Sabores Saberes

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Sabores Saberes
Boletim Cultural e Memorialístico de São Tiago e Região | Ano VI . N° LVI . Maio de 2012
Acesse o Boletim online no site www.portalsaotiago.com.br
EDITORIAL
TEMPOS TURBULENTOS
Tempos polêmicos, turbulentos, desafiadores os nossos. Muitos – e
falsos – mitos a dirigirem a humanidade hodierna. Consumismo alucinado,
hedonismo, acumulação insana de bens e lucros, hegemonismo econômico,
primazia do mercado (mercantilismo), competição acirrada, o uso da força,
prazeres, astúcias sem fim.
Tudo se torna em moeda, em valor de troca. Tudo se vende ou se
converte em mercadoria: água, mares, florestas, relações pessoais, títulos,
cargos, corpos...Tudo se torna rapidamente obsoleto. Amizades, cônjuges,
emprego, que se trocam, como se fossem um eletrodoméstico, uma
roupa descartável, uma cerveja tomada no boteco da esquina... Perde-se
o maravilhamento, o comprometimento, a afirmação, a singularidade, a
sacralidade que há no relacionamento entre as pessoas. Inclusive, quanto ao
sexo, a sexualidade que foi, por muitos, transformada num processo amoral,
excludente, despersonalizante, fruitivo, um produto de fácil demanda e mero
manuseio, sem a tutela e a roupagem da amizade, promessa, profundidade,
experiência e comunhão de afetos.
Não podemos, todavia, demonizar o prazer saudável, com a mentalidade
paranoica de ver em tudo, pecado, alienação quanto ao usufruto de bens
e serviços que promovem, condignamente, o bem estar individual e
social e são igualmente, expressões de fé. Os modelos culturais vigentes
são respeitáveis, mas não substanciais, pois muitos contrastam com os
padrões de afirmação e elevação do espírito, cabendo-nos transformar,
transubstanciar nossas ações em espiritualidade e exaltação do divino.
Engrandecer o humano, sublimar talentos.
Vivemos, por outro lado, tempos inovadores, de rápida mutação do
pensamento, de ideias, revolução de costumes e da tecnologia, não se
podendo, por conseguinte, viver-se sob princípios defasados, fossilizados,
dogmáticos e ultrapassados.
Se alguns grupos beneficiam-se dos valores e produtos disponíveis nos
shoppings e centros culturais, há bilhões de seres ainda sem acesso a
condições equânimes e dignas em termos de saneamento, saúde, educação,
que são direitos universais inalienáveis. Eis-nos o quanto a se fazer:
segurança alimentar, energética e climática, biodiversidade, desenvolvimento
sustentável, inovação tecnológica, problemas do homem, das cidades, da
água, poluição, exclusão social, migração, racismo, erradicação da pobreza,
intolerância religiosa, trabalho decente.
Há milhares de línguas, culturas, tradições, valores que, autônomos
e diversificados, merecem respeito, distinção (veja-se no Brasil as afroameríndias), não se podendo pautá-los e padronizá-los por políticas
uniformes, instrumentais, unívocas.
Vivemos, isto sim, num mundo plural: etnias, culturas, temperamentos,
individualidades, aspirações que não podem, simplesmente, ser
mercantilizadas, relativizadas e recicladas em objetos de vulgar consumo e
descarte. A publicidade, a filosofia mercantil, como expressões do capitalismo
consumista e predador, é, em suma, anti-humana, desrespeitosa, prepotente,
colonialista, porquanto desrespeita a individualidade e a privacidade da
pessoa e do ser.
Preconiza-se, de outra forma, que vivamos de maneira solidária, de
reconhecimento da grandeza e transcendência humana, da harmonização
com a natureza, do exercício da ética, da oportunização e ascensão plena
do ser. Somos, primordialmente, entes relacionais, detentores de essências
e identidades e que nos termos do Evangelho, sentados todos à mesa
com Deus, em irmandade com todos os homens, para aí exercermos o
compartilhamento vivo do pão e a sorvedura do vinho. Uma identificação
infinita, de perseverança, confiança, imanência entre Criador e criatura.
AO PÉ DA FOGUEIRA
Fatos pitorescos, históricos, lendários, folclóricos etc...de São Tiago e região
O ISQUEIRO
Era um trabalhador exemplar, responsável, zeloso pelo serviço. Elogiado e
reconhecido pelos administradores da fazenda e pelo patrão. Dava conta do
recado em qualquer atividade que lhe era destinada: retiro, cafezal, lavouras
de frutas, de milho, etc. Naqueles dias, estava trabalhando na fazenda do Dr.
Dargo Miranda, o qual fornecia transporte para todos os seus funcionários,
bem como para vizinhos e caroneiros da região da Florinda.
Era amigo de um cigarro de palha, o qual confeccionava com gosto, com
requintes, limando a palha de milho, cortando artisticamente o fumo de
rolo, enrolando pacientemente, filosoficamente o cigarro. Zé tinha, porém,
uma mania. Não emprestava nenhum utensílio ou ingrediente de seu uso
– canivete, isqueiro, fumo - para ninguém, sequer para o chefe ou mesmo
o patrão. Ninguém, nenhum dos companheiros de eito, jamais, conseguira
obter-lhe uma ferramenta emprestada, ou um naco de fumo, uma folha de
palha.
A turma de trabalhadores aguardava nas proximidades da Praça do Cruzeiro
a chegada do caminhão que iria conduzi-los à fazenda. Alguns caroneiros,
dentre eles Élson, pequeno sitiante pelas bandas da Florinda. Confabulavam,
teciam piadas, comentários diversos.
Élson dirige-se ao Zé, pedindo-lhe o fumo. É atendido, para espanto dos
presentes.
Élson pede, a seguir, o canivete emprestado (“Palha, eu tenho”, informa).
É atendido no ato. Maior a perplexidade de todos. Rebuliço geral. Uma
interrogação: “Por que será que o Zé está emprestando as coisas ao Élson?!”
“Será que é pelo fato do Élson ser fazendeiro?!”
Élson, após enrolar minuciosamente o cigarro,
pede isqueiro ao Zé. Uma vez mais, acolhida a
solicitação. Sem maiores delongas. Dá duas tragadas,
o cigarro apaga. Requisita novamente o isqueiro. Zé
estende o braço e o entrega ao “pedidor”. Os empregados
se cutucando, pasmos. Ninguém entendia, sinceramente,
por que Zé, tão cioso e maníaco com seus objetos, cedia
sempre aos pedidos do sitiante e ali, escancaradamente, à vista de todos.
O cigarro apagou, uma vez mais. Pela terceira vez, Elson solicita o isqueiro.
Aí, Zé franziu a testa, tossiu, paciência se esgotando. Cede, contudo. A
turma, em silêncio, se interroga, se inquieta. “Será esta a última vez que o Zé
emprestará o isqueiro?!”
