Análise da obra Vila dos Confins de Mário Palmério

Transcrição

Análise da obra Vila dos Confins de Mário Palmério
Universidade Federal do Paraná
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes
Delmar Ferronato
Análise da obra Vila dos Confins de Mário Palmério
Monografia apresentada para a
disciplina orientação monográfica
II, curso de Letras, setor de
Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal do
Paraná.
Professor: Fernando Gil.
Curitiba
2006
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Índice
página
I – Sobre o Autor.
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II – Introdução.
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III – Panorama da obra.
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IV – Personagens.
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V - A estrutura narrativa.
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A - O Narrador.
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B - Estrutura da obra.
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VI - Comentário Crítico conclusivo.
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VII – Bibliografia.
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I – Sobre o Autor.
Vou apresentar resumidamente alguns dados da biografia de Mário Palmério: nasceu
na cidade de Monte Carmelo interior de Minas Gerais em 1916. Formou-se em filosofia pela
USP. Depois fundou na cidade de Uberaba o Liceu do Triangulo Mineiro. Em1950 elegeu-se
deputado Federal, cargo ao que foi reeleito em 1954 e 1958, durante este construiu em
Uberaba a cidade universitária. Em 1956 no ano em que completa quarenta anos, publica a
sua primeira obra Vila dos Confins. Em 1962 foi nomeado embaixador do Brasil junto ao
governo paraguaio, onde permaneceu dois anos. E em 1966 edita sua obra mais conhecida
Chapadão do Bugre. Em 1968 sucedeu a Guimarães Rosa na cadeira nº 2 da Academia
Brasileira de Letras. Viajou vários anos de barco pelo rio amazonas e seus afluentes
levantando dados sobre a realidade físico social e cultural da região até 1987. Quando volta
para Uberaba na condição de Presidente das Faculdades Integradas desta cidade. Faleceu em
1996.
II – Introdução.
José Hildebrando Dacanal em algumas das análises críticas que realiza a obras
literárias, tanto no seu livro O romance de 30, como em Nova narrativa épica do Brasil,
segue alguns passos, como por exemplo: primeiro fornece um breve resumo da obra que está
analisando, depois procede a análise dos personagens, da estrutura da obra, para finalmente
concluir com o comentário crítico. Acredito que estes sejam os passos seguidos,
implicitamente ou explicitamente, por todo crítico literário, pois segundo Anatonio Candido o
trabalho do crítico literário está focado na análise do texto e em seus elementos literários.
Logicamente num segundo momento o crítico vai complementar as informações do texto com
aspectos da Historia da Literatura, da Sociologia e da Psicologia da Literatura.
Pensando neste esquema muito simples organizei a minha análise crítica da obra Vila
dos Confins de Mário Palmério. Visando mostrar o domínio de alguns elementos
indispensáveis para a crítica literária. Com isso pretendo: primeiro fornecer um resumo da
obra, onde há todo um trabalho para indicar no texto o que é importante para a leitura da obra
que pretendo realizar, juntamente com a análise dos personagens, buscando ressaltar o papel
que cada um desempenha dentro da obra e que a torna um universo coerente, o narrador que
tem papel fundamental para dar certo tom anedótico ao texto e a estrutura da obra, tudo isso
para concluir com um comentário crítico.
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III – Panorama da obra.
A obra está composta por uma parte inicial, não numerada e mais trinta e um
capítulos. No apartado inicial o narrador oferece um apanhado do “Sertão dos Confins”, onde
descreve rapidamente a região, fornecendo sua localização geográfica e algumas
características do clima, da vegetação, da sua economia. Que servem para causar no leitor a
idéia de que os fatos narrados ocorreram em um lugar concreto e que por isso são verídicos:
“quem não acreditar só mesmo dando um pulo até lá” (PALMÉRIO, pág 12).
No primeiro capítulo o narrador introduz no cenário o personagem Xixi Piriá que é um
andarilho, um mascate que vende suas quinquilharias, perfumes, jóias, utensílios de pequeno
porte, pelas fazendas da região. É um personagem que conta com a estima e respeito de
todos.Neste momento da narrativa ele está andando por uma estrada, solitário, debaixo do sol
forte. Está com presa, pois tem encomendas e recados para entregar.
A partir do capítulo 2 até o 16 há uma primeira parte na obra. Quero indicar
que a divisão em capítulos é dada na obra Vila dos Confins. Mas a divisão em partes é o autor
desta monografia quem a realiza, para facilitar a exposição do conteúdo da obra. Trata, nesta
parte, da viagem que o personagem Paulo Santos deputado federal realiza pelo interior do
Sertão dos Confins, visitando varias fazendas da região visando completar o quadro de
candidatos do partido da União Cívica e conseguir fundos para as despesas da campanha
política. Paralelamente à narrativa da viagem que o deputado realiza, há vários relatos sobre a
região. Que são uma serie de anedotas sobre a vida nas fazendas, sobre a economia local,
sobre as pessoas e os perigos que habitam aquele sertão.
Esta parte começa com a chegada do deputado a Vila dos Confins, que coincide com o
início da época das chuvas o que dificultará tal viagem. A primeira atividade do deputado na
Vila é dirigir uma reunião do diretório do partido, que até este momento ainda não se havia
organizado. Eles já têm um nome para candidato a prefeito, João Soares, um fazendeiro
importante na região, mas faltam todos os candidatos a vereador e a vice-prefeito. Essa
reunião transcorre durante todo dia, ao entardecer Paulo abandona a reunião e vai à procura
do Geroncio que trabalha na balsa. E juntos descem o rio na canoa do balseiro, se dirigem
para o “rebojo” poço profundo que se encontra na curva do rio, provocado pelo constante
redemoinho das águas. Estão à procura dos grandes surubins, que segundo o narrador gostam
daquelas águas profundas.
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Durante a pescaria o deputado se distrai nos longos momentos de espera, pensando na
primeira vez que havia estado na Vila dos Confins. Foi a cinco anos atrás em uma pescaria
organizada com os amigos da capital. Assim descobrimos como o deputado conheceu as
pessoas do lugar e que a fundação do diretório do partido unionista na Vila foi iniciativa sua.
Paulo tem a impressão que o sertão está mudando, mas na verdade o que ocorre é que aquela
experiência que havia feito antes enquanto se divertia com os amigos, não se repete agora que
veio a trabalho. Neste momento ele sente certo desgosto pela política, que tirou dele aquela
visão paradisíaca que tinha do Sertão dos Confins.
