SCLN 304 - Bloco A - Entrada 63 - Sobreloja - CEP 70736

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SCLN 304 - Bloco A - Entrada 63 - Sobreloja - CEP 70736
BRASIL A QUESTÃO NACIONAL
Miguel Arraes
SCLN 304 - Bloco A - Entrada 63 - Sobreloja - CEP 70736-510 - Brasília, DF
Tel/Fax: (61) 3327-6405 / 3327-5196 - e-mail: [email protected]
Miguel Arraes
BRASIL A QUESTÃO
NACIONAL
Capa:
Detalhe Reprodução Obra de
Cândido Portinari
Contra-Capa:
Reprodução de Obra David Farias
Projeto Gráfico e Impressão:
TC Gráfica e Editora Ltda - EPP
“...se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, por
que motivo eles se ajuntaram e qual a razão dos seus sofrimentos.”
“Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”
Carlos Drummond de Andrade1
1
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião, editora José Olímpio. Rio de Janeiro, 1969.
Sumário
Grande Nação? Ou Território Ocupado?......................... 7
Dependência....................................................................... 10
A Revolução Nacional....................................................... 23
A Contra-Revolução.......................................................... 31
Os Golpes........................................................................... 46
A Ditadura.......................................................................... 53
A Recolonização................................................................. 58
Os Modelos........................................................................ 64
A Questão Nacional........................................................... 73
Interesses Nacionais........................................................... 82
Mobilização Nacional........................................................ 95
Resumo............................................................................... 99
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Brasil a Questão Nacional
Grande Nação?
Ou Território Ocupado?
É importante para a ditadura procurar demonstrar
que estamos saindo do mundo dos subdesenvolvidos. Essa
tese não é destinada apenas a entreter a propaganda que
justificaria a ação dos governantes do momento. Nela está
assentado o arcabouço ideológico do sistema de dominação
e, em conseqüência, a política do regime.
Tudo é feito para dar a impressão de que o Brasil está
ficando rico e, portanto, independente. A prova estaria no
crescimento da produção industrial, nas estradas, nos meios
de comunicação e em realizações semelhantes.
Com isso, o regime permite-se implantar a “segurança”.
As razões que ele mesmo oferece para existir, isto é, para a
repressão que desencadeia em todos os níveis, baseiam-se
no falseamento de conceitos, a começar pelos de grandeza e
de nação.
A grandeza não se mede pelo número de automóveis
fabricados, nem por quilômetros de estrada. Nada disso
tem valor se não nos afirmamos, diante da comunidade
internacional, como uma nação que traz, em termos altos,
Brasil a Questão Nacional
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uma contribuição nova e construtiva para o conjunto da
humanidade.
Ora, o comportamento da ditadura leva o país ao sentido
oposto. Fomenta golpes de Estado nos países vizinhos, liga-se
ao regime fascista da África do Sul e apóia a política colonialista
de Portugal quando somos uma das maiores nações negras
fora do Continente Africano. A pretexto de que o Brasil se
desenvolve, afasta-se dos países do terceiro mundo, assumindo
atitudes de novo rico, quando a nossa população é tão pobre
ou mais do que a deles. Seu conceito de grandeza fere, desse
modo, a realidade de nosso país e as aspirações do nosso povo.
Por outro lado, os nossos verdadeiros problemas são
escamoteados através da comparação do Brasil com as nações
européias, com os Estados Unidos, com o Japão, de épocas
anteriores. Os tecnocratas da ditadura citam dados estatísticos
com a intenção de mostrar que já trilhamos uma boa parte do
mesmo caminho, quando o nosso é bem diferente dos que
seguiram aquelas nações.
Como bem assinala Stavenhagen2 “o subdesenvolvimento
na América Latina não é simplesmente uma questão de
“atraso” em relação aos países industrializados, que se poderia
medir comparando diversos indicadores tais como o produto
nacional bruto, o produto por habitante etc. Trata-se de
uma estrutura que resulta de um certo processo histórico.
O subdesenvolvimento é a maneira de ser dos países latinoamericanos na época moderna, como foi a “sociedade colonial”
durante os três séculos da colonização ibérica.”
2
STAVENHAGEN, Rodolph. L’ Amérique Latine, 1971.
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Brasil a Questão Nacional
De fato, nossa história não é a da Europa. Lá,
segundo Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista,
a burguesia industrial desempenhou um papel ativo e
revolucionário na formação das nações, partindo dos seus
interesses de classe. A centralização dos meios de produção
e a concentração da propriedade nas mãos de poucos
determinaram a centralização do poder, criando normas que
levariam populações, antes ligadas por laços mais tênues, a
uma convivência que se estruturou no plano econômico,
político e cultural. A estabilidade desse sistema, na sua fase
de expansão, permitiu-lhe estender seu domínio a outras
regiões, na busca da exploração de outros povos.
Tampouco somos como os Estados Unidos. Conforme
Celso Furtado, as manufaturas desenvolveram-se desde o
final do século XVII, apesar das sucessivas proibições da
Inglaterra. Sendo numerosa, a pequena e média propriedade
constituíam um mercado interno capaz de absorver a sua
produção. A guerra da independência trouxe para o poder
as camadas médias e uma burguesia em ascensão, classes
consideradas revolucionárias naquela época, tanto nos Estados
Unidos quanto na Europa.
Nossa evolução foi bem diversa. As manufaturas
foram liquidadas na própria metrópole portuguesa, pelo
Tratado de Methuen. Fomos uma espécie de Rodésia do
século XIX: uma minoria branca também decretou a nossa
autonomia política, com o objetivo de quebrar o monopólio
do mercado de exportação, detido por Portugal.
Brasil a Questão Nacional
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Dependência
Traços comuns com as nações dependentes
Sempre fomos e continuamos dependentes.
Assemelhamo-nos assim, com os demais países latinoamericanos, com os africanos e com os asiáticos.
Em todos os países como o nosso, os setores
hegemônicos das camadas dirigentes desempenharam papel
bem diferente das burguesias industriais européia e americana.
Serviram e servem de intermediários da dominação dos seus
próprios povos por interesses externos. Para exercer esse
papel, devem relacionar-se com as duas partes. De um lado,
com o exterior, significando submissão, aliança, associação;
de outro, com o interior, guardando, pelo menos, a aparência
de que pertencem à comunidade nacional.
Instalando sua hegemonia sobre o conjunto das
classes dominantes, aqueles setores representaram sempre
a antinação, não a nação. Jamais tiveram o papel ativo e
revolucionário que coube, no passado, às burguesias dos países
industrializados. Desempenharam sempre um papel passivo,
reflexo, de freio ao desenvolvimento da própria comunidade,
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Brasil a Questão Nacional
porque isso resultava melhor aos seus interesses.
Nestas condições, as definições de nação que trazem os
dicionários não se aplicam por inteiro às nações dependentes.
É certo que, como as demais, são “uma forma historicamente
constituída de sociedade humana....São próprias da nação,
antes de tudo, a de condições materiais de vida; de território
e de vida econômica, a comunidade de idioma, de psicologia,
assim como determinados traços de caráter nacional que se
manifestam na peculiaridade nacional de sua cultura”.
Toda essa conceituação contida no dicionário Rosental
e Iudin pode ser encontrada, grosso modo, nas diversas
nações, dominantes e dominadas. Mas essas últimas não
chegam a ser, como ele acrescenta, “a forma mais ampla
de comunidade a que deu origem o nascimento e evolução
do sistema capitalista”. Esse conceito ajusta-se melhor às
dominantes, àquelas em que o sistema se expandiu a partir
de transformações de suas bases sociais, atingindo plena
maturidade e que agora está em fase de decadência.
A expansão do sistema capitalista transformou a face
do mundo. Mas, imposto de fora para dentro, de cima para
baixo, às nações dependentes, não criou mecanismos que as
tornassem a “forma mais ampla da comunidade humana”, no
sentido capitalista do termo. Ao contrário, contribuiu para
frear sua evolução nesta direção, porque isso era necessário
à expansão dos centros mundiais de dominação.
A liquidação de formas embrionárias de
desenvolvimento industrial era uma exigência da expansão
do sistema. O Tratado de Methuen fez de Portugal, até hoje,
uma nação subdesenvolvida para atender às necessidades
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do capitalismo inglês. Em todo o mundo colonizado, eram
proibidas as manufaturas, ou liquidadas pela concorrência
da máquina, como ocorreu com a indústria chinesa fundada
sobre o trabalho manual, no século passado.
Assim, a penetração do sistema capitalista nas
nações dependentes fez-se de forma reflexa. Quebrou o
desenvolvimento dessas sociedades a partir de mecanismos
próprios, criados pelas necessidades vividas naquela
oportunidade. Prevaleceram outros fatores, mais fortes,
vindos de fora. Por conseguinte, as modificações introduzidas
pelo sistema importado não conseguiram atingir toda a escala
social.
A penetração do sistema capitalista não provocou
uma revolução profunda. Mas impôs como conseqüência,
a sua ideologia, por inteiro. Por isso mesmo, antigas
culturas, enraizadas por uma longa tradição, tidas como mais
“atrasadas” do que a “civilização ocidental”, continuaram a
servir, em maior ou menor medida, de elemento aglutinador
da sociedade.
Traços particulares da nossa dependência
Dependentes como os povos asiáticos e africanos,
deles nos distinguimos, entretanto, pelas diferenças culturais
decorrentes da nossa formação histórica. Não constituímos
uma antiga civilização.
As comunidades que existiam no nosso continente
foram dizimadas. O que delas restou é visto como um
corpo estranho no seu próprio território, de tal forma que
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Brasil a Questão Nacional
ninguém se aventuraria a propor a restituição aos índios das
terras ocupadas há poucos séculos ou ainda não desbravadas.
No entanto, muitos consideram perfeitamente normal a
recuperação do território da Palestina pelos judeus, dois mil
anos depois de ter sido abandonado.
Nossa recente formação não permitiu a sedimentação
de formas de convivência que, nas antigas comunidades,
serviam como um dos elementos de coesão social, fundada,
em toda parte, no consentimento e na coerção. Quanto maior
fosse o consentimento, entendido não como a aceitação
de idéias em abstrato, mas através do seu ajustamento
aos interesses dos indivíduos, menos as classes dirigentes
precisariam recorrer ao uso da força.
No curso da sua evolução, elas puderam constituir, por
“atrasado” que fosse, um sistema social coerente, no sentido
da harmonia existente entre a exploração econômica, as idéias
que a justificaram e os elementos culturais que se organizaram
em torno delas. No dizer de Gramsci, em Piotte3 “se uma
ideologia – definida como a união de uma visão do mundo e
de formas de conduta – é historicamente necessária, ela deve
poder ser encontrada em todos os níveis da sociedade:
econômico, político, artístico, científico, lingüístico etc.”
O s i s t e ma c a pit a list a n ã o encontrou ple no
desenvolvimento nas nações dependentes que não foram,
por isso, totalmente impregnadas da ideologia que lhe
corresponde, enquanto “concepção do mundo que se
3
PIOTTE, Jean Marc. La Pensé e Politique de Gramsci, Editora Anthropos. Paris, 1970.
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manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
econômica, em todas as manifestações da vida individual
e coletiva” (idem). Permaneceram, em maior ou menor
medida, antigas formas de relacionamento – outra “noção de
uma visão do mundo e de formas de conduta” – por ter sido
“historicamente necessária” em fase anterior. Continuam a
servir à coesão social, embora sejam geralmente consideradas
como um obstáculo ao progresso.
Pode se discutir o papel que tais fatores desempenham.
Assumem aspecto positivo, quando um projeto político os
utiliza em ligação com reivindicações sentidas da população,
como ocorreu em algumas guerras de libertação. No mais
das vezes, continuam a servir de instrumento das camadas
dirigentes que os manipula em seu próprio benefício.
No entanto, estas são também freadas na sua tendência
a uma total aculturação pois precisam conservar raízes no
interior, necessárias ao seu papel de intermediárias. Em outras
palavras, os dirigentes devem, ao menos, ter o trabalho de
conservar, embora só na aparência, os hábitos, símbolos e
crenças de seus povos.
Na África e na Ásia, esses traços culturais ajudam a
distinguir o dominador “ocidental” do domínio local. Para a
América Latina, transferiu-se a “civilização ocidental” com
armas e bagagens. Nossas classes dominantes não teriam
que se preocupar sequer com a manipulação dos costumes
locais. Limparam o terreno, destruindo os obstáculos que
encontraram.
A violência na nossa formação
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Brasil a Questão Nacional
Por isso mesmo, nossas origens estão marcadas pela
violência. Ela foi empregada em toda a parte, mas a carga que
nos coube, a que está presente na nossa história até os dias de
hoje, é inegavelmente maior. Impossível querer escondê-la
atrás do paternalismo de Pedro II, das liberdades republicanas
e de outros mitos. Ela é tão grande que nos faz escapar às
definições dos dicionários sobre nação. Não só dos marxistas,
como o já citado, mas do Larousse, segundo o qual “nação
é uma comunidade humana...animada do desejo de vida em
comum”.
Para reunir índios, caçados como feras, negros,
trazidos como escravos, e brancos, fugidos da miséria do
reino ou castigados por uma corte cuja justiça duvidamos,
foi preciso inegavelmente usar a violência de forma ilimitada.
Éramos um ajuntamento de gente, onde, há menos de um
século, existia a escravidão que ainda perdura, disfarçada sob
várias formas, ou aberta, como no tráfego de nordestinos para
as grandes fazendas de outras regiões.
O “desejo de vida em comum” que se criou, vem da
necessidade de sobrevivência da massa oprimida. Não era o
mesmo para senhores e escravos. Os escravos tinham que
arrumar a vida localmente. Os senhores voltavam-se para fora.
Suas atividades econômicas existiam em função do exterior, de
onde provinha a sua ideologia. Sua preocupação não era a de
organizar o país com vistas ao atendimento das necessidades
da comunidade. Tudo era destinado a atender a exigências
vindas de fora.
À primeira vista, parece ser história antiga, parece
referir-se a fatos ocorridos quando da chegada dos portugueses
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nos idos de 1500. No entanto, ela é perfeitamente atual. As duas
concepções sobre a formação da nação chocam-se até hoje. A
postura do colonizador, o absoluto desprezo pela população
são tanto dos primeiros representantes da coroa portuguesa,
quanto do atual ministro da fazenda da ditadura.
A orientação é a mesma: dirigir as atividades econômicas
para fora e não no sentido da construção do país. O que nele se
faz, por vezes com alarde de grandiosidade, serve a uma mesma
política de dependência. Mudam as justificativas, os métodos,
os instrumentos; a essência permanece.
A separação entre a minoria dominante e a grande
maioria da população vinha e vem de enormes diferenças
materiais de vida. Mas o fosso é ainda mais aprofundado pela
inexistência de laços de identificação entre ambas. Entre um
pobre e um rico, em certas zonas do nosso país, a distância era
maior do que entre um budista pobre e outro rico, entre um
chefe árabe e seus súditos. Estes possuíam, ao menos, crenças
comuns.
É que existia, paralelamente à repressão material, a
violência ideológica contra o povo, a quem se buscava impor
concepções que nada tinham a ver com suas condições
concretas de vida. As elites importavam o modo de vida
europeu como agora, o norte-americano. Incapazes de
construir um sistema com um mínimo de coerência,
tiveram que aplicar as idéias da Revolução Francesa a um
regime escravocrata. Agora utilizam fórmulas americanas
a condições econômicas e sociais inteiramente diferentes,
como as nossas.
Por isso, a repressão sempre foi utilizada em alto grau.
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Brasil a Questão Nacional
As franquias democráticas que começaram a se alargar em
1930, beneficiaram de fato apenas uma reduzida minoria. Um
dos direitos mais elementares, o de voto, não apenas para os
analfabetos mas para milhões de pessoas no interior do país,
sempre foi estritamente controlado e dirigido.
O uso da violência, sob diferentes formas e de modo
permanente, como elo de ligação entre a minoria dominante
e o povo, estabeleceu entre ambos uma profunda separação.
Todo elo liga e separa ao mesmo tempo, sendo a violência,
enquanto tal, o que mais força tem para separar.
Violência e Segregação
Em termos sociais, a violência leva à segregação. Dirse-á que ela não existe no Brasil, tanto assim que teríamos
ultrapassado o problema da discriminação racial. Na verdade,
a discriminação entre nós assume aspectos diversos da
americana e da sul-africana.
No nosso país, as condições de vida identificaram, nas
necessidades e no sofrimento, brancos, pretos e mestiços,
homens de todas as origens, reduzindo ou eliminando,
no seio do povo e de grande parte das camadas médias, a
separação em função da cor da pele. Porém, herança da
sociedade escravocrata, ela constitui fenômeno tão amplo
quanto a recusa de convivência com pessoas de outra raça. É
sobretudo sobre outros aspectos que esta separação existe no
Brasil, onde toma o nome mais brando de “marginalização”.
Nossa população vive segregada, marginalizada. Isso
pode ser facilmente constatado em todos os lugares, nas
regiões ricas e pobres.