Cigarro, de novo, fumega, fumega, mas não arriba, apesar do fumante
baforar bastante e insuficientemente. E pela quarta vez, Élson requisita o objeto.
Neste ponto, o Zé se estrepa, se enerva, cabelos eriçados na cabeça e
na venta. - “Não vou emprestar mais coisa nenhuma. “Ocê estrupiou ele”,
apontando o isqueiro. E, exaltado: - “Vá acender o cigarro em sua casa, às
suas custas”
Elson retira, então, da algibeira um isqueiro novinho, recém-comprado,
esfrega-o lentamente, com toda delicadeza, mostra-o ao Zé e a todos:
–Estava só poupando o meu isqueiro!
O que se passou depois, não se sabe. Ou talvez, seja uma outra história.
UMA IDÉIA E PATROCINADORES
1 - O que a lua, a casa e o relógio têm em comum?
2 - Qual dia que nunca chega?
3 - Quando o limão desaparece?
4 - Qual o cúmulo da eletricidade?
Respostas: 1- os quartos; 2- amanhã; 3- quando vira
limonada; 4- tomar um choque com a conta de luz
Respostas: 1- os quartos; 2- amanhã; 3- quando vira limonada; 4- tomar
um choque com a conta de luz
Provérbios e Adágios
* Enquanto descansa, carrega-se pedra
* De boas ceias estão as sepulturas cheias
* Muita prosa, poucos haveres
* Formiga, quando quer se perder, cria asas
* Frei Tomás, faze o que pregador diz, não faças o
que ele faz.
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O boletim
necessitando de apoio de todos os SãoTiaguenses, amigos de São Tiago e
pessoas comprometidas com o processo e
desenvolvimento de nossa região. Contribua
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esforços e estamos contando com o seu.
Redação: João Pinto de Oliveira, Heloisa Helena
V. Reis Oliveira e Marcus Antonio Santiago
Apoio: Ana Clara de Paula e Angela Carolina
Ribeiro Costa
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CEP: 36.350-000 – telefone: (32) 3376-1107
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Realização:
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O número de temas, assuntos ligados à cultura e à memória de nosso meio é imenso.
Nosso modesto boletim, que tem a finalidade maior de registrá-los (antes que se percam
de vez), faz o que é possível e com grandeza, com galhardia. Com frequência, ouvem-se
críticas pró e contra. Dispomos, contudo, de pouco espaço – hoje são 8 páginas, que
necessitam ser ampliadas. Espaço custa dinheiro. Precisamos de patrocinadores para
tal. Ampliar para 10, 12 páginas.
Nesta edição de Maio/2012, o boletim aparece excepcionalmente com 12 páginas,
dada a matéria especial (familiar) envolvendo a tragédia do Rio Carandaí que vitimou
nosso Tio Zito e na qual dois outros jovens formandos de nosso meio (sr. Vadinho Lara
e sr. Homero Martins), felizmente, saíram ilesos. Os custos de ampliação deste número
(mais 4 páginas) estão sendo bancados pelos familiares, a quem agradecemos.
A experiência mostra que, a nível empresarial e social, poucos valorizam ainda
o trabalho de resgate da memória, das tradições e da cultura local. Não censuramos
isto. Lamenta-se, é verdade. Entende-se que vivemos numa sociedade competitiva,
individualista, predatória, de apenas se “tirar vantagens”, mas que, felizmente, está
evoluindo, se conscientizando quanto à responsabilidade social e à sustentabilidade de
nossas ações. Principalmente o empresário deve e necessita estar atualizado, receptivo à
evolução do mercado e do consumidor, este cada vez mais seletivo, mais apurado, mais
exigente,
Necessitamos, a começar do cidadão comum, de cada empreendedor, de cada
autoridade, darmos nossa contribuição à melhoria do processo educacional, apoiarmos
projetos de consciência cultural, de aprimoramento social e econômico, inclusive
iniciativas como a deste boletim, e de outras instituições e iniciativas locais nas áreas
de turismo, lazer, cultura (aí estão o Memorial Santiaguense, FOCEST, Centro de Artes,
Associação de Artesãos, Forno da praça, etc.).
Quanto ao aumento de páginas e número de exemplares deste periódico, contamos
com a sensibilidade de nossos leitores e obviamente com o apoio/patrocínio. A cultura
local, a história agradecem.
MONUMENTO AOS EX-COMBATENTES
Nossa cidade reclama, há tempos, a edificação de um monumento aos ex-pracinhas,
nossos conterrâneos que lutaram bravamente nos campos de batalha da Itália durante a
II Guerra Mundial.
Urge a tomada desta iniciativa, de natureza cívica, histórica, e que envolverá, decerto,
as autoridades municipais, instituições culturais como o IHGST-Instituto Histórico e
Geográfico de São Tiago, Igreja, escolas e indistintamente toda a comunidade.
O local ideal e natural para a instalação do monumento é a Praça onde se situa a Igreja
do Senhor dos Montes, esta, por si só, de considerável valor cultural e iconográfico e
que mereceria, inclusive, pronta restauração. Como se aventa e avulta igualmente, a
nível local, merecida homenagem ao Mons. Elói, ex capelão da FEB e figura proeminente
e benfeitora de nossa comunidade, poder-se-ia serem ambos os monumentos dispostos
na mesma praça. Comporíamos, assim, um sítio cívico-histórico-militar da mais alta
referência, simbolizando e talhando no cimento e no metal as mais justas e perenes
honras de nossa população aos seus heróis. Não nos esquecendo de que tal memorial se
tornará um considerável ponto turístico-cultural de nossa terra e região.
Alguns dos ex combatentes são-tiaguenses ou ligados à nossa região por laços
familiares, de propriedade:
Carlos Silva Júnior/ Mons. Francisco Elói de Oliveira/ Francisco Resende (Chico
do Quirino)/ Antonio Santos/José Leão/ Cel. Jair Maia/ Adalberto Silva/ Alziro Morais
(Chapada) etc.
Patrocínio:
Apoio Cultural:
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FOLCLORE
Carro Fantasma
O universo infantil, em idos tempos e ermos, era povoado de duendes, fantasmas, histórias de escravidão,
negros velhos, calhambolas, cucas, chibambas, zumbis
e uma infinidade de seres e ogros a que os adultos,
inconsciente ou perversamente, acresciam detalhes e
cenários horrendos.
Um mundo mítico, mágico, amedrontador, em particular para crianças. A chegada da noite era, por vezes,
terrificante, inquietando as indefesas e vulneráveis mentes infantis e ainda aos adultos impressionáveis.
Um fantasma que nos intrigava e relatado a viva voz pelos moradores, era o carro fantasma ou cramondongue,
que, segundo o pessoal, seria um carro de bois rodando
em disparada por entre estradas, sem que ninguém que
o puxasse ou o conduzisse. Quem o avistasse, deveria,
de pronto, buscar abrigo no meio das matas.
