Alberto Chamis Dissertação final mestrado
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Alberto Chamis Dissertação final mestrado
0 ALBERTO CHAMIS EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS: NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE CANOAS, 2013 1 ALBERTO CHAMIS EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS: NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de PósGraduação em Educação do Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, como exigência para a obtenção do título de Mestre em Educação. Orientação: Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto CANOAS, 2013 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C448e Chamis, Alberto. Educação, saúde e transformações culturais [manuscrito]: narrativas e compreensões de um educador em saúde / Chamis Alberto. – 2013. 86 f.: il.; 30 cm. Dissertação (mestrado em Eduacação) – Centro Universitário La Salle, Canoas, 2013. “Orientação: Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto”. 1. Educação. 2. Saúde. 3. Educação em saúde. I. Ratto, Cleber Gibbon. II. Título. CDU: 614:37 Bibliotecário responsável: Melissa Martins - CRB 10/1380 3 ALBERTO CHAMIS EDUCAÇÃO, SAÚDE E TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS: NARRATIVAS E COMPREENSÕES DE UM EDUCADOR EM SAÚDE Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de PósGraduação em Educação do Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, como exigência para a obtenção do título de Mestre em Educação. Aprovado pela banca examinadora em 27 de março de 2013. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________ Prof. Dr. Cleber Gibbon Ratto UNILASALLE ______________________________________________ Prof. Dr. Balduino Antonio Andreola UNILASALLE _____________________________________________ Profa. Drª. Rosa Maria Filippozzi Martini UNILASALLE _____________________________________________ Profª. Drª. Simone Edi Chaves UNISINOS 4 AGRADECIMENTOS Obrigado professor Cleber Gibbon Ratto, pela dedicação que recebi ao longo da minha caminhada no desenvolvimento deste mestrado; Obrigado professor Balduino Antonio Andreola, pelas reflexões e ensinamentos; Obrigado Niva, Raquel e Gabriel, pelo imerecido apoio incondicional; Obrigado Leandro Minozzo e André Luiz Alves Silveira, pela transformação que vivi; Obrigado família, amigos e colegas, pela paciência; Obrigado aos mestres, pelos momentos de convívio; Obrigado Silvia Adriana Soares, pela competência e ajuda. Obrigado! 5 RESUMO Esta dissertação vincula-se à linha de pesquisa “Culturas, Linguagens e Tecnologias na Educação” e tem como problema central as mudanças culturais que incidiram sobre a educação em saúde nas décadas de 1980, 1990 e 2000, desde a perspectiva hermenêutica de compreensão, traçada por seu autor. O estudo buscou compreender as transformações ocorridas nos sentidos atribuídos à educação em saúde e à prática médica em saúde coletiva, tomando como referência as narrativas autorreferentes de um médico, ao longo de seus trinta anos de prática profissional. Além disso, esta investigação buscou ampliar a compreensão do processo educativo em saúde, produzindo saberes úteis à qualificação das práticas de educação em saúde junto às comunidades das periferias urbanas. Teoricamente, vincula-se ao campo da “saúde coletiva” e da “educação em saúde”, servindo-se das principais produções intelectuais geradas nas últimas décadas. Aproxima-se ainda, dos referenciais da sociologia reflexiva, sobretudo no que se refere à compreensão das transformações culturais vividas no século XX e seu impacto sobre a produção das subjetividades e dos modos de existência. Metodologicamente, apresenta-se como pesquisa narrativa-hermenêutica, servindo-se de material narrativo autorreferente, produzido e acumulado a partir da prática profissional em saúde. Os resultados apontam na direção de uma necessária radicalização da atitude dialógica intercultural em saúde, para que as transformações expressas e preconizadas na Política Nacional de Humanização sejam efetivamente encarnadas nas práticas e na formação médica, tradicionalmente, marcada pelo tecnicismo e pelo cientificismo reducionistas. A dissertação fomenta ao mesmo tempo em que defende a produção de saúde enquanto processo hermenêutico e existencial que, cada vez mais na cultura contemporânea, precisa marcar a busca por sentido de vida e de trabalho entre os cidadãos, usuários e profissionais. Palavras-chave: educação; saúde; cultura; narrativa; linguagens. 6 ABSTRACT This work is linked to the research line "Cultures, Languages and Technologies in Education" and has as its central problem the cultural changes that focused on health education in the 1980, 1990 and 2000, hermeneutics from the perspective of understanding drawn by its author The study sought to understand the changes occurring in the meanings attributed to health education and medical practice in public health, with reference to the self-referential narratives self-referential to a doctor over his thirty years of professional practice. In addition, we sought broaden the understanding of the health education process, producing knowledge useful to the assessment of the practices of health education to the communities of urban peripheries. Theoretically linked to the field of "public health" and "health education", serving up the main intellectual productions generated in recent decades. Approaching still the benchmarks of reflexive sociology, particularly with regard to understanding the cultural changes experienced in the twentieth century and its impact on the production of subjectivities and modes of existence. Methodologically presented as narrative-hermeneutic research, making use of narrative material selfreferential produced and accumulated from professional practice in health. The results point towards a radicalization of attitude necessary intercultural dialogue on health, that the transformations expressed and advocated in the National Humanization Policy are effectively embodied in practices and in medical education traditionally marked by technicality by scientism and reductionism. The dissertation fosters both defending the health production process as hermeneutic and existential, increasingly in contemporary culture, needs to make a search for meaning of living and working among citizens, users and professionals. Keywords: education; health; culture; narrative; language. 7 LISTA DE SIGLAS CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde PNH – Política Nacional de Humanização RS – Rio Grande do Sul SIDA / AIDS – Síndrome de Imunodeficiência Adquirida SAE – Serviço de Atendimento Especializado SUS – Sistema Único de Saúde UBS – Unidade de Atenção Básica de Saúde UTI – Unidade de Terapia Intensiva 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................... 9 2 METODOLOGIA...................................................................................... 17 3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS................................................................ 22 3.1 Modos de vida........................................................................................ 22 3.2 Implicações para a educação............................................................... 27 3.3 Implicações para a saúde...................................................................... 31 4 NARRATIVAS E INTERPRETAÇÕES..................................................... 38 4.1 Os anos 1980... Formação inicial e primeiros sobressaltos.............. 38 4.2 Os anos 1990... A medicina comunitária em Novo Hamburgo/RS.... 55 4.3 Os anos 2000... Acentuam-se as contradições e os desafios........... 68 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 79 REFERÊNCIAS....................................................................................... 83 9 1 INTRODUÇÃO As coisas como são em si não são acessíveis à percepção e ao entendimento. Contudo, as coisas como são para nós como experimentadas, são compreendidas como estruturadas por nossa percepção e por nosso entendimento. Sabemos que a coisa em si existe, mas não o que ela é. Só conhecemos as coisas como as organizamos perceptual e conceitualmente. Não podemos sair dos nossos sentidos ou da nossa mente para ver como as coisas são quando não as estamos percebendo nem pensar sobre como são as coisas independentemente do nosso pensar sobre elas. (Kant) Após 30 anos de exercício da medicina, percebi que meu sonho de transformar o mundo por meio da saúde, não aconteceu da forma esperada. O mundo mudou de tal maneira, que se transformou em algo diferente do que nós, jovens estudantes do passado, pensávamos ser o “verdadeiro” caminho para a libertação do homem. Mesmo sem entender bem seus significados, lutávamos, entre tantas abstrações, pela liberdade, pela coletividade, pela felicidade, tudo com muita determinação e convicção, uma convicção quase dogmática. Estávamos em meados dos anos 1970 e início dos anos 1980. Vivíamos no período do regime ditatorial militar em nosso país e, mesmo que afastados dos grandes centros, a faculdade de medicina nos possibilitou a oportunidade de sermos protagonistas de algumas discussões que se iniciavam em relação à saúde. Fundamentalmente, a saúde passou a ser via para a democracia, um caminho para a transformação da realidade. Na ausência de liberdade de organização política, a saúde, por intermédio da saúde pública, era o instrumento para acontecer esse devir. A saúde era vista como propulsora da democratização da sociedade e estimuladora da emancipação do homem. Liberdade era o nome do sonho alcançável pela democracia – liberdade para ler, ver, dizer, cantar. Nós procurávamos obter o direito de acesso as mais básicas necessidades de conhecimento e organização social. Éramos estudantes de medicina nessa época. Formei-me em 1982 e terminei a residência médica, em pediatria, em 1984. O ensino médico era – ainda é – positivista, biologicista, fragmentado e especializado. Após oito anos aprendendo a ser médico, senti que a medicina não respondia a todas as nossas inquietações sobre a existência humana. Procurávamos entendimentos além da saúde física e mental e acabamos tentando o social. Existiam poucos espaços para discussões, reunião era subversão e, para nós, o 10 possível eram discussões acerca da “saúde”. Debatíamos os determinantes da estrutura social sobre a saúde dos indivíduos. A partir das discussões sobre os paradigmas da saúde, as quais aconteceram nos departamentos de medicina preventiva e social e nas escolas de saúde pública, chegou-se à proposição da reforma sanitária brasileira. Segundo Paim (1997, p. 11), o movimento pela democratização da saúde que tomou conta do Brasil durante a segunda metade da década de setenta possibilitou a formulação do projeto de Reforma Sanitária Brasileira, sustentado por uma base conceitual e por uma produção teórico-crítica. Diversos estudos e artigos publicados especialmente através do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) atestam a vitalidade desse movimento [...]. Fomos convidados para constituir um núcleo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Tudo era legal, organizado como pessoa jurídica e tolerado pelo poder. Fui eleito vice-presidente do núcleo. Tínhamos como incumbências realizar reuniões reflexivas e propositivas sobre saúde e vender a revista Saúde em Debate. Sonia Fleury (1997) comenta sobre o espírito “cebiano”: a abertura de um diálogo, através de uma publicação que pudesse socializar a polêmica desenvolvida por alguns autores, acerca das questões que nos inquietam atualmente. Para tanto, seria necessário resgatar a dialética relação entre produção do conhecimento e orientação da prática política. As discussões teóricas levam-nos a um paradigma alternativo em Saúde Coletiva centrado em dois conceitos fundamentais: determinação social das doenças e processo de trabalho em saúde. O entendimento de que a saúde e a doença na coletividade não podem ser explicadas exclusivamente nas suas dimensões biológica porquanto tais fenômenos são determinados social e historicamente, enquanto componentes dos processos de reprodução social, permitia alargar os horizontes de análise e de intervenção sobre a realidade (PAIM, 1997, p. 13). A reforma sanitária propunha um modelo de democracia cujas bases eram a formulação de uma utopia igualitária, a garantia da saúde como direito individual e a construção de um poder local fortalecido pela gestão social democrática (FLEURY, 1997, p. 34). A utopia igualitária em uma sociedade fortemente desigual e excludente era o que tentávamos alcançar. Esse era o caminho para a libertação e a autonomia dos 11 excluídos. A exclusão social e econômica e a ditadura militar, impossibilitavam a cidadania. Entendo que lutar pela cidadania e pelo processo civilizatório é um ato médico. O fim das utopias é uma característica do pós-modernismo. A utopia é como a esperança, a possibilidade de transferir para o futuro o que não se consegue resolver no presente. Hoje, o futuro é pensado amanhã. Quando já me encontrava formado, a construção e a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) passaram a ser o instrumento e a sistematização de uma concepção de inclusão social e de descentralização de poder. Voltando aos caminhos da história, em 1988 foi promulgada a Constituição Federal brasileira, a qual reconhece o direito universal dos brasileiros à saúde, regulamentando a criação do SUS (BRASIL, 1990). Os conceitos que regem o SUS são abstratos, constituem-se em metas e o entendimento de cada um sobre como realizá-las é o que define sua prática. A diferença é que a partir da promulgação da Constituição, o SUS passa a ser um sistema estruturante do Estado brasileiro. O SUS possui princípios e diretrizes. Segundo o artigo 198 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), as diretrizes são: a) descentralização – com direção única em cada esfera de governo; b) participação da comunidade; c) equidade – é a garantia de que todo cidadão é igual perante o SUS. O objetivo da equidade é diminuir desigualdades. Isso não significa que equidade seja sinônimo de igualdade. Apesar de todos terem direito e, por isso, têm necessidades diferentes. Equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Para isso, a rede de serviços deve estar atenta às necessidades reais da população a ser atendida. A equidade é um princípio de justiça social. Já os princípios são: a) universalidade – é a garantia de atenção à saúde, a todo e qualquer cidadão, independentemente de sexo, etnia, renda, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. A saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado; b) integralidade – é a compreensão de que o homem é um ser integral e deverá ser atendido por um sistema integrado, pelas ações que visam promover, proteger e recuperar a saúde; c) autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; d) igualdade da assistência à saúde; e) direito à informação - às pessoas assistidas - sobre sua saúde. Os princípios e as diretrizes do SUS passaram, então, a dar concretude para os sonhos de construção de uma “sociedade melhor”. O SUS instrumentalizou 12 constitucionalmente a implementação da reforma sanitária brasileira, e é exatamente pelos seus princípios e pelas suas diretrizes que se faz necessária a plena democratização das relações de poder e da sociedade. Como todo processo dialético, o SUS se complexifica, evolui e se metamorfoseia sem perder de vista a meta de desenvolvimento humano. A partir de então, estamos amparados pela lei e podemos exercer a democracia na prática médica. A prática laboral do médico na rede pública de saúde, impõe o enfrentamento de diversas realidades. Entre outras, esse profissional carrega inúmeras responsabilidades de caráter educativo, conhecimentos que visam preencher lacunas deixadas pelo núcleo familiar e pelo sistema educacional. Faz-se necessário acompanhar as evoluções. Atualmente, há uma contínua tentativa mundial de democracia; o desenvolvimento da tecnologia de informação, com suas redes sociais e com acessibilidade ao conhecimento; a consolidação da tendência à tecnocracia; a globalização; a clonagem de vacas e de ovelhas; o telefone celular; a individualização das relações sociais e tantas outras que marcam meus mais de trinta anos de profissão. Nestas últimas três décadas, as mudanças no mundo trouxeram novas demandas. Mudaram os paradigmas da saúde. O mundo, que para mim era binário – capitalismo versus socialismo, democracia versus ditadura, esquerda versus direita, ARENA versus MDB, Internacional versus Grêmio, ame-o ou deixe-o, Beatles versus Rolling Stones – transforma-se na contemporaneidade. Atualmente é plural, multifacetado, efêmero, e o homem é empoderado de seus direitos de dignidade, de civilidade, de diversidade cultural e de relativa liberdade. A prática médica é binária também. Existem demandas curativas e educacionais. Existem possibilidades curativas e educacionais. O positivismo do ensino médico pode levar a uma prática médica impositiva, coercitiva. Ao se trabalhar em uma Unidade de Atenção Básica de Saúde (UBS), os atendimentos são feitos com poucas tecnologias agregadas e são o mais dialógicos possível. Os diálogos possibilitam-nos vivenciar uma troca informal de conhecimentos que acontecem na relação médico-paciente. É uma relação sujeitosujeito: um procura, a partir do conhecimento técnico do outro, a cura para suas doenças, a promoção e a manutenção de sua saúde; o outro procura entender e interpretar os significados e a linguagem, para tentar identificar como é percebido esse processo de estar saudável ou estar doente. Eterno aprendizado de medicina, 13 essa troca cria novas interpretações e, com a alteridade, diferentes possibilidades de soluções. O entendimento do processo saúde-doença possibilita que as proposições sejam resolutivas e que aconteça o planejamento de ações promotoras de saúde. Nos tempos modernos, em que as mudanças acontecem nas relações dialéticas entre sujeitos autônomos, percebi que a relação médico-paciente sempre foi dialética. São nessas trocas que aprendemos ensinando, ensinamos aprendendo e ambos mudam valores e sentidos. A educação popular em saúde possibilita a troca de concepções, de linguagem, de conhecimentos, de emoções que, interagindo, transformam a percepção da realidade. Acreditando que “saúde e educação fazem revolução”, tento na educação a transformação – eterna busca de evolução. A presente dissertação resulta de uma observação sobre a própria experiência. A partir da narrativa de episódios vivenciados ao longo de muitos anos de trajetória junto a comunidades que utilizam serviços públicos de saúde, busquei identificar as mudanças nas percepções de sentido e de comportamento dessas comunidades, e também identificar possíveis mudanças nos conteúdos educativos na área da saúde, tanto em relação aos usuários dos sistemas de saúde quanto aos trabalhadores de saúde. De certo modo, percorreu uma linha histórica; a reforma sanitária, a luta pela incorporação das bases da saúde coletiva na Constituição, a implementação do SUS com seus conflitos atuais, a agregação de tecnologia, a educação em saúde com seus paradigmas de conteúdos e práxis, a interface educação-saúde, a individualização da organização social, e muitos outros temas emergentes desse exercício hermenêutico de exame da minha própria trajetória profissional. O interesse pelo tema surgiu de minha experiência profissional. Acredito que a profissão de médico tem intrínseca a possibilidade de entender o outro em suas determinações, interpretando-as, e, através da troca de experiências e conhecimentos, ajudar o outro em suas fragilidades. Ao chegar à terceira década de minha vida profissional, durante a qual participei da gestão municipal das cidades de Novo Hamburgo e Campo Bom, do serviço de epidemiologia, de plantões na UTI neonatal, da coordenação do SAE (Serviço de Atendimento Especializado em SIDA - AIDS), da coordenação do Núcleo de Informação em Saúde na 1ª Coordenadoria de Saúde em Porto Alegre, como médico pediatra responsável pela saúde das crianças de duas casas de 14 acolhimento, e também como membro do Conselho Municipal de Saúde, entre outras atividades, não percebi minha prática suficientemente transformadora. Busquei, por meio da reflexão das experiências ao longo da minha trajetória profissional, compreender as transformações ocorridas nos sentidos atribuídos à educação em saúde e à prática médica em saúde coletiva, tomando como referência minha própria vivência. Com o mestrado, busquei ampliar a compreensão do processo educativo em saúde, qualificando minha atuação junto à comunidade e produzindo conhecimento que traduzisse a prática da saúde coletiva. Com o olhar apurado na vivência da população de periferia urbana, na qual trabalho, aprendo e ensino. Recuperei sonhos e compreendi a realidade vivida, acompanhando e registrando as transformações que vêm surgindo em um novo tempo e diante de novas configurações culturais. A formação médica, ao supervalorizar a especialização e o tecnicismo, afasta o profissional das ações e das intervenções comunitárias, preventivas e educativas. Os médicos formados em áreas de saúde de família, comunidade e pediatria, por exemplo, dedicam um tempo maior às atividades de educação e de promoção da saúde, mas a demanda dos serviços pressiona para o atendimento curativo, invadindo o espaço da vivência saúde-educação. As demandas curativas acabam isolando o médico de equipes multidisciplinares e dificultando sua inserção na educação em saúde. Esse isolamento aumenta o risco de que o processo saúde-doença seja entendido e dimensionado equivocadamente. A formação médica, mesmo que tenha novos paradigmas sobre saúde-doença, continua tendo uma compreensão biologicista do humano. Compreendendo muito mais os aspectos orgânicos, acabam subdimensionando os aspectos culturais, sociais e históricos. As demandas de educação são pela construção compartilhada de conhecimentos, um aprendizado mútuo e provocante. O mundo transformou-se, mudou paradigmas, incorporou tecnologia, concebeu novos valores nas relações entre indivíduos e entre coisas e alterou maneiras de organização social. Tais mudanças alteram o entendimento de mundo do homem contemporâneo e a sua relação com ele, cabendo ao profissional de saúde tentar transformação. entender um homem multifacetado, dialético, em contínua 15 Minha prática médica sempre foi em serviços de saúde coletiva, tanto na assistência como na gestão. Exerço minhas atividades assistenciais em Unidades Básicas de Saúde (UBS), em comunidades de periferia urbana, nas quais, na minha visão, os problemas coletivos são ainda prementes. A prática da medicina é feita em muitas dimensões, sendo duas delas a prática curativa e a educação em saúde. Assumo a Educação como construção compartilhada de saberes para interferir sobre os modos de existir com os outros. Procurei, através da reflexão sobre a práxis médica, entender como acontece o processo de educação em saúde. Creio que o exercício da medicina curativa não responde a todas as necessidades que acredito serem relevantes para a compreensão e para o aprendizado em saúde. O entendimento de como acontecem as “coisas”, dá às pessoas o poder de definirem caminhos e terapêuticas que melhor lhes solucionem as dificuldades e os adoecimentos. A educação em saúde tem como um dos objetivos, incentivar a autoestima e o autocuidado das pessoas, levando-as a reflexões que modifiquem atitudes e comportamentos. Creio que seja na educação em saúde que ocorre uma das mais significativas e estimulantes facetas do exercício profissional da medicina, atitudes e comportamentos que incentivam a construção da cidadania, e nisso investi ao longo dessas três décadas de profissão. Outro aspecto importante quanto à educação em saúde, refere-se às condições e às possibilidades das populações periféricas tornarem reais as orientações educativas e preventivas que recebem nos serviços de saúde. Como ser saudável em regiões de segregação urbana, com deficiência de saneamento, de áreas de lazer, de segurança e convivendo com a precariedade dos serviços de saúde? (RODRIGUEZ et al., 2007). Compreender e explicar as contradições, as transformações que vêm ocorrendo na educação em saúde, ocupando o lugar de observador de minha própria trajetória, aqui narrada e interpretada, as respostas possíveis como profissional que foi se desenvolvendo nessa realidade e a partir deste estudo, produzir conhecimento que interfira sobre o cotidiano do serviço de saúde e da comunidade, são inquietações que me impulsionaram e que justificam esta dissertação. Ao longo do estudo, tive como questão norteadora a pergunta: como se manifestam, nas práticas educativas em saúde, as mudanças culturais 16 contemporâneas, vistas na perspectiva de um educador em saúde, ao longo de sua trajetória profissional? Tive como objetivos secundários ao propósito já expresso: a) identificar, a partir do estudo da prática profissional cotidiana, mudanças significativas nas práticas educativas em saúde; b) analisar algumas repercussões das mudanças nas práticas educativas sobre a vida dos sujeitos e das suas comunidades; c) analisar algumas repercussões das mudanças nas práticas educativas sobre a prática profissional do educador em saúde. A dissertação está organizada de modo a oferecer ao leitor as marcas do percurso de narrativa e interpretação desenvolvidas. Assim, depois deste texto introdutório, apresento as condições metodológicas e os pressupostos teóricos que orientaram o trabalho. Na sequência, passo às três seções, nas quais desenvolvo as narrativas e interpretações propriamente organizadas, sendo cada uma delas em torno de uma década específica de formação/trabalho como médico. As três seções de análise “costuram” as narrativas autorreferentes com as muitas leituras e estudos que deram consistência ao trabalho interpretativo da minha própria vivência profissional. Nas considerações finais, busco sintetizar as principais emergências do trabalho de análise desenvolvido, pretendendo oferecer ao leitor uma espécie de flashback das seções anteriores, e uma tomada de posição sobre o sentido de educação em saúde, defendido por mim, como possível prática transformadora do exercício e da formação médica. 