Brasil a Questão Nacional
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No Centro-Oeste, de acordo com o documento 4
divulgado pelos bispos da região, “de 1955 pessoas com quem
procuramos falar, 1210 disseram que estão desempregadas e
enfrentam o trabalho que aparece na hora, no tempo em que
é maior a precisão; 143 nada quiseram dizer; somente 602
disseram que têm emprego fixo. Quer dizer que se a gente
pega três pessoas, só uma tem emprego com ordenado. As
outras duas vivem como podem, de “biscate”: trabalham aqui
e ali, hoje sim, amanhã não, um mês sim, outro não...”.
O documento divulgado pelos bispos e superiores
religiosos constata que “a fome assume no Nordeste
características epidemiológicas. Pesquisa realizada em cidades
de diferentes áreas da região apresentou o seguinte resultado
para o consumo médio alimentar por pessoa, em termos de
percentagem sobre o cientificamente recomendado: calorias,
56%; proteínas (total), 81%; cálcio, 74%; vitamina A, 4%;
vitamina C, 54%. Os valores relativos a crianças com idade
menor que dois anos eram os seguintes: calorias, 51%; proteínas
(total), 56%; cálcio, 79%; vitamina A, 7%; vitamina C, 27%”.
“As causas e conseqüências de tal estado de subnutrição
são referidas nas conclusões do relatório da pesquisa, publicado
em 1968 pelo Instituto de Nutrição da Universidade Federal
de Pernambuco (Nutrition Survey on Northeast): A deficiente
disponibilidade de alimentos para a população da área nordestina
tornou-se evidente...A população em geral foi considerada
magra, o que se confirmou através de medidas de espessura da
pele...A impressão mais geral, confirmada através de exames
4
Marginalização de um Povo, maio/1973.
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clínicos, foi de subnutrição ou pouco desenvolvimento físico”.
E mais: “A subnutrição, tendo provocado uma redução
da estatura física, conforme constatação da primeira pesquisa
citada, incluiu entre seus efeitos, o aparecimento na região de
grande número de mutilados mentais. Teste aplicado em 1972
em três municípios da zona da mata de Pernambuco, para medir
o quociente intelectual de 109 crianças, apresenta os resultados
que seguem. Em Gameleira, foi registrado um QI médio de
78, que na escala de Terman indica indivíduos com inteligência
embotada. Em Ribeirão e Água Preta, verificaram-se médias
ainda mais assustadoras: 72,4 e 73,3, respectivamente. Na
mesma escala de referência, esse é o limite da debilidade. Um
ponto abaixo estão os débeis mentais fracos, “último degrau
da imbecilidade” (“Eu ouvi os clamores do meu povo”, maio
de 1973).
Em Minas Gerais, segundo constata Oliveira 5 ,
“move-se, sonambúlica, inerme, uma população açoitada
pela bouba, o tracoma, o bócio endêmico, a leishmaniose,
a esquistossomose, a malária, o escorpionismo, a doença
de Chagas – uma legião de homens à morte confiados. Há
populações em que a prevalência da doença de Chagas é de
100%. Outras em que a taxa de mortalidade infantil é de
500 sobre 1000. A marginalização social desses contingentes
humanos é tremenda. Para cada grupo de 33 pessoas ocupadas
existem 67 dependentes – é como se de cada dez pessoas
apenas duas trabalhassem... De um milhão de habitações
rurais, pelo menos 600 mil não apresentam condições
mínimas de segurança e higiene. Há áreas em que 76% da
população vivem em “cafuas” – versão mineira da favela
carioca, do mocambo pernambucano, da maloca gaúcha, dos
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alagados baianos”.
Na Amazônia, de acordo com Newsweek, de
03/07/1972, a convicção dos padres e das autoridades
superiores da Igreja no Brasil “é de que a exploração da
Amazônia está causando excessivas perdas em vidas humanas
e em sofrimento. É rara a semana em que horríveis histórias
não filtram da floresta – relatos de atrocidades contra
os índios, batalhas entre exércitos privados das grandes
companhias e os posseiros que defendem a terra vendida sem
o seu conhecimento ou trabalhadores submetidos à condição
de escravos. Acompanhado por um colega francês, o frade
franciscano Júlio Hebinek, de nacionalidade americana, viajou
recentemente num barco pelo interior da Amazônia e voltou
com dolorosos relatos sobre os trabalhadores da borracha
recrutados à base de promessa de rápido enriquecimento e
que morreram antes de chegar ao destino. Em quase todas as
famílias visitadas numa dessas explorações, pelo menos metade
das crianças tinham morrido”.
Em São Paulo, segundo divulgou O Estado de São
Paulo, de 20 de fevereiro de 1972, “no litoral, as crianças
menores de quatro anos contribuem com aproximadamente
49% do total de mortes na região. Segundo pesquisas da OMS
– Organização Mundial da Saúde, em 75% dos óbitos de
crianças em idade pré-escolar, encontram-se provas concretas
de desnutrição moderada ou grave. Na capital de São Paulo,
a situação não é muito diferente: a subnutrição é responsável
por 43% das crianças mortas antes dos quatro anos”. Segundo
5
OLIVEIRA, Franklin de. A Tragédia da renovação brasileira, 1971.
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Brasil a Questão Nacional
o Dr. Herbert Levy em Oliveira (idem): “São Paulo, unidade
líder da União, oferece-nos hoje espetáculo contristador em
sua zona rural. O nível a que baixou a condição de vida do
trabalhador agrícola – marginalizado daquilo que se chama
civilização cristã – é o da completa degradação humana”.
A marginalização econômica e social completa-se com
a política. A maioria sempre foi privada dos direitos mais
elementares, constituindo cidadãos de terceira ou quarta
categoria. A privação de direitos decorrentes das medidas de
exceção da ditadura sempre existiu para a maioria do nosso
povo, em todas as épocas.
A segregação está à vista de todos. Basta olhar as favelas
que constituem um outro mundo: as cidades satélites de
Brasília, os mocambos do Recife, os alagados de Salvador, os
casebres em torno das cidades brasileiras.
Segregação ou marginalização, dê-se-lhe a designação
que se queira, não é possível negar a existência do fenômeno.
Ele não se extingue com a transferência de favelas para longe
dos bairros ricos, como no Rio, nem com a simples mudança
de nome.
A Revolução Nacional
A luta dessa massa marginalizada, miserável e oprimida
pela própria sobrevivência, ao longo dos anos, objetivou a
constituição da comunidade brasileira. A Revolução Nacional,
compreendida no seu sentido histórico, não visou apenas a fazer
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passar de um estágio a outro uma sociedade homogênea, ligada,
através do tempo, por uma civilização comum. Visa a integrar
homens de origens bem diversas que, no começo, uma minoria
branca juntou pela força, em função dos seus interesses.
A esse conjunto heterogêneo, ela tentou impor normas
importadas, desvinculadas, seja das tradições dos indígenas e
dos negros, seja da própria realidade que se foi constituindo
no país. As bases sociais que se foram formando no decorrer
do tempo rejeitaram sistematicamente essa imposição, criando
uma visível separação entre a minoria dominante e a maioria
dominada.
A diferença vem da exploração econômica que se
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Brasil a Questão Nacional
encontra, sem dúvida, na base de tudo o mais. Mas ela determina
e compreende aspectos sobre os quais sempre se defrontaram e
ainda se defrontam, duas correntes opostas, no curso de nossa
história. De um lado, os “nativistas”, os “nacionalistas”, os que
dão ênfase à construção do país. De outro, os “europeus”, agora
os “americanos”, que se voltam para fora, tanto no que toca
a seus interesses materiais, como à ideologia que defendem,
determinada pela sua dependência do exterior. Pouco importa
que essa dependência venha da exportação do açúcar, do café
ou do novo ciclo, o dos manufaturados. Mudam os produtos,
mas a ideologia é a mesma, a do colonizado.
Essa ideologia reflete os interesses das classes dominantes
que retardaram a nossa independência econômica e a
consolidação da comunidade nacional sob diversos aspectos.
A independência foi sendo impulsionada, pouco a pouco,
pelo povo, freqüentemente através de formas empíricas, não
políticas, que indicam, no entanto, aquela oposição.
As camadas dominantes não só impuseram sua língua
como pretenderam conservá-la na sua pureza original. O
português falado pelo povo só entrou na nossa literatura com
o movimento dos nordestinos em l922. A concretização da
independência, no plano lingüístico, só começou a ocorrer,
por conseguinte, um século depois de proclamada a autonomia
política. A metrópole, a Europa, continuou a ser fonte
inspiradora das elites.
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À margem da Igreja oficial, sobreviveram cultos
africanos, não obstante as estritas proibições e a repressão
sistemática contra os terreiros. Mas o povo criou santos
e beatos, contestando a história católica. O padre Cícero
e numerosos outros menos conhecidos deveram uma
popularidade regional ou local à ligação mais estreita que
estabeleceram com as bases sociais. Deram mais ênfase
a essa ligação do que aos aspectos “romanos” da religião,
“abrasileirando-a”.
O “arquipélago cultural” é a resposta dessas mesmas
bases a um modelo ideológico, que se pretendia nacional,
mas completamente estranho à sua vida. A compartimentação
da população, em razão das distâncias e da variedade das
atividades econômicas, forjou os regionalismos, expressões
culturais diferentes na forma, mas semelhantes no conteúdo.
Representaram a rejeição de idéias supostamente nacionais
mas, na verdade, importantes e inautênticas, arrimando-se
no popular de cada zona do país.
A “revolução demográfica” foi acentuando miséria em
termos quantitativos. A “populaça” a “quarta classe”, como
eram designados no século passado, os brancos, pretos e
mestiços pobres, transformou-se em milhões de favelados,
de “bóias-frias”, de “biscateiros”, de “paus-de-arara”, de
“baianos”, de “caiçaras”, que enchem hoje as cidades grandes,
médias e pequenas.
A industrialização, acelerada a partir de 1930, pela
convergência de fatores internos e externos, contribuiu,
na sua primeira fase, para alargar a autonomia econômica
com repercussão na política e em outros planos. Começava
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Brasil a Questão Nacional
a pesar, dentro das classes dominantes, um setor cujos
interesses voltavam-se para o interior, ao contrário das velhas
oligarquias exportadoras de matérias-primas. Crescia a classe
operária urbana, o que permitia não só elevar o nível das lutas
populares em algumas áreas, mas sobretudo interligá-las.
Iniciava-se um processo de integração nacional. As
trocas passaram a ser feitas entre regiões produtoras de
matérias-primas, antes enviadas diretamente ao exterior, e
os centros fabris que se instalavam no país.
Essas mudanças favoreciam o alargamento do processo
democrático, alimentado por parcelas crescentes das massas
populares, mas também, por um novo tipo de classe média que
se formava em torno dessas novas atividades. As necessidades
do setor industrial determinavam mudanças no estudo e na
aplicação das diferentes técnicas. Sendo antes simplesmente
transplantadas, elas começavam a ser vistas em função da
realidade em que iam ser aplicadas. “Abrasileiravam-se”, tal
como acontecera em outros domínios.
Reforçava-se, assim, através de novos elementos, o
processo de formação nacional que só o povo, em planos não
políticos e de forma espontânea, mantivera em permanência,
opondo-se à alienação das camadas dominantes do período
neocolonial. Retomavam-se as lutas dos revolucionários
do século passado que defendiam a necessidade de uma
independência efetiva contra a autonomia negociada, legada
pelo príncipe português.
Limitações da Industrialização
Brasil a Questão Nacional
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Esses aspectos positivos da industrialização trouxeram,
em contrapartida, elementos negativos que nem sempre foram
levados em conta. As análises acentuaram sobretudo o fato de
que o país evoluía do “atraso” para o “progresso”, com uma
decorrência natural do crescimento dos seus centros fabris.
Os índices utilizados para medir aquela evolução,
em geral a comparação dos bens produzidos pela indústria e
pela agricultura, eram, no entanto, insuficientes. Escondiam
outros aspectos, como acentuação da miséria em vastas
zonas do país. Em muitas delas, as burguesias tradicionais
conseguiram sobreviver graças a subsídios governamentais e
à intensificação da exploração da mão-de-obra.
O ônus principal recaía sobre a massa explorada. Nas
regiões de concentração de assalariados agrícolas, como a zona
açucareira do Nordeste, o fenômeno é mais visível. Mas ele se
encontra em toda parte, fruto da mesma causa, a situação de
dependência do país. A formação de uma burguesia industrial
exigia um nível de acumulação capaz de atender, ao mesmo
tempo, às necessidades de implantação e funcionamento do
parque fabril sem que cessassem as saídas dos tributos da
dependência neocolonial.
O aumento do número de fábricas não significava,
por si só, o desaparecimento dessa dominação. Até hoje,
continuam a conviver desde a concessão do tipo colonial
clássico, como a de manganês do Amapá, até as formas mais
modernas e requintadas do imperialismo.
A industrialização não se chocava frontalmente com
essa situação. Não obstante, suas contradições com uma
economia exportadora de matérias-primas, a eliminação desta
26
Brasil a Questão Nacional
não era necessária à sua existência e ao seu crescimento. Ela se
encaixava nas velhas estruturas.
Na primeira fase, a de substituição de importações de
bens de consumo corrente, a industrialização valia-se de um
mercado criado pelo estágio neocolonial. Fabricava-se aquilo
que já era antes consumido por camadas sociais que se haviam
formado em função dele. A própria compra de equipamentos
dependia da conservação das antigas estruturas, na medida
em que lhe forneciam as divisas necessárias. Como ficou
demonstrada na prática, a conciliação dos diversos interesses
dominantes era perfeitamente viável, constituindo, ademais,
uma imposição da correlação de forças econômica e política
existente no país.
Fraqueza da Burguesia Industrial
A debilidade da burguesia industrial não lhe permitia
assumir efetivamente o comando do desenvolvimento,
detendo a exclusividade ou a hegemonia incontestada no
controle do poder. É de notar que não se constituiu sequer
um partido político da burguesia industrial com a finalidade
de consolidar um projeto de implantação de um capitalismo
autônomo, sob seu comando. As teses defendidas em restritos
círculos empresariais que adotavam essa orientação, não
deram lugar à criação de uma nova força ou à transformação
de um dos partidos tradicionais, com a finalidade de levá-las
à prática.
O PTB apoiava-se sobretudo nos sindicatos operários.
Brasil a Questão Nacional
27
Sua função era a de mobilizar os trabalhadores (e não a
burguesia) para um projeto daquele tipo, isoladamente ou
em coligação com outras forças populares. Os elementos da
burguesia que se ligavam ao PTB não conduziam a sua própria
classe e a ele se filiavam, quando não por mero oportunismo,
exatamente porque não tinham condições de organizá-la.
Nem os nacionalistas, nem os socialistas e muito menos os
comunistas podiam representá-la, apoiando-se em setores
populares e nas camadas médias da população.
O PSD representava os setores tradicionais cujas
preocupações no âmbito nacional, só existiam na medida em
que a divisão do mando central contribuía para preservar o
seu poder estadual ou local. Eles não tinham condições de
apresentar perspectivas para o conjunto do país, limitando-se
a defender seus interesses setoriais e a lutar, cada um, por um
maior favorecimento dos benefícios federais.
Da UDN participavam os representantes dos grandes
interesses ligados ao exterior, notadamente os relacionados
com a exportação de matérias-primas. Aglutinava os grupos
tradicionalmente ligados aos americanos, civis e militares,
a ponto de fazer constar dos seus estatutos, como ponto
programático, a defesa do capital estrangeiro.
Esse perfil das forças políticas reflete a sobrevivência
das estruturas vindas do neocolonialismo, ampliadas e
atualizadas. Ele não pode evidentemente ser tomado à risca:
são encontrados “entreguistas” no PTB e “nacionalistas” na
UDN. Tais casos assumem, porém, um caráter de exceção,
não invalidando as suas grandes linhas. Elas indicam a
projeção das velhas forças e mostram a fraqueza política do
28
Brasil a Questão Nacional
setor industrial, fruto de suas limitações econômicas.
A necessidade de conciliar para existir colocou-o em
posição defensiva no plano ideológico e político. Não se
propôs criar a nação nos termos em que fizeram as burguesias
européias. Enquanto as forças representativas do capital
estrangeiro faziam organizadamente a defesa de suas teses,
a ponto de se constituírem em ponto programático de um
partido, o empresariado nacional limitou-se a reivindicar, não
a sua predominância, mas apenas e debilmente a igualdade de
direitos com os grandes grupos vindos de fora.
Nestas condições, cresceu o setor moderno da economia
sem que se verificasse a liquidação ou a relativização dos
demais. Ocorreu mais uma superposição do que uma sucessão
de estágios de desenvolvimento, deixando sobreviver, no plano
econômico, político, social e ideológico, uma forte marca da
sociedade neocolonial.
A Contra-Revolução
Tanto quanto a revolução nacional de que constitui
o pólo oposto, a contra-revolução tem coerência histórica,
dentro de sua incoerência frente aos interesses nacionais
e populares. De sua lógica às avessas, surgem conceitos e
símbolos.