Guimarães Rosa faz referência a esta assombração
em “Sagarana” (pág. 174 da ed.1946): “... e o , que é
um carro de bois que roda à disparada, sem precisar de
boi nenhum para puxar”.
O fenômeno do “carro fantasma” ocorre em todo o
Brasil e outros países, recebendo nomes regionais.
No Maranhão é conhecido como “caburé”, na Paraíba,
“carro de visagem”.
Os fantasmas ou a imaginação humana, também e
ao que parece, se modernizam. Após o surgimento dos
primeiros veículos motorizados, inúmeras pessoas passaram a relatar avistamentos ou ainda de serem vítimas
de quase atropelamentos ou abalroamentos por carros,
caminhões e jipes “do outro mundo”. Tais ocorrências
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se davam, via de regra, em estradas vicinais rurais
ou ermas, de pouco tráfego ou mesmo em rodovias,
porém, em horários de reduzido movimento. Veículos,
na acepção das pessoas que os encontraram, geralmente silenciosos, que surgiam praticamente do nada e
que desapareciam também de forma súbita. Em nossa
região, os primeiros automóveis apareceram na década
de 1920; já os jipes, após a 2ª Guerra Mundial.
O Prof. Antonio Faleiro, renomado ufólogo e autor de
vários livros sobre o assunto, esclarece que, tais quais
outros inúmeros mitos de nosso folclore e da crendice
popular, o “carro fantasma” é uma manifestação explícita de UFOS ou “discos voadores”, aparelhos de alta
tecnologia e de origem certamente extraterrestre.
Em sua obra “UFOS no Brasil – misteriosos e milenares”, edição do CBPDV, (de que fomos brindados com
um exemplar e dedicatória especial do autor), o Prof.
Faleiro enumera:
“Na região de Passa Tempo, esse mesmo tipo de avistamento é conhecido como carro fantasma. Segundo a
cultura popular, trata-se de um veículo fantasma, dirigido por um espírito, que segue outros carros na estrada,
vem em sua direção e desaparece misteriosamente, ou
então deixa o local e segue por lugares inacessíveis ao
tráfego rodoviário. Quando criança, ouvi muitas pessoas contando a meu pai seus encontros com o carro
fantasma. E hoje, relembrando os fatos, podemos ver
que foram exatamente nos locais atuais de grande incidência de UFOs” (Op. Cit. Pág 83).
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A TRAGÉDIA DO RIO CARANDAÍ
A emboscada da morte às vésperas da formatura
A notícia trágica e cruel, rapidamente, se espalhara por toda
a São João del-Rei e daí para todo o País. Comoção geral.
Comércio, indústria e escolas cerraram as portas. Bandeiras
a meio mastro. Sinos tocavam, lúgubres, do alto das centenárias igrejas. O motivo de toda aquela dor generalizada:
jovens bacharelandos do tradicional Ginásio Santo Antonio,
às vésperas de sua formatura (as solenidades maiores transcorreriam no dia 29/11), ao promoverem, sob supervisão
dos frades franciscanos, um passeio até à represa do Rio
Carandaí, vitimados por gravíssimo acidente. Decidiram, os
moços, como um dos locais cênicos para as tradicionais
fotografias, a ponte pênsil sobre o rio, ali se posicionando.
As máquinas fotográficas de então eram do sistema de tripé.
Frei Norberto Beaufort, o fotógrafo, ajustara o visor e clicara; ao erguer, contudo, a cabeça de sob a capa, não mais
viu a ponte e seus ocupantes. Tudo e todos, simplesmente,
desapareceram. Tragados, submersos pelas traiçoeiras
águas. Ao contrário, gritos, desesperos, um cenário de dor,
aflições.
Aquela data, 27 de Novembro de 1936, festiva, rósea,
promissora para os jovens formandos e suas famílias, tornar-se-ia negra para os anais de toda a região e com repercussão nacional (ver matéria da revista “A noite Ilustrada”,
pág. 8). Estigma que se estende até os nossos dias. Uma
dor terrível, aguda no tempo e na alma, acompanhando, ainda hoje, passado quase um século, familiares e a memória
social. Perplexidade. A queda da ponte sobre o Rio Carandaí, nas proximidades de Prados, no exato momento em
que, sobre a mesma, posavam e postavam-se os formandos
do Ginásio Santo Antonio – sete deles, vítimas fatais – assombrara e enlutara a todos. (1)
Fatalidade? Imprudência? Excesso de peso? Falta de conservação? Irresponsabilidades? Perguntas sem respostas – até
os nossos dias - ante o manto de dor e consternação que
atingira a educação, a coletividade, a toda uma região e, em
especial, as famílias que perderam seus entes primaveris em
pleno desabrochar para a vida. Borboletas em flor, em total
viço e exuberância, recém-saídas do casulo, asas amplas e ab-
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ertas ao espaço da vida e ali, ceifadas num lancinante acidente.
Dentre as vítimas, o saotiaguense/resendecostense João
de Oliveira Rezende, “Zito” (2), filho do Major Marcos de
Oliveira Braga e Dª Maria da Conceição Resende (Cota), irmão em São Tiago, de Dª Carmem de Oliveira Reis, esposa
do sr. José Augusto dos Reis: do sr. Geraldo de Oliveira Resende (Geraldo Marcos) casado com a srª Nair Silva; e de Dª
Abigail de Oliveira Resende, casada com o sr. Antonio Pinto
de Oliveira.
Em “Efemérides de São João del Rei”, 2º vol., 1967, assim
relata o historiador Sebastião O. Cintra:
“27/11/1936 – Os bacharelandos do Ginásio Santo Antonio, de São João del Rei, acompanhados do Pe. Frei Norberto Beaufort, realizam um passeio à usina hidrelétrica do
Rio Carandaí. Postaram-se, numa ponte, nas proximidades
da usina, pedindo ao citado franciscano que batesse uma
fotografia. Após a execução da fotografia, a ponte desabou,
perecendo no Rio Carandaí, os jovens seguintes: Gastão de
Almeida Neves, Humberto Álvares da Silva Campos, Geraldo
Castanheira de Carvalho, João de Oliveira Resende, José
Darci dos Reis Meireles, José Rivadávia Esteves Guedes e
Raimundo Moreira Guimarães”. (op.cit. pág, 227)
Sobre o Pe. Frei Norberto Beaufort, o historiador Cintra
nos informa ainda, ser (ele) de origem holandesa, nascido a 01/02/1884, tendo chegado a São João del Rei a
10/05/1912, falecendo a 28/04/1960. Recebeu o título de
cidadão brasileiro por decisão do Pres. Getúlio Vargas,
em ato de 04/07/1932. A Frei Norberto, notável professor
do Ginásio Santo Antonio e pesquisador mineralogista, é
atribuída a descoberta de cassiterita em nossa região. Foi
ele, ademais, coadjuvado pelo sr. Luis Baccarini, o executor
das obras de construção do novo pavilhão do Ginásio Santo
Antonio, cujo lançamento da pedra fundamental se deu a
04/08/1925, sendo diretor do conceituado educandário, à
época, o Pe. Frei Estevão Lucassen.