17 2 METODOLOGIA Trata-se de um estudo do tipo qualitativo, narrativo, autorreferente, servindose da reconstituição da própria história profissional do pesquisador, por meio da memória e a partir de vinhetas da prática profissional, que serviram de substrato (pré-texto) para as análises, construídas ao longo do trabalho, numa perspectiva hermenêutica. Para Minayo et al. (1999, p. 11), na sociedade ocidental a ciência é a forma hegemônica da construção da realidade [...]. Mencionaremos duas razões: a primeira [...] está na possibilidade de responder a questões técnicas e tecnológicas postas pelo desenvolvimento industrial, e a segunda consiste no fato de os cientistas terem conseguido estabelecer uma linguagem fundamentada em conceitos, métodos e técnicas para compreensão do mundo, das coisas, dos fenômenos, dos processos e das relações. Porém, a compreensão holística do homem apenas é possível com o entendimento de como se dá a interação entre o indivíduo e a sociedade e suas consequências. A maneira como as simbolizações e os conceitos sobre a vida manifestam-se, é nosso campo de estudo. Minayo et al. (1999, p. 13-14) afirma: O objeto de estudo das ciências sociais possui consciência histórica. Noutras palavras, não é apenas o investigador que dá sentido a seu trabalho intelectual, mas os seres humanos, os grupos e as sociedades dão significado e intencionalidade a suas ações e a suas construções, na medida em que as estruturas sociais nada mais são que ações objetivadas. O nível de consciência histórica das ciências sociais está referenciado ao nível de consciência histórico social. Acredita-se que quando se trata de questões como violência, crenças, ideologias, cultura, comportamento, moral, senso comum e outros, os métodos científicos positivistas não conseguem responder com acurácia. A volatilidade e a efemeridade desses processos, manifestados no comportamento e na linguagem, faz com que eles sejam de difícil mensuração. As ciências sociais e a psicanálise, por exemplo, têm sido poderosos instrumentos explicativos dos significados da existência individual e coletiva. Na vivência com usuários da periferia de Novo Hamburgo/RS, sabendo que a “imagem de médico” me empodera, procuro interagir e aprender ensinando ou ensinar aprendendo. Acredito que, por meio da educação em saúde, podemos fazer 18 a intersecção do conhecimento técnico com o conhecimento popular, empírico. Compreendo que alguns valores e conceitos, e que algumas interpretações e crenças, não são quantificáveis com métodos utilizados nas ciências naturais. Nas ciências sociais e na psicanálise, a quantificação não responde por fenômenos que são muito mais sentidos, mais percebidos que quantificados. Nessa relação médicopaciente, o objeto em estudo também é sujeito, e essa relação com um objeto que é sujeito, concomitantemente, oportuniza um envolvimento com cumplicidade e alteridade. Considerando que pesquisa qualitativa é aquela em que a interpretação dos fenômenos e atribuições de significados são básicos no processo de pesquisa, não requerendo o uso de métodos e técnicas estatísticas, o pesquisador é o instrumentochave. O processo e seu significado são os focos principais de abordagem e, no meu caso, a adoção da narrativa como estratégia. Procurei interpretar e analisar, em uma perspctiva hermenêutica, a minha história profissional. A interpretação dos significados que aparecem como manifestações culturais, comportamento, senso comum, moral e princípios educacionais, tiveram como espaço de pesquisa os recortes da minha biografia profissional, dos últimos 30 anos, no exercício da medicina; processo hermenêutico em que fui sujeito e objeto da pesquisa, simultaneamente. Utilizei a narrativa autorreferente e, reconstituindo a própria história profissional, procurei compreender como acontecem as novas sociabilidades e as práticas educacionais em saúde neste momento histórico. Sem negligenciar a força das estruturas e a presença do poder, mas também sem desconhecer o poder criador dos homens e da força instauradora das narrativas […] que eles inventam e experimentam, buscamos outra lógica para conhecer a natureza complexa da vida social – não a da determinação, mas a da mobilidade. (GUIMARÃES, 2006, p. 8). A opção por fazer uso de narrativas está ancorada no entendimento de que a linguagem é o meio privilegiado de acesso aos sentidos atribuídos à realidade, assim como dela dependem, diretamente, tais sentidos. Não há como separar sentido e linguagem, na medida em que: 19 quién somos como sujetos autoconscientes, capaces de dar un sentido a nuestras vidas y a lo que nos pasa, no está más allá, entonces, de un juego de interpretaciones. Lo que somos no es otra cosa que el modo como nos comprendemos; el modo como nos comprendemos es análogo al modo como construimos textos sobre nosotros mismos; y cómo son esos textos depende de su relación con otros textos y de los dispositivos sociales en los que se realiza la producción y la interpretación de los textos de identidad. (LARROSA, 2004, p. 14-15). Assim, ainda que meu objetivo não tenha sido narrar exaustivamente minha história profissional, foi a narrativa de minhas vivências que permitiu compreender muitos movimentos que constituíram essas décadas de trabalho. Certamente, muitos outros profissionais contemporâneos de tais vivências, poderão identificar-se em passagens de minha própria história, o que fortalece o caráter coletivo e polifônico do meu próprio texto. A narrativa da “minha” história não é apenas minha, mas reveladora de forças e movimentos que constituíram essas três décadas de educação e saúde no país. Evidentemente, não pretendi narrar “a verdade” dessas três décadas, mas a compreensão possível desde minha perspectiva, ela própria construída pela historicidade que me constituiu. De hecho, el sentido de lo que somos o, mejor aún, el sentido de quién somos, tanto para nosotros mismos como para los otros, depende de las historias que contamos y que nos contamos y, en particular, de aquellas construcciones narrativas en las que cada un de nosotros es, a la vez, el autor, el narrador y el carácter principal, es decir, de las autobiografías, autonarraciones o historias personales. (idem, p.12-13). A partir da hermenêutica, tentarei entender os processos sociais e individuais, na busca de sentido de vida pela interpretação do “sentido do discurso”. Ghedin (2004, p. 2) comenta que transformamos a natureza em cultura; a cultura em conhecimento e agora estamos projetando, pelo conhecimento, os significados da natureza que estão impressos no ser [...]. O discurso é um modo de traduzir a imagem do real, mas esta imagem traduzida não é a própria realidade, mas a fala dela. Ao pensarmos que não somos o que somos, mas o que pensamos que somos, poderemos entender quem somos interpretando o discurso produzido por quem somos. Se a hermenêutica é conceituada como arte e ciência da interpretação, é a partir dela que norteio esta dissertação. Para Gadamer (apud Ayres, 2007), a hermenêutica é um processo interpretativo-compreensivo, que elucida seus significados e só pode acontecer 20 nesse jogo interminável de idas e voltas da palavra ao conceito e vice-versa. É o próprio Gadamer (2000, p. 18) quem afirma: a hermenêutica, enquanto filosofia, não é qualquer disputa de métodos com outras ciências, teorias das ciências ou coisas que tais, senão um modo de mostrar que – e isso ninguém pode negar – em cada momento que pomos nossa razão a trabalhar, não fazemos apenas ciência. Sem levar a falar os conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que alcancem o outro. O caminho vai da palavra ao conceito – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro. A opção pela hermenêutica, neste caso, não é meramente uma escolha metodológica, mas uma atitude ética e política, na medida em que implicou que me dispusesse a rever minha própria experiência vivida, e com isso correr o risco de transformar o que penso, sinto e faço, nisso está a dimensão ética. O caráter político está no fato de que compreender, hermeneuticamente, fragmentos dessas três décadas de trabalho, é produzir um novo discurso, um novo texto, disponível aos olhares daqueles que se interessarem pelo que escrevi, e isso poderá interferir sobre os modos de compreender a educação em saúde nas práticas sociais em que me inscrevo como profissional. Com esta investigação, corri o risco de transformar-me, e isso de fato ocorreu, o que torna ainda mais válido o percurso de estudo ao longo desses dois últimos anos. Embora o foco das narrativas estivesse na minha trajetória profissional, essa é indissociável de minha própria história de vida, o que deu ao trabalho um caráter autobiográfico. Fiz, de certo modo, uma narrativa autobiográfica e por meio dela tentei compreender como se dá e em que contexto histórico acontece a prática profissional. Para Souza (2008, p. 42), “a revalorização das histórias de vida situa-se na virada hermenêutica em que se compreendem os fenômenos sociais como textos e a interpretação como atribuição de sentidos e significados às experiências individuais e coletivas.” Ele reflete ainda o seguinte: Através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através de subjetividade, da singularidade, das experiências se dos saberes. [...] o ator parte de si, questiona os sentidos de suas vivências e aprendizagens (auto)biografia. (SOUZA, 2008, p. 45). Foram construídas e apresentadas diversas vinhetas da prática profissional, que serviram de substrato para as análises, sendo elas entremeadas por 21 interpretações teóricas. Cada seção de análise concentra as narrativas e análises de uma década (1980, 1990 e 2000). Muitas dessas vinhetas foram compostas por meio da recuperação de anotações, diários antigos, fotografias e lembranças espontâneas que emergiram nas seções de orientação. 22 3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS 3.1 Modos de vida O filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas, associado à Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, comenta que nas sociedades industriais modernas, passa a prevalecer a racionalidade instrumental, definida pela relação meios-fins, ou seja, pela organização de meios adequados para atingir determinados fins, ou pela escolha entre alternativas estratégicas com vistas à consecução de objetivos. Tenta superar este conceito, ampliando o conceito de razão, para o de uma razão que contém em si as possibilidades de reconciliação consigo mesma: a razão comunicativa. (GONÇALVES, 1999). Na sociedade capitalista moderna, uma racionalização das estruturas fazendo com que as definições na esfera social passem a ser subordinadas a critérios técnicos de decisão racional, isto é, a critérios técnicos e científicos. Há uma racionalização da ação social e subordinação a uma racionalidade científica e técnica. Racionalidade científica, entendida como neutra em valores, que afasta da discussão da razão as questões sociais, subjetivas e irracionais. Acreditam os filósofos de Frankfurt, que a ciência e a técnica, ao visarem o domínio da natureza e sua submissão ao homem, trazem no seu bojo o germe da dominação. (GONÇALVES, 1999). A ciência é, geralmente, modelo fundamental ou paradigma da racionalidade. A tecnologia, ciência aplicada, é também vista como parte da racionalidade da sociedade moderna. Gonçalves reflete que na medida em que a racionalidade instrumental da ciência e da técnica penetra nas esferas institucionais da sociedade, transforma as próprias instituições, de tal modo que as questões referentes às decisões racionais baseadas em valores, ou seja, em necessidades sociais e interesses globais, que se situam no plano da interação, são afastadas do âmbito da reflexão e da discussão. (GONÇALVES, 1999, p. 130). Considerando que tecnocracia é uma teoria do governo por especialistas técnicos, ela tem sido pensada por filósofos como Francis Bacon (1561-1625). Ele foi um dos precursores das teorias da tecnocracia e acreditava que, por meio do 23 conhecimento da natureza e do poder tecnológico sobre a natureza, os humanos poderiam recuperar a clareza da mente e a pureza de ação que Adão e Eva tinham antes de serem expulsos do Jardim do Éden. Afirmou também, que conhecimento é poder, e que a investigação da natureza é o caminho para a prosperidade e bemestar sociais está muito mais próximo da noção tecnocrática dos governantes filosóficos de Platão. Encontramos ainda que com o crescimento das forças produtivas, modificaram-se as atribuições do estado a empresa passou, de forma crescente, a intervir no planejamento da vida econômica, direcionando decisões que anteriormente cabiam à esfera social, e assumindo atribuições que eram tradicionalmente da competência e do aparelho do Estado. Este, por sua vez, passou a intervir diretamente na economia, assumindo, no capitalismo contemporâneo, a função de preservar as relações de produção, submetendo-se às determinações do capital global, com o qual busca conciliar os interesses nacionais. (GONÇALVES, 1999, p. 129). Buscando estabelecer compensação nas disfunções do sistema capitalista, foi adotado o Estado de bem-estar pelas sociedades industriais desenvolvidas, que busca condições para oferecer à população: saúde, educação, trabalho e habitação. Esse programa estatal requer garantir "a forma privada de revalorização do capital" e promover à população segurança social, oportunizando também a promoção pessoal. (HEBERMAS apud GONÇALVES, 1999, p. 129). Na contemporaneidade, Habermas considera que o desenvolvimento da ciência e da técnica, ao responder às necessidades de crescimento e aperfeiçoamento, alimenta o capitalismo de um mecanismo de manutenção. Assim, “se institucionaliza a introdução de novas tecnologias e de novas estratégias”, “institucionaliza-se a inovação enquanto tal”, “cumprindo ciência e à técnica o papel de legitimar a dominação” (HABERMAS apud GONÇALVES, 1999, p. 129). Para Gonçalves (1999, p. 130-131): A subjetividade do indivíduo não é constituída através de um ato solitário de autorreflexão, mas, sim, é resultante de um processo de formação que se dá em uma complexa rede de interações. A interação social é, ao menos potencialmente, uma interação dialógica, comunicativa. A penetração da racionalidade instrumental no âmbito da ação humana interativa, ao produzir um esvaziamento da ação comunicativa e ao reduzi-la à sua própria estrutura de ação, gerou no homem contemporâneo, formas de sentir, pensar e agir – fundadas no individualismo, no isolamento, na competição, no cálculo e no rendimento-, que estão na base do problema social. 24 A tentativa de globalização da democracia, as lutas pela emancipação de grupos considerados minoritários e o surgimento de novas tecnologias, acabam alterando as estruturas de organização social. O espaço nos quais acontecem as definições sobre a vida em sociedade, deixam de ser preponderantemente os sindicatos, as associações comunitárias e os partidos políticos e passam muito a acontecer nas redes sociais da internet. Há uma tendência de empoderamento do indivíduo, determinando novos valores às novas necessidades. A tentativa de empoderamento do indivíduo passa pela resposta às necessidades de consumo, formatando um comportamento que lhe identifique como pós-moderno. Considera-se que “uma sociedade com características de consumismo é uma resposta ao desejo individual de satisfação que muitas vezes respondem a informações midiáticas e novas tecnologias”. (BAUMAN, 2009, p. 168). Bauman, (2009, p. 168), referindo-se a Hanna Arendt, conclui que afastar-se “da política e da esfera pública transforma-se então, na atitude básica do indivíduo moderno, o qual, em sua alienação em relação ao mundo, só pode revelar-se verdadeiramente na privacidade e intimidade dos encontros face a face”. Houve um entendimento diferente dos valores na contemporaneidade, que segundo Luc Ferry (2012, p. 34): Era necessário que os valores e autoridades tradicionais fossem desconstruídos pelos boêmios para que o capitalismo, também ele moderno, pudesse entrar na era do grande consumo, sem o qual sua expansão seria simplesmente impossível. “O fato de que ao final visível, da história do individualismo revolucionária a que o vanguardismo do século XX se resumiu, ao final da oposição entre burgueses e boêmia, os irmãos inimigos se reconciliaram plenamente”. Hoje em dia, quem patrocina e compra obras de arte moderna, se não a burguesia, os grandes figurões? (FERRY, 2012, p. 44). Nota-se que, nos tempos modernos, há uma individualização nos interesses e nos valores sociais. Essa individualização é uma característica da contemporaneidade, determinando diferentes formas de viver. Bauman (2009, p. 7) denomina esses tempos de “vida líquida” ou “modernidade líquida”. Sua mais definidora manifestação é: 25 uma sociedade em que as condições, sob as quais agem seus membros, mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação em hábitos e rotinas das formas de agir. “As realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades em incapacidades”. (BAUMAN, 2009, p. 7) Hoje, a individualidade significa, em primeiro lugar, a autonomia da pessoa, a qual é precedida, simultaneamente, como direito e dever. Antes de qualquer coisa, a afirmação: “eu sou um indivíduo” significa que sou responsável por meus méritos e fracassos, e que minha tarefa é cultivar os méritos e reparar os fracassos. (BAUMAN, 2009, p. 30). Entretanto, coletivamente acabam se manifestando como cultura. Segundo Cuche (2002, p. 179), “o indivíduo é levado a interiorizar os modelos culturais que lhe são impostos, até o ponto de se identificar com seu grupo de origem”. Ainda segundo o autor, “critérios determinantes, considerados como objetivos, como a origem comum (a hereditariedade, a genealogia), a língua, a cultura, a religião, a psicologia coletiva (“a personalidade básica”)”. (CUCHE, 2002, p. 180). Esta individualização, na modernidade, determina valor à cultura, relativiza esse valor e transforma-o em consumo e muitas vezes, essa individualização remete a manifestações culturais. Considerando que “a cultura é a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade” e a manifestação simbólica do comportamento humano, isto é, o conjunto de regras que orienta e dá significado às práticas e à visão de mundo de um determinado grupo social. A cultura é tomada, assim, por seu caráter simbólico. Ela é a forma que um determinado grupo social estabelece para classificar as coisas e lhes atribuir um significado. (CUCHE, 2002, p. 21). Para Cuche (2002, p. 175-176), “a recente moda da identidade é o planejamento do fenômeno de exaltação da diferença, [...] a apologia da sociedade multicultural, [...] a exaltação da ideia de que é cada um por si para conservar sua identidade”. 26 [...] existe em todas as sociedades uma “consciência coletiva”, feita das representações coletivas, dos ideais, dos valores e dos sentimentos comuns a todos os indivíduos. Essa consciência coletiva precede o indivíduo, impõe a ele, é exterior e transcende a ele: há descontinuidade entre a consciência coletiva e a consciência individual, e a primeira é “superior” à segunda, por ser mais complexa e indeterminada. É a consciência coletiva que realiza a unidade a coesão de uma sociedade. (CUCHE, 2002, p. 57). A velocidade de incorporação da tecnologia é, muitas vezes, o fator de definição da hierarquia e da hegemonia entre sociedades. Bauman (2009) faz referências à hierarquização da cultura: As culturas nascem de relações sociais que são sempre relações desiguais [...]. Em um dado espaço social, existe sempre uma hierarquia cultural. [...] a força relativa de diferentes culturas [...] depende diretamente da força social relativa dos grupos que as sustentam. Isso se dá porque as relações entre símbolos não funcionam segundo a mesma lógica que as relações entre grupos e indivíduos. (BAUMAN, 2009, p. 7). Para Karl Marx, assim como Max Weber (apud Cuche, 2002, p. 145), [...], a cultura da classe dominante é sempre a cultura dominante [...]. Os indivíduos adquirem valor de mercado, que vai se alterando continuamente para que novas criações e novos comportamentos sejam consumidos. A relação entre os indivíduos é o espaço em que acontecem essas trocas de entendimentos e de percepções sobre valores da vida. São relações que, na troca com a alteridade, formulam regras de comportamento e de sentidos, as quais respondem amiúde às necessidades ditadas pela rápida renovação, pelo desenvolvimento e pela incorporação de tecnologia, e também pela velocidade com que se consome o novo e se descarta o velho. Através dos tempos, o homem vem tentando entender o sentido da vida, o que a compõe, como ela se processa, como se inter-relacionam as vidas, enfim, em um contínuo processo de questionamento sobre verdades postas. A concepção de mundo em um momento histórico, sofre influência e determina o desenvolvimento da racionalidade humana, a qual, por meio de valores, define necessidades para o desenvolvimento científico, remetendo-nos à percepção de que a história da humanidade tem sido uma eterna busca do conhecimento e de seu uso. As demandas de poder, de território e de hegemonia, são determinantes de valores na vida social, acarretando diferentes respostas de comportamento. 