Depois do relato da pesca tem início a viagem pelo interior daquela região. O primeiro
destino é o vilarejo denominado Carrapato, onde Paulo adoece da malária e se hospeda na
fazenda do seu Sebastião, pai da Dona Maria da Penha. A doença do deputado também
funciona como um elemento que serve para desviar a atenção da história das eleições e entrar
um pouco no cotidiano do sertão. E já neste momento o narrador começa a colocar algumas
dúvidas no leitor sobre o verdadeiro interesse do deputado com essas eleições, se busca apoiar
o desenvolvimento da região, ou aumentar sua zona de influencia.
O Padre Sommer, que é o pároco na Vila, chega à fazenda para visitar o amigo
enfermo. Paulo fica muito contente, pois o considera um grande contador de estórias, com o
qual se passa o tempo de forma agradável. O padre é um personagem: interessante o narrador
fala que ele abandona a Vila dos Confins todo ano no período da seca e percorre o sertão,
supostamente para visitar os fieis, mas provavelmente em busca de aventuras e de bons
lugares de caça.
O padre começa a narrar as suas peripécias deste último período de seca, e prende a
atenção de todos os personagens presentes, com seu modo de contar os fatos. Este ano ele saiu
pelo sertão em busca da antiga Vila velha, mina de ouro abandonada depois de um ataque dos
índios, acontecido a mais de um século e que todos pensam que é só uma lenda. O desfecho
de tal aventura foi o emocionante relato da caça à onça preta, o padre conta tudo nos mínimos
detalhes, criando duvidas se não há exagero na sua versão dos fatos. Mas no fundo são os
exageros que dão um tão anedótico à narrativa e tornam o relato interressante. Se o padre
encontrou a Vila Velha, não nos conta, mas diz que trouxe o couro da onça como troféu.
Continuando a narrativa o padre retorna a Vila dos Confins, mas por mera
coincidência chega à fazenda outro grande contador de estórias, Nequinha Capador, que foi
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fazendeiro importante, perdeu tudo e se tornou mascate compra, transporta e revende o gado
pelo sertão. Vem à fazenda do seu Sebastião, pois o fazendeiro cedeu umas pastagens para o
Nequinha engordar as novilhas zebuas que comprou. Pretende, depois que elas ganharem
peso, levá-las à feira de exposição de Uberaba. O mascate está confiante, pois comprou
também um touro que é descendente do Lontra, o primeiro touro zebu a ser importado para o
Brasil. Está convencido de ganhar um bom prêmio e muito dinheiro com ele e quem sabe
voltar a ser fazendeiro como antes.
Neste momento usando a voz do Nequinha Capador, como já havia feito antes com o
Padre Sommer, o narrador se prolonga em contar de forma anedótica a sua versão da história
da chegada do gado zebu ao Brasil: um único exemplar, o touro chamado Lontra, que fez
muito sucesso e transformou seu dono num milionário. E afirma que se inaugurou com ele
uma prática muito usual então de se vender a cria ainda no útero materno, tal era a fama do
Lontra que sempre havia gerado boa descendência.
Numa das noites na fazenda Paulo não consegue dormir e sai a andar pelo pátio, nisso
percebe Dona Maria da Penha na janela do quarto e acena para ela que retribui o gesto. Desde
o primeiro dia estavam buscando um encontro a sós para conversarem. Ambos percebem que
este é o momento ideal para estarem juntos protegidos pela noite. Mas, quando ela está
prestes a sair para o pátio, se escuta um mugido desesperado de um boi que desperta todos na
fazenda.
E o narrador começa a contar, com riqueza de detalhes, como a sucuri fez para
capturar o boi que foi beber água na lagoa. Neste momento ninguém pode fazer nada, pois
seria muito perigoso tentar soltar a presa, o melhor a fazer é deixá-la comer o boi e no dia
seguinte ir a sua caça, pois durante a digestão a sucuri não oferece ameaça alguma. Paulo, que
ainda estava no pátio, ao ver todo o movimento do pessoal da fazenda reunidos em grupinhos
de conversa, sente que foi salvo por mito pouco. Pois se todos acordam e encontram ele com
Dona Penha, ademais de perder a confiança do seu Sebastião provavelmente perderia as
eleições.
Na manhã seguinte Paulo convence o Seu Sebastião a ser candidato a vice-prefeito. E
sabendo que há garimpeiros instalados perto da fazenda decide visitá-los, com a intenção de
fazer do líder do garimpo um candidato a vereador. E com isso conseguir o voto dos
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garimpeiros. O narrador nos diz que Paulo está tão viciado na política como o garimpeiro na
idéia de riqueza, que procura votos em todos os rincões do sertão.
O Deputado, para evitar a tentação de Dona Maria da Penha, decide continuar a sua
viagem e se dirige à fazenda do Seu Neca Lourenço que já foi mascate, conseguiu crescer
economicamente e se tornou fazendeiro. Esse fato é narrado por ele mesmo deixando
transparecer o orgulho que sente de si mesmo por tal façanha. Conta como conseguiu comprar
as terras do Pedrinho Belo, irmão do Chico Belo, o candidato a prefeito do partido liberal.
Desde os tempos de tropeiro montou todo um projeto para ganhar dinheiro e comprar a
fazenda. Depois esperou até que um dia ele fez um acordo com o Pedrinho, trocaria as terras
da fazenda pelas duzentas vacas zebuas que ele tinha na engorda em terras alugadas. Mas
quando o Pedro tinha as vacas já nas suas invernadas quis cair fora do negócio. Neca
Lourenço, armado de um 38, obrigou-o a assinar as promissórias. A partir desse momento
começou sua inimizade com os Belos. E Paulo se aproveita disso para convencê-lo a ser
candidato a vereador.
A seguir do capítulo 17 ao 21 há uma segunda parte da obra que recupera a viagem
que o Chico Belo fez a capital do estado e que ocorreu ao mesmo tempo da viagem do
deputado Paulo pelo interior do Confins. Chico Belo pretende com esta viagem acelerar o
pedido que o partido havia feito ao governo para nomeação de um delegado militar e de
professoras para a Vila. O narrador aproveita esta parte para mostrar os bastidores da política.
E como os políticos da capital vêm estes povoados do interior como uma reserva de votos. Na
obra, o numero de votos que o Chico Belo conta em seu território se torna moeda para
negociar o acordo com o governo.
Dr. Osmírio, que acompanha o Chico Belo a capital do estado, é advogado e filho do
fazendeiro mais poderoso de Santa Rita, cidade da qual se desmembra a Vila dos Confins,
para tornar-se município. Acompanha o candidato a prefeito, porque pretende com o apoio
dos políticos da região candidatar-se a deputado estadual.