Diz-se que, após a tragédia do Rio Carandaí, quando jovens
formandos achavam-se sob a sua tutela e ali pereceram, tornou-se um homem acabrunhado, contristado, sumamente
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UM QUADRO ESPECIAL
Um retrato, um quadro especial com destaque na parede
do amplo salão de visitas da
Fazenda (Rio do Peixe) atraíanos, sobremaneira, a atenção
infantil. De formato clássico,
mostrava um jovem bem trajado, de negro e acurado olhar,
enigmática fisionomia. Parecia
penetrar o espaço, abarcar o
infinito, inflamar o tempo.
Percebíamos, por vezes,
mamãe a olhá-lo, ternamente,
com muita emotividade, uma
Tio Zito quase sacralidade e a orar em
visível enlevo. Ela sempre nos falava do irmão tragicamente falecido,
às vésperas da formatura. Foi assim, ante o retrato do honorável jovem e as observações de mamãe, que tomamos conhecimento da
tragédia que envolvera Tio Zito e toda a família. Um trauma ainda para
toda uma época e uma sociedade, porquanto, no doloroso sinistro,
outros moços, seus colegas formandos, tiveram, igualmente, suas
vidas ceifadas e a cortina do infortúnio, impiedosamente, envolvera
a todos.
Dos filhos de Vovô Marcos e Vovó Cota, João – carinhosamente
chamado de Zito – fora o único a prosseguir os estudos, embora todos os seus irmãos, homens e mulheres, frequentassem apurados
educandários da época. Tio Zito frequentara, antes de se matricular
no Ginásio Santo Antonio, o Grupo Escolar Maria Teresa (3), de S.
João del Rei (temos cadernos seus da época, datados de 1931).
Abigail, nossa mãe, por exemplo, juntamente com outras irmãs, fora
educada no tradicional educandário mantido pela célebre Prof.ª Joanna Baptista Rodrigues (4) em inicios do século passado, em Santa
Rita do Rio Abaixo (hoje, Ritápolis). Tio Geraldo estudara no Colégio
Padre Machado, do conceituado educador Antonio de Lara Resende.
Tio Zito foi e será sempre um fanal, um ícone, um modelo familiar.
Um moço de fulgurante inteligência, de refinada educação. Gestos
nobres, alegria contagiante. De excelente formação cívica e religiosa.
Uma verdadeira Fênix intelectual. Tragado o corpo
pela voragem das águas e
pedras do Rio Carandaí,
seu ideário e exemplo
nortearam e iluminaram
centenas de primos e
sobrinhos, que, ao longo
do tempo, dedicaram-se,
com afinco, aos estudos,
à qualificação técnica e
intelectiva, às letras e
cátedras, às ciências a
serviço da coletividade e
da Pátria. Contam-se às
dúzias e glosas o número
Caderno escolar – 1931
de médicos, engenheiros,
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advogados, professores,
economistas, bioquímicos,
odontológicos,
tecnólogos das mais
variadas áreas do conhecimento que, honram,
o sangue e os sonhos
de sabedoria do tio imolado. Caído o infante,
nos louros e desdouros
da batalha, coube-nos,
familiares, a tarefa de
empunhar e levar avante
a espada do saber, do
servir, do amar, de sonhar, por ele deixada sob
as águas traiçoeiras e
rochas submersas do Rio
Carandaí. Um tributo que
Redação escolar com ilustração – 1931
as gerações da família,
neste quase um século, vem realizando com destemor e orgulho
em honra a Tio Zito. E que será perpetuado e disseminado em sua
memória e em seu nome!
NOTAS:
(1) Além de Tio Zito (João de Oliveira Resende), dois outros
jovens de nosso meio, estavam presentes naquele fatídico dia,
naquele fatal cenário. Osvaldo Cruz Lara (Vadinho Lara), filho do
sr. Antonio Morel de Campos Lara e Dª Carmelina Augusta Santiago
Lara e Homero Martins Teixeira (ver box – nossos agradecimentos
ao seu filho Fernando Pimentel pelas informações e dados biográficos fornecidos) e que, felizmente, sobreviveram ambos à queda
da ponte, pois, embora o tumulto reinante, caíram em águas mais
próximas às margens. Conseguiram, assim, com algum esforço,
se salvar.
Zito, conquanto fosse exímio nadador, teve a infelicidade de, ao
cair na parte mais funda da represa (pelas fotos, vê-se que ele era
um dos jovens que estava no meio da ponte, à hora do fatídico
acidente), uma de suas pernas ficou presa a uma rocha submersa,
impedindo-o de vir à tona. E assim, foi encontrado.
Outra personalidade marcante desta infausta tragédia foi o Dr.
João Gaudêncio, médico sãotiaguense, que ajudou no atendimento
aos feridos e sobreviventes e depois na busca aos desaparecidos
e resgate dos corpos, pois era excelente mergulhador.
(2) No livro nº 5, fls.13, nº 11 da
Paróquia de São Tiago, encontramos/transcrevemos o seguinte registro: “Aos 15 de Janeiro de 1918,
baptizei solenemente a João, nascido
aos 19 de Dezembro de 1917, filho
de Marcos de Oliveira Braga e Maria
da Conceição Resende. Foram padrinhos João Evangelista de Sousa
Maia e Maria da Glória Santos. O
vigário Pe. José Duque de Siqueira.
Tio Zito
05
12/02/1812 – São João del Rei, 04/08/1896), senhora da alta sociedade do País, caridosa, benemérita da S. Casa de Misericórdia e
de inúmeras outras obras assistenciais da cidade de SJDR, inclusive
asilos para meninas órfãs. Casada com o são-joanense Carlos Batista Machado e sogra de Custódio de Almeida Magalhães, do Dr.
Carlos Batista de Castro (Barão de Itaípe) e do Visconde de Lima
Duarte. Hospedou, em sua residência, a Princesa Isabel e o Príncipe
Conde D’Eu, quando de sua visita a S. João del rei, a 14/11/1882.
O Grupo Escolar “Maria Teresa” foi festivamente inaugurado a
02/08/1925, funcionando, inicialmente, no prédio que fora de propriedade do casal Alvarenga Peixoto/Bárbara Heliodora, depois demolido, na antiga Rua Municipal (hoje trecho/prolongamento da Av.
Tiradentes, entre as Ruas Gabriel Passos e Aureliano Mourão). Em
1942, o Grupo Maria Teresa passou a funcionar, em local definitivo,
na então sede da Intendência de São João del Rei.
(4) Dª Joanna Baptista Rodrigues manteve em Ritápolis , na
década de 1920, uma escola de ensino fundamental para moças,
educandário de alta reputação e que atraía alunas de toda uma vasta região. O estabelecimento, em regime de internato, funcionava
nas proximidades da Estação de Ibitutinga. Nossa mãe, uma de
suas alunas, e de que temos alguns cadernos escolares de então,
dizia-nos que a escola funcionava numa vasta chácara, próxima
ao rio das Mortes e contava, dentre tantas culturas, com extensos
pomares e vinhedos, dos quais se produzia excelente vinho, comercializado em toda a região.