27 A consciência da incompletude leva o homem a buscar respostas, transformando as suas relações com o conhecimento, com o poder, com a natureza, com o outro, consigo mesmo. Os homens necessitam de princípios, de valores e de justificativas para aceitarem a finitude e a desvalia. O humano acata conceitos de moral para poder viver em sociedade, regras de convívio que respondem à volatilidade e à efemeridade das relações, mas que mantenham a existência da estruturação da organização social. 3.2 Implicações para a educação Entendendo educação: (...) como uma instituição social e histórica, que tem como fim gerar transformações tanto em nível das consciências individuais, como em nível mais amplo, da sociedade. Trazendo em seu bojo a concepção do homem na dimensão da praxis- como um ser capaz de refletir sobre a realidade nela atuar, ao mesmo tempo que esta atua sobre ele transformando-o-, a Educação é vista aqui como uma possibilidade, ainda que limitada por condicionantes históricos(e justamente o desvelamento desses condicionantes históricos é que possibilita o pensamento das transformação), de uma ação transformadora, buscando modificar as condições desumanizantes da sociedade industrial contemporânea e, em especial, da sociedade brasileira.(GONÇALVES apud GONÇALVES, 1999, p. 134). O homem se transforma através do conhecimento. Um conhecimento que racionaliza o imaginário define necessidades e desejos e empodera-o. Saber que, na eterna busca da compreensão de mundo, vai evoluindo e respondendo às inquietações humanas. Para Brandão, (apud Rodriguez et al., 2007) a educação é um processo de humanização que se dá ao longo de toda a vida e de modos diferentes, ocorrendo em casa, na rua, no trabalho, na igreja, na escola, entre outros locais. Além de um processo infinito, que acontece em múltiplos espaços e em diferentes situações de vida, compreende-se que a educação está ligada à aquisição dos conhecimentos popular e científico e à articulação deles, entendida como reorganização, incorporação e criação do conhecimento. Quando tomamos os conteúdos, estritamente técnico-científicos das práticas de saúde, sabemos que contamos com critérios bastante definidos e validados, com alto grau de objetivação e formalização sobre o que e como fazer - quais formas, 28 funções e riscos devemos preservar, favorecer ou controlar - no manejo biomédico dos organismos. (AYRES, 2005). Entende-se por educação em saúde, quaisquer combinações de experiências de aprendizagem, delineadas com vistas a facilitar ações voluntárias conducentes à saúde. A palavra combinação enfatiza a importância de combinar múltiplos determinantes do comportamento humano, com múltiplas experiências de aprendizagem e de intervenções educativas. A palavra "delineada" distingue o processo de educação de saúde de quaisquer outros processos que contenham experiências acidentais de aprendizagem, apresentando-o como uma atividade sistematicamente planejada. Facilitar significa: predispor, possibilitar e reforçar. Voluntariedade significa: sem coerção e com plena compreensão e aceitação dos objetivos educativos implícitos e explícitos nas ações desenvolvidas e recomendadas. Ação diz respeito a medidas comportamentais adotadas por uma pessoa, grupo ou comunidade, para alcançar um efeito intencional sobre a própria saúde. A educação em saúde “procura desencadear mudanças de comportamento individual”. (CANDEIRAS, 1997, p. 211). A educação em saúde, como área de conhecimento, requer uma visão corporificada de distintas ciências, tanto da educação como da saúde, integrando disciplinas como psicologia, sociologia, filosofia e antropologia. Esse entendimento é reforçado ao se afirmar a educação em saúde como campo multifacetado, para o qual convergem diversas concepções, as quais espelham diferentes compreensões do mundo, demarcadas por distintas posições políticos-filosóficas sobre o homem e a sociedade. Dessa forma, o conceito de educação em saúde está ancorado no conceito de promoção da saúde, que trata de processos que abrangem a participação de toda a população no contexto de sua vida cotidiana e não apenas das pessoas sob o risco de adoecer. (MACHADO, 2007). Mesmo que o SUS proponha ações educativas, a prática social do médico é, prioritariamente, o enfrentamento da doença. A população vive a expectativa da cura, justificando, assim, a demanda pela prática médica. Busca a cura da dor, do sofrimento, do déficit de atenção, da tosse, da febre, da malária, entre outras curas, de um modo imediato e sem o entendimento da existência de uma história natural no adoecimento e na cura. Como o ato médico garante a exclusividade da prescrição 29 medicamentosa, o trabalho médico em UBS acaba respondendo à demanda por atendimento curativo. Para Busquets et al. (apud Rodriguez et al., 2007), os objetivos da educação em saúde na escola são: formar uma personalidade autônoma, capaz de levar o indivíduo a construir seu próprio estilo de vida, e de conseguir um equilíbrio que lhe proporcione bem-estar nos terrenos físico, psíquico e social; oferecer os meios para que o aluno se conscientize de seus próprios estados físicos e psíquicos, dos seus hábitos e das suas atitudes diante das diversas situações da vida cotidiana. A educação em saúde pode ocorrer na Unidade Básica de Saúde (UBS), na comunidade ou na escola. As UBSs são o espaço físico no qual acontecem as ações assistenciais e educacionais em saúde, sistematizadas pelo SUS. Grupo-terapia, reuniões de pais e da comunidade, palestras em escolas e consultas médicas, são alguns dos espaços em que essa interface se dá. A “troca de saberes” possibilitada pelo contato profissional entre usuários/pacientes e profissionais de saúde, leva-nos a entender a “educação em saúde como elemento produtor de um saber coletivo que traduz no indivíduo sua autonomia e emancipação para o cuidar de si, da família e do seu entorno” (MACHADO et al., 2007, p. 336). A concepção crítica da educação, que pretende ser uma educação para a conscientização, para a mudança, para a libertação, solicita uma relação de proximidade entre os profissionais e a população. Nessa relação educativa, a produção do conhecimento passa a ser coletiva, gerando uma modificação mútua, porque ambos são portadores de conhecimentos distintos. (MACHADO et al., 2007). A conformação do comportamento individual é adquirida por intermédio do sistema educativo. A educação possibilita que valores e significados sejam concebidos, entendidos e trocados. O homem tende a se educar por imitação e pelo questionamento acerca do que lhe interessa. Acredito no conhecimento como instrumento de libertação do indivíduo, na educação como promotora desse processo e, mais ainda, que educação em saúde seja minha ferramenta para participar dele. Libertação significando autonomia só é possível quando o indivíduo compreende o que lhe origina, o que lhe dá sentido e decide como viver isso. A compreensão de que esses saberes dependem das relações de poder, da classe social, do gênero, da etnia, da historicidade, da mídia e até do acaso, acabam definindo como acontece sua inserção social. 30 Nos ideais de Paulo Freire, os princípios da educação popular estão relacionados à mudança da realidade opressora, ao reconhecimento, à valorização e à emancipação dos diversos sujeitos individuais e coletivos. Contudo, além da conscientização, a prática e a reflexão sobre a prática formam a categoria de organização da educação popular e são elementos básicos para a transformação. Nesse sentido, a sociedade civil organizada foi identificada como instância de promoção e de sistematização da educação popular (BARBOSA, 2007). Paulo Freire sugere cinco princípios – os quais considerava fundamentais – aos educadores e às educadoras: saber ouvir, desmontar a visão mágica, aprender/estar com o outro, assumir a ingenuidade dos educandos e viver pacientemente impaciente. Há de se evitar a prática idealizada, coercitiva, impositiva na educação em saúde. A normatização dos conteúdos e a proposição de práticas são de definição do Estado. Mesmo existindo flexibilização, o conhecimento é transmitido aos usuários do SUS com materiais definidos e fornecidos pelo Estado, como folders e objetos para educação sexual (filmes, preservativos e outros definindo os conteúdos), por exemplo. Por meio do diálogo, a educação popular busca possibilitar ao indivíduo, que esse seja protagonista de sua inclusão social e também busca formar a consciência de viver democraticamente em uma sociedade impregnada de exclusões, levando todos, além da discussão crítica, a uma prática inclusiva. A educação popular, ao cruzar a fronteira de escolarização, busca o resgate da cidadania e a necessidade de inclusão em todos os sentidos. A compreensão de que educação é um processo de construção de conhecimento, o qual tem nas trocas entre os sujeitos e nas suas inserções sociais seu espaço de concretização, possibilita o protagonismo desses sujeitos no processo. Habermas, em sua teoria comunicativa, teoriza que as comunicações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas por atos de fala, dizem respeito sempre a 3 mundos: o mundo objetivo das coisas, o mundo social das normas e instituições e o mundo subjetivo das vivências e dos sentimentos. As relações com esses 3 mundos estão presentes, ainda que não na mesma medida, em todas as interações sociais.(GONÇALVES, 1999, p. 132). 31 É a partir desses “três mundos”, que acontecem as trocas entre educando e educador. Percebemos que é na linguagem e nos signos, que os indivíduos se identificam e se definem; e é através dessas diferenças que acontecem as interações. A linguagem tem papel essencial, pois “a legitimação dos valores-verdade, correção normativa e veracidade-, não é alcançada por uma racionalidade meio-fim, mas somente pela argumentação em função de princípios reconhecidos e validados pelo grupo”. Através da utilização da linguagem, Habermas propõe que as pessoas interajam e organizem-se socialmente, “buscando o consenso de uma forma livre de toda coação externa e interna”. (GONÇALVES, 1999, p. 133). Como educadores precisamos acreditar em possibilidades de mudança, e, no âmbito de nossa ação profissional, tentar abrir espaços para a emergência de uma nova racionalidade, que favoreça a reconstrução da sociedade e a reinvenção da cultura. Esse processo somente será viável no desenvolvimento de uma ética de responsabilidade social, que embase ações que visem o bem coletivo, isto é, que tem por objetivo a criação de possibilidade de vida a todos, incluindo as gerações futuras. (Gonçalves, 1999, p. 131). 3.3 Implicações para a saúde Podemos considerar a saúde em três pontos de vista: do ponto de vista dos indivíduos, do ponto de vista do sistema produtivo e do ponto de vista técnico. (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004). Do ponto de vista dos indivíduos, saúde pode ser vista como uma qualidade de um corpo/mente de um indivíduo, ou como uma parte do mesmo, ou ainda, de uma soma de indivíduos, percebida por esses ou como bem-estar, ou como ausência de mal-estar, ausência de doença, ausência de sintomas, ou como qualquer outro estado considerado saudável, com base em algum critério socialmente compartilhado, que os indivíduos podem ter, ser, estar, ou obter. Deste ponto de vista, a saúde pode ser considerada como uma sensação, os indivíduos sentem que são saudáveis. “Os indivíduos obtém saúde pelo consumo, direto ou indireto, de algum tipo de produto ou serviço considerado com base ou não em critério técnicos”. (LEFÈVRE apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 3). “Do ponto de vista do sistema produtivo, saúde é um dos valores a ser reificado em mercadorias ou serviços”. A saúde, do ponto de vista técnico, “pode ser 32 vista como um tipo específico de poder ou autoridade no sentido sociológico do termo”. (BOURDIEU apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 3). “Estas três perspectivas dão lugar, como seria de se imaginar, a um sistema dinâmico de relações, onde os pontos de vista se interinfluenciam fortemente”. (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 3). Diz ele que o presente modelo triangular pode ser útil para entender a comunicação social em saúde, no contexto da sociedade brasileira atual, como uma situação altamente complexa decorrente das interações entre estes grande sujeitos comunicacionais, que são conhecimento científico, com a sua perspectiva técnica, o sistema produtivo de bens e serviços de saúde, com sua perspectivas eminentemente mercadológica e o indivíduo do senso comum, o portador da saúde e da doença ou o dono do corpo onde acontece a saúde e a doença. (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 7). No Brasil, o ponto de vista técnico, assumido pelo Ministério da Saúde, é o compromisso com a humanização no processo saúde-doença, na tentativa de oportunizar espaços para que aconteça esse sistema dinâmico. “Humanização como um compromisso das tecnociências da saúde, em seus meios e fins, com a realização de valores contrafaticamente relacionados à felicidade humana e democraticamente validados como Bem comum”. Tendo assim, a pretensão de uma dilatação de “horizontes normativos, capaz de escapar à restrição da conceituação de saúde ao problema tecnocientífico estrito dos riscos, disfunções e dismorfias”. (AYRES, 2005, p. 550). Mas por outro lado, quer fugir de um aumento desmedido desse horizonte, semelhante ao que aconteceu com a definição da saúde clássica: “estado de completo bem-estar físico, mental e social” difundidas pela Organização Mundial de Saúde, no final dos anos 70 (ALMA-ATA apud AYRES, 2005, p. 550). No Brasil, em 2003, em aditivo à lei orgânica 8.080 do SUS, cria-se a Política Nacional de Humanização (PNH), e o Ministério da Saúde entende humanização como a valorização dos diferentes sujeitos envolvidos no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Os valores que norteiam esta política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva nas práticas de saúde. (AZEVEDO, 2010). O “HumanizaSUS”, como é chamado, tem princípios tais como: 33 Transversalidade A Política Nacional de Humanização deve se fazer presente e estar inserida em todas as políticas e programas do SUS. A PNH busca transformar as relações de trabalho a partir da ampliação do grau de contato e da comunicação entre as pessoas e grupos, tirando-os do isolamento e das relações de poder hierarquizadas. Transversalizar é reconhecer que as diferentes especialidades e práticas de saúde podem conversar com a experiência daquele que é assistido. Juntos, esses saberes podem produzir saúde de forma mais corresponsável. (PENA; CARVALHO, 2010). Indissociabilidade entre atenção e gestão As decisões da gestão interferem, diretamente, na atenção à saúde. Por isso, trabalhadores e usuários devem buscar conhecer como funciona a gestão dos serviços e da rede de saúde, bem como participar ativamente do processo de tomada de decisão nas organizações de saúde e nas ações de saúde coletiva. Ao mesmo tempo, o cuidado e a assistência em saúde não se restringem às responsabilidades da equipe de saúde. O usuário e sua rede sócio-familiar devem também se corresponsabilizar pelo cuidado de si nos tratamentos, assumindo posição protagonista com relação a sua saúde e a daqueles que lhes são caros. (PENA; CARVALHO, 2010). Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos Qualquer mudança na gestão e atenção é mais concreta se construída com a ampliação da autonomia e vontade das pessoas envolvidas, que compartilham responsabilidades. Os usuários não são apenas pacientes, os trabalhadores não apenas cumprem ordens: as mudanças acontecem com o reconhecimento do papel de cada um. Um SUS humanizado reconhece cada pessoa como legítima cidadã de direitos e valoriza e incentiva sua atuação na produção de saúde. (PENA; CARVALHO, 2010). A Política Nacional de Humanização atua a partir de orientações clínicas, éticas e políticas, que se traduzem em determinados arranjos de trabalho. O PNH tem alguns conceitos que norteiam seu trabalho: (...) Acolhimento - O que é? Acolher é reconhecer o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde. O acolhimento deve comparecer e sustentar a relação entre equipes/serviços e usuários/populações. Como valor das práticas de saúde, o acolhimento é construído de forma coletiva, a 34 partir da análise dos processos de trabalho e tem como objetivo a construção de relações de confiança, compromisso e vínculo entre as equipes/serviços, trabalhador/equipes e usuário com sua rede sócio-afetiva. (...) Gestão Participativa e cogestão O que é? Cogestão expressa tanto a inclusão de novos sujeitos nos processos de análise e decisão quanto a ampliação das tarefas da gestão - que se transforma também em espaço de realização de análise dos contextos, da política em geral e da saúde em particular, em lugar de formulação e de pactuação de tarefas e de aprendizado coletivo. (...) Ambiência O que é? Criar espaços saudáveis, acolhedores e confortáveis, que respeitem a privacidade, propiciem mudanças no processo de trabalho e sejam lugares de encontro entre as pessoas. Clínica ampliada e compartilhada O que é? A clínica ampliada é uma ferramenta teórica e prática cuja finalidade é contribuir para uma abordagem clínica do adoecimento e do sofrimento, que considere a singularidade do sujeito e a complexidade do processo saúde/doença. Permite o enfrentamento da fragmentação do conhecimento e das ações de saúde e seus respectivos danos e ineficácia. (...) Valorização do Trabalhador O que é? É importante dar visibilidade à experiência dos trabalhadores e incluí-los na tomada de decisão, apostando na sua capacidade de analisar, definir e qualificar os processos de trabalho. (...) Defesa dos Direitos dos Usuários O que é? Os usuários de saúde possuem direitos garantidos por lei e os serviços de saúde devem incentivar o conhecimento desses direitos e assegurar que eles sejam cumpridos em todas as fases do cuidado, desde a recepção até a alta. (PORTAL DA SAÚDE, 2013). Tais princípios desenham, de modo bastante claro, a Política de Humanização na qual o sujeito ganha um lugar de destaque e a concepção de práticas profissionais efetivamente significativas, tanto para os profissionais quanto para os usuários, fato que possibilitaria uma real produção de saúde com sentido. Para Pasche (2010), ocorreu de imediato a compreensão de humanização como inclusão, como modo de fazer inclusivo e includente. Inclusão, na perspectiva democrática, significa acolher e incluir as diferenças, a diversidade e a heterogeneidade das singularidades do humano. Incluir o outro, o que não sou eu, que de mim estranha, que em mim produz estranhamento, e que provoca tanto o contentamento e a alegria, como o mal estar e a tristeza. Portanto, a inclusão produz a emergência de movimentos ambíguos contraditórios os quais devem ser sustentados por práticas de gestão que suportem o convívio da diferença e a partir dela sejam capazes de produzir o comum, que pode ser traduzido como projeto coletivo. (PASCHE, 2010, p. 25). Para incluir o outro, requer-se uma análise crítica daquilo que se leva para o relacionamento. Assim, assume-se a posição de que toda relação é contestada, que 35 nos leva a pensar no compromisso que será formado e nas tarefas contatadas. Por consequência é admitido como autêntico, “considerando determinados pressupostos éticos e diretrizes políticas”. Portanto, a maneira como é feita a inclusão, não demonstra um interesse ingênuo aquilo que o outro traz de si, mas em uma atitude generosa, de acolher estas manifestações para, imediatamente, confrontá-las com a multiplicidade dos interesses do outro, do coletivo, para possibilitar a construção de processos de negociação, de composição de contratualidades considerando orientações éticas, no caso, daquilo que é desejável e aceitável no plano do cuidado do outro. (POSCHE, 2010, p. 25). Podemos destacar duas principais marcas identitárias da cultura biomédica, ainda que já tenham sido bastante discutidas e abordadas, não se esgotaram. A supervalorização da abordagem da doença no processo de cuidado é a primeira, “em contraponto à valoração dada ao sujeito que sofre”. A segunda seria o desequilíbrio entre o que se identifica como tecnicismo em detrimento da importância dos critérios intersubjetivos, interpretativos, intuitivos construídos a partir da experiência dos sujeitos e das trocas narrativas no encontro clínico. (FERREIRA apud DESLANDES; MITRE, 2009, p. 645). Tento interagir com os usuários para, em um processo de troca de saberes, reinterpretar o conhecimento do processo saúde-doença junto às pessoas. Sabedores do que nos compõem, sobre o relativismo dos poderes e o entendimento de como acontecem as relações, é possível potencializar este intercâmbio entre o técnico e o empírico. Uma relação entre sujeitos e não sujeito-objeto. A educação em saúde tenta ocupar esse espaço. Baseando-me nos princípios do SUS – integralidade, equidade, universalidade, direito à informação, descentralização de poder e participação popular a partir de minha prática médica –, procurei integrar-me ao processo de implementação do SUS e à fomentação da educação em saúde. Violência, drogadição, miséria, pedofilia, abuso sexual, corrupção, injustiças sociais, etc., ficaram como graves manifestações da desorganização social e são, muitas vezes, a realidade com a qual convivo. O indivíduo saudável, mental e fisicamente, traz benefícios para a sociedade e vice-versa. É preciso, entretanto, que nós, médicos, nos capacitemos para colaborar nesse processo plural, multicultural, diversificado, multifacetado, inter-relacionado e interdependente. 36 Segundo a Oitava Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 1986), o conceito de saúde é: Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. Procurei interpretar, por meio da hermenêutica, o entendimento das pessoas com quem interagi, em meus 30 anos de profissão, sobre o processo saúde-doença e como esse entendimento se manifesta nos modos de existência e convívio. Para Ayres (2007, p. 60), saúde é a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade. Penso que saúde é uma abstração individual de necessidades individuais para se alcançar felicidade. É um estado de contínua busca por um sentido de vida, um conceito individual de prazer. Ela é multifatorial, multidimensionada e em contínua mutação e interação com seu contexto histórico. A percepção de que saúde é multifatorial - determinada pelas interpretações individuais e pelas simbolizações de vontades e sentidos - e o dimensionamento dos efeitos disso sobre a pessoa, possibilita a sensação de sentir-se saudável. O saber médico necessita responder à questão sobre o que é ser saudável; precisa conhecer tanto a concretude quanto a interpretação do real, para então compartilhar o entendimento de como é ser saudável e de como fazer para ser saudável. Para que as ciências médicas possam transcender o conceito biologicista de saúde como ausência de doença, é necessário que interprete a significância do conceito de saúde para o indivíduo. No momento em que se entende essa significância, aumenta muito a sua resolutividade. Em meu entendimento, a interface entre os conhecimentos técnicos e os conhecimentos populares, se dá a partir da educação em saúde. Ela oportuniza que, por meio do diálogo, sejam reinterpretados os conceitos sobre saúde e seus determinantes, além de se definir como ser saudável e ser feliz, necessitando, muitas vezes, de uma mudança de 37 comportamento por parte das pessoas envolvidas nessa busca pela felicidade. (AYRES, 2007). 