Não é por acaso que o símbolo da ditadura é Pedro I e
não Tiradentes ou outro herói das lutas pela independência. A
transferência dos restos mortais do príncipe português para o
Brasil vem de par com a predominância, no seio da ditadura,
Brasil a Questão Nacional
29
das mesmas idéias neocoloniais que ele encarnou.
Anteriormente, tratava-se de conservar o país debaixo
da tutela britânica; atualmente, cuida-se de consolidar a do
império americano. As condições eram certamente bem
diversas. Os argumentos ganham nova roupagem, tornam-se
sofisticados para atender a uma situação muito mais complexa.
A essência continua a mesma: tudo se baseia no pressuposto
de que nossa sorte depende fundamentalmente do exterior.
Essa atitude já era rejeitada por Martim Francisco,
nos idos 1824. Dizia ele que “os povos, quando querem ser
livres, têm muitos recursos em si próprios”. Tendo vivido
no século passado, não pode ser acusado de estar repetindo
Mao-Tse-Tung, quando diz a mesma coisa, aconselhando a
nos “apoiarmos nas nossas próprias forças”.
Desde há um século e meio, essas teses se defrontavam.
Segundo Sodré 6, levantaram-se - contra as medidas de
proteção à incipiente industrialização, tomadas por Floriano
30
Brasil a Questão Nacional
– duas linhas de argumento: “a primeira pretendia que,
no Brasil, só havia perspectivas para o beneficiamento de
determinados produtos agrícolas e para determinada espécie
de manufaturas que operassem com matéria-prima de origem
vegetal. Chamava-se a isto “indústria natural” e tinha o sentido
de assegurar sempre a supremacia agrária: a “indústria natural”
seria sempre um apêndice da agricultura. A segunda pretendia
que, não existindo no Brasil condições para a produção
industrial, as medidas tomadas pelo Estado no sentido de
criar essas condições correspondiam sempre ao sacrifício do
consumidor, obrigado a pagar caro aquilo que as “indústrias
artificiais” lhe ofereciam, quando poderia pagar barato o que
as importações livres lhe ofereciam”.
Tratava-se, naquela época, de impedir o crescimento
do incipiente parque fabril, antes que adquirisse importância
como força econômica. A fraqueza do setor industrial
possibilitava a obtenção desse objetivo com medidas
relativamente simples. Segundo Sodré, a emissão destinada a
favorecer a indústria, em 1892, foi eliminada com este simples
telegrama, mencionado nos jornais da época: “Consta-nos
que os Srs. Rothschild telegrafaram ao ministro da Fazenda
fazendo-lhe sentir que a emissão de apólices para auxílio às
indústrias, se resolvidas pelos poderes públicos, não será de
bom efeito no crédito do país”.
Brasil a Questão Nacional
31
Aquela linha de argumento prevaleceu até depois da
Segunda Guerra Mundial. Nossa “vocação agrícola” continuou
a ser decantada pela corrente ligada ao sistema internacional.
Levada à prática, no governo de Dutra, serviu de suporte à
liquidação das divisas brasileiras acumuladas durante a guerra
e reservadas à importação de equipamentos para a indústria.
A volta de Getúlio ao poder foi o resultado dessa
situação, correspondendo à reação da burguesia industrial e do
operariado urbano contra um recuo que se pretendia impor
ao país. O enorme favorecimento ao capital estrangeiro que
se seguiu à sua morte, permitiu aos grupos internacionais
assumirem o controle do setor industrial.
Já não era mais possível continuar afirmando a
“necessidade de nos conservarmos essencialmente agrícolas”.
Sobretudo tornava-se extremamente vantajoso transferir
conjuntos industriais, obsoletos nos países de origem, ou
adquirir ramos já existentes, tais as concessões que eram
oferecidas pelo governo de Juscelino Kubitschek .
Nesse período, segundo Sodré, “o Estado brasileiro,
na verdade, canalizou para as mãos de grupos estrangeiros
dezenas de bilhões de cruzeiros, permitindo-lhes, com esses
recursos nacionais, apoderar-se de um setor importantíssimo
da indústria nacional e dominar o mercado interno”. O próprio
embaixador Lincoln Gordon revelou depois as enormes
vantagens concedidas aos investidores estrangeiros, conforme
Gasparian7. São palavras do embaixador: “uma determinada
6
SODRÉ, Nelson Wernewck. História da burguesia brasileira, sem data.
32
Brasil a Questão Nacional
empresa informou que lhe foi permitido supervalorizar a tal
ponto o equipamento importado nos termos da Instrução 113
que contrabalançou o efeito da inflação até este momento
(1962). O investimento em questão foi feito em 1957 e,
levando-se em conta a taxa de inflação do período, pode-se
afirmar que a sobrevalorização deve ter sido muito apreciável”.
Novo Papel Político do Setor Industrial
Essas, porém são apenas as vantagens imediatas, no
nível das empresas. O controle do setor industrial constituía
o único instrumento capaz de romper o impasse em que se
iam colocando os Estados Unidos ao manter, no Brasil, uma
aliança preferencial com os grupos tradicionais, exportadores
de matérias-primas. A substituição de importações de bens de
equipamento, cuja necessidade já se evidenciava nos primeiros
anos da década de 50, se feita com recursos nacionais, estatais
ou mesmo privados, favoreceria a consolidação da burguesia
industrial brasileira. Alargando-se a autonomia econômica,
perderia cada vez mais sentido o argumento daqueles setores
tradicionais, baseado na nossa “vocação agrícola”.
Do modo como se processou, a passagem a uma segunda
fase de industrialização encaixou-se, tal como ocorrera na
primeira, ao velho sistema. Juntou-se-lhe uma nova peça, sem
alterá-lo. Em Furtado8 constata a harmonia existente entre
o setor estatal, a indústria privada nacional e as empresas
estrangeiras, acrescentando: “Outro ponto importante a
assinalar é que o complexo industrial brasileiro comporta
Brasil a Questão Nacional
33
uma dupla inserção: no sistema econômico interno e na
economia capitalista internacional. Como as empresas que
atuam nos setores mais dinâmicos, não exatamente aquelas
que apresentam essa dupla inserção, os possíveis conflitos
entre interesses “internos” e “externos” tendem a ser
transferidos para o âmbito dos oligopólios internacionais,
sendo pouco visíveis para o observador que se coloca no
ângulo da economia nacional”.
Registra ainda as repercussões ideológicas desses fatos,
assinalando que “como a formação profissional, as fontes
de informação, os padrões de consumo, em muitos casos a
carreira, enfim, o quadro cultural dos elementos dirigentes
das empresas dos três setores indicados tende a seguir o mesmo
paradigma, trata-se menos de emergência ou consolidação
de uma burguesia nacional do que de implantação da nova
burguesia internacional ligada ao capitalismo dos grandes
conglomerados transnacionais”.
Essas constatações são verdadeiras, referindo-se, porém,
ao setor industrial. Na verdade, à parte certas peculiaridades
que existem em cada ramo de atividade, elas podem e devem
ser estendidas às classes dominantes tradicionais. De fato,
se o setor industrial agora “se insere na economia capitalista
internacional”, elas sempre estiveram inseridas.
O controle do setor industrial não visa à implantação
7
GASPARIAN, Fernando. Capital estrangeiro e desenvolvimento na América Latina, sem data.
34
Brasil a Questão Nacional
da nova burguesia, mas a permanência da velha e constante
burguesia internacional com a ajuda de novos instrumentos.
Em torno dele, o regime faz gravitar os demais setores, para
o que precisa mudar a qualidade da contradição que poderia
opor a indústria, desejosa de abrir o mercado interno, a setores
voltados para a exportação.
A criação de “um sistema de incentivos à exportação de
manufaturados que implicam em subsídios da ordem de 40%,
segundo Celso Furtado, possibilita a unificação dos diversos
setores debaixo de uma mesma política. As disputas não são
contra, mas dentro dela, cada um procurando uma participação
maior nos incentivos. Café, açúcar, carne etc., tanto quanto
os manufaturados, “inserem-se na economia internacional”.
A Ditadura Atual e as Velhas Oligarquias
Assim, a orientação da ditadura atual está fundada nos
mesmos princípios seguidos pelas oligarquias do passado.
Baseia-se na exportação. Se as condições são outras, ela
continua a decorrer da aceitação da condição de dependência
do país.
A introdução de novos fatores dificulta o cotejo de
acontecimentos e de idéias de épocas distintas e distantes.
No entanto, podem ser encontrados traços comuns, mesmo
ao nível dos pronunciamentos e malgrado a diferença de
linguagem. Ambas, as oligarquias e a ditadura, dependem
8
FURTADO, Celso. Análise do modelo brasileiro, sem data.
Brasil a Questão Nacional
35
fundamentalmente dos banqueiros internacionais, sendo a
mesma a atitude dos seus ministros da fazenda em relação
a eles.
Segundo Sodré (idem), que analisa a atuação do
ministro do governo Campos Sales: “Murtinho, no seu
relatório de 1901, defendendo a solução pela qual as finanças
brasileiras passavam ao controle estrangeiro, afirmaria que
“o que queriam os nossos credores era exatamente o que
queriam todos os brasileiros”; os que se opunham a isto “eram
levados por paixões partidárias”. Agora, o atual ministro da
ditadura assim se defende do endividamento a que levou o
país, em entrevista a Veja, de 26 de setembro de 1973: “em
fins de 1967, devíamos 3,3 bilhões de dólares e em fins de
1972 aumentamos a dívida para 9,5 bilhões de dólares, o que
prova que os banqueiros estrangeiros são tão incapazes que
continuam banqueiros”.
A diferença entre as duas frases está em que Murtinho
guarda uma circunspeção que falta a seu colega do momento.
A identidade está em que os dois ministros tomam os
banqueiros internacionais como oráculos para saber se o país
vai bem ou mal. Na medida em que consentem em emprestar,
tudo vai às mil maravilhas. E nessas maravilhas vivemos de
1822 em diante.
Já é tempo, portanto, de saber que os banqueiros não
emprestam em função dos interesses do nosso povo mas
das conveniências dos seus bancos. Exigem uma situação
de “estabilidade”, isto é, que sejam abafadas as reclamações
populares. Calculam quanto isso pode durar e emprestam,
com as garantias usuais a qualquer país.
36
Brasil a Questão Nacional
Tais semelhanças teriam significação menor se
houvesse uma profunda diferença entre a função do Estado
no período oligárquico e no período atual. À primeira vista,
ela existe: a oligarquia pregava um não intervencionismo total,
enquanto Furtado constata que atualmente “o Brasil afastou-se
consideravelmente da economia do laissez-faire, criando uma
“variante” do capitalismo de Estado que requer para o seu
funcionamento normal uma íntima articulação entre a classe
empresarial e os poderes públicos”.
Como não poderia deixar de ser, dadas as diferenças de
circunstâncias, os métodos não são os mesmos. Por caminhos
diferentes chega-se ao mesmo objetivo, a desnacionalização.
O não intervencionismo da oligarquia importava,
na prática, em direcionar o conjunto da economia para a
preservação do sistema neocolonial. Não era necessário que o
Estado agisse como empresário. Para o fim que tinha em vista,
bastava que fossem acionados mecanismos mais simples, como
as taxas de câmbio, as tarifas etc.
Não faltavam os que se insurgissem contra isso. Nos
primeiros anos deste século, Cerzedêlo Correia, entre outros,
chamava a atenção para o “perigo do livre câmbio adotado
por uma nação, quando ela não está em condições de lutar...”.
Enxergava, por conseguinte, que o “laissez-faire” não é senão
a arma do mais forte.
Ele não se extingue com aquela “variante” agora
necessária à mesma política de desnacionalização. A
designação é empregada por Furtado justamente para que
não se confunda a função do Estado brasileiro, enquanto
empresário, com o capitalismo de Estado, na sua conceituação
Brasil a Questão Nacional
37
corrente: “Em jovens países em desenvolvimento, em países
que conquistaram sua independência política, o capitalismo
de Estado desempenha nova função. Constitui um meio de
luta contra o capital estrangeiro, extirpa as raízes econômicas
do seu domínio, contribui para fortalecer e desenvolver a
economia nacional”.
A função da “variante” é inversa, objetivando inserir
o setor industrial na economia capitalista internacional. Isso
torna secundário o fato de que o Estado possua algumas
empresas, por maiores que sejam. Não é o volume da
participação, mas a sua finalidade que importa. Só quando o
aumento da participação venha a ser suficiente para mudar
a qualidade da finalidade, é que a quantidade passa a ter
importância. Nada indica que isso venha a acontecer.
A participação do Estado dá-se agora de forma passiva.
Frente a uma burguesia industrial incipiente como a brasileira,
ele aparecia antes como setor de um desenvolvimento
capitalista com tendência à autonomia. Cabia-lhe assegurar
prerrogativas reivindicadas pela burguesia industrial,
sobretudo exercer o papel pioneiro em setores onde seus
investimentos e sua capacidade de empreendimento não
bastavam. Isso lhe dava uma missão “ativa” que contrasta
com a atual, por dinâmica que pareça.
Agora, sua ação é condicionada pelos “grupos
internacionais que têm o controle quase total das indústrias
de bens duráveis de consumo, químico-farmacêutica
e equipamentos em geral, que em conjunto formam o
bloco em mais rápida expansão e onde mais significativa
é a penetração do progresso tecnológico” (Furtado). O
38
Brasil a Questão Nacional
Estado vai a reboque das necessidades desses grupos que
condicionam seus investimentos.
O atual regime não promoveu a criação de novas
empresas, como Volta Redonda e a Petrobrás. Na medida
do possível, mudou a sua finalidade e vendeu outras, como
a Fábrica Nacional de Motores. Seu propósito declarado é o
de fortalecer a empresa privada, sendo a sua participação, em
novos empreendimentos, mera exceção, ditada por interesses
outros que não os seus, mesmo enquanto empresário.
Afora essa participação “passiva” do Estado, o
“laissez-faire” continua como regra, como arma do mais
forte, “o bloco em mais rápida expansão”, na liquidação
dos concorrentes possíveis dentro do país. A “variante”
introduzida nos métodos não apaga a semelhança da antiga e
da nova dominação quanto aos objetivos e quanto aos efeitos.
No plano cultural, como constata Bandeira 9, “a
influência dos Estados Unidos no Brasil se acentuou,
acompanhando o ritmo da expansão capitalista, com a qual se
identificou. Se por um lado gera algum progresso, acarreta,
por outro, atraso ainda maior, com distorções que afetaram,
não só a economia, como também o comportamento, os
hábitos e os costumes, enfim, a cultura do povo brasileiro”.
No que se refere às regiões, constata-se uma crescente
diferenciação sobre vários aspectos, não apenas pela diferença
de renda, imposta pela especialização. Inverte-se a tendência
à integração e reaviva-se a compartimentação, na medida
em que cada uma delas, tal como no passado, vai se dedicar
a produtos diferentes para o mercado externo, mais do que
para trocas entre elas, destinadas às suas mútuas necessidades.
Brasil a Questão Nacional
39
A Amazônia está transformada em colônia dos Estados
Unidos. Os trezentos mil quilômetros quadrados de terra
em mãos dos americanos, as velhas e novas concessões
para a exploração de minérios, a retirada de madeira sem
qualquer controle, além das relações diretas que existiam e
são intensificadas, não deixam dúvida quanto a isso. Tentar
reparar essa situação com a remessa de alguns soldados, como
fazem alguns poucos militares preocupados com a “integridade
do território nacional”, é desconhecer ou querer ignorar os
mecanismos da dominação já implantada. Os soldados serão
meras alegorias da presença simbólica do Brasil.
No Nordeste, “o subdesenvolvimento continua a ser a
nota característica mais importante. Segundo a SUDENE, a
renda per capita do Nordeste se situa, hoje, um pouco acima
de 200 dólares, ou seja, cerca de metade da renda per capita do
Brasil e apenas um terço da renda de um paulista. Dados do
Censo de 1970, revelam, contudo, que para cada grupo de 100
nordestinos com 10 anos ou mais de idade, 52 ganhavam até
100 cruzeiros mensais, enquanto 15 não tinham rendimento ou
não o declararam. Apenas 3,3% da população economicamente
ativa tinham rendimento superior a 500 cruzeiros mensais e
apenas 0,86% ganhavam acima de 1.000 cruzeiros. No Piauí e
no Maranhão, para o total de uma população economicamente
ativa de 1.470.000 pessoas, somente 955 ganhavam acima de
dois mil cruzeiros mensais” (Documento de bispos e superiores
religiosos do Nordeste, maio/73).
No Centro-Oeste, surgem novos donatários das novas
capitanias hereditárias, que expulsam os antigos posseiros,
do mesmo modo que os portugueses expulsaram os índios, a
40
Brasil a Questão Nacional
partir da descoberta.
No Sul, tenta-se fixar uma economia “essencialmente
agropecuária”, valendo-se das condições mais favoráveis da
região. Mas, assim mesmo, a região chegou a exportar gente
para a Amazônia.