Dª Joanna aparece, já em inícios da década de 1930, como educadora no Grupo Escolar Maria Teresa, de S. João del-Rei, como professora de Tio Zito, sendo diretora à época, a Profª. Idalina Horta Galvão.
INFORMAÇÕES DO SR. HOMERO MARTINS
- Fotografia dos alunos do Ginásio Santo Antonio, ao lado da
Usina Elétrica do Rio Carandaí, antes de ter ocorrido o acidente
da ponte.
Vistos da esquerda para a direita, em pé:
Humberto Campos (Divinópolis +) José Rivadavia Guedes (+)
Osvaldo Cruz Lara (São Tiago).
Carioquinha (RJ) Geraldo Castanheira Carvalho (Bom Sucesso
+) Gastão de Almeida Neves (S.João del-Rei – irmão de Tancredo
Neves +) Wilson Rocha Lima: Ivan ….: João de Oliveira Rezende
(Zito - filho de Marcos de Oliveira Braga +) José Padre - ? - Raimundo Bernardino de Sena (Candeias) – Frei Norberto (Holanda) Agachados da esquerda para a direita:
? - Adalberto Ferreira Viana (Bom Sucesso) – Homero Teixeira
Martins (Bom Sucesso) – Mário Mourão Filho (São João del-Rei)
– José Darci dos Reis Meirelles (Andrelândia +) - “Balaio” (São
João del Rei) – João Batista Bine (São João del-rei).
Os nomes assinalados com cruz (+) são os que faleceram, devendo acrescentar ainda o filho do Juiz de Direito de Tiradentes,
que não figurou nesta fotografia, formando-se assim o nº de 7
falecidos.
“Fotografia tirada sobre a ponte quando ocorreu, em seguida, o
06
acidente. Um pouco difícil identificar todos. Estou assentado entre
o João e o Darci, ambos vítimas do acidente”. (Informações do sr.
Homero Teixeira Martins, já falecido, que vieram acompanhadas
do seguinte bilhete (intróito): Prezado João: com estes elementos
espero ter esclarecido alguns detalhes do ocorrido em 1936. Abraço fraternal do Homero Martins – 30/12/2000.
O sr. Homero Teixeira Martins foi prefeito municipal de Bom
Sucesso, no período de 01/02/1955 a 13/05/1957, afastandose por motivos pessoais (seu mandato se encerraria em Janei-
Final de 1936 - Rio Carandaí - São João del Rei
Fotografia tirada abaixo da Usina Elétrica que fornecia luz p/a cidade. Estavam procurando corpos de 7 ou 9 ginasianos que cairam
com a ponte pencil após tirar uma fotografia. Alguns falecidos: Gastão Neves (irmão de Tancredo), João Resende, Raimundo
Guimarães, Zé Darci - Tesinho. Foto cedida por Sr. José Machado Mendes - Elói Mendes - MG
Boletim Cultural e Memorialístico de São Tiago e Região
HOMERO TEIXEIRA MARTINS, natural de Bom Sucesso, MG,
-Também em maio de l955 –lei l6l- implanta algumas escolas
nasceu em 27 de agosto de l9l5. Até a idade de 04 anos, residiu
rurais.
nessa cidade. A seguir, foi para a Fazenda Pinhal, município de Bom
-Em 30 de novembro de l955 veta a lei l75, que dava direito
Sucesso, em companhia de seus pais Joaquim Martins Ferreira
ao subsídio (72.000,00) e de representação (600,00) ao cargo de
Junior e Maria Izabel Teixeira Martins. Permaneceu por lá algum
prefeito.
tempo, onde obteve sua formação elementar, com professores par-Em l7 de agosto de l956 – lei l94- com a insuficiência de energia
ticulares, como era comum na época.
elétrica gerada pelo próprio município, implantou a CEMIG.
De l928 a l930, foi aluno interno no Instituto Padre Machado, diApós dois anos de trabalho árduo à frente da Prefeitura de Bom
rigido pelo austero e culto Professor Lara Resende, em São João Del
Sucesso, contando com um baixo orçamento e arrecadação muRei. Depois se ingressou no colégio Santo Antônio, de frades holannicipal, enfrentou inúmeros obstáculos e, por motivos particuladeses, também em São João Del Rei onde estudou de l931 a l936.
res, afastou-se de suas atividades como Prefeito. Voltou a dedicarFoi bom aluno e colaborava muito com colegas, especialmente em
se às suas ocupações agropecuárias.
redação. Trabalhos que redigia, especialmente para aqueles pouco
Em l955 casou-se com sua conterrânea, Helena Pimentel Martins.
interessados em empenhar os próprios esforços, recebiam as melDesse consórcio advieram-lhes três filhos:
hores notas e elogios do professor. Era preciso, conciso e fluente.
-Dr. Fábio Pimentel Martins, conceituado médico-cirurgião, em
Sério e responsável, nos últimos anos exerceu a função de reBelo Horizonte, MG.
gente de classe naquele educandário. Tal atividade era considerada
-Fernando Pimentel Martins, fazendeiro, e atualmente Secretário
um “certificado de mérito”.
Municipal de Meio Ambiente do município de Bom Sucesso.
Praticava esporte assiduamente, tendo se sobressaído, especial-Drª. Maísa Pimentel Martins, Engenheira Florestal, Doutora em
mente no football, ainda no Colégio Santo Antonio, era o goleiro de
genética, pela Universidade de São Paulo, USP, hoje professora e Pesprestígio.
quisadora na Universidade de Santa Maria, RS, efetivada em concurso
Após terminar o curso secundário, ingressou-se na Escola Supelo CNPQ.
perior de Agricultura de Viçosa, MG, onde
Homero conservava boas amizades,
obteve o diploma de Técnico Agrícola. Posconversava com muita fluência e ponteriormente, trabalhou com equipe de proderação. Em qualquer roda quando
fessores daquela Escola, no setor de meltinha oportunidade de pronunciar,
horamento de sementes de milho, através
prendia a atenção de todos. No dizer
de hibridação, naquela época assunto novo
de membro da Loja Maçônica de Bom
no Brasil.
Sucesso por mais de 50 anos, foi venEm 1941 foi convidado para dirigir uma
erável por alguns biênios, “era voz de
Colônia Agrícola “Lima Campos”, em Pesabedoria, o Grande Mestre”. Estava
dreiras, interior do Estado do Maranhão,
sempre pronto para ouvir e auxiliar a
ligada à Secretaria da Agricultura daquele
todos que o cercavam.