38 4 NARRATIVAS E INTERPRETAÇÕES As três subseções que seguem, apresentam, respectivamente, três ensaios teóricos desenvolvidos a partir de narrativas das três décadas de trabalho nas quais venho constituindo minha profissionalidade como médico/educador, no campo da Educação em Saúde. Nomeio como ensaio, não propriamente a “forma” ou o “estilo” do texto, mas a operação que o constitui, reveladora de uma atitude hermenêutica, onde são indissociáveis a escrita, o pensamento e própria a existência. Trata-se de algo próximo do que Larrosa (2004a) chama de uma “operação-ensaio”: o ensaio é uma determinada operação no pensamento, na escrita e na vida, que se realiza de diferentes modos em diferentes épocas, em diferentes contextos e por diferentes pessoas. [...] o ensaio é o modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como uma escrita que dá o que pensar; e o modo experimental, por último da vida, de uma forma de vida que não renuncia a uma constante reflexão sobre si mesma, a uma permanente metamorfose. (LARROSA, 2004a, p. 32). Nos ensaios que seguem, dou a ver, efetivamente, o trabalho da pesquisa hermenêutica, que consistiu em favorecer o diálogo entre as experiências recuperadas pela memória, o trabalho de busca por linguagens capazes de encarnar os efeitos da rememoração e, por fim, o efeito daquilo que resultou narrado sobre meus interlocutores. 4.1 Os anos 1980... Formação inicial e primeiros sobressaltos Vinheta 1 - Éramos estudantes de medicina nesta época. Me formei em 1982 e terminei residência médica em pediatria em 1984. Como em tudo, a maturação de um profissional de saúde é lenta e determinada pelas experiências e trocas com o outro. Procurávamos ouvindo poder dizer e nesta troca chegar a uma nova interpretação da vida que auxiliasse na conscientização dos determinantes da estruturação do indivíduo e com isso poder ter autonomia de escolha. A formação universitária não nos oportunizou muitas experiências além das vividas nos ambulatórios e hospital da própria Universidade. Tivemos que ir em busca de outros caminhos. Cursei a faculdade na UFSM, morávamos em Santa Maria/RS, cidade com uma grande concentração de militares, uma Universidade Federal, comércio e serviços, portanto sem muita oportunidade de empregos para pessoas sem formação. Em 1977 fomos convidados para constituir um núcleo do CEBES em Santa Maria, RS. Fui eleito vicepresidente do núcleo. Tínhamos como incumbências realizar reuniões reflexivas e propositivas sobre saúde e vender a revista Saúde em Debate. Existiam poucos espaços para discussões. Reunião era subversão, e para 39 nós o possível eram discussões sobre “saúde”. Discutíamos os determinantes da estrutura social sobre a saúde dos indivíduos. Nosso grupo era formado basicamente por médicos recém-formados e estudantes de medicina, o meu caso. (NARRATIVA AUTORREFERENTE) Até o inicio da década de 1970, a assistência à saúde, existente no Brasil, quase que se resumia à medicina curativa praticada nos consultórios particulares, nos hospitais e nos grandes ambulatórios da Previdência Social. A medicina preventiva e a educação em saúde eram atividades feitas por órgãos ou pessoas isoladas, sem muitos recursos. A partir dessa época, muitas mudanças passaram a ocorrer nos órgãos de saúde brasileiros. Os movimentos populares, que haviam sido intensa e violentamente reprimidos pelos primeiros governos militares após a revolução de 1964, começavam a se rearticular e a crescer, reivindicando melhores condições de vida. O ano de 1974 foi marcante na expressão da crescente insatisfação popular, pois o partido de oposição (MDB) conseguiu sua primeira vitória parcial. A população vai aos poucos percebendo que o grande crescimento da economia havia ocorrido à custa da piora de condições de vida. Diante da ameaça de quebra de estabilidade social, o Estado brasileiro é obrigado a preocupar-se mais com os problemas de saúde, educação, habitação e saneamento da população. Mas a crise econômica já se iniciava, tornando escassos os recursos financeiros disponíveis. Como levar a assistência médica a parcelas crescentes da população, cada vez mais exigentes de seus direitos à saúde, sem aumentar muito as despesas financeiras? A medicina curativa praticada nos hospitais, nos consultórios e ambulatórios, com seus aparelhos sofisticados e seus numerosos especialistas, já vinha assustando pelo seu preço cada vez mais alto. Foi preciso encontrar um modelo alternativo de assistência médica. A Medicina Comunitária, que já vinha sendo colocada em prática em outros países do mundo, logo se mostrou a mais adequada às necessidades políticas do momento. O modelo de Medicina Comunitária, na medida em que pregava a utilização de técnicas simplificadas, de baixo custo e com participação da população, era bem mais barata. Além disso, a valorização de ações preventivas e de alcance coletivo, ao invés das ações unicamente individuais da medicina curativa, aumentava a sua eficiência. Assim, as políticas de saúde do governo brasileiro foram criando projetos cada vez maiores de expansão da medicina às populações mais pobres, dentro da filosofia da Medicina Comunitária. Hoje são numerosos os centros e postos de 40 saúde espalhados pelos bairros, povoados e áreas rurais de todo o Brasil. São os serviços de Atenção Primária à Saúde, pensados, atualmente, na forma de Estratégia de Saúde da Família (ESF). Vê-se claramente, que a formação médica nos anos 1970 respondia muito timidamente a tais transformações e ao modelo da saúde comunitária, restringindose apenas a ações isoladas de estudantes mais engajados politicamente. A formação “oficial” refletia a perspectiva predominante de currículos fortemente tecnicistas e com pouquíssimos espaços para a formação humanística e sóciohistórica. Ocorre que nestes novos serviços, os profissionais de saúde passaram a conviver mais de perto com os problemas das classes populares. Novas formas de atuação foram organizadas. Porém, a escassez de recursos a eles destinados e a falta de referência sólida na formação médica inicial, tornou esta prática médica muito limitada. Os baixos salários de seus profissionais e a quase ausência de acompanhamento educativo, deixou-os desmotivados e não adaptados às novas funções. Além disso, esses serviços foram transformados em oportunidades de obtenção de votos, em função das constantes interferências dos políticos. Este descaso e esta utilização eleitoreira dos novos serviços de saúde, destinados aos trabalhadores por parte do governo, gerou, entretanto, muitos descontentamentos. Associações de bairro, sindicatos e comunidades eclesiais de base, começaram a lutar por melhorias desses serviços. Além disso, foram criados comitês populares de saúde, que por sua vez, passaram a participar do planejamento de suas atividades. Em muitas regiões, os profissionais de saúde se organizaram em associações profissionais e sindicatos bastante reivindicativos. Um grande número de médicos, enfermeiros, dentistas, descontentes com a prática médica especializada, tecnificada e mercantilizada exercida nos hospitais e clínicas privadas, passaram a buscar nos serviços de medicina Comunitária em implantação, um espaço para a construção de uma medicina mais adequada às classes populares. Começa então a surgir um número crescente de experiências, onde seus profissionais e os movimentos populares se aliam na luta pela criação de uma medicina mais apropriada aos seus interesses. Como consequência deste processo, no inicio da década de 1980, surge o Movimento Popular de Saúde, uma tentativa de articular uma rede de troca de conhecimentos entre estas experiências alternativas de Medicina Comunitária, que cresciam em todo país. 41 A análise da prática destes centros e postos de saúde, onde seus profissionais e os movimentos populares têm conseguido reorientar o descaso e a utilização eleitoreira, pelo governo, dos serviços de saúde destinados aos trabalhadores, tem revelado uma rica experiência em educação popular. Suas atividades têm ajudado tanto os profissionais como a população, a compreenderem melhor as raízes de seus problemas de saúde e a buscarem novos modos de viver e de se relacionarem com a natureza e com a sociedade. Educação em saúde vem sendo entendida, por muitos, como uma maneira de fazer as pessoas do povo mudarem alguns comportamentos prejudiciais à saúde. Para muitos, educar para a saúde é levar para a população, a compreensão a as soluções corretas que os profissionais conscientes, politizados e conhecedores da ciência, já descobriram. É conscientizar o povo que ainda não se conscientizou. No entanto, quanto mais estudamos a realidade de vida da população, tanto mais percebemos como o saber popular, antes de ser um saber “rudimentar”, é um saber bastante elaborado, com ricas estratégias de sobrevivência e com grande capacidade de explicar parte da realidade. Ao mesmo tempo, está cada vez mais claro como o saber dos cientistas e dos técnicos está encharcado dos interesses das classes dominantes é ainda muito limitado para explicar toda variedade da realidade. Assim, só cabe entender a educação em saúde baseada no diálogo, ou seja, na troca de saberes. Um intercâmbio entre o saber científico e o popular em que cada um deles tem muito a ensinar e aprender. (VASCONCELOS, 2001). A formação médica na atualidade, está organizada a partir de um modelo técnico-científico. “No entanto, na contemporaneidade surgem propostas orientadas por um projeto ético-humanista que tencionam esse modelo com vistas a sua transformação”. (NOGUEIRA, 2009, p. 262). Compreende-se que a designação de “novos cenários de prática, a valorização das dimensões psicossocial e antropológica do adoecer e a incorporação de tecnologias relacionadas na formação médica”, tornam possível outro olhar sobre os “aspectos subjetivos” do estar doente, dando lugar a outro tipo de compreensão, ampliando o “processo saúde-doença”. (NOGUEIRA, 2009, p. 262). 42 Estudos e avaliações do ensino médico no Brasil contemporâneo, contudo, mostram que a maioria dos cursos de medicina se encontra ainda 1 organizada de acordo com as proposições do Relatório Flexner . Com a reforma universitária de 1968, o conteúdo curricular das escolas médicas ajustou-se ao modelo flexneriano, que tornou obrigatório o ensino centrado no hospital e oficializou a separação entre ciclo básico e profissional. Embora essa reformulação tenha modernizado o ensino médico, ao propor uma formação com base científica, nele imprimiu características mecanicistas, biologicistas e individualizantes. Assim, ficou estabelecido um modelo formador que fragmentava o conhecimento por meio de estudo do corpo humano, segundo órgãos e sistemas, estimulava a espacialização profissional e atendia aos interesses do complexo médico-industrial. (NOGUEIRA, 2009, p. 263). Surge no Brasil, na segunda metade da década de 1970, um grande ator social coletivo, que foi chamado de Movimento Sanitário e se caracterizou por lutar contra a ditadura, contra a forma de zelo do complexo médico-industrial e a “favor da necessidade de associar a saúde pública e a assistência medica em um só ministério”. (NOGUEIRA, 2009, p. 263). Entretanto, apenas: A partir da realização da 8º Conferência Nacional de Saúde, em 1986, desenhou-se, então, o projeto de construção de um sistema público de saúde pautado numa concepção ampliada de saúde e no lema – ‘A saúde de como direito de todos e dever do Estado’. A aprovação da nova constituição de 1988 e das leis Orgânicas em 1990 garantiu legalmente o SUS dentro dos princípios de universalidade, integralidade, equidade, hierarquização da assistência e participação da comunidade. […] Em 2001, como resultado de uma parceria entre os ministérios da saúde e da educação, é lançado um programa de incentivos às mudanças nos cursos de medicina - o Promed. (NOGUEIRA, 2009, p. 264). O Promed propõe-se a dar assistência técnica e financeira às escolas médicas, dispostas a fazer crescer os processos de transformação que busquem uma articulação com os serviços de saúde, a adoção de metodologias ativas de formação em saúde e uma atitude crítica e humanista do profissional médico. Além desse programa, no Brasil, políticas mais recentes, como por exemplo, os Polos de educação Permanente em Saúde e Educação e o Aprender SUS, aproximam os ministérios da saúde e educação na coordenação de ações que visam encurtar distâncias entre as escolas médicas, os serviços e a comunidade. (NOGUEIRA, 2009, p. 264). 1Relatório Flexner: é considerado o grande responsável pela mais importante reforma das escolas médicas de todos os tempos nos Estados Unidos da América (EUA), com profundas implicações para a formação médica e a medicina mundial. 43 O SUS é considerado como principal campo de emergência de novas demandas que fomentaram as transformações na formação médica. Entre as primordiais questões que definirão uma concepção nova para a política de formação de recursos humanos para o SUS, destacam-se: - o ensino centrado no processo de trabalho e no princípio da integralidade das ações em saúde; - a inserção do aluno na realidade social e sanitária da população para um acompanhamento do processo saúde-doença em suas mais variadas formas e manifestações; - a diversificação dos cenários de aprendizagem-comunidade, família, unidades básicas de saúde, etc. - e o deslocamento do hospital como único espaço de aprendizagem; - a perspectiva da formação em saúde inserida na transdisciplinalidade e na intersetorialidade; - a valorização das dimensões psicossocial e antropológica do adoefer; a incorporação das tecnologias leves, visando melhor atuação frente aos aspectos subjetivos e singulares do adoecimento humano e a construção de uma clínica ampliada, capaz de lidar com a polaridade entre a ontologia das doenças e a singularidade dos sujeitos. (NOGUEIRA, 2009, p. 264). Os anos 1980 em Santa Maria/RS, no curso de Medicina e nos primeiros movimentos de aproximação efetiva com o paradigma da saúde coletiva nascente, constituíram um rico laboratório de ruptura com a racionalidade médica predominante, francamente instrumental e nada comunicativa. Foi no inicio do século XIX, que deu-se o surgimento da racionalidade médica moderna, com a chegada da “anatomia patológica, vem se consolidando o projeto de situar o saber e a prática médica no interior do paradigma das ciências naturais”. Nogueira (2009, p. 265) refere que a medicina fez sua opção pela naturalização de seu objeto - a complexidade e a singularidade do adoecimento humano - por meio do processo de objetivação, ou seja, o de fazer surgir a objetividade da doença, com a exclusão da subjetividade e a construção de generalidades. Na biomedicina, verificou-se a prioridade da objetividade conduzida até as “últimas consequências: sem lesão objetiva não há diagnóstico e, com isso, há um processo de exclusão de pacientes que não se enquadram nas normas das categorias diagnósticas”. (NOGUEIRA, 2009, p. 265). Nessa perspectiva, foram obtidos progressos, mas entende-se que esse “modelo de medicina baseado preponderantemente no objetivismo trouxe algumas consequências indesejáveis e geradoras de impasses para a prática médica, ao 44 excluir as dimensões subjetivas do adoecer humano”. A relação entre paciente e médico ficou marcada pela contradição de duas leituras diferentes sobre o adoecimento, com a nítida prevalência do saber técnico sobre as concepções e interpretações fenomenológicas do adoecer. (NOGUEIRA, 2009, p. 265). A biomedicina tenta se adaptar ao modelo sustentado e idealizado pela ciência, construindo um “imaginário científico”. No entanto, não se pode afirmar sem se ver com dilemas epistemológicos bastante graves, que a atividade do médico é “científica”. A clínica se ancora nas ciências biológicas e o médico as utiliza como bases biológicas, como subsídio para um julgamento de valor e uma intervenção terapêutica. Cada vez mais, se sabe que o processo saúde-doença não pode ser devidamente explicado sem os referenciais das ciências humanas e sociais. Vinheta 2 – Decidimos que “deveríamos ir até onde o povo está” e através de contatos com movimentos sociais e igreja foram combinados encontros com moradores das vilas para discussões sobre saúde. Certa vez me coube falar sobre educação sexual numa associação de vila. Era sábado à noite, havia chovido todo dia e mesmo que numa rua escura e embarrada não tínhamos receio, pois era um “acontecimento” quando os “doutores” fossem dar uma “palestra”. Eram poucos os assuntos que se podia discutir e este sempre despertava interesse. O pequeno espaço de reuniões estava cheio e a maioria dos participantes eram adolescentes e suas mães. Mesmo que a reunião não versasse sobre problemas estruturais da vila a troca de saberes e a diversidade de linguagens foi muito estimulante para nós. Conversamos tanto sobre o corpo como sobre preocupações culturais tais como “lavar a cabeça naqueles dias enlouquece”, “engravida usar a toalha dos rapazes” e por aí vai... Os jovens questionaram sobre fisiologia e anatomia principalmente, mas com as mães a discussão foi sobre contracepção. Uma sintetizou dizendo que elas não queriam ter tantos filhos, pois era muito difícil alimentá-los e criá-los, “sempre tem um com fome e outro doente. Se tem médico, não tem remédio!” Ou ainda... “Para nós é difícil conseguir ‘comprimido’ e os homens não querem usar camisinha”, concluiu. A preocupação com a linguagem foi importante para mim, pois possibilitou que o entendimento acontecesse. Apesar de predominar uma abordagem de “instrução” com base em saberes técnicocientíficos, o diálogo com as populações se mostrava como a grande alternativa para uma ação efetiva de mudança das condições de vida. As particularidades de linguagem foram entendidas e o diálogo transcorreu com novos aprendizados. Lembro-me da sensação que tive após despedidas e apertos de mãos. Foi à reunião mais “séria” da qual participei. Os únicos homens adultos éramos nós. Eram tempos obscuros aqueles, uma reunião era sempre cercada de preocupações, pois para o regime militar “gostar do povo” era subversão. Ser lumpen e classe baixa era uma contingência do capitalismo. Eles e nós deveríamos ficar longe do povo. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). A educação é um processo de humanização que se dá ao longo de toda a vida, de muitos modos diferentes, ocorrendo em casa, na rua, no trabalho, na igreja, 45 na escola, entre outros. Além de um processo infinito, que acontece em múltiplos espaços e diferentes situações da vida, compreende-se que a educação está ligada à aquisição e articulação do conhecimento popular e científico, entendido como uma reorganização, incorporação e criação do conhecimento. (AYRES, 2007). A linguagem faz com que os signos de um grupo sejam constituídos, entendidos e transmitidos. “A educação não é um tesouro que se perde ao ‘entregar’ a outros. Ao contrário, é um tesouro que aumenta, ao ser repartido”. (GADOTTI, s/a, p. 22). Um dos princípios originários da educação popular tem sido a criação de uma nova epistemologia baseada no profundo respeito pelo senso comum que trazem os setores populares em sua pratica cotidiana, problematizandoo, tratando de descobrir a teoria presente na prática popular, problematizando-a, incorporando-lhe um raciocínio mais rigoroso, cientifico e unitário. (GADOTTI, s/a, p. 24). Num paradigma teórico, a educação popular tem-se construído. Trata-se de “codificar e descodificar os temas geradores das lutas populares”, pretende-se assim, cooperar com os “movimentos sociais e os partidos políticos que expressam essas lutas”. Diminuindo assim a pobreza com o impacto da crise social, “dar voz à indignação e ao desapego moral do pobre, do oprimido, do indígena, do camponês, da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador industrial”. (GADOTTI, s/a, p. 24). Conforme Gadotti (s/a, 24-25): A ênfase nas condições gnosiológicas da prática de educação; a educação como produção e não meramente como transmissão de conhecimento; a luta por uma educação emancipadora que suspeita do arbitrário cultural o qual, necessariamente esconde um momento de dominação; a defesa de uma educação para a liberdade, precondição da vida democrática; a recusa do autoritarismo, da manipulação, da ideologização que surge também ao estabelecer hierarquias rígidas entre o professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e por isso estuda); a defesa da educação como um ato de diálogo no descobrimento rigoroso, porém, por sua vez, imaginativo, da razão de ser das coisas: a noção de uma ciência aberta às necessidades populares e um planejamento comunitário e participativo. A humanidade possui uma característica fundamental que é a diversidade. Deve-se educar para os mundos possíveis, educar para conscientização, para desfetichar, para desalienar. “O fetichismo da ideologia neoliberal é o fetiche da 46 lógica burguesa e capitalista que consegue solidificar-se a ponto de fazer crer que o mundo é naturalmente imutável”. (GADOTTI, s/a, p. 26). O que compreendíamos naqueles anos de 1980, era o fato de que seria indispensável estar junto das comunidades para poder, efetivamente, compreender suas necessidades que, em última análise, eram também as nossas, filhos de famílias não muito distantes daquela realidade. Começava a desfazer-se a “idealização” do saber médico como dono da verdade e saída única para as problemáticas da população. O diálogo, cada vez mais próximo das comunidades, fazia compreender a precariedade do discurso científico quando se tratava de transpô-lo para o cotidiano, para a vida diária, para os dramas encarnados pelas populações em sua condição ativa de recriadores e intérpretes do discurso científico. Dialogar era, ao mesmo tempo, a perspectiva de uma saída para a impotência dos saberes técnicos em sua pretensão de superioridade, e uma via de ampliação de nosso repertório humano e social. Começávamos a nos encontrar com o que a formação universitária não nos havia oferecido: a dimensão concreta e hermenêutica do sofrimento humano. De certa maneira, pode-se dizer que encontrávamos caminhos possíveis para romper com o fetichismo da superioridade científica que a medicina universitária nos havia seduzido. O fetichismo transforma as relações humanas em fenômenos estáticos, como se fossem impossíveis de serem modificadas. Fetichizados somos incapazes de agir porque o fetiche rompe com a capacidade de fazer. Fetichizados apenas repetimos o já feito, o já dito, o que já existe. Educar para outros mundos possíveis é educar para a emergência do que ainda não é, o ainda-não, à utopia. É também educar para a ruptura, para a rebeldia, para a recusa, para dizer “não”, para gritar, para sonhar com outros mundos possíveis. (GADOTTI, s/a, p. 26). A educação é concebida no neoliberalismo, como uma mercadoria, “reduzindo nossas identidades às de mero consumidores, desprezando o espaço público e a dimensão humanística da educação”. A intertransculturalidade é promovida pela educação de outros mundos possíveis, respeita e valoriza a diversidade e convive com a diferença. A negação do sonho e da utopia é o núcleo central da concepção neoliberal da educação. (GADOTTI, s/a, p. 26). No governo militar brasileiro, com esvaziamento dos partidos políticos e sindicatos, a população busca, aos poucos, novas formas de resistência. A Igreja Católica, que até então conseguira se preservar da repressão política, agora apoia 47 este movimento, “possibilitando o engajamento de intelectuais de diversas áreas”. (VASCONCELOS, 2001, p. 68). Sistematizado por Paulo Freire, o método de Educação Popular se torna norteador da relação entre classes populares e intelectuais. “Muitos profissionais da saúde, se engajaram nesse processo”. Essas experiências fazem com que intelectuais tenham acesso e começam a “dinâmica de luta e resistência de classes populares”. Assim, a participação de profissionais de saúde nas experiências de Educação Popular, a partir dos anos 70 [e para nós estudantes nos anos 80 e seguintes], trouxe para o setor de saúde uma cultura de relação com as classes populares, que representou uma ruptura de relação com a tradição autoritária e normatizadora da educação em saúde, como mera forma de instrução desde a “superioridade” dos saberes técnicos. (VASCONCELOS, 2001, p. 68-69). “A Educação Popular é um modo de participação de agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e outros), e de agentes sociais do povo neste trabalho político”. Ela procura trabalhar pedagogicamente com os indivíduos e os grupos envolvidos no processo de participação popular, promovendo maneiras de aprendizado coletivo e estimulando o “crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento. É uma estratégia de construção da participação popular no redirecionamento da vida social”. O fato de tomar como ponto de partida no processo pedagógico, o saber anterior que o educando traz, torna-o um elemento fundamental do seu método. (VASCONCELOS, 2001, p. 71). Vinheta 3 – A vida estudantil foi aos poucos nos absorvendo. O longo aprendizado de medicina, são 6 anos de faculdade mais 2 anos de residência médica, acontece no inicio da vida adulta e acarreta demandas como aulas em 2 ou 3 turnos, plantões, seminários... À medida que íamos nos formando o CEBES foi diminuindo e os mais jovens foram para o ME. Eu, por exemplo, participei mais ativamente dele até o 3° ano da faculdade. Participei do ME no diretório acadêmico até o 5° an o quando fui eleito Sec. Geral. Resolvi não concluir o mandato, pois percebi que havia chegado a hora de me dedicar exclusivamente à medicina. Dezembro de 82, há 30 anos, me formei em medicina, fui selecionado para a residência médica em pediatria e fiquei sabendo que iria ser pai pela 1° vez (tenho 2 filhos). Mesmo sabendo que o aprendizado de medicina é contínuo, a sensação de incapacidade é grande e apostei na residência médica, pois assim tive mais 2 anos para o exercício dela supervisionado pelos professores. Para mim a pediatria possibilitaria compartilhamentos com as famílias e melhor entendimento dos determinantes sociais na saúde da criança. Afinal as pessoas se mobilizam mais quando os filhos são afetados. A residência médica é uma especialização onde temos as responsabilidades de médicos e o aprendizado de estudantes. Estávamos em 1984, período de crise 48 econômica e o Brasil se mobilizava pela redemocratização. Começaram a aparecer os reflexos na universidade e tínhamos receio que comprometesse o ensino e assistência da faculdade. Tivemos reuniões com professores, com estudantes, e encaminhamos nossa preocupação para os órgãos competente da Universidade. A situação agravou, tivemos sucessivas assembleias onde apareciam cada vez mais relatos da carência de manutenção e reposição de material de consumo para a estrutura. A penúria foi se prolongando e a nossa indignação também. Num entardecer fomos, com um frio na barriga, para a assembleia que aconteceu no saguão da Reitoria. Fiquei com a impressão de que só os que estavam doentes não foram. Avistamos pessoas estranhas também. Lembro que falava do descaso do governo Figueiredo com a população que utilizava a estrutura da Universidade e a Educação, quando silenciei alguns instantes. O silêncio era sepulcral quando alguém grita GREVE NELES, logo efusivamente aplaudida. Fizemos a votação e quase que unanimemente entramos em greve pedindo verbas para a Educação. Eram raras as greves até então e naquela noite os bares faturaram mais que nunca na cidade. Ao amanhecer a notícia teve impacto, distribuímos panfletos explicativos para população, demos entrevistas no jornal, nas rádios e televisão. A greve foi nacional e após três meses de intensas negociações com a Reitoria e com o Ministério da Educação encerramos o movimento quando houve a suplementação de verbas para as Universidades e foi reposto tudo que faltava para o bom atendimento. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). O movimento social pela saúde, em 1970, se deu a partir de uma articulação, em parte, estabelecida por um “pensamento crítico, definido por Escorel (1987) como de caráter contra hegemônico”, efetivador das propostas de mudanças do Sistema de Saúde estabelecido pelo regime autoritário, que concretizava a “hegemonia da política de mercantilização de medicina” comandada pela Previdência Social. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 214). A elaboração do II Plano Nacional de Desenvolvimento para o período de 1974 a 1979, indicou o reconhecimento de que o desenvolvimento social deve andar, conjuntamente, com o desenvolvimento econômico e que para que isso aconteça, é preciso progredir “na definição de políticas socais, com objetivos próprios”. Referindo-se, em especial, aos problemas relacionados à área da educação e saúde, que avançaram correspondentemente aos avanços econômicos do país. Em 1974, foi criado o “Conselho de Desenvolvimento Social para acompanhar a implementação das diretrizes do PND”. As linhas centrais do II PND e as orientações nele definidas, foram as bases nas quais se assentaram as transformações que o setor atravessou ao longo do governo Geisel. (ESCOREL apud TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 215). Para Teixeira, (idem) essas transformações aconteceram 49 a partir de uma nova organização institucional para o setor: criação do Ministério de Previdência e Assistência Social (1974), responsável pela assistência médica governamental; a lei do Sistema Nacional de Saúde que sacraliza a dicotomia do sistema, dando ao Ministério da Saúde caráter eminentemente normativo e ações na área do interesse coletivo, e dando ao MPAS a responsabilidade pelo atendimento médico individualizado. A Previdência Social foi reforçando o modelo privatizante, que ao mesmo tempo abriu espaço dentro da nova ordenação institucional para a discussão das ações governamentais de saúde, tornando possível a organização de “programas através dos quais o Movimento Sanitário, com habilidade política, foi experimentando suas propostas de forma localizada e marginal”. A utilização da rede pública para uma atenção integral; a introdução de mecanismos de planejamento na administração dos serviços; a introdução da perspectiva da cogestão entre órgãos públicos; a participação dos profissionais e da população no controle da gestão de serviços, foram as principais diretrizes desses programas. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 215). As instituições, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde - CEBES, aparecem ainda no contexto ditatorial, mas já caracterizado pela reestruturação dos movimentos sociais. Sua criação se deu por profissionais de saúde em 1976. “Esta é a organização que vai apoiar a condução, em nível nacional, do processo de divulgação, discussão e politização da proposta de reorganização do Sistema Único de Saúde, a partir de redemocratização da saúde”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 215-216). Segundo os mesmos autores, o CEBES também se constituiu pela articulação com outros movimentos sociais e dentro do próprio setor, como o sindicato dos médicos e demais profissionais da saúde, outras entidades corporativas médicas e com movimento sindical e popular. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), por sua vez, se constituiu em 1979, em torno da crítica do modelo assistencial e das propostas de sua reorganização e construção do SUS, passando a ocupar, até os dias de hoje, um espaço de organização e diálogo permanente da prática acadêmica. A Previdência Social ficou marcada, na década de 1980, por uma profunda crise financeira, dada ao seu modelo de prestação de serviços, “e que exigia do governo uma solução. Naquele momento, o Plano Prev-Saúde, que ‘incorpora as principais teses de descentralização, hierarquização, regionalização e (dá) ênfase 50 aos serviços (básicos) de saúde’” (Rodrigues Neto apud Teixeira; Mendonça, 2006, p. 216), configurando assim, a tentativa de incorporar novas propostas no movimento à política pública. Esse plano não chegou a ser posto em prática, porém, observou-se a incorporação de alguns intelectuais do Movimento Sanitário na burocracia estatal, buscando solução para a crise. No final de 1981, a Presidência da república cria o Conselho Nacional de Administração da Saúde Previdenciária - CONASP - criando um foro na instituição para o confronto dos diferentes interesses em busca de resolver a crise da previdência, principalmente quanto à necessidade de redução dos gastos com a saúde. O trabalho do CONASP se consubstanciou num plano de Reorientação da Assistência Médica da Previdência (agosto/1982), que propunha oficialmente modificações no modelo privatizante, tais como descentralização e utilização dos serviços públicos federais, estaduais e municipais na cobertura assistencial da clientela. Dentro dele, o projeto Ações Integrais de Saúde – AIS - avançou na adoção dos princípios de universalidade, de equidade e integração dos serviços de saúde. (RODRIGUES NETO apud TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 216) Politicamente, o Plano do CONASP surgiu numa conjuntura em que o processo democrático vinha avançando e se realizavam modificações na correlação de forças político-partidárias, após as eleições estaduais para governadores no final de 1982. Em 1983, observa-se o crescimento do movimento pelas eleições diretas. Assim, as AIS, em 1983/1984, podem assumir o caráter de uma proposta estratégica intergovernamental, ou seja, que contemplava os interesses mais gerais dos novos governos estaduais e municipais, extrapolando a perspectiva exclusiva da Previdência e do poder central. As AIS aumentam a permeabilidade do aparelho do Estado às propostas reformadoras. Paim (apud Teixeira; Mendonça, 2006, p. 217) caracteriza as AIS “como estratégia-ponte para a reorientação dos serviços”, dado que a definia “como uma proposta (originalmente racionalizadora), mas com espaços democráticos de reserva, ressaltava que poderia ser aprofundada pela ação dos movimentos sociais e dos partidos políticos [...]”. A partir de então, presente de forma mais orgânica no governo e no conjunto das instituições de saúde, o núcleo do Movimento Sanitário, tendo como objetivo “fortalecer o setor público na prestação do cuidado médico, se move em três direções básicas: politização da questão saúde, alteração da norma constitucional e mudança do arcabouço e das práticas institucionais”. (TEIXEIRA apud TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 217). 51 Na direção da politização da discussão sobre saúde, desencadeou-se, a partir da convocação do Ministério da Saúde, o processo de preparação e realização da 8º Conferência nacional de Saúde. O evento em nível nacional foi, na realidade, o desfecho de um trabalho de organização, em todas as unidades federadas, dos interesses em torno da questão saúde por parte dos profissionais de saúde, intelectuais, sindicatos e centrais de trabalhadores, movimentos populares e partidos políticos. Estas forças sociais se fizeram representar no plenário da Conferência, garantindo à proposta elaborada no relatório final a legitimidade e o apoio político de “um verdadeiro programa para a Reforma Sanitária”, na medida em que resultou de um exaustivo debate em torno das demandas específicas das diferentes forças sociais presentes. Representou também um acordo político importante entre essas mesmas forças, em função da necessidade de implementação de mudanças na política de saúde, diante de interesses já consolidados no interior do setor saúde. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 217). A definição do princípio do direito e dever do Estado, consagrado no texto do relatório final, foi outro aspecto fundamental que colocou em cena a necessidade de universalização da atenção à saúde e a constituição de uma base estatal para o sistema de saúde no país. “O avanço na mobilização social pela definição de um programa detalhado e aprofundado para a Reforma Sanitária apontada pela 8º Conferência se reproduziu durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 218). Os interesses que acontecem no setor saúde, basicamente dos grupos ligados ao setor privado empresarial e suas representações, e as forças renovadoras que se congregam na Plenária das Entidades de Saúde em torno da defesa de uma emenda popular, se enfrentaram novamente com o governo na elaboração da Constituição. Essa Plenária foi tão ágil, que conseguiu assegurar que o novo texto constitucional aprovasse “boa parte das reivindicações do Movimento Sanitário, em prejuízo do setor hospitalar, mas sem modificar a situação da indústria farmacêutica”. A constituição do Sistema Único de Saúde (SUS) conseguiu assim, assegurar que as ações e os serviços seriam “prioritariamente públicos e extensivos a toda população”. (TEIXEIRA; MENDONÇA, 2006, p. 218). Em 1987, com o objetivo de promover a Reforma Sanitária no plano da alteração das práticas institucionais, surgiu a proposta do SUDS - Sistema Unificado e Descentralizado, que aprofunda a política das AIS, revigorando-a e ultrapassando seus limites. Apoiada na “organização descentralizada do Sistema de Saúde, com base no setor público executor da política de saúde, complementando suas necessidades da cobertura preferencialmente através de convênios com serviços 52 filantrópicos”, com contratos regidos pelas normas de direitos públicos, este segmento foi privilegiado dentro do setor privado. Privilegiou-se, também, o uso de “instrumentos de planejamento na administração de serviços, objetivando a distribuição mais equânime dos recursos de saúde, participação da população e dos profissionais na gestão, controle orçamentário e qualidade dos serviços de saúde”. (TEIXEIRA; TEIXEIRA, 2006, p. 218). No processo em curso da democratização da saúde, estas três abordagens são concomitantes. “Nenhuma delas esgota os limites enfrentados pela Reforma Sanitária; ao contrário, vão exercendo influências mútuas e se complementando, nem sempre com uma visão unilinear”. (TEIXEIRA, 2006, p. 219). Nossas vivências foram marcadas por toda essa movimentação política, que avançava da aproximação com as comunidades e do aprendizado com a cultura popular, na direção de uma luta política mais organizada, que resultou, em última análise, na construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Vinheta 4 – Em 1984, após a greve, estava no 2º ano de minha residência médica em pediatria na UFSM. Cumpria estágio curricular na UTI neonatal do hospital universitário da UFSM. Eram aproximadamente 23hs, eu estava de plantão, quando telefonam de Agudo/RS solicitando leito na UTI para uma recém-nascida com 12h de vida e “muito ictérica”. Aceitei a internação, o R2 era o responsável pelo plantão, e enquanto as técnicas de enfermagem preparavam a incubadora, o pai viajava de Agudo para Santa Maria com a filha recém nascida. A distância entre as duas cidades do centro do RS é de aproximadamente 70 km. O pai acompanhado pela avó materna chegou em torno da 1h da madrugada. Era uma família de pequenos agricultores. A mãe estava se recuperando do parto e eles tinham um outro filho. Um menino com 2 anos na época, que apresentava severo atraso neurológico devido a um Kernicterus (encefalopatia bilirrubínica). A situação se repetia com a menina. Realmente quando vi a criança ela estava um “canário belga” com menos de 24hs de vida. Solicitei exames laboratoriais para definirmos a conduta. Quando rebebemos o resultado dos exames os níveis de bilirrubina indicaram uma exsanguinotransfusão. Procedimento que consiste em trocar todo o sangue do recém nascido por outro sem as bilirrubinas em excesso. No nível em que estava a bilirrubina no sangue era grande a possibilidade de impregnar o cérebro da menina com bilirrubinas e desencadear o Kernicterus nela também. A exanguinotranfusão era um procedimento muito demorado que deve ser feito muito lentamente, pois do contrário acarreta riscos de descompensação cardiológica. Terminamos o procedimento lá pelas 6h da manhã. Para nós o dia laboral começava às 7h da manhã não interessando que horas se vai dormir na noite anterior. Os recém nascidos precisavam ser avaliados todas as manhãs e reavaliados à tarde e à noite. Após 12h do procedimento fizemos exames para controle. As bilirrubinas estavam perigosamente aumentando novamente e estava indicada outra exsanguinotransfusão. Terminamos o novo procedimento após 36 h quase que ininterruptas de trabalho. Tudo foi compensado e a criança escapou do Kernicterus. A felicidade dos pais transcendia o ato médico. Ganhei um bolo depois que recusei o dinheiro que o pai colocou no meu bolso. Ofereceram 53 um churrasco em Agudo/RS e novamente colocaram dinheiro no meu bolso. Mesmo explicando para eles que eu fiz o que tinha que ser feito e que aprendi e vivi uma grande experiência não mediam esforços para agradecer. Devolvi o dinheiro outra vez. Percebi que o meu aprendizado técnico junto ao conhecimento desenvolvido e a incorporação de tecnologia pela ciência médica não tem sentido se não proporcionar a vivência e o entendimento do que representa cuidar do outro. Para aquele casal ter um filho normal, sem sequelas neurológicas de algo que tínhamos capacidade de tratar foi muito bom. Conviver e testemunhar a felicidade de toda a família e ser apontado como responsável por este momento me fez louvar os avanços da ciência! Mesmo sabendo que a ciência biológica fragmentou o conhecimento médico vivi a satisfação de através da técnica e tecnologia proporcionar felicidade ao outro. Estes relacionamentos e experiências fazem com que tenha sentido ser médico. Agora me senti capaz de enfrentar o mundo, mesmo sabendo do que deveria enfrentar para nos sentirmos médicos. Não se conformar com a dor e sofrimentos causados pela vida e sociedade que os gera. E a luta continua... ou estava apenas começando num outro patamar de empoderamento pessoal. Passagem por Maravilha/RS e decisão de ir pra região metropolitana. Educação na vila Urlândia [...] união de parte da igreja, movimentos sociais e estudantes na busca da democracia, um microcosmos do que se passava no Brasil.(NARRATIVA AUTORREFERENTE). Segundo Ayres (2007, p. 44) “saúde e doença não são situações polares, os extremos opostos, positivo e negativo, respectivamente de uma mesma coisa”. A doença não é o contrário da saúde e vice-versa, ou seja, não falam da mesma coisa e também não falam do mesmo modo. Fazer equivaler saúde e doença a situações polares de uma mesma coisa, identificadas segundo uma mesma racionalidade é tão limitante para a adequada compreensão dessas duas construções discursivas e das praticas a elas relacionadas, quanto negar as estritas relações que guardam uma com a outra na vida cotidiana. (AYRES, 2007, p. 45). Atualmente, vivemos uma revisão crítica das práticas de saúde, recusando uma visão segmentada. É necessário que haja uma ruptura pragmática, a fim de superar o modelo médico tradicional. (AYRES, 2007). Ao mesmo tempo, as experiências de residência, tendo vivido toda a movimentação política que vivi, me fizeram perceber que a tecnologia não é por si só um problema, senão que se trata muito mais do problema de a tomarmos como fim e não como meio daquilo que constitui, efetivamente, nossa competência profissional: favorecer a busca de sentido e felicidade das pessoas. Ao comparar o paradigma da promoção da saúde com o da prevenção de doenças, dir-se-ia que o primeiro compreende “a saúde como um conceito positivo e multidimensional”, enquanto a saúde, com a ausência de doença, seria o segundo. Isto torna obscuro 54 o fato de a ausência ou redução de doença é, efetivamente, um dos indicadores que usamos para avaliar se estamos conseguindo promover saúde. [...] A polarização obscurece, portanto, que há uma dimensão positiva de saúde por detrás do conceito supostamente negativo de doença. (AYRES, 2007, p. 46). “O importante não é saber qual paradigma está centrado na saúde e qual está centrado na doença, mas saber a que se referem saúde e doença em cada um deles”. Deve-se entender o que realmente se está “fazendo ao falar de saúde e de doença em cada um deles”. (AYRES, 2007, p. 46). O que se questiona e critica no paradigma biomédico - no plano de sua operação das práticas de atenção à saúde é o modo como o discurso da doença monopoliza os repertórios disponíveis para o enunciado dos juízos acerca da saúde. (idem) Essa assimetria deixa à margem tudo que não for subordinável de modo sistêmico ao discurso biomédico. Saúde e doença têm seus sentidos já amplamente validados e aceitos entre os participantes de qualquer diálogo a respeito, já está validado intersubjetivamente. Conforme Ayres (2007, p. 50) “o contínuo e inexorável contato com o novo desacomoda-nos e reacomoda-nos ininterruptamente” na maneira como entendemos a nós mesmos, nossas relações e nosso mundo. Nisso consiste a riqueza de pensar a saúde numa perspectiva hermenêutica, onde a abertura aos múltiplos sentidos da saúde, garante que o conceito não se encerre numa definição técnico-científica categórica, mas que possibilite sua constante reconstrução como práxis humana e histórica. A saúde é (re)conhecida a cada vez, enquanto e porquanto se vive. São, portanto, da esfera da razão prática e não da razão instrumental, suas pretensões e exigências de validade discursiva. (GADAMER apud AYRES, 2007, p. 50). Salientase ainda, que quanto mais o cuidado se parece com uma experiência de encontro, de trocas dialógicas verdadeiras, quanto mais se afasta de uma aplicação mecânica e unidirecional de saberes instrumentais, mais a intersubjetividade ali experimentada retroalimenta seus participantes de novos saberes técnico-científicos e práticos. (AYRES, 2007, p. 53). O uso da tecnologia médica potencializa essa assimetria, que pode ser vivida não apenas como forma de dominação e silenciamento do outro, mas como forma de reinstalar a tensão e a contradição, fundantes da própria condição humana. De 55 certo modo, os anos 1980 possibilitaram, ainda que sem tamanha consciência disso naquele momento, uma aproximação complexa com essa condição multideterminada do fenômeno “saúde”. Não se trata de, de um lado, demonizar a tecnologia, tampouco de celebrá-la como redenção, de outro. O próprio desafio de construção da saúde no país passa por aí: assumir a tensão entre processos de modernização/tecnologização da saúde e a polissemia dos discursos sobre saúde e felicidade emergentes do campo social, sem com isso deixar de lado ou suprimir a variedade dos sentidos ligados ao tema. Conviver com a pluralidade dos discursos e encontrar formas de convergência possíveis, parece continuar sendo nosso grande desafio. 4.2 Os anos 1990... A medicina comunitária em Novo Hamburgo/RS Vinheta 1 - No início dos anos 90 do século passado vivi uma experiência impactante para meu entendimento de vida ao fazer o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) para o Curso de Especialização em Saúde Coletiva da Escola de Saúde Pública/RS. Éramos uma equipe de quatro colegas: um odontólogo, uma veterinária, uma assistente social e um médico. Era a época de implantação do SUS como sistema de saúde no Brasil. Nossa monografia intitulou-se “Percepções e Expectativas de Saúde dos Moradores Migrantes da Vila Palmeira”. Tentamos conhecer os conceitos de saúde de um grupamento humano oriundo do êxodo rural que veio à procura de emprego e moradia na indústria calçadista de Novo Hamburgo/RS. Os empregos na indústria calçadista tinham poucas exigências de qualificação. Podemos sintetizar as respostas obtidas na pesquisa como “ter condições de trabalho”. Ouvimos manifestações do tipo: [...] Podê trabalhá, não tê doença, não precisá ter remédio [...]. [...] saúde é importante pra trabalhá e não gastá com médico e medicamento [...]. [...] Não precisá ir ao médico, não tomá remédio, precisa tê saúde para sobrevivê [...]. Parte de população entende saúde como esperança de melhor qualidade de vida. [...] Saúde é prioridade em tudo. A pessoa que tem saúde é bem tratada, boa alimentação, higiene, limpeza [...]. [...] É bom ter saúde pra ajudá os outros. É tê mais disposição, mais energia, é felicidade tê saúde [...]. [...] Saúde é ter uma vida mais decente. A gente estar de bem com a vida, com a família, na comunidade onde se vive. Saúde de corpo e mente, é estar bem psicologicamente e fisicamente [...]