias envolvidas. [email protected]. 1623 por médicos peritos do INSS como portador de doença mental. O tema de minha pesquisa de mestrado em Antropologia Social é a interdição civil e foi durante minhas primeiras incursões a campo em uma localidade de baixa renda da cidade de Porto Alegre – que, em março de 2014, conheci Dona Jurema. Desde nosso primeiro encontro, esta moradora da região contou a história de seu filho e os detalhes de sua narrativa me fizeram pensar que ele havia sido interditado sendo ela sua curadora. Daí minha surpresa ao saber que ela havia decido não interditar Jair por medo de que se algo acontecesse com ela, que já é mais velha, ninguém poderia cuidar de “seu menino”. Sua história me fez pensar sobre as diferentes dimensões envolvidas na decisão das famílias de ingressar ou não com o pedido de interdição. É esta reflexão que proponho desenvolver ao longo deste trabalho. Ressalto que por questões éticas optei por manter o sigilo da identidade de meus interlocutores, utilizando nomes fictícios. Durante o ano em que venho realizando esta pesquisa pude perceber também que a interdição civil ou curatela53 é algo próximo do cotidiano das pessoas. Não é raro que, ao conversar sobre minha pesquisa, ouça relatos de pessoas que se sentem provocadas pelo tema. Estas narrativas vêm acompanhadas de histórias bastante enriquecedoras sobre aquele a ser interditado e também sobre as relações familiares envolvidas. É justamente pensando em toda essa complexidade, nas consequências e resultados de uma interdição, que parto da hipótese de que a decisão das famílias de ingressarem ou não com o processo judicial de interdição civil vai além da “incapacidade” do sujeito a ser interditado. De tal modo que se pode observar situações em que estão presentes questões familiares relacionadas a temáticas acerca da economia da família e/ou ao cuidado para com o interdito. 53 O instituto da curatela, segundo autores do Direito, destina-se a “reger a pessoa ou administrar bens de pessoas maiores, porém incapazes de reger sua vida por si, em razão de moléstia, prodigalidade ou ausência” (VENOSA, 2007:421) e é definido pelo Código Civil Brasileiro de 2002 nos artigos 1767 a 1783. Segundo o art. 1767 Código Civil Brasileiro estão sujeitos a curatela : I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; V - os pródigos.” Detalharei as características deste instituto e também do processo de interdição civil no corpo deste trabalho. 1624 O foco deste trabalho é a perspectiva dos familiares envolvidos em casos de possível interdição civil. A análise se dará a partir da narrativa de dois casos que tive contato durante o ano de 2014. Desta forma, o meu universo empírico serão os relatos de duas mulheres residentes na região estudada que, frente à possível interdição de um de seus familiares, decidiram por não leva-la a diante. Farei o exercício, portanto, de falar da interdição a partir de dois casos de “não interdição”, ou de como chamarei a partir de agora, de duas “interdições de fato”. Com isso quero dizer que nos casos específicos sobre os quais refletirei neste trabalho, o poder judiciário, por opção dos familiares, não foi acionado para que se fizesse a declaração de incapacidade dos sujeitos. Pensar o processo de interdição judicial a partir de situações em que o mesmo não ocorreu é uma maneira interessante de problematizar categorias como as de cuidado, doença e economia familiar. O que busco aqui é refletir, a partir da fala de minhas interlocutoras, sobre estas noções - de doença, cuidado e economia familiar-, pensando sobre o modo como são acionadas em suas falas e, principalmente, na maneira como influenciaram a decisão destas famílias de não ingressar com o pedido de interdição. As narrativas escolhidas se mostram representativas destas questões com as quais tenho me deparado em meu campo de pesquisa - realizado episodicamente durante os meses de março a dezembro de 2014 em Porto Alegre. Atento-me, ainda, para o fato de que ambas são mulheres, o que suscita um debate sobre o gênero daquelas consideradas “cuidadoras” do sujeito cuja “capacidade” para gerir a própria vida está em questão. Como anteriormente mencionado, partirei minha análise da experiência dos atores (Kleinmann, 1995), buscando entender como os conflitos morais que emergem na tomada de decisão sobre a interdição ou não estão relacionados com questões de família, e, principalmente, com expectativas em torno da noção de cuidado. É Kleinmann (1995) que me inspira a trabalhar com a experiência enquanto aquilo que media e transforma a relação entre contexto e pessoa. Para isso é importante prestar atenção no que está em jogo (what is in stake) para os atores em um mundo local particular. Isso porque, ao se analisar o que está em jogo nos deparamos com categorias cruciais para que se possa trabalhar a 1625 dimensão da experiência. Ao passo que ao trabalharmos com essas categorias será possível acessar o mundo moral em que estes sujeitos estão inseridos. Acompanhar as narrativas de casos de possível interdição é acessar histórias familiares mais amplas, que incluem questões afetivas, econômicas e morais que afetam a decisão sobre o ingressar ou não com a ação de interdição. É isto que pretendo fazer a partir das noções de cuidado e economia. Para tanto, irei me valer da noção de “economia do cuidado” da antropóloga estadunidense Vivian A. Zelizer (2011). Antes de iniciar a descrição das narrativas que apresentarei aqui, se faz necessário contextualizar o processo judicial de interdição a partir de uma perspectiva legal, a fim de compreender o que “está em jogo”, quais os pressupostos, implicações e consequências de ingressar com esta ação jurídica em particular. Além disso, é importante também discorrer brevemente sobre as noções de “doença” – que está diretamente ligada à declaração ou não da “incapacidade” do sujeito (Zarias, 2005), e de cuidado, para melhor situar as narrativas com as quais trabalharei. Com isto, pretendo refletir sobre as negociações envolvidas na tomada de decisão dos familiares sobre interditar ou não o sujeito cuja “capacidade” é por eles questionada. Em seguida, apresentarei os relatos, foco central deste trabalho. 2 O PROCESSO JUDICIAL DE INTERDIÇÃO: UMA PERSPECTIVA LEGAL Para compreender as razões da “não interdição”, é necessário entender o que é o processo judicial de interdição civil e quais são suas consequências para aquele que será interditado. Primeiramente, é importante deixar claro que ao falar deste processo estou falando de um espaço interdisciplinar, aonde se comunicam os discursos e saberes jurídico, médico – mais especificamente da psiquiatria e psicologia- e familiares (Zarias, 2005). A interdição civil se dá por uma decisão proferida por um Juiz de Direito após um processo judicial do qual fazem parte, entre outros atores, aquele a ser interditado, aquele que propõe a ação de interdição (pais ou tutores, o cônjuge ou outros parentes ou, ainda, o Ministério Público), o Ministério Público e, em grande parte dos casos, psiquiatras ou 1626 psicólogos que atuam como peritos judiciais. Segundo o Código Civil Brasileiro de 2002, aqueles que “não possuírem discernimento” ou “não conseguirem exprimir sua vontade” não podem ser considerados “capazes para os atos da vida civil”. Dessa forma, após um trâmite judicial que envolve interrogatório do juiz, parecer do Ministério Público e na maioria das vezes a realização de perícia, o magistrado decide pela declaração ou não da “incapacidade” do sujeito, a qual pode ser total ou parcial, permanente ou temporária (Venosa, 2007; Pontes de Miranda, 1954). Ao declarar esta “incapacidade”, o juiz nomeia um “curador”, ou seja, uma pessoa que ficará responsável por administrar os bens e/ou a pessoa do interditado. A partir deste momento, o interditado só poderá exercer certos direitos mediante a representação de seu curador. É importante destacar, que o termo curatela, que também é usado pelo poder judiciário para designar tal ação judicial, deriva do latim curare, e tem o sentido de cuidar. Assim, o curador, será aquela pessoa responsável por cuidar da pessoa e dos bens do interditado (Venosa, 2007; Medeiros, 2005). Têm-se um ato que objetiva, em última instância, proteger aquele que é considerado vulnerável por não ser “capaz” de realizar os “atos da vida civil” sem a devida representação. O caráter ambíguo da medida estaria justamente no fato de que, para que se atinja essa proteção, o interdito acaba por ter certos direitos negados, como o de representar a si mesmo (Medeiros, 2005), o que promoveria, segundo alguns autores, uma “exclusão pelo papel” no mesmo patamar da exclusão que é feita por meio da internação institucional dos doentes mentais (Chaves, 2013). Estamos diante de uma medida cujas consequências são bastante significativas para a vida do sujeito cuja “incapacidade” é declarada. É importante salientar ainda que, segundo autores do Direito, a capacidade é presumida, enquanto a “incapacidade” deve ser comprovada (Venosa,2007). É nesta comprovação que entra em cena o saber da Medicina através da realização de perícias para “avaliação da capacidade” e elaboração de laudos que buscam auxiliar o juiz em sua tomada de decisão. Há, portanto, uma interconexão entre as noções de doença e “capacidade civil” (Zarias, 2005), aonde a perda de discernimento para gerir sua vida ou seus bens está comumente ligada a alguma 1627 enfermidade que é responsável por esta perda da “capacidade”. É sobre esta conexão entre doença e capacidade que falarei a seguir. 3 “PROBLEMAS DA CABEÇA”: RELACIONANDO “DOENÇA” E “CAPACIDADE CIVIL”. As noções de “doença” e “capacidade civil”, segundo o antropólogo Alexandre Zarias (2005), são centrais na interdição civil e o nexo-causal entre ambas pode ser observado em diversas fases deste processo. Há uma presunção de que o sujeito que deve ser interditado não só é “incapaz para os atos da vida civil”, mas também é doente e é essa doença que dá causa a “incapacidade”. Segundo o autor, a conexão é tão forte que, ainda que nem todo “doente” seja “incapaz para os atos da vida civil”, todo aquele considerado “incapaz” é “doente” sob a perspectiva dos saberes do Direito e da Medicina. Tal fato é corroborado pela fala de psicólogas que entrevistei e que atuaram como peritas em casos de interdição elaborando laudos de “avaliação de capacidade” que servem para auxiliar o Juiz em sua tomada de decisão. Segundo elas, a falta de discernimento para os atos da vida civil está comumente relacionada a alguma enfermidade mental descrita pelo CID-1054 ou pela DSM55. Inclusive afirmaram que para que os laudos que elaboram tenham “validade” para os juízes, ou seja, sejam legitimados, é importante que o sujeito avaliado – nos casos em que opinam de forma favorável a interdição – esteja classificado em uma das doenças descritas por estes sistemas de classificação. Nos casos aqui analisados, falo especificamente de sujeitos que, segundo seus familiares, possuem alguma “doença mental” e que por isso sua interdição foi cogitada. Desta forma, a percepção que estes atores têm sobre o que é um problema mental se mostra crucial para a análise. 54 CID- 10 é uma Classificação Internacional de Doenças elaborada pela Organização Mundial de Saúde que busca padronizar a codificação de doenças em geral. 55 O DSM, ou Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorder, é um manual elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria em que estão listados os transtornos mentais e também quais são os critérios para diagnostica-los. 1628 Não pretendo aqui discorrer longamente sobre a noção de “doença”, mas é importante trazer à tona a diferença entre as noções de illness e disease56 e como estas estão ligadas a questão da “doença mental”. Enquanto a disease é a perspectiva do médico sobre a doença, uma racionalidade científica e que se enquadra em um modelo explicativo biomédico, a illness seria a experiência humana da doença, o modo como os sujeitos vivem a situação, uma expressão mais subjetiva daquela condição (Ware, 1992; Singer, 2004). Se a disease é aquela diagnosticada por um médico em termos biomédicos, a illness é a interpretação do paciente sobre a doença. Ao trabalhar com a narrativa dos familiares sobre a possível “doença mental” daquele cuja interdição se está considerando, acessa-se sua visão sobre aquilo que consideram ser a “doença” de seu familiar. Nos dois casos aqui analisados, estamos diante de pessoas que identificaram que seus parentes têm “problemas de cabeça”, ainda que não utilizem os termos biomédicos para descrevê-los. Entretanto, esses “problemas de cabeça” fizeram com que considerassem a interdição de seu parente ou, em última instância, que tenham realizado a sua “interdição de fato”, o que leva a crer que o nexo causal entre as noções de “capacidade” e “doença” tem início antes mesmo do processo judicial. É interessante perceber, também, que minhas interlocutoras falaram não só em “doença”, mas também que seus parentes tinham uma “deficiência”, usando estas duas palavras quase como sinônimos, razão pela qual julgo importante tecer algumas breves considerações também sobre este tema a fim de tornar ainda mais claro o modo como pretendo trabalhar com esta questão ao longo deste trabalho. A ONU, em dezembro de 2006, elaborou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência57, que busca garantir os Direitos Humanos daqueles que vivem com alguma deficiência física ou mental. Neste documento, em seu artigo primeiro, a Organização definiu as pessoas com deficiência como aquelas que “tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação 56 Optei por não traduzir os termos illness e disease do Inglês por entender que eles são melhores para a compreensão da diferença entre os modelos explicativos quando se fala de “doença”. No decorrer deste trabalho, entretanto, se usará a noção de “doença” de forma ampla. 57 http://www.un.org/disabilities/convention/conventionfull.shtml 1629 plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas”. Deste modo, pessoas que sofrem de alguma “doença mental” estariam sujeitos a esta regulamentação (Szmukler et al, 2014). Note-se, também, que a deficiência passa a ser definida muito mais em caráter político do que biomédico, o que pode ser considerado um avanço desta convenção em relação às anteriores (Diniz, 2009). A deficiência seria uma limitação de capacidade, se diferenciando da “doença” por ser crônica, ou seja, não sendo passível de cura (White e Ingstad, 1995), diferença esta que não apareceu na fala de minhas interlocutoras. Evidente que, assim como ocorre com a doença, nem toda pessoa deficiente será considerada “incapaz para os atos da vida civil” e tampouco pretendo aqui esgotar a discussão sobre tão vasto tema. Entretanto, o fato de que a palavra aparece no relato de minhas interlocutoras para se referir àqueles de quem cuidam é bastante interessante para que se faça uma análise também a partir desta perspectiva, levando-a para fora do discurso biomédico e trazendo-a a partir da fala de pessoas que convivem com esta experiência e refletindo sobre questões morais que dizem respeito a ela (idem). Este “modelo social da deficiência”, que a vê para além das definições biomédicas e leva em consideração as questões políticas e culturais que a circundam, permite percebê-la como uma nova maneira de se habitar o corpo e tira a questão do âmbito do privado e do cuidado doméstico para a vida pública (Diniz, 2009). O processo de interdição é uma das esferas públicas para qual ela foi trazida (Zarias, 2005). Além disso, este modo de análise também traz á tona questões como as diferenças entre gênero e condição social ao se lidar com a “deficiência”. Nos casos aqui analisados, estamos diante de cuidadoras mulheres que vivem em uma área pobre e urbana, o que torna relevante a questão não só da atitude em relação à pessoa que se está cuidando, mas também em como a família gerencia os parcos recursos financeiros disponíveis para a economia doméstica (White e Ingstad, 1995). Mesmo fazendo parte da esfera pública, a “deficiência” – e mais especificamente nos casos aqui analisados a “doença mental” – requer uma série de cuidados domésticos e que são, muitas vezes, não remunerados. Para ir a diante na discussão que pretendo travar, é importante discorrer também sobre a 1630 noção de cuidado para com aquele considerado doente e também sobre a economia do cuidado (Zelizer, 2011). 4 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CUIDADO O cuidado tem sido tema de diversas pesquisas recentes na área da Sociologia e Antropologia e sua recorrência na fala daqueles com quem tenho trabalhado, torna necessário que se teça algumas breves considerações sobre como pretendo abordá-lo em neste trabalho. Segundo as autoras Hirata e Guimarães (2012), o cuidado é tanto uma prática quanto uma disposição moral sendo que “cuidar do outro, preocupar-se, estar atento às suas necessidades, todos esses diferentes significados, relacionados tanto à atitude quanto à ação, estão presente na definição do care.” (HIROTA e GUIMARÃES, 2012:1). Salientam, ainda que a noção de care reflete realidades sociais distintas em diferentes sociedades. A questão é amplamente trabalhada por Vivian A. Zelizer em sua obra (2005, 2011), onde define o cuidado como as relações que apresentam “atenção pessoal contínua e/ou intensiva que aumenta o bem-estar daquele que a recebe” (Zelizer, 2011:277 tradução minha). Com esta visão bastante ampla, sua definição acaba abarcando diversos tipos de relações que vão desde a da manicure com a sua cliente até a da mãe com seu filho. É fundamental, todavia, que estejam presentes a intimidade e a pessoalidade da relação e que ela aumente o bemestar daquele que recebe o cuidado. Entre outras considerações a autora chama a atenção para as conexões existentes entre economia e cuidado. Traçando um paralelo entre intimidade e trabalho (labor), defende que o cuidado deve ser considerado um trabalho mesmo quando não remunerado e independente de trazer satisfação pessoal. Afirma que para que se possa perceber esta conexão, é necessário acabar com uma visão dicotômica de mundo em que estas duas esferas pertencem a espaços separados e que não se conectam. Nos casos que trago aqui, se está diante do que a autora define como “cuidado não remunerado em ambiente intimo”, ou seja, casos de sujeitos que cuidam de seus familiares sem receber uma compensação monetária 1631 para tanto. Ainda assim, estamos diante de um trabalho em que relações viáveis estão em constante construção e onde sentidos são negociados a todo o momento (Zelizer, 2011). Após esta breve contextualização, passo ao foco central deste trabalho: a narrativa de minhas interlocutoras que ao se depararem com casos de possível declaração de incapacidade de seus familiares optaram por não ingressar com a ação judicial. Com isto, pretendo problematizar o uso das noções de doença, cuidado e economia em suas narrativas, a fim de refletir sobre as negociações envolvidas na decisão de se ingressar ou não com o processo judicial de interdição. 5 CUIDADO, DINHEIRO E RELAÇÕES FAMILIARES: A NÃO INTERDIÇÃO DE SILVANA. Conheci Margarida em um mutirão realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul na Associação Comunitária em maio de 2014. Havia avisado os servidores que pesquisava casos de interdição civil e então eles me chamavam sempre que um destes aparecia para o atendimento. Margarida chegou sorridente e concordou em me contar sua história. Estava ali para saber um pouco mais sobre o que deveria ser feito para sua sobrinha Silvana receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e foi informada de que para isso o mais fácil seria interditá-la. Falou um pouco sobre seu caso e combinamos de nos encontrarmos em sua casa para conversarmos um pouco melhor. Margarida é moradora da região e vive em uma bonita casa com a fachada pintada de roxo em uma das ruas perto da escola municipal. Recebeu-me na varanda, onde havia uma mesa com quatro cadeiras para que conversássemos e falamos sobre sua família, seu filho e seu marido. Ao lado de sua casa morava seu pai, divorciado de sua mãe, e algumas casas para frente, na mesma rua, morava a mãe com a sobrinha. Disse-me que sua prima tem 35 anos de idade, mas tem um “retardo” e por isso não pode cuidar de si mesma. Segundo Margarida, Silvana é uma “pessoa muito boa” que já nasceu com esse “retardo”, mas os médicos nunca 1632 conseguiram diagnosticá-la, tanto que “nem toma remédio nem nada”. Para ela, a “deficiência” da prima não era nada muito grave, mas fazia com que ela sequer soubesse dizer o mês em que nasceu ou responder perguntas básicas sobre si e ficasse “dançando e cantando pela rua”. Para a prima, Silvana seria como uma criança e ao falar sobre ela, Margarida com um olhar que misturava complacência e preocupação, exclamou: “tadinha, não entende as coisas”. Contou-me, ainda, que a prima vivia com o pai - tio materno de Margarida-, a mãe e os irmãos naquele local, mas que há cerca de quatro anos o pai morreu e a mãe e os irmãos se mudaram para a praia e nunca mais procuraram Silvana. Como ela não tinha com quem ficar foi morar com a mãe de Margarida, Dona Lindalva, que tem 69 anos de idade e cuida da sobrinha deste então, mesmo com uma renda mensal de apenas um salário mínimo. Por conta dos escassos recursos financeiros, os outros irmãos de Margarida também acabam “ajudando quando dá, com roupa e coisas”. Como sabiam que Silvana tinha direito a receber um salário porque era “doente”, queriam “entrar na justiça” para que ela recebesse o que tem direito, mas que o problema era convencer a mãe, já que ela “não queria problema com os parentes” ou ser acusada de estar cuidando da sobrinha somente para ficar com o dinheiro dela. Segundo Margarida, a mãe tinha medo que os irmãos de Silvana voltassem e quisessem “pegar as coisas dela” e completou dizendo firmemente que “não pode ter medo, né? O que ia ser dessa mulher se minha mãe não morasse perto? Ninguém nunca veio ver se ela tá bem. Minha mãe é tia de sangue dela, tem direito, é ela quem cuida.”. Então chegaram a mãe e a sobrinha para nossa conversa. Silvana é magra e pequena, com cabelos pretos curtos e cacheados não aparentava ter a idade que tem. Durante nossa conversa, Margarida e Lindalva fazem várias perguntas para a moça, em algo que me lembrou muito a “avaliação de capacidade” feita pelas peritas nos processos de interdição. Perguntavam sobre a data de seu nascimento, sobre o valor do dinheiro e pediram para que contasse a história da noite em que se perdeu na vizinhança quando foi comprar pão, só sendo encontrada na manhã seguinte depois da família ter passado a noite acordada buscando por ela. Silvana ri ao lembrar que estava dormindo dentro da padaria: 1633 tinha ido até o fundo da loja e não percebeu quando fecharam a porta, como não tinha como sair, acabou dormindo ali mesmo. E foi bastante enfática ao me dizer que “não havia comido nada, nem um pão, porque minha tia me ensinou a não pegar o que é dos outros.” Durante todo nosso encontro, tive a sensação de que tentavam mostrar como de fato Silvana não tinha condições de cuidar de si e que se portava como uma criança. Nesta conversa ficou clara a percepção que tinham da “doença mental” de Silvana. Algo que elas não sabiam bem o que era, mas que fazia com que se portasse como uma criança, que não soubesse cuidar de si e que, por isso, necessitasse da assistência constante de sua tia. A moça era, segundo a tia e a prima, como uma “criança grande”, que não gostava de tomar banho e sequer sabia trocar o absorvente, que “ia com todo mundo” na rua e que não “sabe das coisas”. Neste caso, conforme as duas, os médicos nunca conseguiram diagnosticar o que de fato havia de errado com sua prima, ainda assim, para ela e para sua mãe, não havia dúvidas quanto à “deficiência” da moça e quanto ao fato de que isso requeria cuidados especiais por parte das duas. Durante a fala das três, pude perceber como a todo instante deixavam claro não só a “incapacidade” de Silvana para cuidar de si mesma, como também o esforço que faziam para cuidar dela, para alimentá-la, vesti-la e garantir a ela a higiene básica. Note-se que estamos falando de uma família que vive em uma área da cidade de Porto Alegre aonde os recursos financeiros são, na maioria das vezes, escassos. Tanto que Dona Lindalva vive somente com sua aposentadoria de um salário mínimo e é com esse dinheiro que garante não só o cuidado, mas também o sustento de sua sobrinha. Quando Margarida procurou a defensoria para buscar informações sobre o benefício que sua prima poderia ter direito, estava querendo uma ajuda financeira para sua mãe e também, segundo ela, garantir uma maior “liberdade” para a sobrinha. Em nosso encontro, perguntei a Silvana o que faria com o dinheiro se recebesse alguma coisa e ela respondeu que “colocaria os dentes”, pois não possuía os dentes da frente, pegaria um “cartão Tri” (passagem de ônibus antecipada) para “usar no pescoço e poder andar por aí” e o restante daria para a tia, que era quem cuidava dela. O cuidar envolve também um grande encargo financeiro para aquela família e até mesmo Silvana estava ciente disto. 1634 O que havia ali era um cuidado para com a sobrinha que envolve afeto, atenção e o auxílio para as tarefas do dia a dia. A fala e os gestos da tia e prima não deixam dúvida do carinho que têm por ela. Ao comentar algo sobre Silvana, viravam para ela e perguntavam se era assim mesmo, tocavam-lhe o braço e elogiavam as pequenas vitórias dela que agora já ajudava a tia a varrer a casa, ia ao mercado sozinha e estava aprendendo a cozinhar. O tratamento quase infantil dado a ela era retribuído com olhares e caretas que pareciam corroborar a descrição de que a prima parecia uma criança em um corpo de mulher. Mas ainda havia a necessidade de dinheiro. Isso porque o cuidado é uma questão que envolve não só atenção, mas também diz respeito à forma como os recursos familiares serão disponibilizados, assim como a vontade de que esse cuidado seja a prioridade em relação a outras necessidades da família (White e Ingstad, 1995). A desinstitucionalização que ocorre no Rio Grande do Sul desde os anos 1990 colocou as famílias no centro do cuidado para com aqueles que possuem alguma doença mental. Assim, a família seria um substituto do Estado para prover o cuidado – e quando necessário também o tratamento – daqueles que necessitam (Biehl, 2008). E é claro que estas atribuições geram onerações financeiras que o Estado busca sanar através do pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) no valor de um salário mínimo mensal. Era este auxílio financeiro que Margarida estava buscando quando procurou a Defensoria Pública e foi aconselhada a interditar sua prima. A economia e o cuidado têm muitos pontos de intersecção, sendo possível falar, nos termos de Vivian a. Zelizer (2011) em uma “economia do cuidado”. Filio-me ao seu entendimento quando coloca que estas chamadas relações de cuidado aumentam o bem estar daqueles que a recebem e que é preciso estar atenta a todas as dimensões desta relação – a qual também envolve fatores econômicos – para se capturar sua essência. No caso em questão, estamos falando de uma família com parcos recursos financeiros, cujo cuidado para com a sobrinha representa sacrifícios em termos econômicos. Entretanto, dias após a conversa que tivemos em sua casa, Margarida me disse que a mãe havia decido não acionar o poder judiciário, não pedir a interdição e sequer o benefício para sua sobrinha. Segundo ela, Dona 1635 Lindalva “não queria se incomodar” e tinha medo que os irmãos de Silvana ou a mãe da moça aparecessem depois e “criassem confusão” com ela. Preferiu não causar nenhum problema nem para ela e nem para sobrinha, pois temia ser acusada de que estivesse cuidado dela somente para “ganhar dinheiro”. Além disso, receava que a tirassem de sua casa, aonde sabia que estava bem assistida. Seguiria cuidando da sobrinha da maneira que pode e que fez até então. 6 “E SE EU MORRER QUEM VAI CUIDAR DELE?”: A “INTERDIÇÃO DE FATO” DE JAIR. Dona Jurema é uma senhora com mais de 60 anos, pequena e com um leve sobrepeso, caminha com certa dificuldade por conta de dores na perna. Trabalhou a vida inteira como doméstica e camareira, depois de muitos anos se aposentou e agora vive com o dinheiro de sua aposentadoria de um salário mínimo. Disse-me que já trabalhou muito nessa vida e por isso agora quer só saber de descansar. Sempre que a vejo está vestindo alguma camiseta promocional e carrega uma sacola ecológica com seus pertences. Durante este ano em que venho desenvolvendo minha pesquisa, conversei diversas vezes com ela sobre os mais variados assuntos, mas foi a situação de seu filho que nos aproximou pela primeira vez. Conhecemo-nos na Associação Comunitária depois de ter sido aconselhada a procura-la para falar sobre seu filho. Desde então tivemos muitas conversas informais e uma entrevista, onde pude saber muita coisa sobre ela e seu filho, de modo que a ordem dos fatos que passo a narrar não são exatamente a ordem em que eles me foram contados. Segundo Jurema, seu filho Jair ficou muito tempo preso no presídio de Charqueadas por ter assassinado um carteiro. Para ela, Jair fora condenado injustamente, pois o crime teria sido cometido por dois vizinhos com os quais ele costumava andar apesar da insistência da mãe para que não convivesse com aquelas pessoas. Como ele era, segundo ela, o mais bobo dos três, os outros dois teriam cometido o crime e ele acabou sendo 1636 acusado e condenado injustamente. Por esse motivo, teria ficado dezenove anos encarcerado e “teria perdido sua juventude naquele lugar”. Jair hoje é morador de rua e vive pelo centro de Porto Alegre, normalmente perto do Mercado Público, mas Jurema nem sempre sabe aonde encontra-lo. Segundo ela, “o juiz teria visto” que ele era inocente, mas que não teria dado para “soltar direto”, porque ele “ficou com problemas na cabeça” e começou a usar drogas na cadeia. Por isso foi encaminhado para o Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), onde ficou internado por mais alguns anos. Durante este período, Jurema lutou para conseguir o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para o filho, indo diversas vezes ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para solicitar a realização de perícias. Com um misto de revolta pelo ocorrido e orgulho por ter enfim atingindo seu objetivo, contou sua saga de idas e vindas a pé do IPF até a sede do INSS, de como duas pericias haviam sido realizadas dizendo que Jair não tinha problema nenhum e que “como as perícias estavam marcadas para domingo” ela desconfiou e resolveu “procurar a justiça”. Quando o poder judiciário foi acionado teria sido percebido que aqueles médicos que haviam feito as perícias anteriores sequer estavam vinculados ao IPF, foram realizadas três novas perícias e foi comprovado que Jair não poderia viver uma vida “independente” e por isso passou a receber o benefício mensal no valor de um salário mínimo. Apesar do esforço de sua mãe, ele não volta para casa em razão dos “problemas de cabeça” e do uso contínuo de drogas. Estes “problemas” – a doença em si e também o vício em entorpecentes – teriam se desenvolvido no presídio e Jurema diz que são decorrentes de ter perdido a juventude preso por um crime que não cometeu. A mãe já o internou algumas vezes depois que ele voltou às ruas, mas como a determinação judicial é para que fique “três semanas e depois tem que sair, não adianta para nada”. Disse que não deu o endereço e nem o telefone para o filho, pois senão ele a fica importunando para conseguir dinheiro para as drogas, mas construiu uma casa para ele em outra localidade e que essa ele sabe onde é e “só não vai porque não quer”. Quando perguntei se seu filho era interditado ela me respondeu de forma categórica que não. Achei curioso e não entendi muito bem a razão. Quando a indaguei, Jurema afirmou 1637 que já era velha demais e que algo podia acontecer com ela antes do que com seu filho e “se eu morrer, quem vai cuidar dele?”