No Centro-Sul, ocorre o “ciclo dos manufaturados” o
que não impede o aumento das favelas, nem a marginalização.
Tal como já ocorreu com o açúcar, o ouro, o café, a borracha
etc., o novo ciclo não elimina os anteriores. Torna-os
secundários, sem resolver os problemas nacionais de conjunto.
Nestas condições, a ação da ditadura inverte totalmente
o processo de formação nacional. Elimina, no plano econômico,
político e cultural, as pequenas conquistas que, a muito custo,
o povo brasileiro foi acumulando no curso de sua história.
Reaviva o perfil da sociedade neocolonial com o crescimento
da marginalização: entre a “minoria branca”, agora uma estreita
camada urbana de renda privilegiada, e a “populaça”, agora os
“bóias-frias”, os favelados etc., o fosso se afunda. A ditadura
promove a contra-revolução nacional.
Métodos da Contra-Revolução
São também semelhantes, na fase oligárquica e
atualmente, os métodos utilizados para conservar o poder.
Têm a finalidade de retirar do povo os meios de expressão
e de decisão. Tudo aquilo que, em qualquer plano, reflete
9
BANDEIRA, Moniz. A Presença americana no Brasil, sem data.
Brasil a Questão Nacional
41
a vontade das bases sociais deve ser reprimido. A extensão
dessa repressão não se mede apenas pelo número de cassados,
presos, torturados e assassinados pela ditadura atual, senão
através de uma engrenagem mais ampla, que tem também a
sua história.
No plano econômico, ambas concentram a distribuição
da renda, já que o mercado interno é secundário. Não importa
que a maioria tenha um baixo nível de consumo. Para a
oligarquia, o problema social “era um caso de polícia”, tanto
quanto atualmente.
No plano político, a eliminação das correntes
representativas das camadas exploradas é apenas um dos
aspectos da repressão. Sendo a finalidade a de afastar o
povo das decisões, há que eliminar os opositores, mas é
preciso também controlar os próprios agentes. Oligarquia
e ditadura estabelecem, assim, um corpo eleitoral restrito
para “legitimar” o seu poder. Honra lhe seja feita, ao poder
oligárquico, pois, com fraudes e tudo o mais, era mais amplo
do que o atual.
No plano cultural, a repressão não se limita à censura à
imprensa. Atinge dos físicos nucleares aos músicos populares.
A repressão do Estado Novo é semelhante à atual não
só por atingir setores liberais e comunistas, como também
por empregar os mesmos métodos, hoje apenas mais
brutais e generalizados. Mas dela se diferencia em razão da
própria finalidade com que era aplicada. Visando a afirmar
uma burguesia industrial incipiente, devia fazer frente à
oligarquia vencida em 1930 mas suficientemente forte para
tentar retomar o poder pela violência, em 1932. Isso obrigava
42
Brasil a Questão Nacional
Getúlio a buscar sustentação nas massas urbanas, não obstante
a perseguição contra forças que as representavam. Para isso,
tinha que abrandar o aspecto econômico da repressão através
de aumentos de salário e da concessão dos favores das leis
trabalhistas. Sendo nacionalizador, por força das características
do desenvolvimento a que presidia, não precisava atingir as
manifestações culturais, não políticas, ao nível do povo.
Não é por acaso, mas em razão dessa orientação que
Getúlio pôde voltar ao poder em 1950. Isso não tem viabilidade
para qualquer dos generais que o ocuparam no atual regime. A
contra-revolução só pode sobreviver sem o povo, com eleições
controladas e com golpes que o afastem do cenário político. E
sua história, no após-guerra, conta-se pela sucessão de golpes
desfechados na mesma direção, mas com objetivos que se iam
ajustando às situações novas, criadas pelos seus insucessos.
Os Golpes
Em 1946, o golpe contra Getúlio foi facilitado pelas
condições surgidas depois da Segunda Guerra Mundial.
Os grupos pró-americanos, representados pelos setores
ligados às velhas oligarquias, sobretudo a do café, e, por
motivos diferentes, os liberais e os comunistas forçavam o
restabelecimento das liberdades eliminadas pelo Estado Novo.
O PCB tentava influir o governo de Vargas a uma
posição antiimperialista mais conseqüente, eliminando a sua
tendência à conciliação. A oligarquia, porém, brandia a bandeira
da democracia com outro objetivo, na esperança de assegurar
a hegemonia dentro das classes dominantes, invertendo o
Brasil a Questão Nacional
43
processo de desenvolvimento, o lado positivo do governo
Vargas. Teve, porém, que recorrer ao golpe e à “união nacional”,
promovida no governo de Dutra, quando foi desenterrada a
tese do “essencialmente agrícola”.
As eleições de 1950 derrubaram, no entanto, as
esperanças da volta a uma economia neocolonial. O processo
de industrialização avançara de forma a impedir um retorno
puro e simples ao passado.
O golpe de agosto de 1954 tinha em conta essa
circunstância. Visou, assim, a não mais barrar o crescimento
do setor industrial, mas a assegurar o seu controle pelos grupos
internacionais. Poucos meses depois da morte de Vargas,
no início de 1955, a instrução 113 instituiu um regime de
privilégios para os capitais estrangeiros que os tornava mais
favorecidos do que os nacionais. A extensão desses favores no
governo de Juscelino possibilitou o controle da indústria por
aqueles grupos.
Essa mudança na estratégia da dominação repercutia no
quadro político interno. Já não eram apenas os remanescentes
da oligarquia, “as forças do atraso”, opostas “às forças do
progresso”, a burguesia industrial brasileira. Apoiava-se
também no “setor moderno”. Com essa mudança, reduzida a
contradição entre os setores dominantes, seria de esperar que a
troca de presidentes pudesse ser feita “dentro da normalidade
democrática”.
Havia, porém, um descompasso no plano político.
O fato de se apoderarem da economia não dava aos grupos
estrangeiros, automaticamente, os instrumentos do poder.
44
Brasil a Questão Nacional
As derrotas sofridas pelas lideranças declaradamente próamericanas não as animavam sequer a uma disputa eleitoral
nos termos da legalidade existente. O fracasso do golpe
para impedir a posse de Juscelino e a posição do Marechal
Lott, contrária à desnacionalização do petróleo, indicavam a
existência de uma situação desfavorável a um golpe, naquela
oportunidade.
Nestas condições, a contra-revolução valeu-se de Jânio
Quadros, pondo a sua disposição imensos recursos e sua
estrutura partidária, a UDN. Eleito com slogans nacionalistas,
Brasil a Questão Nacional
45
Jânio punha no governo os homens dos americanos. Tendo
apelado para o povo, cercava-se das figuras mais reacionárias
do país. As condecorações a Gagarin e a Che Guevara, o envio
de missão à China e outros atos meramente simbólicos, eram
obviamente insuficientes para quebrar o cerco em que se
colocou, por gosto ou contra a vontade. Querendo ou não,
começou a dar cobertura às medidas antipopulares do seu
governo, precursoras da política adotada pela atual ditadura.
Segundo Bandeira (idem), Jânio “consolidou a confiança
de Wall Street no seu governo, adotando imediatamente as
medidas para a estabilização monetária, entre as quais a reforma
cambial, iniciada através da resolução 204 da SUMOC. O staff,
que ele encarregou de elaborar a política econômico-financeira
de sua administração, congregava notórios agentes de interesses
estrangeiros, como Roberto de Oliveira Campos.
No golpe de 1961, desfechado com a renúncia de Jânio,
o objetivo era apenas o de conservar essa política. Bastaria,
para tanto, impedir a posse de Goulart, fazendo-a executar
por um outro qualquer. No entanto, as forças da contrarevolução haviam tudo assentado na popularidade de Jânio, cuja
linguagem esquerdizante e nacionalizadora tinham que engolir
para ganhar as eleições. Não dispunham de um programa
ostensivo que, na verdade, estava escondido atrás das promessas
46
Brasil a Questão Nacional
do seu candidato. Repousavam, por conseguinte, apenas na
legalidade advinda das eleições de 1960. Eram obrigados a
recuar, em conseqüência da tentativa de quebra da sua própria
legalidade face à reação popular e à confusão estabelecida no
seu campo de sustentação.
A posse de Goulart frustrou, portanto, o objetivo do
golpe, sem conseguir inverter os rumos do país. Apesar do
crescimento do movimento popular durante o seu governo,
não se estabeleceu uma frente política unida em torno dos
problemas fundamentais da nação. A despeito de alguns poucos
passos dados no sentido de enfrentá-los, pode-se constatar
que eram tímidos e conciliatórios. Não mereciam a celeuma
feita pelos adversários senão como medida preparatória do
golpe em gestação. As reformas solicitadas ao Congresso eram
extremamente moderadas: concessão do direito de voto aos
analfabetos, abolição da vitaliciedade de cátedra, revogação do
artigo da Constituição que exigia a indenização prévia e em
dinheiro para a desapropriação de terras, que foi posto abaixo
pela própria ditadura atual.
Desse modo, o golpe de 1964, não podia ser desfechado
contra a implantação de um regime socialista ou comunista
pelo simples fato de que tal ameaça não existia. A posição de
todas as forças populares não ultrapassava, na época, os limites
do sistema em vigor. Como é bem sabido “a preservação das
instituições contra a subversão” e outros slogans tinham apenas
a finalidade de mobilizar setores sociais altos e médios e de
convocar os militares para a intervenção que vieram a fazer.
Eliminados esses slogans, verifica-se que os objetivos
do golpe de 1964, englobando os das tentativas anteriores,
Brasil a Questão Nacional
47
superam-nos amplamente. Prevalecia a presunção de que os
interesses americanos ou a eles ligados podiam ser mantidos
“sem quebra das instituições”. Bastava que eles fossem capazes
de reduzir ou eliminar a participação que as forças populares
iam tendo nas decisões, em nível nacional.
Dentro do “quadro institucional”, as medidas destinadas
a reduzir ou a eliminar a influência popular poderiam revestirse de várias formas, desde que surtissem o mesmo efeito.
Tanto vale Dutra como Jânio, o essencial era afastar o povo.
O primeiro utilizava medidas reacionárias, a “autoridade” e a
força, já que lhe faltava sustentação popular. O segundo, que a
tinha, devia manipular o povo, neutralizando-o, em benefício
da mesma política de dependência. Era o que esperavam os
grupos americanos que o levaram ao poder.
O golpe de 1964 leva em conta o fato de que estava
esgotada a possibilidade de tais manobras. A mudança nos
métodos da contra-revolução decorre essencialmente da
revisão da estratégia dos Estados Unidos para o seu campo
de dominação. A perda de substância política dos seus aliados
não ocorria apenas no Brasil, mas em inúmeros países e em
vários continentes. A afirmação do poder de Fidel Castro, em
Cuba, e a queda de Diem, no Vietnam, são apenas exemplos
extremos desse desgaste.
A generalização do fenômeno mede-se pela necessidade
de criar a Aliança para o Progresso, na vã tentativa de barrar,
com medidas assistenciais, o crescente descontentamento dos
povos latino-americanos. A total ineficácia desse programa
cedo estaria sendo denunciada pelos próprios políticos
48
Brasil a Questão Nacional
conservadores de diferentes países.
Tornado evidente o fracasso da Aliança e não tendo os
Estados Unidos outra perspectiva a apresentar para solucionar
politicamente os problemas da América Latina e de outras
áreas, deviam iniciar uma fase de golpes e a implantação dos
regimes neofascistas em todo o seu campo de dominação. Ao
de 1964, no Brasil, sucederam-se outros na América Latina,
na Indonésia, na Grécia, em diferentes países. Pouco depois
de instalada a ditadura no Brasil, iniciavam-se os bombardeios
no Vietnam, seguidos da intervenção direta de suas tropas
terrestres. Em 1965, foi esmagado o levante de São Domingos.
Repetiu-se, em todos os lugares, a tomada do poder pelos
militares formados nas escolas americanas.
A presença dos militares na cena política objetivou,
portanto, remediar uma crise geral do campo imperialista.
Eles vieram socorrer as correntes políticas aliadas dos
Estados Unidos em cada país, ultrapassadas internamente,
numa ocasião em que os “planos de ajuda” tinham sido
desmoralizados, na prática. Já não era suficiente reajustar
interesses internos, satisfazer setores dominantes mais
atingidos pelo alargamento do processo democrático, nem
impedir, no caso do Brasil, todas ou algumas reformas
propostas por Goulart. De resto, elas eram menos radicais
do que as sugeridas e aprovadas pelos próprios americanos,
em Punta del Este.
Mas era isso, sem dúvida, o que erradamente esperavam
certas correntes participantes do golpe. Pretendiam apenas uma
paralisação do processo em curso. Sonhavam, porém, com a
Brasil a Questão Nacional
49
manutenção de certas “instituições” que pudessem continuar
utilizando para defender seus pequenos interesses setoriais ou
locais. É nessa ótica que defendiam o “prestígio do legislativo”,
isto é, dar a um Congresso desmoralizado pelas cassações,
prerrogativas que eram negadas ao povo.
Viam o golpe como os anteriores, nos quais o objetivo
era limitado à preservação dos interesses dominantes
indistintamente, mantendo-se os mecanismos tradicionais
através dos quais sempre dividiram o poder. A “democracia”,
isto é, a livre manifestação desses interesses, afastado o povo,
poderia continuar a ser a bandeira dos grupos pró-americanos
dentro do país. Seus juristas e teóricos em geral não teriam
necessidade de rever, como fizeram, as teses “jurídicas”
que pregaram durante várias décadas. Poderiam continuar
enganando figuras que nelas tinham uma honesta convicção,
como Ribeiro da Costa, e outros que continuam a defendê-las
contra o regime.
A Ditadura
A instauração da ditadura com o AI-1 decorre de
motivos que vão além dos invocados para o golpe e das
conveniências imediatas das classes dominantes. Visou
fundamentalmente à preservação da dominação externa como
um todo através de sua modernização. Isso não podia ser feito
mediante simples compromisso entre os diferentes setores
empresariais, sem alteração do statu quo.
Em 1967, a “Orientação geral do planejamento da
50
Brasil a Questão Nacional
segurança nacional” reafirmou expressamente aquela decisão.
Vendo subir ao poder Costa e Silva, menos iniciado nos
segredos da Escola Superior de Guerra, “diretivas de governo”
(a codificação da política seguida desde o golpe) foram
baixadas para enquadrá-lo. Tais formas recomendavam a
redução ou a liquidação de várias pressões, como vinha sendo
feito, entre as quais “a pressão econômica, exercida por grupos
externos e internos, beneficiários de estruturas obsoletas
através de ações de intimidação ou coercitivas, principalmente
das classes empresariais, associações comerciais e sindicatos
patronais. Destinam-se a alterar a política do governo para
atender aos respectivos interesses, ameaçando a paz social, a
prosperidade nacional e a democracia representativa”.
Isso não deixa dúvida que poderiam ser atingidas
algumas áreas ligadas ao golpe, como vinha acontecendo.
Cada empresa, cada setor empresarial, segundo essas normas,
deviam ser tidos como secundários em relação à preservação
dos interesses dominantes no seu conjunto.
Situando-se dentro desse conjunto em posição
privilegiada, as empresas multinacionais nada tinham a temer.
Sendo mais fortes, como eram as manufaturas inglesas frente
às indústrias nascentes nos países dominados, podiam sugerir e
apoiar um “princípio de ordem geral”, o “laissez- faire”, a “livre
empresa”. A intervenção do Estado, já existente, aparentemente
contraditória com esse princípio, passa a complementá-lo.
E essa exceção é tanto mais aceita quanto mais rentável para
as multinacionais, podendo os tecnocratas, além do mais,
alegarem que nisso reside “a peculiaridade do desenvolvimento
Brasil a Questão Nacional
51
brasileiro”.
Assim, foram asseguradas às grandes empresas
internacionais as condições políticas para ditar, em nome dos
“interesses nacionais”, a orientação econômico-financeira
do país. Dominando bancos e indústrias, podem ameaçar
qualquer governo que se queira atribuir o direito de realizar
mudanças nos mecanismos principais do sistema. Basta alegar
os problemas que podem provocar no setor mais dinâmico da
economia. Se isso não basta, o endividamento externo reforça
a ameaça, tanto quanto o telegrama de Rothschild na fase
oligárquica.
Essa engrenagem retira as grandes decisões das mãos
dos militares, por mais fortes e autoritários que sejam, se
porventura desejassem promover, por “amor à Pátria”,
mudanças que beneficiassem já não o povo, mas o Estado.
Sua margem de manobra é extremamente reduzida, não
ultrapassando os assuntos correntes. Se resolvessem investir
em uma maior autonomia do país, o que não é o caso, estariam
bloqueados pela máquina que ajudaram a montar.