. [...] Saúde é prevenção de doenças, todo tipo de vida que se leva, habitação, trabalho e não só curativa. Mas a maioria das pessoas não discute saúde [...]. Muitas das famílias visitadas eram de pacientes que eu atendia na UBS em que trabalhava nessa época. Compartilhar do espaço em que vivem foi gratificante. Muitas das moradias tinham precárias condições estruturais sendo constituídas de um único cômodo. Mesmo assim, comemos muita bolacha e bebemos muito refresco! Não foi possível não sairmos com a sensação de que “é preciso mudar o mundo”. A questão era por onde começar!? Entre várias possibilidades de atuação profissional, optei por ser 56 pediatra do SUS e tentar entender como acontece o processo saúdedoença nessas comunidades nas quais trabalho. Fui eu, médico, denominado “soldado de Deus”, e de mim esperavam que fizesse um correto diagnóstico e prescrevesse uma cura, mesmo que mágica. Os profissionais de saúde são depositários da esperança de minimizar a sensação de vazio estrutural que se relete em vazio existencial. Há uma transferência para o outro, a busca da resolução das carências, eximindose, assim, do protagonismo dessas tentativas. Para essas pessoas, porém, buscar o entendimento do porquê de suas vidas serem como são e querer mudar é fundamental. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). Ao longo de sua história, as ciências da saúde definiram, segundo critérios epidemiológicos, os temas de educação em saúde para apresentar às comunidades. Tratou-se, inicialmente, de uma perspectiva instrucionista, pouco sustentada na participação popular. Entretanto, para que possamos avaliar a adequação de conteúdos, precisamos identificar necessidades e desejos de conhecimento segundo as concepções de saúde de cada grupo humano. Nisso consiste o caráter eminentemente hermenêutico da saúde e também da educação. A educação possibilita o enriquecimento das relações entre partes, esclarece interpretações acerca da saúde dos indivíduos, estimula transformações de comportamentos e, a partir da troca entre o empírico e o técnico, modifica o entendimento de sentido de vida. Para Laurell (1982, p. 11), por processo saúde-doença da coletividade, entendemos o modo específico pelo qual ocorre no grupo o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente como consequência para o desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da doença. Definido desta maneira, o processo saúde-doença manifesta-se empiricamente de maneiras diversas. Por um lado, expressa-se em indicadores, tais como a expectativa de vida, as condições nutricionais e a constituição somática e, por outro, nos modos específicos de adoecer e morrer, isto é, no perfil patológico do grupo, dado pela morbidade ou pela mortalidade. Fazendo relatos de vivências nessa relação médico-paciente, tentamos entender e conhecer as manifestações de princípios e moral, as quais determinam comportamentos. Nós, “filhos da ditadura”, ou aceitávamos as restrições impostas à liberdade de expressão, às ideologias, à liberdade de organização social, de direitos individuais, ou iríamos para o “enfrentamento”, o qual determinava concepções e comportamentos. Achávamos que a “tal” felicidade seria alcançada a partir de uma redistribuição de renda, da reforma agrária, da democratização do poder, do acesso 57 universal à educação e à saúde, dos direitos humanos e tantos outros. O importante era que a autonomia, o desenvolvimento do indivíduo e o entendimento de que o conhecimento somente é possível com liberdade, passariam obrigatoriamente por uma socialização dos meios de produção e de toda a estruturação social, enfim, da vida social. As “lutas” eram por sonhos abstratos, como liberdade, igualdade, emancipação, paz e amor. Hoje me pergunto: será que o capitalismo, a individualização e a tecnologia, formataram o homem livre e autônomo que buscávamos? De qualquer maneira, os dois caminhos tiveram como fim a felicidade do homem. O homem moderno não remete a tal felicidade para o futuro, pois o que vale é ser feliz agora! Gozar o presente! Com a complexificação do conhecimento, da tecnologia, a globalização do capitalismo e a emergência cada vez mais marcante de uma psiquiatria biológica, parece que vivemos diante de novas formas de atribuição de sentido às nossas próprias vidas. Temos uma aparente oferta infinita de oportunidades, e quando temos muitas opções, precisamos usufruí-las na maior quantidade possível, mesmo assim, ficando com a sensação de que não temos tempo para usufruí-las em sua totalidade. Em resumo: a crescente oferta de possibilidades de usufruir do presente, nos fez concomitantemente ansiosos e inseguros, aparentemente esvaziados de projetos coletivos. O entendimento dessa mutação do coletivo para o individual, do racional para as relações dialéticas entre pessoas, é uma das procuras de um “dinossauro” que sonhou com a felicidade conquistada pelas lutas utópicas; lutas pela libertação e plenitude do outro. E a luta continua; porém, em vez da saúde, é a educação que me possibilita a transformação da sociedade – sociedade feita de indivíduos empoderados, mas sociedade. A sensação que ficou é de que o capitalismo, financiando e estimulando o conhecimento científico, acarretou grandes mudanças e facilidades na vida cotidiana, especialmente as ligadas ao consumo. Contudo, operários e o “lúmpen” foram excluídos de muitas das mudanças acarretadas pelas novas tecnologias. As necessidades estruturais e o nível de educação e de renda, ainda são preocupações prementes dos indivíduos moradores de periferia, ocasionando entendimentos e comportamentos diferenciados. Quando se fala em desigualdade social, de um modo geral estamos falando de situações que implicam algum tipo de injustiça, diferenças estas que não são justas porque estão ligadas a características sociais que, de alguma forma, colocam 58 alguns grupos em desvantagem em relação a oportunidades de ser e se manter sadio. Segundo Barata (2009), as desigualdades sociais em saúde, de modo geral, estão ligadas à organização social e refletem o grau de injustiça existente em uma sociedade e se manifestam de maneiras diversas no que diz respeito ao processo saúde-doença. A equidade na oferta de serviços de saúde implica a ausência de diferenças para necessidades de saúde iguais (equidade horizontal) e a provisão de serviços prioritariamente para grupos com maiores necessidades (equidade vertical). Isso significa que todos devem ter acesso e utilizar os serviços indispensáveis para resolver as demandas de saúde, independentemente do grupo social ao qual pertençam, e aqueles que apresentam maior vulnerabilidade em decorrência da sua posição social devem ser tratados de maneira diferente para que a desvantagem inicial possa ser reduzida ou anulada. (BARATA, 2009, p.25) Baseando-se na ideia de que saúde é um produto social, surgem as explicações sócio-históricas das desigualdades. Algumas formas de organização social são mais sadias do que outras. Assim, os mesmos processos que determinam a estruturação da sociedade, são aqueles que geram as desigualdades sociais e produzem os perfis epidemiológicos da saúde e doença. (BARATA, 2009). O que se colocou em questão a partir dos anos 1990, foi uma crescente individualização das problemáticas sociais, associada a um descrédito das lutas políticas coletivas. Na contramão da tendência predominante, minha trajetória continuava apontando para a necessidade de fortalecimento dos vínculos comunitários e de uma perspectiva efetivamente coletiva de compreensão e práxis da saúde. Vinheta 2 – Certa feita, em novembro de 1993, estava eu e alguns colegas tentando iniciar um contato com moradores de um bairro periférico de Novo Hamburgo/RS, vila com sub-habitações, irregularidade da posse de terra, com problemas de infraestrutura urbana, abastecimento de água, saneamento, transporte, atendimento na saúde, lazer, etc. Através do posto de saúde marcamos um encontro com o presidente da vila com a intenção de explicar nossa inserção na comunidade. Fomos em dois carros, o fusca do presidente e o meu! Ele foi na frente e parou logo adiante e disse para um grupo que estava encostado num boteco: “vocês cuidem do carro dos doutores, tirem as pedras da rua [...]”. Mais adiante uma mulher parou o carro do presidente e relatou-lhe um problema de briga de família e pediu sua intervenção. Ele respondeu que trataria do caso mais tarde e seguimos percorrendo algumas ruas até chegarmos a sua casa para uma primeira conversa. Conversamos sobre os propósitos de nosso trabalho e a possibilidade de subsidiar futuros trabalhos da instituição municipal. Enquanto tomávamos chimarrão chegou um morador da vila a fim de pedir permissão para trazer a mudança de uma cunhada para a vila. O presidente 59 ouviu sua história e deu permissão. Disse-lhe que se os fiscais tentassem impedir a mudança eles deveriam chamá-lo. Contou-nos sua história de migrante, da própria vila e da associação. Falou da saúde de sua esposa que iria receber a visita dos “irmãos da fé” para fazer uma reza por sua recuperação. Estávamos dando por encerrada a visita quando ele diz de sua boa receptividade com o trabalho proposto, pois achava que era preciso conversar sobre isso e foi então que ele diz que tinha muitas coisas que lhe davam saudade da colônia, mas que uma ele havia trazido junto! Nos leva até o pátio da casa e fomos surpreendidos quando avistamos 10 gaiolas com galos de rinha e um ringue para lutas. Este é meu lazer e meu conhecimento (poder) na vila, eu crio galos de rinha [...]. Percebi que estavam abertas as portas, mas o que fazer com o fato de ser um ringue de galos? Deixamos os acontecimentos definirem. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). Ao se tornar consciente da finitude e principalmente da incompletude do ser, o homem busca compreender o processo que é viver e o sentido da vida. Para que ocorra a autonomia do indivíduo, o homem se utiliza da compreensão do que lhe origina e compõe suas interpretações. Ao invés de determinismo, utiliza este saber para definir e optar pelas oportunidades que a vida lhe oferece. A consciência de que existem valores e verdades que, através da história, foram possibilitando a formação de uma moral que regra e disciplina o comportamento humano na sua vivência em agrupamentos humanos. A compreensão de que estes valores são determinados pela hegemonia, pelas elites, grupos dominantes, possibilita a tomada de atitudes de forma mais autônoma possível. O entendimento de que somos reflexos da história, nos possibilita o arbítrio nas escolhas, e a racionalidade humana possibilita a evolução do conhecimento, através da reflexão e das mudanças de paradigmas. Na evolução do conhecimento, o paradigma aristotélico (idealização quase ascética) dá lugar, na Modernidade, para um outro paradigma: a Ciência. As concepções científicas acabam homogenizando o comportamento. No mundo contemporâneo, acompanhamos o surgimento de um novo paradigma, segundo o qual a divisão tão categórica e hierarquizada entre ciência e saberes comuns, já não se sustenta. Santos (1987) refere que este paradigma chamado por ele de “emergente”, reúne conceitos sociológicos, antropológicos e possibilita a compreensão de várias facetas do conhecimento, inclusive aquelas que denomina como autobiográficas. Afinal, para ele, todo conhecimento apenas se legitima na medida em que faz sentido no conjunto de uma existência singular, social, histórica e subjetivamente determinada. Procurando entender manifestações culturais e suas representações, temos que considerar que a “noção de cultura, [...], é necessária, [...], para pensar a 60 unidade da humanidade na diversidade além dos termos biológicos”. Serve para compreendermos identificações que servem para definir estrutura social. (CUCHE, 2002, p. 10). Conforme Cuche (2002, p. 45) “os comportamentos são orientados pela cultura”. Os saberes acumulados e transmitidos pela humanidade são a soma da cultura. Um determinado comportamento ou costume particular só pode se tornar claro, “se relacionado ao seu contexto cultural. Trata-se assim de compreender como se formou a síntese original que representa cada cultura e que faz a sua coerência” (idem). Ainda segundo o mesmo autor, “cada cultura é dotada de um “estilo” particular que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas não apenas desta maneira” (idem, 2002, p. 45). Este estilo também vai influenciar sobre o comportamento das pessoas, e não existe cultura sem sentido para aqueles que se reconhecem nela. Os indivíduos têm certas necessidades psicológicas como: alimentar-se, reproduzir-se, proteger-se, etc., que determinam necessidades fundamentais. A cultura constitui, precisamente, a resposta funcional a esses imperativos materiais inarredáveis. A personalidade do individuo não se “explica apenas por seus caracteres biológicos, [...], mas pelo “modelo” cultural particular a uma dada sociedade que determina a educação da criança. Desde os 1° instantes da vida o indivíduo é impregnado deste modelo, por todo um sistema de estímulos e proibições”. (CUCHE, 2002, p. 81). O que se modifica de uma cultura para outra é a predominância de um tipo de personalidade. “[...] fundamento cultural da personalidade, [que] cada indivíduo o adquire através do sistema educativo próprio de sua sociedade”. (CUCHE, 2002, p. 83). O conjunto de fenômenos, denominado de aculturação, “resulta de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos modelos (patterns) culturais iniciais de um ou dos dois grupos” (idem). Conforme Cuche (2002, p. 137), cada cultura sente, quando em “situação de contato cultural o processo de desestruturação e depois de reestruturação, é em realidade o próprio princípio da evolução de qualquer sistema cultural”. Toda cultura é um processo de constante permanência de construção, reconstrução e desconstrução, o que vai variar é a importância de cada fase. 61 Os anos 1990 representaram um importante momento de desconstrução das referências culturais hegemônicas, até então marcadas especialmente pela crença no discurso científico, com sua pretensão de superioridade e promessa de progresso. Um certo desencanto diante dos grandes ideais políticos revolucionários não realizados, uma crescente globalização do capitalismo, que passou a desconhecer fronteiras ideológicas claras e uma, cada vez maior, privatização/individualização das questões políticas, fez com que as estratégias de educação popular em saúde se confrontassem muito claramente com contradições e antinomias cada vez mais desafiadoras. Os tempos de medicina comunitária, com aspirações quase “redentoras” dos anos 1980, foram dando lugar a uma consciência, cada vez mais clara, de que os valores de uma sociedade neoliberal se reproduzem também nas formas de (des)organização popular entre os “oprimidos”. Os próprios saberes e organizações populares incorporam, muito facilmente, os valores de um neoliberalismo capitalista, que aposta na saída individualizada, onde o empoderamento comunitário, muitas vezes, sucumbe ao poder pessoal de uma ou outra “liderança” carismática ou autoritária, que passa a vender a (falsa) sensação de segurança em um mundo cada vez mais desorientado e perigoso. Vinheta 3 – Após este primeiro contato de familiarização e através de uma amostragem intencional iniciamos nossas visitas à vila. Nossa intenção era na troca de saberes. Tentarmos organizar ações que respondessem às necessidades desta população. Ainda há um estranhamento do fato de o espaço de acontecer este encontro com um médico ser fora do consultório. Nesta época a população da vila, área invadida, era oriunda da zona rural e o êxodo foi para Novo Hamburgo, pois as fábricas de calçado absorviam muita mão de obra sem necessidade de qualificação. Eram costureiras, passadores de cola, matrizeiros, etc.. Trouxeram seus sonhos e concepções de vida. A visita ao presidente surtiu seus efeitos, pois quando fomos para nossa primeira visita o fato de as ruas não serem identificadas e as referências desconhecidas para nós, tivemos que buscar indicações. O bar em que paramos para perguntar estava cheio de homens bebendo e jogando bilhar. Sentimos o silêncio e uma certa apreensão conosco. Pessoas estranhas não eram bem-vindas por lá! Após cumprimentá-los perguntamos sobre a casa da moradora que procurávamos, depois de instantes de vacilo um dos homens falou: - “é o dotôr do postinho”. Desfizeram-se as faces tensas e com contida cordialidade nos explicaram como chegar lá. Após idas e vindas aos poucos fomos nos familiarizando com a vila. Conseguimos um mapa não oficial. Marcamos nossa visita com Dona Maria, pois ela pertencia ao clube de mães, o qual era assessorado por duas religiosas da pastoral da saúde da igreja católica. Tínhamos ido em uma reunião deste grupo para explicar-lhes nosso trabalho e ela nos convidou para visitá-la. A casa de Dona Maria ocupava um terreno maior que o dos vizinhos e ao entrarmos pelo pequeno portão avistamos um 62 terreno com muitas plantas sendo cultivadas, identificamos margaridas, roseiras, babosa, guaco, agrião e outras que não reconhecemos. Encontramos Dona Maria, uma mulher de uns 50 anos, colhendo alguns chás e prontamente largou de seus afazeres e veio nos receber. Era uma tarde quente de verão e ela nos ofereceu um refresco, pois o ventilador da sala não dava conta do calor. Gosto muito de falar sobre saúde, disse-nos: “Saúde é prioridade em tudo! É bom ter saúde para ajudar os outros. É tê mais disposição, mais energia, é felicidade tê saúde”. “Estou sempre lendo estes folhetos que distribuem nos postos e ouvindo programas de rádio”. Conversamos sobre suas plantas e ela conta-nos que aprendeu tudo lá fora com sua mãe e avó. “Era muito difícil levar filho no médico, tudo é muito longe e então a gente ia usando as plantas que se tem em casa. Aqui a gente adoece mais, tem o problema do esgoto, dos mosquitos, do alagamento e mesmo que tenha mais recursos na saúde é difícil conseguir uma ficha. Tem-se que ir às 4-5 horas ou comprar um lugar na fila. As crianças sempre tão com bronquite e gripe”. Percebemos que existia um espaço vazio no conhecimento do SUS como conquista de cidadania. “Já vi isso escrito na lataria de um carro da prefeitura” respondeu-nos ao indagarlhe sobre o SUS. A conversa corria solta quando bateram à porta. Elas passaram para a cozinha e era uma mulher aflita, pois seu filho estava com tosse e febre. Sem constrangimentos ela atendeu a mãe, lhe alcançou algum chá, lhe orientou usar paracetamol se tivesse febre e se despediu dizendo-lhe: “Se não melhorar leva ao médico!!! Explicando que ela só atende “coisas simples” e que muitos vem na madrugada pedir ajuda, sorria. Uso chá, benzedura, orações de cura e se precisar procuro um médico. Ajudo os doentes da vila”. Sabíamos do “medo de falar” das pessoas que exercem qualquer prática alternativa na vila, pois eles sabem da resistência das ciências ao conhecimento empírico. Percebemos que ela estava satisfeita com o fato de sermos da “Prefeitura”, como se nossa visita respaldasse sua prática. Depois de mais algum tempo nos despedimos prometendo outras visitas. Como contestar que a fitoterapia funciona, que as benzeduras ajudam a espiritualidade, que uma prática empírica organiza o conhecimento da sua comunidade? (NARRATIVA AUTORREFERENTE). Dona Maria comentou: “Gosto muito de falar sobre saúde”, “Saúde é prioridade em tudo!”. “É bom ter saúde para ajudar os outros”. “É tê mais disposição, mais energia, é felicidade tê saúde”. Ela sinalizou a percepção de saúde como sinônimo de felicidade. Ao refletirmos sobre felicidade, devemos considerar que felicidade é um índice inteligível de orientação prática a formas de vida que nos satisfazem desde uma perspectiva, simultaneamente, pessoal e compartilhada. Para a humanização, a noção de “projeto de felicidade” remete a experiências vividas, valoradas positivamente. Experiências essas que, frequentemente, independem de um estado de completo bem-estar ou de perfeita normalidade morfofuncional. É justamente essa referência à estreita relação entre experiência vivida, valor e aspirações e às relações entre os diversos valores que nos orientam e os processos de adoecimento e seu cuidado e prevenção, que parece ser o núcleo mais essencial das propostas de humanização e seu ideal de transformação. (AYRES, 2005). 