Joseph Kosuth Casa Vogue

Transcrição

Joseph Kosuth Casa Vogue
gente ENTRE4PAREDES
POUCOS SÃO OS que conseguem criar uma nova ordem. Este é
o caso de Joseph Kosuth, conhecido como o pai da arte conceitual. Ele a batizou com esse nome em 1965, quando rompeu a primazia do histórico modus operandi da arte baseada na pintura e na
escultura, e abriu-a para o campo do significado. Com Duchamp
e Beuys, Kosuth faz parte de um time de mestres respeitados.
Os trabalhos deste norte-americano de 65 anos, que vive em
Roma e tem estúdio em Nova York, estão nos mais importantes museus do mundo e em mostras como a Bienal de Veneza, na
Itália, e a Documenta de Kassel, na Alemanha. Kosuth esteve na
29ª Bienal de São Paulo, que segue até 12 de dezembro, para conferir sua obra East, North, South, West, da série Art as Idea as Idea,
de 1967. São quatro painéis de chapa preta de ferro com definição dicionarizada dos pontos cardeais em branco. Ele concedeu
esta entrevista a Casa Vogue.
HOMEM DE PALAVRA
Ele fez da linguagem uma forma de arte. Nome estelar da 29ª Bienal de São Paulo, o artista plástico
norte-americano Joseph Kosuth contesta a pintura e a escultura e se apoia em palavras e significados
por Cynthia Garcia retrato Rui Mendes
100 CASAVOGUE
Fotos: Divulgação e © Luigi D’Agostino
(Tredici locazioni di significato)
CASA VOGUE - Quando o senhor percebeu que a palavra poderia se tornar uma forma plástica de manifestação artística?
JOSEPH KOSUTH - Desde as minhas primeiras obras, aos 20
anos, uso a linguagem, aproprio-me de palavras inventadas
Ao lado, Joseph Kosuth
diante de sua obra East,
North, South, West, de 1967,
exposta na 29ª Bienal de São
Paulo. Joseph Kosuth,
Tredici Locazioni di Significato,
2005, Torrione Passari,
Molfetta, Bari, Itália (abaixo)
CASAVOGUE
101
gente ENTRE4PAREDES
por outros. O primordial na arte não é o artista trabalhar
com formas e cores, é trabalhar o significado. Esta é a grande questão da arte. Com o significado, o artista usa o meio
que quiser. Artista que não trata do significado não faz arte.
Nos anos 1960 questionávamos as instituições, então divididas entre a pintura e a escultura. Em Nova York, ao cursar a School of Visual Arts, influenciei professores e alunos
com minhas ideias a ponto de eu, um estudante, ser nomeado professor, em 1967, devido aos meus questionamentos
irem contra as noções básicas vigentes a respeito do conceito do que é arte e seu significado. Eu acreditava na arte, mas
não na pintura e na escultura. Chamei a nova ordem de conceitualismo, baseado nas minhas leituras de Wittgenstein
(1889-1951). Saímos do modernismo, a meu ver já esgotado,
e entramos na fase embrionária do pós-modernismo. Como
eu era muito jovem, escondi minha idade, só a revelei na coletiva de imprensa da retrospectiva que fiz no Museu de Arte
Moderna de Paris, em 1974. Eu tinha 29 anos.
CV - Como chegou ao conceito?
JK - A primeira vez que escrevi sobre o conceitualismo foi em
1969, no ensaio Arte depois da filosofia, onde expus que tínhamos indagações impensáveis nos limites da pintura. No início,
a arte conceitual foi confundida com arte pós-minimalista,
que se baseava na desmaterialização, porque se pensava na
arte em termos de materiais. Até a crítica Lucy Lippard, primeira a escrever sobre arte conceitual, enxergava-a sob a ótica do minimalismo.
102 CASAVOGUE
No alto, Joseph Kosuth,
Die Signatur des Wortes (Licht
und Finsternis), 2001, Centro
Internacional de Arte da Luz,
Unna, Alemanha; e acima,
Joseph Kosuth, Four Colors
Four Words, 1966, Museu de
Arte Moderna, Frankfurt
gente ENTRE4PAREDES
Joseph Kosuth,
One and Three Chairs,
1965, MoMA, Nova York
CV - Como analisa o fenômeno da arte conceitual?
JK - A arte conceitual chegou na hora certa e sobreviveu não
em função do mercado, mas por estar enraizada na cultura ocidental contemporânea. Hoje, a arte conceitual é a arte
contemporânea, simplesmente chamada de arte. Mas quando comecei, tive que dar um nome àquilo, aí bolei: arte conceitual. Sua influência é nítida a partir da segunda metade do
século 20. Uma de suas grandes contribuições é ela se basear no poder da ideia e não na qualidade artesanal do trabalho, como ocorre na pintura e na escultura. O que significa ser
um artista mudou com o advento da arte conceitual. Desde
o início da era judaico-cristã endeusava-se o artista, sempre
uma figura masculina. Daí a dificuldade de a sociedade aceitar que a mulher pudesse produzir arte com significado. Com
a arte conceitual essa premissa cai e a arte passa a ser julgada não pelo gênero do autor, mas por sua questão central: a
ideia. Isso fica claro nos anos 1980, com nomes como Cindy
Sherman, Barbara Kruger e Jenny Holzer, enquanto gente na
qual o mercado falocêntrico apostava, como (Julian) Schnabel,
ficou ultrapassada.
CV - Qual o efeito da arte conceitual na fotografia?
JK - Comecei a usar a fotografia na obra One and Three Chairs
104 CASAVOGUE
(1965), quando ninguém pensava nisso. Tivemos o olhar inquisitivo de Man Ray e dos dadaístas, mas havia uma fotografia
conservadora e, de outro lado, a pintura e a escultura. O atual
renascimento da fotografia aconteceu graças à arte conceitual.
CV - E a relação de seu trabalho com Marcel Duchamp? O
senhor o conheceu?
JK - Aos 19 anos, eu tinha um estúdio em Paris. Jean-Jacques
Lebel, diretor do Festival da Livre Expressão, organizou
um happening que consistia em um Volkswagen coberto de
espaguete com o poeta e escritor Lawrence Ferengetti em
cima do carro lendo poemas. Ao meu lado, um sujeito mais
velho tecia uns comentários bem originais. No final, ele se
virou para mim e disse “enchanté” (foi um prazer). Era Marcel
Duchamp, eu não sabia. Mais tarde, em 1968, Duchamp estava no conselho da Fundação Cassandra e, por sua influência,
recebi uma bolsa. Ele faleceu uma semana depois. Se analisarmos Duchamp, vemos que o modernismo era baseado em
duas visões opostas. Havia Picasso e Matisse com a questão
pictórica e Duchamp na outra ponta. Na segunda metade do
século 20 ficou claro que quem ganhou foi Duchamp, porque ele refletiu sobre a questão antológica fundamental: o
que é arte? ■

Documentos relacionados