A mudança principal introduzida pela ditadura residiu
sobretudo no fato de haver transformado o setor industrial
na peça fundamental da dominação externa. Como afirma
Furtado, “já não pode haver dúvida de que o sistema industrial
52
Brasil a Questão Nacional
constitui hoje a espinha dorsal da economia do país”. Sendo
mais “moderno”, mais “dinâmico”, mais “avançado” do que
os outros, dita as normas a serem seguidas por todos. Sem ele,
a “associação” continuaria a ser feita com setores tradicionais
que não teriam condições de desempenhar esse papel, como
há muito fora demonstrado.
A importância do setor industrial mede-se, portanto,
mais pela tarefa política que desempenha, a de preservar a
dominação externa sobre o conjunto do país, do que talvez
pelos resultados econômicos não desprezíveis que apresenta
para as grandes empresas. Na verdade, o que não se situa no
setor industrial, em termos de interesses dos grandes grupos
internacionais, não é menos importante do que ele. Depende
da “contabilidade” em que sejam escriturados os diversos
fatores que interferem no funcionamento de todo esse sistema
de exploração.
Na comparação dos dados dos diversos setores,
registrados nas estatísticas brasileiras (contabilidade interna),
os números relativos à produção industrial aparecem maiores
do que se vistos no conjunto de interesses da dominação
imperialista (contabilidade externa). Nesta, os resultados da
industrialização e da comercialização das matérias-primas
conta-se pelos preços finais, várias vezes superiores aos da
exportação.
Brasil a Questão Nacional
53
No caso dos minérios, por exemplo, não são
considerados sequer os investimentos feitos dentro do país
pelo Estado e suas empresas, na construção da infra-estrutura
que serve aos concessionários estrangeiros, concessões
feitas gratuitamente. Não cabe, aliás, avaliá-las em termos
de dólares, porque isso diz muito pouco. Entram outros
fatores, dificilmente traduzíveis em algarismos, a começar
pelo fato de que a exploração das jazidas é condicionada pelas
conveniências dos Estados Unidos. Elas podem ser tanto
excessiva e indevidamente exploradas, como permanecerem
inexploradas ou semi-exploradas, como reserva estratégica
dos americanos.
Em declarações feitas em dezembro de 1972, o subsecretário americano para assuntos econômicos, William J.
Casey, afirmou que daqui a uma dezena de anos os Estados
Unidos serão dependentes do estrangeiro em relação à nova
das treze matérias-primas essenciais, entre as quais a bauxita,
o ferro e o estanho. Na verdade, essa dependência já existe,
tendendo a agravar-se.
Os homens da ditadura não dizem, porém, que os
Estados Unidos precisam comprar minérios. Afirmam,
ao contrário, que o Brasil precisa exportá-lo, como se a
necessidade fosse nossa e não dos Estados Unidos. Propalam
que “constitui um crime deixá-los debaixo da terra”,
transformando o Ministério de Minas numa agência destinada
a promover a alienação das riquezas do país.
Não é difícil ver que, além do baixo preço e das
enormes vantagens concedidas aos grupos internacionais, a
ditadura não considera a importância política dessas riquezas
54
Brasil a Questão Nacional
para a nossa própria segurança, palavra de que usa e abusa.
Além de tudo, faz entrar de quebra, na “contabilidade” do
Estado americano, a vantagem que advém da importância do
Brasil para os seus planos de dominação da América Latina
e da África. Pode-se até “contabilizar” o fato de que nossas
Forças Armadas fazem decrescer o custo da repressão que
caberia aos americanos, na medida em que a ditadura assume
o papel de seu gendarme no Continente. Pagamos para ser
explorados e pagamos para ser gendarmes.
Desse modo, a maior vantagem que trouxe a ditadura
para os Estados Unidos não foi a de fazer concessões às suas
empresas industriais, mas a de estabelecer a sua dominação
sobre o conjunto do país. Qualquer setor é secundário frente à
necessidade de preservação dessa dominação no seu conjunto,
que constitui o objetivo central e a tarefa não das empresas,
mas do Estado americano.
A Recolonização
Se não havíamos completado a nossa evolução da
economia colonial para a nacional, como constatava Prado10,
passamos a involuir. Está sendo promovida uma recolonização
do país.
Não nos deve impressionar a existência do enclave
industrial do Centro-Sul, nas condições em que o seu
crescimento se realiza. Quando os holandeses ocuparam o
Nordeste, lá fizeram um enclave para a fabricação de açúcar
com o que de mais moderno existia em tecnologia, na época...
Tanto quanto o velho enclave, o novo não é capaz de nos
Brasil a Questão Nacional
55
tornar independentes pelo simples fato de existir. Alimenta
as ilusões dos que se entretêm com o consumo.
Na verdade, regredimos politicamente. As decisões
que tocam os nossos destinos são cada vez mais tomadas fora
do país. Visam a um “progresso” que tem quase tanto a ver
com o nosso povo, quanto o açúcar dos holandeses com os
índios do seu tempo, ligado que está aos interesses dos que
nos dominam.
Para conservar essa dominação, segundo revela
Fernandez11, os estrategistas americanos adotaram, como
medida essencial, “a contínua internacionalização da atividade
econômica e o desmantelamento do Estado Nacional,
reduzindo-o, por meio dos militares, a manter a ordem
interna”.
Essa orientação tem sido seguida à risca, no Brasil,
desde 1964. As diferentes atividades, se já não estavam, foram
“inseridas na economia internacional”. O desmantelamento do
Estado Nacional começa pela mudança na função das Forças
Armadas.
Ainda segundo Fernandez, os estrategistas americanos
consideram que, “nas áreas subdesenvolvidas, os instrumentos
essenciais para manter a supremacia são de natureza militar”.
Em harmonia com essa diretiva, a “Orientação geral do
planejamento da Segurança Nacional”, previu, como medida
básica, “a reestruturação, a rearticulação e o equipamento das
Forças Armadas, tendo em conta particularmente seu emprego
na guerra revolucionária no Brasil e na América Latina”.
Essa decisão completa um longo processo que começa
na Segunda Guerra Mundial. A uniformização dos armamentos
56
Brasil a Questão Nacional
em nível continental, o controle da Escola Superior de Guerra
e das instituições de ensino militar por elementos próamericanos, além dos cursos de especialização nos Estados
Unidos eram fatores que jogavam no sentido de uma crescente
“internacionalização” das Forças Armadas. Entretanto, ela era
parcialmente impedida pela repercussão das lutas políticas nos
meios militares e pela posição de muitos oficiais, inclusive de
antigos generais, cuja formação era bem diversa da ministrada
pelos americanos.
Dentro da concepção de “defesa do Continente”, da
“luta entre dois blocos”, as nossas Forças Armadas eram parte
do sistema militar dos Estados Unidos, integrando-os, porém,
de forma diferente da atual. Durante toda a nossa história,
salvo na fase colonial, os militares foram sempre levados a
visualizar o “inimigo” fora do país e, no interior, constituíam
a principal base de sustentação dos americanos. Estivesse
nas fronteiras ou se tratasse da “invasão das hordas russas”,
cuidavam da defesa do território nacional contra uma possível
ameaça externa, real ou imaginária. Com a ditadura, o campo
de batalha é o nosso território e o inimigo, o nosso povo.
Assim, as funções das Forças Armadas
internacionalizaram-se totalmente, sendo essa a principal
mudança nelas introduzidas pelo atual regime. E as missões
Brasil a Questão Nacional
57
policiais passam a ser uma decorrência dessa decisão. Não
asseguram sequer “a emergência ou consolidação de uma
burguesia nacional” mas a “implantação da nova burguesia
internacional ligada ao capitalismo dos grandes conglomerados
transacionais” (Furtado). Deixaram de depender, enquanto
instituição, de instrumentos internos, inclusive do apoio
da população contra um eventual agressor externo, para
contarem com o apoio externo destinado a enfrentar um
inimigo interno, o povo brasileiro.
Por conseguinte, sua inserção no sistema militar dos
Estados Unidos muda de qualidade. Já não é uma força
aliada para a “defesa do Continente” mas, um corpo de tropa
de ocupação composta de pessoas nascidas no Brasil. Do
aspecto antipopular, antidemocrático, repressivo etc., pode
ser dito – como muitos fazem, lavando as mãos quanto aos
excessos – que cabe apenas aos setores militares diretamente
encarregados do policiamento. Mas o mesmo não pode ser
alegado em relação às funções da própria instituição que
deixa simplesmente de ser brasileira. Com tais funções, estão
comprometidos todos os que as aceitam e as exercem.
Aliás, isso envolve todo o governo que não mudou
10
PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, sem data.
58
Brasil a Questão Nacional
apenas de forma, isto é, não foram apenas abolidas as
antigas instituições e instaurada uma ditadura militar. Suas
atribuições, aparentemente mais amplas, são realmente mais
restritas do que a de qualquer outro, no passado. Cabe-lhe,
apenas, a manutenção da ordem interna.
A intensificação do controle sobre a população dá aos
militares a ilusão de um enorme poder. No entanto, em tudo
o mais, estão ao sabor das diretivas que impõem os grupos
internacionais. Suas disputas com eles, quando porventura
existem, giram em torno de casos específicos e são provocadas
por quem, em nível operacional, ainda pensa nos interesses
do país.
Na prática, a divisão de atribuições ocorre naturalmente
como decorrência do controle externo sobre a economia. O
nível de dependência que ele determina caracteriza a ausência
de um poder nacional, seja capitalista, estatizante, socialista,
comunista, monárquico ou republicano.
Os generais talvez pensam que ocupam o posto de
presidente. Na verdade, só lhes é dado o de procônsul. Melhor
será dizer de vice-rei, que já os tivemos. E o vice-reinado
caracterizava-se não só pelo nome mas, pelas atribuições de
quem o ocupava: plenos poderes para o enquadramento dos
súditos e para os serviços locais e obediência às diretrizes
gerais fixadas pela Metrópole.
A “internacionalização”, recomendada pelos
estrategistas americanos, abarca, portanto, a economia, o
11
FERNANDEZ, John Saxe. IX Congresso de Sociologia, México, 1969.
Brasil a Questão Nacional
59
governo e seus instrumentos de ação. Não visa apenas ao
combate ao comunismo em qualquer plano. Os golpes são
desfechados não só contra os representantes das correntes
socialistas do Continente, como o Presidente Allende, mas
também contra os defensores de um capitalismo autônomo,
como Vargas. Este não pleiteava sequer a expulsão total do
capital estrangeiro, mas sua limitação em certos domínios.
Não estamos, diante de um regime que se dispõe
apenas a reprimir reivindicações populares ou a impedir o
advento do socialismo, coisa de que se ocupariam igualmente
as próprias camadas dominantes brasileiras. É um regime
que nos faz regredir, imprimindo ao país um rumo inverso
daquele percorrido pelo povo brasileiro, em busca de sua
independência.
Não nega apenas comunistas como Prestes. Nega
igualmente Tiradentes, Frei Caneca e outros mártires da
Independência, como também nega Mauá, Bernardes, Vargas,
Gabriel Passos, Lott e tantos outros, vivos ou mortos. Cada um
defendeu idéias diferentes, no que toca à organização interna
do país, à solução dos seus problemas econômicos e sociais,
porque diferentes as épocas em que viveram e as classes de que
provieram. Identificaram-se, pelo menos, na preocupação de
consolidar nossa formação como país e como nação.
A ditadura atual está nos transformando em simples
território ocupado. E para lá iremos, para essa triste condição,
pela força inexorável dos fatos que os mecanismos do sistema
de dominação vão impondo, se não houver uma completa
inversão de rumos.
60
Brasil a Questão Nacional
Os Modelos
Ora, a “irreversibilidade da revolução”, do “modelo
de desenvolvimento” é o slogan básico do regime. Mantida a
política econômico-financeira, flexões poderão ser permitidas
de acordo com as conveniências táticas ditadas pelas
circunstâncias. Alterações no regime podem facilitar a solução
de disputas entre seus próprios adeptos.
Na reorganização do seu campo de dominação, os
Estados Unidos continuam a fomentar golpes sangrentos,
como o do Chile, mas procuram associar, onde se torna
possível, limitados instrumentos políticos aos de natureza
militar na tentativa de atenuar o desgaste que uma longa
ditadura inevitavelmente provoca. Em lugares os mais
diversos, aparentemente desligados entre si, as “aberturas” e
os “endurecimentos” marcam apenas a substituição de uma
facção pró-americana por outra. Discute-se assim, qual o tipo
de “vice-rei” mais eficaz para assegurar a “irreversibilidade”
num momento dado, mas nunca a abolição do “vice-reinado”.
Do mesmo modo, no domínio das atividades
empresariais, podem ser discutidas as percentagens da
participação, mas não o princípio da participação dos grupos
internacionais. Discutir o secundário – se 49, 35 ou 51% interessa aos americanos, na medida em que isso seja necessário
para contornar reações de membros das próprias Forças
Armadas que, por vezes, se opõem ao vulto das concessões
e ao exagero da submissão. Nem todos são como o Sr. Juraci
Magalhães para quem “o que é bom para os Estados Unidos,
Brasil a Questão Nacional
61
é bom para o Brasil”.
Dessa forma, aumentar um pouco a distribuição
nacional do petróleo, não comprar o satélite ou adquiri-lo
mais barato, não é agradável para a empresa diretamente
interessada, mas está previsto nas táticas do imperialismo
americano: não enrijecer posições, contornar obstáculos criados
por alguns oficiais mais ciosos de suas prerrogativas porque
não comprometidos diretamente com interesses materiais.
Exemplo: a extensão da soberania a 200 milhas. Ela acabou
sendo anulada, na prática, pelos acordos de pesca com os
Estados Unidos. São pagas algumas pequenas taxas mas, em
compensação, outros países são afastados da área. Ao que toca
aos navios de guerra, a “defesa do Atlântico Sul” dá-lhes livre
trânsito. A soberania torna-se, portanto, teórica e vazia.
Essas acomodações facilitam a “irreversibilidade”, a
manutenção da dependência. Mas, para que não pareçamos
dependentes, procura-se dar a impressão de somos uma
“potência de segunda grandeza”, cujo poder se manifesta na
ajuda aos golpes na Bolívia, no Uruguai, na promessa de tropas
ao Paraguai. Confunde-se grandeza com uma arrogância e uma
prepotência sem base, nem consistência.
Os fatos estão demonstrando que o “modelo” da
ditadura está sujeito a todos os ventos. Importa-se a inflação, no
dizer do Ministro da Fazenda. A “guerra do petróleo” aumenta
o volume de divisas necessárias à aquisição de combustível, no
momento em que o endividamento do país já chegou ao nível
de uma “filipeta” internacional.
Os ventos comprovam a fragilidade do modelo,
obrigando a ditadura a rever posições que justifica em termos
62
Brasil a Questão Nacional
de mero oportunismo. Desmoraliza-se, assim, já não diante
do povo brasileiro, mas também junto aos seus aliados. Não
pode mais sustentar Portugal. Ligada a Israel numa colaboração
que vai até ao treinamento militar, vê-se a contra gosto, na
contingência de votar com os árabes.
Nestas condições, o “modelo” não consegue sequer
atingir os objetivos a que declaradamente se propôs e, muito
menos, aos que interessam ao povo. Ele nada tem a ver com tais
delírios de grandeza, precisando, no mínimo, comer, vestir-se,
educar-se.
O Modelo da Burguesia Nacional
Alguns representantes do empresariado nacional fazem
essa mesma constatação. Entendem que o “modelo” da ditadura
Brasil a Questão Nacional
63
fracassou, fato sem dúvida positivo pois estabelece a posição de
uma parcela de burguesia em face de um regime antinacional e
antipopular. Entre outros, o deputado Medina12 mostrou que
“independentemente de posições doutrinárias o caminho de
um desenvolvimento via capital estrangeiro está fechado para
o Brasil”.
No entanto, ao fixar os objetivos desses setores
dominantes, ele apenas sonha com a implantação do “modelo
ocidental”. Em nome da implantação de um capitalismo
autônomo, pretende a restituição “ao empresariado nacional
da liderança do nosso processo econômico, dando-lhe
capacidade competitiva frente aos grupos externos e
fazendo-o participar, de forma significativa, nos principais
setores dinâmicos da economia”.
Ora, ninguém pode dar ou restituir aquela liderança
ao empresariado nacional. Não se trata de querer negar-lhe
o “direito histórico” de comandar o desenvolvimento com
base em “razões doutrinárias”. Ele não o exerce porque não
deve e não tem força para tanto.
Foi pela força econômica, política e militar que as
velhas burguesias européias “assumiram a liderança do
processo econômico”. Derrubaram reis, príncipes e outras
majestades, tomando o poder e impondo os seus interesses.
Tinham condições de apresentar, na época, “perspectivas
nacionais”, mobilizando as demais camadas que emergiam da
64
Brasil a Questão Nacional
servidão a quem acenavam com a conquista de alguns direitos.
Dada a sua fraqueza econômica, a nossa burguesia
mal defende os seus interesses específicos de classe. Adota
uma posição inteiramente desligada da correlação de forças
existentes no país. Perde-se na tolerância, no medo e na
vontade de que tudo aconteça segundo seus desejos.