63 É preciso assumir a noção de “projeto de felicidade” como uma construção de caráter contrafático, neologismo de Habermas que lança mão da expressão sempre que busca referir-se a “valores quase transcendentais”, isto é, a ideias ética e moralmente norteadoras de aspirações universais, mas construídas a partir da percepção do valor para a vida humana de determinadas ideias ou práticas, a partir do momento, e na exata medida, em que estas são obstaculizadas, negadas por alguma experiência concreta. Isto é, elas são percebidas justamente porque foram negadas e, ao o serem, mostram-se fundamentais. (AYRES, 2005) A noção deve ser entendida como uma construção contrafática, ou seja, que deve recusar qualquer tentativa de definição a priori de seus conteúdos. Evitando que se queira determinar, de modo objetivo e universalista, o que seja felicidade e num outro extremo, um idealismo excessivamente abstrato, descolado das experiências vividas. A felicidade não pode ser vista, enfim, como um bem concreto, uma entidade. A vida em sociedade é que fornece para nós, seres racionais, as referências objetivas pelas quais orientamos nossos projetos de felicidade. Em contraponto, o paradigma biomédico tem as bases filosóficas com os seguintes princípios componentes: a) homem como manipulador da natureza, com direito a manipulá-la em seu próprio proveito; b) o homem separado do seu meio ambiente e elevado a objeto exclusivo de investigação médica; c) uma visão mecanicista do homem que exige enfoque manipulador da engenharia para restaurar a saúde e que enfatiza o papel das ciências naturais no estudo do homem e suas doenças; d) o conceito ontológico da doença que fundamenta o estudo das doenças sem ter em conta os fatores relacionados com o hospedeiro. (STOTZ, 1993, p. 1). “O modelo de ser humano da biomedicina é o organismo humano, uma abstração analítico-mecanicista construída ao longo do tempo da modernidade”, isto no modelo de organização de uma sociedade arraigada no “modo de produção capitalista e no desenvolvimento correspondente das práticas científicas, políticas e institucionais”, que lhe concederam formato e legalidade a partir do século XVII, até nos dias atuais. (STOTZ, 1993, p. 2). A busca de respostas na saúde coletiva foi o necessário para que o entendimento fosse compreendido. A abordagem da Saúde Coletiva e a corrente da Medicina Social, que está em sua origem (Laurell, 1989), diferencia-se das correntes 64 vinculadas ao paradigma da história natural da doença, pela afirmação da historicidade do social na determinação da saúde da população (CARVALHO, 2002). Para Paim (1980), a Saúde Coletiva tem que levar em conta a diversidade e especificidade dos grupos populacionais e das individualidades com seus modos próprios de adoecer. E que não passam, necessariamente, pelas instâncias governamentais ditas responsáveis diretas pela saúde pública. A Saúde Coletiva compreende um articulado conjunto de práticas científicas, técnicas, ideológicas, culturais, econômicas e políticas, desenvolvidas no âmbito das instituições de saúde, da academia, dos institutos de pesquisa e das organizações da sociedade civil. (PAIM apud CARVALHO, 2002). É neste contexto de agravamento das contradições sociais, que os anos 1990 nos fizeram encontrar a perspectiva da medicina comunitária atrelada à Saúde Coletiva, já que não se trata apenas de pensar o médico “na comunidade”, mas de uma reconstrução da própria noção de comunidade e de coletivo, a partir da qual é possível pensar saúde para além da dicotomia opressor/oprimido ou científico/popular. Saúde implica projetos coletivos de felicidade, que envolvem necessariamente o enfrentamento das contradições da cultura contemporânea, a saber, os desejos de satisfação individual, ascensão social e consumo, não desvinculados do bem-estar comum e da reinvenção de instâncias coletivas de ação política. Vinheta 4– Passaram-se alguns dias até retornarmos à vila e nesta altura as pessoas já sabiam que estávamos conversando sobre saúde na vila e a cada dia se tornavam menos desconfiadas com nossa “bisbilhotice” nas ruelas e becos. Desta vez fizemos diferente, pois fomos convidados para participar de uma reunião do grupo de mães. Chegamos num pavilhão que servia tanto para as reuniões da associação como para grupo de mães e eventos religiosos. Antes que eu começasse a falar o pastor nos apresentou como “o doutor e sua colega”. Senti que estava em casa quando o pastor disse: -“Meus senhores e minhas senhoras, temos aqui o “doutor do postinho”. Como sabem médico é um soldado de Deus, ele dá os conselhos que Deus ensina nos livros. O “doutor” veio falar das doenças e das “saúdes”. Ele fala o que é certo para a saúde dos irmãos de nossa irmandade”. Aleluia irmão!!! O grupo estava reunido para costurar doações de roupa para um brechó, mas prontamente largou suas agulhas para a reunião. Fizemos uma rodada de apresentações e iniciei os debates falando nos determinantes da saúde e dos direitos que a construção do SUS possibilitaria à inclusão dos usuários na concepção de cidadania. Não foi difícil falarem afinal algumas eram mães de pacientes que eu acompanhava no posto. A 1° a falar foi dona A. V., esta geração foi a 1° a chegar da zona rural, ela começa dizendo: “- Quando vim morá aqui, isso tudo era banhado e mato, tinha uma e outra casa. Agora é um monte de casas e becos uns por cima dos outros”. “- Lá fora a gente enxerga a terra encosta no infinito, tem arvoredo e criação e a vida é mais tranquila”. Outras mulheres foram 65 relatando: “- Se o vizinho é recém-chegado da colônia a gente pode sair tranquilo que eles reparam a casa da gente. Aqui tem tiroteio, brigas, balas perdidas, assassinatos e assaltos. “- Quem vem do interior não conhece a lei do silêncio”. Após alguns relatos percebemos que o cotidiano tranquilo do interior aos poucos desenvolveu um medo às represálias e agressões e o espírito comunitário acaba se transformando num “espírito de isolamento”. “Aqui na cidade a gente fica mais atacada dos nervos com esses tiroteios e toda violência que tem”. “- Aqui se houve o barulho dos tiros, no interior se ouve os passarinhos, se acalma”. Sentimos que se iniciava a cultura da violência entre os moradores. A conversa foi muito participativa e aos poucos as crianças foram chegando perguntando pelas mães. Depois de alguns safanões retomamos nosso diálogo e dona R. segue falando: “Sabe dotôr, aqui é mais difícil criar os filhos, eles se tornam mais rebeldes”, complementado por N. “- Na roça eles trabalham. Aqui saem pra rua e se juntam com outras criançadas. A gente trabalha fora o dia todo, não consegue controlá”. Lembro delas comentarem que o fato de terem casas de poucas peças e a falta de um pátio as obrigavam a deixarem seus filhos na rua. O menor convívio fazia com que “controlassem” menos as crianças, “- Lá fora não tinha maconheiro e aqui nossas crianças andam por aí, nem sabemos com quem, os maiores acabam ensinando coisas para os pequenos”. A reunião já passava da hora e meia que havíamos programado e o pastor começou a ficar impaciente pois haveria um culto após o término da nossa atividade. Nos despedimos com a promessa de retornar numa outra oportunidade. Tentamos através de uma pesquisa ação, reflexãoação-reflexão, trocarmos conhecimentos onde o dito não existia pronto para ser dito e foi produzido na relação entre sujeitos que participaram de nossos encontros. Após organizarmos nossos relatos, nos reunimos com técnicos do posto de saúde para interpretarmos os relatos e produzimos uma proposta de ações para os gestores. Visamos facilitar acesso e estimular a autonomia através da educação popular. Fomos até a Secretaria da Saúde municipal, mas naquela época os gestores nos desestimularam a levar adiante nossa proposta, pois iríamos “mexer” com uma comunidade irregular de invasão e a prefeitura não poderia agir. Segundo eles, éramos funcionários do Município, antes de tudo. E eu que pensava que, antes de tudo, éramos cidadãos. A burocracia venceu! (NARRATIVA AUTORREFERENTE). As percepções do processo saúde–doença, mesmo que não conceituado, muitas vezes transcendem o conceito biologicista do processo pelos participantes da reunião. As pessoas nos davam, muito claramente, o retorno de que saúde tem relação direta com âmbitos da vida que em nada se restringem às alterações morfofuncionais. Saúde tem a ver com projetos de felicidade, individuais e coletivos, com modos de existir na cidade, com modulações das relações sociais mediadas pelas compreensões que construímos a respeito do que estamos vivendo. A equivalência de saúde e doença como situações polares opostas de uma mesma natureza de fenômenos, identificados segundo uma mesma racionalidade, é tão limitante para a adequada compreensão dessas duas construções discursivas e das práticas a elas relacionadas, quanto negar as estreitas relações que guardam uma com a outra na vida cotidiana. (AYRES, 2007, p. 43). 66 Ao fazer-se comparação do “paradigma da promoção da saúde com o da prevenção das doenças”, entenderíamos a “saúde como um conceito positivo e multidimensional” e o segundo “seria a ausência de doença”. Entende-se que há por traz do conceito de doença, uma dimensão obscura positiva. (AYRES, 2007, p. 46). Ayres (2007, p. 60) define saúde como a busca contínua e socialmente compartilhada de meios para evitar, manejar ou superar de modo conveniente os processos de adoecimento, na sua condição de indicadores de obstáculos encontrados por indivíduos e coletividades à realização de seus projetos de felicidade. Para a conceituação biomédica da doença, essa pode ser caracterizada, sinteticamente, por um conjunto de juízos de caráter instrumental, orientados normativamente pela noção de controle técnico dos obstáculos naturais e sociais a interesses práticos e coletividades, tendo como base material o conhecimento e domínio da regularidades causais no organismo (corpo/mente/meio )e, como forma de validação, uma serie bem definida de critérios a priori para o controle das incertezas. (CAMARGO JÚNIOR apud AYRES, 2007, p. 46). Segundo Ayres (2007, p. 50) deve-se “entender que pelos termos saúde e doença estamos nos referindo a construções linguísticas oriundas de esferas diversas de racionalidade em um mesmo campo da experiência humana”, a entender de forma positiva que esses termos tratam de diferentes coisas e que ao mesmo tempo são indissolúveis. Pode-se considerar que o fenômeno humano é uma complexidade não passível de ser reduzida a elementos mais simples, mas um todo, que deve ser abordado como tal, chegaremos à conclusão de que as diferentes ciências humanas, entre as quais se deveria incluir a biologia humana, lidam com um mesmo e único fenômeno. (BLEGER apud VAISBERG, (s/a), p. 3). Como manifestação do humanismo, o projeto científico fundamentou-se em dois propósitos. “O primeiro deles diz respeito à crença de que a ciência emanciparia a humanidade de várias formas de superstição, obscurantismo e autoritarismos”. O outro é a certeza de que um crescimento da extensão do mundo natural mudaria a vida do ser humano, “trazendo mais conforto, segurança e qualidade”. (VAISBERG, (s/a), p. 8). 67 Segundo Vaisberg (s/a, p. 9) a noção de progresso, devido a “vicissitudes do sistema capitalista, designada como passagem da ciência à técnica, que consiste no desaparecimento dos fins em proveito dos meios”. A psicopatologia se constituiu como ciência moderna e aliou-se, preferencialmente, à crença já existente, “de que o sofrimento psíquico teria, forçosamente, uma base material”. (VAISBERG, (s/a), p. 3). O desenvolvimento da ciência biomédica leva a um entendimento de saúde como ausência de doença. Sou saudável porque não tenho diabetes, por exemplo. Essa é uma concepção reducionista de saúde. Este mesmo desenvolvimento acarretou conhecimentos de estar saudável, diferentemente de sentir-se saudável. A educação em saúde oportuniza a discussão sobre estar/ser saudável e nos leva a compreender saúde como constructo social multideterminado e interferido diretamente pelas compreensões e interpretações que temos acerca de nossa própria condição no mundo. Nesse sentido, saúde implica uma abertura para a produção de modos de existir que reconhecem a pluralidade, a diversidade das condições e dos projetos de vida e antes de tudo, uma abertura para a compreensão sempre processual e inacabada da própria existência. A diferença entre patológico e normal é consequência positiva do “saber científico sobre a experiência da doença, da ciência do senso comum, afirmação possível graças a conceitos genéricos como os de meio interno, de homeostase e de metabolismo, vinculados ao modo de funcionamento do organismo”. (STOTZ, 1993, p. 2). Os anos 1990 permitiram avançar na direção de uma compreensão complexa da noção de saúde e de cidadania, não mais resumida à superação da opressão capitalista que se manifesta na infraestrutura social, mas também na desmontagem dos modos como o capitalismo se insinua e se instala nas nossas sensibilidades e modos de subjetivação. (GUATTARI; ROLNIK, 1993). A luta por exercer uma medicina efetivamente comunitária, passa inevitavelmente por uma reconstrução das formas de participação política que precisam reinventar a relação dos sujeitos com a cidade. Nessa década, ficaram muito evidentes os efeitos de um processo de êxodo rural das populações que passaram a habitar as periferias das grandes cidades, como promessa de progresso e ascensão, quase nunca realizada. A expectativa de uma medicina comunitária, atrelada à saúde coletiva e à educação em saúde se recoloca, e desta vez diante da necessidade, não apenas, de reconhecer e legitimar os saberes populares, mas de 68 aliar-se a eles na reinvenção de nossa relação com a própria cidade e as formas de existência possíveis. Comentando o filme “Os inquilinos”, de Sérgio Bianchi (2009), Maria Rita Kehl (2011) refere-se provocativamente a uma espécie bastante curiosa de sujeitos que marcam a vida nas grandes periferias urbanas: os “sem-cidade”. “O espectador percebe então que ali, onde o esforço individual parece capaz de garantir algum futuro, ali onde não falta ao necessário para o que se costuma chamar de uma vida decente, falta o essencial: uma cidade. A casa vai cair porque ao redor dela não existe uma cidade. Existem outras casas, muita gente, ruas e ruelas sem calçadas, ônibus passando, motoqueiros a zombar e apavorar os pedestres – mas não uma cidade.” (KEHL, 2011, p. 26). Uma apologia das boas intenções individuais – sempre bem vindas, mas não suficientes como ações isoladas – não pode substituir uma luta política, cada vez mais urgente, para que o Estado assuma suas responsabilidades na proposição e gestão de políticas, efetivamente, públicas capazes de tornar possíveis os projetos coletivos de felicidade para a vida nas cidades. A produção coletiva de saúde passa exatamente por aí. 4.3 Os anos 2000... Acentuam-se as contradições e os desafios Vinheta 1 – A reforma sanitária brasileira através do SUS foi se consolidando. A velocidade de implementação de um sistema de saúde como este que tenta garantir direitos de cidadania tem uma gama de fatores que lhe garantem um estágio mais ou menos implementado. Estratégias como a saúde da família, rede cegonha, ECA, creche, escola em dois turnos e outros são respostas da gestão pública às reivindicações sociais. Cônscio da minha responsabilidade e tentando um atendimento o mais humanista possível, paradoxalmente, fui levado a aumentar meu tempo com a assistência em detrimento da participação mais efetiva na gestão das políticas de saúde. Senti que o espaço de atendimento individual é sim um espaço de muitas trocas e de mútuo educar. Durante os anos 2005- 2008 trabalhei na UBS da Vila Iguaçu em Novo Hamburgo/RS. Ao abrir a porta do posto todos que precisam consultar entram para serem distribuídas as consultas do dia. É um “monte de gente”. Após serem distribuídas as consultas as pessoas sentam na sala de espera para serem chamadas pelo profissional procurado. Tudo na normalidade quando entra um homem de capacete na cabeça. Nada estranharam. Inesperadamente o homem com um revolver na mão manda todos deitarem no chão. Gritaria! Crianças chorando! Pedidos de misericórdia... rezas, ele quer saber quem é o proprietário de um carro estacionado na frente, identificam o proprietário (o ginecologista) e ele leva o veículo. Passado uns dois meses chamo uma mãe e seu bebê para fazer a consulta de puericultura. Ao término da consulta ela diz: - Doutor, eu sou vizinha do rapaz que roubou o carro do médico daqui. Ele pediu para eu avisar vocês que ele vem buscar um 69 vermelho que está estacionado aí na frente. É seu?”. Para minha sorte o meu carro era preto. Ele não veio. Os valores e a moral respondem muitas vezes às necessidades dos indivíduos se inserirem na comunidade em que vivem. Mesmo que a constituição brasileira defina como crime o roubo, não impediu àquela senhora trazer o recado como se fosse uma contingência. O que eu deveria ter respondido para aquela senhora? Dificilmente o ensino médico responde a esta pergunta. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). Muitas vezes, o médico acaba respondendo por demandas que transcendem questões técnicas. Através de relato de vivências que possuem valores dos mais variados, muitos desses questionamentos necessitam de respostas de teor ético, jurídico e cultural. “O médico foi um sacerdote na Babilônia, um artista ou artífice na Grécia Antiga, um clérigo e erudito na Idade Média, um cientista nos tempos modernos”. (GIGANTE, 2000, p. 233). E hoje? O médico, assim como o professor, parece ocupar esse lugar vacante da autoridade perdida, do saber universal, de alguma certeza buscada, incansavelmente, por pessoas desorientadas quanto ao sentido de suas próprias existências. Assim, nunca tanto quanto hoje, o papel do educador em saúde parece apontar na direção necessária de uma ação dialógica – tensa e problemática, é verdade – de onde possam emergir sentidos possíveis para a experiência de vida na cidade contemporânea. Vivemos a cultura da fragmentação e do imediatismo, das promessas falaciosas de encontro da felicidade plena, através da ascensão social e ampliação irrestrita do poder de consumo. No entanto, urge o desempenho de práticas educativas em saúde que auxiliem os indivíduos e as comunidades a reencontrarem algum sentido de vida comum, bem menos idealizado que a redenção pelo consumo ou pelo progresso econômico, apesar de ser também ele necessário. Segundo Gigante (2000, p. 233) “cada sociedade exige que seus médicos tenham conhecimentos, habilidade, dedicação aos pacientes, e qualidades outras a essas relacionadas”. A cada período, as tarefas a ele designadas e as regras de conduta que lhe são impostas mudam, assim como o papel do médico na sociedade. “A posição do médico na sociedade tende a ser constantemente modificada em decorrência de mudanças na cultura”. (GIGANTE, 2000, p. 233). A especialização médica tem gerado uma separação entre educação e saúde, binômio que, na atualidade, se retoma como uma articulação necessária. A educação aperfeiçoa no médico sua comunicação, linguagem e autonomia, além de facilitar seu relacionamento humano e contribuir no processo de conscientização das pessoas resgatando, assim sua função de educador. (RODRIGUEZ et al., 2007, p. 60). 70 O exercício da medicina é cada vez mais tecnicista, especializado, fragmentado e curativo, em contraposição à sua essência humana, geral, preventiva e educativa de que necessita a sociedade. Por sua vez, a educação tem estado à mercê dos avanços técnico-científicos, preocupando-se com a formação do homem para o mercado, no caso, competitivo e tecnocrático, mais do que para a vida, isto é, criativo, humano e com uma visão holística do saber. Compreende-se que a excessiva especialização médica favorece o distanciamento entre o médico e o paciente, impedindo a concepção da saúde como um processo global e menospreza o papel do médico como educador. (AYRES, 2007). O papel que a educação tem para o desempenho do trabalho médico, vai além da prevenção e responde três eixos que são: assistencial, psicológico, ético e de ensino e pesquisa. No eixo assistencial, a educação favorece a função milenar do médico como educador, promove sua comunicação com os pacientes e equipe de trabalho e facilita conhecer as pessoas segundo o grau de instrução, elementos cardinais para o acompanhamento médico e adesão terapêutica. No campo psicológico, a educação permite aprender a ciência e arte da comunicação, como requisito para obter uma boa relação médico-paciente. No campo ético, a educação permite o aperfeiçoamento da ética narrativa, além de cultivar a linguagem, meios e modalidade de comunicação, indispensáveis ao melhor entendimento e compreensão mútua na desigualdade e complexidade da relação médico-paciente. (AYRES, 2007). E, finalmente, no eixo ensino-pesquisa, todo médico é um professor e um pesquisador em potencial. O trabalho do médico, como educador em saúde, precisa passar pelo favorecimento da recuperação da “normatividade” dos indivíduos e dos grupos, concebida aqui conforme lhe dá sentido Georges Canguilhem (2010). Tratase bem menos de atingir uma condição de saúde como sinônimo de plenitude e ausência de sofrimento ou esforço – imagem vendida pelo capitalismo biotecnológico contemporâneo – e bem mais de reencontrar-se com critérios de normatividade, capazes de recompor o sentido de nossas próprias existências, recriando o próprio conceito de saúde hermeneuticamente. Aquilo que é normal, apesar de ser normativo em determinadas condições, pode se tornar patológico em outra situação, se permanecer inalterado. O indivíduo é que avalia essa transformação porque é ele que sofre suas 71 consequências, no próprio momento em que se sente incapaz de realizar as tarefas que a nova situação lhe impõe. (CANGUILHEM, 2010, p. 126). A “tarefa” da cultura contemporânea parece consistir em reencontrarmos sentidos para nossa existência em sociedade, buscando práticas de convívio que possibilitem o crescimento humano e projetos coletivos de felicidade. O adoecimento passa a ser tomado, não mais como mera categoria reveladora de disfunção orgânica, mas como a perda do empoderamento sobre a ação. Nesse sentido, nós, usuários, médicos, e outros profissionais da saúde, podemos nos reconhecer adoecidos, justo porque somos reféns de redes de significação que nos oprimem, impondo-nos ideais de saúde, beleza e felicidade, inatingíveis. Podemos estar doentes, “no sentido de não tolerar nenhum desvio das condições em que a norma é válida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente está normalizado em condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes”. (Canguilhem, 2010, p. 127). Em resumo, o sujeito doente seria aquele que está aferrado a um discurso único, a ideais únicos e opressores, a um modelo de vida que não se abre para a afecção, pela alteridade e todas as transformações criadoras que disso podem advir. Vinheta 2 – Como sabemos cabe ao médico pediatra acompanhar o nascimento das crianças na sala de parto. Após o nascimento é feita uma avaliação do crescimento do recém-nascido intra útero através do índice peso x idade gestacional. Os recém nascidos são então classificados como AIG (adequado para a idade gestacional), GIG (grande) e PIG (pequeno). Após a avaliação fui contente mostrar o bebezinho para a mãe e disse: Fulana, tua guriazinha nasceu muito bem porem é PIG! [porco, em inglês] Sem me dar conta do que falei, ouvi ela gritar: “- Porca é tua mãe doutor! Ela é bem limpinha... Minha sorte é que ela era velha conhecida e não “esquentou a cabeça”. (NARRATIVA AUTORREFERENTE). As pessoas falam e atuam sobre a saúde a partir de suas casas, de seus escritórios, de suas fábricas, de seus serviços, de suas ruas. Enfim, fazem saúde em sua própria língua! A problemática comunicativa está no centro das discussões sobre educação em saúde nos anos 2000. Nesse sentido é fácil perceber um poderoso conflito, na medida em que a saúde e a doença entendidas de acordo com a representação social dominante na época atual, como um assunto técnico-científico, a fala profissional é uma fala legal, socialmente autorizada (Bourdieu,1982), porque vinda de um espaço técnico-científico (Santos,1996), enquanto a 72 fala do individuo comum é uma fala leiga, desautorizada, prosaica, ilegal, deseducada porque proveniente de um espaço vivencial, da cotidianidade. (BOURDIEU; SANTOS apud LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2004, p. 36). Para Deslandes (et al., 2009, p. 644) “as desigualdades presentes nas trocas comunicativas em sua eficácia simbólica não se constrói no encontro entre falantes, mas se situam num conjunto de fatores que o antecede”. É numa relação dialógica que a linguagem se apresenta com seus diferentes significados para que haja entendimento entre o discurso médico e o não médico. Mas isso implica uma abertura do profissional no sentido de deixar-se tocar por todas as formas de narrar a existência e não a habitual exigência de tradução de todas as linguagens à gramática médica. Conforme Gonçalves (1999, p. 135), existe uma “estreita relação de interdependência e com os objetivos educativos de formação de cidadãos críticos e participativos estão os objetivos diretamente ligados ao exercício do diálogo e ao desenvolvimento da competência comunicativa”. É necessário que entendamos que na ação comunicativa há um “acordo acerca da validade para suas emissões ou manifestações, isto é, que reconheçam intersubjetivamente as pretensões de validade que se apresentam diante dos outros”. (HABERMAS apud GONÇALVES, 1999, p. 135-136). As pretensões de validade que o autor tem de colocar são: a) que o enunciado seja verdadeiro; b) que a manifestação seja correta em relação ao sistema de normas vigentes ou que o próprio contexto normativo seja legítimo (legitimidade ou retidão); c) que a intenção expressa coincida com a intenção do falante (veracidade). (GONÇALVES, 1999, p.136). Tais condições tornam possível uma interação efetivamente comunicativa e não instrumental, onde sujeitos são mutuamente interferentes e jogam de forma tensa a construção de novos sentidos. Ghedin (2004, p. 2) refere que a “linguagem não é o único instrumento de manifestação de existência, isto é, o discurso é uma forma de manifestação do ser, mas nem por isso é a única maneira de manifestação da realidade”. Por meio da linguagem, o discurso se processa e está cheio da própria realidade que o gera, “neste sentido, o ser da linguagem e o ser como linguagem já é, em si mesmo, um sentido dado pelo discurso”. Nossos modos de existir dependem diretamente dos modos de narrar e compreender o que somos. 