. Por isso preferiu, segundo ela, não fazer a interdição formal do filho. Mas é Dona Jurema quem administra o dinheiro de Jair e quem, da maneira que pode, zela por seu cuidado. Por seu envolvimento com drogas, não deixa o cartão do banco com ele e é ela quem vai todo mês sacar o dinheiro do filho e o entrega aos poucos. A cada dois ou três dias, enche sua sacola com roupas limpas de Jair, pega cerca de R$ 50 ou R$ 70 reais e vai de ônibus até o centro de Porto Alegre o procurar. Costumava levar comida também, mas um dia viu que ele dividia o que ela levava com os animais e “até com uma prostituta” que ficava na mesma praça que ele. Desde aquele dia parou de levar alimentos, pois “não ia ela deixar de comer para que ele entregasse a comida para aquela mulher.” Temos aqui um exemplo daquilo que Zelizer (2011) chamou de máximo da “atenção pessoal contínua e/ou intensiva”: o cuidado da mãe para com o filho. Preocupada com o que aconteceria com Jair se algo acontecesse com ela antes dele falecer, Jurema optou por não interditá-lo. Ainda assim, ficava com todos seus documentos e cartões com medo de que ele os perdesse, gastasse todo dinheiro de uma só vez ou que os deixasse em “uma boca” em troca de drogas. O aspecto econômico também esta presente neste caso, pois o filho recebe um benefício mensal no valor de um salário mínimo e é esse dinheiro que garante o seu sustento. Jurema me disse que muitas pessoas a acusam de usar o dinheiro do filho, de ficar com tudo para ela, mas afirmou não se importar com o que falam, pois somente ela pode saber tudo que faz para cuidar de Jair. O que faz com o dinheiro de seu filho, na realidade, é muito próximo daquilo que acontece nos casos em que há a interdição: o “curador” passa a ser responsável pelos bens do interditado que não possuí o discernimento para gerir sua vida e seus bens. Trata-se de um processo judicial em que se busca, segundo alguns autores do Direito, da Assistência Social e da Antropologia a proteção do sujeito que não mais pode responder por suas ações e deve, assim, ser representado (Venosa, 2007; Medeiros, 2005; Zarias, 2005). Ainda assim, Jurema optou por não interditar o filho justamente para protegê-lo no caso de algo acontecer com ela. A não interdição do filho era também um ato de cuidado. 1638 Mesmo não morando com Jair, todo dia primeiro do mês, ela vai até o banco para receber o benefício do filho e a cada dois dias vai até o centro de Porto Alegre para assegurar-se de que ele está bem, de que terá roupas limpas e dinheiro para sobreviver durante os próximos dias. A saúde mental de seu filho é, segundo ela, problemática, o que o torna agressivo e desconfiado e, os anos em que esteve preso, o tornaram não só “doente da cabeça”, mas também usuário de drogas. É ela quem vai até o posto de saúde “pegar com a médica” os remédios que Jair deve tomar e que vai entregando aos poucos ao filho e dizendo toda a vez como ele deve toma-los. Aqui, ao contrário do caso anterior, há um diagnóstico médico que corrobora o entendimento de Jurema e que garantiu a seu filho a concessão do benefício mensal, mas ainda assim cabe a ela o seu cuidado. Como já mencionei, o cuidado tem sido cada vez mais deixado a cargo do ambiente doméstico e das famílias, fenômeno este que não ocorre somente no Brasil, mas também em outros países como Canada, Estados Unidos, França e Reino Unido (Zelizer, 2011; Weber, 2006; Armstrong, 2005). E o peso do cuidado para com os familiares em ambientes domésticos usualmente recaí sobre as mulheres (White e Ingstad, 1995; Weber, 2006). Segundo Hirata e Guimarães (2012), no Brasil, questões referentes ao cuidar têm sido ligadas ao feminino, principalmente quando estamos falando do cuidado familiar, o qual não é profissionalizado e independe de remuneração. E em comunidades periféricas de baixa renda como na qual venho realizando minha pesquisa, esse cuidado é muitas vezes relegado às mulheres mais velhas, que já não mais trabalham em razão da idade avançada e, na maioria das vezes, vivem com a renda de sua aposentadoria ou de pensão deixada por seu cônjuge. É isto que ocorre nos dois casos aqui apresentados, o que faz com que a tarefa que lhes foi designada acabe exigindo sacrifícios não só econômicos, mas também físicos. Ainda assim, em nenhum momento na fala destas mulheres percebi qualquer sentimento de revolta ou indignação pela tarefa de cuidar. Pelo contrário, cuidar de seus parentes – filho e sobrinha - consideravam “doentes mentais”, daqueles que não podem, segundo elas, administrar a própria vida e bens sem seu auxílio é o que deve ser feito. Coube a elas, dentro da dinâmica 1639 familiar em que estão inseridas, este papel. A própria ideia de não interditar aqueles de quem cuidam se mostrou como um ato de proteção para com eles e também para com elas próprias. Ainda que a “incapacidade” seja evidente para elas, a interdição não se justifica. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mais do que tecer conclusões, com este trabalho busquei refletir sobre a experiência de famílias que se deparam com um possível caso de interdição e sobre as negociações e interesses envolvidos na tomada de decisão em não ingressar com o processo judicial. Trabalhar a “interdição civil” a partir de casos de “não interdição” se mostra interessante para refletir sobre as formas como a “incapacidade” é negociada e vivenciada pelos atores que se deparam com esta situação. Nos casos aqui apresentados, as noções de cuidado, doença e economia apareceram de forma direta e indireta tanto na fala como na prática de minhas interlocutoras, o que mês pensa-las como “categorias cruciais” (Kleinmann, 1995) para pensar o mundo local do qual fazem parte. O modo como estas famílias percebem e experenciam a doença mental de um de seus membros, independente da existência de laudo médico que a corrobore, é fundamental para a forma como lidam com a situação. Isto acaba afetando o cuidado que tem com eles, a forma como demonstram e praticam este ato de cuidar, bem como trazendo implicações tanto para as relações familiares quanto para a economia familiar. E todas estas dimensões estão fortemente relacionadas a decisão destas famílias pela não interdição daqueles que consideram, conforme pude perceber por meio de suas falas e práticas, “incapazes” de um modo que muito se assemelha a noção trazida pelo poder judiciário, ou seja, pessoas que não possuem o discernimento necessário para gerir sua vida e/ou bens. Coube a Jurema e Lindalva determinar que Jair e Silvana não possuíam a capacidade necessária, incumbindo-se do papel de suas cuidadoras de uma forma que muito se assemelha aquele dos curadores designados pela justiça nos processos de interdição civil. Foi a experiência destas famílias que busquei acessar com este trabalho. 1640 REFERÊNCIAS BIEHL, J. (2008), “Antropologia do devir: psicofármacos – abandono social – desejo”. Revista de Antropologia. Vol. 51, n. 2. SP, USP, 2008, p. 413- 449. BRASIL (2012). Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 5 ed. São Paulo: Saraiva. CHAVES, L. L. (2013). Loucura e Experiência: Seguindo loucos de rua e suas relevâncias. Tese de Doutoramento, Brasília. UnB:Departamento de Antropologia. DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. dos. (2009) “Deficiência, direitos humanos e justiça.” Sur, Rev. int. direitos humanos. Disponível http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180664452009000200004&lng=en&nrm=iso. [Consultado em 10-12-2014] KLEINMAN, A. e KLEINMAN, J. (1995), “Suffering and its Professional Transformation: Toward and Ethnography of Interpersonal Experience”. In: A. Kleinmann (org.), Writing at the Margin. Berkeley: University of California Press, pp. 275-301. MARTIN, E. (2007). Bipolar Expeditions: mania and depression in American culture. Princeton: Princeton University Press. MEDEIROS, M. B. de M. (2005), Interdição: proteção ou exclusão. Tese de doutoramento, Porto Alegre: Programa de pós-graduação em serviço social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS [ONU]. 2006a. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Doc. A/61/611, Nova Iorque, 13 dez. PONTES DE MIRANDA (1954). Tratado de Direito Privado. Parte Geral. Tomo I, Introdução. Pessoas físicas e jurídicas. 2.ed. Rio de Janeiro: Borsoi. SHAKESPEARE, T. (1999), “The Sexual Politics of Disabled Masculinity”. Sexuality and Disability. Vol. 17. N.º 1, pp. 53-64 SZMUKLER, G.; DAW, R.; CALLARD, F. (2014) Mental health law and the UN Convention on the rights of persons with disabilities. International Journal of Law and Psychiatry, 37, pp. 245-252. VENOSA, S. S (2007). Direito Civil: Direito de Família. Coleção Direito Civil. V. 6. 7ed. São Paulo: Atlas. WEBER, F. (2006). Lares de cuidado e linhas de sucessão: algumas indicações etnográficas na França, hoje. Mana, 12(2), Disponível em 1641 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010493132006000200009&lng=en&tlng=pt. 10.1590/S0104-93132006000200009. [consultado em 10 de dezembro de 2014]. WHITE, S.; INGSTAD, B. (1995) Disability and Culture. Berkeley: University of California Press. ZELIZER, V. A. (2011), Economic Lives: How culture shapes the economy. Princeton: Princeton University Press. ZARIAS, A. (2005), Negócio Público e Interesses Privado: a interdição civil e os dramas de família. São Paulo: Hucitec/Anpocs. 1642 REFLEXOS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NO DIREITO PRIVADO: CRISE DA CONFIANÇA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO Caroline Nogueira Teixeira de Menezes Maristela Medina Faria RESUMO: A complexidade da realidade econômica, política e social exige uma nova abordagem da ciência jurídica. Isso implica na necessidade de revisão da própria estrutura de organização e aplicação do Direito, criando assim uma nova metodologia jurídica, bem como, uma nova abordagem a respeito das mudanças ocorridas no campo do direito no contexto da pós-modernidade. Dessa forma, o presente estudo pretende analisar como as mudanças da sociedade contemporânea influenciaram para uma crise da confiança nas relações de consumo. A confiança é o princípio diretriz da sociedade, sobretudo nas relações contratuais. No entanto, no contexto da sociedade hipercomplexa, apenas os mecanismos tradicionais de interação não são suficientes para garantia da confiança, o que ocasiona uma "crise" generalizada. Diante disso, destaca-se os instrumentos do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que deve prevalecer uma interpretação protetiva e justa para os mais fracos a fim de propiciar uma real promoção dos direitos fundamentais. Para tanto, este trabalho dogmático utilizará método de abordagem indutivo e método de procedimento monográfico bibliográfico e documental. PALAVRAS-CHAVE: confiança. sociedade contemporânea; contratos de consumo; 1 INTRODUÇÃO É um fenômeno mundial a sensação de incerteza e insegurança, bem como um ambiente de complexidade e imprevisibilidade inerente à sociedade contemporânea. Autores denominam esta sociedade com diferentes termos, como “era global”58 (Martin Albrow), “modernidade tardia”59 (Anthony Giddens), 58O autor em seu livro The Global Age irá discorrer sobre aspectos da modernidade, bem como da sociedade contemporânea que a denominará de “era global”. 59Em um de seus artigos intitulado de “Risco, confiança, reflexividade” no livro “Modernização Refexiva” Giddens denomina a sociedade contemporânea de modernidade reflexiva ou modernidade tardia. 1643 “modernidade líquida60” (Zygmunt Bauman), “sociedade de risco”61 (Ulrich Beck) entre outros termos, mas é consenso entre eles que os indivíduos estão vivenciando profundas contradições e paradoxos e que ao mesmo tempo em que estão envolvidos em um sentimento de esperança se tornam desesperançosos. A sociedade contemporânea possui uma extrema complexidade e é marcada por grandes transformações sociais, políticas, culturais e jurídicas. Este contexto ocasiona grandes incertezas na sociedade e faz com que muitas práticas habitualmente adotadas na típica modernidade se tornem ineficientes, inadequadas e até mesmo obsoletas para a nova conjuntura social. Isso acarreta uma revisão nas condutas e práticas que os indivíduos tradicionalmente se utilizam, a fim de se adaptarem à realidade de uma sociedade hiperglobalizada62. Este tipo de sociedade é o principal sinal de que os tempos mudaram e uma nova percepção da sociedade deve ser adotada. Não há como falar de pós-modernidade sem falar de sociedade de consumo e de consumidor, os quais são os sujeitos ativos deste fenômeno, o estudo dos riscos está intimamente ligado à análise das relações de consumo, já que, obviamente, quando o fornecedor lança no mercado um produto ou um serviço, junto com eles lança também possíveis riscos à saúde e à segurança dos seus consumidores. Com efeito, o que se vê, atualmente é a produção em larga escala, com os objetivos de superação de lucro e alcance de um número cada vez maior de consumidores. É a busca, sem precedentes, pelo lucro, que faz com que o fornecedor deixe de pensar na qualidade e na segurança dos produtos e serviços que está colocando no mercado de consumo, aumentando os riscos e, 60Bauman no livro “Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester” defende a utilização da terminologia “modernidade líquida” para denominar a sociedade contemporânea. 61Ulrich Beck, por sua vez, quando se refere ao estagio atual da sociedade, utiliza o termo “sociedade de risco”. Conferir: BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Ed.34.São Paulo, 2010. 62Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 26) entende que “os processos de globalização mostranos que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo.” Por sua vez, Giddens (1991, p.60) define globalização como “a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que os modelam.” 1644 consequentemente diminuindo a confiança nestas relações. Surge assim a necessidade de olhar o direito das relações de consumo de forma diferente, embora com a utilização de princípios modernos e pós-modernos como a boa-fé objetiva e a informação. Assim, o presente estudo tem como escopo analisar como as mudanças da sociedade contemporânea influenciaram para uma crise da confiança nas relações de consumo, bem como quais tem sido as medidas adotadas na tentativa de sanar as consequências negativas advindas do atual contexto. Para tanto, em um primeiro momento será feito a análise da sociedade moderna e a sua relação com o Direito. Em um segundo momento será analisado o contexto da sociedade contemporânea e o surgimento de uma sociedade de consumo, para enfim analisar a crise da confiança nas relações de consumo. No presente trabalho dogmático será utilizado o método de abordagem indutivo e método de procedimento monográfico bibliográfico e documental. 2 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A MODERNIDADE E O DIREITO A sociedade, no momento moderno, estava fortemente caracterizada por homens que se ergueram a partir da inabalável confiança na habilidade humana e na crença da superioridade da razão sobre as forças da natureza, explodindo assim, os grandes projetos da humanidade (BAUMAN, 2011, p. 85). Este pensamento foi a base do ideário moderno. Como consequência deste excesso de confiança, a “modernidade, trouxe a sensação avassaladora de fragmentação, efemeridade e mudança caótica” (HARVEY, 1992, p. 21). Ou seja, para Bradbury e McFarlane (1976, p. 46 apud HARVEY, 1992, p. 32) a modernidade, tratava-se, na concepção daqueles que viveram tais mudanças: de uma extraordinária combinação entre o futurista e o niilista, o revolucionário e o conservador, o naturalista e o simbolista, o romântico e o clássico. Foi a celebração de uma era tecnológica e a sua condenação; uma excitada aceitação da crença de que os velhos regimes da cultura tinham chegado ao fim e a um profundo desespero diante desse temor; uma mistura de convicções de que as novas formas eram fugas do historicismo e das pressões da época com convicções de que essas formas eram precisamente a expressão viva dessas coisas. 1645 Embora o termo “modernidade” seja bem mais antigo ao da época aqui abordada, este termo ganhou enfoque apenas no século XVIII, a partir do esforço dos pensadores iluministas em buscar um conhecimento baseado na razão pura, em verdades absolutas, nos ideais de ordem e progresso, na emancipação humana e, principalmente, na busca para compensar as limitações do conhecimento religioso, filosófico e do senso comum que predominavam até então. Nesse sentido, a exaltação da ordem como uma desejável realização capaz de construir um mundo estável, seguro, coerente, sólido e puro eram uma das mais importantes pretensões modernas. Inclusive, alguns escritores da época, como alegou Habermas (apud HARVEY, 2010, p. 23), estavam tão possuídos “da extravagante expectativa de que as artes e ciências iriam promover não somente o controle das forças naturais como também a compreensão do mundo e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até a felicidade dos seres humanos” que se esqueceram dos males que daí poderiam surgir. Neste contexto, o julgador, ao interpretar a lei, deveria ater-se à literalidade do texto legal, para que não invadisse a seara do Poder Legislativo. O juiz deveria restringir-se à vontade da lei e a aplicação do direito seria amparada no dogma da subsunção, pelo que o raciocínio jurídico consistiria na estruturação de um silogismo. O direito, no momento moderno, era fortemente caracterizado pela dicotomia existente entre direito público e direito privado. Nesta perspectiva, um dos traços fundamentais do direito privado era regular as relações jurídicas entre particulares, ambiente este totalmente dominado pela autonomia da vontade, enquanto que o direito público era responsável por regular as atividades relacionadas à vontade do Estado63. Esta ideologia tem sua origem no direito romano (FACCHINI NETO, 2010, p. 40). 63No século XVIII a dicotomia entre a esfera pública e a esfera privada se apresenta na forma de separação entre sociedade política e sociedade econômica. A sociedade política era representada pelos citoyen, que representavam os interesses públicos, já os bourgeois representavam a sociedade econômica que defendiam apenas seus interesses privados. O ambiente dicotômico, Estado e Sociedade, Política e Economia, direito e Moral, também propicia uma maior distinção entre as esferas pública e privada, favorecendo também a divisão entre o direito público e o direito privado (FACCHINI NETO, p.2010, p. 40). 1646 Neste sentido, Tepedino (2011, p. 259) afirma que: as relações do direito público com o direito privado apresentam-se bem definidas. O direito privado insere-se no âmbito dos direitos naturais e inatos dos indivíduos. O direito público é aquele emanado pelo Estado para a tutela de interesses gerais. As duas esferas são quase impermeáveis, atribuindo-se ao Estado o poder de impor limites aos direitos dos indivíduos somente em razão de exigências dos próprios indivíduos. Fica claro que, as relações privadas na sociedade da era moderna são marcadas por uma forte concepção de propriedade absoluta e plena, bem como total liberdade contratual, seria o que Facchini Neto (2010, p. 42) chamou de “reino da não intervenção estatal”. Importante contribuição para demonstração deste contexto é trazida por Benjamin Constant (s/d, s/p.) que faz uma interessante distinção entre a liberdade dos antigos e dos modernos. Segundo o autor, a liberdade dos antigos se resumia à possibilidade de participação nos processos das decisões políticas mais importantes para a sociedade política, produzindo as normas gerais, bem como julgando os casos concretos. Por outro lado, a liberdade dos modernos está na simples possibilidade de o indivíduo guiar sua vida livremente, sem nenhuma intervenção estatal. O indivíduo é o soberano das decisões referentes à sua vida privada, daí advém a noção de autonomia privada do direito privado. Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem (2012, p.23) afirmam que para o direito privado moderno: O sujeito de direito foi tomado como sujeito racional e livre, que dotado das condições necessárias pode, especialmente nas relações jurídicas de direito privado, autoregrar a sua vida. Única exceção ao sistema foi a admissão do regime de incapacidade de fato, em que a perda do discernimento pessoal e, ainda, a necessidade de proteção da pessoa contra si mesma, deixava de reconhecer-lhe capacidade para conduzir a própria vida, conforme grau de comprometimento das suas condições pessoais. Com efeito, o direito moderno era pautado, principalmente, sobre o ideal liberal de que todos os indivíduos são totalmente iguais em direitos e deveres e, portanto devem estar submetidos ao mesmo direito. Esse ideal que permeou todo o desenvolvimento da sociedade na época moderna impossibilitava o tratamento diferenciado entre as pessoas que estivessem sujeitas ao direito (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p. 22). 1647 Em síntese, pode-se afirmar que a sociedade da época moderna é marcada por um Estado Liberal, mais preocupado com o ideal de liberdade entre os indivíduos e tendo o Estado como inimigo dos cidadãos (BONAVIDES, 2004, p.40). Além disso, como sociedade de menor complexidade, era caracterizada, principalmente, por conflitos individuais, bem como pelo domínio do ideal positivista. No entanto, esta arrogância típica do espírito moderno provocou uma espécie de cegueira a respeito das consequências de todas as novas descobertas e avanços deste período, impedindo-os de vislumbrar os problemas que o progresso prometido poderia provocar. Consequência disso foi uma sociedade desencantada, exausta das metanarrativas e em busca de um modo de vida menos coletivo e mais individual, mais leve e consumista, mais líquido e frenético, denominados por alguns de pós-modernidade (HARVEY, 1992, p. 44)64. 3 UMA ANÁLISE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O SURGIMENTO DE UMA SOCIEDADE DE CONSUMO Longe de discorrer sobre todas as correntes de pensamento ou de se atrever a conceituar tal expressão, já que vai depender da intenção de valorizá-la ou criticá-la, parte-se da ideia que a “pós-modernidade” é uma realidade, mas ainda tem-se muitos resquícios da modernidade. Neste sentido, para Bittar (2008, p. 133-134): A pós-modernidade chega para se instalar definitivamente, mas a modernidade ainda não deixou de estar presente entre nós, e isto é fato. Suas verdades, seus preceitos, seus princípios, suas instituições, seus valores (impregnados do ideário burguês, capitalista e liberal), ainda permeiam grande parte das práticas institucionais e sociais, de modo que a simples superação imediata da modernidade é ilusão. Obviamente, nenhum processo histórico instaura uma nova ordem, ou uma nova fonte de inspiração de valores sociais, do dia para a noite, e o viver transitivo é exatamente um viver intertemporal, ou seja, entre dois tempos, entre dois universos de valores – enfim, entre passado erodido e presente multifário. 64Harvey (1992, p. 44) defende que: “Quanto ao sentido do termo, talvez só haja concordância em afirmar que o ‘pós-modernismo’ representa alguma espécie de reação ao modernismo ou de afastamento dele. Como o sentido de modernismo também é muito confuso, a reação ou afastamento conhecido como ‘pós-modernismo’ o é duplamente.” 1648 Santos (1999, p.77) sustenta que há um descompasso entre o excesso por um lado e a insuficiência por outro e isso é o principal responsável pela atual situação. Esta é para o autor a fase de transição marcada por uma sensação de crise e: [...] como todas as transições são simultaneamente semi-cegas e semiinvisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão, lhe tem sido dado o nome inadequado de pósmodernidade. Mas à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação. Não é possível afirmar que a era moderna acabou, já que na sociedade contemporânea muitos aspectos típicos da modernidade ainda estão fortemente estáveis, daí a incoerência do termo “pós-modernidade”, mas pode-se afirmar que vive-se uma situação de transição, de mudanças de perspectivas e de paradigmas, de modo que a simples superação da modernidade é mera ilusão. Para Sarmento (2010, p. 45): [...] de fato existe uma crise na Modernidade, gerada sobretudo pela tendência alienante da razão instrumental. Mas parece-nos que, ao invés de abandonar o ideário da Modernidade, deve-se aprofundá-lo, sobretudo nas sociedades periféricas [...]. É preciso, neste sentido, adotar um conceito mais alargado de razão, que se proponha a discutir criticamente também os fins da ação humana, o que a razão instrumental positivista se negava a fazer. E, a partir de uma perspectiva racional, cumpre insistir, mais e mais na luta pela implementação dos grandes valores do iluminismo, de liberdade, igualdade, democracia e solidariedade. O fato é que, não há unanimidade no termo a ser utilizado para denominar o atual estágio da sociedade, e esse é justamente um dos sinais da contemporaneidade, qual seja, a falta de consenso (BITTAR, 2008, p.132). O único consenso que há é a sensação de incerteza e insegurança, bem como um ambiente de complexidade e imprevisibilidade. Uma tendência deste cenário é o problema de identidade, da falta de pontos de referências duradouros e sólidos como consequência da liquidez dos conceitos, pois como estes são flexíveis, fluidos e incertos ocasiona um esvaziamento não só dos conceitos predominantes (ordem e progresso, por exemplo), mas também de todo alicerce da sociedade. Bauman (2011, p. 70) sustenta que: [...] dificilmente há um ponto de referência único, no qual a atenção poderia ser fixada de forma segura e confiável, absolvendo aqueles que buscam a orientação do irritante dever de vigilância constante e a incessante retração de passos já dados ou até então só pretendidos. 1649 Nenhuma orientação disponível parece ter expectativa de vida mais longa que as próprias pessoas em busca de orientação, por mais abominavelmente curtas que suas próprias vidas corpóreas possam ser. Vivencia-se uma evolução científica que traz inerente riscos65 imprevisíveis, os quais estão a prescrever uma nova reformulação das práticas e procedimentos tradicionalmente utilizados na sociedade e a atual situação demonstrou que o desenvolvimento da ciência e da técnica não poderiam dar conta dos riscos que elas mesmas contribuíram para criar66. Beck (2006, p. 1) afirma que: [...] com nossas decisões passadas sobre energia atômica e nossas decisões presentes sobre o uso de tecnologia genética, genética humana, nanotecnologia e ciência informática, desencadeamos consequências imprevisíveis, incontroláveis e certamente até incomunicáveis que ameaçam a vida na Terra. Na sociedade contemporânea hiperglobalizada, de nada valeria os mecanismos próprios do direito público para proteção dos direitos humanos se não houvesse uma atuação conjunta também da atividade econômica privada, assim, tanto as políticas públicas quanto a atividade econômica privada devem estar sujeitas ao controle jurídico, já que estes mecanismos podem intensificar ainda mais a exclusão social, bem como o desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, fundamental em um Estado Democrático de Direito (TEPEDINO, 2009, p. 43). Desta feita, na sociedade contemporânea, superada está a clássica dicotomia existente na sociedade moderna entre direito público e direito privado. Na atualidade há uma enorme diversificação, bem como intensificação das demandas da pessoa humana sendo que o status normativo não é capaz de acompanhar todas esta dinâmica da sociedade tecnológica, isso porque muitas 65Beck (Incertezas fabricadas: entrevista. [22 de maio de 2006]. Revista IHU On-Line, no. 181) defende que: “[...] Quando falo de ‘sociedade de risco’, é nesse último sentido de incertezas fabricadas. Essas ‘verdadeiras’ incertezas, reforçadas por rápidas inovações tecnológicas e respostas sociais aceleradas, estão criando uma nova paisagem de risco global. Em todas essas novas tecnologias incertas de risco, estamos separados da possibilidade e dos resultados por um oceano de ignorância.” 66Para Beck (Incertezas fabricadas: entrevista. [22 de maio de 2006]. Revista IHU On-Line, no. 181): “[...] A novidade da sociedade de risco repousa no fato de que nossas decisões civilizacionais envolvem conseqüências e perigos globais, e isso contradiz radicalmente a linguagem institucionalizada do controle – e mesmo a promessa de controle – que é irradiada ao público global na eventualidade de catástrofe (como em Cherrnobyl e também nos ataques terroristas - terror attacks - sobre Nova Iorque e Washington)”. 1650 vezes se apresenta excessivamente rígido, arcaico e totalmente dissonante da realidade que vivência (TEPEDINO, 2009, p. 44). A confiança, então, passa a ser fundamental nesta sociedade de risco, neste trabalho, especialmente, quanto aos riscos produzidos pela sociedade e contra ela em função dos produtos e serviços oferecidos ao consumidor, salientando o papel da confiança para eventualmente mitigar o risco ou a sensação de sua existência. Além disso, na sociedade contemporânea “alguns aspectos da sociedade industrial tornam-se social e politicamente problemáticos”, dessa forma, a sociedade toma algumas decisões e pratica ações, baseando-se nos padrões da antiga sociedade industrial, por outro lado, o sistema judicial e a política são tomados por debates típicos do dinamismo da pós-modernidade (BECK, 1997, p.16). Para Norberto Bobbio (2004, p.211): o tempo vivido não é o tempo real: algumas vezes pode ser mais rápido; algumas vezes mais lento. As transformações do mundo que vivenciamos nos últimos anos, sejam por causa da precipitação da crise de um sistema de poder que parecia muito sólido e, alias, ambicionava representar o futuro do planeta, seja por causa da rapidez dos progressos técnicos, suscitam em nós o dúplice estado de espírito do encurtamento e da aceleração dos tempos. Sentimo-nos às vezes à beira do abismo e a catástrofe impende. Nós nos salvaremos? Como nos salvaremos? Quem nos salvará? Com os olhos atentos, percebe-se novos contextos, novos hábitos. Assistese a uma flexibilização do monopólio estatal de produção de normas de conduta em prol de um pluralismo jurídico, cujas fontes não estatais não se submetem aos mecanismos de legitimação democrática da lei, causando assim, um grande desconforto para as massas. O espaço público e privado cada vez mais se confundem, pois “defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão.” (TEPEDINO, 2011, p. 261). Ademais, a sociedade se torna uma sociedade de consumo, a qual se baseia na “promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pôde alcançar” (BAUMAN, 2008, p. 63), de 1651 forma que o consumo se torna a forma do indivíduo não ser excluído do meio social. Para Bauman (2011, p.65): Vivemos hoje numa sociedade global de consumidores, e os padrões de comportamento de consumo só podem afetar todos os outros aspectos de nossa vida, inclusive a vida de trabalhado e de família. Somos todos pressionados a consumir mais, e, nesse percurso, nós mesmos nos tornamos produtos nos mercados de consumo e de trabalho. Este período, ainda é marcado pela massificação dos contratos, bem como a "incorporação de milhões de pessoas ao mercado de consumo e a necessidade do estabelecimento de práticas comerciais e contratuais com todos estes novos potenciais contratantes, a necessidade de estipulação de contratos padronizados, [...]" (MIRAGEM, 2013, p. 274) faz surgir “a própria identidade desta massa de contratantes dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo, os consumidores.” (MIRAGEM, 2013, p. 274). Na sociedade atual o consumidor adquiriu um status de grande importância, sendo um dos principais atores sociais, como defende Marques (2013, p.04): Fora essa inferioridade e submissão estrutural na relação contratual e esse desiquilíbrio de forças típicos da sociedade de informação e de risco, hoje em dia se deve proteger o consumidor, não somente porque este é um player (ator) econômico importante da globalização, mas porque ele é – e aqui quero defender esta tese – um símbolo da globalização, ser consumidor é um novo papel sociológico na sociedade atual: ser consumidor faz parte da “vida normal” de hoje, é a atual imagem de pessoa ou de indivíduo pleno em tempos de globalização econômica e cultural! Ou seja, o consumidor na sociedade contemporânea é extremamente relevante para o direito, em diversos aspectos, seja porque é a parte mais fraca da relação jurídica ou porque vive-se em tempos de uma grande intensificação das relações consumeristas que cada vez estão mais complexas e dinâmicas. Assim, o tradicional direito não é mais suficiente para disciplinar estas relações, surgindo então o Código de Defesa do Consumidor como instrumento de tutela da parte mais fraca da relação, qual seja, o consumidor. Este ambiente ainda é marcado por grandes contradições, isso porque as atuais relações de trabalho são instáveis, há o aumento do desemprego e a desvalorização do salário médio. Ter acesso a esta multiplicidade de objetos e serviços disponíveis torna-se inviável, ainda mais considerando que, grande parte 1652 não tem sequer acesso aos bens de consumo básicos, caracterizando uma sociedade de excluídos e marginalizados. Assim: Expostos a um bombardeio ininterrupto de publicidade por uma média diária de três horas de televisão (a metade de todo seu tempo ocioso), os trabalhadores são persuadidos a ‘necessitar de mais coisas. E para comprar aquilo de que agora necessitam, eles precisam de dinheiro. Para ganhar dinheiro, trabalham mais horas. (BAUMAN, 2011, p. 65). Dito isso, a sociedade contemporânea é sem dúvida alguma uma “sociedade de consumo e de produção em massa, sociedade de serviços, sociedade da informação, altamente acelerada, globalizada e desmaterializada” e são justamente estas características que acarretam novas realidades, novas situações e conflitos para o direito (MARQUES; MIRAGEM, 2012, p.18-19). Para Marques (2007, p. 21), justamente neste contexto, "em que nossos tempos parecem fadados ao aumento dos litígios e da desconfiança entre agentes econômicos (classes e instituições)", que a confiança, por meio da cláusula geral da boa-fé objetiva e do dever anexo da informação, deve assumir papel de grande relevância como forma de diminuição da complexidade e como instrumento para redução de conflitos. 