A continuação narra o encontro do Dr. Osmírio Rocha e Chico Belo com o secretário
do governador Dr. Carvalho de Meneses. Sofrem pressão do secretário que pretende
candidatar-se a deputado federal e quer um acordo com os Rocha. O secretário autorizará a
nomeação do delegado em troca de dois mil votos em seus territórios. Com isso Dr. Osmírio é
colocado contra a parede, pois seu pai já havia feito acordos com outros políticos. Mas ele não
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se altera com isso, acredita que possa tirar proveito dos dois acordos. As negociações na
secretaria do governo funcionam na base da troca de favores. E quem não tem nada a oferecer
não consegue nada, só recebe promessas.
E como conseqüência imediata da viagem do Chico Belo à capital e do acordo feito
com o secretário do governador, se dá a visita do Dr. Carvalho a Vila dos Confins e traz
consigo o novo delegado. É recebido com festa, pelo diretório do partido liberal e fica
hospedado na casa do Chico Belo. Como conseqüência desta visita o professor local, seu
Elias, retira o apoio à oposição e passa para o lado do partido do governo, quer garantir seu
emprego. Paulo teme que outros membros do partido unionista façam o mesmo, para impedir
que isso aconteça interrompe sua viagem e regressa a Vila.
Quero abrir um parêntesis para indicar que no início do capitulo onde é narrado a
visita do secretário, há um amplo relato sobre o urubu. Esta ave freqüenta a região atrás de
carniça e, na falta desta, ataca os bezerros recém nascidos para comer o umbigo, infestando o
local de doenças e o narrador ressalta que não há remédio contra esta praga. E depois desta
introdução fala da visita do Dr. Carvalho e tudo o que fez para atender os interesses do partido
na Vila. O relato sobre o urubu se torna uma ironia para tratar da visita do secretário à Vila
dos Confins. E também para indicar que somente agora que os eleitores estão sendo
cadastrados no Confins, a atenção dos políticos da capital se volta para este lugar que nunca
havia recebido atenção do governo. Mas a impressão é que até mesmo o deputado Paulo
esteja incluído nesta ironia, pois ele também está defendendo seus próprios interesses.
A partir daqui temos outra parte na obra que vai dos capítulos 22 até o 30, que tratam
do retorno de Paulo a Vila, do dia das eleições e do momento de espera pelo resultado.
Chegando a Vila dos Confins o deputado recebe uma intimação do novo delegado, que é um
meio utilizado para fazer pressão nos adversários políticos. Fica indignado com o delegado
por desconhecer suas prerrogativas como deputado federal e desconta sua indignação no cabo
que veio trazer a intimação. Chico Belo envia alguns de seus jagunços para apoiar o delegado.
A situação fica tensa e só não acontece o pior devido à intervenção do Padre Sommer.
Para contornar a situação Paulo decide ir a Santa Rita, conversar com o juiz. Quando
está a caminho cruzando pelo mato do Corrente, ele simula um atentado contra si mesmo
dando três tiros de carabina contra o pára-brisa da camionete. Depois entra em Santa Rita
acorda todas as autoridades da cidade. E todos acreditam que realmente armaram uma tocaia
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contra ele e as suspeitas caem sobre o Filipão, jagunço de confiança do Chico Belo, que havia
sido autor de uma anterior tocaia onde ninguém tinha sido ferido. Paulo aproveita para
denunciar também todas as nomeações feitas na Vila o delegado, o novo intendente, e a visita
oficial do Dr. Carvalho, hospedando-se na casa do Chico Belo. Aproveita também para
mandar telegramas ao Presidente da Republica, ao Ministro da Justiça e aos presidentes do
Superior Tribunal Eleitoral, da Câmara e do Senado.
As conseqüências imediatas deste atentado foram: a troca do delegado da Vila, o envio
de tropas federais para garantir a normalidade no dia das eleições e a decisão do juiz de Santa
Rita de que se tenha somente dois lugares de votação com quatro urnas instaladas na Vila dos
Confins, pois assim ele pessoalmente poderia vigiar a votação. O narrador tenta manter-se
neutro, mas percebo certa simpatia pelo deputado Paulo. Mas nem por isso deixa de criticá-lo,
indicando que o deputado foi o único que saiu fortalecido desta farsa.
E chega assim no dia do pleito eleitoral. Para transportar os eleitores se alugaram
caminhões, que trazem os eleitores até uma fazenda próxima à Vila, onde se tem musica e
churrasco. Ali se entregam as “marmitas”,, envelopes com as cédulas já marcadas nos
candidatos do partido e depois os eleitores são levados até as urnas, os quais só têm o trabalho
de tirar do envelope oficial as cédulas em branco e colocar as já marcadas. Narra também
casos de eleitores que levam a marmita dos dois candidatos. Vota no candidato contrário ao
do patrão e guarda as cédulas do patrão no envelope do outro, e assim ganham o dinheiro
prometido dos dois lados. Paulo começa a medir os estragos que a compra de votos fez contra
o João Soares que perdeu muitos votos.
Encerrada as eleições todos se dirigem a Santa Rita menos Paulo que aproveita para
descansar e no dia seguinte sai com o padre para pescar num lugar tranqüilo, o córrego dos
Moreiras, onde conversam. O padre está indignado, pois não pode aceitar que Paulo agiu
corretamente simulando o atentado. Foi uma mentira, enganou todo mundo e ademais se está
acusando uma pessoa de um crime que não cometeu. Paulo acredita que a única coisa errada
que fez foi não haver contado ao padre seu plano desde o início. E quanto ao Filipão que está
sendo acusado do atentado, Paulo recorda que ele era um bandido mesmo.
A contagem dos votos começou somente dois dias após as eleições, data estabelecida
pelo juiz. Paulo segue na Vila acompanhando agora a travessia na balsa, do gado que
Nequinha Capador está conduzindo para Feira de Uberaba. No meio da travessia aconteceu
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algo imprevisto, se escuta o estrondo dos foguetes que comemoram o resultado das eleições.
O Touro, aquele descendente do Lontra, que tanta esperança trazia para o Nequinha, se
assusta e avança sobre a Ritinha, a filha do Geroncio, que usava um lindo vestido vermelho
presente do deputado e que estava indo visitar uma amiga. Confuso, O animal quebra a cerca
de madeira que se havia improvisado na balsa e a Ritinha e carregada pelas águas presa aos
chifres do Touro, as piranhas farejam o sangue e ambos se tornam pasto delas. Ninguém pode
fazer nada. Os outros passageiros que caíram na água conseguem com muito esforço saírem
do rio que está muito violento devido às chuvas. E ao mesmo tempo Paulo fica sabendo que o
Chico Belo ganhou as eleições.
