Universidade de São Paulo

Transcrição

Universidade de São Paulo
PSEUDOCIÊNCIA COGNITIVA
Resenha de Pinker, Como a mente funciona. Tradução de Laura Teixeira Motta; 666pp. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.
A versão abaixo inclui algumas passagens omitidas, por motivos de espaço, na versão publicada no
Jornal de Resenhas da Folha de São Paulo, 12/6/99, p.6.
Marcos Barbosa de Oliveira
Universidade de São Paulo
Steven Pinker é hoje uma das figuras mais destacadas no mundo da ciência
cognitiva. Diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT, tornou-se conhecido
do grande público a partir de 1994, com a publicação do best seller The language
instinct. Como a mente funciona, sua contribuição mais recente, é também um livro de
divulgação, ao qual não faltam muitas das qualidades que contribuíram para fazer do
outro um sucesso de vendas, como o estilo coloquial ágil e preciso, as tiradas de humor
e a disposição polêmica. Digno de nota também, em ambos os volumes, é o recurso à
cultura de massas – histórias em quadrinhos, seriados e novelas de televisão, livros de
ficção científica, etc. – como fonte de exemplos e ilustrações. Sendo uma boa parte
desta produção desconhecida por aqui, para o leitor brasileiro o expediente perde muito
da eficácia.
As semelhanças contudo vão apenas até certo ponto, e desde já deve-se dizer que
The language instinct é muito superior. Para explicar porque, convém começar com um
apanhado geral do livro em pauta. No primeiro capítulo, Pinker expõe em linhas gerais a
base teórica de seu empreendimento, da qual os dois pilares são a ciência cognitiva,
entendida como teoria computacional da mente, e a mais recente novidade, a psicologia
evolutiva, associada principalmente aos nomes de John Tooby e Leda Cosmides. Os
dois capítulos seguintes discutem mais extensamente estes alicerces. No que se refere à
computação, Pinker defende a alternativa dos modelos híbridos, resultantes da
associação de sistemas de inteligência artificial tradicional com sistemas conexionistas.
Merece registro também o fato de que o autor, em contraste com outras concepções da
ciência cognitiva, e apoiando-se no argumento funcionalista das múltiplas realizações –
que já perdeu boa parte da força que teve em outras épocas – deixa quase totalmente de
lado as contribuições da neurociência.
2
A psicologia evolutiva, defendida no capítulo 3, é o resultado da aplicação dos
princípios da Teoria da Evolução às questões da psicologia. Seu ponto de partida é a
tese segundo a qual o cérebro humano foi moldado pelas forças da seleção natural
atuando sobre as espécies de hominídeos ancestrais do Homo sapiens que viviam da
caça e de outras formas de coleta de alimentos nas savanas da África há centenas de
milhares de anos. Tendo a evolução biológica da espécie humana cessado em algum
período entre 100.000 e 200.000 anos atrás, o resultado é termos de viver em estilo
completamente diferente, com um equipamento mental adaptado à vida primitiva nas
savanas. De acordo com a teoria, muitas das características da mente humana podem ser
entendidas a partir desta diversidade entre os estilos de vida. A psicologia evolutiva vêm
contudo sendo alvo de críticas (por parte especialmente de autores de esquerda como
S.J. Gould e R. Lewontin), que alegam ser ainda demasiado especulativo o
conhecimento do modo de vida deste homem das savanas, dando margem a que as
explicações propostas sejam função mais de interesses ideológicos que de evidências
bem corroboradas.
Resumida em uma frase, a pressuposição fundamental do livro é então a de que
“a mente é um sistema de órgãos de computação que a seleção natural projetou para
resolver os problemas enfrentados por nossos ancestrais evolutivos em sua vida de
coletores de alimentos” (p.10). Nos cinco capítulos restantes, Pinker se propõe a tarefa,
extremamente ambiciosa, dada sua abrangência, de explicar, a partir deste ponto de
vista, aspectos do funcionamento da mente – ou, talvez seja melhor dizer, da vida