4 REPERCUSSÕES DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NA RELAÇÃO DE CONSUMO: CRISE DA CONFIANÇA O momento pós-moderno tornou-se um grande desafio para o direito, sobretudo para o direito civil, pois trata-se de “tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade avassaladora.” (MARQUES, 2007, p. 25). Os reflexos da metamorfose cultural e social ocorridos na sociedade contemporânea foram imediatos no direito, especificamente no campo do direito privado. Sobre as repercussões do paradigma pós-moderno no fenômeno jurídico, discorre Cláudia Lima Marques (2014, p.168): Com a sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce também uma crise sociológica, denominada por muitos de pós-moderna [...]. Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a 1653 evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise de desconstrução, de fragmentação, de indeterminação à procura de uma nova racionalidade, de desregulamentação e de deslegitimação de nossas instituições, de desdogmatização do direito; para outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito. Da mesma forma, o ilustre autor Erik Jayme67 elencou quatro elementos da pós-modernidade que influenciaram na nova roupagem dada ao direito privado. Primeiramente temos o pluralismo, tanto no que diz respeito às fontes legislativas, quanto aos sujeitos da relação contratual, ativo e passivo, criando-se, assim, uma perspectiva plural e um diálogo de fontes entre as diversas existentes. A comunicação, outro elemento, como método de legitimação, instrumento de informação e valorização da confiança. Consequentemente a ela, a narração, toma lugar a partir das transformações na interpretação das leis e na filosofia do direito. Por fim, a última característica a afetar o direito civil é o retorno dos sentimentos, consistente na adoção de sentimento no discurso jurídico, bem como na busca por novos elementos sociais, ideológicos, que se resumem no imponderável. É claro que a teoria do contrato não ficou imune a estas transformações. A nova concepção de contrato passou a ser mais social, pois não apenas a manifestação da vontade (soberania da vontade) tornou-se relevante, mas também, seus efeitos na sociedade. Ademais, os contratos tradicionalmente estáticos deram lugar aos contratos complexos e dinâmicos. O economicamente relevante passou a ser o imaterial, os fazeres e serviços complexos ou o bem imaterial, ou seja, o contrato deixou de ser apenas um instrumento econômico para ser também um instrumento para a tutela dos direitos fundamentais, e a informação passou a integrar o contrato. Ou seja, “o deficit de informações, que por um longo período foi utilizado como instrumento para obtenção de maiores proveitos negociais, torna-se um dos mais ameaçadores vícios de adequação e justiça contratuais.” (XAVIER, 2006, p. 134). 67 Para Erick Jayme (1996, p. 274) “Il y a quatre phénomènes exprimant simultanément certaines valeurs qui jouent um role primordial dans la culture postmoderne: le pluralisme, la communication; la narration; le retour dês sentiments”. 1654 Neste sentido, no novo modelo contratual, há mais do que apenas a garantia da autonomia da vontade, há também um acompanhar mais atento para o desenvolvimento da prestação, um valorizar da informação e da confiança despertadas (MARQUES, 2014, p.180). E o Código de Defesa do Consumidor é o grande exemplo desta nova teoria contratual, pois conforme ensina Lôbos (1995, p. 32) "é a adequada resposta do direito ao fenômeno crescente da oligopolização e globalização da economia, que tornou o consumidor um figurante passivo e hipossuficiente, afetando a própria noção atual de cidadania". Percebe-se então, que apesar da teoria do contrato tratar-se de uma teoria mais social, pautada na boa-fé, verifica-se sua insuficiência para tutelar as relações privadas no contexto atual de uma sociedade hipercomplexa como a atual, gerando, assim, uma nova crise no contrato68: a da confiança! Um dos focos desta desconfiança no Brasil pode ser encontrado na própria dogmática e na forma como a interpreta-se e aplica-se aos casos concretos que surgem na sociedade. Há autores, entre ele Gustavo Tepedino, que defenderão que para sanar esta crise será necessária uma perspectiva civil constitucional (MARQUES, 2014, p.193). O Código de Defesa do Consumidor impôs a transparência nas relações contratuais (art. 4°, caput, do CDC), o princípio da boa-fé-objetiva (art. 4°, III, do CDC), bem como a interpretação dos contratos conforme a confiança despertada (arts. 30, 34, 35, 47 e 48 todos do CDC), que segundo Marques (2014, p. 280): a proteção da confiança no vínculo contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de cada parte, através da proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma interpretação pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram garantir ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e serviços. Inicialmente, segundo Menezes Cordeiro (2001, p. 1234), "a confiança exprime situação em que uma pessoa adere, em termo de atividade ou de crença, 68Marques (2007, p. 22) afirma que: "Em síntese apertada, podemos afirmar que a primeira crise do contrato nasceu, na Revolução Industrial, com a massificação da produção e da distribuição indireta, depois do próprio contrato standard e foi respondida pelo direito do consumidor.". 1655 a certas representações passadas, presentes ou futuras que tenha por efetiva". Daí porque, a confiança abrange o cumprimento das expectativas legítimas. Tal tema é tratado com prioridade por Marques (2014, p. 188), a partir dos estudos de Luhmann: Segundo Niklas Luhmann, em uma sociedade hipercomplexa como a nossa, quando os mecanismos de interação pessoal ou institucional, para assegurar a confiança básica na atuação não são mais suficientes, pode aparecer uma generalizada 'crise da confiança' também na efetividade do próprio direito. Verifica-se, que a crise da confiança69 é consequência da fase atual da sociedade de momento pós-moderno, uma resposta à "massificação das contratações e das práticas negociais de mercado" (MIRAGEM, 2008, p. 151), bem como o incremento do mercado consumidor traz consigo um aumento na gama de produtos e serviços oferecidos pelos fornecedores, estes carregados de novos possíveis riscos e danos, perpetuando-se a espiral da incerteza. Neste sentido, Miragem (2008, p. 150): Embora possa parecer paradoxal, em alguma medida isto se dá em razão de uma crise de confiança pela qual passa a sociedade de informação, cuja hipercomplexidade e hiperinformação dão conta de uma ruptura na crença em comportamentos tradicionais, em comportamentos padrões, reclamando-se a necessidade e estabelecimento de garantis da aplicação e efetividade do direito, por intermédio da proteção da confiança individual e social. Na sociedade atual é bem comum contratos extensos e complexos sinalizando que nada mais é pressuposto e tudo deve estar devidamente detalhado no contrato. Há uma crise generalizada na confiança seja por parte do consumidor e até mesmo pelo fornecedor. Conforme Marques (2014, p.187-188) “hoje também os consumidores estão desconfiados, querem segurança, esperam proteção da lei, sabem seus direitos de consumidores e não aceitam mais a falta de qualidade, de informação, de cuidado ou de lealdade [...].”. A autora (2011, p.187) segue afirmando que: Se a crise da pós-modernidade pode ser vista como uma crise de desconfiança no direito, em seus instrumentos e instituições (inclusive o contrato), está na hora de uma reação, reação esta através do direito privado como instrumento de realização das expectativas legítimas do homem comum, o leigo, o consumidor. 69Segundo Cláudia Lima Marques (2007, p. 25) " esta 'nova' crise teria ocorrido após os atentados de 11.09.2001, em Nova Iorque, que afetou a base comum de todas as relações - hoje globalizadas - que é a confiança, afetando assim, o contrato e o direito, que deveriam justamente formalizar, concretizar e regular estes vínculos de confiança: é a crise da confiança." 1656 Com isso, a confiança tão descrita pelos antigos passa a reassumir atuação de base da sociedade e estrutura das relações, conforme já bem assinalava Luhmann (1996, p. 121), para o qual a confiança é o elemento central da vida em sociedade e resultado de uma necessidade da complexidade da vida moderna. Neste sentido, para este autor, a confiança pode ser analisada em três planos, quais sejam a de que é preciso ter confiança e confiar nessa confiança; a segunda enfoca as expectativas compartilhadas reciprocamente entre indivíduos; e por fim, a confiança se estrutura em expectativas generalizadas em sistemas e organizações (LUHMANN, 1996, p. 121). A partir desta confiança, as expectativas de comportamento são generalizadas, compensando "a falta de informações sobre condutas futuras e o risco quanto a incertezas". (ARAÚJO, 2009, p. 12). A relevância da confiança também é exposta por Larenz (apud MARQUES, 2014, p. 186), para o qual a confiança é princípio diretriz do direito, sobretudo das relações contratuais, pois uma pessoa deve poder confiar na conduta do alter e também poder atuar nas relações alheias, ou seja, "as condutas na sociedade, devem fazer nascer expectativas legítimas naqueles em que despertamos a confiança, os receptores de nossas informações". (MARQUES, 2007, p. 30). Tal é sua importância no contexto atual, que o Código de Defesa do Consumidor instituiu o princípio da proteção da confiança do consumidor em dois aspectos: 1) a proteção da confiança no vínculo contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e deveres de cada parte, através da proibição do uso de cláusulas abusivas e de uma interpretação pró-consumidor; 2) a proteção da confiança na prestação contratual, que dará origem às normas cogentes do CDC, que procuram garantir ao consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e serviços. (MARQUES, 2014, p. 280). Ademais, outra motivação para a crise da (des)confiança na sociedade atual é a falta de informação ou o excesso dela. Sua relevância também se justifica, pois, conforme bem expôs Erik Jayme, um dos elementos da pós-modernidade é 1657 a comunicação70. Neste sentido, destaca-se a importância dos deveres anexos da boa-fé objetiva71 de informação e transparência nas relações de consumo. Até mesmo porque, com as mudanças substanciais sofridas nas relações contratuais, os deveres principais deixam de ser os únicos exigíveis (a boa-fé, por exemplo), pois necessário também o cumprimento dos deveres laterais, em especial o da informação. Dito isso, o “dever de informar” adquire fundamentais contornos nos tempos atuais informação e pode ser vista sob inúmeras variáveis. No âmbito constitucional, a informação encontra guarida em pleno exercício da cidadania, pois, na sociedade contemporânea, massificada e globalizada, somente um indivíduo bem informado é capaz de exercer os diversos papéis reservados a ele, inclusive o de consumidor (BARBOSA, 2013, p. 147). Nesse aspecto, tem-se o reconhecimento do direito à informação como direito fundamental do consumidor, decorrente não só do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento principal do ordenamento jurídico, mas também do reconhecimento da "informação como valor, e a vontade (no sentido de autonomia) como elemento material da atuação dos sujeitos". (BARBOSA, 2013, p. 148). O direito à informação também encontra grande arsenal no Código de Defesa do Consumidor, cujo direito básico é estabelecido em seu art. 6°, III, mas também é acompanhado por deveres específicos de informação ao consumidor, conforme bem expõe Miragem (2008, p. 122): O direito básico à informação do consumidor, estabelecidos no art. 6°, III, do CDC, é acompanhado de uma série de deveres específicos de informação ao consumidor, imputados ao fornecedor nas diversas fases da relação de consumo, como é o caso dos artigos, 8° e 10 (informação sobre riscos e periculosidade), 12 e 14 (defeitos de informação), 18 e 20 (vícios de informação), 30,31,33,34 e 35 (eficácia vinculativa da informação, sua equiparação à oferta e proposta, e as consequências da violação do dever de informar), 36 (o dever de informar na publicidade), 70 Inclusive, para alguns autores, a pós-modernidade, é conhecida como a era da informação. Nesse sentido, veja CASTELIS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura - A sociedade em rede. 5 ed,, São Paulo: Paz e Terra, 1999. 71 "Contudo, o dever de informar não é apenas a realização do princípio da boa-fé. Na evolução do direito do consumidor assumiu feição cada vez mais objetiva, relacionando à atividade lícita de fornecimento de produtos e serviços. A teoria contratual também construiu a doutrina dos deveres anexos, deveres acessórios ou deveres secundários ao da prestação principal, para enquadrar o dever de informar." (LÔBO, 1995, p. 604) 1658 46 (a ineficácia em relação consumidor, das disposições contratuais não informados), 51 (abrangência pelo conceito de cláusula abusiva, daquelas que não foram suficientemente informadas ao consumidor), 52 e 54 (deveres específicos de informação nos contratos), todos do CDC. O direito à informação do consumidor, portanto, "constitui-se em uma das bases da proteção normativa do consumidor no direito brasileiro, uma vez que sua garantia tem por finalidade promover o equilíbrio de poder de fato nas relações entre consumidores e fornecedores […].” (MIRAGEM, 2008, p. 123). Por isso, a necessidade de revitalização da confiança e a exaltação da informação na sociedade contemporânea, pois, se antes a ideia do desequilíbrio contratual na execução dos contratos foi catalizadora para o desenvolvimento de um direito protetivo do consumidor, atualmente, o catalizador é o desequilíbrio informativo, cuja informação está umbilicalmente ligada ao desenvolvimento da personalidade do indivíduo e seus direitos fundamentais72 (MARQUES, 2014, p. 179). Para alcançar a mesma eficácia dos contratos, como outrora era realizado com louvor pelo princípio da boa-fé objetiva, e sobretudo, garantir as expectativas legítimas dos consumidores, necessário se faz socorrer aos instrumentos típicos da pós-modernidade, qual seja, a informação, bem como a própria confiança, modelo mãe da boa-fé73. Este diálogo de valores se dá como forma de solucionar a atual crise da confiança na sociedade, cuja “fase atual da pós-modernidade está a necessitar uma resposta de valorização do paradigma da confiança, pois nossos tempos parecem fadados ao aumento dos litígios e da desconfiança entre agentes econômicos (classes e instituições).” (MARQUES, 2007, p. 11). E esta mudança encontra suporte no próprio direto privado, sobretudo no Código de Defesa do Consumidor, o qual atua como instrumento social de alocação de riscos, remediando a desconfiança entre as pessoas, a fim de 72 O direito à informação é, pois, uma das novas concretizações do respeito à dignidade da pessoa humana e manutenção da liberdade de ambos, fornecedor e consumidor, em uma sociedade pós-industrial, que necessita essencialmente de direitos com efeitos distributivos. 73 "Daí a necessidade do estabelecimento de novo paradigma objetivo nos contratos de consumo, que tenha em consideração, principalmente, um standard de qualidade e segurança que podem ser esperados por todos, contratantes, usuários atuais e futuros" MIRAGEM (2008, p. 151). 1659 alcançar a maior segurança possível entre os envolvidos e viabilizar a realização dos objetivos contratuais almejados (MARQUES, 2007, p. 39). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O fato é que a sociedade contemporânea passa por um momento pósmoderno que inevitavelmente acarreta transformações em todos os setores da vida do indivíduo, e é claro que o direito, especificamente, no que se refere às relações contratuais consumeristas, não fica imune a estas transformações, bem como aos impactos desta nova era. A sociedade contemporânea, que é hiperglobalizada, tem como características a ubiquidade, liberdade e velocidade, estas inerentes à sociedade de consumo brasileira o que ocasiona que o atual direito privado seja dominado por uma sensação constante de desconfiança entre todos os agentes econômicos acarretando, inevitavelmente, uma dicotomia entre “contrato e delito”. Estes, quase sempre caminham juntos. Assim, a proteção da confiança nas relações consumeristas é fundamental para o direito privado estando estritamente relacionada com a boa-fé, bem como com a ética contratual, a transparência nas relações e a imprescindibilidade de proteção da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito. Diante do contexto da sociedade contemporânea surge, então, um novo paradigma na regulação dos contratos de consumo, conservando a necessidade de proteção do princípio da boa-fé objetiva e revitalizando a proteção da confiança, de forma que as legítimas expectativas dos consumidores sejam respeitadas. Para tanto, utiliza-se de alguns institutos típicos da pós-modernidade como a informação, isso porque o tradicional direito positivado não consegue mais absorver todos os conflitos que surgem na atual sociedade, especialmente no que se refere à relação consumerista. Tal postura só se torna possível graças ao Código de Defesa do Consumidor que se apresenta como um dos principais instrumentos da sociedade contemporânea na proteção das relações consumeristas, especialmente na 1660 proteção da confiança, garantindo assim a proteção e efetivação dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Com efeito, qualquer investigação sobre a crise da confiança no Direito, por mais completa que se proponha ser, é insuficiente sob o ponto de vista dos infinitos desdobramentos, bem como com relação à efemeridade do objeto em análise, por isso o presente estudo, como já foi dito, objetivou apenas trazer à baila a importância deste tema e a necessidade de debate sobre o assunto para superação dos inconvenientes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, P. As origens da pós-modernidade. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ARAÚJO. V. S. de. O Princípio da Proteção da Confiança. Uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. Niterói: Impetus, 2009, p. 12. BARBOSA, F. N. Informação e Consumo: a proteção da privacidade do consumidor no mercado contemporâneo da oferta. In: MARQUES, C. L. (Coord). Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 22/vol.88/jul-ago/2013. BAUMAN, Z. Bauman sobre Bauman: diálogos com Keith Tester. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. BAUMAN, Z. O Mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S.. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 11 – 72. BECK, U. Incertezas fabricadas: entrevista. [22 de maio de 2006]. Revista IHU On-Line, no. 181. Disponível em: http://www.unisinos.br/ihu. Acesso em: 25 de janeiro de 2015. BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Ed.34.São Paulo, 2010. 1661 BITTAR, E. C. B. O direito na pós-modernidade. In: Revista Seqüência, n. 57, p. 131-152, dez. 2008. BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BONAVIDES, P. Do Estado Liberal ao Estado Social.8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. CASTELIS, M. A era da informação: economia, sociedade e cultura - A sociedade em rede. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CONSTANT, B. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf. Acesso em: 25 de fevereiro de 2015. FACCHINI NETO, E. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Editora Livrara do Advogado, 2010. FARIA, J. E. Os desafios do Judiciário. In: Revista USP, mar/abr/mai de 1994. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/21/05-joseeduardo.pdf. Acesso em: 4 de março de 2015. GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. GIDDENS, A. Risco, confiança e refexividade. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização Refexiva. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. HARVEY, D. Condição pós-moderna – uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 1992. JAYME, E. Identité Culturelle et integration:Le droi international privé postmoderne – Recuil des Cours del'Académie de Droit International de la Haye, 1995. v. 251, II, Haia: Kluwer, 1996. LÔBO, P. L. N. A informação como direito fundamental do consumidor, p. 604. In: MARQUES, C. L; MIRAGEM, B (Org.). Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. Proteção da Confiança e Práticas Comerciais. Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Responsabilidade por vícios nas relações de consumo. In: Revista de Direito do Consumidor, v. 14, abril/junho, 1995. 1662 LUHMANN, Niklas. Confianza. Mexico: Universidad Iberoamericana, 1996. MARQUES, C. L. In: Estudos sobre a Nova Teoria Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. MARQUES, C. L. A proteção dos consumidores em um mundo globalizado: Studium generale sobre o consumidor como homo novus. Revista de Direito do Consumidor |vol.85/2013|p.25|Jan/2013, DTR\2013\484. MARQUES, C. L. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7ª ed., rev., atual e amp. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MARQUES, C. L; MIRAGEM, B. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. MARQUES, C. L. Proteção do consumidor no comércio eletrônico e a chamada nova crise do contrato: por um direito do consumidor aprofundado. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais| v. 57| jan-mar/ 2006| p. 11. MENEZES CORDEIRO, A. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001. MIRAGEM, B. Curso de Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consumidor. 4ª ed, rev., atual., amp.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. MIRAGEM, B. Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor; direito material e processual do consumidor; proteção administrativa do consumidor; direito penal do consumidor.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. TEPEDINO, G. A incorporação dos direitos fundamentais pelo ordenamento brasileiro: sua eficácia nas relações jurídicas privadas. In: Temas de Direito Civil. Tomo III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 41-64. TEPEDINO, M. C. B. M. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 1 | p. 259 | Jun / 2011DTR\2012\1949. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/1552815529-1-PB.pdf. Acesso em: 25 março de 2014. SANTOS, B. de S. A globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez Editora, 2002. SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5.ed – São Paulo: Cortez, 1999. 1663 SARMENTO, D. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. STRECK, L. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11.ed.rev., atual. E ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014. XAVIER, J. T. N. A nova dimensão do contrato no caminho da pósmodernidade, 2006. Tese (Doutorado em Direito) Faculdade de Direito – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/13169/000598458.pdf?[...]1>. Acesso em: 10 de abril de 2015. 1664 LEI MENINO BERNARDO: UM ENFOQUE SOCIOLÓGICO, PSICOLÓGICO E POLÍTICO Maria Carolina Santini Pereira da Cunha, RESUMO: Este trabalho debate a Lei Menino Bernardo, originalmente fundada como Lei da Palmada e rebatizada com um caso de destaque internacional. Analisa-se, com a presente lei, a possibilidade de trazer mudanças efetivas na sociedade, sua eficácia para coibir agressões e influenciar nas relações privadas. Aborda-se o caso originário da Lei: o crime sob os aspectos sociológico e psicológico, a fim de elucidar o motivo do desamparo das vítimas diante do sistema penal. Diante desse panorama, encontra-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual ilustra a discussão legislativa. PALAVRAS-CHAVE: lei; menino Bernardo; violência familiar. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem por escopo uma reflexão em torno do tema proposto. Aborda-se outros crimes brasileiros relacionados ao caso central: crianças assassinadas por seus genitores e demais vítimas de criminosos com transtorno de personalidade antissocial. A metodologia visa a um estudo analítico, centralizado no Caso Bernardo, em Três Passos/RS, ocorrido em abril de 2014. O ensaio divide-se em três seções: a primeira trata do surgimento e formação da lei desde o seu projeto, incluindo os motivos que conduziram a mudar sua denominação, e o dispositivo existente no ECA, concertente ao conceito familiar; explica uma patologia mental da qual as vítimas ficam à mercê do sistema que não previu legislação adequada. A segunda, exemplifica-se essa problemática por crimes cometidos no Brasil e suas semelhanças com o caso designado, fornecendo análise dos casos Nardoni, Richthofen e Eloá Cristina. A terceira, lança mão de críticas, apresentadas de forma a analisar, repensar e refletir sobre o sistema penal e toda a sociedade brasileira, a partir das falhas dos casos em pauta. Por fim, apresentam-se as conclusões obtidas. 1665 2 O PROJETO DE LEI: DA PALMADA AO CASO MENINO BERNARDO A deputada Teresa Surita do PMDB-RR relatou o projeto, o qual prevê que pais que “maltratarem os filhos sejam encaminhados ao programa oficial de proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de receberem advertência.” Enquanto que a criança agredida, “deverá ser encaminhada a tratamento especializado.” A proposta previu multa de três a vinte salários mínimos “para médicos, professores e agentes públicos que tiverem conhecimento de agressões a crianças e adolescentes e não denunciarem às autoridades. A lei foi proposta em 2003, sendo polêmica, e levantou diversas discussões, tendo sido aprovada pela Câmara dos Deputados, em 21 de maio de 2014, após acordo aceito pela bancada evangélica especificando que “os pais ou responsáveis somente serão punidos se infligirem sofrimento físico à criança ou adolescente até 18 anos de idade”; e, no Senado, no dia 4 de junho (WIKIPÉDIA, 2015). O Projeto de Lei estreou sua tramitação na Câmara dos Deputados em 2003, redigido por Maria do Rosário, do PT-RS, sob o número 2.654/2003, obtidos pareceres “pela aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família, Comissão de Educação e Cultura e Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, parando sua tramitação no plenário”. A lei foi sancionada com o intuito de alterar a Lei nº 8.069/1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 2014). Em entrevista, Luiz Flávio Gomes aponta que “a norma não prevê punições penais, mas encaminhamento para tratamento.” Desse modo, “se a lei penal não surte efeito preventivo, menos ainda uma lei sem punição estabelecida” (RODRIGUES; TOMÉ, 2014). No ECA, há a garantia de, conforme artigo 17, inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança ou adolescente. O dispositivo estabelece ser dever de todos garantir a dignidade dos menores, “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, segundo o artigo 18. Ademais, há previsão legal também no Código Civil (art.1681, I) da perda do pátrio poder a 1666 pais cujo castigo aos filhos for imoderado. Finalmente, o Código Penal criminaliza maus-tratos para quem “abusar dos meios de correção e disciplina (art.136), além do crime de lesões corporais no contexto de violência doméstica (art.129, §9º)” (ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). Desde 2001, “a Global Initiative to End all Corporal Punishment of Children” recebe apoio de “organizações multilaterais de defesa de direitos humanos, ONGs internacionais e locais e indivíduos-chave, capazes de dar visibilidade à causa. Mundialmente, a ONG Save the Children tem sido o principal agente a promover a elaboração de leis específicas sobre o tema”. No Brasil, “a ONG Save the Children apoia a Rede Não Bata, Eduque, cuja principal porta-voz desta causa no país e articuladora da elaboração e tramitação do PL 7672/10, no Congresso Nacional, é a apresentadora de TV Xuxa Meneghel” que tem desempenhado papel importante nesta rede, manifestando-se em programas de televisão e em eventos relacionados ao tema dos direitos das crianças (RIBEIRO, 2013, p.292-308). A partir da década de 80, este projeto produzia estudos relacionados à violência familiar, castigos físicos, encomendados pela ONU ao Laboratório de Estudos da Criança (Lacri) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP (RIBEIRO, 2013, p.292-308). Essa pesquisa “chamava atenção para a normalização e a legitimação do castigo físico como prática educativa na sociedade brasileira, sustentando que tais comportamentos replicam a violência e a retroalimentam” (ROCHA; MENDONÇA; ÁVILA, 2014). “O PLS foi uma representação por cumprimento das recomendações da ONU e não por uma demanda social” (RIBEIRO, 2013, p.295 apud ROCHA et al, 2014, p.6). Poucas reuniões e audiências públicas foram realizadas da proposta apresentada, compostas por uma comissão de deputados que pouco debateram sobre a criação da norma, “preocupando-se os parlamentares apenas em aprovar uma lei que fosse ao encontro dos dados trazidos pelo relatório da ONU, reivindicada pelas ONGs influentes bem como artistas famosos” (RIBEIRO, 2013, p.299 apud ROCHA et al. 2014, p.6). Em junho de 2014 (NÉRI; PASSARINHO. 2014) foi aprovado o PLS 7672/2010 o qual propunha a inicialmente denominada “Lei da Palmada”, então intitulada Lei Menino Bernardo. O dispositivo da lei supracitada, elaborada em 2010, tornou perceptível que o próprio legislador demonstra estar ciente da 1667 dificuldade quanto à sua concretização74. Ademais, seu conteúdo estabelece a obviedade de não se maltratar crianças. Contudo, casos como este são incógnitos inclusive para profissionais, que desconhecem o motivo da inevitável reincidência. Segue uma possível explicação. A lei da palmada traz um fato a ser combatido. Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, desapareceu e foi encontrado morto. Foram presos como suspeitos o pai, a madrasta e sua amiga. Primeiramente, depara-se com a dificuldade de determinar o limite em que a palmada seria um corretivo educacional aos filhos e a partir de que momento se torna agressividade cruel, principalmente porque a violência é escondida. No caso em questão a madrasta contou à vítima uma história, iludindo-o que comprariam uma TV depois noticiaram que era um aquário. Por fim, afirmava que ele precisava tomar uma injeção. Houve, portanto, premeditação a fim de ludibriar um inocente, com dissimulação por parte da ofensora ao enteado. Este foi enterrado em uma cova rasa, na área rural de Frederico Westphalen, no dia 14 de abril de 2014, a cerca de 80 quilômetros de Três Passos, onde ele morava com a família, que alegou ter visto Bernardo pela última vez às 18h do dia 4 de abril, “ia dormir na casa de um amigo, que ficava a duas quadras de distância da residência da família”. Revelou-se então o sofrimento passado pelo menino, por um histórico de violência e humilhações. Dia 6 de abril, conforme notícia, o pai do menino disse ter ido à casa do amigo, “mas foi comunicado que o filho não estava lá e nem havia chegado nos dias anteriores. No início da tarde do dia 4, a madrasta foi multada por excesso de velocidade”: trafegando a 117 km/h, Graciele “seguia em direção a Frederico Westphalen. O Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM) disse que ela estava acompanhada do menino. O pai registrou o desaparecimento do menino no dia 6, e a polícia começou a investigar o caso” (In: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardoboldrini/noticia/2014/05/pericia-analisa-assinatura-de-pai-de-bernardo-em-receita 74 PLS 7672/2010, item 17: “Sabemos, no entanto, que uma coisa é proclamar os direitos, outra é, efetivamente, gozá-los. Neste momento, envidamos esforços no sentido de dar materialidade a reivindicações dos movimentos e aperfeiçoar mecanismos legais que já se constituem em conquista histórica e institucional para o desenvolvimento e sustentabilidade de políticas de públicas para a infância e a adolescência, garantindo todos os direitos das crianças e adolescentes e protegendo-os de qualquer forma de sofrimento e limitação a seu pleno desenvolvimento.” 1668 usada-em-crime.html). O erro desta lei sobressai em seu objeto: não foram palmadas a causa mortis do menino, e sim uma injeção letal. “Segundo as investigações da Polícia Civil, Bernardo foi morto com uma superdosagem de um sedativo.” Foi noticiado sobre o inquérito policial, o qual “apontou que Leandro Boldrini atuou no crime de homicídio e ocultação de cadáver como mentor, juntamente com Graciele”. De acordo com a polícia, “ele também auxiliou na compra do remédio em comprimidos, fornecendo a receita Leandro e Graciele arquitetaram o plano, assim como a história para que tal crime ficasse impune” (In: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/caso-bernardoboldrini/noticia/2014/09/chegava-com-olheiras-e-malvestido-diz-empresaria-queacolhia-bernardo.html). Cabe esclarecer que tal crime é sui generis, cometido por criminosos com Transtorno de Personalidade Antissocial75. Assemelha-se ao Caso Nardoni76. São crimes característicos, tais como: “assassinos em série, pais que matam seus filhos, filhos que matam seus pais, estupradores, [...] estelionatários, [...] políticos corruptos[...]” (SILVA, 2010, p.45). Deve-se fazer uma análise desses criminosos inatos, pois a preocupação com essa patologia ainda não alcançou o Brasil. A propósito, o primeiro estudo sobre psicopatas só foi publicado em 1941, com o livro The Mask of sanity, de Hervey Cleckley. Na introdução de seu livro, o psiquiatra diz tratar de um assunto muito conhecido, embora ignorado de maneira geral pela sociedade (SILVA, 2010, p.74-75). Há descrença quanto a sua existência, e dela não se deve esperar qualquer melhora – não há tratamento para o referido transtorno. Entretanto, eles sao capazes e imputáveis. Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.20) refere que sociopatas desprezam escolher a alternativa correta, embora tenham capacidade de discernir entre certo e errado: “A parte racional ou cognitiva dos psicopatas é perfeita e íntegra, por isso sabem perfeitamente o que estão fazendo”. Diante dessa perspectiva, a legislação brasileira comete grave equívoco ao classificar essa 75 Publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na Classificação Internacional de Doenças CID-10, este transtorno é denominado Transtorno de Personalidade Dissocial, Código: F60.2. . A Associação de Psiquiatria Americana (DSM-IV-TR) utiliza o termo Transtorno de Personalidade Antissocial, como estabelece a autora Ana Beatriz Barbosa Silva (2010, p.39). 76 A menina Isabella de Oliveira Nardoni, 5 anos, foi arremeçada do 6.º andar de um prédio em São Paulo. Seu pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta, Anna Carolina Jatobá, foram condenados pela morte e estão presos. 1669 patologia como semi-imputável. Silva (2010, p.41) exemplifica de maneira esclarecedora que “psicopatas são indivíduos que podem ser encontrados em qualquer raça, cultura, sociedade, credo, sexualidade, ou nível financeiro”. Nesse sentido, vivem “infiltrados em todos meios sociais e profissionais, camuflados de executivos bem-sucedidos, líderes religiosos, trabalhadores, “pais e mães de família”, políticos, etc.” A violência é universal: a cada minuto pessoas são espancadas, torturadas, violentadas, em todo o mundo. Os fisicamente frágeis ou emocionalmente vulneráveis estão em perigo contínuo. Milhares de pessoas são vítimas nesse exato momento – escondidos em porões, sequestrados, maltratados inclusive por parentes: seja pelos pais, seja pelos filhos. Eles estão por toda parte, cercando suas vítimas. “Assim como os vampiros da ficção, os psicopatas estão sempre de tocaia”. Silva (2010, p.41) insiste de maneira contundente: “agindo [...] nas ruas, em plena luz do sol, procurando suas “presas”, às mesas de seus escritórios envolvidos em negociações escusas ou mesmo sob o teto acolhedor de um lar que em instantes será devastado” (SILVA, 2010, p.46). Então, o que fazer de útil: criar uma lei “anti-psicopatas”? A questão é que o Estado não tem como saber nem como fiscalizar, dada a extrema dificuldade de identificar esses seres sem emoção, sem empatia, manipuladores, enrustidos de pessoas normais. Como relata Silva (2010, p.46), eles “estão por toda parte, perfeitamente disfarçados de gente comum, e assim que suas necessidades internas de prazer, luxúria, poder e controle se manifestarem, eles se revelarão como realmente são: feras predadoras.” Falta uma análise feita por criminologistas especializados em violência, que pesquisem para encontrar uma forma de combate eficiente, e alertar a população. Observa-se coincidências e procura-se saber por que há semelhanças nesses crimes mencionados. Analisase na próxima seção, um estudo de caso comparando crimes brasileiros: Richthofen, Eloá Cristina e o Caso Nardoni mais detalhadamente. 3 CASE STUDY: CRIMES BÁRBAROS NO BRASIL Outro caso famoso foi o Homicídio de Manfred von Richthofen e Marísia von Richthofen, cometido pelos irmãos Cravinhos, a mando da filha do casal 1670 Suzane von Richthofen, em São Paulo. Para comprovar as afirmações apresentadas na seção anterior, apresenta-se uma provocação que contraria a lógica da Lei da Palmada: no Caso Richthofen deveria ser criada uma lei para maus tratos aos pais? Entendemos não ser esse o caso. Primeiro, porque as doentias mentes em debate são imorais; e segundo, porque devido a serem desprovidas de sentimentos, deturpam qualquer dispositivo. Por isso, uma lei não coibirá seu comportamento. Condená-los poderia “livrar” o mundo de doentes mentais, mas não trará a vítima de volta. Há diversos outros casos ocorridos no país. Entre crimes de pais que assassinaram seus filhos estão o Caso Isabella Nardoni e o Caso Bernardo Boldrini. Em ambos, os genitores-assassinos foram auxiliados pela madrasta do relacionamento “pós-casamento”. Na noite de sábado, 29 de março de 2008, a menina Isabella de Oliveira Nardoni, de 5 anos, foi jogada da janela do prédio onde seu pai, Alexandre Nardoni, morava com a esposa, anna Jatobá, e seus dois filhos. A princípio o casal alegou que o crime havia sido cometido por um intruso, mas os dois foram considerados culpados por um júri popular. Suas penas foram 31 e 26 anos, respectivamente. O delegado Calixto Calil Filho disse que a versão de tentativa de invasao do apartamento, apresentada por Alexandre Nardoni, não esclarecia o caso. No dia 31 de março, ocorreu o enterro de Isabella. A incoerência da história relatada pelo pai e pela madrasta da menina foi evidenciada após os trabalhos dos peritos. Através de ilustrações realizadas com base na planta do apartamento, demonstrou-se que a versão do pai era incompatível com os dados preliminares coletados pela perícia. A polícia havia pedido a prisão temporária do pai e da madrasta de Isabella. No dia 6 de abril, houve a reconstituição do trajeto percorrido, de carro, pela família na noite de sábado. De acordo com a investigação, Isabella teria sido assassinada entre 23h30 e 23h50. Em seguida, teria a morte de Isabella sido provocada por asfixia ou pela queda? Se o pai relatou que a deixou dormindo em seu quarto, por que a menina foi jogada do quarto dos irmãos? Se Isabella foi deixada trancada sozinha no apartamento, quem teria entrado? A perícia já havia concluído que a tela de proteção, localizada no quarto de onde a menina havia sido jogada, fora cortada com uma faca e uma tesoura. Uma reportagem apresentou as três hipóteses de causa 1671 mortis de Isabella Nardoni: estrangulamento, convulsão, ou parada respiratória provocada pela queda de quase 20 metros de altura. Laudos comprovavam o envolvimento direto do casal na morte da criança. Houve três laudos, cujo conteúdo foi apresentado: “o do IML, sobre o corpo de Isabella; um fornecido pela criminalística, sobre o horário de entrada do carro na garagem do prédio; e um último sobre cenário do crime, feito pelo Núcleo de Crimes Contra a Pessoa”. Por meio desses laudos, “foi possível afirmar que Alexandre Nardoni havia jogado a filha do sexto andar, e que as marcas de esganadura no pescoço da menina eram compatíveis com as mãos da madrasta”. O casal Nardoni foi a júri popular em 24 de março de 2009. “O julgamento, que começou em 22 de março de 2010, durou cinco dias. O julgamento terminaria até a meia-noite do dia 26 de março” (In: Coberturas, caso Isabella Nardoni. Acesso em 12.12.2014, disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-isabellanardoni/o-julgamento.htm). Por derradeiro, é pertinente trazer o Caso Eloá Cristina, por ser um exemplo em que a polícia deixou o criminoso livre para prosseguir no crime diante das câmeras. O Sequestro de Eloá Cristina Pimentel ocorreu de 13 a 17 de outubro de 2008, na cidade de Santo André. O Caso Eloá Cristina foi o mais longo sequestro em cárcere privado já registrado pela polícia do estado de São Paulo. Marcos do Val, um dos maiores especialistas em negociações, brasileiro que trabalha na Swat (Grupo de elite da polícia americana preparado para enfrentar situações de emergência), foi entrevistado no programa Fantástico. Ao assistir os principais momentos do cerco em Santo André, apontou falhas na operação. “Entre elas, o fato de a polícia não ter atirado no seqüestrador Lindemberg Alves, de 22 anos, e de ter permitido a volta da estudante Nayara Silva, de 15, ao cativeiro” no dia 16. Critica o policial que “Isso é o maior absurdo dos absurdos. Em nenhum lugar do mundo já existiu uma situação dessas” (Swat teria atirado em seqüestrador, diz especialista em negociações. http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html). In: Outra oportunidade perdida pela polícia de terminar o sequestro no dia 15 foi quando Eloá, 15 anos, “lançou uma corda improvisada e recolheu o almoço. Seu corpo ficou inclinado para fora da janela e Lindemberg apareceu atrás da ex-namorada”. 1672 Comenta o especialista que a SWAT usaria tal momento como vantagem para executar o sequestrador. “Permitir que a negociação se arrastasse por cinco dias foi o primeiro erro: em uma situação passional como essa, quanto mais tempo leva, mais inconstante a pessoa fica.” A Swat, diz Val, “estabelece o prazo máximo de 24 horas para libertar o refém, mas nunca foi preciso esperar tanto. A negociação mais longa que a Swat de Dallas fez até hoje durou nove horas. A partir daí é invasão.” Aproveitar a madrugada sem deixar amanhecer o dia. Segundo ele, outra tática seria a triangulação, em que dois policiais estariam de tocaia em escadas laterais à janela, “fora do ângulo de visão de Lindemberg. Um terceiro policial ficaria na janela do andar de cima, pronto para descer de rapel”. No ataque, “um dos policiais na escada agarraria Eloá e tentaria proteger a cabeça dela. O outro daria cobertura enquanto o terceiro viria de cima e daria um tiro no seqüestrador. Tudo isso ao mesmo tempo.” Diversas outras falhas foram apontadas pelo especialista, “erros que conduziram a um desfecho trágico”. Por exemplo, os policiais usaram excesso de explosivo na invasão; sem prever a “possibilidade de haver obstáculos atrás da porta”, o que atrasou a entrada da equipe. Desse modo, disse Val, houve tempo de o seqüestrador pegar a arma e disparar para onde quisesse. Em vez disso, os policiais deviam ter entrado “simultaneamente pela frente, janela e fundos, com o uso de bombas de luz e som, que deixariam o seqüestrador desnorteado”. Assim, o “policial que estava posicionado na escada, além de atrasado – a explosão já havia acontecido – demorou muito para subir. Ademais, as imagens revelam que a polícia “teve dificuldade para conter Lindemberg. A Swat utiliza uma técnica que leva menos de um segundo para imobilizar o agressor.” (In: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html). Inclusive no socorro às vítimas: “o médico, sozinho, lutou para atravessar o tumulto, enquanto o caminho deveria estar livre para a equipe de paramédicos, com macas. Eloá foi carregada no colo por um policial, um procedimento incorreto; a cabeça ferida da jovem esbarrou no corpo do médico” (Swat teria atirado em seqüestrador, diz especialista em negociações. In: 1673 http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html). Tal exemplo mostra profissionais despreparados diante de agressores patológicos, agindo como amadores, o que remete ao problema educacional do Brasil. Não há especialização nesse assunto. Além disso, a polícia é carente de treinamento e de recursos. – caso eloá “passional” um caso passional não dura + q poucas horas. Em relação a este crime, aparentemente passional, recorre-se a Silva (2010, P.95) para apontar que os psicopatas apresentam níveis reduzidos de autocontrole, tidos como “cabeça-quente” ou “pavio-curto”, tendem a responder às frustrações e às críticas com violência súbita, ameaças e desaforos. Ofendem-se com facilidade, tornando-se violentos por motivos triviais e banais. Embora haja intensidade na explosão de agressividade e violência, após esse momento “os psicopatas voltam a se comportar como se nada tivesse ocorrido.” Ao “perder o controle” eles sabem exatamente o limite pretendido de suas ações, a fim de magoar, amedrontar ou machucar alguém. Descrevem “seus episódios agressivos como uma resposta natural à provocação a que foi submetido.” A partir disso, colocam-se de vítima da situação. O Instituto Geral de Perícias (IGP) apontou nos laudos que falhas na coleta e armazenamento do material da cena do crime do Caso Bernardo. As análises que poderiam revelar como o menino foi morto ficaram prejudicadas. O material apreendido deveria ter sido enviado de imediato para análise, e não dias depois (Zero hora, 2014). Sindicância apurou que houve falha da guarnição por não ter sido feito o Boletim de Atendimento. “A Brigada Militar de Três Passos abriu Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o policial militar que deixou de registrar ocorrência da noite em que esteve na casa do médico Leandro Boldrini, em agosto de 2013, para apurar uma denúncia de gritos na região”. Trata-se de atendimento ocorrido “no dia em que o médico teve uma briga com o filho Bernardo Uglione Boldrini — registrada em vídeo com os gritos de socorro do menino” (In: IRION, Adriana. http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/bm-abre-processo-contrapolicial-que-esteve-na-casa-de-bernardo-em-noite-de-briga-4639614.html). Notase que as vítimas ficam à mercê da (in)segurança pública. 1674 É de se perguntar, então, por que os agentes públicos esperaram até ser tarde demais, quando o crime já ocorreu? No Caso Bernardo, foram feitas diversas tentativas de pedido de ajuda: a criança procurou ajuda externa, mas ninguém acreditou. Por quê? Cabe aqui também uma reflexão sobre todo o sistema judiciário. Deveria o Ministério Público ter investigado, na época, as queixas da vítima; mas não agiu, enquanto o caso se tornava mais grave, até o crime ser destinado ao júri – quando o menino já não vive. 4 CRÍTICAS AO SISTEMA JUDICIÁRIO: OS AGENTES PÚBLICOS, O ECA E O CC Houve ingresso em juízo por parte da vítima, conforme estabelecido no ECA, “XII – oitiva obrigatória e participação: a criança e o adolescente, em separado ou na companhia dos pais, [...] têm direito a ser ouvidos [...] sendo sua opinião devidamente considerada pela autoridade judiciária competente [...].” Porém, uma das características da psicopatia é saber mentir. “Não economizam charme nem recursos que os tornem mais atraentes no exercício de suas mentiras. Para algumas pessoas, eles se mostram suaves e sutis, tal como galãs de TV e de cinema.” (SILVA, 2010, p.76) Segundo notícias, o pai o convenceu que ia trata-lo bem e o menino aceitou voltar a morar com ele. Evidencia-se que o magistrado laborou em equívoco, ao decidir que o menor continuasse com seus familiares-algozes, que só o viam e queriam como fonte de renda. No entanto, analisando-se sua decisão, pode-se encontrar explicações embasadas na legislação do motivo pelo qual, sendo puramente positivista, seria possível atuar com esse posicionamento amparado por disposição legal. De acordo com o artigo 1630, do Código Civil, “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. O artigo seguinte aborda que “durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro exercerá com exclusividade”. O artigo 1632, CC diz que “a separação judicial, o divórcio [...] não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”. Percebe-se claramente que a criança é referida no dispositivo como algo pertencente ao 1675 adulto, seu genitor. Tal dispositivo parece contrariar o artigo 15 do ECA, que dispõe que a “criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Ou seja, em seu conteúdo denota dignidade da criança como pessoa, e direitos constitucionais garantidos. Por outro lado, o art.1635, do CC prevê a extinção do poder familiar, no inciso V, “por decisão judicial, na forma do artigo 1638”. Do mesmo modo, o art.1637, do referido código estabelece que houver abuso de autoridade por parte do pai ou da mãe, “faltando aos deveres a eles inerentes [...], cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor [...], até suspendendo o poder familiar, quando convenha.” Nesse sentido, o artigo 1638, CC. é explícito: perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou mãe que: I - castigar imoderadamente o filho II - deixar o filho em abandono III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. Era sabido na cidade que o menino Bernardo ficava do lado de fora de casa, sem poder entrar, como noticiado. Ainda que não houvesse conhecimento dos abusos, era evidente, pelas olheiras do menino, que este sofria maus-tratos. O artigo 16 do ECA explicita que “o direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: [...] VII - buscar refúgio, auxílio e orientação”. Um ponto-chave da questão, que seria uma possibilidade de o juiz mantê-lo com o pai, está no livro II, na parte especial do capítulo 3, que trata das medidas específicas de proteção: X – prevalência da família: na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta. Em contrapartida, ironicamente, alguns advogados lucraram uma causa tão desafiadora. Um pequenino foi encontrado morto e isso é real, mas defesas estrategistas criam fantasmas, para livrar seus clientes, seguindo o raciocínio de que basta plantar uma dúvida e pronto: in dubio pro reo. Com criatividade, se usa a legislação como mero artefato, podendo-se distorcer o significado de depoimentos, documentos, etc., para encaixar no processo, e inviabilizá-lo. Aqueles que defendem seus clientes nesses termos – sabendo de sua culpa e, além de garantir seus direitos, criam tese absolvitória – soam iguais a eles, por 1676 sua lógica e comportamento. Colocam-se em posição de autoridade, como quem possui um segredo importante, e tem poder; mas, na verdade, o “segredo” – que é a lei – não foi criado para satisfazer as evidenciadas paixões de ganhar o “jogo” a qualquer custo. Essa falta de limites na dinâmica processual penal causa impacto aos desconhecedores do Direito, disciplina cheia de brechas interpretativas. Em seguida, uma lei sobre palmadas? A violência ocorrida era moral (FREITAS, 2014). Houve tortura psicológica, como revelam os vídeos obtidos do celular do acusado, divulgados pela mídia. O vídeo foi obtido em uma perícia no telefone celular de Leandro Boldrini, pai do menino Bernardo. O material foi anexado ao processo e será usado como prova pela acusação (In: G1, Defesa da madrasta de Bernardo pede veto à imprensa em audiências, 2014). Seria necessária uma lei para que as pessoas, ou pelo menos os agentes públicos, ouçam os gritos por socorro das vítimas? Já havia previsão no ECA, em seu art.5º: “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” A respeito dos direitos fundamentais, no ECA em seu capítulo I (Do direito à vida e à saúde), título II, art.7º dispõe que a criança e o adolescente “têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.” Trata-se, na realidade, não apenas de falta de cidadania e de solidariedade, que a burocracia estabelecida em lei não pode amenizar, mas também de uma complexidade social. As pessoas vêem, e fingem que não vêem; ouvem, como se não fosse nada, em vez de comunicar à polícia ou ao Conselho Tutelar. Até porque, no caso em questão, foi uma assistente social – amiga da madrasta – que ajudou a matá-lo. Nesse contexto, é irônico o artigo 13 do ECA no sentido da responsabilidade delegada ao Conselho Tutelar: “os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.” Com a nova redação, pela Lei Nº 13.010, de 26 de junho de 2014 (a denominada Lei Menino 1677 Bernardo), este artigo sofreu a seguinte alteração: “Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade [...].” Percebe-se contradições legislativas. Divergem o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que busca uma interpretação e direitos constitucionais, preocupando-se com o bem-estar dos menores. Em contrapartida, há dificuldade de efetivação, visto que o próprio dispositivo soa utópico em sua concretização. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Todas as mortes antes referidas, poderiam ter sido evitadas se os órgãos competentes tivessem agido de modo mais atento, e portanto responsável. Em contrapartida, defesas estrategistas criam fantasmas para livrar seus clientes seguindo o raciocínio de que basta plantar uma dúvida e pronto: in dubio pro reo. Como um “segredo”, uma propriedade exclusiva de um grupo de “iniciados”, a lei penal e processual penal é utilizada apenas para ganhar o “jogo” a qualquer custo – e impactar aos leigos, os desconhecedores do Direito. De que serve, no presente momento criar uma lei, senão de hipocrisia para simular diligência? Entretanto, o cadáver da vítima não mente. Torna-se mais difícil solucionar um caso ou evitar que um crime maior aconteça, quando falham as pessoas que estão por trás de cargos públicos, de fardas e uniformes. Do mesmo modo, não se espera que pais assassinem seus filhos – tal ato é inimaginável – não se está preparado para lidar com essas situações, muitas vezes por incredulidade, uma vez que o elemento surpresa dificulta a iniciativa, e é parte do arsenal de truques de muitos sociopatas. É custoso, e por isso, resiste-se a admitir que não há limites para a perversidade de pessoas portadoras desse tipo de patologia mental. Por outro lado, é desconcertante perceber que por trás de órgãos públicos, não há necessariamente cidadãos empenhados em fazer bem o seu trabalho, mas é também possível que haja pessoas passivas, desinteressadas, ignóbeis. Precisamos ficar inconformados, urge lutar pela vida: além da nossa, das pessoas 1678 ao redor, por uma questão de humanidade. A chamada “Lei Menino Bernardo” resta apenas como homenagem a uma mais uma vítima de assassinato pelo próprio genitor; a seguir como está, não solucionará nada nem impedirá que novos casos aconteçam diariamente: crianças sendo mortas – Isabellas e Bernardos, imperceptíveis. As pessoas, em seu cotidiano, estão distraídas demais vivendo suas vidas enquanto ocorrem crimes hediondos a todo momento. O Vídeo oficial da Copa do Mundo de 2014 com o clipe da Shakira e sua música Dare (La La La) espantou e incomodou algumas pessoas, por parecer africano e não brasileiro: "Estamos no Brasil, aqui não tem leões, tigres de bengala nem animais selvagens à solta" – soavam os comentários. Poderíamos rever a possibilidade de, ao menos metaforicamente, haver sim, muitos selvagens entre nós. REFERÊNCIAS BRASIL. Código Civil (2002). Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 29.03.2015. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 17 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 30 de dezembro de 2014. BRASIL. Lei 13.010, de 26 de junho de 2014. Dispõe sobre a Lei Menino Bernardo. Brasília, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2014/Lei/L13010.htm>. Acesso em: 13 Abr. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 7672/2010. Disponível em: <http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=483 933> 1679 BRASIL. Planalto. Presidência da República, casa civil, subchefia para assuntos jurídicos. Lei 13.010/2014. Acesso em 13.12.2014, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13010.htm>. Coberturas, caso Isabella Nardoni. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/coberturas/caso-isabellanardoni/o-julgamento.htm>. Defesa da madrasta de Bernardo pede veto à imprensa em audiências. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/casobernardo-boldrini/noticia/2014/08/defesa-da-madrasta-de-bernardo-pede-vetoimprensa-em-audiencias.html> FREITAS, C. Chegava com olheiras e malvestido, diz empresária que acolhia Bernardo. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://g1.globo.com/rs/riogrande-do-sul/caso-bernardo-boldrini/noticia/2014/09/chegava-com-olheiras-emalvestido-diz-empresaria-que-acolhia-bernardo.html> IRION, A. BM abre processo contra policial que esteve na casa de Bernardo em noite de briga. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/11/bm-abre-processo-contrapolicial-que-esteve-na-casa-de-bernardo-em-noite-de-briga-4639614.html>. Laudos não esclarecem causa da morte. Zero hora: 9 set.14. Acesso em 12.12.2014, disponível em <http://www.pge.rs.gov.br/upload/zh,%20p.14%2815%29.pdf>. Lei Menino Bernardo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Menino_Bernardo>. NÉRI, F.; PASSARINHO, N. Comissão da Câmara aprova lei da palmada, rebatizada Menino Bernardo. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/05/comissao-da-camara-aprova-lei-dapalmada-rebatizada-menino-bernardo.html>. ROCHA, A. F. O.; MENDONÇA, T. C.; ÁVILA, F. N. Lei Menino Bernardo: uma Breve Análise Crítica. Congrega, Urcamp, 2014. RODRIGUES, A.; TOMÉ, P. I. (06/06/2014). Lei da palmada não proíbe palmada, dizem advogados. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/06/1465898-lei-da-palmada-naoproibe-palmada-dizem-advogados.shtml>. RIBEIRO, F. B. Governo dos adultos, governo das crianças: agentes, práticas e discursos a partir da “lei da palmada”. Civitas – revista de Ciências Sociais. Porto Alegre, v.13, n.2, p.292-308, mai-ago, 2013. Disponível em: 1680 <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/15480/108 29>. Acesso em 12.12.2014, SILVA, A. B. B. S. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. Swat teria atirado em sequestrador, diz especialista em negociações. Acesso em 12.12.2014, disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL804733-5605,00.html>. 1681 O CONTROLE DA PUBLICIDADE DO TABACO NO BRASIL THE CONTROLLING POWER OF ADVERTISEMENT IN THE TOBACCO INDUSTRY IN BRAZIL Sergio Gonçalves Macedo Jr.77 Maria Cláudia Mércio Cachapuz78 RESUMO: Na sociedade contemporânea, a publicidade cumpre uma importante função social e econômica na sociedade. É imprescindível ao funcionamento do mercado de consumo; porém pode ser, ao mesmo tempo, veículo de ilicitudes que vêm a lesar os consumidores. Ao procurar promover a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, pode incorrer em enganosidades e abusos, acarretando diferentes tipos de prejuízos ao seu público-alvo. Pode ser, assim, objeto de controle em três esferas distintas: judiciária, administrativa e privada. No caso da publicidade do tabaco no Brasil, o controle na esfera privada, durante muitos anos, mostrou-se insuficiente no mote de minorar o seu potencial lesivo aos consumidores. Não obstante todos os malefícios causados pelo tabagismo, a autorregulamentação publicitária no setor de produtos fumígenos não foi capaz de promover o controle adequado de suas peças de marketing, de tal forma que apenas com o incremento regulatório proporcionado pela intervenção do controle legal, já nas últimas décadas, é que os efeitos perniciosos do tabagismo começaram a ser mitigados no país, com a significativa redução do número de tabagistas. PALAVRAS-CHAVE: publicidade; controle; consumo; tabaco. ABSTRACT: In contemporary society, advertising plays an important role in social and economic society. It is essential to the functioning of the consumer market; but can be, at the same time, vehicle of illegal acts that come to harm consumers. Advertising, by seeking to promote the purchase of a product or the use of a service, may incur into misleadings and abuses, causing different types of damage to its target audience. It may, therefore, be subject to control in three distinct areas: judicial, administrative and private. In the case of tobacco advertising in Brazil, the control in the private sphere, for many years, has been insufficient on mitigating the potential to harm consumers. Despite all the harm caused by smoking, advertising self-regulation in the tobacco products sector was unable to 77 78 Mestrando do Programa de Pós-Graduação da UNILASALLE Doutora em Direito Civil pela UFRGS. Professora do Mestrado em Direito e Sociedade do Centro Universitário La Salle - UNILASALLE. Juíza de Direito. 1682 promote the proper control of its marketing pieces, such that only the regulatory increment provided by the intervention of legal control, as in the past decades, is that the harmful effects of smoking began to be mitigated in the country, with a significant reduction in the number of smokers. KEYWORDS: advertising; control; consumption; tobacco. 