Chegamos assim ao capítulo 31 que encera a obra. O narrador novamente acompanha
o Xixi Piriá que caminha agora sem um destino definido, todo triste e abatido. Pára na venda
do Fiico para beber água, onde estão também muitos eleitores da União Cívica. Nisso chega o
Filipão, o jagunço do Chico Belo e obriga todos beberem um trago em homenagem à vitória
do seu chefe. Xixi Piriá ainda tem tempo para repassar rapidamente os últimos
acontecimentos e quando se preparava para beber, Filipão insinua que depois irá à fazenda do
Seu Sebastião tirar satisfação com o velho e aproveitar-se de Dona Penha, pela qual Xixi Piriá
nutria um amor secreto. O mascate perde a cabeça e salta na garganta do jagunço, trançando
suas pernas na cintura dele impedindo que sacasse sua arma e o apunhala repetidamente até
que Filipão cai inconsciente. E assim ante a perplexidade de todos por tal acontecimento se
encerra a obra.
IV - Personagens:
Paulo Santos: É o personagem principal do romance, nasceu no sertão, não temos
muitos dados de sua infância, sabemos que foi criado na fazenda do tio Aurélio. E como ele
mesmo nos diz, ao invés de uma inchada colocaram em sua mão uma caneta e lápis. Daí se
pode deduzir que tenha recebido uma educação privilegiada na capital do estado. Nos tempos
da mocidade vinha com freqüência para o sertão com os amigos para pescar, foi em uma
destas viagens que Paulo conheceu a Vila dos Confins. Depois de formado e com apoio do tio
elegeu-se deputado federal. Atualmente vive no Rio de Janeiro, e veio para a Vila organizar a
campanha política do seu partido, buscando com isso aumentar sua influência política na
região.
O narrador em grande parte da obra assume o ponto de vista deste personagem sobre
os fatos narrados. E é a partir de suas experiências do sertão que ele vai introduzindo-nos
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nesse mundo. As experiências de Paulo sobre o Sertão dos Confins se configuram em dois
momentos distintos, antes das eleições só tinha boas lembranças, mas agora com a política ele
penetra um pouco mais a fundo neste mundo e descobre que esconde muitos mistérios.
Aquele sertão no qual Paulo tinha vivido grandes aventuras e muitos bons momentos,
já não existe mais. Agora ele se depara com outra cara do sertão, um sertão sombrio, cheio de
intrigas, onde os fortes sobrevivem e os fracos desaparecem. Aparentemente o sertão mudou,
mas acredito que o que ocorra é que Paulo até esse momento não conhecia profundamente a
realidade desse lugar. E agora que penetra pelo interior dessa região fica conhecendo essa
outra face do sertão, que acaba perdendo muito do encanto e da magia que tinha antes. É a
partir dessas experiências do deputado que temos a impressão que o sertão está mudando.
Não há aprofundamento nos aspectos psicológicos do personagem, mas com suas
atitudes no decorrer da história vamos montando algumas características. Paulo é muito
ambicioso, está defendendo seus próprios interesses ao colaborar com o partido na Vila dos
Confins. Podemos afirmar que o deputado está “viciado” na política, assim como o apostador
é viciado no jogo de cartas. É um tanto impaciente, na maioria das vezes usa diplomacia e um
bom discurso para conseguir as coisas, como quando convence seu Sebastião e o Neca
Lourenso a serem candidatos a vice-prefeito e a vereador respectivamente. Mas quando a
diplomacia não resolve utiliza alguma artimanha como no caso do falso atentado que ele
elabora contra si mesmo.
Como dito acima, Paulo é o personagem principal da narrativa, mas percebo que há
momentos em que seu protagonismo é quebrado por alguns outros personagens. Como, por
exemplo, o Padre Sommer, quando o narrador nos narra as peripécias do padre pelo sertão; O
Nequinha Capador, que protagoniza a narrativa quando o narrador nos conta sobre a chegada
do gado zebu à região bem como o crescimento econômico que isto trouxe; O Neca Lourenso,
que assume a voz da narrativa para contar como conseguiu comprar as terras da fazenda onde
mora e que pertenciam à família Belo. E o próprio Chico Belo que se torna a figura de relevo
quando o narrador nos conta sobre sua viagem a capital do estado. É um fato importante
porque mesmo sendo Paulo o personagem principal, nem sempre é o protagonista. Isso mostra
que o narrador não está preso a ele e tem grande liberdade de movimento.
Xixi Piriá: É um andarilho, que cruza constantemente o Sertão dos Confins, visitando
as fazendas e vendendo suas quinquilharias; perfumes, jóias, rendas etc. É apresentado pelo
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narrador no segundo capítulo da obra como pessoa simples, conhecido por todos, calmo,
simpático, bem recebido em todas as fazendas da região. Nos fornece alguns característica
físicas: é uma pessoa de estatura baixa, raquítica, mas que possui muita resistente pelas
caminhadas que faz pelo sertão. No decorrer da história é quase que esquecido, mencionado
apenas umas duas vezes, até o último capítulo onde reaparece para encerrar a obra. Envolto
num evento que quebra a lógica das coisas e deixa todos perplexos. Se torna um gigante, um
herói, ou um assassino, ao matar armado só com seu punhal o jagunço mais temido da região,
o Filipão.
É um personagem intrigante, sua presença não é relevante para o desenvolvimento do
enredo, mas não pode deixar de ser mencionado, pois é o personagem que abre e fecha a
narrativa. Reúne aspectos cômicos e trágicos ao mesmo tempo. E sofre também um processo
de aparente mudança, para entender isso devemos recuperar um fato importante do último
capítulo. Quando Filipão revela um segredo sobre Xixi Piriá, que ele estaria apaixonado por
Dona Penha, Xixi não confirma isso mas podemos deduzir que seja verdade, pois é somente
quando Filipão ameaça a Dona Penha que o mascate perde a cabeça e se lança contra o
jagunço.
A política se torna assim um elemento que revela as intenções mais secretas que tem
nos personagens, e os segredos ocultos no interior do Sertão dos Confins que produzem uma
aparência de mudança. Xixi Piriá de certa forma sintetiza o que é o Sertão dos Confins,
aparentemente um lugar tranqüilo, sossegado, mas que se transforma com a chegada das
eleições e fica claro que a passividade é só aparente, a política revela os conflitos que haviam
no Sertão.
Padre Sommer. É o pároco local, pertence à ordem dos Dominicanos, encara suas
obrigações de pároco como se fosse um “missionário de antigamente”. Passa todo período da
seca andando pelo Sertão. Provavelmente visitando os fiéis em todos os rincões do Confins. O
narrador insinua que também em caçadas e pescarias.
Representa a única ordem vigente no Sertão dos Confins, a moral religiosa, pois a
presença do estado é quase nula e substituída pela figura dos jagunços, que defendem os
interesses dos fazendeiros. A presença do padre foi fundamental para apaziguar os ânimos no
conflito gerado pelas provocações, que ocorriam após a chegada do delegado a Vila.