humana – que incluem: a cognição, desde processos mais básicos da percepção visual e
as imagens mentais, até o uso de metáforas e a criatividade, passando pela formação de
conceitos, a lógica, e os raciocínios probabilísticos; as emoções e sentimentos – o amor
e o ódio, a repugnância, as fobias, a felicidade – ; as relações humanas – de família, de
amizade, de rivalidade e muitas outras – ; as artes plásticas, a música, a literatura, o
humor, a religião e a filosofia.
Não é entretanto num mero excesso de ambição que se encontra a raiz dos
problemas do livro. Para se chegar a ela, é necessário ir mais fundo, trazendo à baila
seus pressupostos epistemológicos. Os relevantes no caso são dois princípios
interligados, e a maneira radical como Pinker os sustenta, para toda a ciência, faz dele
um “linha dura” no terreno da epistemologia. O primeiro é o da separação entre sujeito
do conhecimento e objeto do conhecimento, em particular a tese de que a reflexão, e as
pesquisas científicas empreendidas pelos seres humanos não têm impacto algum sobre
3
seu objeto, mesmo quando este é o próprio homem. O segundo é o da separação entre
fatos e valores, a tese de que a ciência produz uma descrição puramente factual da
realidade, isenta de valores – os quais devem permanecer encerrados no compartimento
estanque da ética, para não contaminar o conhecimento científico com elementos de
subjetividade. A validade ou invalidade destes princípios em cada domínio da ciência
pode ser vista como uma questão de grau. Em relação aos dois grandes domínios, o das
ciências naturais e o das ciências humanas, o importante é a existência de uma
diferença: seja qual for o grau de validade dos princípios nas ciências naturais, nas
ciências humanas ele é significativamente menor. Isto decorre de que, nas ciências
humanas, o homem (enquanto ser cultural) é ao mesmo tempo sujeito e objeto do
conhecimento.
O reflexo disto no livro – que serve como evidência para as proposições que
acabamos de enunciar – é o fato de que suas passagens mais satisfatórias são as
referentes aos aspectos da mente humana mais próximos da natureza – como os
processos básicos da percepção visual, estudados no capítulo 4. Neste terreno, os
resultados de pesquisas expostos pelo autor são bem estabelecidos, e não-carentes de
interesse; podem ser considerados como ciência de boa qualidade. Por outro lado,
quanto mais os tópicos se aproximam do pólo cultural, mais o discurso degenera em
pseudo-ciência da pior espécie, tosca e eivada de ideologia conservadora.
Um exemplo disto são as idéias do autor sobre as artes – sua teoria estética do
cheesecake, ou dos “botões do prazer”. Senão, vejamos: “Gostamos de cheesecake de
morango, mas não porque tenha evoluído em nós o gosto por esta sobremesa. Evoluíram
circuitos que nos fornecem gotas de prazer com o gosto doce da fruta madura, a
sensação cremosa das gorduras e óleos vegetais e animais, e a frescura da água doce. O
cheesecake nos dá um golpe nos sentidos como nada existente no mundo da natureza,
pois é uma mistura de megadoses de estímulos prazerosos que inventamos com a
finalidade expressa de acionar nossos botões de prazer. A pornografia é outra tecnologia
do prazer. ... uma terceira tecnologia deste tipo é a arte.” (p.550) A “teoria” é então
aplicada às artes plásticas, “um exemplo perfeito de uma tecnologia projetada para
violar as travas que salvaguardam nossos botões de prazer e acionar esses botões em
várias combinações” (p.551); à música, um “cheesecake auditivo” (p.559), “uma pura
tecnologia do prazer, um coquetel de drogas recreativas que ingerimos pelo ouvido a
fim de estimular de uma só vez uma massa de circuitos de prazer” (p.553); e à literatura
de ficção, pois “até mesmo acompanhar as fraquezas de pessoas comuns virtuais em sua
4
vida cotidiana pode acionar um botão do prazer, aquele denominado “bisbilhotice”.
Trata-se de uma passatempo muito popular da humanidade, pois conhecimento é
poder.” (p.565).
Será preciso algum comentário?

Documentos relacionados