Estado. Por lá permaneceu cerca de três
Iniciado na Loja Maçônica Caritas
Sr. Homero T. Martins – à esquerda em trajes maçônicos.
anos, tornando-se muito conceituado, em
II de São João del Rei, no início da
virtude de seu esforço e produtividade.
década de 50, foi também um dos fundadores da Loja Maçônica
Em solidariedade ao seu chefe-Secretário da Agricultura, demitiuLiberdade e Justiça de Bom Sucesso e Cavalheiros de São Tiago,
se daquele trabalho e aceitou, convite para trabalhar no Estado de
São Tiago MG., mais recentemente.
Alagoas, dirigindo l4 fazendas de plantação de cana açúcar pertenSócio fundador também do clube campestre “Recanto das Acácentes a um grupo inglês, onde trabalhou por mais dois anos.
cias” em plena atividade em sua cidade.
Surpreendido pela notícia da morte súbita de seu pai, em Minas, em
Foi articulador político durante vários anos.
outubro de l946, deixou aquele emprego, regressando à terra natal, a
Foi presidente do sindicato rural de Bom Sucesso MG.
fim de assumir o comando dos negócios e fazendas deixadas por seu
Embora com idade avançada, já havia completado 90 anos, ainda
pai, de vez que seus irmãos, alguns ainda menores, estudavam fora.
era lúcido e ativo. Seu falecimento, no dia 09 de dezembro de 2005
Tornou-se o braço direito e esquerdo de sua mãe, prestando-lhe
deixou consternados tanto familiares quanto amigos e conhecidos.
toda colaboração possível, tanto na direção das fazendas, quanto
Sua memória, porém, será sempre preservada por todos aqueles
na responsabilidade de não interromper os estudos dos irmãos. Luque tiveram a oportunidade de com ele conviver.
tou com muita perseverança e abnegação, sem se preocupar com
A esse paladino da virtude, Sr. Homero Teixeira Martins,
os próprios interesses.
homem de invulgar grandeza moral, intelectual e espiritual
Em virtude de seu espírito de liderança e capacidade de trabalho,
e a quem ao longo do tempo, aprendemos a admirar, amigo
por insistência de amigos e correligionários, em l954, aceitou canincondicional. Colega de escola de Tio Zito, amigo de nossa
didatar-se ao cargo de Prefeito de Bom Sucesso, MG, tendo sido
família (esteve presente aos sepultamentos de nossos pais),
eleito e assumindo a prefeitura em l955.
-Em 25 de maio de l955, de acordo com a lei l57 doa terreno ao
companheiro de Ordem, a mais indelével gratidão, o mais
Estado para implantação do Ginásio na Escola Normal.
profundo reconhecimento, a mais imperecível fraternidade.
Boletim Cultural e Memorialístico de São Tiago e Região
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Matéria estampada na revista “A Noite Ilustrada” edição de 15/12/1936
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Boletim Cultural e Memorialístico de São Tiago e Região
DE LAVADEIRAS, BENZEDORES E CALUNIADORES
Em tempos idos, todo o abastecimento de água da
cidade e residências, à falta de redes de canalização e
distribuição, era processado junto às minas, bicas, chafarizes e nascentes existentes nos arredores do arraial.
Eram inúmeras as fontes de que se serviam os nossos
moradores: Onça, Pavuna, Catimbau, Buraco, Fontinha,
Chafariz, Fonte de Fora, Fonte do Cavalo do Padre, Estiva, Poço de Sô Olímpio, Sapeca, etc. Uma azáfama
o dia inteiro. Homens, mulheres, jovens, crianças, em
coloridas e contorcidas procissões, buscando água
para os serviços e necessidades básicas das casas e
pessoais: lavar, cozinhar, banhar-se, regar plantas, etc.
A roupa de batente ou pesada, de uso pessoal, e ainda de cama e mesa, era
lavada diretamente nas
fontes com suas águas
correntes, então límpidas, cristalinas... Não
tínhamos ainda a poluição que hoje contamina
e desrespeita os mananciais. Famílias com melhor poder aquisitivo
contratavam lavadeiras
– mulheres da cidade,
residentes na periferia
que, com o seu trabalho autônomo, dedicavam-se a essa nobre atividade
e garantiam, com isto, renda extra, às vezes a única
daqueles humildes lares.
O ajuntamento das lavadeiras permitia o intercâmbio
de assuntos e novidades – obviamente alguns falsos,
maliciosos ou quiçá invencionices – daí serem as fontes e minas os pontos de fofocas e maledicências da cidade. Estourava uma “conversa fiada” na pequena urbe
e, ao se apurar a sua procedência, não havia surpresas:
o ponto de partida era(m) as fontes, as conversas de
comadres, ou melhor, lavadeiras... No mínimo, levavam
a culpa pelos boatos!
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As famílias, cuja roupa doméstica era conduzida a
esses locais pelas lavadeiras contratadas, ficavam expostas ainda a todas as formas de motejos e ridicularizações, principalmente se peças íntimas, de lingerie,
(eventualmente com algum remendo, manchas menstruais, etc.) estivessem inclusas na cesta de roupas.
Naqueles tempos, tecido era algo caro e as zelosas
donas de casa buscavam aproveitar a veste, através
de reparos. Certa e respeitável família local, dadas as
roupas com remendos levadas às fontes, passou a ser
apelidada “ninho de guache”. Também inexistiam absorventes femininos descartáveis. Por simploriedade,
tais famílias, ao permitirem que certas peças (íntimas)
fossem lavadas nas fontes, portanto em público,
esqueciam-se do velho
ditado: “roupa suja se
lava em casa”. Expunham-se assim a toda
sorte de comentários e
malícias alheias...
Como muitas lavadeiras tinham acesso
às residências dos
“patrões” ou mesmo ali
trabalhavam como serviçais, assuntos de ordem íntima e familiar também eram levados até as fontes e daí ao conhecimento e à sandice públicas. Várias
pessoas e famílias de nosso meio, ante a mentalidade
primária local, seja por questões de perseguições
políticas, seja por exposição a calúnias, chicanas ou
comentários infundados, muitos deles oriundos de detrações em fontes, optaram por mudar-se para outras
plagas. São Tiago, certa época, adquirira péssimo conceito em toda a redondeza, afastando pessoas sérias de
nosso convívio social, especialmente por ser “terra de
conversinhas”... Havia, lamentavelmente, até uma expressão “isto é coisa de São Tiago” ou “cheiro de São
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assuntos ou fatos vulgares, grotescos, atraso mesmo... Muitas famílias da região do Jacaré, Carapuças,
Laranjeiras, Córrego Fundo, Ouro Fino, Prata, etc., em
razão de intrigas e conversas atravessadas, deixaram
de frequentar o então arraial, optando por outras localidades.
Lavadeiras de logradouros públicos, não só aqui, em
toda a parte, tornaram-se símbolos de “fofocas”. Daí
a expressão “conversa de lavadeira”. Também costureiras, tricoteiras levavam o nome de “faladeiras” e
boateiras. Daí o dito “estar tricotando a vida alheia”.