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O padre é em palavras do narrador um grande contador de estórias, e serve
evidentemente como modelo para aquilo que o autor considera um bom narrador. Que assume
muitas características da oralidade, com um tom anedótico, tendendo sempre ao exagero. Isso
fica evidente quando o narrador recupera o momento em que o padre relata aos demais
personagens a emocionante caçada à onça preta, prendendo a atenção de todos.
O Padre Sommer no final da obra assume um papel de contraste com o personagem
Paulo. O padre acusa Paulo de ter ateado fogo no Sertão dos Confins, estava tudo calmo até
sua chegada. Acusa-o principalmente de ter aproveitado as velhas inimizades que haviam na
região contra os Belo, para organizar o diretório do seu partido, causando toda a tensão.
Chico Belo: É o fazendeiro mais rico da região. Homem simples do interior com um
grande sentido prático, a única coisa que sabe fazer bem é negociar. E é exatamente isso que
vai fazer na capital, negociar a vinda do delegado militar à Vila, que vê como necessário para
fazer pressão nos adversários e ganhar as eleições.
Entende que agora que a Vila dos Confins se tornou município a política é o único
caminho para conservar sua influencia na região. Percebe nitidamente que a situação mudou,
agora já não basta ter uma grande quantidade de terras para ser a pessoa mais importante do
sertão, necessita também assumir o cargo político mais importante da Vila.
Homem
ambicioso sem escrúpulos, para o qual todos os meios são lícitos para conseguir seus
objetivos.
E ademais tem muito dinheiro para gastar nas eleições e quando estiver com as mãos
atadas, ele ainda terá um último trunfo: a compra de votos que na verdade vai ser o que
realmente desequilibra os adversários. A política para ele está a serviço dos próprios
interesses.
Jorge Turco: Seu nome verdadeiro é Jorge Abdala, é uma figura curiosa para o Sertão
dos Confins, pelo menos é a impressão que dele tem o personagem Paulo. Nas primeiras
viagens que o deputado fizera a Vila, havia constatado que Jorge Turco passava varias horas
da noite observando as estrelas, e fazia anotações em um Atlas. Com o tempo abandona tudo
isso e agora dedica-se a atender a pouca freguesia da venda. Quem era? De onde veio? Como
acabou ali no Sertão dos Confins? Não sabemos nem mesmo o narrador possui tal
informação. Não sabemos seus motivos para observar as estrelas, curiosidade, interesse
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cientifico, ou motivos religiosos. Só sabemos que com o tempo esse interesse foi se perdendo,
os cadernos com as anotações foram abandonados num canto do quarto, a luneta ainda era
usada esporadicamente, mas já não fazia anotações.
Como o personagem Xixi Piriá ele não tem muita importância no desenvolvimento da
trama da história, mas, tem o fato de ser o dono da venda onde o diretório do partido de Paulo
realiza suas reuniões. Mas ele mesmo não expressa opinião, não dá seus palpites, vive no
silencio, e na solidão de um homem já na casa dos quarenta e que ainda não se casou. Só
posso pensar nele como uma figura na obra que representa o princípio que o meio acaba
mudando o homem. Quem chega ali no sertão acaba se acomodando a essa vida tranqüila e
pacata, onde não se cultivam grandes sonhos, nem grandes ideais.
Nequinha Capador. Personagem plenamente inserido no sertão, já havia sido
fazendeiro e acabou perdendo tudo. O narrador não nos diz como se deu está perda, só nos diz
que é mascate viaja pelo sertão comprando e vendendo gado. É outro grande contador de
estórias, e adquire importância na obra porque também serve de parâmetro ao que Mário
Palmério pensa que deve ser um bom narrador.
Aparece em dois momentos na obra, primeiro, quando chega à fazenda do seu
Sebastião, que é candidato a vice-prefeito do partido da União Cívica, o qual lhe havia cedido
pastagens para engordar os novilhas zebuas que levaria para a feira de Exposição de Uberaba.
E no final da história, quando acontece a tragédia na travessia da balsa do Gerôncio.
É um personagem destinado ao fracasso, quando fazendeiro perdeu tudo. Agora que
tinha novas esperanças de ganhar algo com o touro tudo vai literalmente por água abaixo. O
narrador não comenta qual foi sua reação diante desta catástrofe, mas provavelmente se havia
acostumado com esses baques e já estava resignado de sua falta de sorte. Parece que há uma
força, uma espécie de destino que sempre acabe com seus sonhos.
Neca Lourenço. Atualmente é um fazendeiro importante da região. Nem sempre foi
assim ele já foi tropeiro, mas com muito trabalho e grande coragem ele percorreu o caminho
inverso do Nechinha Capador, tornando-se fazendeiro. Sua importância na obra provém do
fato dele ser considerado pelo narrador outro bom contador de estórias, juntamente com o
Padre Sommer e o Nequinha Capador.
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E igualmente a esses dois o narrador lhe cede espaço na obra para contar sua própria
história. Narra todo seu plano para comprar a fazenda do Bacurisal do Pederinho Belo irmão
do Chico Belo. O interessante deste fato é que Palmério novamente inverte a lógica normal
dos acontecimentos, pois Neca Lourenço não era ninguém quando comprou as terras e os
Belos eram os fazendeiros mais ricos da região. E mesmo assim ele consegue comprar as
terras num negócio enrolado no qual teve que usar sua arma para fazer o Pedrinho assinar as
promissórias. E ainda continua vivo para contar estórias. Nos narra também suas brigas com
os caboclos explorando o lado cômico das situações apresentadas. Paulo o convence a ser
candidato a vereador usando como motivação sua antiga rivalidade com os Belo. Neca
Lourenço encara isso como uma disputa pessoal.
João Soares. Fazendeiro importante da Vila dos Confins, escolhido pelo diretório do
partido unionista para ser o candidato a prefeito, acompanha o deputado Paulo na sua viagem
pelo sertão para conseguir apoio político, econômico e para completar o quadro de candidatos
a vereador.
No final acaba sendo o responsável pela própria derrota, pois não teve controle da
compra de votos por parte do Chico Belo em sua própria fazenda. Que continha mais de
duzentos eleitores, e no dia das eleições apareceram somente sessenta e poucos para votar.
Confiou no seu pessoal que afinal de contas são empregados na sua fazenda,
acreditava que eles o apoiariam. Mas com o dinheiro na mão quase todos eles o abandonaram.
Tudo parecia estar perfeito, mas no ultimo momento o velho e conhecido truque da compra de
votos, pegou-o desprevenido. O narrador o utiliza para ressaltar como a compra de votos pode
realmente fazer estragos em uma eleição e pode dar a vitória a um dos candidatos. Pois se
estes duzentos eleitores votassem, o João Soares ganharia seguramente as eleições.