1 INTRODUÇÃO Com o intuito de investigar a efetividade dos sistemas de controle da publicidade do tabaco no Brasil, busca-se identificar, neste estudo, a base conceitual desta forma de comunicação e suas formas ilícitas de manifestação, para, após, analisar a relação existente entre a produção e consumo de produtos fumígenos no país e o incremento regulatório do controle de sua publicidade. Forma de comunicação que tem como objetivo promover a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, a publicidade constitui um dos temas mais complexos do Direito do Consumidor. É um fato jurídico em constante transformação que, em suas múltiplas facetas, desafia o legislador, o aplicador do Direito e a doutrina. Está presente no dia a dia de todos os indivíduos, que são expostos, a despeito de sua vontade, a diferentes espécies de apelos de marketing, como o anúncio publicitário, o teaser, o puffery e o merchandising. E, se por um lado, é imprescindível ao funcionamento do mercado de consumo, por outro, pode ser veículo de ilicitudes que, com frequência, lesam os consumidores. O fato da eficiência da publicidade depender do seu poder de persuasão faz com que, muitas vezes, as agências abram mão de mensagens enganosas ou apelos abusivos. Vivemos em uma sociedade marcada pelo consumismo79, fruto de inúmeras influências do meio no qual os indivíduos estão inseridos, que as 79 A sociedade de consumo é fruto das modificações econômicas, sociais e culturais que transformaram a sociedade ocidental pré-industrial desde o século XIX e abriga um processo denominado de “espetacularização do consumo”. Guy Debord (1997) estudou o caráter espetacular do capitalismo, mostrando estar ele ligado à ótica da acumulação do capital. Afirma que o espetáculo une o lado da produção ao lado do consumo, transformando indivíduos em consumidores plenos; que ele é produzido pela indústria cultural e atinge os indivíduos em praticamente todos os atos de sua vida cotidiana, sendo quase que onipresente. 1683 incentivam a uma aquisição contínua de bens e serviços, como forma de sustentar a produção e o crescimento econômico. E a maior parte destas influências decorre das técnicas de marketing. Assim, plenamente integrada ao modo de produção capitalista e inegavelmente necessária à economia de mercado, a publicidade adquire cada vez mais espaço e influência na contemporaneidade, quando os meios de comunicação têm se diversificado e a circulação da informação tem se intensificado em proporções jamais vistas. Nesse contexto, os efeitos da publicidade sobre a sociedade também são majorados, de forma que eventuais ilicitudes passam a ter um potencial lesivo muito mais significativo. A publicidade é o alicerce que serviu de base para a constituição deste tipo de sociedade e tem inegável influência no incentivo e, até mesmo, na formação de gostos e costumes, podendo, inclusive, chegar a potencializar hábitos nocivos como o do tabagismo na sociedade em que está inserida; de tal forma que, mesmo com todo o potencial maléfico das inúmeras substâncias agressivas presentes nos produtos fumígenos, a publicidade pode alcançar sucesso no mote de persuadir pessoas a consumirem-nos e, além de consumir, a convencer outras pessoas a fazer o mesmo, chegando, inclusive, ao ponto de acreditar que o costume de fumar poderia vir a ser elegante e charmoso. Assim, no caso do tabaco no Brasil, a publicidade foi protagonista no fenômeno de disseminação do hábito de fumar e, mais, na sua glamorização, em que pese todos os conhecidos, comprovados e contundentes malefícios que o fumo causa à saúde. Ela foi definitiva na “criação” de um estilo de vida e na formação de uma imagem que associava o tabagismo ao sucesso e ao bemestar. Conseguiu, desta forma, a “façanha” de auxiliar significativamente o incremento do vício do tabagismo na sociedade, mesmo entre aqueles que nunca haviam tido contato direto com a nicotina e o alcatrão, substâncias que, de outra forma, dificilmente teriam o poder, por si só, de despertar a atenção e a curiosidade entre tantas pessoas que ainda não as tivessem sequer experimentado. 1684 E, diante das, então, implicações perniciosas que este tipo de publicidade pôde trazer à sociedade brasileira, que mecanismos de controle específicos estavam disponíveis e/ou foram acionados, com maior ou menor grau de eficiência, de forma a, pelo menos, abrandar seus efeitos? Ante as garantias constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 170 CF/88), bem como das disposições referentes às possíveis restrições, genericamente, à publicidade de produtos que possam ser nocivos à saúde e, especificamente, à publicidade do tabaco (art. 220 CF/88), como se processou o controle da publicidade dos produtos fumígenos no mote da proteção do consumidor no Brasil? 2 PUBLICIDADE A palavra publicidade deriva de “público”, do latim publicus, e expressa o ato de tornar público, vulgarizar, divulgar. Em um primeiro momento, este termo foi empregado na sua acepção jurídica, adquirindo conotação comercial apenas no início do século XIX, quando a palavra “propaganda”, associada aos abusos e métodos de divulgação das ideias nazi-fascistas, tornou-se indesejável. Segundo Vidal Serrano Nunes Júnior (2001, p. 16), publicidade é “o ato de comunicação, de índole coletiva, patrocinado por ente público ou privado, com ou sem personalidade, no âmago de uma atividade econômica, com a finalidade de promover, direta ou indiretamente, o consumo de produtos e serviços”; propaganda, por outro lado, é “toda forma de comunicação, voltada a público determinado ou indeterminado, que, empreendida por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, tenha por finalidade a propagação de ideias relacionadas à filosofia, à política, à economia, à ciência, à religião, à arte ou à sociedade”. Valéria Chaise (2001, p. 8) conceitua publicidade como “a forma ou meio de comunicação com o público que tem como objetivo promover a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço”. E Cláudia Lima Marques (1999, p. 345) a define como “toda a informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado”. 1685 Pode ser institucional ou promocional, dependendo do objetivo que persegue. A institucional é aquela que pretende institucionalizar a marca, anunciando a própria empresa, e não um produto. A promocional, por sua vez, objetiva promover a venda de produtos e serviços. Além disso, existem variadas técnicas publicitárias, entre as quais se pode citar o teaser, o puffing, a publicidade redacional, a propaganda subliminar, a publicidade comparativa e o merchandising. 2.1 A Publicidade na Constituição Federal O art. 5º da nossa Constituição Federal determina ao Estado, em seu inc. XXXII, a promoção, na forma da lei, da defesa do consumidor. A norma se insere no quadro dos direitos e garantias fundamentais outorgados pela Constituição e, portanto, teve vigência imediata. Na mesma esteira, o seu art. 170, ao definir os fundamentos da ordem econômica e lhe indicar a finalidade, destaca, como um de seus princípios essenciais, a defesa do consumidor. Segundo Walter Ceneviva (1991), o art. 170 reforça tal finalidade ao reiterar o mencionado no art. 5º, mas assegura a todos, simultaneamente, o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, afirmando, outrossim, a liberdade da concorrência, que se pressupõe leal. O art. 48 do Ato das Disposições Transitórias determinou o prazo de 120 dias para que o Congresso Nacional elaborasse o Código de Defesa do Consumidor. O prazo foi, no entanto, desrespeitado pelos próprios parlamentares que o determinaram, mas serviu como indício das preocupações que, em certo momento da história nacional (1988), privilegiaram as relações de consumo de maneira a impedir abusos que, então, nelas despontavam. Nas palavras de Ceneviva: Com o desenvolvimento da sociedade industrial, ficou evidente que o consumidor, tomado individualmente, não tinha condição qualificada para defender seus direitos contra eventuais prejuízos advindos do consumo ante fornecedores ou mais poderosos ou providos de meios e conhecimentos técnicos cujo enfrentamento se mostrava excessivamente oneroso. Constatado que havia interesses comuns no 1686 universo dos consumidores, compreendeu-se que eram defensáveis coletivamente, até mesmo quando não considerados um a um. Sob inspiração da doutrina estrangeira mais avançada, colheu-se, na doutrina pátria a noção dos interesses difusos – de amplo espectro – compreendendo bens de vida juridicamente relevantes e, por isso, dignos de proteção do Direito, embora pertencentes a pessoas sem vínculo jurídico entre elas e até sem conhecimento obrigatório das recíprocas necessidades. A Constituição de 1988 incorporou os interesses coletivos à sua normatividade, ora lhes dando essa denominação, ora os chamando de difusos. (CENEVIVA, 1991, p. 83). O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi finalmente legislado no ano de 1990, por meio da Lei n.º 8.078, arraigado a princípios constitucionais e, mais especificamente, aos do Direito do Consumidor, incrementando o ordenamento jurídico pátrio, regulando a publicidade e balizando a caracterização da publicidade disfarçada (art. 36), bem como das ilicitudes de suas manifestações (art. 37) – enganosidade e abusividade - de forma a viabilizar o seu controle legal, que veio a se somar ao sistema autorregulamentar. Assim, o legislador brasileiro, através do CDC, rechaçou a publicidade enganosa ou abusiva em todos os níveis de tutela, ensejando a aplicação de sanções administrativas, dentre as quais a contrapropaganda, propiciando a retirada do ar de publicidades viciadas, com eventuais ressarcimentos por danos causados aos consumidores, vinculando o fornecedor à oferta publicitária, criminalizando determinadas condutas e criando mecanismos processuais para otimizar o acesso à justiça. Nas palavras de Walter Ceneviva (1991, p. 86), “vieram a reboque da falta de sintonia entre o direito escrito e os fatos sociais, pois era muito anterior a necessidade provocada pelas transformações sócio-econômicas, de suprir as deficiências do direito privado para garantir a massa crescente de novos conflitos causada pelo consumismo”. Quanto à livre criação publicitária, a Constituição protege, como direitos fundamentais, em seu art. 5º, a manifestação do pensamento e a liberdade de expressão. Pelo inciso IX do art. 5º, o constituinte definiu em termos amplos os contornos do direito à liberdade de expressão, que já fora previsto no seu inciso IV. Conforme Gilmar Mendes (MENDES, COELHO e BRANCO, 2007, p. 351), “o âmbito de proteção da liberdade de expressão é amplo, abarcando todos os 1687 atos não violentos que tenham como objetivo transmitir mensagens, bem como a faculdade de não se manifestar”. Para Daniel Sarmento (2014), existem diferentes razões de ordem moral e pragmática que dão esteio à proteção da liberdade de expressão. Trata-se, em primeiro lugar, de uma garantia essencial ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade da pessoa humana: “Com efeito, a possibilidade de cada indivíduo interagir com o seu semelhante tanto para expressar as próprias ideias e sentimentos como para ouvir aquelas expostas pelos outros, é vital para a realização existencial” (SARMENTO, 2014, p. 255). Outra razão de grande relevância é a garantia da democracia, que pressupõe um espaço público aberto, plural e dinâmico, no qual haja o livre confronto de ideias, o que se torna possível apenas sob a condição da garantia da liberdade de expressão. A publicidade também é protegida pela liberdade de expressão. Com efeito, há quem defenda o contrário, por entender que a publicidade não está protegida pela liberdade de expressão pelo fato de que ela não objetiva a discussão de ideias, mas sim a obtenção de lucro por parte de agente econômicos80. Levanta-se, ainda, a hipótese de que a publicidade não gozaria dessa proteção porque se volta, precipuamente, para a criação artificial de desejos e necessidades contingentes nos consumidores, nada tendo a ver com o nobre propósito da liberdade de expressão, de tornar possível o debate de temas de interesse público. Contudo, predomina o entendimento de que tal proteção se estende à publicidade, mesmo que ela não esteja no epicentro desta direito fundamental. Nesse sentido, Daniel Sarmento, ao colaborar em obra Coordenada por José J. G. Canotilho sobre a Constituição Federal (CANOTILHO, 2014), comenta: [...] é importante ressaltar que, numa sociedade capitalista, a busca de ganhos econômicos está também presente em diversas outras atividades comunicativas desenvolvidas por particulares, cuja cobertura pela liberdade de expressão ninguém questiona. Ademais o domínio da liberdade de expressão não se circunscreve aos temas considerados de interesse público, abrangendo todos os subsistemas sociais, inclusive o econômico. E não é uma exclusividade do discurso publicitário a tentativa de influenciar as atitudes e condutas humanas, pois esta é uma característica presente, em maior ou menor escala, na comunicação que 80 Nesse sentido, R. A. Shiner, da Universidade de Oxford (SHINER apud SARMENTO, 2014, p. 274). 1688 ocorre nos mais variados domínios, como o político, religioso, artístico, etc.. Não bastasse, a publicidade comercial, quando despida de vícios, desempenha um papel importante que tem nexo íntimo com os valores da liberdade de expressão, que é municiar o indivíduo com informações para que ele possa, a partir de suas próprias valorações, realizar escolhas autônomas sobre o que é bom para o seu próprio consumo. (SARMENTO, 2014, p. 274). De fato, a publicidade não se situa no epicentro do direito fundamental à liberdade de expressão, como ocorre, por exemplo, com os discursos político, artístico, religioso ou científico. Está, é verdade, em uma zona mais afastada, na qual a proteção constitucional é menos intensa (SARMENTO, 2014). E é por este motivo que podem ser aceitas restrições mais contundentes à liberdade de expressão nesta seara, como as voltadas à proteção ao consumidor (arts. 5º, XXXII e 170, V, da CF). Entre tais restrições, sobressaem as insculpidas no CDC, já referidas acima. Há restrições, inclusive, de imposição constitucional, que, referentes à comunicação social81, estão prescritas nos parágrafos 3º, inc. II, e 4º do artigo 220 da Constituição, em nome da tutela de bens jurídicos relevantes, como a saúde, o meio ambiente e a proteção à criança e ao adolescente. Neste contexto, Daniel Sarmento (2014, p. 275) salienta, porém, que “é sempre necessário analisar a validade de cada medida restritiva, o que envolve tanto o respeito à reserva da lei formal como o acatamento do princípio da proporcionalidade”. 2.2 Publicidade Ilícita Consoante o regime jurídico estabelecido pelo CDC, toda publicidade que violar os deveres jurídicos nele definidos, na realização, produção e divulgação de Na lição de José Afonso da Silva, comunicação Social é a denominação mais apropriada da 81 chamada “comunicação de massa”, mas o sentido permanece como o de comunicação destinada ao público em geral, transmitida por processo ou veículo, dito meio de comunicação social. O art. 399 do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos bem definia seu conceito e natureza, ao estatuir que “o sistema de comunicação social compreende a imprensa, o rádio e a televisão e será regulado por lei, atendendo à sua função social e ao respeito à verdade, à livre circulação e à difusão universal da informação, à compreensão mútua entre os indivíduos e aos fundamentos éticos da sociedade”. (SILVA, 2009, p. 824). 1689 mensagens publicitárias, será ilícita82. Existem duas espécies de publicidade ilícita: a publicidade enganosa e a publicidade abusiva, referidas no CDC, no caput do seu art. 3783. A definição de consumidor equiparado, estabelecida no art. 29 e no parágrafo único do art. 2º deste Código, calou fundo na jurisprudência brasileira em matéria de publicidade ilícita conforme salienta Cláudia Lima Marques: Em um país de tantas diferenças sociais, econômicas e culturais, a jurisprudência brasileira foi exemplar ao estabelecer que a publicidade abusiva e enganosa atinja a todos, mesmo aqueles excluídos do consumo, àqueles aos quais a publicidade não se dirige, pois não possuem as condições para consumir, mas que através das televisões, placares e outdoors deste imenso país são atingidos, expostos a estas práticas comerciais abusivas. Em uma belíssima visão de plenitude do consumidor equiparado como sujeito de direitos (em potencial), como pessoa, mais do que como homo economicus ou ser razoável, estabeleceu uma visão de consumidor digno. (MARQUES, 1999, p. 675). Os contornos da publicidade ilícita, ao serem definidos no CDC, são, também, frutos de um novo paradigma objetivo de boa-fé, confiança e transparência, que passou a dominar o regime da publicidade no Brasil. 2.2.1 Publicidade Enganosa Publicidade enganosa é aquela que leva ou induz o consumidor a erro na aquisição do bem ou serviço. Para ser determinada como enganosa, impõe-se a aferição da intensidade enganosa inserida nela. Ou seja, envolve, necessariamente, para o intérprete, a verificação do grau de engano nela contido (CENEVIVA, 1991, p. 116). Segundo Cláudia Lima Marques (1999, p. 676), “a característica principal da publicidade enganosa, segundo o CDC, é a de ser suscetível de induzir ao erro o consumidor, mesmo que seja através de suas ‘omissões’. A interpretação dessa norma deve ser necessariamente ampla, uma vez que o ‘erro’ é a falsa noção da realidade, falsa noção esta potencial, formada na mente do consumidor por ação 82 Embora cumpra uma importante função social e econômica na sociedade, a publicidade deve sempre pautar-se pelos princípios básicos que guiam as relações entre fornecedores e consumidores, especialmente o da boa-fé (MARQUES, 1999). 83 Art. 37, CDC: É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. 1690 da publicidade”. Nesse sentido, o CDC proíbe a publicidade enganosa, em seu art. 37. Walter Ceneviva (1991, p. 116) explica que “a enganosidade se contém no falso da mensagem, inteiro ou parcial”. Segundo ele, “o elemento objetivo do engano estará presente quando a publicidade se mostrar capaz de induzir em erro o consumidor, pessoa física ou jurídica, a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem e preço do produto e do serviço” (CENEVIVA, 1991, p. 116). A proibição da publicidade enganosa vem ao encontro do objetivo do CDC de oferecer garantias ao consumidor, no sentido de que ele possa fazer escolhas livres e racionais. Existem dois tipos básicos de publicidade enganosa: por comissão e por omissão. Na publicidade enganosa por comissão, o fornecedor afirma algo capaz de induzir o consumidor em erro, ou seja, diz algo que não é. Já na publicidade enganosa por omissão, o anunciante deixa de afirmar algo relevante e que, por isso mesmo, induz o consumidor em erro, isto é, deixa de dizer algo que é (BENJAMIN, 2001, p. 289). No ensinamento do mestre Antônio Herman BenjamIn: Na caracterização da publicidade enganosa não se exige a intenção de enganar por parte do anunciante. É irrelevante, pois, sua boa ou má-fé. A intenção (dolo) e a prudência (culpa) só ganham destaque no tratamento penal do fenômeno. Logo, sempre que o anúncio for capaz de induzir o consumidor em erro – mesmo que tal não tenha sido querido pelo anunciante -, caracterizada está a publicidade enganosa. Assim ocorre porque o que se busca é a proteção do consumidor e não a repressão do comportamento enganoso do fornecedor. E, para fins daquela, o que importa é uma análise do anúncio em si mesmo, objetivamente considerado. Já para esta, diversamente, a intenção ou culpa do agente é sopesada. Tudo o que se exige é prova de que o anúncio possui a tendência ou capacidade para enganar, mesmo que seja uma minoria significante de consumidores. A essência do desvio (a enganosidade) não é a má-fé, a negligência, ou mesmo o descumprimento de um dever contratual ou paracontratual. Em suma: uma prática é enganosa mesmo quando inexiste qualquer intenção de enganar. Pelo mesmo raciocínio, não elide a enganosidade os esforços efetuados pelo anunciante no sentido de preveni-la. Finalmente, o fato de ser uma determinada prática enganosa corrente no mercado, não dá salvo-conduto aos seus adeptos para utilizá-la em detrimento dos consumidores. (BENJAMIN, 2001, p. 290). Uma mensagem publicitária pode ser enganosa não apenas quando diz expressamente algo capaz de induzir em erro, mas também quando, mesmo não 1691 o dizendo claramente, a informação realmente passada difere do significado real da mensagem. Por outro lado, como referido, a publicidade pode ser enganosa por omissão. Se ela pode ser enganosa comissivamente em virtude “do que diz”, pode também enganar por omissão em função “do que não diz”, pela omissão de dados essenciais. Importante ressaltar que a proteção do consumidor contra publicidade enganosa leva em conta somente sua capacidade de indução em erro. A enganosidade é aferida, pois, em abstrato. Ou seja, não se exige que o consumidor tenha, de fato e concretamente, sido enganado. Nas palavras de Antônio Herman Benjamin (2001, p. 291), sobre a publicidade enganosa, “o que se busca é sua ‘capacidade de induzir ao erro o consumidor’, não sendo, por conseguinte, exigível qualquer prejuízo individual. O difuso – pela simples utilização da publicidade enganosa -, presumido jure et de jure, já é suficiente”. Paulo Jorge Scartezzini Guimarães (2001, p. 117) aponta que o legislador sancionou duas espécies de publicidade ilícita dentro do gênero “enganosa”. Existe a publicidade falsa, que é aquela identificada pela não-veracidade da mensagem comunicada; e a enganosa em sentido estrito, que consiste naquela que, de qualquer modo, mesmo por omissão, tenha potencial de induzir o consumidor em erro84. A publicidade falsa também não se confunde com a fraudulenta: na primeira, há descrição errada do objeto ou omissão de dados relevantes, com culpa; na segunda, a ação antijurídica tem o fito de se aproveitar da boa-fé alheia, com dolo (CENEVIVA, 1991, p. 118). 2.2.2 Publicidade Abusiva A publicidade abusiva é aquela que contém mensagens ofensivas aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Não visa a proteger os aspectos materiais do consumo (o bolso do consumidor), mas outros valores tidos como relevantes para a sociedade, tais como a igualdade das pessoas, a defesa 84 No mesmo sentido, Maria Luiza de Sabóia Campos (1996, p. 226) e Junqueira de Azevedo (1996, p. 29). 1692 ambiental, a proteção dos direitos da criança ou dos hipossuficientes, etc. (RODYCZ, 1994, p. 67). Na lição de Cláudia Lima Marques (1999, p. 680), “a publicidade abusiva é, em resumo, a publicidade antiética, que fere a vulnerabilidade do consumidor, que fere valores sociais básicos, que fere a própria sociedade como um todo”. O Código de Defesa do Consumidor não define a publicidade abusiva. Esta opção, consoante o ensinamento de Vidal e Yolanda Serrano (NUNES JUNIOR; SERRANO, 2003, p. 120), “prende-se ao fato de que qualquer definição poderia ficar aquém das expectativas do legislador. Deste modo, optou por uma enumeração, que, além de arrolar hipóteses, serve de parâmetro para a identificação de outras mensagens publicitárias de caráter abusivo”. Tendo em vista que, ao exemplificar a propaganda abusiva, o legislador utilizou a expressão entre outras, o elenco das cláusulas abusivas não é taxativo. Sendo assim, o juiz poderá identificar outras hipóteses de publicidade abusiva, dependendo dos casos concretos. Nas palavras de Wilson Carlos Rodycz (1994, p. 69), “vale frisar que a enumeração de hipóteses é meramente exemplificativa, podendo haver outras que igualmente serão taxadas de abusivas e ilegais”. Desta forma, pode-se considerar abusiva a publicidade quando ela instiga ou estimula, de modo eficaz, uma das ações indicadas no § 2º do art. 37 do CDC, quando desrespeita valores ambientais, ou quando é capaz de causar riscos coletivos aos consumidores85. Assim, o anunciante que não obedece ao disposto no § 2º do art. 37 está, violando, também, o princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º da Constituição Federal. 3 CONTROLE DA PUBLICIDADE A publicidade patológica pode ser objeto de controle em três esferas 85 A respeito da publicidade abusiva, Roberta Densa (2007, p. 102) assevera que o legislador, sabedor de que a publicidade é meio de influenciar pensamentos, valores, comportamentos, e modificar condutas na sociedade de consumo, entendeu por bem intervir e controlar toda vez que aqu ela se demonstrar abusiva, para que não haja ameaça à sociedade e aos valores morais, que são o alicerce dela, os quais os anunciantes devem respeitar, em nome da própria estabilidade jurídico-social vigente. 1693 distintas: judiciária, administrativa e privada (RODYCZ, 1994, p. 71). Consoante ensina o magistrado Wilson Carlos Rodycz, Na esfera judiciária, o instrumento processual mais importante à disposição do consumidor é a ação civil pública (Lei n.º 7.347/85), para a qual estão legitimados ativamente tanto o Ministério Público como as associações de consumidores constituídas com essa finalidade; por essa via é possível buscar a cessação da veiculação de campanha publicitária considerada abusiva, com pedido de concessão de liminar, a imposição de contrapublicidade e a reparação dos danos causados. Há isenção de custas judiciais e de sucumbência em caso de improcedência da ação, salvo litigância de má-fé. No âmbito criminal, há quatro fatos típicos relativos à publicidade (arts. 67 a 69, CDC), quais sejam: fazer ou promover publicidade enganosa; idem em relação à publicidade abusiva; fazer ou promover publicidade capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança; deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade. (RODYCZ, 1994, p. 71-72). Na esfera administrativa, a publicidade ilícita pode vir a ser objeto de ações de controle por parte dos órgãos administrativos criados para tal fim. Dentre outras sanções administrativas, a lei prevê a possibilidade de imposição de contrapropaganda. Já no âmbito privado, o controle cabe ao CONAR (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), o qual aplica seu Código de Ética. O CONAR pode recomendar a sustação da divulgação de anúncio que considere ofensivo a seu estatuto, bem como impor outras sanções desse jaez (RODYCZ, 1994, p. 72). A proteção ao consumidor em matéria publicitária advém, portanto, das leis, das entidades estatais e de instituições criadas para sua defesa e do autocontrole de anunciantes e agências de propaganda (CENEVIVA, 1991, p. 88). 3.1 Sistemas de Controle Existem três sistemas de controle da publicidade atualmente em prática em nossa sociedade: o sistema autorregulamentar (privado), o sistema legal (estatal) e o sistema misto. O entendimento de que a publicidade era uma simples forma de promoção de vendas que não pressupunha qualquer compromisso ou responsabilidade de 1694 que a promovia, está completamente superado em todas as ordens jurídicas que primam pelos interesses dos consumidores. Conforme ensina Valéria Chaise: Várias práticas e mecanismos do mercado, até as primeiras décadas do século XX eram ignoradas, como as condições gerais de contrato, contrato celebrado mediante formulários e cláusulas predispostas, aliadas à influência que exerce a publicidade para impor uma marca, para orientar o público a utilizar determinado produto, inclusive para despertar a vontade de adquirir bens e serviços que, de outro modo, teria ignorado. Tudo isso confirma a necessidade, dentro da política de proteção ao consumidor de haver certo controle sobre a publicidade (CHAISE, 2001, p. 24). Ao elaborar o CDC, o legislador brasileiro conferiu à publicidade a importância que ela tem hoje no mercado. 3.1.1 Sistema Autorregulamentar O Sistema Autorregulamentar consiste no controle interno da publicidade realizado por órgão privado e ligado ao próprio setor publicitário. Nesse sistema, códigos de ética ou de conduta promovem a autorregulamentação ou autodisciplina da atividade. Valéria Chaise destaca que: A autorregulamentação foi decorrência da necessidade de manter a confiança dos consumidores nas mensagens veiculadas. Os profissionais da publicidade se aperceberam de que, no momento em que a publicidade deixasse de convencer os consumidores, não mais cumpriria sua função primordial. Um dos objetivos da autorregulamentação, portanto, é melhorar a imagem social da publicidade. São características fundamentais da autorregulamentação: a) a presença de uma associação de empresários estabelecida segundo o direito privado e de livre adesão; b) a existência de regras éticas para garantir a correção das mensagens e evitar a arbitrariedade dos órgãos de controle; c) a criação de órgão ou órgãos de controle competentes para vigiar o respeito às regras estabelecidas; d) a capacidade para impor sanções aos infratores; e) a existência de poder de pressão para o cumprimento da sanção. (CHAISE, 2001, p. 25-26). Uma vantagem do sistema autorregulamentar é a possibilidade que ele traz para o consumidor a solução do conflito mediante a arbitragem e a composição, evitando as custas e a morosidade do procedimento judicial, tal qual o efeito oferecido por um Termo de Ajustamento de Conduta ao evitar uma Ação Civil Pública junto ao Ministério Público. De outra banda, existe a desvantagem, nesse sistema, da falta de coerção ou de obrigatoriedade de vinculação das empresas e dos profissionais às sanções impostas pelo Código de Autorregulamentação. 1695 No Brasil a autorregulamentação publicitária cabe ao Conselho Nacional de Autorregulamentação publicitária (CONAR), criado em 1980, e é regida pelo Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que consiste em um conjunto de normas de caráter privado aprovadas por entidades representativas do mercado publicitário. O CONAR é uma associação civil formada por agentes do mercado publicitário, como anunciantes, agências e veículos de comunicação, que, espontaneamente, aderem ao quadro social. Conforme a já referida desvantagem do sistema autorregulamentar, os atos do CONAR não têm força cogente, constituindo-se apenas como recomendações, opiniões, conselhos ou pareceres. O art. 50 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária prevê certas penalidades aos possíveis infratores, quais sejam: a) advertência; b) recomendação de alteração ou correção do anúncio; c) recomendação aos veículos no sentido de que sustem a divulgação do anúncio; d) divulgação da posição do CONAR com relação ao anunciante, à agência e ao veículo, através de veículos de comunicação, em face do não acatamento das medidas e providências preconizadas. Porém, a imposição de qualquer dessas sanções tem caráter somente moral, já que o CONAR não tem o poder de determinar que uma determinada publicidade ilícita deixe de ser veiculada. 2.1.2 Sistema Legal O sistema legal é aquele pelo qual a regulamentação da publicidade cabe exclusivamente ao Estado. Por esse sistema, o controle das práticas ilícitas é viabilizado através de leis esparsas ou codificadas. A grande vantagem do sistema legal é o poder coercitivo emanado do Estado. Consoante o ensinamento de Valéria Chaise (2001, p. 28), é tão óbvia a necessidade da existência do sistema legal para o controle das práticas publicitárias, que a “Diretiva da Comunidade Econômica Européia nº 84/450 repudia o modelo exclusivamente autorregulamentar e sugere que os EstadosMembros estipulem meios adequados e eficazes para o controle da publicidade enganosa, os quais seriam, em síntese, o controle judicial e o controle 1696 administrativo. A Diretiva esclarece, também, que o controle administrativo e judicial não exclui o controle voluntário”. 2.1.3 Sistema Misto Nesse sistema, somam-se o controle voluntário da publicidade (autorregulamentar) com o controle estatal (legal). Segundo Valéria Chaise (2001, p. 25-26), “o CDC adotou o sistema misto, ressalvando-se que o controle estatal, que tem lugar no sistema misto brasileiro, só diz respeito às publicidades abusivas e enganosas”. Consoante a lição da mestre Judith Martins-Costa: A alocação, na Lei n.