Tolerância em relação ao que seria o seu principal
inimigo. De fato, afirma Medina: por um lado, que “o
caminho de um desenvolvimento via capitais estrangeiros
está fechado para o Brasil”; por outro “que não se trata de
liquidar o investimento estrangeiro no Brasil, desapropriando
empresas alienígenas, multiplicando obstáculos a sua ação, ou
mesmo impedindo a entrada de novos empreendimentos”.
Medo do socialismo, o que seria natural. Mas, também
do Estado, único capaz de suprir sua fraqueza: “fazer depender
do Estado uma política nacional de desenvolvi-mento, significa
unir contra esta desnecessariamente todos os partidários da
iniciativa privada” ( Medina).Vontade de que “o papel do
capital internacional” seja “necessariamente subsidiário”, tudo
isso “sem obstáculos a sua ação”.
Ora, por força das leis do capitalismo, as empresas
estrangeiras serão necessariamente principais, como
estão sendo e o serão, caso não encontrem obstáculos no
seu caminho. Utilizarão o Estado, como estão fazendo,
para assegurar essa superioridade, seguindo os princípios
universais do sistema que asseguram a preponderância dos
economicamente mais fortes.
Enquanto isso, a nossa burguesia alimenta ilusões.
Coloca-se na postura de sucessora natural de uma oligarquia
Brasil a Questão Nacional
65
que não morreu totalmente, entendendo que a hegemonia
lhe cabe por direito hereditário. Aspira a que o “modelo” se
reproduza, em época, lugar e circunstâncias diferentes, por
fatalidade histórica. Sonha em transplantar “a civilização
ocidental”.
O Modelo Radical
As mesmas premissas (a da ditadura, “estamos saindo
do subdesenvolvimento”; a da burguesia, “transplante da
civilização ocidental”) levam alguns grupos, que se consideram
radicais, a simplificar a atual etapa de luta. Não sem razão,
perdem a paciência com a nossa burguesia, com suas fraquezas
e debilidades. Concluem, talvez por isso mesmo, que tudo se
resume na sua liquidação, quando atingidas as condições para
uma rápida passagem ao socialismo.
Para chegar a essa conclusão, costumam invocar Lenine,
mas parecem não levar em conta a situação concreta em que
vive nossa classe operária. Na verdade, ela é igual às dos países
europeus, a americana, a japonesa, do mesmo modo que as
respectivas burguesias identificam-se com a nossa. Enquanto
classes sociais, estão sujeitas às leis que regem o sistema que as
fez nascer. Agem, porém, em contextos históricos diferentes. É
para as particularidades que disso resultam que Lenine chamava
insistentemente a atenção.
Se a advertência não é seguida pelos que assumem aquela
posição, a ditadura a leva em conta, parecendo ter assimilado
12
MEDINA, Rubens. Desnacionalização. Crime contra o Brasil?, sem data.
66
Brasil a Questão Nacional
melhor a lição. Na verdade, sua política para a classe operária
não se limita à repressão, ao arrocho salarial, ao controle dos
sindicatos. Seu objetivo maior é o de transformar o operário em
simples peça do enclave industrial. Visa a “internacionalizá-lo”,
convencê-lo de que irá ser igual aos dos países desenvolvidos,
isolando-o dos problemas nacionais.
Em outras palavras, o regime pretende estabelecer entre
os trabalhadores industriais concentrados numa reduzida
área e o resto da massa pobre espalhada pela imensidade do
nosso território, as diferenças que Lenine enxergava entre os
proletários das nações opressoras e os das nações oprimidas.
Em “Uma caricatura do Marxismo”, ele assim as definia:
1 – Economicamente, a diferença está em que parte da
classe operária dos países opressores beneficia-se dos restos do
superlucro que realizam as burguesias das nações opressoras
ao explorarem duas vezes mais os trabalhadores das nações
oprimidas...
2 – Politicamente, a diferença reside em que os
operários das nações opressoras ocupam uma situação
privilegiada em toda uma série de domínios da vida política,
em relação aos trabalhadores da nação oprimida.
3 – Ideologicamente, ou espiritualmente, a diferença
está em que os operários das nações opressoras são sempre
educados pela escola e pela vida no desprezo ou no desdém
pelos operários das nações oprimidas.
Não se diga que isso se refere a trabalhadores de
países diferentes; segundo ele, tais fatos ocorriam na Rússia
tzarista, onde os grandes-russos tinham tal atitude em relação
aos demais, bem como nos Estados Unidos, em relação aos
Brasil a Questão Nacional
67
trabalhadores imigrados.
A divisão econômica, política e espiritual entre a nossa
classe operária e o resto da massa explorada é um dos objetivos
maiores da estratégia política do sistema. Consiste em procurar
desligar o operariado especializado, dos bóias-frias, dos
assalariados agrícolas, dos peões, dos seringueiros. Mesmo que
seja nordestino, fazer com que esqueça a sua região, lançando
sobre ela a culpa de dificuldades maiores que vivia no passado.
Para melhor atingir aquele objetivo, a orientação dos
“departamentos de relações públicas das empresas” é no
sentido de procurar estabelecer diferenças dentro da própria
classe operária, num trabalho sistemático que vai, por vezes,
ao nível do indivíduo. O emprego de tecnologia destinada
a poupar mão-de-obra contém o crescimento. Pequenas
concessões econômicas podem ser feitas quando a organização
dos trabalhadores lhes permite romper, em certa medida, as
barreiras repressivas.
Enfim, o regime trata de “despolitizar” a classe operária
através da deformação ideológica. Para isso, não basta impedir
o ensino do Marxismo ou da Doutrina Social da Igreja. Precisa
levá-la a crer-se como uma simples reprodução da classe
operária dos países desenvolvidos, isolando-a da massa pobre
que a produziu. Partindo das mesmas premissas, os que se
consideram radicais podem ajudar essa deformação.
Suprimida de sua origem, colocada em um estágio
acima da marginalidade, a classe operária deixou de ser uma
parcela das massas exploradas do país para se constituir numa
simples peça da indústria estrangeira. Voltada para si mesma,
deixou de desempenhar o papel histórico que vinha tendo, o
68
Brasil a Questão Nacional
de conduzir politicamente e de interligar as lutas travadas, em
vários planos, pelas massas urbanas e rurais. Foi com o seu
aparecimento que elas saíram do estágio de mera contestação
para ganhar conotação política.
O principal fracasso da ditadura reside em não ter
podido estabelecer esse corte, em ter sido vã a sua tentativa de
“internacionalizar” a classe operária e também a juventude,
através da deformação do ensino. Não é difícil americanizar
a burguesia e alguns setores da classe média, herdeiras das
tradições de nossas classes dominantes que sempre mantiveram
fora do país os seus interesses, de lá trazendo a sua ideologia.
Será impossível, porém, “desnacionalizar” o povo brasileiro,
por mais longa e dura que seja a dominação.
A Questão Nacional
Determinar o que é nacional ou internacional,
brasileiro ou não, aparece, para alguns, como questão
bizantina. Para outros, como preocupação chauvinista, fruto
do “nacionalismo burguês” ou da discriminação em relação
aos estrangeiros. Invoca-se ou o fato de que somos abertos
a todas as raças que rapidamente se integram no nosso meio,
ou o “internacionalismo proletário”, para afastar o problema.
No entanto, pessoas tão diferentes quanto Lenine e
Roockefeller preocuparam-se com a questão. É possível até
que o segundo tenha se valido dos escritos do primeiro para
fins opostos àqueles a que se destinavam, seguindo a regra
de que se deve bem conhecer o inimigo.
Brasil a Questão Nacional
69
No já citado trabalho, Lenine contesta P. Kievski
a propósito da resolução sobre a guerra de 1914/1918,
explicando “como se deve distinguir uma verdadeira guerra
nacional de uma guerra imperialista, camuflada sob falsas
palavras de ordem nacionais. A saber, para fazer a distinção
é preciso ver se, “na base”, encontra-se um longo processo
nacional de massas, de derrubada da opressão contra a nação”.
No seu relatório sobre a América Latina, Nelson
Rockefeller chama a atenção de Nixon para o fato de que “a
curva do sentimento nacionalista está geralmente em ascensão,
na medida em que essas sociedades (latino-americanas) lutam
por uma maior identidade nacional e por uma auto-afirmação”.
Constata ainda que “o nacionalismo não se restringe a um só
país, nem vem de uma só fonte. Grupos políticos e de pressão
de todas as tendências baseiam-se na exploração do sentimento
nacional”.
Ao propor medidas contra isso, Rockefeller teme, sem
dúvida, aquilo que prevê Lenine, na obra já citada. Diz este
que “toda opressão contra uma nação provoca uma resposta
nas largas “massas do povo” e toda resposta de uma população
nacional oprimida tende a tomar a forma de uma insurreição
nacional”.
Nestas condições, se estamos submetidos à dominação
imperialista, devemos definir o tipo de opressão que sofremos,
quem oprime e quem é oprimido, quem é nacional e quem é
estrangeiro.
Noutros lugares, as diferenças de raça ajudam a
distinguir os dominantes dos dominados. Entre nós, ao
contrário, há estrangeiros que são brasileiros, com o Pe. Jentel,
70
Brasil a Questão Nacional
preso porque solidário com os camponeses do Centro-Oeste.
Há brasileiros que são estrangeiros, como o Sr, Roberto
Campos. Esses são os casos mais simples numa questão tão
complicada que levou Carlos Drummond de Andrade a
encerrar assim o seu “Hino Nacional”: “Nenhum Brasil existe.
E acaso existirão os brasileiros?”.
Tem cabimento a indagação do poeta, pois o conflito
entre exploradores e explorados, presente em todas as
sociedades não socialistas, adquire, no Brasil, particularidades
que a justificam. No trato das desigualdades sociais e regionais,
a linguagem e o comportamento do colonizador ainda
aparecem, sem disfarces, na vida corrente.
Em 04/11/1973, por exemplo, o Estado de São Paulo
publicou um longo editorial sobre a “grandeza paulista”. Ela
provocaria, segundo o jornal, desde o começo do século,
“sentimentos de respeito e de inveja”, “complexos de primos
pobres”, no resto do país. Entre outras considerações do
mesmo gênero, afirma que “os ressentimentos contra São Paulo
não decorrem somente dos desníveis do desenvolvimento
econômico. Eles são sobretudo fruto do subdesenvolvimento
cultural, vale dizer, da mentalidade subdesenvolvida que
impera na maior parte do país”.
Não eram diferentes os conceitos dos colonizadores
europeus em relação aos africanos, aos árabes, aos povos
asiáticos sob sua dominação: bando de subdesenvolvidos,
“gente de cor”, cuja miséria não podia deixar de ser culpa deles
próprios, de sua pele e de sua ignorância.
Por conseguinte, a “minoria branca” de Pedro I continua
viva. Prosperou, evoluindo para uma burguesia que se associa,
Brasil a Questão Nacional
71
em condições mais vantajosas, aos grupos estrangeiros. A corte
do príncipe cresceu, dispondo de tecnocratas, de servidores e
de seguidores que se lançam ao consumo, tal como deviam
fazer os menos numerosos freqüentadores dos seus palácios.
A máquina de dominação modernizou-se, mecanizou-se, em
harmonia com o novo ciclo, cheio de fábricas e de máquinas.
Mas seus agentes nos mais diversos lugares continuam a ser
condes e barões com outros nomes: os políticos que enquadram
a população e que se alimentam dos restos do poder central.
72
Brasil a Questão Nacional
Sempre formaram o partido oficial, na monarquia, na república,
nos períodos democráticos ou ditatoriais.
Cresceu, por outro lado, o “populacho”, diversificandose em diversas categorias. Mas o fosso entre a massa explorada e
a “minoria branca” não foi reduzido. Vem do fato de que aquela
minoria, que não compreende sequer toda a burguesia sediada
no país, não chega a ser brasileira, nem, ao menos, estrangeira
integrada e radicada no país. É completamente estranha à
comunidade que nela historicamente se tenta formar, apesar
de nascida no Brasil.
Essa característica pode ser encontrada em outros países
latino-americanos. Falando do recente golpe de estado no seu
país, o embaixador chileno Armando Uribe constata: “Eu
mesmo, burguês de origem, dou o meu testemunho: durante
séculos, tratou-se o povo chileno como se fosse estrangeiro”.
Isso é verdade no Chile, no Brasil e em outros países, o que vale
dizer, nossas classes dominantes, antigas e modernas, aliadas
aos exploradores externos, conservam o comportamento e a
mentalidade do primitivo ocupante.
Se a “ocupação” sempre existiu, a ditadura foi o único
governo que teve a coragem de transformá-la em política oficial,
desde a proclamação de nossa autonomia. Caracterizou-a ao
definir, como elemento fundamental de defesa, a associação
com o exterior e ao localizar o inimigo dentro do país. Numa
Brasil a Questão Nacional
73
guerra externa, ele está fora, e as bases de sustentação das forças
nacionais, no interior. Numa disputa interna, as partes buscam
localmente os elementos materiais e humanos de apoio; a
contribuição externa é secundária. Só a ocupação reúne as duas
características contidas na orientação da ditadura.
A primeira foi estabelecida por Castelo Branco, logo
após o golpe, num discurso de 31.07.1964. Dizia ele que “a
defesa tem de ser necessariamente associativa...”. Dentro
da “confrontação do poder bipolar, com radical divórcio
da independência entre os dois respectivos centros, a
preservação da independência pressupõe a aceitação de um
certo grau de interdependência, quer no campo militar, quer
no econômico, quer no político”. Isso significa que o país
devia se subordinar, em todos esses planos, ao imperialismo
americano e que nessa “associação”, isto é, no exterior, residia
a principal base de defesa.
A segunda está nos discursos que até hoje pronunciam
vários chefes militares. Para eles, a “guerra revolucionária” lavra
permanentemente, revelando-se nas menores manifestações
de descontentamento e de protesto que ocorram no país. Essa
concepção do “inimigo interno” foi reafirmada na recente
conferência militar de Caracas, contra a posição defendida
notadamente pelos argentinos e pelos peruanos.
O país foi, assim, “vietnamizado”, o que não se
mede pelo volume de equipamentos recebidos mas pelo
caráter da “associação”. A ajuda militar americana não tem
necessidade de assumir atualmente, no Brasil, as proporções
atingidas no Vietnam. As medidas econômicas e políticas são
predominantes, sendo apenas “preventivas”, as repressivas.
74
Brasil a Questão Nacional
Aliás, ocorre talvez o contrário. O neocolonialismo,
em voga durante um século e meio na América Latina, estaria
sendo exportado para o Vietnam. De lá, nos é reenviado,
enriquecido por uma experiência nova que a dominação
americana não havia conhecido no nosso Continente.
De fato, a arma fundamental utilizada nos dois casos é
a solidariedade internacional de classe que se estabelece entre
as classes dominantes da metrópole e as da neocolônia, em
defesa da “associação” que realizam para a exploração do país. A
prematura implantação do neocolonialismo na América Latina,
quando a África e a Ásia sofriam o jogo colonial, não decorre
de um maior atraso das nações destes dois continentes, onde
existiam civilizações mais enraizadas do que a latino-americana;
deve-se a existência entre nós, de uma minoria de ocupantes
que, além de brancos, identificavam-se com a “civilização
ocidental”, qualidades que facilitavam a “associação”. Por
“civilização ocidental” deve-se entender o que foi importado
– e tudo importamos, homens e idéias – mas não foi digerido,
refeito, integrado, nacionalizado, tal como ocorreu, por
exemplo, com o futebol.
No esporte, isso ainda é tolerado. Quando certas
instituições desviam-se do esquema inicial, deixando de servir
de arma ao “ocupante”, são condenadas inapelavelmente.
Agora, a democracia liberal torna-se inconveniente para
a maior parte dos que agitavam o “lenço branco” do brigadeiro.
Já não é possível utilizá-la apenas para as classes médias e altas,
sem o risco de que se estenda a enormes parcelas da população,
tornando a situação incontrolável. Segundo o Estado de São
Paulo, de 19/10/1973, o General Humberto de Souza Melo,
comandante do II Exército, convocou seus camaradas da Força
Brasil a Questão Nacional
75
Aérea para marcharem juntos a fim de que “jamais nossa
Pátria retorne ao liberalismo democrático ou ao deformado
Estado de Direito...com as imunidades equívocas que geram
a licenciosidade nas mais variadas formas por um estado de
omissão ou de indiferença...”.
Quanto à Igreja, que os autores do golpe desejavam
viesse a constituir um dos pilares do regime, como imagem
indiscutível do “ocidente”, ocorre a mesma coisa. Tem-se
notícia de padres executados no século passado, ao se afastarem
não da religião, mas dos “padrões ocidentais”, pretendendo
integrar-se na comunidade de “brancos, pretos, índios e
mulatos”. Permanecendo, desde então, dentro do modelo
original, nada sucedeu aos sacerdotes. Agora, sob a ditadura,
as perseguições atingem aqueles que se ligam ao povo. A alta
hierarquia torna-se mal vista por não querer permanecer
estrangeira, como instrumento de “ocupante”, tal como foi
no passado.