O Filipão. É o jagunço de confiança do Chico Belo, seu braço direito em muitos
trabalhos realizados. Não adquire muita importância na história, é apresentado como autor de
uma tocaia e acusado posteriormente da falsa tocaia armada pelo deputado. E reaparece
novamente no final da história quando é morto por Xixi Piria.
Sua morte representa o fim da jagunçagem, que acontece com a chegada da política.
Se começa a substituir essa antiga necessidade mas o narrador da obra nos diz que nem tudo é
positivo, pois muitos dos jagunços ainda existentes acabam sendo incorporados às polícias
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locais. A configuração existente até então de fazendeiro – jagunço começa a ser substituída
pela de político – polícia. É o que ocorre ao menos nos primeiros momentos da nova situação
na Vila dos Confins. E que para a população local a situação não difere muito.
Pé-de-meia. Por meio deste personagem o narrador nos mostra um dado interessante,
na Vila dos Confins antes das eleições, poucos eleitores possuíam Título Eleitoral. Essa
preocupação surgiu somente após a emancipação da Vila a município por iniciativa dos
partidos que queriam conseguir mais votos.
Pé-de-meia foi contratado pelo partido unionista para cadastrar os eleitores nas
fazendas que apoiavam o candidato a prefeito João Soares. É um trabalho que exige muita
paciência, pois muitos dos eleitores não sabiam escrever e ele tinha que ensinar a desenhar o
próprio nome. Logicamente ele estava ganhando por cada eleitor cadastrado.
Depois de todo trabalho realizado Paulo recebeu denuncias que o rapaz havia recebido
proposta do partido adversário para trocar os envelopes com as cédulas marcadas enquanto os
eleitores eram levados até as urnas. O deputado acabou achando que tal denuncia tinha
fundamentos e que o Pé-de-meia estava ganhando dos dois lados. Este personagem é muito
apropriado para comprovar uma idéia que o narrador diz nos primeiros capítulos da obra.
“Eleição se ganha mesmo com dinheiro”.
Maria da Penha. Esta personagem é uma figura importante não para o
desenvolvimento do enredo em si, mas pensando na questão da posição que tem na obra a
figura feminina. A princípio, o narrador a apresenta coma a filha do seu Sebastião, moça
bonita, instruída, desenvolta, que possui uma educação que está acima das demais mulheres
da região. Aparenta estar apresentando uma figura feminina de relevo no sertão. Mas aí
começa a apresentar os aspectos negativos, entrando em questões morais. Se descobre que ela
já foi casada com um primo que morava na capital, o qual acabou suicidando-se de desgosto
por suas infidelidades. Retorna à fazenda com o pai e tem um romance com um peão que
acabou sendo expulso da fazenda pelo Seu Sebastião.
E quando o deputado Paulo chega à fazenda, ela lhe diz de forma muito discreta que
deixará a porta do quarto entreaberta à noite para que ele possa entrar. E aquela primeira
impressão positiva do leitor se perde e fica a imagem de uma moça leviana e sem juízo, que
pode levar facilmente qualquer homem à desgraça. O que passa a impressão no leitor que
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neste sertão, ou a mulher se esconde atrás do marido, ou acaba sendo considerada de má
índole.
Dr. Osmirio. Filho do Dr. Rocha, a família mais importante de Santa Rita. Formado
em direito e com ajuda da influencia do pai consegue o emprego de advogado do Banco do
Brasil, que não lhe tira tempo algum, só o de ir receber o salário no final do mês. E assim
dedica-se completamente a sua careira política. Quer eleger-se deputado estadual, para isso
fez alguns acordos para troca de votos, lógico contando com a influencia do pai.
Acompanha o Chico Belo à capital do estado, para garantir que os acordos que se faça
na capital tragam vantagens para ele também, e sabe que se ajudar o futuro prefeito da Vila
dos Confins poderá contar com os votos do vilarejo. Por meio deste personagem e da viagem
que realizam, o narrador nos mostra todo jogo de interesse que há por trás das eleições na Vila
dos Confins.
Dr. Carvalho de Meneses. É o atual Secretário do governador e usa seu cargo para
conseguir acordos políticos. Cuida de todos os assuntos do governo e os processos e pedidos
que recebe só chegam à mesa do governador se previamente se tenha feito um acordo de
apoio político com ele. Os demais processos ficam parados no seu gabinete, sem prazo
previsto para aprovação.
Sua casa à noite está sempre cheia, ainda mais agora que procura apoio político para
candidatar-se a deputado federal. Usa seu cargo para isso, mas como na secretaria do governo
não é um lugar muito seguro para se discutir tais acordos, eles são realizados em sua casa a
noite na surdina.
V - A estrutura narrativa.
A - O Narrador.
O texto da obra Vila dos Confins não oferece nenhum indicio sobre a identidade do
narrador, ele não se apresenta ao leitor. Não é um personagem e conseqüentemente não foi
testemunho dos acontecimentos, sendo assim não sabemos e ele não nos diz como ficou
conhecendo os fatos. Sabemos que ele conhece muito bem a região onde os eventos
aconteceram, como fica claro da parte inicial da obra onde ele fornece ao leitor um apanhado
geral do Sertão dos Confins.
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Seguindo a classificação do narrador que nos oferece Ligia Chippiani Morais Leite, na
sua obra, O foco narrativo, na parte intitulada a tipologia de Normam Friedman, que trata
sobre o ponto de vista que assume o narrador na obra literária, diria que na obra Vila dos
Confins há um “narrador onisciente neutro” (MORAIS LEITE, pág. 34) pois é ele que
apresenta e descreve os personagens para o leitor e sua presença é bem evidente com os seus
comentários. Logicamente quando Noman Friedman organiza sua tipologia ele se concentra
nos aspectos principais e me parece que engloba de modo geral todos os tipos de narrador.
Acontece que quando tenho que analisar uma obra literária concreta, como no caso a Vila dos
confins, a posição do narrador se torna um tanto mais complicada.
O narrador conhece muito bem o deputado Paulo, o personagem principal da obra, nos
revela alguns dados de sua infância. Penetra também em seu pensamento, em suas
lembranças. Na maior parte da obra o narrador acompanha o deputado colocando-o no centro
da história, utilizando sua percepção dos fatos, apoderando-se do seu ponto de vista sobre
acontecimentos. Mas não fica só nisso, ele não está preso à percepção que o deputado tem dos
fatos, ele apresenta ao leitor eventos que o próprio deputado desconhece. O narrador conhece
também todos os demais personagens e os conflitos, segredos e intrigas que há no interior do
sertão com suas historias e lendas.