º 8.088/90, do direito dos consumidores à proteção contra a publicidade enganosa e abusiva (art. 6º, IV) e de seus consectários – o princípio da identificação da mensagem publicitária (art. 36), o da veracidade da mensagem publicitária (art. 37, §1º), o da vinculação contratual da mensagem (art. 30), o da não abusividade (art. 37, §2º), o do ônus probandi a cargo do fornecedor (art. 38) e o da correção do desvio publicitário (art. 56, VII) – suscitou esforços interpretativos conducentes à definição de certos pontos de apoio ao preenchimento do seu conceito, uma vez que, sob uma mesma expressão, “publicidade enganosa”, visou a lei interditar uma série de práticas faticamente distintas entre si. (MARTINS-COSTA, 1993, p. 7980). O fato de a publicidade abusiva ferir valores sociais faz com que a defesa do consumidor contra este tipo de ilicitude possa ser, também, coletiva. Assim, os Ministérios Públicos Estadual e Federal e as Associações de Defesa dos Consumidores fazem uso constante de ações civis públicas para atacar publicidades abusivas no mercado brasileiro86-87. De forma que, no Brasil, a parte do controle estatal do sistema misto conta com a Ação Civil Pública como um instrumento fundamental para o controle da publicidade ilícita, para qual tem legitimidade o Ministério Público e as associações de proteção aos consumidores. Conforme Valéria Chaise: 86 A pioneira Associação de Proteção ao Consumidor (APC), de Porto Alegre, moveu uma Ação Civil Pública contra a publicidade veiculada pela televisão, que incitava crianças à pratica de delitos (invasão de supermercados etc.) para poder consumir produtos alimentícios do fornecedor. A ação constituiu verdadeiro leading case no Direito brasileiro, pelo menos no campo civil; vide Revista de Direito do Consumidor, n. 1. (MARQUES, 1999, p. 680). 87 Mencione-se a atuação dos PROCONS, por exemplo a ação do PROCON – PGE/SP contra a publicidade do “Tênis da Xuxa” , que incentivava a destruição de sapatos velhos pelas crianças em liquidificadores de forma a receber os novos tênis. (MARQUES, 1999, p. 680). 1697 Por essa via, é possível buscar a cessação de veiculação de campanha publicitária considerada ilegal, com pedido de concessão de liminar de plano ou após justificação prévia, devendo, nessa última hipótese, ser citado o réu, conforme o § 3º do art. 84 do CDC. É possível, também, a imposição de contrapublicidade e a reparação de danos morais e patrimoniais causados, conforme o art. 6º, inciso VI do CDC. (CHAISE, 2001, p. 31). A Constituição Federal de 1988 incorporou os interesses coletivos à sua normatividade, seja por tal denominação, seja chamando de difusos. Mas também os caracterizou sob outras formas: interesse coletivo na atividade econômica do Estado (art. 173), interesses da coletividade servidos pelo sistema financeiro (art. 192), atividades fundamentais do Ministério Público na defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127), ou na promoção do inquérito civil ou da ação civil pública para proteção dos interesses difusos ou coletivos (art. 129, III). Outrossim, o art. 5º da Constituição, em seu inciso XXI, defere legitimidade às entidades associativas, quando expressamente autorizadas, para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente. 4 O CASO DO TABACO O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de tabaco e o principal exportador. A cultura do tabaco, claramente, tem grande importância econômica, com significativos reflexos na geração de empregos e de tributos. É vultoso, portanto, o porte da indústria do tabaco no país, o que traz evidentes implicações econômicas e, inclusive, políticas. Ao mesmo tempo, o tabagismo é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a principal causa de morte evitável no mundo. A organização estima que um terço da população mundial adulta seja fumante (47% de toda a população masculina mundial e 12% da feminina)88. No Brasil, a cada hora, cerca de dez pessoas morrem em decorrência de doenças relacionadas ao fumo. São cerca de 200 mil mortes anuais89. Além de todos os dramas familiares que as 88 Fonte: Portal Brasil. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/saude/2009/11/tabagismo1> Acesso em 04 jun 2014. Fonte: Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Disponível em <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=dadosnum&link=mundo.htm> Acesso em 04 jun 2014. 89 1698 enfermidades causadas pelo tabagismo geram, o custo do tratamento destas doenças representa um grande fardo tanto para os pacientes quanto para o Estado. A fumaça do cigarro tem mais de 4.700 substâncias tóxicas. O alcatrão, por exemplo, é composto de mais de 40 compostos cancerígenos. Já o monóxido de carbono (CO) em contato com a hemoglobina do sangue dificulta a oxigenação e, consequentemente, ao privar alguns órgãos do oxigênio, causa doenças como a aterosclerose (que obstrui os vasos sanguíneos). A nicotina é considerada pela OMS uma droga psicoativa que causa dependência. Ela também aumenta a liberação de catecolaminas, que contraem os vasos sanguíneos e aceleram a frequência cardíaca, causando hipertensão arterial. Enfim, o tabagismo está relacionado a mais de 50 doenças sendo responsável por 30% das mortes por câncer de boca, 90% das mortes por câncer de pulmão, 85% das mortes por bronquite e enfisema, 25% das mortes por doença do coração e 25% das mortes por derrame cerebral. Está incluído no grupo dos transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa, segundo a Décima revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID), sob o código CID-1090. Segundo o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), o tabaco também tem relação com a impotência sexual e infertilidade masculina. Os mesmos prejuízos também são atribuídos ao cachimbo e ao charuto. Apesar de não serem tragáveis, possuem uma concentração de nicotina maior, que é absorvida pela mucosa oral. A indústria do tabaco frequentemente se utiliza de argumentos relacionados a direitos humanos para defender suas práticas. Assim, resguardam a premissa segundo a qual as pessoas teriam o direto de fumar onde quisessem e, as empresas, o direito de anunciar seus produtos livremente, em decorrência do exercício da liberdade de expressão, como um dos direitos fundamentais, relacionado à dignidade humana. Sob esse ponto de vista, as empresas do setor 90 Fonte: Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID) - Informações Sobre Drogas/Tipos de Drogas/Tabaco. Disponível em <http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11287&rastro=IN FORMA%C3%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS%2FTipos+de+drogas/TabacoMinistério da Saúde> Acesso em 06 jun 2014 1699 do tabaco estariam autorizadas a fazer publicidade livremente91. É fato que, nas palavras de Daniel Sarmento, Toda e qualquer conteúdo de mensagem encontra-se prima faciesalvaguardado constitucionalmente, por mais impopular que seja. Aliás, um dos campos em que é mais necessária a liberdade de expressão é exatamente na defesa do direito à manifestação de ideias impopulares, tidas como incorretas ou até perigosas pelas maiorias, pois é justamente nestes casos em que ocorre o maior risco de imposição de restrições, como assentou com propriedade o STF, no julgamento da ADPF 187, que versou sobre a chamada “Marcha da Maconha” (SARMENTO, 2014, p. 256). No entanto, liberdade de expressão não significa liberdade comercial. A publicidade de produtos perigosos, mas legais, como determinados venenos ou armas de fogo, não é permitida. E muitos produtos farmacêuticos que, inclusive, podem salvar vidas estão excluídos de várias formas de publicidade. Como referido acima, o direito fundamental à liberdade de expressão pode ser relativizado diante da necessidade de tutela de bens jurídicos da importância da saúde e do meio ambiente e admite restrições na medida em que possa vir a redundar em potencial lesivo a outrem. A liberdade de expressão incide em diferentes contextos, que podem ir desde as interações intersubjetivas pessoais até a atuação dos meios de comunicação de massa. Em matéria de comunicação realizada em contextos intersubjetivos, a liberdade de expressão destina-se a proteger tanto os interesses do emissor da mensagem, que, então, pode se manifestar livremente, como os do seu receptor, que, assim, pode ter aceso a ideias e pontos de vista diferenciados. No entanto, em matéria de comunicação social, o foco é a proteção e a promoção dos direitos e interesses dos cidadãos em geral que constituem o público-alvo dos veículos de mass mídia, ficando em segundo plano a tutela dos interesses dos detentores desses veículos (SARMENTO, 2014). Não obstante a garantia constitucional da liberdade de expressão, consoante preleciona Daniel Sarmento: [...] o próprio constituinte admitiu a instituição de restrições à propaganda em questão (sic), notadamente em relação a produtos, prática e serviços que possam ser nocivos a saúde e ao meio ambiente. O constituinte, neste ponto, visou simultaneamente a dois objetivos. Em primeiro lugar, quis corrigir uma assimetria de informações existentes entre o fornecedor 91 Fonte: Aliança de Controle do Tabagismo (ACT). Disponível em <http://www.actbr.org.br/uploads/conteudo/630_ColombiaCorteConstitucional_publicidade_C830-10.pdf> Acesso em 08 jun 2014 1700 e o consumidor, já que estes, muitas vezes, não tem como saber os danos que determinados produtos ou serviços acarretam. As restrições à propaganda, portanto, visam a permitir que o consumidor faça uma escolha mais informada no campo do consumo. Em segundo lugar, quis o constituinte proteger outros bens jurídicos extremamente importantes na nossa ordem constitucional, como a saúde e o meio ambiente. Infere-se da Constituição uma autorização para que o legislador busque, através da regulação da propaganda, desestimular o consumo de determinados produtos de efeitos deletérios sobre a saúde humana e meio ambiente, como o tabaco. No que concerne ao tabaco, aliás, a interpretação da Constituição deve considerar a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, promulgada através do Decreto n.º 5.608/2006, em que o país se compromete internacionalmente a adotar medidas restritivas da respectiva propaganda comercial, haja vista a plena convergência axiológica entre dita Convenção e a nossa ordem constitucional. (SARMENTO, 2014, p. 2040). Uma vez dependente da nicotina, o fumante não tem livre escolha sobre o ato de fumar ou não fumar. Após a instalação da dependência, a oportunidade da “escolha”, antes aparentemente clara e idônea, esvai-se sutilmente perante o surgimento da “necessidade”, alavancado pela nicotina, que, de forma dissimulada, transforma a opção em imperativo. A liberdade de fumar é, assim, uma falsa liberdade. E, para além desta constatação, é preciso ter claro que qualquer “liberdade” não inclui o direito de causar prejuízo ao próximo. As evidências de que o fumo passivo também implica em danos à saúde são claras.O fumo passivo aumenta os riscos das mesmas doenças que podem ser causadas pelo fumo ativo. Sete não fumantes morrem por dia em consequência do fumo passivo. O tabagismo passivo aumenta em 30% o risco de câncer de pulmão e em 24% o risco de infarto92. Mesmo diante de todos esses comprovados malefícios provocados pelo tabagismo, a sua publicidade sempre fora liberada. Durante décadas, todas as mídias veiculavam mensagens publicitárias de fumo, cigarros, charutos e assemelhados, avultando o consumo e financiando a produção.Consoante Fernanda Nunes Barbosa e Mônica Andreis (2012, p. 69): As técnicas de indução ao consumo, na maior parte das vezes, trabalham justamente de forma indireta, por meio da promoção da marca, cuja associação com o produto será feita em momento posterior e, frequentemente, sem a completa e adequada percepção do público alvo. Não fosse o papel da publicidade do tabaco definidor para o seu 92 Fonte: Portal Brasil. Disponível em <http://www.brasil.gov.br/saude/2009/11/tabagismo1> Acesso em 04 jun 2014. 1701 consumo, não teria, a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, assinada e ratificada pelo Brasil, referido em seu preâmbulo estarem as Partes "seriamente preocupadas com o impacto de todos os tipos de publicidade, promoção e patrocínio destinados a estimular o uso de produtos de tabaco". O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária nasceu de uma ameaça ao setor: no final dos anos 70, o governo federal pensava em sancionar uma lei criando uma espécie de censura prévia à propaganda. Se a lei fosse implantada, nenhum anúncio poderia ser veiculado sem que antes recebesse um carimbo “De Acordo” ou alguma chancela de anuência do Estado. Respondendo a tal ameaça, o setor providenciou, em 1977, sua autorregulamentação, sintetizada num Código, que teria a função de zelar pela liberdade de expressão comercial e defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os do consumidor. Logo após, em 1980, foi fundado o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), uma ONG encarregada de dar efetividade ao Código93. Consoante o Código, os preceitos básicos que definem a ética publicitária são: - todo anúncio deve ser honesto e verdadeiro e respeitar as leis do país, - deve ser preparado com o devido senso de responsabilidade social, evitando acentuar diferenciações sociais, - deve ter presente a responsabilidade da cadeia de produção junto ao consumidor, deve respeitar o princípio da leal concorrência e - deve respeitar a atividade publicitária e não desmerecer a confiança do público nos serviços que a publicidade presta. O Capítulo III do Código trata das categorias especiais de anúncios e assim estabelece o seu art. 44: Art. 44: Pela sua importância econômica ou social, pelo seu volume, pelas suas repercussões no indivíduo ou na sociedade, determinadas categorias de anúncios devem estar sujeitas a cuidados especiais e regras específicas, além das normas gerais previstas neste Código. Essas regras específicas figuram mais adiante como "Anexos" a este Código e, alguns casos, resultaram de valiosa colaboração de Associações de Classe que prontamente se identificaram com o espírito do presente Código. São eles, pela ordem: [...] 94 Anexo J - Produtos de Fumo ; 93 Fonte: Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Disponível em < http://www.conar.org.br> Acesso em 07 jun 2014. 94 Em relação à publicidade do fumo, o Anexo J assim dispõe: - Não sugerirá que os produtos possuam propriedades calmantes ou estimulantes, que reduzam a fadiga, a tensão ou produzam qualquer efeito similar. - Não associará o produto a ideias ou imagens de maior êxito na sexualidade das pessoas, insinuando o aumento da virilidade ou feminilidade dos fumantes. 1702 As restrições estabelecidas no Anexo J do Código, contudo, são brandas, não representando, assim, reais empecilhos à publicidade dos produtos relacionados ao tabagismo. Tratou-se apenas de alguns pontos específicos, cujas limitações não seriam capazes, por si só, de impedir ou, sequer, intimidar a promoção de tais produtos. De forma que o fomento do hábito do fumo permaneceu sendo exercido pela indústria do tabaco por meio dos mass mídia. Assim, mesmo após a redação do Código e a criação do CONAR, os reclames do setor continuaram sendo produzidos e difundidos nos variados veículos de comunicação, sem restrições mais severas, e em quaisquer horários. Mais do que isso, as imagens de artistas e, mesmo, celebridades fumando costumavam ser veiculadas em programas de televisão, filmes de cinema e outras peças áudio-visuais, fazendo ou não parte de merchandisings, de forma a emprestar um pretenso charme ao ato de fumar, incentivando a sua glamourização. Por outro lado, sendo adotado, no Brasil, o sistema misto de controle da publicidade, a partir de 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, a legislação pátria passou a impor restrições à publicidade do tabagismo. No §4º do seu art. 220, nossa Carta Magna já previa a legislatura restritiva, determinando que a propaganda comercial de tabaco estaria sujeita a restrições legais e deveria conter advertências sobre os malefícios do tabagismo. Contudo, em verdade, não se tratava de sua proibição. Conforme assevera Wilson Carlos Rodycz (1994, p. 71), “a Constituição não proibiu a publicidade de derivados do tabaco [...]. Nos §§3º e 4º do artigo 220, atribui competência ao legislador comum para, através de - Não sugerirá ou promoverá o consumo exagerado ou irresponsável, a indução ao bem-estar ou à saúde, bem como o consumo em locais ou situações perigosas ou ilegais. - Não associará o uso do produto à prática de esportes olímpicos e nem se utilizará de trajes de esportes olímpicos para promoção/divulgação de suas marcas. - Não fará qualquer apelo dirigido especificamente a menores de 18 anos, e qualquer pessoa que, fumando ou não, apareça em anúncio regido por este Anexo, deverá ser e parecer maior de 25 anos. - Não empregará imperativos que induzam diretamente ao consumo. - Na publicidade e nas publicações institucionais e legais, bem como nos anúncios classificados de empresas produtoras de derivados de fumo, não haverá obrigatoriedade de inserção de advertência, conforme facultado por lei, desde que as referidas peças não visem a promoção de marcas de produtos destinados ao público consumidor. (Fonte: Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Disponível em < http://www.conar.org.br> Acesso em 07 jun 2014. 1703 lei federal, regular as restrições que se imporão à publicidade desses produtos”. E essa forma de tratar a questão não é exclusividade brasileira. Em países europeus, adotou-se a mesma regra. Rodycz esclarece que: Essa é a regra verificada também na Europa, onde o Conselho da Comunidade Econômica, com fins de uniformizar as legislações dos países-membros editou várias diretivas, dentre as quais a de nº 89/552, pela qual, embora sem nominar de abusiva, propugnou pela imposição de restrições específicas para a publicidade de bebidas alcoólicas (art. 15), e pela proibição da publicidade televisiva de cigarros e derivados do tabaco (art. 13), bem como a de remédios e tratamentos médicos sujeitos à prescrição médica (art. 14). (RODYCZ, 1994, p. 71). A possibilidade de restrição à publicidade de produtos fumígenos, inaugurada pela Constituição Federal de 1988, foi viabilizada pelo fato de que a propaganda comercial não se enquadra na centralidade da liberdade de expressão, de forma que acaba por merecer uma proteção mais branda. Só assim, diante do princípio da proporcionalidade, seu caráter de “expressão” não chegou a constituir óbice para a restrição promovida pela Carta. Nesse sentido, Daniel Sarmento assevera: As restrições à propaganda devem se conformar ao princípio da proporcionalidade, tanto na sua dimensão mais tradicional, de proibição de excesso, como também na sua faceta de proibição de proteção deficiente. Na análise da ponderação subjacente à regulação da matéria, deve-se levar em conta que a propaganda comercial é aspecto periférico da liberdade de expressão, não sendo protegida tão intensamente pela nossa ordem constitucional, e que, por outro lado, a tutela da saúde e meio ambiente ostenta posição de destaque no sistema de valores da Constituição. Nesta perspectiva, admite-se o controle tanto sobre excessos regulatórios eventualmente cometidos pelo Estado (restrições excessivas à propaganda), como também sobre uma exagerada leniência na disciplina da questão (restrições insuficientes sobre a propaganda). (SARMENTO, 2014, p. 2040). Na esteira da restrição trazida pelo texto constitucional, o CDC, elaborado em 1990, proibiu a publicidade enganosa e abusiva95. A Lei n.º 9.294/96, alterada pelas Leis n.ºs 10.167/00 e 12.546/12, dispôs sobre as restrições ao uso e à propaganda – lato sensu – de produtos fumígenos, nos termos do referido §4º do art. 220 da CF/88. A partir da promulgação da Lei n.º 9.294/96, passou a ser vedada, em todo o território nacional, a propaganda comercial de cigarros, 95 Wilson C. Rodycz salienta que há quem entenda que a publicidade de cigarros e bebidas alcoólicas também estaria proibida pela parte final do §2º do artigo 37 do CDC, que classifica de abusiva a publicidade capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde (RODYCZ, 1994). 1704 cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, com exceção apenas da exposição dos referidos produtos nos locais de vendas. Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 10.167/00, a publicidade destes produtos sofreu mais contundente restrição, passando a ser admitida apenas por meio de pôsteres, painéis e cartazes “na parte interna” dos locais de venda. Ainda com as alterações introduzidas pela Lei n.º 12.546/12 à Lei n.º 9.294/96, também passará a ser exigida, a partir de 1º de janeiro de 2016, a impressão de um texto de advertência adicional, nas embalagens de produtos fumígenos vendidas diretamente ao consumidor, ocupando 30% da parte inferior de sua face frontal,. A lei já determinava a inclusão das cláusulas de advertência destacadas em 100% da face posterior e de uma das laterais das embalagens. Estas restrições e limitações impostas pela legislação, que incrementaram o controle legal da publicidade do tabaco no Brasil, aliadas à majoração da tributação o setor e à proibição do fumo em ambientes fechados, acabaram por redundar em significativos efeitos práticos na mitigação dos malefícios causados pelo tabagismo, tanto no que se refere à saúde dos tabagistas, na esfera individual, quanto no que tange às questões de saúde pública e de implicações sócio-econômicas. Em comparação a todo o longo período no qual o controle da publicidade do tabaco exerceu-se predominantemente com base na autorregulamentação, o impacto causado, em poucos anos, pela legislação promulgada a partir da Constituição Federal de 1988, além de ter evitado um grande número de óbitos, foi responsável, em parte, pela considerável diminuição do número de fumantes no país. Um estudo publicado na Revista PLoS Medicine96, feito pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA) em parceria com a Universidade de Georgetown, de Washington (EUA), concluiu que o número de fumantes no Brasil caiu pela metade nos últimos 20 anos graças às leis anti-fumo implementadas no país. De acordo com a pesquisa, a inovação na legislação, aliada a medidas como majoração de impostos sobre o cigarro e restrições ao fumo em ambientes 96 PLoS Medicine – Disponível em <http://journals.plos.org/plosmedicine/> Acesso em 03 jul 2014. 1705 fechados, evitou cerca de 420.000 mortes decorrentes de tabagismo entre 1989 e 2010. Estimativas dos impactos de tais medidas sobre o tabagismo no país em 20 anos apontam, ainda, que 14% da redução ocorreu devido à restrição de publicidade desse tipo de produto; 10% dessa queda se deve aos programas de tratamento contra o tabagismo; 8% dessa diminuição aconteceu por causa das advertências dos problemas de saúde nas embalagens; e 6% da redução aconteceu em decorrência das campanhas na mídia contra o cigarro. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Da análise da evolução da publicidade de produtos fumígenos no Brasil, pode-se observar que, muito embora os malefícios causados pelo tabagismo sejam tantos e tão contundentes e aparentes, a autorregulamentação no setor não foi capaz de promover o controle adequado de sua publicidade, de forma que nem sequer restrições foram impostas aos anúncios publicitários, que permaneceram sempre sendo veiculados em todos os meios de comunicação e em quaisquer horários. A falta de restrições à área, em termos de regulamentação autônoma, permitiu o fomento do comércio e o consequente fortalecimento da indústria do setor, provocando o aumento contínuo do número de fumantes no país. Foi apenas a partir da Constituição Federal de 1988 que, com o incremento do controle legal, a legislação anti-fumo passou a impor restrições à publicidade no setor capazes de interferir positivamente nas consequências geradas pelo hábito do tabagismo, que, então, já havia se tornado uma doença catalogada pela Organização Mundial da Saúde com o CID-10. Com o incremento regulatório proporcionado pela legislação (parte legal do sistema misto), finalmente, o número de tabagistas no Brasil começou a ser reduzido. Juntamente com a política de majoração tributária e com a proibição do fumo em ambientes fechados, o controle legal da publicidade do tabaco fez com que a quantidade de brasileiros fumantes tenha caído pela metade e com que o número de novos tabagistas seja cada vez menor, o que tem gerado uma inquestionável redução de custo social à nação. 1706 Não obstante a indústria do tabagismo valha-se do argumento de que os apelos comerciais veiculados na publicidade de seus produtos devam estar protegidos pelo direito fundamental à liberdade de expressão, os comprovados prejuízos causados pelos fumantes aos não-fumantes - na qualidade de fumantes passivos -, autorizaram o legislador brasileiro a relativizar este direito, visto que a liberdade de um pode vir a ser restringida pelo fato de, do contrário, ter potencial lesivo a outrem. Da mesma forma, foram relativizadas as garantias constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. Ou seja, na análise da ponderação subjacente à regulação da matéria, o conflito entre os direitos fundamentais à liberdade de expressão e à saúde, suscitou na legislatura brasileira, o reconhecimento da necessidade de se relativizar o primeiro frente às consequências, não só anunciadas como também comprovadas, da utilização dos produtos fumígenos. Ademais, não só em virtude desta ponderação, mas também em razão do próprio caráter periférico que a publicidade ocupa na liberdade de expressão, o legislador, alicerçado no novo paradigma constitucional do final do século passado, deu azo a diplomas legais que restringiram a publicidade do tabaco e que robusteceram o seu controle. A partir deste cenário novel, a constatação foi de que, de fato, o número de fumantes diminuiu significativamente, bem como houve um consequente abrandamento dos efeitos deletérios do tabagismo, tanto na esfera individual quanto na da saúde pública. Destarte, conclui-se que a autorregulamentação do setor publicitário foi insuficiente para conferir efetividade ao controle da publicidade dos produtos fumígenos, cabendo ao legislador, na complementação do sistema misto de controle da publicidade, o papel de mitigar os efeitos perniciosos do tabagismo no Brasil. 1707 REFERÊNCIAS ANDREIS, M.; BARBOSA, F. N.. O argumento da culpa da vítima como excludente da responsabilidade civil da indústria do cigarro: proposta de reflexão. Revista de Direito do Consumidor, v. 82, p. 63-81, 2012. AZEVEDO, J. de. Responsabilidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor: estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no Direito comum. Revista de Direito do consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 18, abr./jun. 1996. BARBOSA, F. N.. Informação: direito e dever nas relações de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. BENJAMIN, A. H. de V.. Código brasileiro de defesa do consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 _______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm> Acesso em 09 mai 2014. CAMPOS, M. L. de S.. O Direito estatutário do CONAR. In: Revista de Direito do consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 38, abr./jun. 2001. CANOTILHO, J.J. G.. Comentários a artigos da Constituição Federal de 1988. In CANOTILHO, J.J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. CENEVIVA, W.. Publicidade e Direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. 184 p. CHAISE, V. F.. A publicidade em face do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2001. 120 p. CONAR. Código Brasileiro de Autorregulamentação publicitária. Disponível em: <http://www.conar.org.br/html/codigos.htm>. Acesso em 18 jun 2014. DEBORD, G.. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DENSA, Roberta. Direito do consumidor. 3ed. São Paulo: Atlas, 2007. 230 p. GUIMARÃES, P. J. S.. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 1708 MARQUES, C. L.. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 1109 p. MARTINS-COSTA, J.. A ambiguidade das peças publicitárias e os princípios do Código de Defesa do Consumidor In: Revista AJURIS, n 59, ano XX, nov 1993. Porto Alegre: AJURIS. MENDES, G. F.; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. NUNES JUNIOR, V. S.; SERRANO, Yolanda Alves Pinto. Código de Defesa do Consumidor interpretado. São Paulo: Saraiva, 2003. PLoS Medicine – Public Library of Sciense. Revista Científica. Disponível em <http://journals.plos.org/plosmedicine/> Acesso em 03 jul 2014. RODYCZ, W. C.. O regime da publicidade abusiva no Código de Defesa do Consumidor In: Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no MERCOSUL. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1994. 313p. SARMENTO, D.. Comentários a artigos da Constituição Federal de 1988. In CANOTILHO, J.J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2009. 1709 PRÁTICAS EMPRESARIAIS NAS CONDUTAS DOS CONSUMIDORES EM BUSCA DE UM DESENVOLVIMENTO MAIS SUSTENTÁVEL Anderson Von Heimburg, 97 Cristiane Feldmann Dutra,98 Suely Marisco Gayer,99 RESUMO: Este artigo aborda a temática do consumo sustentável, busca conceituar o tema, relativamente novo em termos ambientais, demonstrando a importância das práticas empresariais, no sentido de conscientizar o consumidor a agir em nome da sustentabilidade, preservando recursos naturais e garantindo sua permanência às gerações futuras. As empresas, diretamente ligadas ao mercado e ao consumo em massa, possuem um papel fundamental na sua conduta – desde a escolha das matérias-primas para fabricar determinados produtos até a decisão acerca da sua durabilidade – ajudando, assim, a formar o chamado “consumidor verde”. PALAVRAS-CHAVE: consumidor. desenvolvimento sustentável; práticas empresariais; 1 INTRODUÇÃO 97 Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2011). Mestre em Direito pela UniRitter Laureate International Universities (2014). Possui experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direitos Humanos, Direito Internacional e Direito Penal Militar. Graduado pela Academia Militar das Agulhas Negra (2001) com Especialização pela EsAO (2009). Professor de Teoria Geral do Estado e da Constituição, Direito Internacional e Oratória da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Professor de Direitos Humanos, Legislação Penal Militar e Legislação Militar no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto Alegre. Assessor Jurídico do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto [email protected]. 98 Mestre em Direito, com enfase em Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis UniRitter- Laureate International Universities. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento- IDC (2010), Especialista em Direito Civil Processual Civil na Faculdade do Instituto de Desenvolvimento-IDC (2012).Possui Graduação em Direito na Universidade Luterana do Brasil -ULBRA (2008). Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter (2013-2014). Pesquisadora do Grupo de Ciência Penal Contemporânea da UFRGS (2014). Email: [email protected]. 99 Mestre pelo curso de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter Laureate International Universities. Pós-graduada pela Escola Superior da Magistratura, em 2002. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da UniRitterPós-graduada pela Escola Superior da Magistratura, em 2002. . Graduada em Direito pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - Unijuí em 2001. Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da UniRitter. Email: [email protected]. 