73 Isso se dá no processo de educação em saúde e também no processo de investigação, como é o caso desta pesquisa. “Transformamos a natureza em cultura; a cultura em conhecimento e agora estamos projetando, pelo conhecimento, os significados da natureza que estão impressos no ser”. (GHEDIN, 2004, p. 2). Segundo ele, “o modo de ser no mundo é uma maneira de interpretá-lo e esta interpretação é uma tentativa de dar-lhe sentido que faça compreender-nos como parte dele”. (idem) O sentido produz os valores, ou seja, aquilo que satisfaz as necessidades, os desejos e os interesses dos centros de interpretação. Conhecer significa avaliar quais são as configurações que são necessárias e quais que são as prejudiciais. (GHEDIN, 2004). Em última análise, significa fazer escolhas partilhadas que estarão sempre sendo colocadas à prova por sua operação em uma prática social concreta. Vinheta 3 – Apesar de a estrutura assistencial possuir muitas carências o SUS nos possibilitou que ações respondendo pela atenção básica de saúde criassem espaços para educação em saúde e para o dialogo irredutível das diversidades culturais. Mesmo que dificilmente os médicos participem de atividades educativas, pelas necessidades assistenciais, as estratégias de Saúde da Família (ESF) estão tentando mudar este perfil. Participei de grupos na minha Unidade Básica de Saúde (UBS) com mães que procuravam o serviço. Tínhamos várias adolescentes entre as participantes e numa das reuniões discutíamos sobre as possibilidades de crescimento advindas da educação. A maioria delas abandou os estudos com a maternidade e o sustento vem dos pais delas. Foi então que AF, 16 anos, contou-nos um pouco de sua vida. Relatou que antes de ter seu filho, que estava com 5 meses, ela cuidava dos irmãos, apanhava da mãe por não cuidar direito deles, o padrasto queria “pegar” ela, na escola os guris passavam a mão nela. Agora que é mãe, o pai da criança estava preso, mas ela é respeitada, podia ir nas reuniões de mães, tinha consulta garantida e ninguém a importunava mais. [...] Prá que estudar? [...]. E eu continuei achando que deveriam... (NARRATIVA AUTORREFERENTE). Faz-se necessário que entendamos os indivíduos na sua integralidade, conhecendo seus condicionantes e determinismos, para numa troca dialética encontrarmos respostas adequadas aos anseios de cada um. Machado (et al., 2007, p. 336) aponta que “entendemos a integralidade no cuidado de pessoas, grupos e coletividade tendo o usuário como sujeito histórico, social e político, articulado ao seu contexto familiar, ao meio ambiente e a sociedade na qual se insere”. Os anos 2000 me fizeram encontrar realidades cada vez mais distintas da minha própria. O espanto diante de formas insólitas de constituir a própria existência, tão diferentes dos valores morais e das crenças políticas que alimentaram minha própria formação, me fez reconhecer a complexidade da condição cultural contemporânea e reavivar a 74 importância das práticas dialógicas e interculturais em saúde. Para que aconteça o processo de conscientização da realidade vivida, a relação dialógica possibilita a tomada de definições e troca de conhecimentos. Evidenciando a importância das ações de educação em saúde como estratégia integradora de um saber coletivo que traduza no indivíduo sua maior capacidade de empoderamento e normatividade. A educação em saúde requer o desenvolvimento de um pensar crítico e reflexivo, permitindo desvelar a realidade e propor ações transformadoras, enquanto sujeito histórico e social capaz de propor e opinar nas decisões de saúde para cuidar de si, de sua família e da coletividade. (MACHADO et al., 2007). Implica assim, que o médico coloque na berlinda sua própria moral, para entrar no jogo trabalhoso, conflitivo e enriquecedor, de dialogar com perspectivas de vida muito diferentes das suas. “Ainda destaca-se a imagem subjetiva como elemento balizador no sistema de saúde atrelado ao ideário do desejo, repleto de sentimento, de emoção e de motivação para a construção coletiva na defesa da saúde”. (MACHADO et al., 2007, p. 336). A integralidade é um conceito que permite uma identificação dos sujeitos como totalidades, ainda que não sejam alcançáveis na sua plenitude [...]. O atendimento integral extrapola a estrutura organizacional hierarquizada e regionalizada da assistência de saúde, se prolonga pela qualidade real da atenção individual. (MACHADO et al., 2007, p. 336). Machado (et al., 2007, p. 335) entende a “integralidade no cuidado de pessoas, grupos e coletividade percebendo o usuário como sujeito histórico, social e político, articulado ao seu contexto familiar, ao meio ambiente e à sociedade na qual se insere”. Neste sentido, torna-se evidente a importância da articulação em ações educacionais e em saúde, como recurso de produção de um saber coletivo que faz manifestar no indivíduo, sua autonomia e emancipação para o cuidar de si, da família e de seu entorno. Se os anos 1990 ainda nos interpelavam com a aparente necessidade de reconstrução dos grupos comunitários, das associações de bairro, dos organismos de classe ao modo da política “disciplinar”, típica da modernidade, a cultura contemporânea bem representada nos desafios dos anos 2000, parece desafiar-nos com outras formas de luta e participação. O trabalho da educação em saúde, e do médico nesse contexto, surge como aquele que precisa ocupar-se de interferir sobre 75 as máquinas de produção das subjetividades capitalísticas, em todos os níveis. (GUATTARI, 1987). Seja na intervenção individual com cada usuário, nos grupos, nas visitas domiciliares, na gestão das políticas públicas ou quaisquer outros níveis, trata-se de reinventar os sentidos da vida em coletividade, fazendo emergir o desejo de criar formas de existência disruptoras em relação à serialização “pós-moderna”, típica do capitalismo contemporâneo. Inventar relações humanas e com o próprio planeta, que valham a pena ser vividas e nos deem mais que uma “razão”, a sensação de que valha a pena estar vivo. Vinheta 4 – Mesmo que a interface entre as várias profissões da área de saúde não oportunize desenvolvermos um trabalho multi e interdisciplinar tão efetivo quanto gostaríamos, tentava participar de outras atividades além do atendimento. Geralmente os médicos preferem atividades na assistência e menos na educação e prevenção. Também por isso eram frequentes os convites para eu participar das reuniões, que principalmente as assistentes sociais da Secretaria faziam junto às associações de moradores. Numa sexta-feira depois do expediente da assistência (como se tal atividade não fizesse parte da função) fui convidado discorrer sobre saúde da criança e a reunião estava marcada para acontecer na casa de uma das moradoras. Quando chegamos a varanda estava com todos os assentos ocupados com homens e mulheres, o que não era frequente acontecer. O presidente da associação iniciou falando da importância de discutirmos as questões da saúde e a dificuldade de acesso ao atendimento dos serviços de saúde foi sua maior queixa. A.S. ressaltou as possibilidades e resultados obtidos quando as pessoas se organizam em torno de um bem comum. E eu aproveitei a deixa. Iniciei me apresentando e comentando da importância do cuidar da saúde das crianças, da responsabilidade dos pais e do Estado em oportunizar os avanços da ciência para elas. Como a acessibilidade me pareceu ser a maior preocupação falei do SUS para ressaltar os direitos das crianças ao cuidado e acesso universal aos serviços. Fui falando da integralidade, da equidade e controle social garantidos na constituição de 1988. Demorei para perceber que na empolgação estava me prolongando demais. Agradeci e imediatamente uma mulher levantou a mão dizendo: lá em casa as crianças estão tomadas de piolhos e não consigo acabar com eles, o que o senhor indica, hein?! Respondi e outra imediatamente questiona “- Catapora e varicela é a mesma coisa?” e as perguntas foram se sucedendo “- Como faço soro caseiro?”, ”- Bronquite tem cura?” “- Quem tem asma tem mesmo que tirar o gato das crianças?”. Respondi por cerca de 45min e ninguém falou e/ou perguntou sobre acesso, universalidade... (NARRATIVA AUTORREFERENTE). “Na busca de um modelo que mudasse o tradicional, flexneriano, o estado brasileiro foi adotando aos poucos o modelo de vigilância da saúde, o qual mais tarde foi proposto pelo ministério da saúde para o programa saúde da família (PSF)”. (MARQUES; LIMA, 2004, p. 19). 76 O modelo da vigilância tem, como estratégias de intervenção, a promoção da saúde (educação para a saúde, hábitos de vida, saneamento com qualidade de vida), a prevenção das enfermidades (pré-natal, diagnóstico precoce de doenças crônicas, vacinação) e a atenção curativa (tratamento de doenças, prolongamento da vida, diminuição de sintomas e reabilitação de sequelas). [...] Este modelo é alicerçado nos pressupostos de territoriedade, intersetoriedade, integralidade, hierarquização. [...] O sistema de saúde pensado como uma pirâmide composto por níveis de atenção, com complexidade crescente e ascendente, cuja integração contribui para a saúde da população. O primeiro nível, constituído pela ampla base, é o da atenção primária, onde se estabelecem os contatos entre os indivíduos, as famílias, o ambiente e os demais serviços; pode ser chamado de atenção primária ou básica [...]. Os demais níveis, prestam serviços mais especializados, cuja complexidade aumenta a cada nível. (MARQUES; LIMA, 2004, p. 19-20). A autonomia do usuário seria o resultado esperado na produção do cuidado, a autonomização. (MARQUES; LIMA, 2004). Como o trabalho em saúde é fortemente influenciado e comandado pelas relações entre sujeitos, há um diferente eixo analítico para a organização de acesso aos serviços de saúde. Merhy classifica as tecnologias em leves, leve-dura e dura. As leves são as tecnologias de relações como o acolhimento, o vinculo, a autonomização, a gestão como forma de orientar processos; as leve-duras são os saberes estruturados como a clínica, a epidemiologia, a psiquiatria, o taylorismo, o fayolorismo e as tecnologias duras são os equipamentos, as normas e as estruturas organizacionais. (MARQUES; LIMA, 2004, p. 22). Estas classificações não devem ser utilizadas hierarquicamente pela complexidade e importância, mas pela necessidade. Em saúde, o objeto é a produção do cuidado e, é por meio deste que se acredita obter a produção de saúde. É importante ressaltar que “tais utilizações não podem ser consideradas como boas ou más por si sós, ou ainda práticas sociais neutras, que não envolvem qualquer tipo de escolha”. Elas se organizam, preferencialmente, como mediadoras de relações. Por consequência, vale lembrar que o “ponto principal não é o uso preponderante na tecnologia médica”, mas nas relações entre sujeitos, qual é o papel que essa tecnologia significa na ordem do cuidado construído. (DESLANDES; MITRE, 2009, p. 646). Cada vez mais sustento a concepção de que as tecnologias para o cuidado, para a atenção básica, para as relações de produção de subjetividades disruptoras em relação ao capitalismo contemporâneo, passam por esse estreitamento de laços com os usuários, em qualquer nível. Falar do que efetivamente faz sentido no cotidiano dos sujeitos e encontrar exatamente aí a via de acesso para refletir sobre a 77 existência em sua complexidade. O educador em saúde precisa agir hermeneuticamente. As intervenções técnicas e tecnológicas, que atravessam nosso cotidiano, não são exclusivas do universo biomédico ou prerrogativa apenas presente nas ações de saúde. Utilizamos dispositivos técnicos de forma quase ilimitada e automática, sem problematizarmos quanto delegamos a estes dispositivos, como nos avisar de excessos. (DESLANDES; MITRE, 2009, p. 656). Para Deslandes (et al., 2009, p. 641) “o desafio colocado é o de aprender, reconhecer e negociar com o outro, que detém direitos, autonomia e estoque cultural peculiares”. Habermas (apud Deslandes et al., 2009, p. 643) critica-se as bases da racionalidade moderna, uma racionalidade instrumental que historicamente identificou, como finalidade do conhecimento, a intervenção e normatização, numa síntese de conhecer para dominar. Uma racionalidade, portanto, voltada pragmaticamente para o domínio e incapaz de viabilizar a emancipação humana. Deslandes (et al., 2009, p. 643), na eteira de Habermas, propõe no trabalho em saúde uma “racionalidade ancorada na comunicação, e em processos amplos de argumentação de onde serão construídas as validades dos discursos e das ações”. Desta forma, a razão comunicativa não se constrói somente pela lógica, envolve decisões existenciais, “um agir no mundo e uma ética de solidariedade contra o sofrimento e opressão. Situa-se como um modelo político em que a práxis e a palavra estão em profunda sintonia”. (DESLANDES et al., 2009, p. 643). É preciso estabelecer estratégias de aprendizagem que favoreçam o diálogo, a troca, a transdisciplinaridade entre distintos saberes formais e não formais, que contribuam para as ações de promoção de saúde a nível individual e coletivo. A educação em saúde como área de conhecimento, “requer uma visão corporificada de distintas ciências, tanto da educação como da saúde”. Ela é um campo multifacetado para o qual convergem diversas concepções, as quais espelham diferentes compreensões do mundo. (MACHADO et al., 2007, p. 339). Na relação educativa, a produção do conhecimento passa a ser coletiva, gerando uma modificação mútua, porque ambos são portadores de conhecimentos distintos. 78 A tecnologia de informação foi o que mais nos faltou. Se tivéssemos as redes sociais em vez de palanques, megafones e metralhadoras, usaríamos a internet para “incitar as massas” com gritos de guerra como “povo unido jamais será vencido”, “FMI fora daqui”, “diretas urgente para reitor e presidente”, “ianques go home”. Convocaríamos uma grande passeata de protesto para acabar com a ditadura. Bem, sonhar é livre; é liberdade de pensamento! Durante o período entre as décadas da 1950 e 1970, as tendências tecnocráticas foram influentes no mundo ocidental. Nos EUA e Alemanha, sociólogos afirmavam que a ideologia política havia se tornado irrelevante e que o importante era o ajuste da economia pelos economistas e o planejamento social pelos especialistas tecnocratas em ciências sociais. Não era nossa intenção. Esse passeio dos anos 1980 aos 2000, de modo geral, revela-se como uma tentativa de superação dessa herança tecnocrática das décadas anteriores, onde fomos levados a crer que a razão instrumental seria capaz de responder aos nossos mais caros anseios de autonomia e felicidade. 79 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Optar pela narrativa como metodologia desta dissertação, possibilitou que, pela memória, recuperasse momentos de minha história de vida e, em particular, da minha trajetória profissional. A interpretação dos acontecimentos testemunhados ou vivenciados nestes 30 anos de exercício da medicina, ajuda-me a entender os sinais da mudança de comportamento na contemporaneidade e a seguir pensando. A ampliação do conhecimento científico, a interpretação feita pela filosofia e pelas ciências humanas, e o desenvolvimento das ciências biológicas e das tecnologias, possibilitaram uma nova percepção da realidade às pessoas. A crença de que a felicidade só seria possível a partir da redistribuição de riquezas, do trabalho como transformador da natureza em arte ou utilitário, do coletivo hierarquicamente superior ao indivíduo, modifica-se para a crença de que nas relações entre sujeitos autônomos, encontra-se um espaço político no qual podemos produzir felicidade e fazer revolução. Certamente não se tratou de abandonar os sonhos de um mundo mais decente, justo e igualitário, mas de redimensioná-los e rever estratégias para alcançá-los. Ao vivenciar momentos de reflexão sobre existência, concepções de mundo, inserção na sociedade e expectativas sobre práticas profissionais, percebi que, enquanto exercia meu trabalho de cuidador do outro, o mundo transformou-se: mudou paradigmas, incorporou tecnologia, concebeu novos valores nas relações entre indivíduos e entre coisas e alterou maneiras de organização social. Tais mudanças alteraram meu entendimento de mundo e minha relação com ele. Se pensarmos que a vida é um processo de interações, qualquer alteração pode modificar tudo e todos. Mesmo que formatado com concepções positivistas e profundamente arraigadas na racionalidade instrumental moderna, cabe ao profissional da medicina tentar entender um homem multifacetado e em contínua transformação. E como não são possíveis a identificação e a avaliação de tudo e de todos, por ser esse um processo muito dinâmico, haverá sempre uma incompletude no conhecimento do outro, graças ao fato de que a vida continua tendo algo de misterioso e instigante. A medicina, na perspectiva das ciências naturais, na busca do entendimento do processo saúde-doença, vai transformando o outro, o paciente, em objeto; isolando-o e fragmentando-o, enquanto tenta avaliar e conhecer sua estrutura. 80 Porém, com isso acaba desarticulando o conhecimento médico que se desenvolve em inúmeras especializações médicas. A especialização excessiva dificulta a visão integral da pessoa. A incorporação de tecnologias duras pela saúde, também favorece o afastamento entre os usuários dos serviços de saúde e os profissionais, substituindo muitas vezes, a ação dialógica por solicitações de exames complementares, encaminhamentos desnecessários, uso abusivo de tecnologias bastante dispendiosas para o próprio Estado, além de um desperdício inestimável de força de trabalho, que poderia ser bem melhor aproveitada. Foucault já diz: “uma sociedade sem relações de poder somente pode ser uma abstração” (1982, p. 217). Isso implica que qualquer grupamento humano estará sempre permeado por relações de poder, visto que essa relação é resultante da vida social e intrínseca ao jogo do estar vivo. O que caracteriza o poder que estamos analisando é que traz à ação relações entre indivíduos (ou entre grupos). Para não nos deixar enganar, só podemos falar de estruturas ou de mecanismo de poder na medida em que supomos que certas pessoas exercem poder sobre outras. O termo ‘poder’ designa relacionamentos entre parceiros (e com isto não menciono um jogo de soma zero, mas simplesmente, e por ora me referindo em termos mais gerais, a um conjunto de ações que induzem a outras ações, seguindo-se uma às outras). (FOUCAULT, 1982, p. 217). Para mim, um médico formado na tradição tecnicista, foi muito desafiador tentar compreender como têm ocorrido as transformações nos conceitos estruturantes da vida na contemporaneidade. Na atualidade – estamos no ano de 2013 –, a cultura torna-se um fator de identificação entre grupos humanos. Ela influencia modos de organização social e, muitas vezes, transcende os conceitos de Estado e de Nação. Manifestações comportamentais expressas em linguagens diversificadas, comportamento sexual, educação, necessidades psicológicas, alimentação, etc., determinam respostas próprias a cada cultura, identificando-as e diferenciando-as simultaneamente. É com essa complexidade toda que trabalhamos cotidianamente. A identificação cultural é o que possibilita a sensação de pertencimento do indivíduo a um grupo social, e a maneira como esses signos são interpretados e sentidos, define as personalidades e as relações. Sabedores de que a cultura popular é uma tentativa de resistir à dominação cultural, procuramos identificar, por intermédio das manifestações comportamentais e morais, as concepções de vida de uma população de periferia urbana. As 81 manifestações aparecem na educação dos filhos dessa população: a partir dos desejos que essa tem para o futuro dos filhos, identificamos suas significâncias e seus conceitos. Como esta “troca de saberes” é dialógica, é importante observarmos as diversas linguagens utilizadas pelos sujeitos envolvidos. Quando não compreendida, a linguagem pode ser obstaculizadora dessa relação e, por isso, ela precisa ser reconhecida e “traduzida” continuamente num processo hermenêutico interminável. É um exercício de entendimento e de comunicação, e precisamos ser simples sem perder o conteúdo. No contato entre técnicos da saúde e comunidade, acontece a interação do conhecimento científico com o empírico. É um espaço informal de educação, no qual a educação popular pode responder às necessidades dessas trocas. Entendo que a educação popular promove a interação entre os sujeitos e que a compreensão da realidade possibilita a transformação. Ainda separamos o doente da doença, muitas vezes tratando como objeto que se dá a conhecer independentemente dos modos pelos quais o doente singulariza no corpo e nas formas de significá-la. Ainda separamos as técnicas e as tecnologias, empregadas na assistência à saúde, das razões e dos valores a partir dos quais são produzidas, e das maneiras, ás vezes, automatizadas pelas quais são utilizadas no diagnóstico e no tratamento de agravos à saúde. Ainda separamos ciência, política e sociedade, afastando formuladores das políticas de gestores e de profissionais, e estes dos usuários da saúde, como se não houvesse relação e interdependência entre suas posições, conhecimentos, competências e responsabilidades. (SOUZA; MENDES, 2009, p. 684). Assim, pude concluir, também, que a Política Nacional de Humanização se apresenta como a expressão de um Sistema Único de Saúde (SUS) que pode dar certo, cujo interesse organiza um conjunto de teorias e estratégias para a superação de problemas e contradições que ainda caracterizam os serviços e práticas de saúde. Um SUS que dá certo não porque já é o ideal ou por estar pronto, mas justo porque se oferece como campo problemático de tensão entre diferentes culturas de usuários e profissionais, possibilitando a criação de renovadas formas de existir e conviver. A Política de Humanização não pode, desta forma, ser apenas um valor abstrato, algo sobre o qual se inspiram e se orientam práticas, mas deve instituir a produção de mudanças concretas que reafirmem a humanização como um valor prático, na produção das subjetividades e na comunicação humana. Ou seja, a humanização se assenta sobre o binômio valor-prática social. 82 A experimentação e consolidação de políticas públicas mais equitativas, inclusivas e solidárias, é uma tarefa da nossa cultura, porque aposta na capacidade de enfrentamento das contradições sociais, cuja superação faz emergir novas relações, novas atitudes éticas e políticas, sustentáculos para a qualificação da vida e da experiência em sociedade. (PASCHE, 2009) É tarefa para os próximos vinte anos do SUS manter vivas e fortalecidas, manter pulsantes as forças sociais e políticas que criaram e sustentaram a reforma sanitária brasileira. Radicalizar o interesse coletivo na ação do Estado, afirmando a natureza pública das políticas sociais, convoca a sociedade civil a “jogar o jogo da política”, a disputar as orientações na condução da coisa pública, ação que se faz em todos os espaços singulares da micropolítica, mas também em outros planos, no interior e nos limites da máquina do Estado.” (idem, p.707). O trabalho desenvolvido nesta dissertação, permitiu ampliar minha concepção de saúde, abrindo-a para acolher a tensão própria da vida, que inclui faltas, conflitos, desafios, contradições, sofrimentos, mas também alegrias, vitórias, superações e conquistas. Enfim, uma concepção onde “estar curado não é, então, ser feliz – é ser livre, ou seja, aprender a exercer um poder sobre si que permita pensar e viver diferentemente”. (AGUIAR, 2004, p.156). Com toda a complexidade que esses dois anos de mestrado comportaram, já que a vida não cessa para o pensamento pensar, penso ter levado a bom termo a pesquisa, conseguindo compreender as transformações ocorridas nos sentidos atribuídos à educação em saúde e à prática médica em saúde coletiva, tendo como referência minha própria vivência. E, além disso, tendo conseguido ampliar a compreensão do processo educativo em saúde, qualificando minha atuação junto à comunidade, numa produção hermenêutica de saberes atinentes à saúde coletiva e à educação. 83 REFERÊNCIAS Bruno Mariani de Souza Azevedo AGUIAR, A. A de. A psiquiatria no divã: entre as ciências da vida e a medicalização da existência. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. AZEVEDO, B. M. S. A experimentação da clínica ampliada na atenção básica de saúde: articulando princípios, diretrizes e dispositivos em cotidianos complexos. In.: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. 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