Tenho que lembrar aqui também que na terceira parte da obra temos a viagem que o
Chico Belo faz à capital do estado para acelerar a nomeação do delegado para a Vila. Neste
momento o deputado é deixado de lado e quem assume o foco central na narrativa é o
fazendeiro. E todos os eventos são narrador a partir da sua experiência. Mas mesmo aqui o
narrador não está preso ao Chico Belo, por exemplo quando Dr.Osmirio sai da casa do
secretário. O Chico Belo não o acompanha e mesmo assim o narrador nos diz o que ele foi
fazer, tentar manter o acordo que havia feito com o deputado Cordovil de Azambuja.
Também há momentos onde o narrador abandona os personagens para contar anedotas
do sertão. Como por exemplo nas páginas iniciais do capitulo 8 onde ele nos fala do galo João
fanhoso, da fazenda do Seu Sebastião onde está hospedado o deputado Paulo. Enquanto todos
na fazenda estão dormindo, o João Fanhoso comete um equivoco imperdoável para um galo:
cantar seu canto de despertar em plena madrugada. O narrador amarra este fato com a história,
indicando que isso despertou o deputado, pois o galo dormia no pé de laranja-lima que estava
debaixo da janela do seu quarto.
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Também no capitulo 11 quando Paulo, andando pelo pátio da fazenda do seu Sebastião
à noite, se depara com Dona Maria da Penha à janela do seu quarto, quando todos na fazenda
foram despertados pelo mugido desesperado de um boi que fora pego por uma sucuri. Neste
momento o narrador abandona o deputado e todos na fazenda para nos falar de como a sucuri
fez para capturar o boi. Toda a luta entre os dois até o momento em que o animal vendo que
nada mais poderia fazer para libertar-se do seu inimigo solta o berro desesperado.
O narrador volta a fazer a mesma coisa no início do capitulo 21, abandona os
personagens e começa a falar sobre o urubu, que visita freqüentemente o sertão em busca de
carniça e na falta desta ficam à espera das vacas que estão dando crias para comer os umbigos
dos bezerros recém nascidos. Só que agora narrador não amara nem com os eventos do
capitulo anterior onde ele ainda se encontrava na capital com o Chico Belo. Nem com os
eventos que seguem, onde narra a visita que o secretário do governo fez à Vila em retribuição
do acordo que havia feito com o Chico Belo.
Quero indicar com isso que o narrador tem muita liberdade de movimento na obra, daí
a dificuldade para enquadrá-lo numa categoria que o explique completamente. Destes fatos e
da leitura que fiz da obra chego à conclusão que o modelo de narrador a que se ateve Mário
Palmério para sua obra Vila dos Confins: tem como modelo os bons contadores de estórias
que ele conheceu em suas viagens pelo sertão. Quero dizer que ele construiu para sua obra um
narrador que incorporasse algumas características próprias da oralidade, dos contos de
pescador, tendendo propositadamente ao exagero e à mentira.
Para comprovar isso temos o testemunho que nos dá o narrador, quando nos apresenta
na história o Padre Sommer, o Nechinha Capador, o Neca Lourenso, colocando-os como
modelos de contadores de estórias. Tanto que faz cada um relatar algum acontecimento
anedótico. Queria a seguir analisar um deles, no caso o Padre Sommer, que relata a caça que
faz a uma onça.
O narrador para recriar o ambiente da oralidade faz o próprio padre contar a história,
num tom anedótico, explorando o lado cômico dos fatos e buscando certo exagero nas
expressões, tendendo propositadamente a mentira. Enquanto ele, o narrador, fica livre para
interromper o relato; com as perguntas dos demais personagens; para indicar os gestos do
padre; para indicar as pausas que fez para tomar café e acender o cigarro; para mostrar a
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apreensão dos personagens ante tais pausas, que já estão ansiosos para saber o final do relato.
Expectativa que passa para o leitor, que também já quer saber como vai terminar aquilo.
Esse modelo de narrador emprestado da oralidade é também o que vai dar ao texto
uma aparência fragmentada, pois enquanto narra a história das primeiras eleições na Vila o
narrador vai intercalando relatos anedóticos sobre o sertão.
B - Estrutura da obra.
A obra tem uma estrutura muito simples: segue um modelo que se repete em muitos
dos breves relatos que contem. Para esclarecer esta idéia queria na continuação analisar o
relato da pesca do surubim, onde temos dois momentos. Um até o instante em que o peixe é
fisgado pelo anzol, onde o narrador acompanha o deputado, desde que sai da reunião do
diretório do partido que estava ocorrendo na venda do Jorge Turco. Se encontra com o
Geroncio e descem o rio de barco até o lugar desejado na curva do rio, que com o constante
redemoinho das águas formou um poço profundo onde se escondem os peixes maiores.
O narrador acompanha o deputado no ritual do preparo do anzol com a isca. Nesse
momento os pensamentos de Paulo se perdem lembrando como ele preparava as varas de
bambu-jardim para a pesca. Lembra do seu passado, dos amigos que vinha pescar com ele no
sertão: O tempo passa Geroncio, quanta coisa aconteceu, virei político, me elegi deputado,
me mudei para o Rio de Janeiro. (PALMÉRIO, pág. 52) Neste primeiro momento o que é
importante para a narrativa são as distrações do deputado com as lembranças do passado, que
permitem ao narrador reconstituir alguns momentos bons que o deputado havia passado: Hora
e tanto já e nada de peixe, mas o gostoso era ficar assim na canoa, pensando na vida,
imaginando coisas. (PALMÉRIO, pág. 52).
O segundo momento começa quando o surubim é fisgado pelo anzol. O que traz o
deputado de volta ao momento presente da narrativa e o narrador se dedica a relatar a luta do
deputado com o peixe. O Geroncio, percebendo o tamanho do peixe, decide ajudar o
deputado, que reconhece que se fosse em outros tempos não admitiria aquilo. O peixe lutou
por um tempo e depois se entrega cansado.
Como disse acima há dois momentos importantes, o primeiro de preparação e espera,
que é recheado com as lembranças do deputado Paulo sobre seu passado. Outro onde se
desenvolve o núcleo do relato, que é a pesca em si e a conclusão que apenas é mencionada.
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É um exemplo resumido da própria estrutura da obra. Que tem um primeiro momento
constituído pelos preparativos para o momento central, que são as eleições. E trata das duas
viagens, a do deputado Paulo pelo interior do sertão visitando as fazendas para conseguir
ajuda econômica e completar o quadro de candidatos a vereador. Esta parte da obra está
intercalada de relatos sobre a vida e estórias do sertão. Poderíamos dizer que é uma desculpa
para falar do sertão.
Temos também a viagem à capital do estado por parte do Chico Belo, onde o narrador
aproveita para falar dos bastidores da política. O fazendeiro também é bem sucedido em sua
viagem e consegue a visita do secretário do governador e a nomeação do delegado para a
Vila. Isso força o deputado Paulo pensar e realizar o falso atentado contra ele mesmo. E há
também o segundo momento que trata do dia das eleições que é o elemento central da história
e o resultado das eleições é apenas mencionado, enquanto narra a cena da morte da Ritinha na
travessia da balsa.