1710 Esse artigo pretende conceituar a ideia de consumo sustentável, expressão que vem sendo cada vez mais utilizada em âmbito empresarial, bem como frisar a importância de práticas empresarias na busca pela preservação dos recursos naturais e sua influência nas ações dos consumidores. Atualmente o mundo volta os olhos para a escassez dos recursos naturais. Quando se fala em mercado, no sentido de práticas empresariais, é preciso relacioná-lo aos atos praticados por aqueles que o impulsionam, ou seja, o consumidor. Desde o surgimento da Agenda 21, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrido no Rio de Janeiro, no ano de 1992, com objetivos de promover padrões de consumo e produção buscando reduzir os impactos ambientais e, ao mesmo tempo, atender às necessidades básicas da humanidade, buscou-se compreender o papel do consumidor, bem como sua influência nas práticas empresariais. 2 O PROBLEMA DO CONSUMO MASSIFICADO Nos dias de hoje, nos deparamos com uma realidade de consumo completamente diferente daquela vista tempos atrás. Por muito tempo primou-se por um consumo exacerbado e se deixou de lado os impactos que a larga produção e consumo pudessem vir a causar ao meio ambiente. Os problemas ambientais causados pelo homem decorreram, sobretudo, do modo como esse sistema econômico (caraterizado por apresentar uma economia de mercado, em que vigora a lei da oferta [produção], da procura [consumo] de produtos, serviços ou capitais e do lucro), usava, destinava e transformava os recursos naturais, gerando a degradação do meio ambiente. Nesse sistema, quanto mais se consumir, maior será a 100 produção e maior o lucro . É fato que a ótica em relação ao consumo mudou no decorrer do tempo. Primeiramente, o poder era buscado através do acúmulo de riquezas, nos dias de hoje, o poder significa possuir o maior número de bens possíveis e ainda, os mais novos e tecnológicos. 100 SPÍNDOLA, Ana Luiza apud Flávia Galvão. Revista IOB de Direito Administrativo, p.109. 1711 Nesse contexto, há um claro atrito entre as necessidades ilimitadas dos seres humanos (que aqui passo a tratar na condição de consumidores), tendo em vista o caráter avaliativo do presente trabalho, e os recursos limitados do meio ambiente. O consumo em massa, a partir dai, conflita com a questão da sustentabilidade, que inevitavelmente liga-se à ideia de ética ambiental. A modernidade ocidental transformou a natureza num simples cenário no centro do qual reina o homem e se auto-determina dono e senhor. O que é certo é que, a partir do século XVII, o projeto moderno pretendeu construir uma supranatureza, à medida da nossa vontade e do nosso desejo de poder e de consumo. O homem passou a produzir bens numa escala muito mais superior do que o necessário para satisfazer o seu ciclo vital, sem perceber que para alcançar o seu objetivo era preciso transformar constantemente a natureza. E como consequência destes atos começou-se a viver no reinado do artifício, da máquina e da 101 automatização . Sustentabilidade pode ser entendida como a capacidade dos seres humanos interagirem com o mundo preservando o meio ambiente, objetivando não comprometer os recursos naturais das gerações futuras. Ainda, pode ser vista como a habilidade de sustentar ou suportar determinadas condições impostas ou exigidas por alguém. O conceito de sustentabilidade é complexo, pois atende a um conjunto de variáveis interdependentes, mas podemos dizer que deve ter a capacidade de integrar questões sociais e ambientais. Socialmente, é preciso respeitar o ser humano, para que este possa respeitar a natureza e assim haver sustentabilidade. As questões que envolvem a sustentabilidade do planeta há muito tempo já ultrapassam a esfera nacional e tal preocupação tem repercussão internacional, na medida em que se pode perceber uma cooperação entre nações, no sentido de desenvolver a adoção de padrões adequados à utilização e preservação de recursos naturais esgotáveis. 101 BASTOS, Lucia Elena. O Consumo de Massa e a Ética Ambientalista. Revista de Direito Ambiental, n.43, ano 11, 2006, p. 201. 1712 3 CONSUMO SUSTENTÁVEL O consumo sustentável baseia-se na ideia de que o planeta não pode suportar os velhos padrões utilizados nas últimas décadas para a extração, produção, comercialização e descarte de bens. A expressão “desenvolvimento sustentável” consiste no fato de que os elementos pretendem se conciliar – desenvolvimento econômico e preservação ambiental –, embora a construção de raciocínios seja diferente. A noção de crescimento econômico, sobre a qual o objetivo do desenvolvimento tem se assentado, é definida a partir de agregados monetários homogêneos de produção, visando sempre à exploração dos 102 recursos naturais para uma maior produção, para gerar lucro . Consumir de maneira sustentável significa consumir menos e melhor, levando em consideração os impactos ambientais, sociais e econômicos das empresas e dos seus produtos (cadeias produtivas). Com relação à essa temática, o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – trouxe uma proposta conceitual, definindo que: Consumo sustentável significa o fornecimento de serviços, e de produtos correlatos, que preencham as necessidades básicas e dêem uma melhor qualidade de vida, ao mesmo tempo em que se diminui o uso de recursos naturais e de substâncias tóxicas, assim como as emissões de resíduos e de poluentes durante o ciclo de vida do serviço ou do produto, com a idéia de não ameaçar as necessidades das gerações 103 futuras . Nesse sentido, com o advento da Agenda 21 foram estabelecidas como metas, a promoção de padrões de consumo e produção que reduzam as pressões ambientais e atendam às necessidades básicas da humanidade; bem como o desenvolvimento de uma melhor compreensão do papel do consumo e da forma de se implementar padrões mais sustentáveis. Este consumo precisa ser sustentável em todos os sentidos: desde a compra, o uso até o descarte, envolvendo condutas do consumidor – pessoa física – e das empresas. É importante questionar-se sobre o consumo pessoal sempre, como pode ser reduzido e melhorado em termos de qualidade e preservação ambiental. O consumo sustentável visa a um padrão de consumo diferente e consciente e o meio que possuímos para tanto, não pode ser considerado outro, 102 103 GALVÃO, Flávia. Ob. cit., p. 112. BAGIO, Andressa. Ob. Cit., p. 3 1713 senão a conscientização do consumidor. De nada adianta uma empresa trazer ao mercado produtos biodegradáveis (a um custo relativamente mais alto) se os consumidores sempre vão optar pelo mais barato, mesmo em detrimento do meio ambiente. Nessa senda Milaré: O que causa preocupação é o desenvolvimento desenfreado, pois, ao mesmo tempo, constitui uma aberração do desenvolvimento ao culto ao consumismo e a criação de necessidades desnecessárias, impingindos 104 por um marketing distorcido . Além disso, conceitos de reciclagem e reutilização dos materiais depois do uso principal dos produtos, a fim de reduzir o consumo de materiais virgens também são posturas que devem ser implementadas a partir da consciência individual do consumidor em preservar recursos limitados às gerações futuras. O consumo, de acordo com o conceito antes mencionado, leva inevitavelmente, ao consumo de recursos naturais, isso ocorre de uma maneira que a humanidade, no futuro não possa mais manter seus padrões de vida sem correr o risco de destruir o sistema ecológico no qual vivemos e do qual depende a vida. Essa acertiva pode ser comprovada com uma simples análise da degradação ambiental realizada por empresas fornecedoras de produtos e serviços. Além disso, quanto mais tecnologia se desenvolve, mais se amplia o impacto ao meio ambiente. Basta analisarmos a conduta de uma empresa, peguemos como exemplo aqui, uma empresa que fabrica eletrônicos e os coloca no mercado. Primeiro, adere à ideia de que os produtos hoje colocados no mercado, em um curtíssimo espaço de tempo já deverão ser substituídos por outros, e que os primeiro sequer servirão de base para os posteriores, devendo ser absolutamente descartados, o que, sem análise profunda, já traz o problema da sustentabilidade e da produção de lixo em excesso. Na lógica da sociedade de consumo, tudo aquilo que deixa de auxiliar no processo vital torna-se destituído de qualquer significado e utilidade. O consumo insaciável do homem, agora não mais pelo que supre as suas necessidades, mas por aquilo que é supérfluo. 104 MILARÉ, Édis apud Flávia Galvão, Ob. cit.,p. 114. 1714 3.1 Definição de Consumidor Verde Quem estimula o consumo sustentável é o consumidor consciente ou "verde". Cristiane Derani trabalha com pressupostos de uma economia ambiental, mencionando: No momento em que se procura normatizar a utilização do meio ambiente, trabalha-se com dois aspectos de sua realidade. O primeiro considera o meio ambiente enquanto elemento do sistema econômico, e o segundo considera o meio ambiente como sítio, um local a ser apropriado para o lazer ou para as externalidades da produção, tornando-se depósito dos subprodutos indesejáveis desta produção. Procura-se normatizar uma economia (poupança) do uso de um bem, e determinar artificialmente (sem qualquer relacionamento com as leis de mercado) um valor para a conservação de recursos naturais. Estes são 105 os meios encontrados para “integrar os recursos naturais ao mercado . O consumidor verde, chamado assim por ser mais consciente no ato de comprar ou usar produtos com a possibilidade de colaborar com o planeta. O "consumidor verde" sabe que se recusando a adquirir determinados produtos tem o poder de desestimular a produção de artigos nocivos, mesmo que lenta e gradativamente. Porisso evita aqueles que representem um risco à sua saúde ou dos outros e que sejam agressivos à natureza na sua produção, uso ou descarte final. Seria, em poucas palavras, o consumidor responsável, seletivo e capaz e consciente do seu papel fundamental. Uma discussão sempre presente é se o consumidor tem a força para mudar o mercado, ao optar por empresas e produtos verdes e deixando de comprar produtos que não são amigáveis com o meio ambiente. Teoricamente, essa pressão do consumidor, a força do mercado, obrigaria as empresas a serem ambientalmente ecológicas ou a fecharem suas portas. Mas deve se reconhecer que esta suposta preocupação ecológica é meramente comercial e financeira, é uma mudança de paradigma(falando-se em consumo sustentável) ainda regido pelo lucro, e não por uma honesta preocupaçao ecológica da humanidade. Ainda não há uma conduta consciente 105 DERANI, Cristiane. Ob. Cit., p. 89. 1715 nem por parte do mercado, sequer por parte das empresas, quanto mais de um consumidor individual e efetivamente preocupado com o futuro das gerações. O conceito adotado pela CNUMAD para “desenvolvimento sustentável”106, nas palavras da comissão Brundtland, é “o desenvolvimento que permite satisfazer as necessidades das gerações presentes, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades”. Canotilho afirma que a sustentabilidade em sentido amplo procura captar aquilo que a doutrina atual designa por “três pilares da sustentabilidade”: (i) pilar I – a sustentabilidade ecológica; (ii) pilar II – a sustentabilidade econômica; (iii) pilar III – a sustentabilidade social. Neste sentido, a sustentabilidade perfila-se como um “conceito federador” que, progressivamente, vem definindo as condições e pressupostos jurídicos do contexto da evolução sustentável. No direito internacional, a sustentabilidade é institucionalizada como um quadro de direção política nas relações entre os Estados (exs.: Convenção sobre as mudanças climáticas, Convenção sobre a biodiversidade, Convenção sobre o patrimônio cultural).107 4 AÇÕES EMPRESARIAIS NORTEADAS PELA ÉTICA AMBIENTAL E O PRINCÍPIO DA SUSTENTABILIDADE Estudos econômicos apuram que a empresa somente agirá em nome da sustentabilidade se isso vier a trazer bons resultados econômicos para si mesma. Uma empresa é ambientalmente sustentável em suas ações somente quando isso possa repercutir a tal ponto, que venha trazer benefícios em forma de lucro. 106 Desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Comentário: Esta definição cunhada pela Comissão Brundtland 1987 é muito sucinta, mas deixa sem resposta muitas perguntas sobre o significado da palavra desenvolvimento e o social, os processos econômicos e ambientais envolvidos. Risco de desastres está associada a elementos insustentáveis de desenvolvimento, como a degradação ambiental, enquanto que, inversamente, a redução de riscos de desastres pode contribuir para a realização do desenvolvimento sustentável, através da redução das perdas e melhores práticas de desenvolvimento. UNISDR. United Nations Office for Disaster Risk Reduction. terminology on disaster risk reduction. 2009, p. 29. Disponível em:< http://www.unisdr.org/we/inform/ publications/ 7817>. Acesso em 17 jun. 2014. 107 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante do Direito Constitucional. Revista de Estudos Politécnicos. Tékhne.n.13. Barcelos, Portugal. jun. 2010. 1716 A repercussão que exala de práticas ambientais corretas faz com que determinada empresa tenha maior renome, e com isso possa tornar-se forte no ramo da competitividade. Seria, basicamente, a adoção de práticas ambientais que possam assegurar uma vantagem competitiva em relação às demais empresas do ramo. A economia ambiental analisa os problemas ambientais a partir do pressuposto de que o meio ambiente – precisamente a parte dele que pode ser utilizada nos processos de produção e desenvolvimento da sociedade industrial – é limitado, independentemente da eficiência tecnológica para a sua apropriação. O esgotamento dos recursos naturais, responsável pela assim chamada crise do meio ambiente, é identificado em duas clássicas tomadas: com o crescente consumo dos recursos naturais (minérios, água, ar, solo, matéria-prima) como bens livres (free gifts of nature) e com os efeitos negativos imprevistos das 108 transações humanas . Especialmente quanto ao tema aqui tratado, se verificou que empresas ambientalmente responsáveis têm uma melhor reputação na comunidade, o que pode levar a fidelidade à marca. Essas empresas também têm um risco diminuído de serem alvos de ativistas ambientais, que podem manchar a reputação de seus nomes. Justamente isso é o que leva uma empresa a adotar posturas para além do que a lei exige. 109 Nesse diapasão, impor regulamentos e sanções, no sentido de obrigar empresar a serem ambientalmente sustentáveis, com intervenção estatal efetiva, surte menos efeito que estimular ações através das escolhas feitas pelos consumidor.110 Paddock ressalta que, embora o regulamento seja o instrumento mais direto e previsível para se fazer um controle ambiental do comportamento, outros programas para deter ações de infratores têm se mostrado mais efetivos. O referido autor apresenta forma de influenciar o consumidor a exercer influência no mercado de consumo, chegando a sugerir maneiras de um programa de cumprimento e execução em que gestores podem ser capazes de aproveitar melhor seus ativos e influenciar vetores internos de economia e, ainda, ajudar a construir valores públicos que suportam resultados ambientais mais sustentáveis. Dentre as medidas, cita: 108 DERANI, Cristiano. Ob. Cit., p. 90. PADDOCK, Leory. Ob. Cit. 110 Idem. 109 1717 • empregar uma gama completa de ferramentas de conformidade e aplicação para resolver importantes problemas ambientais; • elaborar programas de cumprimento e execução para alinhar melhor principais incentivos; • promover a aprendizagem e auto-avaliação; •habilitar o público a influenciar diretamente a tomada de decisão ambiental; • incentivar a resolução colaborativa de problemas; • apoiar o setor privado a execução de gestão de cadeia de abastecimento; 111 • Reconhecendo o desempenho ambiental superior (grifo nosso) O consumidor detém em suas mãos uma força que não é dimensionada por ele. É justamente com ele que se encontram as mais almejadas ações que uma empresa pode buscar. Além do poder econômico, com a escolha por determinado produto, o consumidor traz repercussão em suas escolhas, fazendo com que determinada empresa se torne mais forte, em termos competitivos. Encaixam aqui as medidas sugeridas por Leroy Paddock, no sentido de habilitar o consumidor a influenciar as medidas tomadas pelas empresas (fabricante, fornecedor e comerciante) no sentido da preservação ambiental e ações sustentáveis. Além disso, construir uma boa reputação não é apenas a coisa certa a fazer, é também um ponto de vantagem competitiva, porque fazendo a coisa certa traz as melhores pessoas, melhora o valor da marca e se cria confiança com os clientes. Ponto importante nesse contexto é a conduta de colocação no mercado de produtos com maior durabilidade (vida útil) combinado com a satisfação do consumidor. A chamada durabilidade estendida não só preserva a utilização de novos recursos naturais empregados na produção, como também diminui a quantidade de lixo que deriva da inutilização e destruição de bens, para, então, substituí-los por novos. Em relação à tal prática, colaciono entendimento no sentido de trazer vantagens econômicas às empresas: Não se perca de vista a ótica macroeconômica da durabilidade. O aumento da durabilidade dos produtos incrementa a competitividade entre as empresas, pois quanto maior a vida útil do produto, menor é custo do serviço que um produto presta por unidade de tempo. Menores também são os investimentos gerados na reposição de peças e estruturas danificadas pelo desgaste, importando em redução dos custos 111 PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.1. 1718 globais de manutenção. O modo mais viável, assim sendo, para que a exploração das matérias-primas e outras fontes de recursos naturais (renováveis ou não) seja sustentável, implica em garantir – sempre que possível - a sua máxima duração, ou seja, o seu uso mais prolongado,através da produção de bens de consumo resistentes, duráveis, passíveis de consertos quando danificados, de recargas quando esgotadas as suas capacidades energéticas, portanto, em 112 condições de uma ideal economia conservativa . 5 EXERCENDO O CONSUMO SUSTENTÁVEL No ano de 1987, o relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente da Organização das Nações Unidas, batizado de “Nosso Futuro Comum”, pautou-se na ideia de conciliar proteção ambiental com o problema do desenvolvimento econômico, ou seja, amenizar o antagonismo existente entre a satisfação das necessidades dos consumidores e a preservação dos recursos naturais limitados. Trouxe, ainda a necessidade de permitir capacidade aos países considerados de terceiro mundo na busca pelo incremento de suas economias, tudo no sentido de sustentabilidade. Mais recentemente, o documento da Rio +20 “The future we want” definiu, em seu item 225113, que os países reafirmam seus compromissos de eliminação progressiva de combustíveis fósseis e perigosos, bem como desestimular o consumo exagerado, que mina o desenvolvimento sustentável. (grifo nosso) Em termos de adoção de ações que possam preservar o meio ambiente, fundadas em sustentabilidade, chega-se à hipótese de existência de uma possível regulação empresarial, com o objetivo de assegurar a preservação de recursos ambientais mesmo com o avanço do mercado empresarial. Surge, nessa senda, a expressão “motores internos de organização ambiental”114, no sentido de (auto) regulação empresarial voltada à sustentabilidade. Dentre as medidas propostas para se desenvolver uma postura empresarial tendente à incentivar um consumo mais sustentável, conta-se com a habilidade do público consumidor em influenciar o mercado. O consumidor possui 112 PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.3. Doc ONU “The Future We Want”, Rio+20 2012. Disponível em :< <http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N12/381/64/PDF/N1238164.pdf?OpenElement> . Acesso em 17 jan.2015. 114 PADDOCK, Leroy. Ob. Cit. 113 1719 em suas mãos a maior concentração do poder, pode ele redirecionar completamente o mercado, no sentido de garantir a preservação dos recursos naturais limitados, basta para isso, adotar posturas que não deixem escolha às empresas, que não é segredo, busca desenfreadamente o lucro. No sentido desse estudo, o referido artigo ainda traz, pelo menos cinco razões para que uma empresa voluntariamente possa regular sua práticas ambientais para ganhar vantagem competitiva, seriam elas: 1. Redução de ineficiências de produção e saída de resíduos para reduzir impactos ambientais e custos e aumentar de competitividade; 2. Empresas ambientalmente responsáveis atraem e retêm uma força de trabalho de maior qualidade e trabalhador de maior satisfação leva ao aumento da produtividade; 3. empresas ambientalmente responsáveis têm uma melhor reputação na comunidade, que pode levar a mais fidelidade à marca. Essas empresas também têm um risco diminuído de serem alvo de ativistas ambientais, que podem manchar a reputação da marca. (já mencionado anteriormente) 4. Responsabilidade ambiental reduz o risco de serem expostos novos regulamentos, por exemplo, pressão de investidores para alterar políticas, aumentando os custos do negócio; 5. Ambientalismo pode fornecer acesso ou criar um mercado completamente novo com o potencial de crescimento de receita 115 significativa . A maior barreira para exercer o consumo sustentável é o preço, já que esse tipo de produtos é ainda mais caro, e mercados como o Brasil, não tem ainda o poder aquisitivo para fazer essa mudança total. Não é possível ter uma sociedade pobre ou em desenvolvimento consumindo produtos ecológicos com preços acima do mercado. Nesse sentido: Quanto maior o preço da mercadoria (recursos naturais), menor a quantidade de sujeitos que têm acesso a ela. Por causa do aumento da dificuldade de acesso a estes “bens”, surge uma forma nova de exclusão da concorrência no mercado. O aumento do custo da produção permite maior concentração de capital, numa clara tendência monopolista. A concorrência é paulatinamente reduzida e o mercado torna-se um oligopólio de grandes grupos, que estão dispostos não somente a pagar, como também a diminuir a incômoda concorrência. O pagamento e a disposição a pagar são movimentos decorrentes da produção. Paga-se à medida que se detém o poder de compra. No desenvolvimento desta prática, não se alcança efetivamente o objetivo de conservação dos recursos naturais. O que ocorre é a sumária transferência do uso da natureza para faixas cada vez mais estreitas da sociedade. Um 115 Idem, p.5. 1720 instrumento que seria para afastar a poluição afasta a concorrência e 116 concede privilégios de poluir . Outros pontos a serem levados em conta para uma "compra verde" são: a postura da empresa em relação a temas ambientais, suas ações sustentáveis, seus processos de produção, compra de matéria prima, mão de obra estrangeira, como a empresa lida com o descarte de seus produtos, tudo deve ser pesquisado e levado em conta na hora de consumir algum produto. Leroy Paddock chega a afirmar que uma empresa é capaz de criar um regulamento, a ser respeitado pelas demais, que as levam a um comportamento de proteção ambiental117. Consumo sustentável não é apenas a ação empresarial de apresentar os seus produtos em uma embalagem ecológica, mas sim conhecer tudo o que está por trás, até o produto chegar ao mercado. Mas esse respeito existente nos regulamentos ambientais não é suficiente para alcançar o objetivo maior da sustentabilidade, é importante para aqueles que trabalham em programas de execução para pensar sobre como eles podem aproveitar seu trabalho e influenciar "condutoreseconômicos internos” de comportamento ambiental ajudam a construir valores sociais que contribuem para alcançar resultados para além do mero cumprimento. Os programas têm, por algum tempo, suportado esforços que visam prevenir a poluição, incentivar o desenvolvimento de melhores sistemas de gestão ambiental e promover a auditoria ambiental, e todos podem ter um impacto sobre a economia interna e com respeito aos valores. Mas regulamentos tipicamente não têm avaliado a extensão que seus programas podem e devem estrategicamente levar em conta naeconomia interna e valores sociais como parte de um maior esforço dos órgãos ambientais para alcançar 118 resultados sustentáveis . Este assunto já se encontra no âmbito empresarial brasileiro com a Agenda 21 Brasileira, pelo Instituto Akatu pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil, pelo Centro de Estudos de Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (CES-FGV), entre outros. A Agenda 21, já citada anteriormente, tem por objetivo preparar o mundo para os desafios do século 21, por meio de diretrizes elaboradas para promover padrões de consumo e produção que reduzam as pressões ambientais e ao mesmo tempo possam atender as necessidades básicas da humanidade, além de desenvolver uma melhor compreensão do papel do consumidor e da forma de implementar padrões de consumo mais sustentáveis. 116 DERANI, Cristiane. Ob. Cit. p. 95. PADDOCK, Leroy. Ob. Cit., p.4 118 PADDOCK, Leroy. Ob. Cit. p. 3 117 1721 Ainda, além das políticas públicas, que podem ser adotadas em conjunto com o Estado, para modificação dessa cultura do consumo em massa, há possibilidade de inserção do tema ambiental no mercado por meio de instrumentos econômicos e de regulação. Dificilmente o mercado seria o responsável pelo incentivo à essas experiências. 6 CONCLUSÃO De todo exposto, percebe-se que a postura defendida de um consumidor consciente envolve, antes de mais nada, ação cotidiana, e mesmo que de início atinja poucas pessoas, deve ser adotada pelo resto de nossas vidas. As empresas possuem forte influência no comportamento do mercado, podendo, certamente, contribuirem para a preservação do meio ambiente de forma a garanti-lo às gerações futuras, o que, de forma auspiciosa, também é do seu interesse direto. Quanto ao consumidor, é preciso consumir com consciência, o que envolve uma postura de cidadania, porque mesmo que essa ação parta de um pequeno grupo de pessoas, no decorrer do tempo, resultará em uma enorme diferença. Há evidências que uma parcela dos consumidores estaria disposta até a pagar uma “quantia” a mais para aquisição de determinado produto que (seja no seu processo de fabricação, seja na sua origem social), provenha de uma abordagem ambientalista ou natural, a exemplo de produtos oriundos da Amazônia, no âmbito nacional ou internacional. Mas é importante lembrar que a concorrência com produtos industrializados é sempre desleal. Percebemos que uma empresa ou um processo, para ser válido dentro dos conceitos atuais, deve ser economicamente rentável, ambientalmente compatível e socialmente justa. Para coibir agressões inconsequentes e continuadas ao meio ambiente, espera-se que haja uma política clara e abrangente, que envolva a atuação conjunta de governos, empresários e comunidade. Empresas, progressivamente, estão percebendo que adotar medidas com base em sustentabiidade, quer na produção, utilização e descarte de produtos e matériasprimas chamam a atenção do consumidor consciente, nominado de consumidor 1722 verde, e que, cada vez mais vai tomando força nesse cenário de produção em massa. Assim, o consumidor consciente é aquele que já percebeu o enorme poder que tem em suas mãos. A ideia, então, não é a de que as pessoas deixem de comprar o que julgam necessário, nem façam enormes sacrificios, mas que todos saibam que fazendo uma pequena parte diariamente irão contribuir para grandes resultados. Vale lembrar, que a palavra central quanto ao tema deve ser sempre conciliação. REFERÊNCIAS BOSSELMANN, K. Direitos Humanos, Meio Ambiente e Sustentabilidade. In: SARLET, I. W. (Org.); KRELL, A. J. et al. Estado Socioambiental e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. CANOTILHO, J. J G. O Princípio da sustentabilidade como Princípio estruturante do Direito Constitucional. Revista de Estudos Politécnicos. Tékhne.n.13. Barcelos, Portugal. jun. 2010. BAGGIO, A. MANCIA, K. A proteção do consumidor e o consumo sustentável: análise jurídica da extensão da durabilidade dos produtos e o atendimento ao princípio da confiança, disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/02_409.pdf>. Acesso em 20 de julho de 2013. BASTOS, L. E. A. F. O consumo de massa e a ética ambientalista, Revista de Direito Ambiental, ano 11, n. 43, julho-setembro de 2006. Editora Revista dos Tribunais, p. 177-202. DERANI, C. Direito Ambiental Econômico. 3ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2008. GALVÃO, F. N. Desenvolvimento Sustentável e Capitalismo: Possibilidades e Utopias, Revista IOB de Direito Administrativo, São Paulo: dezembro/2006, vol. 01, n. 12, p. 106-119. PADDOCK, L. C. Beyond Deterrence: Compliance and Enforcement in the Context of Sustainable Development. In: Ninth International Conference on Environmental Compliance and Enforcement, 2011, p. 589 – 615. 1723 The Future We Want Rio+20. Disponível em: <http://daccess-ddsny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N12/381/64/PDF/N1238164.pdf?OpenElement> . Acesso em 17 jan.2015. UNISDR: United Nations Office for Disaster Risk Reduction terminology on disaster risk reduction. .2009, p. 29.Disponível em:< http://www.unisdr.org/we/inform/ publications/ 7817>. Acesso em 19 dez. 2014. 1724 REDES COMERCIAIS Arnaldo Rizzardo Filho, RESUMO: Há aproximadamente setenta anos a economia vem se desenvolvendo comercialmente através de redes comerciais, com a aproximação de empresários visando o compartilhando e até a reprodução de bens imateriais, tais como a identidade do negócio, o know how, a maneira de empreender, o trade dress, dentre outros. O novo cenário, inédito até então, fruto de uma virtualização cada vez maior da sociedade, forma-se a partir da ideia de “clonagem contratual” de um negócio bem empreendido. As redes comerciais serão abordadas enquanto sistemas sociais devidamente virtualizados para reprodução. Hoje, no Brasil, há uma total inconsciência no que tange à ontologia das redes comerciais, e é a partir da Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann, com a identificação das expectativas sociais sobre o negócio em rede, das complexidades e das contingências que efluem dos sistemas criados, que o artigo se desenvolverá. Buscar-se-á entender todas as variáveis que compõem os negócios em rede para então estruturá-los com as reduções generalizantes virtuais (contratos) adequadas aos fins que se destinam. O artigo desenvolver-se-á partir de considerações multiconceituais envolvendo Sociologia, Economia e Direito, bem como análise legislativa e jurisprudencial referente às redes comerciais. Assim, reputa-se possível identificar o correto Direito aplicável às redes comerciais. Se a rede comercial possui uma função, o Direito a ela aplicado tem que estar de acordo com sua função, e se a rede comercial forma um sistema social, o Direito deve estar conforme as realidades fenomênicas que orbitam esse ambiente sistematizado. PALAVRAS-CHAVE: redes comerciais; teoria sistêmica; Niklas Luhmann. 