A “nacionalização” do conhecimento fere também a
“associação”, mesmo quando não se liga a atividades partidárias.
O controle do setor industrial retirou inclusive a razão de ser
de certas profissões em que já se dispunha de especialistas de
alto nível. Foi o que aconteceu, por exemplo, no conhecido
caso da indústria farmacêutica, que passou cem por cento para
mãos estrangeiras. A contribuição que o país vinha oferecendo
e poderia oferecer nesse domínio desapareceu, afetando as
atividades médicas que voltaram a ser uma transplantação da
“ocidental”.
Enfim, sendo o imperialismo um sistema de dominação
que vai do econômico ao cultural, a propaganda do regime e
76
Brasil a Questão Nacional
das empresas internacionais segue o modelo americano. Visa
a impedir que progrida a luta “por uma maior identidade
nacional”, temida por Rockefeller, sempre atento a Lenine que
advertiu : “O menor esforço de reflexão demonstrará a todos e
a cada um...que toda nação “insurgida” defende-se contra uma
nação opressora, defende sua língua, seu território, sua pátria”.
Nada melhor para impedir que isso ocorra do que
estimular um falso orgulho nacional, fomentar delírios de
grandeza através de declarações patrioteiras. Estas podem
ser lidas não só nos discursos dos generais, mas nos próprios
anúncios das empresas americanas com a finalidade de explorar
aqueles falsos sentimentos nacionais ao mostrar que seus
produtos já são fabricados no Brasil.
A propaganda americana sabe perfeitamente que a
“luta pela nossa identidade nacional” jamais se fará enquanto
pudermos ser enganados por tais métodos, réplica moderna e
sofisticada das contas coloridas que os portugueses davam aos
índios, logo após a descoberta. Ela exige a continuidade “do
longo processo de movimentos de massa (Lenine) iniciado
pelos índios, caçados como feras; pelos pretos, trazidos como
escravos; pelos brancos, fugidos da miséria do reino ou
condenados pela corte.
Não tem razão o poeta quando diz “ser difícil
compreender o que querem esses homens, por que eles se
ajuntaram e qual a razão dos seus sofrimentos”?. Na verdade,
começamos a ser juntados há alguns séculos atrás para atender
as conveniências da expansão capitalista. Compondo uma
comunidade heterogênea, unida pelo sofrimento que lhe
foi imposto desde as origens, não podemos distinguir um
brasileiro de um estrangeiro pela cor, pela religião, pelas
Brasil a Questão Nacional
77
convicções ideológicas, por ter nascido ou não no Brasil.
Carecemos, para tanto, de critérios políticos. Nossa
nacionalidade só pode ser determinada em função da história
do nosso povo, da consolidação da primitiva comunidade.
No entanto, os diferentes tipos de dominação a que fomos
submetidos sempre se opuseram a essa consolidação.
Nossa comunidade se manifestou nos “mata-galegos”, nos
indianistas, nos nativistas, nos nacionalistas, em católicos,
comunistas, protestantes, socialistas, maçons, espíritas, em
todos os que reconheceram a sua existência e contribuíram
para o movimento de massas que está na base de sua formação.
Interesses Nacionais
Mas nossa formação não se completou, nem se
completará com as estradas e os meios de comunicação
construídos pela ditadura. A infra-estrutura não vale por si
mesmo senão pelo uso que se lhe dá. Tanto pode servir a um
programa de integração quanto a outro de compartimentação
do país. Pode ser feita, quando necessário, até mesmo em
território inimigo para facilitar o controle de áreas ocupadas...
A consolidação da nação não é uma simples tarefa
administrativa, como faz crer a ditadura. Cabe a todos os
brasileiros, consistindo na edificação de uma comunidade onde
78
Brasil a Questão Nacional
se integrem e vivam. Sempre foi esse o interesse e a aspiração
das camadas oprimidas da nossa população.
Indo-se além, pode-se dizer que foram as mesmas
aspirações que guiaram índios e negros desde o tempo da
colônia. Os primeiros procuraram conservar sua “nação”,
suas tabas, seus costumes. Os outros tentaram refazer sua
“nação”, nos quilombos onde reproduziram localmente
formas africanas de vida, as únicas que conheciam, afora a
escravidão. São formas historicamente ultrapassadas, embora
os índios ainda hoje sejam obrigados a defender suas tabas, na
Amazônia, onde estão sendo dizimados. Apesar da existência
atual de muitos quilombos, se assim podem ser chamadas
inúmeras comunidades existentes em extensas áreas de mera
sobrevivência, pesquisas recentes mostram a quase inexistência
de circulação monetária.
Dir-se-á que as diferenças na forma de conceber a
formação da nação impedem a sua consolidação. Mesmo entre
os setores explorados da população existem essas diferenças,
devidas sobretudo à variação das condições de vida e ao nível
de consciência. Tanto quanto os índios preferiam as tabas e os
negros os quilombos, o operariado industrial, os bóias-frias, os
seringueiros, os peões, os posseiros etc., possuem aspirações
diferentes quanto à forma. O que é inegável é que a aspiração
mínima de todos de que se constitua uma comunidade onde
as pessoas sejam consideradas, é histórica. Se uma parcela da
população chegou a conquistar alguns direitos, a maioria jamais
os teve, nem sequer aqueles universalmente reconhecidos à
pessoa humana.
Restariam, porém, os interesses das diversas classes
sociais que determinam diferenças no conceito de interesses
Brasil a Questão Nacional
79
nacionais. Aquelas aspirações mínimas, no entanto, nem
sequer se chocam com o direito de propriedade. Não exigem
uma socialização ou uma estatização que abranja do bar da
esquina a empreendimentos maiores, não conflitantes com os
interesses do país; mas, apesar de tudo, são conflitantes com
a interdependência que não permite sequer a concessão das
liberdades conquistadas por outros povos no século XVIII.
Ela representa uma verdadeira anexação do país, em termos
econômicos, políticos e militares.
Para essa anexação, o imperialismo vale-se da luta de
classes que não é apenas uma arma de esquerda. Convémlhe uma prematura radicalização em palavras, no que é
ajudado inconscientemente pelos que entendem o processo
de transformações sociais como simples ato de vontade, já
perfeito e acabado, bastando escolher o “modelo” de socialismo;
por outro lado, pelos generais que afirmam a existência de
uma “guerra revolucionária” em permanência, afirmando
que propriedades, famílias e tudo o mais estão sob a ameaça
iminente do “comunismo internacional”.
Isso permite a mobilização dos que têm posses, grandes
e pequenas, em defesa de interesses supostamente ameaçados,
setores sociais que têm consciência de classe, maiores recursos,
técnicas modernas. Permite calcular o momento de utilizar a
violência antes que as massas populares tenham atingido, no
seu conjunto, um elevado grau de consciência, de organização
e de operacionalidade. Desarmadas ou mal armadas, sem treino
militar e comandadas por várias tendências que não conseguem
estabelecer planos unificados de ação, são esmagadas pelos
modernos instrumentos de repressão.
A experiência do nosso e de outros países mostra que
80
Brasil a Questão Nacional
essa tática, bastante clara, vem sendo sistematicamente utilizada
nos golpes militares. Serve igualmente para a preservação
do clima necessário à vigência do neofascismo e mesmo da
“democracia limitada”, sua versão mais branda, pregada por
certos setores ditos mais moderados dos Estados Unidos.
Enquanto nos perdemos em formulações doutrinárias, o
imperialismo procura desviar-nos dos nossos objetivos,
analisa friamente a situação concreta existente, fixando a hora
e as condições do enfrentamento.
Segundo André Fontaine (Le Monde – 21.12.1973),
Mr. Kissinger age com extremo realismo, inspirando-se
também em Lenine. Para comprovar sua afirmação, cita
palavras do Secretário de Estado americano: “o valor de
um homem de Estado reside no seu talento no avaliar a
exata correlação de forças e no utilizar essa avaliação para as
finalidades que tem em vista”. E Fontaine explicita o sentido
da frase: “Só o conhecimento exato da correlação de forças
permite definir o possível, de tomar caminhos que, aos olhos
da maioria, parecem inacessíveis. E, para bem perceber essas
Brasil a Questão Nacional
81
relações, é preciso uma visão que não esteja turvada pelas
lentes da paixão, nem da ideologia. Isso faz pensar na célebre
fórmula de Lenine: “Fazer uma análise concreta de uma
situação concreta”.
A tática de ação, que passa pela fria análise de Mr.
Kissinger, assenta-se num dos pontos da doutrina Nixon,
que definiu a estratégia atual do imperialismo americano,
a “divisão de responsabilidade”. Ela nada mais é do que
a solidariedade internacional das classes dominantes, a
mobilização das camadas altas e médias de cada país para
a defesa de suas prerrogativas, colocadas além e acima dos
“interesses nacionais”. O aguçamento, mas sobretudo a
“internacionalização” da luta de classes, une os setores
dominantes contra o processo de independência nacional
sob o comando dos grupos estrangeiros que detêm os
mecanismos do sistema.
A resposta das classes dominantes locais à convocação
de Nixon não decorre apenas da associação, em termos
econômicos, com os grupos internacionais. A maioria ocorre
em termos políticos, passando a constituir simples massa de
manobra nas mãos dos que dominam o país.
Outros rejeitam aquela convocação, mas a ela acabam
servindo objetivamente, pois analisam a situação “através das
lentes da paixão”, isto é, do medo às diferentes pressões a que
estão submetidos. Medo do povo, das conquistas democráticas
82
Brasil a Questão Nacional
que podem descambar para mudanças sociais mais profundas.
Medo do Estado, de uma ameaça de intervenção na vida
econômica que prejudique a empresa privada. Medo
dos grandes grupos estrangeiros que, na prática, os estão
liquidando.
Os “interesses nacionais” são alegados para cobrir,
por conseguinte, posições as mais diversas. Em seu nome a
ditadura favorece os grupos estrangeiros que, segundo alega,
ajudam o “desenvolvimento nacional”. Em seu nome, pedese o oposto, a renacionalização das empresas, passando-as
para as mãos de pessoas nascidas no Brasil. Em seu nome,
os produtores de carne defendem a exportação, enquanto a
classe média, zelando pelo seu próprio abastecimento, prefere
que ela seja proibida...
Furtado13, acentuando a importância da questão, diz
que “os interesses nacionais” definiam-se quando a atividade
mercantil se apoiava em manufaturas locais, que podiam ser
ameaçadas por concorrentes externos ou que eram utilizadas
para exportação”. Adianta que é “a combinação de atividades
manufatureiras pré-industriais (baseadas na organização
corporativa ou no trabalho livre), com as atividades que
enfrentam a concorrência externa, que define o perfil das
burguesias nacionais”. Conclui, em conseqüência, que “a
classe industrial que se forma no Brasil atua num quadro
estrutural próprio” e que “assimilá-la a uma burguesia
nacional” constitui simplificação que contribui mais para
ocultar do que para revelar a realidade. Seus interesses estão,
de maneira geral, positivamente vinculados ao comércio
exterior”.
Brasil a Questão Nacional
83
Assim, as “burguesias nacionais” que, nas nações
desenvolvidas, criaram a “forma mais ampla de comunidade
a que deu origem o nascimento e a evolução do sistema
capitalista” (Rosental e Iudin) tinham, na época do seu
aparecimento, “interesses nacionais” e podiam falar em nome
de “toda a nação”, não obstante suas contradições com as
demais classes sociais. Essas contradições as separavam no
que toca à forma de organização da sociedade. Divergentes
quanto à maneira de conduzir os “interesses nacionais”,
convergiam ao fundo da questão: “A base econômica de que
surgiu a nação deu-se pela liquidação da fragmentação feudal,
pela consolidação dos nexos econômicos entre as várias
regiões do país, pela união dos mercados em um mercado
nacional único”. (idem). Essa convergência dos interesses
econômicos forçava a unidade política e cultural da nação, a
“unidade nacional”, a “integração”, que interessava às diferentes
classes e camadas, não obstante as desigualdades e injustiças
no relacionamento entre elas.
Na nossa evolução, como foi visto, é o contrário que
se passa. A exportação de matérias- primas compartimentou o
país em áreas especializadas sem nexo entre elas, reduzindose, com o atual regime, os débeis vínculos que estabelecia a
primeira fase da industrialização. Quem produz carne, açúcar,
café etc., busca o mercado exterior, onde os preços podem
ser superiores aos que pode pagar a imensa maioria da nossa
população.
Com a indústria, ocorre, na prática, a mesma coisa.
De acordo com Furtado, a política atual consiste em
“dinamizar a demanda da classe média alta”, cujo nível de
84
Brasil a Questão Nacional
vida “deve acompanhar a evolução do consumo dos grupos
de renda médias e altas dos países mais ricos”, o que implica
na “pauperização absoluta da população”. Nestas condições,
pode-se afirmar que essa estreita camada não se inclui no
“mercado brasileiro”, mas num “mercado internacional”
artificialmente implantado no Brasil.
Em conseqüência, pode-se dizer do crescimento
industrial não apenas que favorece as multinacionais e que se
vale do arrocho salarial. Pode-se também afirmar que ele nada
tem a ver com os “interesses nacionais”, assim entendidos os
do conjunto de classes e camadas de todo o tipo, os interesses
dos brasileiros em geral, que não são necessariamente todos,
nem apenas as pessoas nascidas no Brasil. São os que não
“internacionalizaram” as suas atividades, o seu consumo, a sua
mentalidade, nem as posições políticas, porque seus interesses
estão ligados à construção da “comunidade local”, da nação, ou
como se queira chamar o resultado do ajuntamento primitivo
iniciado com a descoberta do nosso território.
Os interesses das classes dominantes não as levam a
constituir, nem mesmo a pertencer a essa “comunidade local”,
senão a dela se servirem, na qualidade de intermediárias,
dentro do sistema internacional em que estão inseridas. Se as
burguesias dos países desenvolvidos discordavam das demais
classes e camadas quanto à forma, unindo-se a elas em relação
ao conteúdo da questão nacional, as nossas classes dominantes
divergem da maioria do nosso povo sob os dois aspectos.
Os seus interesses tomam um sentido oposto aos das “bases
econômicas de que surgiu a nação”. Não promovem a “união
Brasil a Questão Nacional
85
dos mercados em um mercado nacional único”, antes dividem
e compartimentam o país, ameaçando a unidade nacional.
Se tais rumos persistem, terá razão o poeta. O Brasil
não existirá como Nação, seja capitalista, ou socialista, seja
taba ou quilombo. Será um simples território ocupado.
Para que exista o Brasil, é preciso que existam os
brasileiros, o que não acontece com a simples transferência
de ações das multinacionais para as mãos de pessoas
nascidas no nosso território, como pensam alguns setores do
empresariado nacional. Tem que ser instaurado um poder
nacional representativo das classes e camadas interessadas
na consolidação da Nação, em oposição ao processo de
“desmantelamento do Estado Nacional”, aconselhado pelos
estrategistas americanos e posto em prática pelo atual regime.
O poder deve sair das mãos da minoria que desnacionalizou
suas atividades, seu consumo, sua mentalidade, e vir para as
mãos do povo brasileiro.
Nos países desenvolvidos, o movimento nacional
pertence ao passado. Já em nada contribui para fazer avançar
a sociedade no seu conjunto. Entre nós, ele ainda significa a
defesa de reivindicações gerais que, embora semelhantes, não
são idênticas àquelas que presidiram a construção das nações
européias.
Tanto nelas, como entre nós, a liberdade e a democracia
visam a permitir que apareçam as reivindicações do conjunto da
população e a possibilitar a sua solução. Não se as pode ver como
entes de razão, eternas e imutáveis, mas como instrumentos
13
FURTADO, Celso. Análise do modelo econômico, sem data.
86
Brasil a Questão Nacional
destinados à condução de um processo de transformações
econômicas, políticas e sociais que consulte os interesses da
maioria. Sua simples existência não leva necessariamente à
reprodução do “modelo ocidental”.
De fato, não há comparação entre a atual correlação de
forças dentro do nosso país e no plano internacional com aquela
que permitiu a formação daquele “modelo”. As reivindicações
e as soluções possíveis, ditadas pelas necessidades da população
e pela situação concreta do país, não podem ser atendidas por
ele, sequer na medida em que o puderam fazer as burguesias
européia e americana. Estas (salvo as subdesenvolvidas, onde
o fascismo prevalece: Portugal, Espanha e Grécia) tiveram e
têm capacidade para tolerar um grau maior de liberdade e de
democracia, enquanto entre nós (e agora mais do que nunca)
elas sobrevivem graças a uma “preservação da ordem” em
termos muito mais estritos e restritos, a “segurança” de que
tanto falam os nossos militares.
E a estratégia política que condiz com essa “segurança”
não é a da unidade nacional decorrente da necessidade de um
mercado unificado, a que levavam os interesses da burguesia
européia, tornados hegemônicos no seio da sociedade. Entre
nós, os interesses dominantes dirigem-se no sentido de dividir.