A maioria absoluta das lavadeiras era constituída por
senhoras íntegras, reservadas, laboriosas; algumas,
porém, eram maledicentes, de mente fantasiosa e língua venenosa... Em todo rebanho, há alguma ovelha
negra.
Provavelmente, por esta razão, os benzedores,
quando proferiam seus exorcismos e esconjuros, no
intuito de debelar males e doenças, seja de pessoas ou
animais, proferiam: - “Benzo pela língua das lavadeiras ...” e mencionavam o nome da mina ou fonte que
tinha(m) fama de serem frequentadas pelas mais difamadoras e fofoqueiras. Ou de onde saiam as maiores
bisbilhotices e intrigas...
Com a evolução do progresso – água farta e encanada em domicilio, máquinas de lavar possantes
e automáticas, lavanderias industriais, detergentes
químicos ou biodegradáveis – o papel das lavadeiras
domésticas ou autônomas praticamente desapareceu.
A função de “lavadeira”, na sua acepção de falar demasiado, de tripudiar sobre fatos íntimos e particulares
da vida alheia, mudou de “ponto”. Com consternação e
até espanto, ouve-se dizer que a honra e a vida privada
de terceiros é “lavada” hoje por maus cidadãos e cidadãs em ambientes seletos e até então respeitáveis,
onde se deveria primar pela probidade, pelos bons valores éticos, pela compostura pessoal, familiar e profissional, pelo respeito e dignificação de seu honrado
local de trabalho. Lamentavelmente, roupas de grife,
títulos e lauréis acadêmicos, Phds, MBA, estar ao volante de carros luxuosos, posição social não escondem o caráter decadente, maligno do(a)s moderno(a)s
farândolas e mexeriqueiro(a)s.
Ficamos pensando na maldade humana, da forma
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alienante e cruel como certas pessoas tratam a vida
e os sentimentos alheios. Como se o próximo – a
vítima - fosse algo risível, vão, desprovido de valores
e emoções, de dignidade e ali exposto e disposto
aos nossos enganos, frustrações, invejas, caprichos
doentios. Como se dizia em tempos passados: “como
se fossem todos da mesma marca ... ” (ou “laia”).
Aliás, as administrações destas instituições e empresas – onde se fabricam e albergam calúnias e dolorosos disse me disse, - deveriam tomar medidas
saneadoras, sob pena de todos se afundarem no mais
deplorável lamaçal e no total descrédito junto à comunidade, com perda de credibilidade, além de eventuais
ações policiais e judiciais por parte dos ofendidos...
Voltemos, todavia, aos nossos curandeiros, xamãs
e benzedores. E ainda às velhas línguas ferinas e
cavaqueiras...
Conta-se que existia em nossa cidade, certa senhora, - por que não chamá-la de Dona Virtuosa?! - de
considerável realce familiar e social, mais conhecida
por seus mexericos e dona de uma “língua comprida”,
terrivelmente venenosa, viperina. Falava o que era e
o que não era, de tudo e de todos, embora fosse assaz frequentadora da igreja, de missa diária, rosário à
mão, e usuária dos sacramentos. Senhora, contudo,
de índole peçonhenta, invigilante, a quem todos temiam.
Os benzedores locais, à época, quando chamados
a atender a alguma doença de gado (surto de aftosa,
bicheiras, etc.) tinham o costume de evocar o nome
de algum elemento da natureza (ex.: o fogo) ou de algum ente ou pessoa, para que fosse(m) o catalisador
ou condensador daquelas energias miasmáticas ou
infecciosas. Alguns destes curandeiros, conhecendo
o nível de maledicência e de toxidez mental-verbal
daquela infeliz senhora, exorcizavam em alta voz:
- Ordeno em nome da língua de Dª Virtuosa, que se
afastem deste animal.
No caso de ulcerações graves e bicheiras – fato
devidamente testemunhado – tão logo proferidas as
pungitivas palavras, para assombro dos expectadores, os vermes afluíam e pululavam, aos borbotões,
das chagas, despencando já mortos ao solo...
Cuidemos, portanto, de nossa língua, pois seremos
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EXPRESSÕES: “QUEIXAR-SE AO BISPO” - “TRABALHAR PARA O BISPO”
Há na língua portuguesa curiosas expressões envolvendo referências clericais e religiosas, sendo uma delas o tema “Bispo”. Vejamos o dito popular: “Falar ou Queixar-se ao bispo”. Segundo
os lexicógrafos, esta expressão nada tem de anticlerical. Surgiu no
século XIX no Rio de Janeiro, quando houve uma campanha
dos empregados do comércio carioca para que este fechasse (não funcionasse) aos domingos. Num País predominantemente católico, os empregados apelaram ao
Bispo do Rio de Janeiro, através de um termo intitulado
“Pedidos e Queixas”, rogando o apoio de S. Exmª Revmª
e da Igreja para a aprovação da lei, permitindo aos empregados, em sua maioria jovens, cumprissem suas obrigações e deveres católicos dominicais, em especial a
frequência às missas.
Como a lei demorou a sair, - sabemos como nossos
governos e legisladores são lentos e omissos - a locução adquiriu
um sentido de “queixa inútil” ou “queixa com endereço errado”. Assim quem quer ver-se livre de alguém importuno ou impertinente,
manda-o queixar-se ao bispo.
Outra expressão comum “Trabalhar para o bispo” tem o sentido de “trabalhar sem lucro, sem proveito, glórias ou serventia”.
Suas origens localizam-se na Idade Média, onde a nobreza e o alto
clero impunham extorsões e a corveia (trabalho gratuito e forçado)
aos míseros aldeões e camponeses. Pagavam estes vários tributos, mortualhas, coletas, terças pontifícias para a Igreja, o
Reino e a nobreza. “Trabalhar para o bispo” significava,
à época, trabalhar gratuita e servilmente, em serviços
pesados e sob penalidades de toda sorte.
Há ainda expressões análogas a esta, correntes até
há algum tempo na nossa língua, como “trabalhar
para o cônsul” (certo procônsul de Florença, na Itália,
tinha o direito e o privilégio, obviamente criados por ele
próprio, de pesca do Rio Arno) ou “trabalhar para o rei da
Prússia” (Frederico II, rei da Prússia, hoje Alemanha). Passou à
história como um avaro, que explorava acintosamente seus súditos e remunerava fraudulentamente até seus soldados, chegando
ao cúmulo de criar um mês de 28 ou 29 dias, só para “reduzir” os
pagamentos de soldos e salários).
ABUSOS REGISTRADOS PELA HISTÓRIA
Passava a França por má situação financeira em 1776. Turgot, o
ministro das Finanças, tentou cobrar impostos dos privilegiados:
clero e nobreza, os denominados Segundo e Terceiro Estados, logo
abaixo do Primeiro que era a Monarquia (Rei). Nada conseguiu. O
Parlamento de Paris rejeitou a proposta, alegando que estes detinham “direitos de propriedade e direitos de pessoa oriundos das
prerrogativas de nascimento e posses”. O clero tinha então 130.000
membros e a nobreza em torno de 140.000. Eram intocáveis...