1 INTRODUÇÃO Nos últimos setenta anos o mercado varejista vem se organizando e se expandindo través de redes comerciais. O sistema clássico possuía comerciantes individualizados, com características próprias, que competiam entre si pelo sucesso no mercado. O sistema evoluiu e acrescentou a esse cenário alguns comerciantes atuando de forma coletiva, coordenada. Mas não uma coordenação ilegal, como ocorre nos carteis; uma coordenação legal, como fazem as redes 1725 comerciais. Esses comerciantes se identificam como um grupo, e assim, se organizaram como grupo, atuando e caracterizando-se de forma una, idêntica, como uma verdadeira “clonagem”. É sobre esse fato especial, sobre essa ideia de coletividade, que se propõe uma discussão de nível acadêmico sobre tudo o que importa em relação às redes comerciais. Propõe-se uma discussão que envolva conhecimentos sociológicos, jurídicos e econômicos sobre as redes comerciais. A ideia na qual orbita a rede comercial será pensada em todas suas possíveis dimensões. Ao final estará desnudado o fenômeno social rede comercial, e não mais haverá dúvida sobre qual o melhor Direito a ser aplicado. Economicamente, é importante entender o que as redes comerciais significam enquanto evento econômico. Juridicamente, há três pilares que sustentam as redes comerciais: os bens imateriais que identificam as empresas de uma rede, os contratos que estruturam o sistema de atuação das redes, e as responsabilidades que cada polo da rede tem (formatador da rede e aderentes à rede). Hoje, o debate jurídico sobre redes comerciais pauta-se apenas sobre o ângulo de vista da propriedade intelectual. Por isso, quando se fala em rede comercial, fala-se praticamente apenas em know how e trade dress, institutos que são tratados sob a ótica do direito real. Ocorre que há muito mais que direito real nas redes comerciais. A análise sociológica, por sua vez, será realizada sob os auspícios da Teoria Sistêmica de Niklas Luhmann. Certo é que se podem trazer argumentos oriundos das escolas mais tradicionais, que estudam os conflitos e os rituais. No entanto, reputa-se mais eficaz entender as relações sociológicas existentes em face das redes comerciais sob a Teoria Sistêmica, teoria que é capaz de apreender todas as facetas deste objeto de estudo. Muito embora não haja referência histórica no presente artigo, de forma ampla o tema envolve uma análise evolutiva sobre os elementos que compõem o conceito de rede comercial, como propriedade intelectual, comércio e contratos. A valoração patrimonial da atividade intelectual (know how e trade dress), por exemplo, consolidou após o Movimento Iluminista, mas tem sua origem no Movimento Renascentista. A existência de bens intelectuais expandiu-se para diversas áreas, como as obras literárias, as obras artísticas, as obras científicas, as interpretações e as execuções dos artistas, etc. Leonardo da Vinci, já 1726 reconhecendo a importância de seu trabalho, registrava seus estudos, ideias e protótipos através de códigos, preservando, dessa forma, o sigilo. Sob a perspectiva das redes comerciais, em meados do século XX, nota-se um movimento de união entre empresários e comerciantes, que passam a se expandir coletivamente, compartilhando seus bens imateriais em troca de valor e domínio econômico. Presentemente, devido à jovialidade das redes comerciais, os problemas são muitos. Em verdade, nem mesmos os problemas de direito real foram superados, pois nem todos os bens industriais existentes são legalizados119. Mas também se identificam problemas jurídicos nos campos contratual, obrigacional e da responsabilidade civil. A questão é que, de fato, a expansão empresarial através da formação redes de empresas é uma realidade social digna de estudo. Exemplos como McDonald’s e Yazigi mostram que essas empresas/marcas/negócios chegam a ser confundidos com o próprio ramo do comércio em que estão inseridos. A efetividade da rede é latente. O comércio desenvolvido em rede é um dos mais recentes fenômenos evolutivos do mercado, que ocorre justamente no sistema do varejo, aquele destinado à distribuição dos bens e serviços. 2 ABORDAGEM ECONÔMICA Economicamente, redes comerciais significam ganhos competitivos e benefícios para as empresas participantes. As redes proporcionam o aumento do poder de barganha perante os fornecedores e a formação de uma imagem forte capaz de se fazer presente em diversas bases geográficas, o que representa potencialidade em ganho de clientela. Também ocorre aprendizagem coletiva e inovação colaborativa no âmbito dessas redes. Essa nova estratégia é uma verdadeira reestrutura hierárquica de negócios. Onde se tinha um empresário com um negócio único ou com diversas filiais, passa-se a ter um empresário com esse mesmo negócio e diversos outros empresários que atuam em regime de 119 Aqui adota-se todas as ideias de Niklas Luhmann no capítulo IV da sua Sociologia do Direito. 1727 cooperação para que o negócio cresça sob uma única bandeira e expanda-se com custos e benefícios divididos entre todos os envolvidos. Balestrini e Verschoore120 apontam os principais ganhos competitivos que as redes comerciais (por eles chamada de redes de cooperação) proporcionam. Há uma maior escala e poder de mercado, advindo do tamanho cada vez maior da rede. Quanto maior a demanda, maior a sua capacidade de barganha, o que gera benefícios em relação aos fornecedores. Também forma-se dentro da rede uma inteligência coletiva, fruto da absorção de alteridade, o que acaba gerando um movimento racional autopoiético121. Há, ainda, redução de custos e riscos, devido ao compartilhamento do negócio com os aderentes à rede. Ademais, outras vantagens são evidentes, principalmente em nível de marketing, devido aos efeitos sociais que uma marca gera em seu ambiente de atuação. As características administrativas e organizacionais para administração das redes são evidenciadas por Sarita e Lastres122: “Esses novos formatos organizacionais enfatizam a descentralização, a interação interna e com parceiros de todos os tipos, fornecedores e clientes, os quais igualmente baseiam-se crescentemente nas TIs e em informação e conhecimento”. Novamente citando Balestrini e Verschoore123, “a sociedade informacional possui como principal fator de produtividade e competitividade a capacidade dos indivíduos e das organizações gerar, processar e transformar informações e conhecimentos em ativos econômicos[...] o verdadeiro diferencial estratégico da organização está muito mais em seu potencial de criar novos conhecimentos que na tentativa de gerenciá-los”. Dessa transcrição ficam evidentes dois pontos: a sociedade de informação e o conhecimento que a rede proporciona. Esses são tópicos que merecem abordagem filosófica, principalmente com base na teoria sobre o virtual de Pierre Lévy124. Segundo Lévy, “a virtualização pode ser definida 120 Balestrini, Alsones. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias de gestão na nova economia. São Paulo: Bookman, 2008. 121 Aqui adota-se a teoria virtual de Pierre Lévy. 122 Lastres, Helena M. M., Sarita, Albalgi (organizadoras). Informação e globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999, pág. 47. 123 Balestrini, Alsones. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias de gestão na nova economia. São Paulo: Bookman, 2008, pág. 129. 124 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição) 1728 como o movimento inverso da atualização”,125 há um constante movimento de passagem do atual ao virtual, uma “elevação à potência” da entidade considerada. A virtualização é uma mutação de identidade, uma modificação ontológica do objeto; por isso, enquanto a atualização é a solução de um problema, a virtualização é o próprio problema. Enquanto o movimento da atualização vai do problema à solução, o movimento da virtualização vai de uma solução a um problema. O fato é que esse movimento (chamado por Lévy de efeito Moebius) caminha em redes de virtualizações, uma ação apoiando-se em outra, em uma historicidade total126. Há uma tendência autopoiética no movimento atual-virtual-atual-virtual[...]que se alimenta da própria história gerada.127 Segundo Lévy, existe um “espírito” compatível com a coletividade, com uma inteligência múltipla, heterogênea, constantemente auto-organizadora ou autopoiética, que se desenvolve a partir do “acolhimento da alteridade” do mundo ao seu redor. Muitas diferenças devem ser observadas entre o negócio em rede e o negócio independente. Enquanto em um negócio independente o empresário está sozinho em uma situação mercadológica talvez completamente nova, não tendo qualquer apoio administrativo, em uma rede comercial se dispõe de muitos atrativos que lhe trazem maior segurança, tais como consultoria mercadológica, administrativa, técnica e financeira. Também há a garantia de o negócio base da rede já existir, ser conhecido e aceito no mercado. Efetivamente, a rede oferece os produtos e serviços já desenvolvidos, testados e implantados no mercado. Além disso, a rede disponibiliza de imediato ao aderente a marca, que presumivelmente está implantada no mercado. No negócio independente, para criar produtos ou serviços, desenvolvê-los, testá-los e implantá-los no mercado, o know how deverá nascer do próprio empreendedor individual. Além do mais, necessitará de tempo para conquistar o mercado. Já se pode observar as peculiaridades que fazem parte da essência dos negócios em rede. É possível dizer que o aderente à rede perde parcela de sua autonomia; porém, basta um aprofundamento no estudo para perceber que o 125 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 17. 126 A importância da historicidade para a formação do pensamento é latente. 127 Bem ao estilo de Niklas Luhmann. 1729 aderente recebe muitos benefícios da rede. Começa-se o negócio sabendo-se muito a respeito dele próprio, como o melhor modo de administração, os melhores fornecedores, os melhores pontos comerciais, as exigências dos clientes, etc., além de se ter um marca (imagem, identificação) já consolidada no mercado. Usando os números apenas das redes comerciais formatadas em franquias, disponíveis pela Associação Brasileira de Franchising, a evolução do setor no Brasil é espantosa (os números abaixo correspondem a faturamento do setor de franchising brasileiro em bilhões de reais nos respectivos anos)128: Há, definitivamente, inúmeras questões econômicas relacionadas às redes comerciais. O estudo aprofundado de cada uma dessas questões é de importância capital para se entender a função das redes comerciais e como o Direito deve estruturar esse fenômeno econômico de forma a organizar o desenvolvimento. 3 ABORDAGEM JURÍDICA Redes comerciais, ou redes de cooperação, ou sociedades informacionais, envolvem análises jurídicas de propriedade intelectual, de direitos obrigacionais, de direitos contratuais e de responsabilidade civil, comercial e consumerista. Em relação à propriedade intelectual, constata-se na doutrina haver uma lacuna na legislação pátria. Conforme explica Newton Silveira, “A Lei de Propriedade Industrial não protege, entretanto, todas as invenções técnicas, mas apenas as invenções industriais, ou seja, as que consistem em um novo produto ou processo industrial”129. Ademais, a Lei de Propriedade Industrial trata dos bens imateriais sob o estatuto da propriedade, passando longe das questões relativas aos direitos e obrigações advindos da relação de cooperação existente nas redes. Na área contratual e obrigacional, é possível notar, por uma simples análise das leis que regem os contratos comerciais tendentes a formar redes, uma total omissão quanto às técnicas de formatar uma rede, quanto às 128 http://www.portaldofranchising.com.br/numeros-do-franchising/evolucao-do-setor-de-franchising Newton Silveira. Propriedade intelectual: propriedade industrial, direito de autor, software, cultivares, nome empresarial, abuso de patentes, 5. Ed. Barueri/SP: Manole, 2014, pág. 06. 129 1730 obrigações que as redes geram para seus atores contratuais, e quanto as expectativas em face dos consumidores e dos próprios membros da rede. As redes comerciais formadas, por exemplo, pelo contrato de agência e distribuição (artigos 710 e seguintes do Código Civil atual), não possuem nenhum regramento quanto às obrigações de cooperação entre formatador e aderente das redes. Há previsão apenas da obrigação do aderente em promover mediante retribuição a realização de certos negócios em zona determinada. Para o aderente, há apenas a proteção contra a concorrência, “caso contratada”. Em contrapartida, ao aderente é imposta diligência e obediência hierárquica ao formatador da rede. No mais, há previsão de que as despesas para efetuar o negócio corram a cargo do agente/distribuidor/aderente, e direito à indenização se o proponente/formatador da rede der causa ao fim do contrato sem justa causa. O grau de imprecisão é tão grande que instituto de direito trabalhista é aplicado em relações comerciais. Outro exemplo: na legislação que rege o contrato de franquia (Lei 8.955/94), há apenas a obrigação do franqueador (formatador da rede) fornecer ao interessado em tornar-se franqueado (aderente à rede) uma Circular de Oferta de Franquia por escrito contendo algumas informações sobre o negócio. Nada há sobre as obrigações “durante” o negócio, como, por exemplo, a coordenação entre os participantes da rede para manutenção de identidade de ação. São essas apenas algumas das problemáticas desses novos contratos comerciais que precisam melhor reflexão. Seguindo as palavras de David Campbell e Hugh Collins, “não nos comprometemos, contudo, com o ponto de vista segundo o qual o direito contratual deveria ser disciplinado por uma versão de eficiência que aloca a liberdade de contratar em um pedestal. Em muitos contratos, a necessidade de cooperação e adaptação, com vistas a obter uma produção eficiente e competitividade, poderá apenas ser alcançada por meio de contratos que estejam incompletos em seus projetos, mas sejam suplementados por obrigações implícitas de cooperação e de proteção às expectativas razoáveis. Esses tipos de contrato de longo-prazo, relacionais e de interação, demandam, de tempos em tempos, uma sustentação jurídica que os proteja de contratempos, e a sustentação deve exigir o reconhecimento de efeitos jurídicos às obrigações 1731 implícitas, caso isso ajude as partes a assegurarem os ganhos de eficiência de suas transações”130. Na linha do que entende Mark C. Suchman, os contratos “podem ser claramente tomados como artefatos. Eles são produtos do esforço humano consciente; eles são objetos materiais tangíveis e distintos; e tanto em forma quanto em conteúdo, eles refletem uma ampla ordem de influências naturais e sociais. O parentesco entre contratos e os tipos mais convencionais de cultura material é particularmente óbvio, quando se enfoca os aspectos decorativos, como, por exemplo, os selos, as bordas do papel folhadas a ouro, o tipo de papel utilizado e assim por diante. Essa afinidade persiste; no entanto, mesmo quando a atenção se volta para elementos mais substantivos, como determinados termos ou frases ou certas combinações de previsões contratuais em operação. Pode-se analisar o design e o estilo de uma cláusula de ressarcimento (clawback) da mesma forma que se pode analisar o design e o estilo de um martelo [claw-head hammer], atentando a características como: impacto e rigidez, construção e acabamento, tamanho e peso”131. O problema reflete nos nossos tribunais. O entendimento jurisprudencial sobre as questões obrigacionais das redes é, hoje, desastroso, inclusive com orientação jurisprudencial no sentido de o contrato de franquia, por exemplo, ser caracterizado como um contrato de “risco”. Ora, nesse caso, somente quem adere à rede é prejudicado, pois assumiu o “risco” de adquirir uma franquia. O paradoxo é que, ao adquirir uma franquia, com toda aquela gama de bens intelectuais já definitivamente desenvolvidos, o aderente espera justamente evitar os “riscos” de um negócio independente. São muitos os pontos que levam a crer que não se pode dar ênfase ao “risco” nos contratos de franquia. Mesmo assim, a jurisprudência reiteradamente entende haver risco, como se vê nos julgamentos oriundos do Tribunal de Justiça gaúcho.132 130 file:///C:/Users/Mano/Downloads/Para-que-serve-o-direito-contratual%20(1).pdf. file:///C:/Users/Mano/Downloads/Para-que-serve-o-direito-contratual%20(1).pdf. 132 Apelação Cível Nº 70018858423, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em 25/04/2007. Apelação Cível Nº 70015554769, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angelo Maraninchi Giannakos, Julgado em 13/09/2006. Apelação Cível Nº 70007889579, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 01/04/2004. 131 1732 E esse é apenas um dos problemas que se tira da praxe forense. Todos são problemas oriundos da má interpretação dos objetivos econômicos das redes, da compreensão do evento que os contratos devem estruturar, das expectativas obrigacionais que o negócio gera, da função que os bens imateriais possuem, enfim, resultando na incompreensão do Direito que deve ser aplicado às redes comerciais. 4 ABORDAGEM SOCIOLÓGICA O sociólogo alemão Niklas Luhmann desenvolveu sua teoria do direito sob o ponto de vista de um dever-ser não natural à sociedade. Luhmann analisa o dever-ser a partir de sua função, assim abrindo caminho para um debate mais direcionado e complexo em termos sociológicos. Na base da Teoria Sistêmica de Luhmann os campos da ação e da experiência sensorial são os focos de análise, pois é a partir daí que se formam as personalidades e os sistemas sociais como diferentes estruturações de complexões de sentido. As personalidades e os sistemas sociais são estruturas distintas de assimilação da experiência. Uma vez que as indagações sobre as ações e experiências digam respeito à personalidade, estar-se-á diante da psicologia; dizendo respeito às ações e experiências no contexto funcional e estrutural de sistemas sociais, estar-se-á diante da sociologia. O fato é que a relação do homem com o mundo se dá de forma sensitiva, e existem elementares em todas as sociedades, modernas ou arcaicas, que precisam ser pesquisadas para se chegar a uma ideal explicação do Direito. Assim, Niklas Luhmann, em sua Sociologia do Direito133, traça os paços de sua teoria. O primeiro passo está na problemática do convívio humano sensorialmente orientado, através dos conceitos de contingência e complexidade: a sobrecarga do convívio humano é atenuada pela formação de estruturas de expectativas. O segundo passo está na diferenciação entre estruturas cognitivas e estruturas normativas de expectativas: dependendo do caso de desapontamento, 133 Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983 1733 estará prevista a assimilação ou não à frustração da expectativa. No caso de assimilação da frustração, a estrutura será cognitiva – quando, por exemplo, não se dá bom dia; no caso contrário, a estrutura será normativa – quando, por exemplo, se rouba. O terceiro passo está justamente na determinação das expectativas de comportamento que devem ser normatizadas, momento em que há, devido à possibilidade de frustração, a necessidade de se manter a estabilidade social. Três são as dimensões, portanto: material, social e temporal. A dimensão material diz respeito à identificação de complexões de expectativas; a dimensão social diz respeito à institucionalização de complexões de expectativas; a dimensão temporal diz respeito à normatização de complexões de expectativas. Primeiro identifica-se uma expectativa, depois ocorre ou não sua institucionalização, e por fim, em caso positivo, normatiza-se. A partir do entendimento dessas três dimensões, é possível definir e descrever a função do Direito como congruente, ou seja, como generalização de estruturas de expectativas coerentes em todas as três dimensões. Nas palavras de Luhmann, “o homem vive em um mundo constituído sensorialmente[...] o mundo apresenta ao homem uma multiplicidade de possíveis experiências e ações, em contraposição com seu limitado potencial em termos de percepção, assimilação de informação, e ação atual e consciente. Cada experiência concreta apresenta um conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas[...] Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de desapontamento e necessidade de assumir-se riscos. Sobre essa situação existencial desenvolvem-se estruturas de assimilação da experiência, que absorvem e controlam o duplo problema da complexidade e da contingência. Certas premissas da experimentação e do comportamento, que possibilitam um bom resultado seletivo, são enfeixadas constituindo sistemas, estabilizando-se 1734 relativamente frente a desapontamento”134. Esses enfeixamentos normativos contra desapontamentos estruturam o sistema jurídico vigente. Aplicando a Teoria Sistêmica às redes comerciais, a primeira questão que vem à tona é entender economicamente o evento. Conforme referido nas abordagens anteriores, a formatação e a aderência a uma rede comercial é uma estratégia comercial para se auferir maiores ganhos e benefícios comerciais. É sob a função e propósito das redes comerciais que as complexões de expectativas são identificadas e diferenciadas. É só a partir da identificação e institucionalização das expectativas comportamentais que as redes geram que se pode estruturar o negócio através de contratos que enfeixam expectativas normativas. O enfoque passa a ser, então, as expectativas que devem ser sustentadas normativamente pelas redes comerciais, através das generalizações congruentes que os contratos comerciais devem representar. As leis existentes hoje que tratam dos contratos que formam redes comerciais pouco representam enquanto paradigma cognocente, devido ao vazio ontológico que possuem em relação ao evento enquanto fenômeno social gerador de expectativa. Ao se estruturar normativamente uma rede de empresas, inúmeros direitos e obrigações surgem entre as partes contratantes, decorrentes justamente dos objetivos comerciais que esses as redes visam. Para o desenvolvedor/formatador da rede, existem inúmeras obrigações que geram responsabilidade, sendo que, talvez, a maior esteja em prover, fomentar, desenvolver a rede que criou. Também se pode pensar na questão do ganho mercadológico, pois é isso que se procura quando se pretende aderir a uma rede. Nota-se, efetivamente, haver um hiato entre as considerações hoje institucionalizadas entre os comerciantes que participam de redes e as disposições normativas existentes. Quem entra em uma rede, ao invés de empreender individualmente, o faz coletivamente por um motivo especial. A questão é entender o que significa a constituição de uma rede em relação às expectativas dos aderentes da rede. As unidades/lojas das redes ficam sujeitas à própria sorte, ou deve o formatador da rede continuar engendrando 134 Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, págs. 45 e 46. 1735 esforços para mantê-la, desenvolvê-la, fomentá-la? Realmente, identifica-se na prática um anseio de atualização, de reciclagem, de desenvolvimento permanente, além de um sentimento de “filiação” por parte dos aderentes à rede em relação ao formador da rede. Mas, geralmente, essa não é a preocupação do formador da rede, que na maioria das vezes pensa e age com imediatismo, apenas desenvolvendo um produto ou serviço para que os aderentes à rede coloquem no comércio. A partir de então, quem entra para a rede acaba por atuar, normalmente, desamparado de quem a formatou. Abordagens sobre “perspectivas”, “contingências”, “sistemas” e “estruturas” fazem parte da base teórica que melhor explica o contexto social em que as redes estão inseridas. É a partir dessa base que se pode tentar aplicar o melhor Direito possível a esse evento comercial. A certeza é que na dimensão temporal, como visto na abordagem jurídica, praticamente inexiste qualquer consideração sociológico-normativa relacionada à criação de uma rede comercial. Está-se, ainda, em um nível normativo baixo, o que se confirma pela simples análises das leis que regem os contratos formadores de redes comerciais. Além dos contratos tipificados pela legislação, muitas redes comerciais são formatadas por contratos atípicos (o que não as tornam ilegais, devido ao princípio da atipicidade dos contratos) que também são desprovidos de qualquer abordagem sociológica adequada sobre o que representa a rede comercial enquanto sistema social. Na dimensão social, onde os sentidos dos fenômenos são escolhidos, a partir da interação social, nota-se como vetor de ação o princípio da cooperação entre os formatadores das redes e aderentes às redes. Explica-se. Conforme assevera Luhmann, a continuidade em participar de uma relação social, intencional ou não, representa um consenso genérico com a situação. É a partir da coparticipação social que se formam as autoevidências supostas no comum, ou seja, a redução institucional das possibilidades. É nesse jogo de direitos e obrigações que se institucionalizam as expectativas. Havendo um certo equilíbrio, há institucionalização, e como todos os fenômenos sociais, esse equilíbrio muda conforme for a evolução social. Como não há, na dimensão temporal, tratamento adequado às obrigações do formatador da rede em relação ao sistema que criou, 1736 acaba nas mãos do Poder Judiciário a decisão sobre quais são essas obrigações. Não havendo uma adequada orientação jurídica para julgar litígios envolvendo as relações internas das redes comerciais, o valor ontológico da rede não é revelado. Luhmann afirma que o Direito existe como um meio de integração da sociedade em sua globalidade, representando, pelo menos dentro das fronteiras de uma sociedade, as expectativas oficiais daquela sociedade. Assim, o desenvolvimento de instituições jurídicas (como os negócios jurídicos que formam as redes comerciais) dá-se a partir da “diferenciação de papeis especiais e de sistemas parciais com poder decisório sobre o direito, de efeito vinculativo em termos sociais”135. Como se percebe, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário precisam estar conscientes do que significa sociologicamente uma rede comercial. Finalmente, na dimensão material, ou dimensão do sentido prático, as expectativas comportamentais normativas precisam ter um mínimo de base cognitiva plausível, que não seja contraditória com todo o sistema que as cercam. As dimensões temporal e social atuam dentro do que é possível no sentido prático. É necessário haver uma mediação do mundo em comum, e são os sentidos que fazem essa mediação. Para Luhmann o sentido funciona como “síntese, intersubjetivamente acessível, de uma multiplicidade de experiências possíveis”136. O sentido permite uma escolha dentro da multiplicidade de oportunidades que existem, possibilitando um procedimento abreviado de consciência que pula de sentido a sentido até a ação estar completa. Não é preciso experimentar todas as possibilidades e todos os vieses que todas as possibilidades têm, e todos os vieses do vieses[...] de sentido em sentido, de síntese em síntese, a ação se desenrola. A teoria do conhecimento de Luhmann parte dessa dimensão. A rede comunicacional que os sentidos formam seriam a fonte de consciência da ação humana. Com a positividade do sistema, a partir da virtualização da comunicação dos sentidos, seguindo a linha de raciocínio de Pierre Lévy, vislumbra-se um ambiente totalmente autopoiético, acolhedor de 135 Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, pág. 92. 136 Sociologia do Direito I – Niklas Luhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, pág. 94. 1737 alteridade, que se forma no âmbito de cada rede comercial existente. Aí está a fonte do conhecimento para a rede comercial: dentro do seu próprio sistema. A relação entre expectativa comportamental e síntese é evolutiva. A expectativa expressa uma intenção de que algo ocorra de determinada maneira. A expectativa aponta para o futuro. Os sentidos, por sua vez, são sínteses de muitas expectativas, possíveis e cambiáveis conforme a situação presente. A questão última é, portanto, achar o sentido das redes comerciais. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme ensina o professor Lênio Streck137, é necessário um giro, uma superação das inconsistentes e contraditórias ações que hoje representam as redes comerciais. Deve haver um compromisso ontológico com os institutos formadores de redes comerciais. Os negócios em rede não possuem amparo jurídico adequado em solo pátrio, o que se deve à desconsideração da contribuição que a Sociologia Jurídica é capaz de dar. A inteligência que se faz necessária sobre o assunto deve levar em conta, obviamente, a questão da escolha entre ser pertencente a uma rede ou ser um empresário independente. Na linha do que afirma Paulo Cesar Mauro, é claro que ser um empresário franqueado, por exemplo, oferece muito menos riscos do que ser empresário independente, autônomo, sem vinculação a uma rede138. Não existe um “direito natural” sobre redes comerciais; o fenômeno enquanto evento econômico é recentíssimo, não havendo possibilidade de se fazer uma diferenciação entre direito novo e direito antigo aplicado às redes. Estamos, definitivamente, na maternidade jurídica das redes comerciais. A identificação dos princípios econômicos e sociais que regem as redes comerciais é a melhor forma de se encontrar os seus princípios jurídicos. Economicamente, as redes comerciais têm por princípio a aquisição de vantagens mercadológicas. Socialmente, há a criação de um grupo, que age 137 Hermeneutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lênio Luiz Streck. 10 ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria de Advogado Editora, 2011. 138 Guia do franqueado: leitura obrigatória para quem quer comprar uma franquia. – 2 ed., São Paulo: Nobel, 2013. 1738 sistematicamente e ritualisticamente. Há a criação de um sistema social cujas ações são coordenadas em razão de uma entidade maior, que é a própria rede. O que significa isso juridicamente? Pois bem, a ação da rede enquanto grupo deve ser consciente e direcionada ao benefício econômico. Deve haver uma técnica de ação que traga proveito mercadológico aos aderentes da rede. Os comerciantes que fazem parte de uma rede esperam ter proveitos econômicos em relação ao negócio individual, oriundos da ampliação da capacidade de competição do grupo em relação ao negócio individual. Espera-se uma potencialização da capacidade competitiva dessas empresas, ou seja, um maior poder de mercado, decorrente do crescimento do número de associados da rede. A redução de custos e riscos que a rede proporciona é uma obviedade, e por isso há, implicitamente, obrigação de ação nesse sentido. Também nota-se um acesso mais racional a soluções de problemas, decorrente da absorção de alteridade que a rede permite devido à ação em grupo. As redes desenvolvem-se organizadas em sistemas de informação que disseminam soluções para problemas operacionais que surgem no interior da rede. Assim, a aprendizagem é coletiva, formando-se uma inteligência coletiva. Há um motivo econômico para se formatar um rede comercial, e esse motivo é preponderante para se optar fazer parte da rede. Em termos sociológicos, é preciso reduzir o comportamento altamente complexo e contingente existente dentro de uma rede comercial de modo a possibilitar expectativas comportamentais recíprocas e que são orientadas a partir das expectativas sobre tais expectativas. Na dimensão temporal, as normas são capazes de estabilizar as estruturas de expectativas, orientando a ação. Na dimensão social, a institucionalização das expectativas comportamentais formatadas pelo formador da rede dá-se pelo consentimento dos aderentes da rede. Se esses aderentes discordam das expectativas e não seguem no grupo formado pela rede, em pouco tempo ela se desfaz, momento em que fica clara a fraqueza do sistema formado. Finalmente, na dimensão material, da praticidade do fenômeno, os sentidos que se formam em torno da rede comercial criada são o que realente identificam-na. O Direito aplicado às redes comerciais deve levar em 1739 conta, portanto, o fato desse fenômeno ser uma estratégia econômicomercadológica, além de ser um verdadeiro sistema social. É na generalização das expectativas comportamentais congruentemente nessas três dimensões que se identifica o Direito a ser aplicado às redes comerciais. REFERÊNCIAS BALESTRINI, A. Verschoore. Redes de cooperação empresarial – Estratégias de gestão na nova economia. São Paulo: Bookman, 2008. LASTRES, H. M. M.; SARITA, A. (orgs). Informação e globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1999. LÉVY, P. O que é virtual?; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição). Disponível em: <http://www.portaldofranchising.com.br/numerosdo-franchising/evolucao-do-setor-de-franchising>. SILVEIRA, N. Propriedade intelectual: propriedade industrial, direito de autor, software, cultivares, nome empresarial, abuso de patentes, 5. Ed. Barueri/SP: Manole, 2014. STRECK, L. L. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10 ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria de Advogado Editora, 2011. Guia do franqueado: leitura obrigatória para quem quer comprar uma franquia. – 2 ed., São Paulo: Nobel, 2013.