Juntam-se mas, na defesa das prerrogativas de cada um na sua
zona de influência. Não unem o país.
Para a grande maioria dos setores dominantes, a unidade
nacional tem sentido bem distinto daquele que conseguiu aliar
burguesia e camadas populares na Revolução Francesa. Nada
tem a ver com o significado de unidade nacional que atende
aos interesses do povo brasileiro para quem ela consiste (como
Brasil a Questão Nacional
87
para as camadas populares francesas de então) em direcionar as
atividades de todos no sentido de fazer avançar a sociedade no
seu conjunto, isto é, na solução dos problemas que o afligem
dos grandes centros urbanos aos lugares mais distantes do país.
Assim, em contraposição à ação fracionária dos setores
dominantes, é necessário adotar uma linha de ação que nos leve
à unidade em todos os planos. Ela não virá da concordância em
torno de doutrinas ou de modelos, mas de objetivos mínimos
que não só possam como devam ser aceitos por todo aquele
que se identifique como brasileiro. Nessa qualidade, somos
obrigados a concordar com a necessidade de assegurar a unidade
nacional, objetivo a que nem os homens da ditadura podem
abertamente se opor. Na prática, eles tentarão convencer que
ela consiste em distribuir tropas pelos quatro cantos do país,
confundindo unidade nacional com ocupação militar do nosso
território.
É evidente que ela implica no combate ao atual processo
de diversificação e de compartimentação, na correção da
crescente marginalização de regiões inteiras e da imensa
maioria da população, na correção de distorções provocadas
pela nossa evolução, agora agravada pela política da ditadura.
São necessárias, desse modo, grandes transformações na vida
do país, impostas pelas realidades de diferentes áreas e por
tipos de dominação que vão do colonial clássico às formas mais
modernas e requintadas. Sem elas, não será possível corrigir
as desigualdades materiais nem as decalagens que aquelas
realidades determinam no nível da consciência das várias
camadas da população.
É em face dessas realidades que cada brasileiro se vê
88
Brasil a Questão Nacional
colocado e não diante de “modelos” que pudessem escolher
segundo os seus desejos. Diante delas, cabem duas alternativas
bem definidas: ou se teme a transformação indispensável à
consolidação da nação e atende-se a convocação de Nixon,
perdendo a condição de brasileiro, ou se conserva essa
condição, aceitando as transformações na medida em que são
impostas pela situação concreta do país e da nossa população,
como um imperativo da nossa própria existência nacional.
No escamotear a existência do problema nacional, fundase a ação ideológica do sistema. O próprio sentido das atividades
econômicas ajuda a enfatizar a existência de problemas setoriais
e regionais, desligados do principal. As questões são divididas,
ou colocados os seus aspectos secundários, de modo a provocar
a dispersão política da população. Não haveria brasileiros mas
paulistas, baianos, mineiros, goianos, gaúchos, amazonenses...
Assim, a contradição entre as regiões industrializadas e
as zonas subdesenvolvidas cria uma falsa oposição entre São
Paulo e o resto do país. É fato que a exagerada concentração do
setor industrial numa reduzida área cria grandes disparidades,
mas nisto não reside o aspecto principal da questão. As
desigualdades não podem ser corrigidas com a simples
implantação de fábricas, mas poderíamos pretender a instalação
de uma siderúrgica em cada município para que todos ficassem
iguais. O fundamental é a orientação da produção industrial
que não está dirigida no sentido de servir ao conjunto do país,
visando à elevação do nível de produtividade dos outros setores.
Grave não é a concentração, mas sobretudo a fabricação de
artigos de luxo para uma estreita camada em detrimento do
resto da população, não importando que isso se faça em São
Brasil a Questão Nacional
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Paulo ou no Amazonas.
No que toca às regiões pobres, o isolamento do
problema também ocorre. Explica-se que são pobres em
virtude de características que lhes são próprias, em razão da
seca ou do excesso de chuva, e não como resultado do tipo de
exploração sofrido pelo país, e dos efeitos específicos que nelas
provocou. Em conseqüência, não se lhes concede os direitos
que têm como parte integrante da Nação. São vistas com um
falso espírito de caridade, como dignas de comiseração e de
ajuda, nunca com os olhos da Justiça que manda dar aquilo
que lhes é devido em razão da nossa história.
Procura-se dividir, do mesmo modo, os diferentes
setores da população. Os estudantes poderão falar de assuntos
escolares, os padres das questões religiosas, os camponeses da
chuva, os operários do seu trabalho e, em certas circunstâncias,
como admitem os mais “liberais”, de aumento salarial. Não
é permitido, porém, ligar entre si esses problemas através da
discussão do sentido geral do desenvolvimento, do problema
nacional, que interessa a todos. A “segurança” só admite, no
máximo, problemas parciais, mas não a questão principal sem
cuja solução nenhum problema parcial pode ser resolvido.
Mobilização Nacional
Nenhuma alteração fundamental poderá ser
introduzida nessa situação pelos novos governantes. Não
se trata sequer de discutir se desejam ou não promover
90
Brasil a Questão Nacional
mudanças, embora seja fácil concluir pela negativa, face aos
seus pronunciamentos formais quanto à continuidade ao
atual sistema. Deve-se constatar que não podem, mesmo que
assim o desejassem.
O poder atual é extremamente débil para isso. Não
tem forças para adotar medidas em defesa dos interesses
nacionais, em benefício da população. Elas se chocariam com
o setor hegemônico dominado pelos grupos estrangeiros, que
reclama cada vez mais inversões e concentração de renda.
Esse setor – e não o governo - é que detém os mecanismos
financeiros cujo controle está fora do país.
Estamos transformados numa espécie de vice-reinado.
O poder dos governantes restringe-se à manutenção da ordem
e à administração dos assuntos internos, no que podem ser
mais ou menos tolerantes, pois até aí vão os limites de suas
atribuições que não são suficientes para mudar o sentido do
desenvolvimento. É um poder sustentado por um esquema
militar cujas funções foram deformadas para voltá-lo contra
o povo.
Essa constatação é imposta pelos fatos. Não se pode
sequer alegar que resulta de premissas preestabelecidas, de
preferência por sistemas, doutrinas, modelos ou de deliberada
intransigência. É a experiência vivida pelo nosso país que
estabelece, com indiscutível evidência, a impossibilidade de
ajustamentos ou conciliações com interesses estranhos que
nos exploram.
Também não se pode alegar que, como país, tenhamos
partido de uma recusa sistemática da chamada “política de
boa vizinhança”. Nossos governos cometeram o erro de nela
acreditar, pois ninguém mais do que Getúlio tentou acomodar
Brasil a Questão Nacional
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o alargamento da nossa autonomia econômica e política com
a presença dos grupos internacionais, pagando com a vida
essa ilusão. Nem atacá-lo por ter errado, nem lamentar o
fato. A lição a tirar reside na constatação de que tal caminho é
totalmente inviável.
E o ensinamento é tanto melhor quando procede da
nossa própria experiência. Obriga-nos a colocar como questão
central a independência do país, que não pode ser obtida com
pequenas flexões do regime, nem com a desapropriação de
algumas ou de todas as multinacionais. Ela exige a extinção do
“vice-reinado atual”, o restabelecimento do Estado Nacional,
a “nacionalização” das Forças Armadas, da Igreja, da esquerda,
de todos nós, isto é, nossa inserção na luta de massas que
historicamente trava o nosso povo para a construção da
comunidade brasileira.
Na etapa atual, esse é o único objetivo capaz de criar
a uniformidade ideológica indispensável entre as diferentes
tendências antiditatoriais, apesar dos seus desencontros,
doutrinário e noutros planos. O importante não são as cores
que ostentam ou as aspirações que alimentam quanto ao futuro,
mas o próprio combate, o fato de que visualizem correta e
conjuntamente o inimigo.
E o inimigo não são alguns generais, mas um sistema
da dominação que dispõe de instrumentos de atuação, tanto
para a luta ideológica e política, quanto para a repressão direta.
Deve ser visto no seu conjunto e nos efeitos diferenciados que
provoca, para que sejam identificados os que com ele colaboram
consciente ou inconscientemente, em todos os lugares, mesmo
naqueles mais distantes. Os agentes locais do poder, agarrados
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Brasil a Questão Nacional
a seus pequenos interesses de mando, são tão importantes
quanto, noutro nível, os associados das multinacionais. Estes
estão perfeitamente conscientes do seu papel mas aqueles,
mesmo que disso não se dêem conta, constituem, somados,
um importante sustentáculo do sistema de dominação.
A tarefa tem as dimensões do país, exigindo uma força
política com as mesmas proporções, em condições de falar ao
conjunto do nosso povo, unindo cada setor e interligando-os.
A classe operária, os estudantes, os intelectuais, os camponeses,
as regiões, os Estados, as localidades, devem ser unificadas
em torno de suas reivindicações. Mas, se cada um permanece
preso a seus problemas específicos, estaremos sujeitos ao
fracionamento que favorece a dominação do conjunto do país.
Na verdade, a força do imperialismo e do atual regime
que o serve, não reside apenas nos meios de que dispõe, por
poderoso que seja seu dispositivo policial-militar. Vem também
da dispersão que já se encontra na raiz da derrota de 1964. Ela
impede a coordenação de esforços, sendo inútil lançar grupos
desarticulados contra um inimigo que busca fazer da coesão
sua arma principal.
Isso multiplica, além do mais, as formas de enxergá-lo.
Quem se coloca hoje no Extremo-Sul, tem mais tendência a
acreditar nos efeitos de pressões de forças ali tradicionalmente
organizadas, dada a história da região e as condições agora
existentes. No entanto, para os do Nordeste ou do CentroOeste, nas áreas onde a repressão nunca foi muito diferente
da atual, uma tal análise aparecerá como inteiramente fora da
realidade.
A síntese dessa situação não pode ser feita por grupos
dispersos, representativos de uma área ou de uma camada
Brasil a Questão Nacional
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social, especialmente quando em muitos lugares eles apenas
sobrevivem às dificuldades criadas pela ação da ditadura. Não
conseguem, por falta de perspectivas gerais, perceber e valorizar
a atuação que poderiam desenvolver, por pequena que fosse,
com contribuição à tarefa comum.
A quebra desse impasse exige a rearticulação e a
mobilização sistemática de quadros, antigos e novos. Só esse
trabalho coletivo, que abarque visões setoriais, regionais
e locais, convergentes e complementares, pode alargar as
perspectivas de uma ação que, eliminando a ocupação do país,
restabeleça o processo de formação da Nação Brasileira.
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Brasil a Questão Nacional
Resumo
1 – O golpe de 1964 teve em conta não apenas os interesses
das empresas internacionais instaladas no Brasil, mas os do
Estado americano. Estes englobam evidentemente aqueles,
indo contudo muito além da simples busca de vantagens
imediatas e conjunturais para os empresários.
2 – Falira a política dos Estados Unidos no seu campo de
influência. Fracassara a tentativa de derrubada do governo
cubano. Diem caíra no Vietnam. Crescia o movimento
popular no Brasil, noutros países latino-americanos, na
Indonésia, na Grécia etc.
3 – Restavam, portanto, os meios militares. Sucederamse os golpes de Estado em vários continentes e, quando
necessária, a intervenção direta das tropas americanas, como
no Vietnam e em São Domingos.
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4 – A guerra no sudoeste da Ásia mostrou, porém,
os inconvenientes de uma presença direta das tropas
americanas. Ficavam ameaçadas de dispersão, se fossem
engajadas em mais de uma guerra local, enfraquecendo
o poder militar dos Estados Unidos. Isso ficara claro no
segundo período de Johnson.
5 – Foi Nixon, porém, no discurso pronunciado em Guam,
em 1969, quem deu ênfase à necessidade de “dividir
responsabilidades”, isto é, à mobilização das classes alta e
média em cada país para fazer face à “subversão”, tal como
fora feito no Brasil, modelo bem sucedido de contrarevolução. A “manutenção da ordem” passa a ser tarefa dos
exércitos locais, eliminando-se a presença americana tanto
quanto possível.
6 – Isso não alterou a estratégia do Estado americano, apenas
o manejo dos instrumentos. Ela continua a ter por base o
“desmantelamento do estado nacional” nos diversos países,
isto é, fazer prevalecer as “alianças” sobre os interesses
específicos de cada um deles. De Gaulle, por exemplo,
reagia contra isso, já que o poderio americano assegurava a
hegemonia dos Estados Unidos dentro das várias “alianças”,
ferindo também interesses dos países desenvolvidos, seus
aliados.
7 – No Brasil, com o golpe, o “desmantelamento do estado
nacional”, ou seja, a “interdependência” foi proclamada
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Brasil a Questão Nacional
política oficial desde os primeiros dias do governo de Castelo
Branco. Iniciou-se um processo de “internacionalização”
que ganhou plena expressão no governo Médici.
a) Com Castelo Branco, a mudança consistiu sobretudo na
criação de um mercado artificial para as grandes empresas
multinacionais através de uma forte concentração de renda.
Foi, por assim dizer, “internacionalizada” uma parte do
mercado brasileiro mediante o favorecimento de uma
estreita camada cujo nível de vida, segundo Furtado, deve
sempre estar próximo dos padrões das classes altas e médias
dos países ricos. Isso afetou, porém, os bens de consumo
popular, reduzindo as atividades das indústrias tradicionais.
b) O governo de Costa e Silva foi fruto dessa contradição.
Pretendia representar parcelas do empresariado nacional
afetadas pela política de Castelo, “humanizando” a
economia. Buscando encontrar uma composição entre
aqueles interesses divergentes, perdia condições de oferecer
perspectivas para a expansão da economia no seu conjunto.
Daí os impasses políticos que desembocaram no AI-5.
c) No governo de Médici, a “internacionalização” encontrou
uma saída na política de exportação. Com ele, unificaramse numa mesma direção todos os produtos, da castanha
do Pará à carne do Rio Grande do Sul, passando pelos
manufaturados. Os diferentes setores empresariais não
contestam essa orientação; disputam uma melhor posição
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dentro dela, como atualmente os produtores de carne.
Concordam com o governo; contestam a falta de coerência
na aplicação de sua política.
8 – Alterou-se, assim, a função do setor industrial. Cabe
assinalar duas modificações que trouxeram larga repercussão
no quadro político interno: a) A primeira intensificou-se
no governo de Juscelino. A invasão do capital estrangeiro
alarga a aliança dos americanos com grupos empresariais
brasileiros. Ela já não se dá apenas com as oligarquias
notadamente a do café. Faz-se também com o setor mais
dinâmico da economia. O empresariado que sustentara
Vargas em 1950, perdera peso econômico e político. b)
A segunda modificação foi feita pela ditadura. O setor
industrial passa a ser mais um “ciclo”. Sua produção
destina-se à exportação para o exterior ou para venda no
restrito mercado interno, artificialmente elevado ao nível de
mercado internacional. Reduz-se, assim, a função de fazer
avançar o processo de transformações internas, aceleradas
a partir de 1930, que tendiam a levar o país a um estágio
superior de desenvolvimento.
9 – Ao contrário, recuamos a uma fase neocolonial,
apesar dos aspectos modernos introduzidos no país.
Daí a semelhança entre o atual regime e a república
oligárquica: a) dependência dos banqueiros internacionais;
b) estabelecimento de um colégio eleitoral restrito,
desde as teses econômicas à música; d) marginalização
da população; e) agravamento das diferenças regionais; f)
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98compartimentação do país em áreas especializadas
que se
ligam ao mercado externo. Bem considerado, a dominação
atual é mais profunda do que naquela fase. Importa na
“desnacionalização” das Forças Armadas, do ensino, das
atividades em geral. A Amazônia passou a ser uma colônia
dos Estados Unidos. Afrouxaram-se os laços internos que
lentamente iam sendo estabelecidos pelo primeiro surto das
atividades industriais, invertendo-se o processo de formação
nacional. O atual sistema constitui, assim, uma série de
ameaças à unidade do país.
10 – O atual regime não tem forças para modificar essa
situação, mesmo que assim desejassem os que assumem
o governo, o que não é o caso. Estão condicionados pela
dívida externa, pela necessidade de mais recursos, pela
impossibilidade de alterar os mecanismos econômicofinanceiros que possibilitam o funcionamento do parque
industrial das multinacionais. Estes produzem para atender
a minoria cujo consumo foi “internacionalizado”, não
se preocupando com a solução dos problemas da imensa
maioria do nosso povo. Como aquelas empresas controlam
os cordões que movem as finanças internacionais, fechase o círculo vicioso. Sustentado nos interesses que o
estabeleceram, o regime não tem condições de quebrá-lo.
11 – Na verdade, o Estado Brasileiro foi transformado numa
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espécie de vice-reinado: amplos poderes para enquadrar
a população e nenhum para decidir sobre as questões
fundamentais do país. Para isso, é necessário constituir uma
força política nacional sustentada pelo povo, que deve ser
convocado para defender a nossa sobrevivência como Nação.
MIGUEL ARRAES DE ALENCAR
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SIG/Sul - Quadra 03 - Bloco “C” - Nº 46 - Térreo
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