A classe sem privilégios era o povo, a gente comum e
formava o Quarto Estado, se assim podemos mencionar. Representava 95% da população de 25
milhões de habitantes da época, sendo que
destes, alguns eram burgueses, vivendo
relativamente bem (250.000 pessoas),
cerca de 2.500.000 eram artesãos, radicados em pequenas aldeias e cidades.
Os restantes 22 milhões eram lavradores
e pagavam duros impostos ao Rei (Estado
monárquico), dízimos à Igreja e taxas feudais
aos nobres. O camponês, curvado, esporeado,
carregando nas costas o rei, o padre e o nobre – eis
o retrato fiel e doloroso da situação!
A França, daquela época, como quase todos os países dos nossos dias (veja-se a crise que ora avassala a Europa; veja-se o incrível
déficit do governo brasileiro que, por gastar excessivamente, paga
anualmente bilhões de dólares de juros a bancos, a especuladores
e a financeiras), gastava acima de suas receitas. Gastos ociosos,
pensões absurdas, corte perdulária...
De Tocquivelle, famoso escritor francês, descreveu que o cam-
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ponês era cercado de impostos por todos os lados. Ao semear, ao
produzir, ao cruzar um rio ou utilizar-se de uma estrada, eram-lhe
cobradas taxas; ao chegar ao mercado ou feira, novas taxas de
licenciamento para vender seus produtos; até a parte do trigo que
ele guardava para sua própria alimentação era obrigado a moer
nos moinhos dos senhores de terras, aí deixando um percentual
como pagamento. Tudo o que o lavrador fazia, tudo o que produzia, encontrava abutres pelo caminho.
E não era só. Havia ainda a pesada parte da Igreja,
muito embora se estivesse no século XVIII, as
velhas taxas e serviços feudais ainda persistiam. Calcula-se que 80% da renda de um
camponês ia para impostos, sobrando-lhe
míseros 20% para manter a família. Sustentava ele um Estado mal administrado,
opressivo, tributarista; uma nobreza parasitária que não trabalhava a terra, não ajudava o governo como grupo, não tinha função econômica nem guerreira. Salvo exceções,
passava o tempo na corte, em caçadas, em folguedos e futricas, ociosidade pura!
Foram os camponeses, os artesãos, os maltratados que realmente protestaram e tomaram em armas durante a Revolução
Francesa, embora os burgueses e mercantilistas (a classe média)
tenham se apoderado do poder, daí surgindo um novo sistema
social e econômico, baseado na livre troca de mercadorias com
objetivos de lucro, na desregulamentação dos direitos de nobres
e privilegiados por berço e títulos. A velha casta de sacerdotes,
guerreiros e vassalos se encerrara, enfim!
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NAS CIRCUNSTÂNCIAS DO PENSAMENTO
No mundo em que vivemos, havemos de considerar
Mas é evidentemente maravilhoso quando somos
meramente básicas e indispensáveis, no âmbito da
amados, compreendidos e lembrados por amigos,
comunicação e nas diversas circunstâncias da vida,
familiares, conhecidos... A propósito, diria que é
três primícias: leitura, escrita e oralidade - razão
superbom ver e estar com pessoas bacanas que
pela qual faz-se mister concordar com Francis
nos tocam o coração, enquanto é superimportante
Bacon quando diz: “A leitura torna o ser humano
também ficar apenas pensando nelas e desejando-
completo; a conversação torna-o ágil e o escrever
lhes sucessos.
dá-lhe precisão”.
Estas necessidades básicas se justificam
É também superprazeroso ser convidada para uma
festa, mas supertranquilo é ficar em casa, aos
pelas maneiras de cada ser humano de estar-no-
finais de semana. Poderia chamar de superprática
mundo, de agir, viver a vida, tendo que acompanhar
a comida simples, caseira, super bem preparada,
as variações que ocorrem no sistema e nas
embora aprecie também um almoço superfarto, com
relações sociais, ao longo do tempo... Aí, atitudes
bastantes variedades, em casa ou no restaurante.
e comportamentos se mudam, pensamentos se
divergem, estilos se evoluem, transformando vias e
processos de comunicação. Neste processo, ao se
jogar com as palavras, pessoas há que simplificam
tudo, outras se excedem no falar... usando, por
exemplo, prefixos que indicam excesso, posição
superior, como: hiper, super, ultra... formando
neologismos, juntamente a outros vocábulos:
hiperprático, superinteressante, ultrassensível...
expressões aqui propositalmente empregadas.
Agora, hiperassustador é que, para muita
gente, seja superdivertido amanhece r na rua,
quando para mim ultralegal é deitar cedo, levantar
de madrugada e contemplar o nascer de um novo
dia, entrar no ribeirão ou caminhar nas águas
do regato. Acho também, superfácil e tranquilo
andar de carro, em vez de caminhar a pé... mas
superchique mesmo é o passeio de barco no mar ou
no Rio São Francisco ...
Nestas oportunidades, seria superelegante ler
Nesses falares, posso lembrar, por exemplo que
uma obra literária, mas superemocionante é
acho superlegal amar a natureza, por estarmos
ler Guimarães Rosa, com seu regionalismo
inseridos nela, usufruindo de todos os seus
surpreendente, seus textos superinteressantes, para
recursos, valores e beleza, como também
leitores superinteressados....
ultrassensível o amor à vida, mesmo com todas
as peripécias que ela nos apresenta, mas que nos
Enfim, além do fazer acontecer, joia é o ato de
proporciona também ultra-alegria nos pequenos
ler e escrever, mormente quando se tem vontade
grandes momentos ou grandes pequenos
de fazê-lo, simulando ideias inusitadas, no disfarce
momentos, que nos fazem superbem.
à própria realidade, fantasiando pensamentos, a
partir do faz-de-conta: faz-de-conta que nenhum
É preciso também amar as pessoas – todas as
mal está acontecendo, que tudo não passa de um
pessoas - e aceitá-las como são, embora nos pareça
sonho ou o pensamento que voa... Aí, podemos
superprático quando algumas delas não nos querem
contar com a poesia, a fantasia, o sonhar, o apreciar
bem, porque isto suaviza nossos compromissos e
as maravilhas que Deus criou para nós, embora
ultrapreocupações para com elas. E, particularmente
surjam frequentemente em nossa vida inevitáveis
falando, acharia supercômodo estar com problemas
obstáculos e contratempos. E finalmente hiperlegal,
auditivos, para não ter que escutar o que não
ultrassensível e superbacana e conservar a intenção
gostaria de ouvir. Entretanto, ficaria hiperfrustrada
de se arriscar a escrever... escrever para quem
se não conseguisse captar e compreender falas
gostar de ler...
educadamente dirigidas em tom suave, voz baixa e
agradável...
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Nilza Trindade de Morais Campos
Boletim Cultural e Memorialístico de São Tiago e Região