Resumindo temos um momento inicial que ocupa a maior parte da obra que são as
preparações para as eleições, intercalado por muitos relatos sobre o sertão, um segundo
momento que são as eleições e brevemente se menciona o resultado. E temos também o a
parte inicial onde o narrador fornece uma visão geral do sertão. E outros dois capítulos, o 2° e
último que tratam do personagem Xixi Piriá.
VI - Comentário Crítico conclusivo.
Quando pensei no comentário crítico para a obra Vila dos Confins de Mario Palmerio,
a primeira coisa que me veio em mente foi pensar em uma sociedade que está mudando. Esta
mudança é impulsionada não por interesses locais, mas por interesses estatais que pretendem
integrar ao poder central esta parte do interior do país e assim garantir a “unidade nacional”. E
há também o interesse dos partidos e dos políticos que pretendem aumentar sua área de
influência, por assim dizer, sua reserva de votos. Aparentemente temos o fim de uma
sociedade arcaica, que segue um modelo de organização “semifeudal” que tem o fazendeiro
como responsável por manter a ordem em suas terras, já que não há a presença do estado e
conseqüentemente da polícia.
Quero ressaltar que as mudanças não são tão profundas como parecem. A política é
um elemento urbano democrático, que promove mudanças. Mas quando introduzida no sertão,
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produz ao menos nesta obra um efeito contrário do que o logicamente esperado. Ao menos
num primeiro momento a política na Vila dos Confins se torna um meio para manter o “status
quo”, se torna um elemento conservador da situação atual do sertão.
Logicamente algo mudou e o personagem Chico Belo, consciente disso, sabe que para
manter sua influência e domínio na região vai necessitar um cargo político. Agora não se trata
só de possuir grande quantidade de terras, se trata também de assumir o controle político da
região. E uma vez assumindo o controle político vai ter também em suas mão o controle da
polícia local, que vai ser constituída pelos seus jagunços de confiança. E os indivíduos que
antes viviam na ilegalidade, protegidos por seus chefes e pela ausência do estado na região,
agora se tornam os promotores da ordem pública. As mudanças são muito superficiais, pois na
verdade ao emancipar a Vila a município não se estava pensando em mudanças profundas, só
em cadastrar mais eleitores que pudessem ser facilmente manipulados. E garantir assim o
domínio do partido no poder.
Pensando neste sistema político, onde se tem o elemento jagunço, transformado em
policial e que protege os interesses particulares de seu chefe político, me vem em mente a
obra de João Ubaldo Ribeiro, o Sargento Getulio. Nesta narrativa tal sistema começa a se
tornar insustentável. E Getulio acaba sendo abandonado e traído por seu chefe. E na
interpretação que nos oferece Jose Hildebrando Dacanal na sua obra, A nova literatura épica
brasileira, o Sargento Getulio não compreende a nova situação do mundo em que vive, está
preso a um passado que não pode mais ser sustentado. Acaba se tornando um sargento sem
mundo, onde a morte se torna o único meio para solucionar seu conflito.
A obra Vila dos Confins acaba passando uma idéia negativa da política, indicando que
os cargos são utilizados para defender os próprios interesses. Mas recuperando e aplicando
nesta obra a idéia de transição que há na obra Sargento Getulio, acredito que Mario Palmério
queira indicar que a situação política existente neste momento na Vila dos Confins, representa
todo o interior do país. Por mais negativa que seja enquanto ao abuso de poder, acaba se
tornando um mal necessário no processo de democratização do país. Acredito que o autor
forneça alguns indícios disso em sua obra, como, por exemplo, o narrador assumiu uma
posição neutra atendo-se a apresentar os fatos sem expressar um juízo de valor, quanto as
atitudes dos personagens. E mesmo quando assume um tom irônico, referindo-se às eleições,
tem o cuidado de não diminuir em nada a importância de tal processo para a Vila dos Confins.
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Sendo assim, a obra de Mario Palmério ressalta os aspectos negativos da política e
acaba sendo uma denuncia a prática do “voto de cabresto” existente no interior do país, contra
a qual o governo federal não faz nada. Tem os meios para impedir que isso aconteça, como
por exemplo colocar o exército ou a marinha para garantir a liberdade dos eleitores, mas
prefere fechar os olhos e não fazer nada.
Contudo a obra não trata só de uma sociedade em transição, Mário Palmério por meio
do narrador da obra usa a história como uma desculpa para falar do sertão, de suas belezas,
dos seus encantos, dos seus perigos, das suas experiências deste “mundo de Chão de não
acabara mais”. Acredito que ele consiga fazer isso com sucesso, mas não sem parecer à vezes
um pouco forçado, como quando introduz o relato do galo João Fanhoso. Mas é um grande
escritor e consegue amarar bem este fato com o resto da história.
Acredito que estes sejam os dois aspectos principais da obra. Primeiro, tratar de uma
sociedade que realiza pela primeira vez a experiência democrática. Ressaltando que a situação
democrática de fato não se conquista num único momento, mas é um processo que se constrói
ao longo de um período histórico. Segundo, reconstruir de forma magistral o ambiente
sertanejo onde os eventos acontecem.
Haveria muitos outros elementos a serem exploradas, como o uso da linguagem,
principalmente no tocante ao vocabulário; as características regionalistas da obra; a relação
campo-cidade e toda gama de malícia e artimanhas da política dos grandes centros,
deslocadas para um local perdido no sertão, que nunca antes havia feito experiência
democrática; a questão local-universal, os relatos do sertão representando essa cor local bem
marcada, e a política dando seu contrapeso universal de algo que aconteceu nos Confins, mas
poderia ter acontecido em qualquer lugar. Não sendo possível nem apropriado nesta
monografia tocar todos estes elementos, procurei jogar um pouco de luz sobre alguns.
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VII – Bibliografia.
DACANAL, José Hildebrando, Nova narrativa épica do Brasil; Grande Sertão: Veredas, O
Coronel e o Lobisomem, Sargento Getulio, Os Guaianãs, 2 ed., Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1988.
DACANAL, José Hildebrando, O romance de 30, 3 ed., Porto Alegre: Novo Século, 2001.
CANDIDO, Antonio, Literatura e sociedade, 7 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1985.
MORAES LEITE, Ligia Chiappini, O Foco Narrativo (ou a polemica em torno da ilusão), 10
ed. São Paulo: Edotora Ática 2001.
PALMÉRIO, Mario, Vila dos Confins, Rio de Janeiro: José Olimpio editora, 1956.

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